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A PROMESSA DO CAPITÃO

Uma Nova Chance - 1


STEFANY NUNES
S UMÁR IO

Nota da Autora

Prólogo
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Catorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezesseis
Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Epílogo
Ao Leitor
Outras Obras da Autora
A Aposta de Um Cavalheiro
A Proposta de um Cavalheiro
Um Erro Inevitável
A Luz do meu Amor
Sobre a Autora
Bônus
Uma Dama Impensável
Prólogo
A Promessa do Capitão
Série: Uma Nova Chance
Copyright 2021 por Stefany Nunes

Edição Digital.
Revisão: Mari Vieira.

Todos os direitos reservados. Este e-book ou qualquer parte dele não pode
ser reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização expressa, por
escrito, do autor ou editor, exceto pelo uso de citações breves em uma
resenha do mesmo.

Os personagens e situações abordados neste livro são fictícios. Quaisquer


similaridades com pessoas reais são mera coincidência e não foram intenção
da autora.

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NOTA DA AUTORA

“Este livro aborda temas que podem ser sensíveis para algumas
pessoas, como cenas de guerra e luto. Contém cenas eróticas
descritivas. Idade de leitura: 18 anos.”
Este livro traz uma história de superação em relação ao luto e à
guerra. O dedico a todos os amores de alguém que viraram
saudades, especialmente aos da minha própria família.
O amor nunca morre. Ele permanece, ainda que não haja presença
física.
Ó
PRÓLOGO
YAFFORTH , I NG L AT E R R A, 1 8 0 9

— N
embora — disse Arthur, enquanto Thomas fechava sua bagagem.
O mais velho respirou fundo, sentindo o peso daquelas poucas
palavras.
— Me perdoe, Arthur, mas se eu não fizer isso estamos perdidos
— confessou, tentando consolar o irmão. — Você sabe que
precisamos do dinheiro.
Thomas Jeff Baker não possuía título, nem terras, nem fortunas.
Ele não era um cavalheiro da realeza ou um nobre. Não fazia ideia
do que era frequentar os eventos da temporada ou ser considerado
um bom partido pelas damas da sociedade. Seu pai, quando vivo,
era um mero ferreiro, motivo pelo qual não havia qualquer herança
para receber após sua morte.
Thomas tinha apenas vinte anos quando assumiu a
responsabilidade pela mãe e o irmão caçula, Arthur, dois anos mais
novo. Após dois anos tentando de tudo para administrar a casa com
eficiência e sustentar a família, os recursos estavam acabando e
não lhe restou outra solução: ele teria que se juntar ao exército.
Nunca havia passado pela sua cabeça ser soldado. Thomas
ouvia as histórias dos combatentes e até as admirava, mas aquela
vida de guerra não combinava com seu jeito de ser. Ele era uma
pessoa tranquila e sem grandes ambições. O que queria era
trabalhar em alguma coisa simples, como fizera seu pai, ganhar seu
dinheiro honestamente e contribuir com as despesas da casa. Ele
nunca ansiou que soubessem seu nome ou tivesse qualquer tipo de
fama e sempre achou que seria daqueles homens que crescem, se
apaixonam por uma bela mulher, constroem família, vivem uma vida
pacata e morrem deixando boas e sutis lembranças.
Naquele momento, porém, a vida lhe mostrava que nem sempre
é possível concretizar o planejado, e lá estava ele, mesmo que
contrariado, a caminho do campo de batalha. Thomas conhecia o
contexto da guerra como um todo, afinal as tropas britânicas
enfrentavam Napoleão há quase sete anos. Ainda assim, ele sabia
que entraria naquele jogo sem previsão para sair.
Isso se saísse.
Era uma guerra, afinal, e ele tinha consciência de que uma carta
informando sua morte ou “abatimento” poderia chegar a qualquer
momento às mãos de sua mãe e irmão. Esse sentimento lhe enchia
de medo e terror, mas ele estava convicto de seu dever de proteger
e prover pela família.
Aquele, portanto, era um risco necessário.
— O que eu vou fazer agora, Tom? — perguntou Arthur,
observando o irmão fechar a cortina de seu quarto.
Thomas podia ver em seus olhos o quanto o irmão estava
perdido com sua partida. Sempre fora assim entre os dois. Como
mais velho, ele sempre conseguiu enxergar cada anseio e
preocupação de Arthur, e fazia o que estava ao seu alcance para
protegê-lo do que quer que fosse. Thomas também estava com
medo, mas em sua tentativa de proteção, não quis demonstrar tal
sentimento.
— Tudo vai dar certo, Art — Thomas pôs a mão no ombro do
rapaz, mesmo sabendo que o que dizia era algo muito incerto.
— Preciso que seja forte, que cuide de nossa mãe enquanto eu
estiver fora. Você será o homem da casa agora e ela só terá você.
— Eu vou cuidar. Eu prometo.
Os dois se abraçaram e Thomas foi tomado por um sentimento
de aquele era o último abraço que dava no irmão. Afastou
imediatamente o pensamento, pois não queria demonstrar a ele
suas emoções. Se para ele era difícil partir, sabia que também era
difícil para Arthur ficar.
— Por favor, volte — Arthur suplicou, olhando em seus olhos.
Ele deveria ter respondido que tentaria, ou que faria o possível,
mas não conseguiu.
Não havia garantia, afinal, mas o olhar de Arthur foi mais forte
que o bom senso.
— Vou voltar — e então sorriu para o irmão.
Thomas deu uma última olhada ao redor de seu quarto,
memorizando cada canto.
Queria se lembrar de tudo.
Queria visualizar a cama simples de solteiro no canto da janela,
a colcha verde remendada que a cobria e a mesinha de madeira
surrada encostada na parede paralela.
Ele engoliu seco, tentando não se emocionar e caminhou em
direção à porta.
— Vou falar com mamãe, e depois vou passar na casa de
Amanda — disse ele para Arthur, que assentiu.
Ao chegar à porta, virou-se para falar, mas o irmão foi mais
rápido.
— Eu cuido de Amanda também, Tom. Não se preocupe.
Ele sorriu, e então seguiu seu caminho, deixando Arthur sozinho
no quarto.
Thomas caminhou até o dormitório da mãe e ela estava sentada
junto à cama, chorando. Tom sabia que estava fazendo aquilo por
ela também, mas seu coração não conseguiu não se partir ao vê-la
naquele estado.
— Mamãe... Está na hora.
Ela enxugou suas lágrimas e levantou a cabeça, ficando em pé.
A mulher se aproximou e pegou no rosto do filho com as duas mãos,
fazendo-o olhar diretamente em seus olhos azuis, que eram
basicamente os mesmo que Thomas via quando olhava no espelho.
Todos sempre lhe disseram que ele tinha os olhos da mãe.
— Escute bem o que eu vou lhe dizer, Thomas. Eu sei porque
você está fazendo isto e preciso que saiba a quão orgulhosa estou
de você, filho — ela exclamou e Tom sentiu as lágrimas embaçarem
sua visão.
— Mãe, eu... — ele começou, mas a mulher interrompeu.
— Eu não terminei — ela o repreendeu, séria. — Você vai sair
por esta porta e vai fazer o que tem que ser feito. Vai cumprir o
dever que seu pai sempre lhe ensinou. Mas independente do que
acontecer — ela apertou mais as mãos em seu rosto — Você vai
voltar para casa, entendeu? Volte para casa! Isso é uma ordem.
Thomas assentiu e abraçou a matriarca forte, e a sensação de
despedida definitiva também se fez presente.
— Eu te amo, mãe.
— Eu sei, meu filho. Eu também. Não se preocupe, vamos ficar
bem — ela conseguiu dar um sorriso a ele.
Arthur chegou à porta do quarto e os dois olharam para ele com
os olhos pesados. Todos então se dirigiram para fora da pequena
casa. Thomas já caminhara uns metros quando a mãe o chamou e
ele se virou para o som da voz dela.
— É uma ordem — ela repetiu, firme.
Ele balançou a cabeça em afirmativa, sentindo o nó na garganta,
e registrou em sua mente a figura de sua mãe e irmão parados ali,
olhando para ele.
Os Baker podiam não ter fortunas ou luxo, mas a família sempre
fora o bem mais precioso que Thomas possuíra. Quando seu pai
morreu, foi devastador observar uma parte deles faltando, e apesar
de terem superado o luto, nunca foi o mesmo sem a presença do
patriarca. E ali, naquele momento, outro pedaço da família partiria,
talvez para sempre, e todos fingiam ser fortes.
Não é nada fácil parecer forte quando se tem o coração
estraçalhado.
Thomas não teve que caminhar muito para chegar à casa de
Amanda, sua vizinha e amiga de infância. Eles se conheciam desde
sempre, e depois da morte de seu pai se aproximaram ainda mais e
se apaixonaram, iniciando um compromisso. Após saber que
precisaria se alistar, ele pensou muitas vezes em pedi-la em
casamento, mas não achava justo tirá-la do conforto — embora
simples — de seu lar, uma vez que não tinha nada para oferecer,
nem mesmo a promessa de um futuro.
Pelo menos, não naquele momento.
Amanda não aceitara bem a decisão dele em partir, mas por fim
entendeu que Thomas era o responsável por sua família e precisava
agir de tal forma.
Quando chegou na frente da casa, ela já estava lá o esperando.
— Olá, Man — disse, com um sorriso melancólico.
— Eu não consigo sorrir, Tom — ela se aproximou, já em
lágrimas.
Ele pôs sua bagagem no chão e a abraçou.
— Eu queria tanto que fosse diferente — Amanda se
aconchegou ao seu peito.
— Eu também, querida — ele admitiu, fazendo-a olhar em sua
direção.
Com um sorriso forçado, ele tentou passar a ela calma naquele
momento tão delicado.
— Me escute. Vai ficar tudo bem.
— Você tem mesmo que ir? — ela perguntou.
— Não há outro jeito — ele respondeu, pesaroso.
— Eu vou te esperar, Tom. Eu vou esperar você voltar e então
vamos nos casar! — Amanda afirmava, com firmeza.
— Eu sei. Eu sei, querida — expressou, mas na verdade, não
sabia de nada.
— Prometa que vai voltar — e então ele encontrou os olhos
verdes suplicantes dela.
— Amanda, eu não posso te pr...
— Prometa que vai voltar — insistiu.
Thomas queria prometer aquilo, mas não podia. Não tinha
certeza de nada, afinal.
Amanda percebeu a perturbação dele e mordeu o lábio inferior.
— Prometa então, que eu serei o motivo de seu regresso, que
todos os dias vai lutar para voltar, por mim.
Aquilo ele certamente poderia prometer.
Ele sabia que sua mãe estaria muito bem cuidada com Arthur e
que o irmão logo seria um homem formado e pronto para traçar seu
próprio destino. Mas se Amanda estava ali, em sua frente, lhe
pedindo para lutar por ela, aquilo era o mínimo que ele podia fazer.
— Eu prometo.
Os lábios dela colaram nos dele. Thomas queria que aquele
beijo nunca tivesse que terminar. Eles se abraçaram, e ele enxugou
as lágrimas que caiam dos olhos dela.
Quando finalmente conseguiram se soltar, Thomas caminhou
para longe e por mais que não quisesse, não conseguiu evitar de
olhar para trás, vendo a figura de Amanda já pequena no horizonte.
Ele respirou fundo.
Ali, naquele pequeno vilarejo, Tom deixava tudo o que conhecia
e amava. Olhou para frente novamente, indo em direção a seu
destino, um futuro totalmente desconhecido e incerto.
E aquele era o momento mais aterrorizante de sua vida.
Í
CAPÍTULO UM
CAR LI S LE , I NG L AT E R R A, 1 8 1 1

C
envelope cor de marfim. Ela estava com as mãos manchadas com a
tinta que usara para escrever a carta. Isso sempre acontecia, pois
Charlotte nunca levara muito jeito em manejar a pena. Era apenas a
segunda carta que escrevia a Oliver, mesmo já fazendo pouco mais
de um ano que ele partira para se juntar ao exército.
Ela não pôde escrevê-lo logo de imediato. Necessitava antes de
tudo saber sua localização e regimento, e eles combinaram que ele
sem demora enviaria a ela as informações necessárias para
manterem o máximo de contato possível durante sua ausência.
A primeira carta chegou quatro meses depois da despedida.
Nela, Oliver contava como fora toda a viagem até o posto, como se
adaptara à nova realidade e à sua nova rotina. Ele mencionou que a
comida era bem ruim e que muitas vezes passava frio à noite, fora a
dor nas costas que sentia devido à falta de conforto. Estava numa
guerra, afinal. Oliver também contou que os soldados tentavam ao
máximo se distrair quando não estavam em combate e que inclusive
fizera um novo amigo, Thomas alguma coisa, e que os dois se
davam muito bem e se entendiam. Na última linha da carta, fez
questão de escrever o quanto a amava e sentia falta dela, e
Charlotte se lembrava de ter sorrido ao ler aquilo.
Mesmo com a culpa discreta que sentia.
Oliver Ross e Charlotte Hollth se conheceram um ano e três
meses antes, em um baile comunitário. Em realidade, se conheciam
a vida inteira, tendo em vista o pequeno tamanho da cidade, mas foi
somente após o baile que eles verdadeiramente conversaram.
Ele a olhou de longe e não demorou para tirá-la para dançar, e
ela, encantada com o charme e beleza do rapaz, prontamente
aceitou. Havia algo irresistível naqueles cabelos negros e olhos
verdes penetrantes, mas o que mais chamava atenção em Oliver
era o sorriso.
Ah, aquele sorriso maroto dele.
Eles passaram a se conhecer melhor nas semanas seguintes e
tudo caminhava para o início de um relacionamento feliz e
satisfatório.
Oliver era filho único de um barão e estava acostumado com
alguns luxos da nobreza. De tempos em tempos passava uma
temporada em Londres, quando seu pai precisava cumprir suas
obrigações com o parlamento, mas os Ross gostavam mesmo é da
vida bucólica que levavam em Carlisle, mesmo com toda a distinção
nobre que possuíam.
Charlotte, por outro lado, não possuía nenhum título, mas vinha
de uma linhagem nobre. Seu pai era ferreiro e sua mãe, filha de um
marquês, abdicou de sua posição social para se casar por amor.
Assim, quando viva, a mãe — que aprendeu a costurar para ajudar
nas despesas da casa — sempre garantiu uma boa educação tanto
à Charlotte como à sua irmã mais velha, Elizabeth, ensinando-as
tudo o que sabia a respeito de ser uma dama. Talvez fosse esse o
motivo pelo qual os pais de Oliver não viam problema em seu
compromisso com ela, se aquele viesse a se materializar.
Não passaram muitos dias do início do relacionamento deles
quando Oliver fora surpreendido com a convocação do exercício
britânico para mais uma batalha contra o imperador francês. Tudo
aconteceu muito rápido, e apesar de Charlotte ter certeza de que
Oliver não queria se alistar, ele não demonstrou qualquer tipo de
medo e insegurança com aquela missão.
E então, num rompante, Charlotte se surpreendeu com o pedido
de casamento que recebeu. Não esperava que Oliver fizesse aquilo,
especialmente prestes a deixá-la. Naquele momento, ela conseguiu
ver um lampejo de desespero nos olhos verdes dele. Sem saber o
que fazer, e ponderando o quanto já se conheciam, sua afeição em
relação a ele, como Oliver era carinhoso com ela e o quanto a união
deles faria bem à sua família, não hesitou em aceitar, mesmo sem
ter certeza de seus sentimentos.
Uma noite antes do adeus, ao se encontrarem em um local
privado para se despedirem, uma coisa levou à outra e Charlotte se
entregou ao noivo.
Quando Oliver partiu, no dia seguinte, ficou combinado que eles
sempre escreveriam um ao outro, e ele jurou voltar para ela, a todo
custo.
Charlotte se pegou parada olhando para o envelope em suas
mãos, revivendo a cena em sua cabeça. Na primeira carta que lhe
enviara, ela disse que estava feliz por ele ter feito amizade e se
instalado devidamente, mas além do noivado falido de sua irmã —
Elizabeth quase se casara naquele período, mas o compromisso
acabou não dando certo —, não havia nada de novo a contar. Sem
saber o que dizer e com pena de que Oliver recebesse apenas
algumas poucas palavras sem sentido, Charlotte terminou a carta
com um poema gentil.
A resposta de Oliver chegou quase seis meses depois, e
diferente da primeira carta, nela ele já relatava alguns terrores
vividos na guerra e as dificuldades que passava.
Ela pôde sentir o desespero e trauma dele através de suas
palavras e aquilo partiu seu coração. Mesmo assim, Oliver
agradeceu o poema enviado por ela e encerrou a carta da mesma
forma que a anterior, confessando seu amor.
Daquela vez, Charlotte não conseguiu sorrir.
Todo aquele tempo longe dele a fez perceber algo que desde a
despedida deles a intrigava: que seu afeto por Oliver, apesar de
grande e verdadeiro, não era amor e isso fez com que Charlotte se
sentisse mal e tremendamente culpada.
Contudo, colocando à parte seus sentimentos, Charlotte dera
sua palavra a Oliver e certamente a cumpriria, especialmente diante
de toda aquela situação. Nem se imaginava sendo a pessoa que
escreve ao homem prometido dizendo que mudou de ideia enquanto
ele luta em uma guerra. Aquela possibilidade era, além de cruel,
absurda, e Charlotte jamais faria isso, principalmente com Oliver.
Mesmo assim, analisando tudo o que sentia, Charlotte teve certa
dificuldade em escrever a segunda carta. Ela estava hesitante em
expressar suas palavras, mesmo sem saber as razões para tal. Sem
saída, tratou então de contar-lhe coisas de seu dia a dia que
pudessem talvez ajudá-lo a sair daquela realidade em que se
encontrava. Na última linha, mesmo sabendo que não eram seus
verdadeiros sentimentos, escreveu que também o amava, afinal,
aquilo não era sobre ela e sim sobre ele. Oliver estava frágil e
precisava de amor e Charlotte não lhe negaria isso, de forma
alguma.
Ela pegou o envelope e se levantou, descendo as escadas do
pequeno e simples sobrado em que vivia. Elizabeth cuidava de
alguns afazeres da casa, e quando a viu, a encarou, preocupada.
— Estou achando a tosse de papai muito estranha.
— Eu ouvi do meu quarto — Charlotte respondeu. — Devemos
chamar o doutor?
— Não sei se temos como pagar, Char.
— Eu dou um jeito, Liz. Eu tenho algumas costuras para fazer. O
importante é verificar a saúde dele.
A família Hollth tinha problemas financeiros desde sempre, mas
com os serviços de ferreiro e os trabalhos de costura realizados pela
matriarca, eles tranquilamente conseguiam se sustentar. Após a
morte da mãe, causada por uma epidemia de tifo na região alguns
anos antes, a situação mudou e as meninas tiveram que desde cedo
arranjar algum tipo de serviço para contribuir nas despesas da casa.
Mesmo tendo avós nobres e ricos, depois que a mãe escolhera se
casar com um simples ferreiro, as meninas nunca tiveram contato
com os parentes e jamais sequer esperaram qualquer ajuda da
parte deles.
Elizabeth trabalhava na estalagem da vila e Charlotte assumiu o
posto de costureira da mãe, e por um tempo as coisas pareciam
caminhar bem. Porém, na mesma época em que Oliver fora
convocado ao exército, a saúde do Sr. Hollth começou a se
deteriorar mês a mês, e sem conseguir manter o ritmo de trabalho, o
dinheiro estava cada vez mais escasso para a família.
— É uma carta para Oliver? — Elizabeth perguntou, apontando
com a cabeça para as mãos da irmã.
— Sim, vou enviá-la hoje mesmo — respondeu com um sorriso
amarelo.
— Conversei com Susie e ela ainda não recebeu nenhuma de
Carl. Ela está bem preocupada.
Charlotte fez um bico.
— Oliver tinha esperança de que eles estivessem no mesmo
batalhão, mas eu achei bem improvável. Mas ele fez amizade lá,
pelo menos.
— Ele está bem, Char? — Liz inqueriu, enquanto varria.
— Da última vez que soube, sim.
— Sinto muito, querida, ele estar tão longe de você — a mais
velha respondeu, carinhosa.
— É tão estranho pensar nisso...
— Sim... a ausência é algo muito estranho de se lidar — Liz
concordou. — Mas, se Deus quiser, logo ele estará de volta e vocês
poderão enfim ser felizes — confessou, sorrindo.
Charlotte não chegou a mencionar à irmã que descobrira que
não amava Oliver. Como sua intenção de casar-se com ele
continuava a mesma, aquela informação não faria diferença, de
qualquer forma.
— E quanto ao seu final feliz, Liz? — Charlotte perguntou.
A irmã parou de varrer e olhou para ela.
— O que quer dizer?
— Vejo você somente trabalhando e cuidando de tudo. Já faz um
tempo desde que tudo aconteceu. Não acha que está na hora de
seguir em frente?
— Estou seguindo, querida. Cuidar de vocês é o que me dá um
propósito. Você e papai são tudo que tenho.
— Mas Liz, não acha que merece um companheiro? Você
sempre sonhou em se casar por amor como a mamã...
— Minha chance já passou, Char — Elizabeth a cortou. — Você
sabe bem disso. Estou bem onde estou. Não se preocupe.
Charlotte sabia que a irmã não gostava de falar sobre seu
passado, não por ser reservada, mas sim porque o passado a
machucava.
E ela não era a única ferida naquela história.
— Bom... Vou enviar a carta e já retorno. Precisa de algo da vila?
— perguntou Charlotte, mudando de assunto.
— Aproveite que vai até lá e veja se encontra o doutor. Quero
que papai seja examinado o quanto antes — Elizabeth disse, e sua
feição de preocupação voltou imediatamente.
— Tudo bem, farei isso. Mas não acha melhor perguntar a ele
primeiro?
— Não, Char. Você sabe como ele é teimoso. Se disser a ele
que acho que deve ser examinado, ele vai me proibir de chamar
qualquer um. Vou agir por mim mesma. Qualquer coisa, se ele ficar
bravo, eu assumo as consequências — ela respondeu.
— Eu o enfrento com você se for necessário. Mas... você acha
que é sério, Liz?
Percebendo a expressão preocupada de Charlotte, Elizabeth
sorriu.
Ela sempre tentava apaziguar as situações.
— Não se preocupe, querida. É mais por cuidado. Vai ficar tudo
bem.
Charlotte assentiu, pensando que era melhor se apegar àquela
afirmação do que em todas as aflições que tomavam sua mente, e
assim se despediu da irmã e saiu a caminho da vila.
Í
CAPÍTULO DOIS
P I R I N E US , E N T R E A E S PAN HA E A FR ANÇA, 1 81 3

T , .
Os olhos ardiam mesmo fechados, a cabeça latejava e o zumbido
em seu ouvido era cada vez mais agudo.
Abaixado naquela pequena colina, tentando escapar dos tiros
vindos de todos os lados, ele tentou não se esquecer do porquê
precisava se manter vivo e bem.
Ele tinha uma promessa a cumprir.
Desde sua partida, três anos antes, muita coisa havia mudado.
Ele se lembrava de quando chegara ao acampamento para iniciar
aquela vida de soldado. Como todos os outros a seu redor, estava
com medo e inseguro. Por algum motivo, achou que seria o único a
se sentir daquela forma naquele meio. Mas não. A maioria dos
homens revelavam suas ansiedades através das expressões
preocupadas ou desesperadas. Muitas vezes até de pânico.
Thomas não era o sujeito mais amável ou amigável do ambiente.
Ao contrário, preferia se manter quieto e reflexivo. Era incrível como
o sujeito despreocupado e leve que um dia fora ficara para trás,
junto com o resto de sua vida. Thomas sentia falta da família e de
Amanda, e sempre que podia, escrevia para ela. As
correspondências se demoravam, mas quase todos os oficiais
escreviam a seus entes queridos.
Era o único modo de manter-se são.
Foi pedindo tinta emprestada que, inclusive, fez amizade com
Oliver Ross. Eles tinham a mesma idade e apesar de terem origens
diferentes — Oliver era herdeiro do título de barão e se via em seu
jeito de falar a herança nobre que tinha —, assim como Thomas,
Oliver também deixara uma mulher a sua espera.
Ele e Oliver se deram bem desde o início. Os dois se ajudavam
em relação a seus medos e anseios. Oliver era filho único e viu em
Thomas um irmão que nunca tivera. Já Thomas conseguia, de certa
forma, amenizar a falta que Arthur lhe fazia com a presença e
amizade do rapaz.
Um ano depois de estarem ali, uma carta totalmente inesperada
chegou às mãos de Thomas. Nela, Amanda lhe contava que tinha
se apaixonado por outra pessoa e iria se casar com o sujeito. Ao ler
aquilo, ele se lembrou das palavras da amada em sua partida, sobre
ela ser o motivo que lhe faria retornar. Aquilo tinha sido a esperança
que Tom agarrava todas as noites antes de dormir, que o fazia lutar
com mais afinco no campo de batalha.
De repente, ela não existia mais.
Não foi à toa que na batalha seguinte ele, sem concentração e
abalado, quase morreu. Não sabia se era o choque ou até mesmo o
próprio sofrimento e melancolia em relação à perda da mulher que
amava, mas não fosse por Oliver o salvar, Tom certamente teria sido
mais uma das milhares de baixas que o exército dava diariamente.
Thomas se lembrava bem de estar quase inconsciente e de ouvir
os gritos do amigo lhe dizendo para aguentar firme. Tudo nele doía
e ele sentia um frio inexplicável.
Aquela batalha lhe rendeu um ferimento profundo na região do
ombro, que o impediu de lutar por quase dois meses. Foram três
dias infindáveis de febre e procedimentos dolorosos que Thomas
recordava sentir mesmo quase inconsciente. Por fim, os médicos
declararam que assim que a ferida cicatrizasse, ele estaria pronto
para voltar para o campo.
Aquele tempo parado em recuperação não lhe fez bem. Thomas
sentia que, se ao menos estivesse lutando, não precisaria pensar
em Amanda e nas falsas promessas que ela lhe fizera.
A situação era irônica, para dizer a verdade. Ele jamais imaginou
que ela agiria daquela forma. Conhecia Amanda de toda a vida, e
fizera de tudo para protegê-la de qualquer sofrimento. Antes de
partir, ele pensou inclusive em terminar o relacionamento com ela,
justamente para deixá-la livre. Mas Amanda parecia tão disposta a
esperá-lo, parecia sofrer tanto com sua partida, que Thomas
acreditou com todas as suas forças que o amor deles fosse de
verdade. Mais do que isso, acreditou que esse amor pudesse
superar tudo, inclusive uma guerra. Ela prometera esperá-lo.
Era tudo mentira.
Thomas tentava de tudo para não imaginar quem teria sido o
rapaz por quem ela se apaixonara, mas não conseguia evitar aquele
pensamento. A sensação que tinha em seu peito era a de um vazio
imensurável. Ele a amara de verdade. Queria voltar para ela. No
meio de todo aquele inferno da guerra, um motivo para voltar para
casa significava tudo.
E então, sem aviso, ele se viu sem nada.
Uma noite, em meio à sua recuperação, foi acordado por Oliver,
que estava aflito como Thomas nunca havia visto.
— Tom, estou com medo — confessou, de forma direta e
desesperada.
Thomas abriu os olhos e chacoalhou novamente a cabeça para
acordar. O movimento foi leve, mas ainda assim ele sentiu a
pontada na região machucada do ombro.
— O que aconteceu, Oliver? — perguntou com a voz sonolenta.
— Estou com muito medo. Não paro de tremer — disse o amigo,
e sua voz delatava todo aquele terror. — Eu acho que não volto da
batalha ao amanhecer.
— Pare com isso, Oliver — ainda deitado, Thomas se apoiou no
braço bom, para tentar consolar o rapaz.
— Estou falando sério. Não sei se volto, Tom.
Thomas não sabia o que dizer. Ele conhecia aquela aflição e
depois de estar tão perto da morte, imaginava que ela seria inclusive
pior na hora que tivesse que ir para o campo de novo.
Era desesperador ver Oliver naquele estado.
— Há algo que eu possa fazer? — foi o que ele conseguiu dizer.
Oliver pensou um momento e se virou para ele, com os olhos de
angústia.
— Eu preciso que você me ajude, caso eu não volte.
Thomas o olhou com firmeza.
— Diga.
Ele faria o que fosse preciso para tirar Oliver daquela agonia.
Devia sua vida a ele, afinal.
— Prometa-me que se eu não voltar, você vai cuidar de
Charlotte.
Charlotte. A noiva que Oliver deixara em casa.
Thomas observava as reações do amigo a cada carta que
recebia dela. Oliver não lhe contara muito sobre os dois, apenas que
tinham iniciado o relacionamento pouco tempo antes de ele ser
convocado e que ele a pedira em casamento antes de partir. Mesmo
assim, depois de todo aquele tempo, Charlotte se mantinha fiel à
sua promessa, escrevendo-lhe sempre que podia, o que fez com
que Thomas pensasse que Oliver tinha muita sorte em tê-la a seu
lado, mesmo sem conhecê-la.
Sorte que ele mesmo não tivera.
— Claro, Oliver — Thomas respondeu. — Eu cuidarei de
qualquer coisa que ela precise de mim, mas isso não será
necessário.
— Não, Tom. Você não entendeu. Quero que me prometa que
vai se casar com ela, caso eu morra amanhã.
Thomas não respondeu. Casar? Ele estava realmente ouvindo
aquilo?
— Prometa-me que você vai cuidar dela, casando-se com ela e
tratando-a com o respeito e carinho que ela merece.
Thomas achava aquela atitude muito nobre. No ápice de seu
medo, Oliver estava preocupado em cumprir sua promessa com a
mulher que amava. Mas Thomas não conhecia Charlotte. Ela era
uma desconhecida e por mais que quisesse acalmar o amigo, não
via maneira de fazer tal promessa.
— Oliver, eu...
— Eu confio em você. E você não está mais comprometido com
ninguém. Eu sei que você pode ser para ela o que eu não conseguir.
Por favor, Tom. Eu te imploro. Cuide dela. Ela esperará por mim. Eu
a obriguei a isso.
Thomas ainda tentou argumentar.
— Oliver, eu quero te ajudar, mas tenho certeza de que se algo
realmente lhe acontecer, outra pessoa pode ser melh....
— Não, Tom! Charlotte se comprometeu verdadeiramente a mim!
O peso da culpa das palavras dele não passou despercebido por
Thomas.
— Quero dizer que eu e ela, antes de eu vir para cá, nós...
ficamos juntos. Eu a comprometi e agora ela pode ser julgada e
rejeitada por isso.
O que Oliver queria dizer é que Charlotte lhe entregara sua
virtude, Thomas imediatamente compreendeu, e pensava que
exatamente por isso, talvez ela estivesse condenada a não ser
aceita por mais ninguém. Não somente Thomas enxergava a
preocupação que Oliver tinha pela noiva, mas também a culpa que
carregava pela forma como agira antes de sua partida.
Os olhos de Oliver eram suplicantes e comoventes.
Thomas devia sua vida a ele. E era verdade que nada mais o
prendia a nenhum compromisso, por mais que doesse admitir.
Vendo todo o seu desespero, como Thomas poderia negar-lhe
seu pedido?
— Eu cuido dela, amigo — Thomas respondeu.
— De verdade? Você me promete que cuida dela independen...
— Eu não me importo com nada do que aconteceu. Estou te
garantindo que cuidarei dela.
— Prometa! — exigiu, Oliver.
Thomas respirou fundo.
— Prometo me casar com ela — respondeu novamente, firme.
Thomas ainda se lembrava muito bem da expressão de alívio
que Oliver demonstrou após aquela promessa. Não sabia se era por
ter se comovido ou por ter sido a última expressão do amigo que
presenciou.
Quando amanheceu, Thomas ainda dormia quando todos
partiram para batalha, e nos dias que se seguiram, Oliver, assim
como diversos outros soldados, não voltou. O corpo dele também
não foi localizado, o que acontecia com frequência naquela época
— era comum o exército inimigo capturar soldados, torturá-los até a
morte em busca de informações e então dar fim nos corpos de
forma a não deixar vestígios — o que também atrasava os anúncios
das baixas às famílias das vítimas.
Thomas sentiu o luto de Oliver de forma profunda. A dor do
ferimento no ombro não se comparava nada a que sentia em seu
interior. Não somente Oliver era seu amigo, como também tudo o
que Thomas tinha ali no batalhão. Ele, que tão prontamente salvara
sua vida, não sobreviveu.
A vida parecia ser muito injusta, mesmo que não adiantasse se
questionar a respeito.
No mesmo mês da batalha que tirara a vida de Oliver, duas
novas cartas chegaram às mãos de Thomas, que àquela altura já
estava quase completamente recuperado de seu ferimento. Ele
abriu o primeiro envelope e constatou que vinha de Arthur, na qual o
irmão o informava do súbito falecimento de sua mãe.
Naquela hora, diferente de todas as emoções que a carta de
Amanda lhe despertara, Thomas não sentiu nada além de um gelo
intenso tomando seu peito. Ele tentou chorar, mas as lágrimas não
vieram.
Volte para casa, filho. É uma ordem.
Tudo que ouvia era a voz da mãe lhe dizendo para voltar.
Amassando o papel amarelo e ainda lutando para respirar,
Thomas abriu o outro envelope, e demorou um tempo para perceber
que, na verdade, o destinatário era Oliver e não ele. A carta vinha
de Charlotte, que escrevia ao amado contando coisas banais a
respeito de seus dias e rotina. Na última linha, ela dizia o quanto o
amava e sentia sua falta.
Thomas engoliu seco e se lembrou da feição do amigo ao lhe
pedir que cuidasse dela.
Eram perdas demais para suportar.
Amanda, Oliver e então, a mãe.
Ele abaixou a cabeça ainda segurando a carta de Charlotte e
procurou algum resquício de sanidade. Sentiu, inclusive, falta da dor
do ferimento em seu ombro. Aquela parecia ser uma dor muito mais
fácil de lidar.
O sentimento de impotência diante de toda aquela situação o
paralisava. Parecia que nem o desespero lhe seria de grande
utilidade. Era normal, em meio a uma guerra, que todos se
sentissem alheios ao destino, e ainda assim, Thomas se viu perdido.
E então ele se deu conta de que a única coisa que podia fazer
era responder a carta em suas mãos.
Ele pegou um papel e uma pena e começou a escrever. Em
poucas palavras, ele informaria Charlotte sobre a morte de Oliver e
lhe contaria sobre a promessa feita ao amigo. Tentaria tranquilizá-la,
de forma que ela soubesse que não estaria sozinha e que ele faria o
possível para cuidar dela. Mas ao chegar no meio do papel, Thomas
não conseguiu prosseguir.
Porque em realidade, se enviasse aquela carta, estaria dizendo
àquela mulher que o amor de sua vida não voltaria e que ela teria,
caso Thomas sobrevivesse, que se contentar com ele.
Aquilo daria a Charlotte a chance de rejeitá-lo.
Mas Thomas não podia sofrer mais uma rejeição. Não naquele
momento.
Ele descartou a folha e pegou uma nova, fazendo algo de forma
totalmente espontânea. Thomas respondeu cada assunto tratado
por Charlotte em sua carta. Ao final, assim como ela fizera, disse
que a amava, assinou como se fosse Oliver, pôs o papel em um
envelope e o lacrou.
E foi assim que, naquele dia de tanta dor, Charlotte se tornou
oficialmente seu novo porquê.
Os meses se passaram e cada vez que uma carta de Charlotte
chegava — o que significava que ninguém ainda tinha sido
notificado da morte de Oliver —, Thomas a respondia como se fosse
o falecido amigo. O curioso era que ele passou a se identificar com
o conteúdo das cartas e ansiar por elas.
Naquele meio tempo, ele participara de outras batalhas e,
sempre com o objetivo de cuidar de Charlotte em mente, tinha
conseguido grandes feitos, sendo promovido a capitão. Foi aquela
promoção, inclusive, que o levara até a batalha de Pirineus.
Todos os soldados sabiam que aquela seria uma grande luta, e
por mais que ele estivesse há muito tempo na guerra, Thomas
nunca poderia dizer que havia se acostumado com o campo. Ainda
agachado junto à pequena colina, ele ouvia os tiros e gritos dos
companheiros que eram atingidos. Alguns, e ele aprendera a
identificar aquilo da pior forma, indicavam morte certeira.
Vendo que não haveria outra solução a não ser atacar, Thomas
tomou fôlego, contou até três e finalmente saiu correndo pelo
terreno, atirando onde conseguia enxergar qualquer uniforme azul.
Ele corria velozmente, abaixando, levantando e virando seu corpo
para desviar das balas que estavam para todos os lados.
No meio do caminho, um soldado inglês gritava por socorro, e
assumindo seu papel de capitão, Thomas decidiu não deixá-lo para
trás.
— O que aconteceu? — ele perguntou ao homem, que se
retorcia de dor.
— Minha... costela... — o rapaz conseguiu responder, e Thomas
percebeu que ele já estava ficando sem ar.
Era muito difícil enxergar o sangue no vermelho vivo do uniforme
do exército inglês, mas o homem conseguiu apontar fracamente
para a região de seu ferimento.
— Venha, apoie-se em mim — Thomas disse, pegando o braço
do soldado e colocando ao redor de seu pescoço.
No ato, o homem deu um grito, mas Thomas tentou se
concentrar no caminho a percorrer. Ele olhou em volta e percebeu
uma colina maior onde alguns de seus companheiros se abrigavam.
Não era muito longe de onde estava, e com esforço, Tom sabia que
conseguiriam chegar seguros até lá.
Começou a percorrer o caminho com dificuldade, aguentando o
peso do soldado ferido, que já estava quase desacordado. Ele
prosseguiu com todas as suas forças, e quando estava a dois
metros da colina, já quase sentindo o alívio do abrigo, um barulho
estrondoso o abateu e ele caiu junto ao homem que carregava,
jogado para trás. Thomas tentou olhar em volta, para entender o
que havia acontecido, mas sua cabeça rodava fortemente.
Com a visão embaçada, ele olhou para si, em seu tórax, e
percebeu o sangue vivo se destacando no tecido do uniforme. Num
último relapso, olhou na região de suas pernas e percebeu que seu
pé direito tinha sumido. Ao ver aquilo, sentiu a dor intensa no local e
seus olhos finalmente se fecharam.
Em meio aos gritos e tiros, Thomas apagou completamente.
Í Ê
CAPÍTULO TRÊS
CAR LI S LE , I NG L AT E R R A, 1 815

A , I .
Charlotte pensava em como era bom finalmente saber que
Napoleão, o terrível imperador francês, fora derrotado e que os
soldados poderiam retornar para casa.
Os que viveram, claro.
Não era o caso do noivo dela, Oliver.
Ela recebera dois meses antes a carta de condolências a
respeito da morte dele. Disseram que ele morrera há mais tempo,
mas devido a todas as burocracias existentes, a notícia atrasara
para chegar. O pior de tudo é que não acharam seu corpo no campo
de batalha, motivo pelo qual Oliver não tivera um enterro digno de
um herói de guerra. Charlotte, contudo, sempre o veria assim.
Como um herói de guerra.
Era curioso pensar na afeição que tinha por Oliver e como ela
havia sido construída principalmente durante o tempo dele longe.
Mesmo Charlotte percebendo que não o amava, ela sabia que tinha
tomado a decisão certa em continuar escrevendo-o. Óbvio, se Oliver
retornasse, ela se casaria com ele, mas somente manter sua
promessa não era suficiente.
Ela sentia que o mínimo que podia fazer estando segura em
casa enquanto ele lutava por seu país era escrevê-lo. E apesar de
não se sentirem tão próximos nas primeiras cartas, nas demais
Charlotte percebeu que eles estavam mais conectados, e a cada
uma delas sua ansiedade para receber a próxima aumentava. Era
como se algo tivesse mudado em Oliver e tudo ficara diferente, do
teor de suas palavras à sua caligrafia. Mas Charlotte não o julgava
por isso. Muita coisa acontecera durante a guerra, inclusive com ela
própria.
A carta em que ele a respondia sobre a morte do pai dela foi
muito especial. O Senhor Hollth morrera um ano e meio depois da
partida de Oliver. A tosse que o acometera só piorou, e não houve
salvação para seu caso. Quando Charlotte escreveu contando o fato
a Oliver, ele pareceu entender seu sentimento de perda, mesmo que
não tivesse passado por aquilo pessoalmente e suas palavras foram
as grandes responsáveis por consolar o luto não somente dela
como o de Elizabeth também.
O sentimento de conexão criado pelas correspondências com ele
a fazia feliz diante daquele cenário triste do país e da própria vida
pessoal.
Até que um dia, inesperadamente, as cartas pararam de chegar.
No começo, Charlotte não quis imaginar o pior. Ela pensou que
fosse um atraso normal, pois eventualmente acontecia de uma carta
levar mais tempo para chegar do que a outra. Mas não demorou
muito para Charlotte se dar conta de que elas tinham parado de vez,
e aquilo só podia significar uma coisa.
Oliver estava morto.
Talvez aquele fosse o motivo de que, quando recebeu o anúncio
oficial de sua morte, Charlotte não tenha se debulhado em lágrimas.
Ela já tinha chorado por ele tudo o que podia.
Mesmo assim, ele seria seu futuro marido e era inevitável se
sentir triste e desolada com a notícia. Ela também viu de perto os
sentimentos dos pais dele, especialmente da mãe. Eles se reuniram
para fazer um funeral simbólico em homenagem a Oliver, e aquele
dia provavelmente seria um dos mais emotivos de toda sua vida.
Ela jamais o esqueceria.
Dois meses se passaram e mesmo em meio a tantas lágrimas e
sofrimento, a vida seguiu em frente, e Charlotte sabia que deveria
seguir também.
Ela lia um livro sentada no sofá surrado da sala quando
Elizabeth chegou em casa, afoita e com uma sacola de compras na
mão.
— Ui, está quente lá fora — ela expressou, colocando o saco
que carregava sobre a mesa.
— Por isso que resolvi ficar quieta aqui. Você sabe que prefiro os
dias de outono.
— Fez bem. Encontrei com Susie no caminho. Acho que não a
via desde semana passada.
Charlotte sorriu, zombeteira.
— E isso é culpa sua, por estar trabalhando demais. Acredito
que eu tenha visto Susie basicamente todos os dias esta semana.
— Mas vocês trabalham em conjunto — argumentou Elizabeth,
que jamais admitia que realmente trabalhava demais.
Susie Tumper era vizinha das Hollth. Ela sempre fora amiga das
irmãs e enquanto Charlotte costurava roupas femininas, Susie era
uma das únicas pessoas na vila que costurava vestes masculinas
de forma impecável. Até mesmo o antigo alfaiate do lugar admitia
que ela era muito boa no que fazia.
Atualmente, Susie vivia na casa dos pais de Oliver. Ela e a
senhora Ross sempre se deram muito bem, a vida toda. O mesmo
não se podia dizer do falecido noivo de Charlotte. Oliver e Susie
foram basicamente rivais a vida toda, e tudo piorou quando ela se
casou, ainda muito jovem e após um escândalo, com o melhor
amigo dele, Carl Tumper.
Carl também fora convocado para a guerra e deixou a vila dois
meses antes de Oliver. Ele morreu em decorrência a uma infecção
generalizada por um ferimento de bala, um ano depois de sua
partida. Oliver nunca soube da morte do amigo.
Após ficar viúva, Susie se viu sem dinheiro e acabou perdendo a
casa em que vivia, e então a baronesa lhe ofereceu o quarto
desocupado do filho. Com o decorrer dos anos e a ausência de
Oliver, Susie basicamente se tornou parte da família dos Ross, e os
apoiou imensamente após a notícia da morte do rapaz.
Ela e Charlotte se tornaram ainda mais unidas, afinal partilhavam
uma história bem similar. Elizabeth também se sentia muito à
vontade na presença da moça, e sempre que podiam elas se
reuniam para tomar chá.
— Ainda assim. Você precisa arranjar um tempinho para tomar
um chá conosco, qualquer tarde dessas.
Elizabeth encarou Charlotte com as mãos na cintura.
— Querida, não fale como se você e Susie não estivessem
imensamente ocupadas. Eu mal te vejo fora da sala de costura.
Charlotte deu de ombros.
— Ora, Liz, nós sempre conseguimos um intervalo para o chá.
Mas terei que concordar. Os trabalhos aumentaram
significativamente, especialmente com a volta dos bailes.
— Ah, os bailes... — exclamou Elizabeth, se abanando com a
mão. — Nem me lembre. Neste calor, ainda por cima.
— Posso só imaginar como estará quente no baile dos Trammel
— comentou Charlotte.
Elizabeth hesitou por um momento antes de falar.
— Sobre isso, Char, acredito que eu não vá — ela disse à irmã,
batendo os pés no tapete.
— Mas Liz, nós prometemos a eles que iriámos — a irmã lhe
respondeu.
— Eu sei, mas não tenho nem vestido para usar!
— Temos os nossos trajes de festas.
— Sim, mas nós usamos aqueles nos últimos três eventos.
A situação financeira delas não tinha melhorado, especialmente
após a morte do pai. Elizabeth trabalhava de sol a sol na estalagem,
e Charlotte muitas vezes passava as noites costurando. Elas
economizavam no que podiam, principalmente para não perder a
casa. Quando Oliver morreu, seu pai, o barão, procurou Charlotte e
entregou a ela uma boa quantia. Ela fez de tudo para recusar, mas
ele não aceitou não como resposta, alegando que era o mínimo que
podia fazer já que Oliver não voltaria para casa e ela honrara o
compromisso deles todos aqueles anos.
O dinheiro não era muito, mas as deixou mais tranquilas em
relação às despesas, pelo menos por um tempo. Contudo, Charlotte
sabia que o único destino que as salvaria da eventual miséria seria
o casamento.
— Talvez nós encontremos alguém interessante por lá, Liz —
disse ela a Elizabeth, que ainda se abanava com a mão.
— Você sabe o que penso sobre isso — respondeu Liz.
Charlotte sabia que a irmã nem considerava a hipótese de se
casar. Elizabeth já sofrera muito na vida por amor e se fechara
totalmente para qualquer possibilidade de envolvimento com
alguém.
— Você não precisa se esforçar para conhecer ninguém. Eu farei
isso.
— E se você fizer isso, o que eu devo fazer? Deixar todas essas
responsabilidades em suas costas?
— Liz, seu caso é diferente...
— Era, quando podíamos nos dar ao luxo de escolher ou não.
Se você tomar uma atitude dessas, eu não terei como ficar sem
ação.
Charlotte não respondeu. Apesar de saber que a irmã dizia a
verdade, ela não queria que enfrentasse o casamento como um
sacrifício, mas não estava disposta a discutir com ela naquele
momento.
— Liz, acredite em mim quando lhe digo que quero procurar um
marido. Não é somente pela situação financeira. Creio que será bom
para mim esse próximo passo.
Elizabeth a fitou, duvidosa.
— Você acha que realmente já está pronta para isso? Digo, após
o aconteceu com Oliver...
— Eu preciso seguir em frente.
— E é casando-se que você fará isso?
— Sim. Será alguém de minha escolha, de qualquer forma.
Elizabeth não entendeu muito bem aquela afirmação, mas não
comentou. Não havia ninguém que pudesse obrigar Charlotte a se
casar, logo qualquer compromisso seria, obviamente, de sua
escolha.
— Mas devo admitir que me preocupa o fato de você insistir em
ficar sozinha — confessou Charlotte à irmã.
— Eu tenho você, Char — ela disse, alegremente.
— Eu sei. Mas se eu me casar, você...
— Vou sobreviver normalmente como tenho feito até agora.
As duas se olharam por um tempo e suspiraram. Todo aquele
tema era complicado e elas não sabiam ao certo como expor seus
sentimentos.
Charlotte coçou a cabeça.
— Bom, podemos pensar nisso em outro momento. O que digo é
que estou muito interessada em ir ao baile e verificar minhas
opções. Se quero me casar, preciso conhecer pessoas novas. Não é
como se um marido fosse surgir em minha porta.
Antes que Elizabeth pudesse retrucar novamente, ela olhou pela
janela e reparou que havia alguém do lado de fora.
— Você está esperando alguém, Char?
— Não. Por quê?
— Tem alguém lá fora. Um homem.
Charlotte se levantou do lugar e as duas foram juntas até a parte
de fora da casa.
O homem que as esperava era muito bonito. Tinha a estatura
mediana, era loiro, olhos de um azul impressionante. A barba bem
aparada, um pouco mais escura que os cabelos, lhe dava um ar
maduro. Ele tinha a aparência séria e de certa forma até um pouco
abatida, mas demonstrava força sem parecer arrogante.
Avistando as duas, o sujeito foi logo perguntando:
— Boa tarde, senhoritas. É aqui a residência da senhorita
Charlotte Hollth?
Charlotte achou estranho um desconhecido procurar por ela,
mas respondeu.
— Sim, sou eu. O que senhor deseja?
O sujeito fechou os olhos por um segundo, respirou fundo e
então falou:
— Muito prazer, Senhorita Hollth. Me chamo Thomas Baker e
estou aqui para me casar contigo.
Í
CAPÍTULO QUATRO

T C ,
de Oliver.
Tinha sido uma longa jornada até ali.
A batalha de Pirineus fora a última da qual ele participara na
guerra. Apesar de não se lembrar de muita coisa depois de ter
apagado no meio do campo, Thomas se lembrava claramente de
como foi todo o processo após aquele dia fatídico — de certa forma.
Ao ser socorrido, ele estava quase desacordado, mas conseguia
ouvir tudo a seu redor. Ele sabia que estava sendo atendido, como
acontecera na ocasião em que sofreu a lesão no ombro, e lembrava
das frases dos médicos ecoando em sua mente, especialmente a
respeito de seu pé.
A dor que sentia era tão intensa que, em determinado momento,
Thomas pensava ter se acostumado com ela. Quando ele acordou,
finalmente, os médicos disseram que era um milagre ainda estar
vivo.
Thomas soube que ficara quase um mês desacordado, entre
febres e delírios. Apesar de se lembrar da visão de seu ferimento
quando estava caído no meio do campo, sentiu o choque de
verdade quando viu que, de fato, perdera o pé direito. A amputação
fora feita um pouco acima, na região na canela.
De início, foi impossível para ele aceitar aquela situação.
Thomas parecia não se lembrar nem de quem era. Mas apesar de
todos os pesares, ele certamente se lembrava que, diferente de
Oliver, tivera a sorte de sobreviver e mais, tinha uma promessa a
cumprir.
Com Charlotte.
Seu porquê.
Ela o esperava, mesmo que não soubesse disso.
Naquele momento Thomas soube que teria um grande desafio
pela frente, mas ele o enfrentaria da melhor forma que conseguisse.
Os dias seguiram na enfermaria do batalhão e não foram nada
fáceis. Muitos soldados ainda chegavam feridos e alguns tinham o
mesmo destino que ele, outros, não. Aquele era um ambiente muito
solitário e complicado. Em muitos dias, Thomas achava que seria
muito difícil se reerguer daquela situação em que se encontrava,
mas quando o dia seguinte amanhecia, ele se esforçava para que
aquilo significasse para si mesmo como uma segunda oportunidade.
Era curioso como, enquanto se acostumava à falta de um
membro que sempre lhe pertenceu, Thomas se habituara à
sensação de perda.
Pois ele tinha perdido quase tudo, afinal.
A noiva — pela qual não sofria mais —, o amigo, a mãe, e então,
o pé. E não era somente um pé. Coisas simples como caminhar
normalmente, correr, dançar, tudo isso estava perdido. Isso sem
mencionar sua personalidade. Thomas não sabia mais quem era. A
vida como conhecera não existia mais.
E ainda assim, ele estava vivo.
O tempo passou dentro daquele ambiente de cura e sofrimento e
quando Thomas se deu conta, já fazia quase um ano que estava em
processo de recuperação. Àquela altura, já tinha se adaptado ao
uso de muletas, podendo se deslocar tranquilamente pelo local.
Com a alta dos médicos, o título de capitão lhe deu a oportunidade
de receber do governo um novo tipo de prótese para substituir seu
membro amputado. Era um modelo de madeira com pé articulado,
que permitia movimentos mais livres do que os antigos. O fato de
ser mais moderno não significava que a adaptação era mais fácil, e
Thomas levou alguns meses até conseguir utilizar a prótese com
maestria, mesmo treinando todos os dias.
O processo de recuperação era doloroso e não só fisicamente.
Era muito comum Thomas se sentir humilhado em muitos daqueles
dias. Seu corpo era agora marcado por cicatrizes diversas, a maior
delas na região do ombro. Ele também possuía marcas de
ferimentos no peito e a cicatriz da amputação não era nada bonita.
Como homem, Thomas se sentia muito desiludido. Imaginava
que talvez jamais seria visto novamente com bons olhos por uma
mulher. Que jamais seria desejado novamente. Inclusive, não se
envolvia com uma há muito tempo. Depois da carta que recebera de
Amanda, com o anúncio do fim do compromisso, ele aproveitara sua
liberdade em alguns encontros amorosos com meretrizes, mas tudo
passara antes da batalha de Pirineus.
Quando ele ainda era um homem inteiro.
Em meio a todas essas lutas individuais para se reerguer, não
ajudou o fato de que, no mesmo período, ele recebeu uma carta que
jamais esperaria.
Arthur, seu irmão, tinha se alistado sem nem o avisar e morrera
em combate. Aquela informação doeu mais que a amputação de
seu pé. Era como se alguém arrancasse outro membro dele a
sangue frio. Aquilo certamente atrasou o seu processo de
recuperação imensamente.
Talvez ele não estivesse tão habituado ao sentimento de perda
como pensara.
Quando se sentiu confiante o suficiente — um belo tempo depois
—, Thomas decidiu que era hora de seguir em frente e cumprir sua
promessa.
Ele, que até então estava na Espanha se cuidando, voltou à
Inglaterra e foi imediatamente para Carlisle, para finalmente falar
com Charlotte sobre toda a história que os envolvia.
Era bem provável que àquela altura ela já soubesse que Oliver
morrera, visto que Waterloo já acontecera, Napoleão estava
oficialmente derrotado e todos os soldados que não se
apresentassem eram dados como mortos, o que significava que
suas famílias seriam eventualmente notificadas. E aquele era mais
um motivo para Thomas se apressasse em encontrá-la.
Thomas sabia que perdera tudo na guerra. Não havia mais lar
para voltar, ou família, e por mais que o governo o tivesse oferecido
honras, nada fazia com que ele pensasse que era, de fato, um herói.
Quando olhava a si mesmo no espelho, não era aquela, pelo
menos, a imagem que tinha de um herói. A única coisa que fazia
sentido, principalmente para que se sentisse de certa forma digno,
era cumprir sua palavra com o homem que salvara sua vida.
Ao chegar a Carlisle, Thomas foi logo pedindo informações a
respeito de onde seria a casa dos Hollth. Caminhou até lá devagar
— não conseguia caminhar muito rápido com a prótese — e ao
longe avistou a residência que procurava.
Pensando em Charlotte, Thomas tinha que admitir que estava
um pouco nervoso por encontrá-la. Primeiro porque não fazia ideia
de quem ela era. Tivera contato com ela através das cartas que
trocaram e mesmo se passando por Oliver, pensava que
compartilharam algum tipo de conexão, especialmente quando ela
lhe contara da morte de seu pai. Thomas, conhecendo aquela dor,
colocou no papel tudo que o ajudou a superar aquele momento
difícil, e pela carta seguinte dela, suas palavras tinham ajudado. Ele
sentiu uma satisfação enorme sabendo que a consolara.
Era bom estar fazendo alguma coisa por Charlotte, mesmo sem
ela saber quem ele era. Infelizmente, após a batalha em que se
ferira, ele não conseguiu mais escrever a ela e o exército nem ao
menos lhe devolveu as cartas que já lhe pertenciam.
Sem aquele contato direto por tanto tempo, o que Thomas mais
temia era a possível rejeição da parte de Charlotte. Ele sabia que
não era o melhor partido. Além de seus traumas psicológicos, ainda
tinha um pé de pau, que apesar de ficar coberto pelas roupas, o
limitava em muitas coisas. Mesmo assim, ele estava disposto a
cumprir sua palavra, ainda que tivesse que convencê-la.
Na verdade, não aceitaria um não como resposta.
De todas as perdas que sofrera, nenhuma esteve sob seu
controle. A situação com Charlotte, contudo, era diferente. E ele
faria diferente.
Era uma questão de honra.
Chegou na frente da casa e parou ali, e enquanto pensava e
tomava coragem de bater, percebeu duas moças saindo pela porta.
Uma delas tinha cabelos claros e cacheados e era mais alta,
enquanto a outra tinha cabelos castanho-escuros, uma face mais
expressiva e quase nada de altura. As duas possuíam olhos verdes
profundos e se pareciam muito.
Quando Thomas mencionou o nome de Charlotte, pôde
constatar que sua futura esposa era a moça de cabelos escuros.
Por sorte, a que ele achou mais atraente.
E então ele tomou coragem e se apresentou.
— Muito prazer, Senhorita Hollth. Me chamo Thomas Baker e
vim aqui para me casar contigo.
Maldição.
Não era sua intenção dizer aquilo tão diretamente, mas estava
nervoso e as palavras acabaram saindo como um tiro.
Charlotte fez uma expressão confusa, como se não entendesse.
— Como?
Ajeitando sua postura, ele repetiu.
— Estou aqui para me casar com a senhorita.
Pela expressão dela, Charlotte ainda não acreditava nele.
— O senhor é louco?
— Não, estou em meu perfeito juízo.
Ela riu.
— Não, não está. Como pode o senhor estar aqui para se casar
comigo se eu nem o conheço?
— Senhorita Charlotte, eu...
— Desculpe, mas eu não o conheço. Acho que o senhor se
enganou de casa. Vamos, Liz — Charlotte virou-lhe as costas,
chamando Elizabeth, que também estava confusa, para entrarem
novamente.
Elas já o tinham virado as costas quando escutaram:
— Oliver me pediu. Estou aqui por ele.
Charlotte não teve reação ao ouvir o nome de Oliver e
simplesmente ficou parada no lugar.
Percebendo que a irmã não teria uma atitude tão cedo, Elizabeth
tomou controle da situação.
— Acho melhor entrarmos. Vocês devem ter bastante coisa para
conversar — declarou, guiando Charlotte para dentro e fazendo um
gesto para que Thomas as acompanhasse.
Í
CAPÍTULO CINCO

C , E
Thomas a seguindo. Ele andava mais devagar e mancava um
pouco, e Liz notou logo no início que aquilo era provavelmente o
resultado de algum acontecimento da guerra.
Thomas trazia consigo uma expressão séria e ficou parado na
entrada casa, enquanto Charlotte andava de um lado para o outro
na sala de estar.
— Como disse que se chamava? — indagou, sem olhar para ele.
— Thomas Baker.
— Oliver nunca mencionou o senhor.
— Sim, ele mencionou — respondeu Thomas, ainda sério. —
Por carta. Ele me disse isso. Não tínhamos muito o que conversar
fora as batalhas.
— Eu me lembro de você comentar que Oliver lhe contou sobre
conhecer um Thomas, querida — falou Elizabeth à irmã,
gentilmente.
— Eu não me lembrava. Me desculpe — disse Charlotte,
rapidamente. — Mas não consigo entender o que o senhor faz aqui.
— Eu já lhe disse. Estou aqui para me casar com a senhorita.
Charlotte olhou para Thomas sem expressão. Ele retribuía o
olhar exatamente da mesma forma. Elizabeth, percebendo a apatia
dos dois, achou melhor intervir.
— Porque não se senta, Senhor Baker — ela sugeriu, puxando
uma cadeira para ele. — E você, sente-se aqui — Virou-se para
Charlotte e apontou com a cabeça a cadeira oposta. — Eu vou fazer
um chá.
Thomas hesitou um pouco, mas como sua perna doía, sentou-se
no lugar indicado por Elizabeth. Charlotte fez o mesmo, e ainda com
a expressão confusa, permaneceu em silêncio.
Ele aguardou alguns instantes, mas logo perguntou:
— Devo explicar-me?
Charlotte respirou fundo e finalmente encontrou os olhos dele.
Olhos azuis profundos e devastadores, por sinal.
— Tudo bem. Estou ouvindo.
— Conheci Oliver no Batalhão — ele começou. — Diferente dele,
eu não fui convocado. Tive que me alistar por motivos financeiros.
Ele dormia no leito ao lado do meu e acabamos ficando amigos.
Digo, ele era a única pessoa para mim ali, e eu, a única pessoa para
ele.
Thomas percebeu que Charlotte nem piscava ao ouvi-lo contar
os fatos. Reparou que os olhos dela, apesar de ainda carregarem a
surpresa e espanto por seu aparecimento, eram extremamente
expressivos. E muito, mas muito bonitos.
— Eu e ele nos entendíamos bem e não demorou para que ele
recebesse uma carta da senhorita. Oliver ficou muito feliz ao lê-la, e
compartilhou comigo que vocês tinham um compromisso.
Elizabeth voltou da cozinha com três xícaras nas mãos,
prestando atenção nas palavras do soldado em sua frente, e as
colocou na mesa, se retirando novamente para buscar o bule de
chá.
— Um dia, há uns três anos, enquanto estávamos em combate,
eu machuquei meu ombro. Na verdade, machucar é uma forma
modesta de falar, visto que o ferimento foi bem severo. Se não fosse
por Oliver e seu ato de heroísmo, eu teria morrido no próprio campo.
Charlotte achou curioso o fato de Thomas contar aquela história
tão terrível de modo tão calmo.
— Eu fiquei impossibilitado de lutar por cerca de dois meses, e
foi nesse período que Oliver foi chamado para uma luta que
sabíamos que não seria fácil. Ele ficou muito introspectivo e antes
de partir me pediu para que se algo acontecesse com ele, eu me
casasse com a senhorita.
Charlotte finalmente piscou e engoliu em seco. Elizabeth, que já
voltara da cozinha com o bule, serviu o líquido quente nas xícaras e
se sentou ao lado da irmã.
— Após a batalha, ele não voltou e eu...
— Isso não faz sentido — interrompeu Charlotte. — Ele me
escreveu depois dessa época. A última carta que ele me enviou foi
há um ano e meio.
Thomas respirou fundo.
— Não era ele, senhorita, que lhe escrevia. Era eu.
Charlotte e Elizabeth abriram a boca ao mesmo tempo,
surpresas.
— O corpo dele não foi encontrado e o exército não avisava a
família dos soldados imediatamente se não houvesse um corpo para
enviar para a casa.
Elizabeth concordou com a cabeça e Thomas continuou.
— Pouco tempo depois do ocorrido com Oliver, outra carta da
senhorita chegou e eu não consegui avisá-la que o amor de sua
vida tinha desaparecido. Me perdoe, sei que deveria, mas
simplesmente não consegui ser o responsável por tais notícias e
como sabia que vocês não ficariam sabendo tão cedo de sua morte,
respondi a carta como se fosse ele. E assim continuei a fazer até
que não pude mais.
— E por que o senhor não pôde mais? — perguntou Elizabeth,
antes que Charlotte pudesse dizer qualquer coisa.
— Porque me feri gravemente e fiquei muito tempo em
recuperação.
Elizabeth mais uma vez fez um aceno com a cabeça.
— Mas agora estou aqui, Senhorita Hollth. Vim cumprir minha
palavra ao homem que salvou minha vida.
Charlotte respirou fundo e fechou os olhos por um momento.
Sustentando a cabeça em uma postura ereta, ela se levantou da
mesa.
— Eu agradeço a sua visita, Senhor Baker, mas o dispenso de
seu dever. Tenha um bom dia — disse ela rápido, e então subiu as
escadas da casa deixando Thomas e Elizabeth sozinhos na sala de
jantar.
Tom olhou para Liz, que tentou se explicar.
— Perdoe minha irmã, Senhor Baker. Charlotte deve estar em
choque. Ela geralmente não age assim.
A expressão de Thomas ao se levantar era neutra.
— Eu compreendo, não se preocupe. Eu não vou a lugar algum,
senhorita. Vim até aqui para cumprir minha promessa com Oliver e
farei isso.
Elizabeth sentiu em seu interior a determinação na fala daquele
homem e soube naquele momento que Charlotte não se livraria dele
tão fácil. De forma curiosa, aquele sentimento não lhe era ruim, de
forma alguma.
— Talvez seja melhor o senhor ir por hoje. Creio que foi muita
informação de uma vez para a cabeça de Charlotte... — ela tentou
ser gentil, guiando-o até a porta.
— Claro, eu vou embora — Thomas não mostrou resistência —,
mas saiba que retornarei amanhã. Isso para mim é questão de
honra e a honra é tudo o que me resta na vida — disse ele, dando
as costas à Elizabeth e deixando a residência das Hollth.

N , Charlotte acordou com dor de cabeça, irritada e


de mau humor. Depois que subiu as escadas e entrou em seu
quarto na noite anterior, ela se deitou na cama ainda de vestido e
ficou encarando o teto durante praticamente toda a madrugada.
Charlotte pensava que tudo aquilo era um grande absurdo!
Em que mundo um estranho vindo de sabe-se lá que lugar
chegaria em sua porta dizendo que estava ali para casar-se com
ela? Aquilo não fazia sentido!
Ela tinha que admitir que a história contada por ele sobre a
promessa feita a Oliver parecia muito bela, na teoria. Se fosse um
livro romântico, certamente faria sucesso entre os leitores, afinal,
quem não se apaixonaria pelo belo e forte mocinho altruísta que
vencia todos os desafios da guerra apenas para cumprir uma
promessa a seu amigo querido?
Altruísta uma ova!
Aquele Senhor Baker era um belo prepotente lunático, isso sim.
Charlotte não conseguia se conformar com o conjunto dos
acontecimentos do dia anterior.
Primeiro o homem chegou e a informou que iria se casar com
ela. Assim, como quem diz que vai chover. E não era uma pergunta.
Era uma informação! Depois, ainda teve a audácia de dizer que
fingiu ser Oliver por anos. Todas as palavras de consolo e conexão
que Charlotte trocara com Oliver não eram reais. A última memória
da relação deles era a mais pura mentira, tudo por culpa de Thomas
Baker. E finalmente, como Oliver se atrevera a escolher um homem
qualquer para fazer o papel de marido que ele não pôde cumprir?
Que tipo de piedade barata era aquela? Quem, em seu santo juízo,
age assim?
Charlotte não precisava ser salva por ninguém. Ela sobrevivera
muito bem sem Oliver todo aquele tempo, mesmo não tendo sido
nada fácil e continuaria assim. Ela era dona de sua vida agora, e
aquela liberdade lhe era preciosa. Era necessária.
Era justa.
E Charlotte não renunciaria a ela para um completo estranho
arrogante.
O dia amanheceu e se ela dormiu duas horas, foi muito.
Charlotte levantou-se e se arrumou contrariada. Ela desceu as
escadas e percebeu, pelo silêncio que pairava no ar, que Liz já tinha
saído para trabalhar. Como sempre, a irmã deixara quase tudo
preparado para o café, fato que, especialmente naquela manhã,
Charlotte agradeceu imensamente.
Sentando-se na mesa, ela pegou um pedaço de pão e deu uma
mordida, até que ouviu alguém chamando-a do lado de fora.
Charlotte estranhou o chamado, especialmente pelo horário, pois
ainda era bem cedo. Ela se levantou e foi até a porta, se deparando
imediatamente com o sujeito arrogante que queria ser seu marido.
— Bom dia, Senhorita Hollth — disse Thomas, com o mesmo ar
sério do dia anterior.
E se possível, ainda mais bonito do que no dia anterior.
— O que o senhor faz aqui? — respondeu, irritada por vê-lo em
sua porta.
— Eu vim para conversarmos. Como a senhorita não estava
disposta ontem, eu...
— Não temos nada para conversar, Senhor Baker!
Thomas não alterou sua expressão ou tom de voz.
— Sim, temos. Eu já lhe disse, Senhorita Hollth, que não vou
embora. Vim para cumprir minha palavra e é o que vou fazer.
— Eu nem o conheço, Senhor Baker. Não vou me casar com um
estranho.
— Eu entendo, mas lhe garanto que sou de confiança.
— Essa não é a questão! O senhor não entende? — Charlotte
estava perdendo a paciência.
Thomas respirou fundo e passou as mãos pelo pescoço.
— Será que podemos entrar? Perdoe-me ser rude, mas minha
perna está um pouco dolorida.
A irritação de Charlotte foi imediatamente substituída por uma
preocupação genuína. Ela havia reparado, no dia anterior, que
Thomas não só mancava um pouco, mas também utilizava uma
prótese no lugar de seu pé direito.
Ela acenou com a cabeça e eles entraram na casa, dirigindo-se
ao pequeno sofá da sala de estar. Sentando-se ali, Thomas fechou
os olhos rapidamente e esticou um pouco a perna.
— O senhor está com muita dor?
— Não tanta. Ontem eu caminhei uma distância considerável
para chegar aqui e depois fui até a estalagem para me acomodar,
então creio que abusei um pouco — ele respondeu naturalmente. —
Não precisa se preocupar. Um pouco de tempo sentado já me fará
bem. Estou acostumado.
Charlotte sentou-se em uma cadeira perto dele.
— Me perdoe, Senhor Baker, por não o convidar para entrar. Não
foi minha intenção ser rude. Estou apenas... em choque.
Ele a olhou profundamente, avaliando sua expressão. Se
Thomas não estivesse enganado, parecia que por um breve
momento a Senhorita Hollth se encontrava mais contida.
— Senhorita Hollth, eu compreendo sua surpresa, mas acredito
que a senhorita chegará à conclusão de que casar-se comigo é o
melhor a ser feito.
— Eu não vou me casar com o senhor! — ela repetiu alto.
Parecia que ele estava enganado, de fato.
— Eu não aceitarei não como resposta — ele replicou.
— O senhor é louco! — Charlotte respondeu, balançando a
cabeça.
Não aguentando mais ouvir aquela frase da boca dela, ele
replicou.
— Perdoe-me, mas louca é a senhorita!
— Como disse? — ela parecia não acreditar na ousadia da fala
dele.
— Ora, Senhorita Charlotte, é muito nítido que a senhorita se
recusa a ver que não somente deveria se casar comigo, como
precisa fazer isso.
— E quem o senhor pensa que é para dizer isso?
— Não preciso ser ninguém para notar a realidade. A senhorita
vive sozinha com sua irmã, sem nenhuma fonte de sustento além do
trabalho. Esta casa, apesar de bem cuidada, certamente precisa de
reparos.
Que audácia daquele homem apontar todas aquelas coisas para
ela.
— Veja esta mesa, por exemplo. Não há nada mais do que
alguns pedaços de pão, manteiga e chá, o que significa,
nitidamente, um processo de economia.
— O senhor vem até minha casa para me insultar? — ela
questionou, levantando-se.
— Eu não a estou insultando, senhorita. Estou apenas sendo
sincero quanto ao que vejo — Thomas exclamou, também ficando
em pé.
Ao levantar-se, porém, sentiu uma fisgada no músculo da
panturrilha e fez uma careta de dor, o que fez com que Charlotte se
preocupasse novamente com ele.
— Senhor Baker, por favor sente-se. Não se esforce — Charlotte
estendendo a mão, e ele obedeceu, respirando fundo.
— Senhorita Hollth. Eu não estou aqui para insultá-la. Tudo o
que estou dizendo é que há um motivo para Oliver ter me pedido
para cuidar da senhorita. E observando bem sua situação no pouco
tempo que estou aqui, não há como negar isso.
Charlotte sabia que ele tinha razão, mas não queria admitir. A
situação econômica dela não justificava a atitude de Oliver, por
melhor que tivessem sido as intenções dele.
— E quanto à sua vida, Senhor Baker? — ela tentou desviá-lo de
seus argumentos. — O senhor simplesmente largará todos os seus
planos e virá...
— Eu sou sozinho, Senhorita Hollth. O único propósito que tenho
na vida é cuidar da senhorita.
Algo na maneira como Thomas proferiu aquelas palavras encheu
Charlotte de comoção. Era estranho tal sentimento se instalar nela
daquela forma, principalmente com toda sua contrariedade em
relação àquele absurdo.
— Me perdoe, Senhor Baker, mas não me casarei com o senhor.
Essa é minha decisão final.
Thomas respirou fundo e se levantou.
— Eu acredito que não teremos bons frutos a partir daqui.
Quando ele começou a andar, Charlotte pensou que finalmente
havia vencido aquela disputa, até que ele olhou para trás.
— Eu vejo a senhorita amanhã.
Ela franziu as sobrancelhas.
— Amanhã?
— Sim, Senhorita Hollth. Eu já lhe disse que estou aqui para
casar-me com a senhorita e farei isso. Por hoje, prefiro ir embora
antes que a senhorita suba as escadas e se tranque em algum
quarto para me evitar. Mas se espera que eu vá embora de vez,
sugiro que procure uma posição confortável nessa cadeira. Até
amanhã — declarou, saindo mancando porta afora.
Í
CAPÍTULO SEIS

—I !— C ,
indo de um lado para o outro na sala de estar.
Elizabeth observava a irmã enquanto tomava sua xícara de chá.
Susie, que naquele momento fazia uma visita às irmãs, olhava a
amiga caminhando em círculos, tentando não rir.
— Absurdo! Não há outra palavra que defina! — repetiu
Charlotte.
Liz respirou fundo e inclinou a cabeça para o lado.
— Devemos falar algo? — perguntou Susie a Elizabeth, baixo.
— Não sei. Talvez seja pior.
— É você tem razão. Não me lembro de vê-la tão descontrolada
em toda a minha vida.
— Eu estou na frente de vocês e estou ouvindo tudo o que dizem
— Charlotte se virou para as duas, inconformada.
Enquanto Susie apertava os lábios, Elizabeth ajeitou a postura.
— Não sei se você quer que eu emita minha opinião agora....
—Não há opinião a se emitir — ralhou Charlotte. — A única
possível e aceitável é de que isso é um completo...
—Absurdo, claro — disseram Susie e Liz em conjunto e
Elizabeth continuou. — Me diga de novo, o que exatamente é um
absurdo?
Charlotte a olhou como quem não acreditava no que ouvia.
— De verdade? Você está brincando comigo, não está?
Liz a olhou e piscou algumas vezes. Ela sempre fazia isso
quando não queria se dar ao luxo de responder a uma pergunta,
especialmente se fosse um pouco estúpida. Charlotte entendeu a
reação da irmã na mesma hora.
— Liz, não é possível que esteja me achando exagerada! Você
deveria estar do meu lado!
— Querida, eu sempre estou do seu lado, mas realmente estou
tentando entender o motivo de seu inconformismo.
— Um desconhecido simplesmente bateu na minha porta e disse
que vai se casar comigo! Um completo estranho!
— Um completo e belo estranho, pelo que ouvi dizer —
complementou Susie.
— Não importa a beleza estonteante dele. Ele ainda é um
estranho e Elizabeth estava aqui comigo quando ele surgiu.
— Sim, eu estava aqui — concordou a mais velha.
— E hoje de manhã, mal tinha amanhecido o dia e aqui estava
ele novamente, insistindo nessa estupidez! — Charlotte quase
gritou. — E ele ainda teve a ousadia de me dizer que não aceita não
como resposta!
Elizabeth suspirou mais uma vez enquanto Susie bebia um gole
de chá.
— Ele realmente parecia bem obstinado.
— Ele é louco! Louco!
Antes que Liz pudesse responder, Charlotte continuou seu
desabafo.
— E arrogante! Ah, Liz, se você tivesse visto ele apontando
nossa situação. Até na comida ele reparou. Homem petulante!
— Não o achei arrogante, e nisso ele não está errado.
Charlotte então ficou quieta e encarou a irmã.
— Querida, nossa situação é bem clara. O Senhor Baker só
disse o óbvio.
— Sim, mas...
— E foi você mesma que disse que devíamos começar a ir a
eventos para justamente resolvermos isso... ou estou errada?
— Ela comentou algo do tipo comigo também — complementou
Susie.
— Não está errada, mas...
— Inclusive, me lembro de você me dizendo que um marido lhe
seria muito útil.
— Eu sei que disse isso, mas...
— É por isso que não entendo, querida. Você queria um marido
e quando um aparece, você fica afetada desse jeito.
— Você não está entendendo, Elizabeth, eu...
— O que exatamente eu não estou entendendo, Charlotte?
A irmã caçula ficou quieta e se sentou na cadeira. Elizabeth
conhecia aquela expressão muito bem. Charlotte estava
escondendo algo dela.
— Charlotte, sou eu e Susie — Liz disse, sentando-se ao lado
dela e pegando em sua mão. — Não vamos julgá-la por quaisquer
que sejam seus motivos.
Charlotte as olhou com os olhos cheios de culpa.
— Eu me sinto pressionada.
— Por quem? — perguntou Susie.
— Por Oliver.
— Oh. Entendo — disse Liz.
Charlotte balançou a cabeça.
— Não entende, não. Ninguém vai me entender.
— Eu entendo que você se sinta mal por Oliver ao pensar em se
casar e...
— Não! Está vendo? Não é absolutamente nada disso!
Elizabeth suspirou alto, olhando para Susie e Charlotte se
levantou.
— Apenas aceitem que não quero me casar com o Senhor
Baker. Eu nem o conheço.
— Tudo bem, então, mas você vai seguir com seus planos de
procurar um marido quando o Senhor Baker se for?
— Sim, eu lhe disse que faria isso.
— Ora, Charlotte, que grande tolice! — Elizabeth parecia irritada.
— Nada do que você diz está fazendo sentido. Se vai procurar um
marido, por que não aceita o pobre homem?
— Eu não o conheço, Liz!
— Esse é o problema, então?
— Sim, um dos problemas.
— Muito bem. Façamos o seguinte: por que você não pede um
tempo a ele para conhecê-lo? Quem sabe ele não te impressiona e
muda sua opini...
— Porque você está do lado dele, afinal? — perguntou Charlotte,
inconformada.
— Não seja ridícula, Char. Eu não estou do lado de ninguém.
— Você está sim! Está insistindo nisso e...
— Querida, eu só acho que se você vai procurar um casamento
de qualquer forma, por que não dar uma chance a ele? Charlotte,
ele veio até aqui somente por você! Ele parece uma boa pessoa.
— Parecer e ser são coisas bem diferentes.
— Oliver não escolheria uma má pessoa para o substituir,
querida.
Charlotte tinha que admitir que aquilo era verdade. Com tudo o
que conhecia de Oliver, ela sabia que ele jamais pediria tal coisa a
alguém que não fosse de sua confiança.
— O que você acha Susie?
A amiga ponderou um pouco sua resposta, como se estivesse
pensando, e então respondeu com a expressão leve.
— Eu concordo com Liz, Char. Não creio que Oliver escolheria
qualquer pessoa para você. Ele te amava muito e não faria isso
desmotivado.
Charlotte suspirou. Com Oliver naquele pedestal, ninguém
jamais compreenderia as razões de ela se impor àquela loucura.
— Você se casaria com alguém caso Carl tivesse agido igual?
Susie tentou não demonstrar suas emoções. Na realidade, tudo
que ela poderia desejar é que Carl, seu falecido marido, tivesse tido
metade da consideração e cuidado que Oliver tivera pela amiga.
— Eu consideraria, sim — respondeu, sincera.
— E se eu não mudar de ideia? — ela perguntou à irmã mais
velha.
— Se isso acontecer, você será sincera e ele deverá aceitar —
respondeu Elizabeth.
— Não parece ser tão simples assim.
— Mas é, querida — Liz se aproximou novamente da irmã. —
Converse com ele. O mundo seria muito mais simples se as
pessoas simplesmente dialogassem. Pense nisso, tudo bem? Às
vezes Thomas é apenas aquilo que você já ia procurar, de qualquer
forma.
Se tinha uma coisa que Charlotte odiava e amava ao mesmo
tempo, era um bom argumento. E aquele feito por Liz era ótimo,
para dizer o mínimo.

T , quase no mesmo horário do


dia anterior. Ele acordou e se arrumou como de costume, pronto
para ir até a residência das Hollth para, mais uma vez, tentar
convencer a Senhorita Charlotte de que o casamento deles era o
melhor a ser feito.
Desde que colocara os olhos na residência das irmãs, Thomas
notara que elas estavam em dificuldades financeiras. A casa era
boa, mas se via sem muita análise que não passava por reparos há
muito tempo. Além disso, a comida sobre a mesa posta não era
muita e as roupas das moças também estavam, de certa forma,
surradas.
Logo, Oliver sabia bem o que estava fazendo ao pedir que
Thomas cuidasse de Charlotte.
A moça era relutante, ele tinha que admitir. E aquela relutância,
apesar de Thomas não considerar um imenso obstáculo no
cumprimento de sua promessa, o começava a irritar.
Principalmente porque Charlotte não tinha argumentos para
rejeitá-lo. Óbvio, existia o fator de não o conhecê-lo, mas pessoas
se casavam assim todos os dias. Quando aquela pequena e
atraente mulher de olhos verdes batia o pé dizendo que não se
casaria com ele, Thomas tinha que se segurar para não perder as
estribeiras e discutir com ela como duas crianças quando fazem
pirraça.
Ele então passou a pensar se, após o casamento, a rotina deles
seria naquele total desacordo. E aquele pensamento, apesar de
irritante, o fez sorrir.
Era a primeira vez em muito tempo que Thomas visualizava algo
sobre o futuro de forma palpável.
Todos aqueles anos, ao pensar na promessa que tinha com
Oliver e em como deveria se casar com Charlotte, ele nunca
conseguiu, de fato, imaginar como seria sua vida uma vez que tudo
estivesse arranjado. Admitia que tinha curiosidade em saber como
Charlotte era pessoalmente, qual seria a cor de seus olhos ou de
seu cabelo, se ela teria um cheiro suave ou mais adocicado. Mas
nada daquilo importava realmente.
Com base nas cartas que trocaram, Thomas a conhecera, de
certa forma, e se identificou com ela o suficiente para saber que
poderiam se entender. Mas agora, vendo-a, ouvindo sua voz firme e
relutante, era como se finalmente pudesse, de fato, pensar nos dias
que viriam.
E que bela surpresa foi a atração que sentira por Charlotte.
Desde o momento em que ela saiu porta afora, acompanhada por
Elizabeth, sua beleza lhe chamara atenção, especialmente pela
expressão em seus olhos. E Charlotte, quando não estava
tremendamente irritadiça, sempre falara com Thomas o olhando nos
olhos.
Era fascinante.
Porém, a atração que sentira por ela era apenas um mero
detalhe. Sua missão era cuidá-la e protegê-la. Todos os últimos
anos de sua vida o levaram até aquele momento. Thomas
sobrevivera por ela.
Por Charlotte.
E ele não descansaria até fazê-la aceitá-lo como marido.

C com o sol. Estava


exausta por não ter dormido bem nas últimas duas noites.
Ela pensou a noite toda na conversa que tivera com Elizabeth e
Susie, especialmente sobre o argumento da irmã. Charlotte odiava
ter que admitir que Liz tinha razão em relação a Thomas.
Casamento era, de fato, uma coisa que Charlotte buscaria de uma
forma ou de outra, e se Thomas estava ali justamente por isso, por
que não lhe dar uma chance?
O problema daquela situação não era ele, especificamente. Ele
parecia mesmo ser sincero e honesto, e sim, elas estavam certas de
que Oliver jamais escolheria uma má pessoa para desposá-la.
O verdadeiro problema era justamente Oliver tê-lo escolhido. Era
a obrigação de aceitá-lo. Pensar daquela forma fazia com que
Charlotte se sentisse coagida por Oliver e aquela não era a primeira
vez que isso acontecia. Mas claro, ninguém jamais a entenderia se
tentasse se explicar.
Por isso, cansada de sentir-se tão irritadiça e ciente de que
Thomas insistiria em aparecer em sua porta todos os dias, ela
decidiu negociar aquela situação.
Ela percebeu que, mais uma vez, Liz deixara a mesa do café
posta e comeu um pedaço de pão seco. Charlotte então esperou por
Thomas do lado de fora, com um livro na mão e não demorou muito
para que a bela figura do soldado surgisse no horizonte.
Charlotte o observou se aproximar e o recebeu amigavelmente.
— Bom dia, Senhor Baker. Eu estava lhe esperando.
— Bom dia, Senhorita Charlotte — respondeu, com a expressão
levemente desconfiada.
— Entre. Eu estou sozinha, Liz está fazendo turno duplo na
estalagem hoje.
— Eu a vi ocupada no balcão quando saí — ele comentou,
entrando na casa e se sentando no mesmo lugar que no dia
anterior.
Charlotte o seguiu e sentou-se em sua frente.
— O senhor aceita chá ou...
— Estou bem, obrigado.
Ela suspirou e o observou por um momento.
— O senhor falava sério quando disse que voltaria, não é?
— Eu não minto, Senhorita Charlotte.
— Que bom. Nem eu.
Charlotte analisou o sujeito em sua frente. Thomas era diferente
de qualquer outro homem que ela já tivesse visto. Não pelas
feições. Ele era belo, mas ela já tinha visto outros com beleza
similar. O próprio Oliver era considerado por todas as moças um dos
rapazes mais bonitos da vila, com seu sorriso fácil e seus olhos
verde-escuros.
O que diferenciava Thomas dos demais era sua expressão.
Charlotte via resistência quando olhava em seu rosto. Parecia que
ele tentava se manter contido e rígido o tempo todo. Que procurava
ser prático e determinado a cada minuto do seu dia, sem se
emocionar ou se deixar relaxar. E ainda assim, quando prestava um
pouco mais de atenção na profundidade de seus olhos azuis,
Charlotte podia jurar que ali havia... ternura. Que Thomas Baker
fora, em algum momento de sua vida, um sujeito terno e talvez até
sonhador e por mais que a guerra e a vida tivessem feito de tudo
para lhe abaterem, ainda restava nele um pouco de sua primeira
essência.
Curiosamente, ela pensou por um breve momento que seria
interessante conhecer aquela versão dele.
— O senhor se considera uma pessoa de personalidade rígida?
— ela perguntou num impulso, como se exteriorizasse seus
pensamentos.
Thomas não alterou a expressão nem questionou a fala dela.
— Se vou ser sincero, não sei definir minha personalidade.
Ela empinou um pouco o queixo.
— Por quê?
— A guerra. Ela me mudou e ainda não sei dizer ao certo quem
sou. Apenas no que acredito.
Charlotte o encarou, mas não disse nada por um momento.
Thomas estreitou os olhos ao percebê-la o analisando e ela
achou melhor prosseguir, mudando de assunto totalmente.
— Eu e minha irmã conversamos ontem e ela levantou alguns
argumentos pertinentes sobre nossa situação. Eu os ponderei, mas
antes de dizer o que tenho a dizer, preciso de algo a mais do
senhor.
Thomas ergueu as sobrancelhas.
— Estou aqui para me casar com a senhorita. Creio que será
meu dever fornecer-lhe o que quer que precise.
— Eu preciso saber por que o senhor insiste tanto nisso.
A expressão dele não se alterou.
— Eu já lhe disse, senhorita. Porque eu prometi ao meu amigo
que o faria e eu cumpro minhas promessas.
— Sua promessa é maior do que sua vida pessoal? Seus
objetivos?
— Desde que a fiz, ela se tornou meu objetivo.
Homem irritante, esse Senhor Baker.
Ele falava as coisas com uma certeza tão grande que Charlotte
se via encurralada pelas próprias perguntas.
— E por que Oliver o escolheu? Por que o senhor?
Thomas percebeu que não tinha nenhuma resposta para aquela
pergunta além da verdade.
— Porque eu era tudo o que ele tinha.
Charlotte ficou impactada com a sinceridade das palavras dele.
Ela esperava, com base nos argumentos que ele fizera no dia
anterior, que Thomas começasse a expor uma lista de suas infinitas
qualidades para provar a ela que ele era sua única salvação e para
que Charlotte se sentisse sortuda em tê-lo como salvador.
Mas não. Ele apenas disse a mais pura e crua verdade. A triste
verdade da solidão da guerra.
Ele era tudo que Oliver tinha, e ainda assim, Oliver o direcionou
a ela.
Naquele momento, Charlotte se pôs a pensar, pela primeira vez
desde que Thomas aparecera em sua porta, na grandiosidade do
que ele estava fazendo. Thomas, por mais obstinado e orgulhoso
que parecesse, estava ali, na casa de uma completa estranha,
somente por ela. Liz estava certa quando disse isso. Que outro
desconhecido faria o mesmo, ainda mais por alguém que já estava
morto?
Aquilo só confirmava sua conclusão de que, com base em sua
ideia já pré-estabelecida de procurar um casamento, tudo aquilo
parecia ser motivo suficiente para ela ceder um pouco e seguir a
sugestão da irmã em conhecê-lo.
— O senhor veio até aqui ontem e argumentou coisas mais
palpáveis em relação ao porquê eu deveria aceitá-lo como esposo.
— E minha opinião é a mesma.
— Então, para resumir, o senhor foi o escolhido para ocupar o
lugar de Oliver porque era a única opção?
— Exato.
— E eu deveria me casar com o senhor pois vai me dar o
conforto que eu claramente, com base até em meu café da manhã,
necessito?
Thomas se sentiu um pouco desconfortável com aquela
afirmação, mas manteve a postura.
— Eu sinto muito se a ofendi ontem. Não foi minha intenção,
mas sim. Creio que serei de grande valia.
Ela inclinou um pouco a cabeça.
— O senhor é bem sincero.
— Eu lhe disse que não minto.
Sim, ele dissera.
— Eu não aceito me casar com o senhor. Mas tenho uma
contraproposta.
Pela primeira vez na conversa, as sobrancelhas dele mexeram
um pouco, demonstrando certa hesitação, ou no mínimo,
curiosidade.
— Estou ouvindo.
A expressão de Charlotte se aliviou um pouco.
— Proponho que nos conheçamos. Que o senhor me permita
conhecê-lo ao menos um pouco antes de tomar minha decisão.
— A senhorita quer que eu lhe faça a corte, é isso?
— Não. Quero saber quem o senhor é. Sua história, do que
gosta... esse tipo de coisa. E quero que me conheça também.
Ele não disse nada por um momento. Charlotte percebeu que
seus ombros se enrijeceram um pouco e que Thomas mudou a
posição das pernas. Parecia que o soldado não era tão inflexível
quanto demonstrava.
— Eu não preciso conhecê-la, Charlotte.
— Mas eu quero que me conheça — ela insistiu.
Charlotte preferiu nem argumentar que talvez existissem coisas
sobre ela que ele pudesse não gostar porque sabia que Thomas
negaria e ela não queria correr o risco de perder aquele momento
de ponderação da parte dele.
— Não há nada muito interessante sobre mim que a senhorita
precise saber — ele tentou argumentar.
— Eu mesma julgarei isso.
— Creio que talvez isso será uma perda de tempo.
— É isso ou o senhor pode ir embora agora mesmo.

A com Charlotte estava fora do controle.


Thomas não estava ali para negociar. Ele tinha o objetivo de
casar-se com ela e planejava cumpri-lo. E então ela com algumas
perguntas simples o desarmou de tal forma que ele passou a
considerar que cumprir sua promessa a Oliver não seria tão simples
como pensava.
Que Charlotte estava resistente, Thomas já tinha percebido no
primeiro dia em que apareceu na porta de sua casa. Mas ele
aprendera, em todas as batalhas e em seu processo de
recuperação, que insistir era uma das melhores formas de avançar.
E era isso que planejava fazer.
Estava preparado para ficar ali o tempo que fosse necessário até
que aquela bela mulher se desse conta de que o casamento com
ele seria, na verdade, muito útil a ela.
E Thomas tinha um pressentimento de que seria útil a ele
também.
— Senhorita Hollth, eu realmente acho isso desnecessário.
— Não é.
Ele ergueu os olhos aos céus e a expressão dele a irritou.
— O senhor é sempre assim, tão arrogante? — questionou,
estreitando as sobrancelhas.
Thomas enrijeceu o maxilar.
— Não sei. A senhorita é sempre tão irritante?
— Me dê o tempo que lhe peço para conhecer-me e descubra.
Ardilosa, era isso que ela era. E atraente, diga-se de passagem.
— De quanto tempo estamos falando?
— Alguns dias, no mínimo. Não esqueçamos que estou
considerando passar minha vida inteira com o senhor.
— E depois desses dias?
Charlotte respondeu naturalmente.
— Eu aceitarei ou recusarei me casar com o senhor.
Thomas não aceitaria não como resposta. Ele estava lá para
cumprir sua promessa ao amigo e faria isso, mas ele não a retrucou.
O fato de ela já estar mais aberta a conhecê-lo era um progresso e
Thomas não queria jogar tudo pela janela. Era uma estratégia de
batalha fazer com que o inimigo pensasse que estava ganhando
para só então atacar de verdade. Não que Charlotte fosse o inimigo,
mas ela estava, naquele momento, na posição de adversária ao
propósito dele. Se ela precisava daqueles dias para “conhecê-lo”,
Thomas podia muito bem aceitar aquela proposta e utilizá-la a seu
favor.
— Tudo bem. Nos conheçamos, então.
A expressão satisfeita dela foi encantadora.
— Ótimo. Finalmente concordamos em algo.
— Eu só preciso saber de quantos dias a senhorita precisa para
programar minhas finanças e pagar a estalagem.
— Oh. Certo... a estalagem... — pensou Charlotte, fazendo um
bico. — Não será necessário. O senhor pode ficar aqui. Temos um
quarto extra e...
— Não acho que vá fazer bem duas moças solteiras me
receberem, senhorita Hollth.
Ela franziu o cenho.
— Ninguém por aqui se importa com reputação ou esse tipo de
bobagens. E os que se importam, me são insignificantes. Não se
preocupe, Senhor Baker.
Ele ainda estava hesitante.
— E quanto à sua irmã? Ela deveria estar ciente dis...
— Ela está. Elizabeth com certeza faria o mesmo que eu.
Charlotte parecia bem segura em recebê-lo e, se fosse analisar a
situação, era bem mais conveniente que ele ficasse na mesma casa
que ela, assim poderiam se conhecer em menos tempo. O fato de
ela sugerir hospedar “um estranho” já lhe passava certa confiança
em relação às ressalvas dela.
— Bem, se é assim... acho que tudo bem.
Charlotte sorriu, satisfeita.
— Ótimo. Ainda é cedo, então se o senhor já quiser trazer suas
coisas, fique à vontade.
— Vou buscá-las, então.
Thomas estava quase na porta quando ouviu Charlotte chamá-
lo.
— Senhor Baker?
Ele se virou, encarando-a.
— Eu lhe agradeço por fazer isso. De verdade.
— Eu lhe disse que não desistiria. Se é isso que a senhorita
precisa, considere feito.
Charlotte sorriu e inclinou a cabeça.
— O senhor pode apenas responder “de nada”, sabia?
Thomas, que não esperava ouvir aquilo, acabou rindo.
E Charlotte, que reparou que era a primeira vez que ele ria
desde que se conheceram, constatou com base no belo sorriso que
Thomas definitivamente deveria rir mais vezes.
— De nada, senhorita Hollth — ele disse, virando-se para buscar
sua mala.
Í
CAPÍTULO SETE

A C
passara o resto da manhã concentrada em seu trabalho. Mesmo
assim, o serviço não tinha rendido. Ela se sentia ansiosa e o motivo
de sua ansiedade era claro: Thomas.
Ele chegaria em breve com sua bagagem para passar os
próximos dias com ela, e, possivelmente, se tornar seu marido.
Contudo, Charlotte não pensara claramente quando ofereceu o
quarto vago da casa a ele. Aquilo não estava em seus planos. De
início, tudo o que estava disposta a fazer era se permitir conhecê-lo
e analisar se, de fato, Thomas poderia ser um bom marido. Tudo
apenas por considerar o argumento coerente de Elizabeth.
Charlotte imaginava que eles compartilhariam conversas, talvez
uma ou outra refeição, mas basicamente isso. Porém, viver embaixo
do mesmo teto era um resultado definitivamente não programado.
Charlotte não sabia onde estava com a cabeça quando fez o
convite. Ao ouvi-lo mencionar sobre a permanência na estalagem,
ela simplesmente pensou na possibilidade de hospedá-lo e ofereceu
a casa num impulso. E mesmo ele hesitando, ela insistiu naquela
ideia maluca.
Thomas havia se mostrado um homem sério, isso era uma
verdade. Ainda assim, o sujeito sabia ser arrogante e aquilo a
irritava profundamente. E se os próximos dias se resumissem a
brigas e ironias da parte dos dois? Aquela ideia parecia muito
desagradável.
Charlotte pôs as mãos nas têmporas e apertou os olhos quando
ouviu chamarem seu nome. Seu estômago se embrulhou e ela
sentiu a ansiedade aumentar.
Thomas chegara e não havia mais volta.
Ela se dirigiu até a porta de entrada, passando pela sala e
encontrando-o do lado de fora. Tinha que admitir que o homem era
bonito. Thomas usava uma camisa de linho com as mangas
dobradas, calças marrons, botas e nada mais. Pelo calor, seus
antebraços fortes ficavam à mostra e o cabelo loiro e a barba
aparada completavam o conjunto atraente do soldado.
Charlotte tinha a impressão de que a cada vez que ele aparecia
em sua frente, estava mais bonito do que antes. Mas isso
certamente era coisa da cabeça dela.
Tinha que ser.
— Olá, de novo — ele disse ao vê-la se aproximar.
— Entre, por favor, Senhor Baker.
Ele caminhou para dentro da casa e esperou. Charlotte ficou
constrangida por um momento, sem saber o que fazer.
— Onde devo colocar minhas coisas?
Era melhor lhe mostrar a casa de uma vez, ela pensou.
— Venha comigo. Eu lhe mostro seu quarto.

T na porta da casa das Hollth no fim da manhã.


Dessa vez, para ficar.
Ele estava apreensivo, tinha que admitir. A ideia de Charlotte em
conhecê-lo era uma grande perda de tempo, na opinião dele. Mas
se era isso que ela necessitava para aceitar seu pedido de
casamento, que assim fosse.
Não era sua intenção se aproveitar da bondade das irmãs em
relação à sua hospedagem. Thomas tinha condições financeiras
suficientes para ficar meses na estalagem, se fosse preciso. Mas a
maneira tão gentil com que Charlotte lhe ofereceu o quarto vago que
tinham o fez acreditar que talvez ela o quisesse por perto, mesmo
sem entender o porquê. Até então a relação deles tinha sido apenas
troca de farpas e comentários teimosos, mas por fim a ideia de
dividir um teto com ela não era ruim.
Na verdade, era muito boa.
Quanto mais tempo passasse em sua companhia, mais rápido
ela veria que Thomas era um homem honrado e respeitoso, e que
com ele, ela estaria segura como esposa.
Ao chegar até a casa, chamou pelo nome dela e ela não
demorou aparecer. E Deus, como Charlotte era bonita. Apesar de
toda a parte irritante que Thomas já conhecia, seus olhos verdes
penetrantes sempre pareciam lhe tirar o fôlego. Era curioso como
Oliver nunca mencionara a ele os atributos físicos de sua noiva. Se
Thomas tivesse uma mulher como ela o esperando, certamente
contaria para todo mundo o grande sortudo que era.
A expressão dela era tensa, Thomas conseguiu notar quando
Charlotte se aproximou.
— Olá, de novo.
Charlotte pareceu engolir em seco, o que ele achou muito
estranho.
— Entre, por favor, Senhor Baker.
Ele entrou e ficou aguardando que ela dissesse alguma coisa.
Esperou um tempo. Nada.
Charlotte parecia nervosa com sua presença. Mas não era ela
mesmo que o havia convidado para ficar ali?
— Onde devo colocar minhas coisas? — Thomas achou melhor
interromper o silêncio constrangedor que pairava no ar.
Charlotte finalmente se mexeu.
— Venha comigo. Eu lhe mostro seu quarto.
Ela deu dois passos e se virou de novo.
— Bem, aqui é a sala, como o senhor já sabe, e aqui fica a
cozinha — ela apontou para o lado. — Minha sala de costura é
naquela porta.
Thomas assentiu. A casa não era muito grande, e ele conseguiu
se localizar sem nem ao menos sair do lugar.
— Os quartos são lá em cima — ela disse, guiando-o até a
escada. — O senhor consegue subir?
Thomas ficou constrangido por um momento, não pela pergunta
dela, mas pela consideração. Charlotte se lembrava da condição
dele e se preocupava com isso.
— Consigo sem problemas. Só vou pedir que vá na frente.
Ela assentiu sem duvidar da palavra dele — o que fez com que
Thomas se sentisse muito bem, visto que a maioria das pessoas
sempre o olhavam torto em qualquer situação relacionada a seu pé
— e subiu as escadas. Ele a seguiu, saltitando degrau por degrau e
chegou ao andar de cima sem dificuldades.
— Ora, veja! O senhor tem muita agilidade — ela comentou, com
uma expressão positivamente surpresa.
Ele corou.
Ele corou?
Por que diabos ele corou?
— Obrigado — Thomas pigarreou, encabulado. — É tudo uma
questão de costume.
Charlotte sorriu graciosamente e o guiou pelo corredor.
— Bem, aqui é seu quarto — ela abriu a porta de madeira
escura.
O quarto era maior do que Thomas imaginara. Possuía uma
cômoda de madeira com espelho no canto oposto da janela, um
pequeno guarda-roupa e uma cama encostada na parede. A janela
tinha uma vista muito bonita do campo e o ambiente era bem limpo
e arejado.
— É um belo quarto, Senhorita Hollth.
Charlotte concordou.
— Era o quarto do meu pai. Após minha mãe morrer, ele não
quis permanecer no quarto principal, então Elizabeth passou a
dormir lá e ele aqui. Não é luxuoso, mas...
— É perfeito. Não poderia esperar por nada melhor. De verdade.
Charlotte balançou com a cabeça, satisfeita com o que ouvia.
— Meu quarto é logo à direita, e o de Elizabeth é o do fim do
corredor. A sala de banho é na porta do meio.
Thomas visualizou tudo em instantes, e voltou a olhar para ela.
— Eu estarei na sala de costura trabalhando, caso o senhor
precise de mim. Fique à vontade, Senhor Baker. Use a casa como
se fosse sua. Não precisamos de cerimônia.
Dito isso, ela se virou e desceu as escadas rapidamente.
Thomas se viu sozinho e, de certa forma, perdido. Assim, desfez a
mala e acomodou suas roupas no guarda-roupa, já se adaptando ao
novo ambiente.
Charlotte parecia insegura em recebê-lo, e aquilo o preocupou.
Será que ela estava arrependida do convite que fizera? Seria difícil
uma convivência satisfatória se ela se demonstrasse sempre tão
arredia daquela forma.
Thomas se deitou na cama, esticando e alongando a perna que
utilizava a prótese. Ele precisava provar a Charlotte que poderia ser
um bom marido. Precisava convencê-la de que aquilo era o correto.
O único problema é que não tinha ideia de como faria isso.

N , Elizabeth serviu o chá e se sentou no sofá.


Thomas lia um livro qualquer, sentado em uma das cadeiras do
ambiente. Ele deu um gole no líquido quente e sua expressão era a
de quem apreciava aquilo, fazendo Elizabeth achar graça no gesto.
— Pelo visto, está bom — disse ela, bebendo um gole também.
— Maravilhoso, Senhorita Hollth. Eu amo chá de camomila —
Thomas respondeu, com um sorriso amigável.
— O senhor conseguiu se acomodar bem?
— Sim. O quarto é realmente muito confortável. Devo agradecê-
las imensamente por me permitirem ficar aqui.
— É um prazer recebê-lo, Senhor Baker. Saiba que tanto
Charlotte como eu estamos felizes por estar aqui.
Thomas fez uma expressão desacreditada, e Elizabeth achou
aquilo curioso.
— O que foi?
— Bem... não estou duvidando de sua fala, mas tenho a leve
impressão de que talvez a Senhorita Charlotte não esteja tão feliz
assim em me ter em sua casa.
O que era muito irônico, tendo em vista de que fora ela mesma
que oferecera o quarto a ele.
— Por que diz isso? — perguntou Elizabeth.
— Acho que ela está se escondendo de mim. Depois que me
recebeu, não a vi o resto dia. Se ela está tão desconfortável com
minha presença... Não quero ser um inconveniente, sabe?
Charlotte de fato passou o dia todo na sala de costuras, e
Elizabeth sabia que aquele comportamento indicava que ela estava
sim evitando o contato com Thomas. Por mais que tivesse
concordado em conviver com ele para considerar a possibilidade de
se casarem, Liz tinha a impressão de que talvez a irmã teria certa
dificuldade em lidar com o assunto, pelo menos no início.
— Senhor Baker, eu...
— A senhorita pode me chamar de Thomas.
Liz sorriu de forma gentil.
— Thomas. Eu primeiramente quero dizer que admiro muito sua
atitude em relação à minha irmã. Não é qualquer homem que se
sacrificaria assim por uma promessa.
— Isso que estou fazendo não é um sacrifício, Senhorita Hollth.
— Liz — ela o corrigiu.
— Liz.
— Perdoe-me, Thomas, mas acho difícil que uma atitude dessa
com uma completa desconhecida seja considerada de outra forma.
Thomas a olhou e respirou fundo. Elizabeth parecia uma pessoa
sensata e de confiança e devia ser muito influente na vida de
Charlotte. Se ele quisesse mostrar sua integridade, certamente ser
sincero com Elizabeth lhe parecia um bom começo.
— Se eu lhe contar algo, promete não dizer à sua irmã?
Liz inclinou a cabeça, pensando. Não lhe era agradável a ideia
de manter um segredo de Charlotte, mas algo lhe dizia que naquele
caso, ela não se arrependeria se o fizesse.
— Sim. Prometo.
Thomas ajeitou sua postura para começar.
— Quando eu digo que não é um sacrifício, falo sério. Eu sei que
fiz minha promessa a Oliver e claro, esse é o principal motivo de eu
estar aqui. Ele foi praticamente meu irmão no Batalhão. Estava me
recuperando de um ferimento do qual ele mesmo me salvou quando
Oliver morreu sozinho. Eu me lembro do medo em seus olhos
quando me pediu para assumir este compromisso. Diante de minha
dívida com ele, o que é uma vida comparada a um casamento? —
ele lhe perguntou, prático.
Elizabeth bebeu mais um gole do chá.
— Entendo completamente, Thomas. Mas você não conhecia
Charlotte e...
— Sim, eu a conhecia — afirmou, sem hesitar. — É isso que
estou tentando lhe dizer. Eu a conhecia, Elizabeth. Pelo menos o
suficiente para saber que não me arrependeria em manter minha
promessa.
— O que quer dizer, Thomas?
— Quando passei a receber as cartas de Charlotte a Oliver, não
sei explicar, mas senti que ela falava comigo. Era claro que
Charlotte se referia a ele, mas como estávamos na mesma situação,
sinto que as palavras de conforto dela me ajudavam. Após ler a
primeira carta já em resposta à minha, eu percebi que não seria
difícil cumprir minha promessa. Pelo menos não por ela.
Liz observava, com cautela, como ele lhe contava algo tão
sensível e íntimo.
— Quando estamos na guerra, Senhori... Liz, as coisas são
muito difíceis. Por vezes, nós mesmos nos esquecemos que somos
humanos e que nos sentimos solitários. Creia-me quando lhe digo
que todas as coisas possíveis me aconteceram para que me
sentisse sozinho, mas conversar com a Senhorita Charlotte me
ajudava. A cada campo de batalha, as palavras dela me
amparavam. Não somente eu tinha a obrigação com meu amigo,
mas também com a mulher que ele escolheu. Eu devo muito a ela,
mesmo que indiretamente. Além disso, se alguém como Oliver se
casaria com ela, certamente eu também posso me casar.
Apesar de seu tom neutro, Elizabeth percebeu que Thomas não
tinha consciência da profundidade de sentimentos em sua fala. Aos
seus ouvidos, as palavras dele foram basicamente uma declaração
de amor.
— E por que o senhor não quer que minha irmã saiba disso? —
ela não se conteve em perguntar.
— Porque não quero ser mal interpretado. Eu estou aqui para
cumprir meu dever a Oliver. Me casando com ela, vou honrá-la
como esposa e como mulher, mas isso não é uma bela história de
amor. Eu não acredito no amor. Não mais.
— E no que, exatamente, o senhor acredita?
— Eu acredito em fidelidade. Em ser fiel às decisões que
tomamos e promessas que fazemos. Em sustentar nossa palavra.
Acredito que nada é mais nobre em um homem do que a honra e é
por isso que estou aqui.
Elizabeth concordou com um aceno.
— Pois bem, Thomas. Eu agradeço sua sinceridade e prometo
não comentar nada com Charlotte, mas devo lhe avisar que o
senhor deverá ser paciente com ela.
— Terei toda a paciência que seja necessária.
— O senhor não fala como se a rejeição dela fosse uma opção.
— Porque para mim, não é. Vou me casar com ela, Elizabeth.
Vou provar a Charlotte que ela pode confiar em mim para ser seu
marido, para cuidá-la. Não estaria aqui caso considerasse a
rejeição. Eu espero anos por esse momento e aprendi na guerra
que não compensa entrar em uma batalha considerando perder.
Liz deu um meio sorriso.
— Minha irmã não é uma guerra, Thomas. Ela é apenas uma
mulher que lidou com muita coisa. O senhor nem imagina tudo que
ela enfrentou até aqui, mas creio que vai descobrir.
Ele ficou sem entender aquela afirmação, e Liz se levantou para
se retirar.
— Eu gosto do senhor. Me parece honrado, sincero e respeitoso.
Se ela aceitar se casar, ficarei feliz, de verdade. Apenas... não
subestime o poder de escolha de minha irmã. O senhor pode se
decepcionar e muito — ela comentou, se despedindo dele e subindo
as escadas em direção a seu quarto.
Thomas permaneceu pensativo refletindo nas palavras de
Elizabeth e ele tinha que admitir que tais afirmações dela abalaram
sua confiança.
O que nenhum deles percebeu é que Charlotte ouviu toda a
conversa, encostada discretamente na porta da cozinha.
Í
CAPÍTULO OITO

N ,E
e Charlotte ficou preparando o café da manhã. No dia anterior, após
receber Thomas e mostrar-lhe a casa, Charlotte se refugiara o dia
todo na sala de costura, evitando qualquer contato com ele. Estava
nervosa e apreensiva e aquela reação foi quase como que
involuntária. Sabia que deveria ter conversado com ele, tentado
conhecê-lo, mas simplesmente não conseguiu.
Ela pensou na possiblidade de ter agido assim para evitar os
comentários arrogantes dele, ou até mesmo suas expressões, mas
aquilo não era verdade. A verdade era que Thomas a tirava do eixo.
A maneira como ele olhou para ela após ela elogiá-lo por sua
agilidade ao subir as escadas fez com que seu coração disparasse.
Ele tinha corado para ela! Um homem rígido e arrogante não corava
com um comentário tão insignificante. E Charlotte gostou da reação
que despertou nele. Tudo nem cinco minutos depois de sua
chegada.
Aquilo foi demais para ela. Charlotte precisava de um tempo,
precisava pensar e colocar a cabeça no lugar longe daquele soldado
de olhos azuis e realmente, aquele momento de privacidade
pareceu lhe fazer muito bem.
Ela apenas não esperava que, ao finalmente sair da sala no
início da noite, fosse escutar a conversa de Thomas e Elizabeth
sobre ela e os objetivos impertinentes dele em desposá-la. Mas para
sua surpresa, a impertinência dele não a irritou. Bem ao contrário.
As palavras dele a tocaram profundamente.
Jamais, em toda sua vida, Charlotte teria imaginado que suas
cartas haviam ajudado alguém. Claro, quando escrevia para Oliver,
esperava que suas palavras o agradassem, mas a maneira como
Thomas descreveu seus sentimentos na noite anterior penetrou seu
coração.
Coração mole o dela, com certeza, mas quem não se comoveria
ao saber que foi o amparo de um soldado em meio a uma guerra?
Contudo, não foi isso o que mais a surpreendeu, mas sim a
sinceridade dele em relação ao seu dever. O fato de Thomas afirmar
que aquela situação entre eles não era uma história de amor nem
precisava ser mencionado. Charlotte sabia disso. Já tinha vivido
muita coisa para acreditar em contos de fadas. Mesmo assim, era
gentil da parte dele a intenção de não a enganar com falsas
promessas românticas.
Thomas estava sendo sincero em todos os aspectos. Ele não
mentira sobre o que motivara Oliver a escolhê-lo, nem sobre os
porquês de estar ali. Toda palavra que saía da boca dele era
verdade, por mais arrogante que fosse.
E com ele agindo assim, o coração teimoso de Charlotte
amoleceu um pouquinho.
Ela também era uma mulher honesta e sensata. Com exceção
de seu compromisso com Oliver. Naquela confusão de sentimentos
que fizera, ela jurou a si mesma nunca mais esconder suas
verdadeiras intenções. Logo, a atitude de Thomas lhe despertava
uma imensa admiração, digna de respeito e confiança.
Por isso, Charlotte achou injusto continuar evitando-o — mesmo
ele despertando nela aqueles sentimentos tão confusos — decidiu
passar por cima de seus medos e anseios e realmente fazer o que
propusera a Thomas. Iria se permitir conhecê-lo de forma sincera,
sem fugir, ficar calada ou se esconder em salas de costura.
E começaria imediatamente.
Ela ouviu passos no andar de cima, e logo o barulho de saltos na
escada. Thomas desceu os degraus e ao chegar à sala de jantar, se
mostrou surpreso com a visão de Charlotte colocando duas xícaras
em cima da mesa.
— Bom dia! — exclamou, animada, assim que o viu.
— Bom dia, Senhorita Hollth.
— Charlotte. Eu gostaria que me chamasse de Charlotte. E eu te
chamarei de Thomas, se estiver tudo bem para o senhor.
— Claro — ele respondeu, simpático.
— Sente-se. Eu fiz o café da manhã e o estava esperando. Creio
que podemos usar de um tempo para nos familiarizarmos.
Thomas se sentou, desconfiado.
— Eu agradeço, Charlotte, mas tenho que confessar que não
esperava por isso. Achei que a senhorita estava me evitando.
— Por que diz isso? — ela franziu as sobrancelhas.
— Não a vi ontem. O dia inteiro.
— Bem... eu estava lhe evitando. Um pouco, pelo menos. Mas
também tinha muito trabalho, isso é verdade. Aproveitei o dia para
adiantar algumas peças.
— Que tipo de trabalho? — ele perguntou, tomando um gole do
chá, sem mencionar a confissão dela sobre evitá-lo.
— Sou costureira. Geralmente costuro para as famílias da
região, mas alguns viajantes em apuros acabam mandando serviço
para cá também.
— Entendo. E a senhorita costura faz tempo?
— Sim, desde criança. Minha mãe também costurava.
Thomas deu um meio sorriso.
— A minha também. Não para fora, mas ela sempre gostou
disso. Me lembro de brincar com alguns materiais dela quando
pequeno.
— Oh, sua mãe devia ficar muito brava com isso, não?
Ele mudou a expressão como se tentasse se recordar.
— Sim, ela ficava. Na verdade, minha mãe sempre tinha um
motivo para ficar brava comigo. Com razão. Devo admitir que fui
muito levado.
— Até hoje? — perguntou Charlotte e a expressão de Thomas
se entristeceu um pouco.
— Não mais. Ela faleceu quando eu estava na guerra.
Charlotte arregalou os olhos, constrangida.
— Perdão. Eu não quis...
— Não se preocupe. Foi há muito tempo.
O que não significava que não doía mais. Thomas apenas se
acostumara com a dor. Era assim que o luto funcionava.
— Conte-me mais sobre sua família — ela pediu.
Thomas segurou no canto da boca o sorriso que quis se formar.
Mesmo com o sofrimento de ter ficado sozinho, ele certamente
gostava de falar da família e estava contente pelo interesse de
Charlotte em conhecê-lo.
— Não há muito o que contar, na verdade. Meu pai era ferreiro
e...
— O meu também! — afirmou Charlotte, interrompendo-o.
Thomas pareceu surpreso.
— Isso é uma grande coincidência.
— Sim, de fato — ela sorriu levemente. — Mas continue, por
favor, desculpe-me por interrompê-lo.
Ele deu com as mãos, como se não tivesse importância.
— Bem, ele era ferreiro e morreu cedo. Ficamos então eu, minha
mãe e meu irmão caçula. Não herdamos terras nem títulos, e esses
foram os motivos que levaram ao meu alistamento. Quando eu
estava em combate, minha mãe faleceu, e um pouco depois de me
recuperar de minha lesão, eu recebi uma carta avisando-me da
morte de meu irmão.
Charlotte sentiu um nó na garganta ao ouvir a última parte.
— Como isso aconteceu? — ela perguntou, se referindo ao
irmão dele.
— Ele foi morto em combate — Thomas respondeu.
— Como era o nome dele?
— Arthur.
— Vocês eram próximos?
— Sim. Muito.
Ela sentiu seu peito se encher de tristeza. Charlotte conhecia os
sentimentos de se perder o pai e mãe, mas ainda tinha a companhia
de Liz. O mero pensamento de perder a irmã lhe deixava sem ar.
— Eu sinto muito. Eu não consigo imaginar a dor que o senhor
sentiu.
— Obrigado. É muito gentil de sua parte. Quando parti, de certa
forma, eu soube que não os veria mais — ele se viu reflexivo. —
Apenas não imaginei que eram eles os que morreriam.
Charlotte estendeu a mão até a dele, como um gesto de consolo.
— É por isso que o senhor soube exatamente o que me dizer
quando meu pai morreu, não é? O senhor conhecia a dor do luto.
Thomas ficou espantado e encantado ao mesmo tempo com a
fala dela. Charlotte reconhecera que era ele quem a tentou consolar
da perda do pai e não Oliver.
Ele se lembrava exatamente das palavras ditas a ela.
“Sei que não faz diferença agora, Charlotte, mas um dia a dor e
a paz vão se encontrar. Não vai deixar de doer, mas será suportável,
e você conseguirá seguir em frente.”
Pelo menos, era assim que ele se sentia em relação às suas
próprias perdas.
Por um motivo que Thomas não sabia identificar, seu ser se
encheu de compaixão. Era boa a sensação de finalmente não
precisar fingir.
— Sim. Eu sabia.
Charlotte sorriu, com os olhos um pouco úmidos.
— Suas palavras foram como um bálsamo para minha dor. Elas
penetraram meu coração partido. De verdade. E fico contente em
poder lhe agradecer pessoalmente por isso.
Thomas a encarou por um instante, com o peito transbordando.
Aquele era outro lado da pequena, atraente, irritante e teimosa
mulher que ele tinha como objetivo esposar.
— Não se sinta pressionada a nada, mas entende agora quando
te digo que minha promessa à senhorita é a única coisa que tenho?
O tom utilizado por ele não foi rude, nem orgulhoso. Foi sincero.
E ela entendia seus motivos. Charlotte só esperava que Thomas, no
tempo certo, também entendesse os motivos dela.
Ela suspirou e balançou levemente a cabeça.
— O senhor quer ir até a vila comigo? Eu preciso de alguns
aviamentos e apreciaria sua companhia.
— Eu vou, claro. Será um prazer — ele sorriu, e Charlotte
precisava admitir que gostava muito daquele sorriso.
O da manhã tinha sido um ótimo começo. Charlotte pensou
que tanto ela como Thomas estavam com as defesas mais baixas e
dispostos a fazerem algo além de apenas responderem um ao outro
com ironia ou irritação.
O pouco que conhecera da história dele fez com que a
curiosidade dela se aguçasse. A forma como Thomas se referira à
sua família fez com que as suspeitas dela sobre ele ter sido alguém
gentil e leve se confirmassem. O motivo de sua rigidez era, muito
provavelmente, apenas o resultado da carga de sofrimento que a
vida lhe dera. Charlotte não julgava mais aquilo. Em realidade,
nunca julgou. Mas percebeu que estava obstinada a conhecê-lo por
completo. O rígido e o leve. E aquilo lhe parecia bem empolgante.
— Tudo bem mesmo irmos andando? — Charlotte perguntou,
caminhando ao lado de Thomas, que mancava.
Eles já estavam a caminho do pequeno vilarejo, onde ela iria
providenciar os materiais necessários para os trabalhos que teria
que entregar naquela semana, e eles não eram poucos.
— Está sim. Na verdade, devo caminhar diariamente. O médico
me disse que é um ótimo exercício.
Charlotte o olhou mancando e não se conteve.
— Se importa se eu perguntar como aconteceu?
Thomas se virou para ela, sem expressão.
— Charlotte. A senhorita está considerando se casar comigo, o
que significa que ficaremos juntos o restante de nossas vidas. Pode
me perguntar o que quiser. Eu não sou o tipo sentimental em
relação a ocorridos passados.
Ela apertou as mãos uma na outra.
— Sim, mas o senhor tem que admitir que é uma pergunta
indelicada.
Ele balançou a cabeça, ponderando a afirmação.
— Tudo bem. Façamos o seguinte. A senhorita me pergunta
sobre como perdi meu pé e fica me devendo uma pergunta
indelicada de minha parte.
Ela sorriu.
— Acho justo.
— Ótimo.
Charlotte fez um bico.
— Então... como aconteceu?
— Uma explosão em Pirineus, há quase dois anos. Eu estava
ajudando outro soldado ferido, carregando-o no colo quando tudo
apagou. Eu me lembro do homem caído ao meu lado, do zumbido
em meu ouvido e quando olhei para baixo, percebi que meu pé não
estava onde deveria. Apaguei depois disso e acordei cerca de dois
meses depois em um hospital de campanha.
Charlotte arregalou um pouco os olhos.
— Não consigo não me surpreender com a naturalidade que o
senhor utiliza para narrar um fato tão traumatizante.
Ele olhou para ela com um meio sorriso.
— Não acredite em tudo o que vê, Charlotte. O modo como
conto a história não significa que não a sinto como ela é. A guerra
nos obriga a esconder nossos medos e traumas.
— Eu posso imaginar. E como foi o processo depois que o
senhor acordou?
Thomas olhou para cima, se recordando.
— Bom, foi um choque, mesmo com as lembranças do ocorrido
voltando em minha mente de tempos em tempos. A recuperação era
difícil, dolorosa, eu fiquei bem deprimido por dias e não ajudou
receber a carta que me avisava sobre o falecimento de meu irmão
no mesmo período.
— Meu Deus, Thomas. De onde você tirou tanta força para
enfrentar isso sozinho?
— Eu tinha algo a ser feito — Ele olhou para ela de novo. — Um
porquê. Alguém me esperava em Carlisle.
Charlotte corou no mesmo momento. Ela imaginou Thomas, com
todas as dificuldades e traumas, focado em apenas encontrá-la para
cumprir sua promessa.
Que homem forte e honrado ele era, de fato.
Arrogante e insistente, mas honrado.
— E sua prótese? Como a conseguiu? — ela perguntou,
continuando o assunto.
— Bom, isso foi uma sorte. Geralmente, esse tipo de auxílio não
é fornecido, até porque se fossem oferecer próteses para cada
soldado lesionado, a Coroa acabaria sem dinheiro. É por isso que,
quando a amputação é de pernas ou pés, os soldados acabam
optando por não utilizar nada ou alguma peça de madeira qualquer.
— Mas não é o seu caso, certo?
— Não. Por isso que digo que tive sorte — e ele riu ao falar
aquilo, pensando no pé que perdera. — Como eu era capitão e
minha les...
— Espere! — Charlotte afirmou, estendendo a mão na frente de
Thomas e o fazendo parar. — Capitão? Isso é importante! Por que o
senhor não mencionou isso antes?
Ele coçou a nuca, sem graça.
— Não me importo com minha patente. Me considero um
soldado como qualquer outro.
— Mas o senhor deveria se importar! Esse cargo reflete seus
atos. Como foi que o senhor chegou a ele, afinal?
Thomas tinha que admitir que, naquele quesito, Charlotte tinha
razão.
— Pode até ser. Mesmo assim, não me importo.
Ela franziu as sobrancelhas.
— Continue o que estava dizendo.
— Bem, como eu era capitão, recebi essa prótese, que é nova,
como forma de compensação por meus serviços. Eu nem imagino
quanto custe, mas sei que é bem melhorada em função dos
modelos mais antigos.
— Tipo o que?
— Bem, o modelo original é uma chapa de madeira curvada,
onde a coxa se encaixa. É muito mais comum que as amputações
sejam de membros inteiros. Eu mesmo corria o risco de perder toda
a perna — e mais uma vez, Charlotte se surpreendeu com a
naturalidade com que ele narrava o fato. — O joelho é de aço e
unido ao tornozelo com fibra animal para permitir que o pé articulado
se movimente em conjunto quando o músculo contrai.
Ele fazia movimentos com a perna ilustrando para ela a
explicação.
— No meu caso, é como se fosse uma “meia-prótese”. A chapa
de madeira é menor e se encaixa na região da canela, ficando fixa à
coxa com um tipo próprio de espartilho e o movimento do pé é um
pouco mais complicado de fazer. A ideia é nova, mas é muito boa.
Os movimentos são mais naturais. Foi invenção de um médico
inglês, inclusive. Dr. James Potts. Eu não o conheci, mas soube que
ele visitou vários hospitais de campanha para aperfeiçoar o modelo.
— E o senhor já se considera adaptado a ela? Pergunto por que
devo admitir que fiquei impressionada com sua agilidade,
especialmente para subir escadas.
— Eu treinei bastante. Fiquei quase um ano e meio no hospital e
tive tempo. Fora as irritações que ela causa na pele de vez em
quando e os incômodos do próprio espartilho, posso dizer que tenho
habilidade em utilizá-la. O equilíbrio também ajuda muito. Mas não
foi tão fácil. Devo admitir que tive vontade de desistir, nos meus dias
ruins. No início, eu sempre voltava para as muletas. Depois de um
tempo conseguia usar uma bengala, até que um dia me vi confiante
o suficiente para apenas mancar.
Eles caminharam mais uns passos, olhando para frente. Thomas
se sentia muito bem falando sobre todas aquelas particularidades a
Charlotte. Ele percebeu que ela era curiosa, mas não havia
julgamento em suas respostas ou percepções.
— E quanto à dor? O senhor a sente? — Charlotte voltou a
perguntar.
Ele deu de ombros.
— Não é uma dor especificamente. Quando a pele está irritada,
é mais um incômodo.
— Não, eu me refiro ao pé amputado. Dói?
Thomas a olhou surpreso. Como Charlotte tinha conhecimento
daquele tipo de dor?
— Como você s...
— Eu tenho muita proximidade com o médico da vila, o Doutor
Arglot. Ele tratou meu pai muitos anos e é como um parente para
mim e Liz. Há uns anos, eu estava no vilarejo quando um soldado
retornou sem o braço e eu ouvi comentários a esse respeito. Fiquei
bem surpresa em como isso podia acontecer e perguntei para o
doutor, que me disse que essa dor acontecia frequentemente em
vários indivíduos que perdiam um membro. Ele não sabia me
explicar os motivos, mas disse que era comum.
— E por que a senhorita se interessaria por algo assim? —
indagou Thomas.
— Não sei. Acho que ponderei a possibilidade de Oliver precisar
de ajuda, caso algo do tipo acontecesse com ele.
Aquilo era incrível. Mais do que isso. Era emocionante. Thomas
jamais pensou que Charlotte teria esse tipo de cuidado com Oliver.
E não porque não se importava com ele, de forma alguma. Mas
aquele tipo de consideração exigia uma sensibilidade profunda e
Thomas bem sabia que aquela não era uma característica comum
na maioria das pessoas.
— É horrível da minha parte pensar isso, não é? — ela
perguntou, constrangida.
— Não! De forma alguma. Na realidade, é maravilhoso,
Charlotte.
Charlotte se sentiu encabulada, apesar de gostar do comentário
dele. Ela continuou andando sem dizer nada, e Thomas prosseguiu
o assunto, notando a reação dela.
— Eu sinto dor, sim. De vez em quando.
Ela o olhou, os olhos brilhantes e cuidadosos.
— Sinto muito por isso. Pelo que eu ouvi, é bem incômodo.
— É insuportável, na verdade. Mas, por minha sorte, não
acontece com tanta frequência.
Thomas sorriu para ela, tirando de seus ombros qualquer culpa
por tocar naquele assunto.
— Me desculpe por tantas perguntas. Eu sou muito curiosa, o
senhor já deve ter percebido.
— Sim, percebi — Thomas respondeu rindo.
— Não farei mais perguntas. Se o senhor acha que há algo que
devo saber referente à guerra, sou toda ouvidos.
— Deixe-me pensar... — ele olhou para cima.
As verdades a seu respeito referentes à guerra eram inúmeras e
constrangedoras, mas Thomas não mentia e se Charlotte queria
saber sobre elas, ele certamente diria a verdade. Ela merecia saber
a verdade.
— Eu tenho pesadelos às vezes, mas creio que não sou violento.
Não sou uma pessoa amargada, mas também não sou animado ou
sorridente. Como lhe contei antes, não consigo definir minha
personalidade hoje em dia e a guerra... bem, não ajudou muito
nisso. Meus traumas são bem controlados, mas já aconteceu de eu
ficar nervoso ou agitado ao ouvir barulhos e por esse motivo eu
prefiro não estar em lugares muito cheios — ele pensou mais um
pouco. — Acho que é isso que faltava.
— Tudo bem, então — Charlotte sorriu, relaxada, sem parecer se
assustar com aquela lista de problemas dele.
— Se a senhorita quer me perguntar algo, fique à vontade. Eu
realmente não me importo, Charlotte.
Ela fez uma expressão pensativa encantadora.
— Só mais uma coisa, então — ela disse a ele.
— Diga.
— O senhor ronca?
Thomas arregalou os olhos, surpreso com a pergunta dela.
Entre pesadelos, personalidade sombria e possíveis ataques de
pânico, Charlotte estava preocupada com... roncos?
— Acho que não.
— Ótimo — ela fez uma expressão de alívio. — Estava
preocupada com isso. Eu tenho o sono leve, sabe, então isso é algo
muito importante a se considerar.
Enquanto Charlotte se adiantou dois passos na frente dele,
Thomas a observou com um sorriso bobo.
Adoravelmente irritante, essa Senhorita Hollth.
Í
CAPÍTULO NOVE

T .
Estava realmente muito quente naquela noite. Ele se deitou cedo,
afinal a caminhada até a vila exigiu bastante de sua perna e foi o
suficiente para deixar a região da pele bem irritada.
Mesmo assim, não conseguiu dormir. A lua estava bem grande
no céu, ele reparou olhando para fora da janela, e a luz branca
iluminava a maior parte do gramado sendo aquela razão suficiente
para que desejasse estar um pouco ao ar livre.
Thomas se levantou, colocou a prótese e desceu as escadas.
Aquela tarde com Charlotte tinha sido a melhor que passara em
muito tempo. Na verdade, não se lembrava de outra tarde tão
agradável. A impressão de que talvez eles parassem de implicar um
com o outro já havia adentrado sua mente após o café da manhã.
Charlotte se mostrava muito mais aberta e receptiva a conhecê-lo.
Ele ficou, inclusive, surpreso com a mudança de comportamento
dela. Aquela leveza os seguiu pelo resto do dia.
O que mais o surpreendia era que não havia acontecido nada de
extraordinário entre os dois. Eles simplesmente caminharam,
conversaram, riram, e somente aquilo bastou para que ele se
pusesse feliz.
Que estranha era a sensação de estar feliz. Talvez após tanto
tempo sem senti-la, Thomas esquecera por completo como
aproveitá-la. Parecia que não acreditava que era digno de tal
sentimento, mas ali, naquela tarde com Charlotte, alguma coisa o
fez crer no contrário e ele se sentiu em paz.
Thomas poderia perigosamente se acostumar àquele
sentimento.
Ele chegou até a porta de entrada e a abriu devagar, tentando
não fazer barulho. A brisa da madrugada que atingiu seu rosto foi
um alívio na temperatura quente que fazia e ele respirou fundo. Ao
virar-se olhando para o lado foi surpreendido por uma presença
feminina sentada no chão, no canto da varanda.
— Charlotte?
Ela se sobressaltou, surpresa.
—Thomas! Está tudo bem?
— Sim, estou ótimo — ele respondeu, sem graça. —É só que...
precisava de um ar fresco.
— Oh! Eu também. Está muito quente lá dentro.
Ele sorriu, mas permaneceu em pé, e Charlotte então perguntou:
— Por que não me faz companhia? Sente-se aqui.
Thomas acenou com a cabeça e se sentou ao lado dela, numa
curta distância. Ele esticou a perna que carregava a prótese e fez
uma careta.
— O que foi? Está doendo? — perguntou preocupada, notando a
reação dele.
— Não. A pele está apenas um pouco irritada — ele tentou
desconversar. — Não se preocupe.
— Por que não a tira? Não vai se sentir melhor se ficar sem a
prótese? — inqueriu, como se já estivesse totalmente acostumada à
situação dele.
Thomas hesitou um pouco.
— Sim, mas... não acho que seja apropriado agora.
Charlotte franziu as sobrancelhas.
— Por que não? Por minha causa?
Ele fez uma expressão concordando e ela sorriu levemente.
— Não seja bobo, Thomas. Eu jamais ficaria desconfortável com
isso. A não ser que você fique. Não precisa se forçar a nada.
Thomas não ficava desconfortável. Na verdade, ele já tinha se
adaptado tanto à prótese como pelo visual de sua perna como um
todo.
Comparado às sequelas dos muitos soldados que dividiram o
hospital de campanha com ele, sua cicatriz era uma obra prima. Ele
estava totalmente acostumado àquele fato. A única coisa era que...
bem, as pessoas não estavam. Todas as vezes que ele entrava em
algum lugar desconhecido, todos os olhos se viravam para o seu pé
falso. No começo, aquilo o incomodara grandemente, mas com o
tempo ele aprendera a relevar todos os julgamentos.
Mesmo assim, Thomas não parava de se surpreender com a
naturalidade de Charlotte ao lidar com a situação. Era fascinante
como ela o fazia se sentir confortável sendo apenas quem era.
Ele então afrouxou o espartilho e retirou a prótese e o pequeno
trapo que usava entre a peça e sua pele. Esfregou o lugar
delicadamente, apenas para aliviar a irritação e não se conteve em
suspirar baixo de alívio, algo que fez Charlotte sorrir.
— Bem melhor, não é mesmo?
— Sim. Muito — ele concordou.
— Me desculpe se foi a nossa caminhada que causou isso...
— Não se preocupe, Charlotte. Eu aproveitei muito nosso
passeio hoje. De verdade — Thomas respondeu, sincero.
Ela sorriu mais uma vez e apoiou as duas mãos no chão, atrás
de si.
— Está gostando daqui?
— Sim. É bem parecido com minha vila, mas você e sua irmã
são excelentes anfitriãs.
— Liz é uma excelente anfitriã. Eu sou um desastre!
— Mas quem me serviu um café da manhã completo hoje não foi
Liz.
— Não, mas ela deixou a maioria das coisas preparadas —
admitiu Charlotte, e Thomas riu.
— Entendi agora.
— Liz gosta dessas coisas. Ela se vira muito bem com várias
tarefas ao mesmo tempo. Na estalagem as atividades exigem isso.
É por isso que ela dorme tanto quando está em casa. Está sempre
exausta, minha pobre irmã.
— Mas a senhorita também trabalha muito, não?
— Sim, mas é diferente. Eu fico sentada a maior parte do dia,
mas sim, acho que também é cansativo.
Thomas apenas sorriu e Charlotte percebeu que ele estava
relaxado. Ele nem parecia aquele sujeito sério e de postura ereta
que chegara em sua porta dois dias antes. Ela estava
completamente certa quanto a ternura que vira em seus olhos, e por
sorte, Thomas agora parecia disposto a demonstrá-la sem muitos
receios.
— O senhor não é tão sério quanto demonstra.
Thomas se virou para ela, mas Charlotte continuou antes que ele
pudesse dizer qualquer coisa.
— Eu sabia disso. Vi em seus olhos que havia algo além do
sujeito arrogante e implacável que bateu em minha porta.
— Essa é sua opinião sobre mim? — ele disse, zombeteiro. —
Arrogante e implacável?
Ela concordou.
— E gentil e honrado. Por enquanto, pelo menos.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Estou melhorando, então.
— Ora, o senhor não é muito diferente comigo. Sei que me tem
como irritante e teimosa.
Thomas sorriu.
— Não nego. Mas também não vejo só isso.
— O que você vê, Senhor Baker?
Ele encostou as costas da parede da varanda.
— Até agora, creio que a palavra que mais a define é:
fascinante.
Charlotte corou.
— Isso certamente é um grande exagero.
Ele negou.
— Não é. A senhorita realmente me fascina.
Ela ficou sem palavras, mas sorriu.
— Se enxergou além de minha aparência, por que perguntou
sobre minha personalidade? — Thomas perguntou, intrigado, e
quando a timidez dela cedeu, Charlotte deu de ombros.
— Eu apenas queria saber sua opinião a seu respeito. Não deu
certo — ela riu.
Thomas apertou os lábios e coçou o braço.
— Sinto muito frustrar sua tentativa. Mas acredito que a
senhorita esteja vendo mais em mim do que realmente há.
Ela negou.
— Não. Acredito que eu esteja vendo exatamente o que há. Eu
não sou uma sonhadora, Thomas.
— Mas pode ser uma otimista. Não quero que se decepcione
mais adiante.
— Então eu posso lhe fascinar, mas não posso acreditar no que
vejo diante de mim?
— Não é isso, Charlotte. O fato de a senhorita me ser fascinante
é apenas algo que eu sinto. O que enxerga a meu respeito, por
outro lado, pode ser apenas uma impressão errônea de sua parte.
Quero que saiba quem sou, sem disfarces. A senhorita merece a
verdade.
Para um homem que estava tentando convencê-la a se casar
com ele, Thomas parecia não ter ressalvas em admitir suas
fraquezas. Ele realmente estava sendo sincero. Seu olhar
demonstrava isso.
Foi então que Charlotte entendeu que definitivamente Thomas
não mentiria para ela, fosse em palavras ou em atitudes, nem
mesmo para conquistar seu tão grande objetivo de desposá-la e
aquilo era muito, mas muito nobre de sua parte.
Por isso, Charlotte também decidiu que não queria mentir para
ele.
— Thomas, eu... devo confessar algo.
— Sim? — ele a olhou com atenção.
— Eu me senti muito à vontade com o senhor esta tarde. A
maneira como me contou de tudo o que aconteceu, respondendo
minhas inúmeras perguntas...
— Charlotte, já lhe disse que você tem todo o direito de saber
e...
— Eu sei, mas justamente por isso, eu também necessito ser
sincera a respeito de algo — ela confessou.
Ele a olhou curioso, percebendo que havia algo a mais a ser dito.
— A mudança de meu comportamento... Eu ouvi sua conversa
com Liz na noite passada.
Thomas arregalou levemente os olhos, mas antes que pudesse
mudar sua expressão, Charlotte continuou.
— Não se preocupe. Eu entendo por que não queria que eu
soubesse do efeito de minhas cartas.
— Entende?
— Sim. Eu sei que nossa situação poderia ser facilmente
confundida com uma história de amor, mas preciso que saiba que
eu também não acredito nisso.
— Oh.
Que surpresa era aquilo, de fato.
— Ainda assim, eu jamais imaginei que pudesse falar com
alguém através de minhas cartas da forma como você descreveu.
Aquilo me fez... bem, me encheu de compaixão. E não era justo eu
continuar me escondendo de você e te evitando.
— Eu apenas disse a verdade — Thomas deu de ombros.
Ela concordou.
— Eu sei e é por isso que devo te explicar o motivo de minha
relutância com nosso casamento.
Então era isso.
Havia, de fato, um motivo.
— Estou ouvindo.
Charlotte respirou fundo e começou.
— Thomas, quando eu me envolvi com Oliver, éramos muito
jovens. Eu sentia aquela sensação estranha na barriga e me sentia
bem ao seu lado. Estávamos juntos há dois meses e então ele
recebeu a carta de convocação e em seu desespero, me pediu em
casamento. Eu aceitei, mesmo com medo, e antes de ele partir
nós... bem, ficamos juntos. Intimamente.
Thomas sentiu um pequeno desconforto em imaginá-la com
Oliver de forma tão íntima, mesmo já tendo conhecimento daquele
detalhe. Sabia que não fazia sentido, mas ainda assim, não
conseguiu evitar aquele sentimento que era algo parecido com...
ciúmes?
— Parecia certo. Ele seria meu esposo e estava indo para uma
guerra. Eu pensei: por que não me entregar a ele?
— Sim, eu compreendo totalmente.
— O único problema é que foi aí que eu percebi que na verdade
eu não o amava. Não dessa forma.
O quê?
— Mas... eu não entendo — Thomas confessou, confuso.
— Sim. Isso mesmo que você ouviu. Eu percebi que não estava
apaixonada como pensava estava.
Charlotte parecia culpada, mesmo tentando disfarçar suas
emoções.
— Mas pelo que ele me contava e por suas cartas...
— Thomas, eu nunca disse nada a ele. Oliver estava indo para a
guerra! Que tipo de pessoa eu seria se confessasse a ele que não o
amava?
Charlotte chacoalhou a cabeça em negativa e Thomas não
conseguia desviar o olhar dela.
— Thomas, eu havia me comprometido com ele e eu cumpriria
minha promessa. Para mim o amor sempre foi algo muito abstrato e
não era o mais importante em uma relação. Foi por isso que
continuei escrevendo e esperando por ele. Eu sonhava com o dia
em que Oliver estaria em casa e nossas vidas finalmente
começassem. Absolutamente tudo o que eu fiz todos aqueles anos
foi esperar o retorno dele. E então o tempo passou e nada
aconteceu.
Thomas se pôs a pensar em como foram aqueles anos para
Charlotte. Ela basicamente parara de viver sua vida aguardando a
volta de Oliver.
— Um dia, as cartas dele pararam de chegar e eu fiquei sem
chão. Eu não sabia viver em um mundo sem o Oliver e pensar nisso
doeu muito, Thomas. Levei muito tempo tentando ao menos
processar os motivos de tudo aquilo ter acontecido. Quando
recebemos a carta oficial de sua morte, eu já tinha aceitado que ele
nunca voltaria para casa. E então, pensando em como seria minha
vida daquele momento em diante, eu entendi. Thomas, eu nem ao
menos tenho a certeza de que Oliver me amava dessa forma.
— O que quer dizer, Charlotte?
— Que talvez ele tenha pedido minha mão apenas por
desespero. Por amparo. Por ter um motivo para voltar.
Ela esperará por mim. Eu a obriguei a isso.
As palavras de Oliver ecoaram na mente de Thomas naquele
mesmo instante. Agora, tudo fazia sentido.
Ele encarou Charlotte, sabendo exatamente do que ela estava
falando.
— Eu tive que enfrentar essa realidade, Thomas. A vida sem
Oliver como meu noivo, e quando finalmente fiz isso, eu me senti...
— Livre — ele disse, e Charlotte olhou em seus olhos no mesmo
instante, concordando.
Thomas também deixara uma mulher em casa esperando por ele
quando partiu. Mas somente fizera isso por insistência dela, mesmo
que depois aquilo tivesse se tornado a esperança dele. Na
concepção que Thomas tinha da situação deles, Amanda não
merecia promessas de um futuro incerto. Ela merecia permanecer
livre.
Charlotte também merecia liberdade, mas Oliver a negara isso,
em seu desespero. E então, após todos aqueles anos esperando
por ele em vão, agarrada na honra de sua promessa, quando
finalmente ela conseguiu seguir em frente...
— E aí eu cheguei com minha promessa e te privei mais uma
vez da liberdade — Thomas concluiu e Charlotte não negou.
— Foi como se Oliver ainda dirigisse as rédeas de minha vida,
mesmo morto — ela confessou. — Eu sou um ser humano terrível
por me sentir assim, não sou? — perguntou ela, abaixando a
cabeça e Thomas não se conteve e riu.
Ele riu.
— Terrível? Charlotte, você é...
Ela ficou esperando-o terminar, atenta e ainda sem entender o
que era tão engraçado.
— Você é leal.
Ele não estava mais rindo, mas Charlotte levou um momento
para responder.
— Mas isso não anula o fato que...
— Para mim, nada é mais admirável do que a lealdade —
Thomas disse com os olhos azuis penetrando a alma dela.
— Por quê? — ela perguntou.
Aquela era uma ferida profunda que ele carregava, sem ter a
total certeza de que já estava cicatrizada. Mesmo assim, Thomas
sentia que precisava compartilhá-la.
E assim o fez.
— Eu era noivo, também — Thomas começou. — O nome dela é
Amanda. Nos conhecemos muito jovens e eu sempre fui apaixonado
por ela. Quando eu resolvi me alistar, ela quis se casar comigo, mas
eu me recusei. Não achei certo comprometê-la não sabendo se
voltaria. Mesmo assim, ela jurou me esperar. Jurou que me amava e
me fez prometer que voltaria para ela.
— E o que houve, então?
— Um ano depois, eu recebi uma carta. Ela ia se casar com um
rapaz da vila. Estavam apaixonados e ela não poderia cumprir sua
promessa a mim.
Apesar de ele permanecer firme contando a ela aquela história,
era evidente a mágoa que a atitude de Amanda causara em
Thomas.
Charlotte então compreendeu o porquê de ele ser tão
determinado em cumprir sua palavra. Thomas havia sido ferido
profundamente por alguém que não fez o mesmo por ele.
— Você realmente a amava?
— Sim. E então, não mais. É por isso que deixei de acreditar no
amor. Não faz sentido algo ser tão instável — ele deu de ombros e
olhou para ela. — Com base na minha história, a senhorita
consegue ver o que fez?
Quando Charlotte não respondeu, ele continuou.
— A carta de Amanda quase me matou, Charlotte. Eu perdi
minha esperança com as palavras dela. Enquanto você, mesmo
sabendo que não amava Oliver, cumpriria sua promessa e se
casaria com ele. Suas cartas chegavam constantemente e era nítido
em suas palavras a preocupação que sentia.
— Eu não fiz nada disso por obrigação.
— Eu sei. E é isso o mais admirável. Você é leal! Tem ideia do
que isso significa?
Os dois suspiraram e ficaram quietos por um momento.
— Eu entendo agora o porquê o senhor é tão determinado a
cumprir sua palavra — ela disse —, mas eu precisava que
compreendesse minha resistência. Não é o senhor o problema. De
fato, acho que qualquer mulher em seu santo juízo seria agraciada
em tê-lo como esposo. Eu apenas... gostaria de ter uma escolha.
Uma escolha livre.
Após alguns momentos de silêncio e a falta de mudança de
expressão dele, Charlotte perguntou, desanimada:
— O que está pensando, Thomas?
Ele inspirou fundo.
— Estou pensando que terei que deixar minha insistência de
lado caso a senhorita não se convença a se casar comigo.
Ela franziu as sobrancelhas e ele continuou, em seguida.
— Não me casar com a senhorita não era uma opção. Agora é.
Ela se espantou com a fala dele.
— Está dizendo que não quer mais...
— Minha promessa continua intacta, Charlotte. É só que... caso
você decida não se casar comigo, não insistirei. Não posso.
Charlotte se mostrou surpresa com aquela afirmação. Thomas
estava renunciando a sua promessa por ela?
— Mas e quanto à sua consciência?
Thomas então sorriu e mais uma vez pegou na mão dela.
— Ela ficará pior caso eu seja o responsável por sua infelicidade.
Já te privaram de sua liberdade uma vez. Eu não farei isso com a
senhorita novamente.
— Mas o senhor disse que deve sua vida a Oliver.
— Mas também a devo a você. Porque se não estivesse tão
determinado a encontrá-la, Deus sabe o que seria de mim hoje em
dia.
Charlotte sentiu um arrepio prazeroso em seu interior com as
palavras dele.
— Se a senhorita decidir se casar comigo, eu serei o melhor
marido possível. Te darei segurança e conforto e você pode ter
certeza de que nunca lhe serei infiel ou faltarei com a verdade. Mas
se não for assim, me cabe apenas aceitar sua decisão. Não insistirei
em fazê-la mudar de ideia. Eu estava disposto a isso, mas não vou
sacrificar sua honra para manter a minha.
As palavras dele flutuavam ao redor dela.
— Mas eu estou aqui conforme prometido e não vou embora a
não ser que você me peça isso.
Charlotte nem sabia o que dizer. Nunca, em toda a sua
existência, alguém tinha lhe dado tamanha liberdade de escolha.
Aquelas palavras dele eram um voto. Um voto a ela, terminasse
aquela história em casamento ou não.
Olhando nos olhos azuis dele, ela viu verdade. Charlotte não
conseguia identificar exatamente quais eram todas as emoções ali
presentes, mas pela primeira vez em sua vida ela se sentia
compreendida por completo.
E tudo pelo homem da qual ela, dois dias antes, não queria nem
receber em sua casa.
Thomas não era nem de perto a pessoa que Charlotte pensou
que fosse. A cada novo momento com ele, ela descobria um sujeito
completamente humano e sensível que, embora frágil, ainda assim
demonstrava uma força impressionante.
E ali, quando Thomas prometeu deixá-la totalmente livre de sua
promessa em desposá-la, pela primeira vez Charlotte pensou que
rejeitá-lo não seria tão fácil como imaginava.
Í
CAPÍTULO DEZ

N , T
pequena caminhada na região. Tinha feito disso sua rotina matinal e
precisava admitir que aqueles dias na casa das Hollth lhe
agradavam imensamente.
Ali, ele não tinha preocupações ou anseios. Tanto Charlotte
como Elizabeth o tratavam como alguém que já conheciam há
vários anos. Como alguém familiar. Qualquer ressalva que Thomas
tivera em relação ao dividir o teto com Charlotte caiu por terra e ele
aproveitava cada minuto daquela comodidade. E ela, ele percebeu,
também se sentia à vontade em sua presença, especialmente após
a noite na varanda.
A sensação de surpresa ainda continuava em seu ser.
A conversa que tivera com Charlotte sobre sua relutância em
aceitá-lo o tocou profundamente. O fato de ela ser tão sincera
quanto a seus sentimentos e receios lhe encheu de compaixão, e ao
mesmo tempo, de vergonha.
Até então, ele apenas acreditava que ela estava sendo uma
menina orgulhosa e um pouco infantil ao rejeitar sua proposta. Na
verdade, Thomas pensava que Charlotte deveria é estar agradecida
por sua atitude, afinal ele chegara para resolver todos os problemas
que ela tinha.
Ao saber que o sentimento dela não era relacionado à sua
pessoa, mas sim à própria Charlotte, Thomas conseguiu ver o quão
tolo fora em seus julgamentos. Charlotte não queria nada além de
algo que lhe fora negado todos aqueles anos: a liberdade de
escolha. De poder escolher a pessoa com quem se casaria, sem
pressão, desespero ou pena. Por muito tempo, ela se manteve fiel e
leal às promessas que fez a Oliver, mesmo não o amando. Mas
agora, com tudo o que passara, Oliver estava morto e ela estava
certa ao pensar que não era justo que ele continuasse ditando sua
vida mesmo além do túmulo.
E assim, naquela confissão de sentimentos dela, Thomas
decidira passar por cima de suas próprias promessas. Que tipo de
homem ele seria se honrasse completamente o amigo morto e
ignorasse a recompensa que merecia a lealdade de Charlotte? Era
verdade que fora a promessa feita a Oliver que o movera todos
aqueles anos e Thomas nunca vacilou em seu propósito de cumpri-
la. Mas antes, ele não conhecia Charlotte. E agora que a conhecera,
tudo era diferente.
Thomas preferia carregar o fardo de uma promessa não
cumprida a ser responsável pela infelicidade dela. Por isso, por mais
que doesse nele caso Charlotte não o aceitasse como marido — e
ele desconfiava que essa dor viria não somente pela promessa em
si —, ela teria toda a liberdade que sempre desejara e Thomas
respeitaria sua decisão.
Uma mulher honrada merecia tal ato. Merecia o mundo. E se
Charlotte permitisse, Thomas lhe daria o mundo. Mas somente se
ela o escolhesse.
Ele voltou para a casa no meio da manhã e não havia ninguém
na sala. Olhando em volta, Thomas se lembrou que Charlotte lhe
dissera que passava os dias na sala de costura.
Ele não deveria incomodá-la, mas também não queria passar o
tempo sozinho. Os últimos dias já tinham sido mais solitários, com
Charlotte e Elizabeth trabalhando o dia inteiro e ele as encontrando
somente no horário do jantar. Como era possível ter se acostumado
tanto a ter alguém para conversar mesmo após tão pouco tempo?
Lembrando daquele primeiro dia que passaram juntos, parecia que
de certa forma, ele sentia falta da companhia de Charlotte.
Num impulso, Thomas se dirigiu até a porta da sala de costura,
deu duas batidas na madeira e a abriu.
— Charlotte? — Thomas a chamou, com a porta entreaberta.
— Thomas? — Charlotte perguntou, surpresa e franzindo as
sobrancelhas.
Ela estava debruçada na mesa de madeira surrada, medindo um
pedaço de tecido com uma fita. Seu cabelo estava preso em um
coque simples e ela estava descalça, com a aparência típica de
quem já trabalhara por muitas horas, mas ainda tinha muito o que
fazer.
Ainda assim, Thomas a achou tremendamente linda.
— O que faz aqui? — ela deu um sorriso sincero a ele.
— Nada, eu só... Te atrapalho, certo?
— Não! Não seja bobo. Eu estava apenas concentrada.
— Muito trabalho?
— Um pouco. Com o fim da guerra, hoje em dia há muito mais
eventos sociais e as pessoas precisam de reparos mais
frequentemente.
Ele concordou levemente com um aceno.
— Precisa de algo? — Charlotte quis saber, notando que
Thomas parecia um pouco perdido e encabulado.
— Não. Eu apenas estava de passagem e pensei em
cumprimentá-la. Não nos vimos muito nos últimos dias.
O rosto de Charlotte foi tomado por uma expressão pesarosa.
— Oh, eu sei. Me perdoe por isso. Mas eu não estou mais te
evitando, eu juro! — ela riu. — É que realmente estou atolada de
serviço.
Ele fez um fez um gesto com a mão, tranquilizando-a.
— Eu sei. Não se preocupe. Posso ajudá-la em algo?
Charlotte o olhou ressabiada.
— Você não sabe costurar.
Aquilo não era uma pergunta.
— Isso é verdade.
— Você pode me fazer companhia. Vai ser bom conversar com
alguém. Estou aqui desde cedinho.
— Claro, com muito gosto.
Ela sorriu e apontou para uma cadeira que estava perto de sua
mesa, fazendo um gesto para que ele se sentasse. Depois,
Charlotte alcançou uma linha e uma agulha que pairavam sobre a
mesa. Num movimento natural, sem qualquer esforço, a linha estava
dentro da agulha, e Thomas se surpreendeu com aquilo.
— Minha nossa! Como fez isso?
— O quê?
— Essa manobra rápida para enfiar a linha na agulha.
Charlotte achou o comentário engraçado.
— Eu só enfiei a linha na agulha, oras.
— Você é muito boa nisso. Eu me lembro que era a parte que
meu pai mais reclamava em fazer quando tentava ajudar minha
mãe. Ela era rápida, mas não tanto. Os dois tinham que parar e
observar bem de perto e quase nunca acertavam de primeira.
— Seu pai ajudava sua mãe a costurar?
Thomas sorriu ao se lembrar da cena.
— De vez em quando. Na verdade, acho que ele mais
atrapalhava do que ajudava. Mas era uma forma de passarem
tempo juntos.
Charlotte se comoveu pensando em como Thomas deveria sentir
falta deles.
— Para mim é natural. Nunca tive dificuldade.
Thomas arregalou levemente os olhos.
— É impressionante.
Ela inclinou a cabeça para o lado.
— Você já tentou fazer isso?
— Não.
— Quer tentar?
Thomas abriu a boca, e então a fechou.
— Tudo bem.
Charlotte sorriu e pegou outro pedaço de linha e uma agulha que
estava desocupada. Ela se aproximou e mostrou os itens a Thomas.
— Vou mostrar devagar como faço.
Ela usou uma mão para ajeitar a linha, mas antes de enfiá-la na
agulha que se encontrava firme e em posição vertical, Charlotte a
levou à boca.
Primeiro, ela umedeceu os lábios com a língua, suavemente.
Então, o pequeno pedaço de linha tocou a boca dela, e Charlotte,
concentrada, o colocou sem demora dentro da casa da agulha.
Thomas estava hipnotizado naquele simples ato. Foi como se
cada fibra de seu ser se acendesse e o informasse de que
Charlotte, naquela aparência tão comum e rotineira, era a mulher
mais sensual e atraente que já tinha contemplado.
— Viu como é simples? — ela perguntou a ele.
Ah, eu vi muito bem.
— Parece ser — ele pigarreou, tentando disfarçar o tremor que o
percorria. — Deixe-me tentar.
Charlotte entregou os itens a ele, virando as costas para voltar
ao trabalho.
— Talvez você não acerte de primeira, mas tenho certeza de que
conseguirá. Eu faço isso o dia inteiro, praticamente.
Thomas respirou fundo, sentindo que aquele comentário não
tinha ajudado em nada a sua excitação. Ele imaginou o movimento
sensual dos lábios de Charlotte, umedecendo a linha uma e outra
vez, durante todo o decorrer do dia.
Ele balançou a cabeça antes que seu corpo reagisse de forma
incontrolável e passou a se dedicar à tarefa de enfiar a linha na
agulha.
Tentou repetir o que ela fizera, sem sucesso. Ele continuou
insistindo, olhando com os olhos apertados para o pequeno objeto
de metal em sua mão. A linha sempre parecia que entraria, mas no
final, acabava dobrando e Thomas tinha que começar de novo.
— Não se cobre muito, querido — disse Charlotte, com um
sorriso zombeteiro. — Aqui, troque de linha. Essa já está muito
úmida.
Thomas aceitou o novo pedaço de linha e recomeçou suas
tentativas. Após alguns minutos, soltou um ruído de irritação.
— Isso é impossível, Charlotte!
— Claro que não é impossível — ela retrucou.
— Não cheguei nem ao menos perto — Thomas continuou
reclamando.
— Humpf — Charlotte revirou os olhos, mas sorriu. — Você está
parecendo a Elizabeth. Cada vez que ela tem que costurar algo, é
um drama sem tamanho.
— Elizabeth fazendo drama? Nunca imaginaria.
— Ela não faz, na maior parte das coisas. Mas costurar sempre
a deixa muito irritada.
Thomas apertou os olhos novamente, concentrado na agulha.
— Que bom que vocês duas gostam de fazer coisas diferentes.
Assim uma ajuda a outra.
Charlotte terminou de cortar o tecido e voltou a se sentar em sua
cadeira, pronta para começar a costurar.
— Sim. Mas Elizabeth é boa em tudo o que faz. Ela é do tipo que
quando pega a responsabilidade de algo para si, não brinca em
serviço.
— Eu gosto de ver o quanto vocês são unidas. Percebe-se à
distancia a cumplicidade que têm.
— Sim — Charlotte sorriu com ternura. — Elizabeth não somente
é minha irmã como também minha melhor amiga e eu lhe devo
muito, Thomas. Ela já sacrificou muitas coisas por mim.
Thomas desviou o olhar da agulha e franziu a sobrancelha.
— Como o quê?
Charlotte hesitou por um momento antes de responder.
— Quando Oliver foi convocado, meu pai já demonstrava que
estava doente. Nós duas já trabalhávamos para ajudar a sustentar a
casa, mais a convocação dele mudou tudo. Elizabeth teve que abrir
mão de alguém que amava pelo nosso bem-estar. E no fim, não
adiantou muita coisa. Ela era jovem e... — Charlotte pensou um
instante. — Desculpe, eu não me sinto no lugar de contar-lhe tudo,
mas acredite quando digo que ela se sacrificou pela nossa família. E
nunca, nem mesmo uma vez, ela reclamou disso.
— Foi por isso que ela não se casou? — Thomas perguntou,
sem julgamento.
— Sim. Elizabeth nunca mais foi a mesma depois de tudo o que
passou. Ela fechou seu coração completamente e tenho certeza de
que não se perdoa por ter feito o que fez. Eu me sinto culpada, de
certa forma. Se ela tivesse conversado comigo sobre sua decisão...
— ela deu um suspiro triste — Mas na época, ela pensou que por
ser a mais velha, era sua responsabilidade assumir o fardo todo de
nossa situação sozinha. E quando se deu conta de tudo, era tarde
demais.
Thomas não precisava saber os detalhes da história para
entender que Elizabeth colocara a família por cima de seus próprios
interesses. Ele mesmo fizera isso, quando se alistou. O peso de ser
o irmão mais velho era exatamente da forma que Charlotte
descrevia.
Assim como Liz abriu mão do que, pelo que Thomas entendera,
era o amor de sua vida, ele também deixou para trás todos os seus
planos para prover pela família. E assim como ela, Thomas jamais
reclamaria sobre sua decisão. Na realidade, era uma honra saber
que fizera de tudo por seus entes queridos. Mas isso não deixava o
fardo das consequências de suas escolhas mais leve.
Thomas apertou os lábios e voltou a se concentrar na agulha em
suas mãos.
— Não se preocupe, Char. Tenho certeza de Elizabeth não te
culpa por nada.
Charlotte continuou costurando o pedaço de tecido.
— Eu sei que não. Mas eu gostaria que ela fosse feliz, sabe? Ela
certamente merece isso.
Thomas sorriu ao sentir o amor presente nas palavras de
Charlotte. Ele então pegou a linha de novo, repetindo o movimento
que fizera incansavelmente nos últimos minutos e, para sua
surpresa, a linha entrou na agulha facilmente.
Thomas arregalou os olhos e se levantou rápido, animado.
Chegando bem perto de Charlotte, ele parecia uma criança
empolgada.
— Consegui! Está dentro!
Charlotte riu com a alegria dele.
— Ora, veja! Eu não disse? Ninguém negaria que tem anos de
experiência — mas ele percebeu o tom zombeteiro e divertido dela.
— Não me provoque, Charlotte. Isso foi pior que correr
quilômetros.
— Eu sei. Estou sendo sincera.
Ele estreitou os olhos e fez uma careta, enquanto Charlotte
continuou admirando a simples felicidade dele em colocar a linha
dentro de uma agulha. Se ela já possuía algum tipo de admiração
por ele, naquele momento tal sentimento se multiplicou. Era o
mínimo possível para quem se alegrava com algo tão simples.
Eles ficaram na sala de costura conversando e trabalhando até
quase anoitecer, parando apenas para comerem algo no meio da
tarde. Quando subiram as escadas, pararam na porta do quarto
dele, e Thomas encostou as costas no batente.
— Obrigada pela ajuda hoje — ela disse, sorrindo.
— Eu não fiz nada, na verdade — Thomas respondeu,
encabulado.
— Sua companhia fez. Falo sério.
Enquanto ele abria um sorriso sincero, Charlotte continuou.
— Eu gosto muito de sua companhia, Thomas. Você faz com
que me sinta à vontade em ser eu mesma.
Ele sabia exatamente do que ela estava falando, mas para sua
surpresa não conseguiu responder. Ao invés disso, fitou
profundamente os olhos verdes dela.
Olhando-o de volta, Charlotte se inclinou a ele e o beijou
levemente nos lábios. Thomas ficou tão surpreso que não reagiu, e
quando ela se afastou daquele beijo breve e carinhoso, ele ainda
lidava com as batidas pesadas que tomavam seu peito.
Após isso, Charlotte sorriu travesso e lhe deu as costas,
deixando-o com a sensação de que a relação deles estava fazendo
um ótimo progresso.
Í
CAPÍTULO ONZE

M C
no sono. Ela estava cansada por trabalhar o dia todo, mas nem
mesmo o cansaço superava o grande incômodo do calor que fazia.
Decidiu ir até a cozinha tomar um copo de água, e quem sabe,
mais uma vez, aproveitar um pouco da brisa noturna. Caminhou
pelo corredor em silêncio e tanto a porta do quarto de Elizabeth
como a de Thomas estavam fechadas. Ela sabia que a irmã dormiria
como uma pedra — tinha feito dois turnos dobrados seguidos na
estalagem —, mas nas últimas noites a porta de Thomas nunca
esteve totalmente fechada e Charlotte estranhou aquilo.
Respeitando a privacidade dele, ela desceu as escadas
cuidadosamente para não fazer barulho e foi direto para a cozinha,
passando pela sala de estar, em silêncio. Pegou um copo de dentro
do armário, serviu sua água e encostou alguns minutos no balcão. O
sentimento que habitava em seu peito era o de tranquilidade. E
talvez algo mais que isso. Algo como felicidade.
Que dia maravilhoso tinha sido aquele ao lado de Thomas. Ela
estava tão atarefada nos últimos dias que mal notara que os dias se
passaram e Thomas e ela tinham passado pouquíssimo tempo
juntos.
Aquilo realmente era uma pena.
Não somente pelo objetivo principal de conhecê-lo para tomar
sua decisão, mas porque Charlotte verdadeiramente gostava da
companhia de Thomas.
Ao abrir seu coração a ele em relação a seus sentimentos por
Oliver, o modo como Thomas a compreendeu foi algo que jamais
esperou. Não houve julgamento ou culpa. Ele a entendeu em todos
os seus dilemas e, mais do que isso, ele a reconheceu como
alguém leal. E aquilo era fascinante, porque Charlotte também
pensava ser leal. Lealdade era uma virtude muito admirada por ela,
inclusive.
Ele então apareceu de surpresa na sala de costuras e ela não
viu o tempo passar a seu lado. Tudo de novo que conhecia nele a
encantava, Charlotte se deu conta. A alegria que Thomas sentiu ao
conseguir enfiar a linha na agulha, como se fosse um menino
deslumbrado, o respeito que ele demonstrou em relação à história
de Elizabeth, sem fazer perguntas indiscretas...
Thomas era um bom homem. Um homem do qual muito
possivelmente valesse a pena escolher. Ao pensar nisso, ela sorriu
para si, satisfeita. Que alívio era ter a sensação de escolha.
Ela terminou de beber a água em silêncio e ao retornar à sala de
estar, tomou um susto tão grande que quase gritou.
Thomas estava sentado no chão, encostado em uma cadeira,
com uma expressão profunda de dor.
— Tom? Tom, meu Deus, o que houve? — ela perguntou
preocupada, se abaixando junto a ele.
Há quanto tempo ele estava ali sozinho no chão? E como ela
não reparou nele antes, ao passar pela sala?
Ele sorriu, sem graça.
— O que aconteceu? Você caiu?
— Não. Eu mesmo me sentei. Não se preocupe — ele tentou
disfarçar a expressão de dor em seu rosto.
— Mas o que houve?
— Eu desci para tomar um pouco de água e resolvi descansar —
ele mentiu.
Charlotte o avaliou novamente e percebeu que ele não utilizava
prótese. Até mesmo a postura de Thomas indicava que ele sentia
uma grande dor.
— É a dor, não é?
Ele não disse nada no início, e ela percebeu seu
constrangimento.
— Thomas, você não precisa ter vergonha disso. Eu só quero
ajudá-lo.
O tom utilizado por ela era doce e cuidadoso, e ele não se
lembrava da última vez que alguém o tratara daquela forma tão
gentil.
— Começou a doer de repente — Thomas admitiu —, mas está
insuportável. Não sei o que fazer.
Charlotte mordeu o lábio inferior, sem saber como agir.
— Não faz sentido. Não há nada ali para doer — disse ele,
entredentes.
— Eu gostaria de poder te ajudar — Charlotte confessou,
pesarosa.
Thomas a olhou com carinho.
— Obrigado, Char — ele fez uma careta. — Eu sei que isso
parece loucura, mas acho que dói mais do que se meu pé realmente
estivesse ali. É como se... — mais um gemido — se meu corpo não
entendesse que não há mais nada para doer.
Aquilo fez Charlotte pensar.
— Talvez... talvez seu corpo realmente ainda não entenda a
perda do pé. Poderíamos tentar fazê-lo perceber isso.
— Como? — ele perguntou fazendo outra careta. — Estou
olhando para ele e vejo que não há nada ali. Se isso não o faz
entender, o que fará?
Charlotte pensou um instante e se levantou.
— Já sei o que podemos tentar. Eu volto já.
Thomas fechou os olhos quando a dor se intensificou e inclinou a
cabeça para trás, nem se dando conta do tanto de tempo que ela
levou para retornar ao lugar que estava. Quando ele abriu os olhos
novamente, Charlotte segurava um pequeno espelho perto do fim de
sua perna.
— Eu li uma vez em um manual de bons modos que muitas
vezes só conseguimos visualizar algumas coisas quando olhamos
no espelho. Se aumentamos de peso ou se estamos com falta de
saúde por ficarmos pálidos demais, esse tipo de coisa. Era algo a
respeito de como uma dama deve sempre estar atenta à aparência
e de como o espelho nos ajuda a não passarmos vergonha. Talvez
possamos tentar essa estratégia no seu caso. Olhando o reflexo da
sua perna no espelho, você verá de uma forma diferente que não
tem nada ali, então seu cérebro pode entender que não há motivo
de dor.
Thomas nunca ouvira falar em tal coisa, mas pensou que aquilo
era brilhante. A ideia de Charlotte fazia todo o sentido e com a dor
que sentia, qualquer tentativa de melhora era válida.
Ele fixou o olhar diretamente no reflexo do pé ausente por alguns
minutos, mas a dor não diminuiu nem um pouco.
— Está funcionando? — Charlotte perguntou, ansiosa.
Ele apenas balançou a cabeça em negativo.
Charlotte colocou o objeto no chão e pensou mais um pouco.
— Vou tentar algo na mesma linha de raciocínio, então.
Consegue sentir isso? — perguntou, pondo sua mão no lugar vazio
em que deveria estar o pé dele.
Thomas a olhou duvidoso.
— O que está fazendo?
— Estou tocando no vazio e então tocarei em você. Quem sabe
isso não ajude e...
— Char, creio que só me resta esperar que a dor passe.
— Tom, por favor. Me deixe tentar cuidar de você.
Deus sabia o quanto ele queria que ela cuidasse dele e Thomas
percebeu aquilo somente naquele momento. Era tudo o que queria,
na realidade. E se Charlotte estava ali, disposta a ajudá-lo, ele
certamente aceitaria o gesto dela de bom grado.
Ele então concordou com a cabeça e Charlotte voltou a
perguntar.
— Consegue sentir isso?
— Não — Thomas respondeu.
— Muito bom. E agora, você sente? — ela tocou a perna dele
novamente.
— Sim, aí eu sinto.
— Ótimo. Isso mesmo. Consegue sentir? — ela voltou a tocar o
espaço vazio.
— Não. Nada.
Ela repetiu aquilo algumas vezes, com ele sentindo o toque
delicado da mão dela na base de sua cicatriz da amputação até que
Charlotte se aproximou um pouco, ficando ao lado dele.
— E aqui você sente? — Charlotte perguntou de novo, dessa
vez tocando na lateral de seu braço.
— Sim.
Nesse momento, os olhos de Thomas encontraram os dela.
Charlotte se manteve presa em seu olhar por alguns segundos,
antes de erguer a mão que tocava o braço e pousá-la na lateral do
rosto dele.
— E aqui, você sente? — ela voltou a perguntar, baixinho.
Thomas apenas chacoalhou a cabeça em positivo, e pôs a sua
mão sobre a dela. Seu coração se acelerou e naquele momento, ele
não se lembrava mais da dor e desconfiava que Charlotte também
se esquecera do porquê estavam ali.
Sem desviar o olhar, Thomas colou seus lábios nos dela,
lentamente, simplesmente porque era certo. Charlotte ergueu a mão
livre e a apoiou no peito dele, se entregando igualmente ao
momento.
Diferente do primeiro beijo casto que trocaram, Thomas abriu os
lábios dela com a língua delicadamente. Ele queria sentir o gosto
dela de forma verdadeira e sem pressa. Passara a tarde toda com a
imagem de Charlotte umedecendo a linha para passá-la pela agulha
e se perguntando como seria o toque da língua dela na sua.
Quando Charlotte o beijou de surpresa, seu espanto foi tanto que
ele não soube o que fazer. E Thomas se arrependera amargamente
da falta de atitude que tivera. Mas ali, sentado no chão em meio à
dor insuportável de seu pé amputado, ele não se sentia nada
apático.
Ele sentia paixão, desejo.
E ainda assim, algo muito mais profundo que não conseguia
nomear.
O melhor de tudo é que estava claro que Charlotte queria a
mesma coisa, pois respondia a seus avanços de forma aberta e
quente. As mãos dele então tomaram seu rosto, trazendo-a para
mais perto, sentindo seu calor com vontade.
Ele deslizou sua boca nas bochechas de Charlotte, e então
alcançou o lóbulo da orelha, mordiscando-o e fazendo-a dar um
gemido bem discreto. O cheiro dela era suave, como lavanda.
Thomas não tinha pressa em beijá-la, e fazia tudo lentamente,
aproveitando e se deliciando. Não conseguia se lembrar da última
vez que beijara uma mulher daquela forma, mas qualquer que fosse
o tempo, a espera tinha valido a pena. Seu peito estava quente por
dentro, palpitando forte e ao voltar seus lábios para os dela, ele
sentiu sua pele inteira se arrepiar.
Quando eles se afastaram, Thomas encostou a testa na dela, e
Charlotte respirou fundo, ainda de olhos fechados.
— Isso foi...
— Sim. Foi — ele concordou.
— Sua dor está melhor? — ela perguntou, sem se mexer.
— Que dor? — ele disse, e ela riu.
Na verdade, a dor de Thomas já estava mesmo quase
imperceptível. Foi como se beijo de Charlotte funcionasse como um
remédio potente e eficaz.
Eles tomaram uma distância e ele a achou ainda mais linda do
que o habitual, mesmo à luz de uma única vela.
— Como pode eu já me importar tanto com você após tão pouco
tempo? — Charlotte confessou, fazendo um carinho em seu rosto e
ele gostou muito do que ouviu.
Porque se sentia igualmente afeiçoado a ela.
— Não gosto de vê-lo com dor.
— Estou bem. De verdade. Obrigado, Char.
Charlotte deu um sorriso sincero.
— Consegue subir, então?
— Sim. Já consigo.
— Vamos lá. Eu te acompanho.
Eles subiram as escadas juntos, na medida do possível.
Charlotte subiu na frente e Thomas logo a alcançou, saltitando como
estava acostumado. Ela observou a habilidade dele naquilo e se
perguntou o que ele teria passado para agir tão naturalmente frente
àquela situação.
Chegando à porta do quarto dele, Thomas sorriu e a abriu.
— Me desculpe por tudo.
— Você não precisa passar por isso sozinho — Charlotte disse
baixinho, olhando para ele.
Ele suspirou.
— Eu agradeço, Charlotte, mas não quero me acostumar.
Ela franziu as sobrancelhas, sem entender.
— Não quero estar acostumado a esse tipo de cuidado caso
você resolva não se casar comigo.
— Oh. Entendo — ela respondeu e pensou que deveria impor a
si mesma limites similares.
Ele sorriu, entendendo que Charlotte compreendera sua fala,
mas antes que entrasse no quarto, ela exclamou:
— Mas tenho que confessar algo.
Thomas olhou para ela, curioso.
Ela ficou na ponta dos pés e deu um beijo leve na bochecha
dele.
— Devo admitir que está cada dia mais difícil recusar essa
proposta — e então sorriu. — Boa noite, Thomas.
Ele observou Charlotte se afastar e se deu conta de que a
afirmação dela o fez imensamente feliz.
Í
CAPÍTULO DOZE

N , T -
ouvindo as vozes das irmãs no andar de baixo da casa. Ele não
sentia fome e pensou em se deitar mais cedo do que de costume,
mas como o sono não chegava, resolveu descer para conversar um
pouco com Elizabeth e Charlotte.
Após o episódio da dor de seu pé amputado, ele se sentiu mais
cansado do que o normal e como sabia que Charlotte tinha muito
trabalho a fazer, não a incomodou no ateliê.
Thomas pensou em Charlotte o dia todo. Durante todos aqueles
dias hospedado na casa dos Hollth, ele não tinha muitas ocupações,
e diferente de como eram os dias quando se recuperava de seus
inúmeros ferimentos, Thomas não sentia dores insuportáveis ou
precisava se esforçar com a reabilitação. Por isso, ele se sentia,
pela primeira vez em muitos anos, em paz. E essa paz vinha, em
grande parte, da própria Charlotte.
Era estranho como eles estavam se dando bem, considerando
os atritos entre os dois quando se conheceram. Com ela, Thomas
sentia que não precisava fingir, fosse algo bom ou ruim. Era como
se Charlotte tivesse desmontado os muros que ele passou todos
aqueles anos construindo com os terrores da guerra.
Não que fosse sua intenção se tornar contido daquela forma.
Não era. Mas Thomas não tivera controle sobre tudo o que lhe
acontecera e conforme as perdas da sua vida aumentaram, se
fechar foi o que o manteve vivo. E, de certa forma, seguro.
Thomas se lembrava de como era quando mais jovem, antes de
se juntar para o exército. Ele costumava ser um rapaz calmo e
singelo, sem nenhuma preocupação além de tocar a vida da
maneira mais simples e honesta possível. E então, ano após ano,
dor após dor, ele perdeu tudo o que conhecia de si. Olhando no
espelho, era como se Thomas visse apenas uma casca, algo oco e
sem conteúdo. Apenas uma coisa o mantinha firme: a honra e
propósito diante da promessa feita a Oliver.
O homem que surgiu na casa das Hollth dias atrás não fazia
ideia de quem era, mas Charlotte pareceu não ter dificuldade em
enxergar parte da essência dele. E ela foi certeira, em todas as suas
suposições. Irritantemente adorável, por sinal. E, para sua
satisfação, Thomas descobriu que ela também não precisava fingir
com ele.
Era como se eles se entendessem. Verdadeiramente. E parecia
que aquele entendimento não se aplicava somente para conversas.
Thomas sentiu seu corpo esquentar pensando no beijo que dera
em Charlotte, na noite anterior. Agora que já sabia a sensação de
beijá-la, Thomas queria mais. Queria senti-la e prová-la de novo. E
de novo. E de novo.
Que falta sentia de desejar daquela forma uma mulher, após
tantos anos de escuridão. De querer saber todas as suas curvas e
sabores, acariciá-la e ouvi-la gemer seu nome. E por mais incrível
que pudesse parecer, Thomas não se sentia inseguro ao imaginar
envolvendo-se com ela, nem mesmo ao pensar nas inúmeras
marcas que carregava em seu corpo. Nem isso ele precisava
esconder de Charlotte. Ela não o deixava de forma alguma
constrangido e mais, não permitia que se sentisse assim.
Que mulher extraordinária ela acabou se mostrando, de fato.
Caso fosse a decisão de Charlotte não se casar com ele, mesmo
com todo o desconforto que tomava sua mente ao considerar tal
possibilidade, Thomas podia afirmar que ainda que não pudesse
adentrar e transformar a vida dela, Charlotte certamente, apenas
naqueles poucos dias, transformara a dele.
E ele desconfiava talvez nunca poder agradecê-la e retribuí-la
em tamanha proporção.
Thomas desceu as escadas e, se dirigindo para onde estavam
as duas irmãs, percebeu um pequeno aumento no tom de voz da
conversa vinda da cozinha.
— Eu não vou a baile nenhum! Já falamos sobre isso — afirmou
Elizabeth, com a vassoura na mão.
— E por que não? — perguntou Charlotte, inconformada. — É
um dos primeiros eventos em que todos estarão bem-humorados. A
guerra acabou, podemos seguir nossas vidas e...
— Eu não vou a baile nenhum! — repetiu ela, sacudindo a
vassoura e quase acertando sem querer Thomas, que entrara no
cômodo naquele momento.
Ele cambaleou um pouco para trás, assustado, mas rindo.
— Meu Deus, Thomas. Me desculpe. Eu te atingi?
— Não se preocupe, Liz. Já fui atingido por coisas piores — ele
riu. — Mas qual o motivo de tanta... revolta?
Liz fungou e o fulminou com o olhar, enquanto Charlotte o
respondia.
— Ela não quer ir ao baile dos Trammel.
— Meu Deus! E por que não? — Thomas perguntou como se
estivesse inconformado, sem saber nem quem eram os Trammel e
nem que haveria um baile.
— Porque eu não quero que pensem que eu estou atrás de um
bom partido — ralhou Elizabeth, voltando a varrer o chão.
— Mas... um baile é para se divertir também, não? Ou algo
mudou enquanto eu estava na guerra e bailes se tornaram eventos
específicos para buscar casamento? — Thomas perguntou,
divertido, olhando novamente para Charlotte que se segurou para
não rir.
— Ora, veja quem está mostrando sua verdadeira face —
reclamou Liz, revirando os olhos.
— Mas ele está certo, Liz. Eu só quero me divertir um pouco,
fazer algo diferente.
— Vá com ele, então — disse Elizabeth, apontando a vassoura
na direção de Thomas.
Ele olhou para ela estreitando os olhos, e Elizabeth sorriu, como
quem havia virado o jogo.
— Eu não sou a melhor companhia para esse tipo de evento —
Thomas afirmou, com a expressão séria.
— E por que não? — Elizabeth perguntou.
— Porque bailes são lugares para dançar e eu não danço. Não
mais.
Mesmo após tanto tempo longe de ambientes normais como
uma pista de dança, Thomas ainda se lembrava de como se sentia
quando dançava. Ele nunca foi um grande entusiasta na atividade,
mas sua mãe sempre o tirava para dançar desde menino e Thomas
adorava a maneira como ela sorria ao dançar com ele, passando a
sensação de que estavam brincando.
Por esse motivo, ao se ver moço e frequentador de eventos
sociais vez ou outra, Thomas jamais recusou um convite ou se pôs
no canto de um salão sem participar das danças da noite. Inclusive,
dançar era uma coisa que ele e Amanda sempre faziam juntos,
dada a grande paixão dela por valsas. Arthur os olhava sempre
balançando a cabeça em negativa, mas sorrindo. Diferente do
irmão, o caçula fazia qualquer coisa para não ser escolhido o par de
qualquer pessoa, e Thomas sempre o repreendia e o aconselhava a
ser mais receptivo com a atividade.
O tom utilizado por ele ao se referir à sua atual situação era um
pouco envergonhado e Elizabeth se sentiu mal por não ter lembrado
do pé dele. Contudo, Charlotte foi mais rápida e conseguiu impedir
que o constrangimento se prolongasse na conversa.
— Eu não me importo com as danças — Charlotte disse e
Thomas olhou para ela desacreditado.
— Na verdade, danço muito mal.
Elizabeth concordou imediatamente.
— Isso é verdade, Thomas. A parte favorita de Char nos bailes é
a comida.
A irmã concordou com a cabeça.
Thomas ainda fazia uma expressão relutante, quando Charlotte
utilizou um argumento fatal.
— Pode ser uma boa oportunidade para passarmos um tempo
agradável sozinhos.
Ele coçou a nuca, encurralado pela fala dela.
— Mas... nós estamos sozinhos o tempo todo.
— Sim, mas eu estou sempre trabalhando. Para o baile eu
estarei bem arrumada. Você nunca me viu arrumada.
— Ela fica linda arrumada — confirmou Elizabeth.
— Ela é linda de qualquer jeito — Thomas afirmou espontâneo,
fazendo Charlotte corar.
Elizabeth sorriu ao ouvir aquilo.
— Você deveria vê-la arrumada. Vai me dar razão — ela disse,
piscando.
Thomas respirou fundo e olhou para Charlotte de novo.
— Eu não tenho roupa apropriada, Charlotte.
— Não se preocupe com isso. Susie com certeza tem algum
traje formal em sua casa e pode ajustá-lo para você — ela se
apressou em dizer.
Ele apertou os lábios e fechou os olhos, e então os abriu de
novo.
— Por favorzinho... — ela sorriu como uma criança.
Sabendo que não havia mais argumentos para negar sua
companhia à Charlotte, Thomas enfim concordou.
— Tudo bem, então. Mas não digam que eu não avisei.
— Ah, obrigada, querido! — disse Charlotte com os olhos
brilhando, abraçando-o. — Você vai ver, será muito divertido. Vou
agora mesmo tirar meu vestido do armário e ver se preciso fazer
algum reparo.
Charlotte correu escada acima e Thomas a observou se afastar
com um meio sorriso bobo, ainda sentindo seu perfume no ar.
Olhando para Liz, ele percebeu que ela o mirava com uma
expressão satisfeita.
— O quê?
— Devo dizer que não reconheço o homem sério que recebemos
esses dias atrás.
— Não sei o que quer dizer com isso — ele se fez de
desentendido.
— É claro que sabe. Mas não ache que está nisso sozinho.
Charlotte também não parece a mesma emburrada que encontrou
quando chegou. Ela está mais... leve.
— Você realmente acha isso? Ela te disse algo? — ele não se
conteve em perguntar e Elizabeth apenas confirmou suas suspeitas
de que ele sabia exatamente do que ela estava falando.
— Ela não precisa me dizer. Você já é o querido dela, não ouviu?
— Ora, mas isso...
— Thomas — disse Elizabeth, tocando o braço dele ao se
aproximar. — Eu já lhe disse que gosto de você e não mentiria para
lhe agradar. Minha irmã está feliz em sua companhia. Creio que seu
objetivo de se casar com ela tem grandes chances de se
concretizar. E eu sei que você também está feliz. Eu vejo isso.
A expressão que de repente tomou seu rosto era de pesar e
Thomas suspirou.
— O que foi? — Liz perguntou, gentilmente.
— Eu desacostumei a ser feliz, Liz — confessou.
Mas ao invés de se compadecer, Elizabeth sorriu.
— Então trate de se acostumar de novo. Apenas aproveite. Você
e ela merecem.
Liz se afastou e continuou varrendo o chão e Thomas resolveu
voltar para seu quarto.
Ao colocar a cabeça no travesseiro, as palavras de Elizabeth
ecoaram em sua mente e uma emoção profunda tomou seu peito.
Pela primeira vez desde que chegara a Carlisle, ele sentia que
não só devia se casar com Charlotte, como queria aquilo com todo
seu ser.

H , Charlotte despertou com um barulho estranho


vindo do corredor. Olhando pela janela, ela percebeu que já era de
madrugada. Naquela noite, sabia que Elizabeth dormiria em casa,
mas o barulho não parecia vir do quarto da irmã.
Ela então se levantou e andou pelo corredor ainda um pouco
zonza de sono, e quando chegou à porta do quarto de Thomas,
descobriu que os ruídos eram, na realidade, gritos abafados e
contidos.
Charlotte entrou no quarto assustada e preocupada com o que
pudesse ter acontecido com ele. Ela se deparou com Thomas
sentado na cama encostado na cabeceira, mas em total estado de
transe. Ele estava com a cabeça baixa e sua posição era como de
alguém que tentava se proteger de milhares de balas que vinham de
todos os lados.
Os gritos dele eram de terror, e ela por um momento teve medo
de intervir. Já ouvira falar de traumas de guerra tão fortes que
faziam com que soldados até matassem sem se darem conta e
sabia que era muito comum que tais homens fossem acometidos de
pesadelos intensos.
Por mais que o primeiro sentimento diante de tal cenário fosse
medo, ela não podia ignorar aquilo que estava acontecendo com ele
e tinha que ajudá-lo. Elizabeth surgiu atrás dela logo em seguida, e
sua expressão de espanto foi logo notada por Charlotte.
— Meu Deus, o que aconteceu? — ela perguntou à irmã, indo na
direção dele, mas Charlotte a impediu.
— Não, Liz. Ele não está em si. É melhor não o assustarmos.
Elizabeth olhou para ela, nervosa.
— Mas precisamos ajudá-lo. Não podemos deixá-lo assim,
Charlotte.
Charlotte balançou a cabeça a se virou para ela.
— Ele me disse que às vezes tem pesadelos. Vou tentar acalmá-
lo.
Ela caminhou até ele com calma, como quem se aproxima de
uma fera selvagem. Elizabeth a observou parada na porta, tensa
com todo o contexto.
— Thomas... shh, estou aqui — Charlotte disse, tentando tocar o
ombro dele, mas Thomas se mexeu bruscamente.
— Eu preciso voltar! Eu tenho que chegar lá — ele dizia
repetidas vezes, como se suplicasse para viver.
Ela insistiu em acolhê-lo, mas cada vez que tentava se
aproximar, ele se mexia. Então, olhando com apreensão para
Elizabeth, ela resolveu abraçá-lo rapidamente.
Quando seus braços estavam firmes ao redor dele, Charlotte
começou a dizer baixinho:
— Eu estou aqui, Tom. Está tudo bem. Você está seguro.
Charlotte continuou sussurrando palavras suaves nos cabelos
dele, e pouco a pouco o corpo tenso e trêmulo foi se acalmando.
— Pode ir —sussurrou para Liz, que ainda observava tudo. —
Vai ficar tudo bem.
Elizabeth ainda estava preocupada com todo o acontecimento,
mas como Charlotte realmente parecia ter tudo sob controle, ela
concordou com um aceno e lhes deu privacidade naquele momento
delicado, deixando o quarto.
Após alguns minutos, ele parou de se debater.
Thomas foi se aquietando nos braços dela e então abriu os
olhos, levemente. Quando seus olhares se encontraram, Charlotte
soube que ele estava fora de perigo, mas não disse nada. O medo
no olhar dele ainda era visível, e ela ficou ali somente o segurando e
abraçando, deixando que a respiração dele voltasse ao normal a
seu tempo, com calma e sem pressa.
— Sinto muito — ele disse, enfim, com a voz cheia de culpa.
Charlotte buscou os olhos azuis dele e acariciou a lateral de seu
rosto.
— Você está acordado? Sabe onde está?
Thomas fez que sim com a cabeça.
— Você está bem? — ela perguntou, com cuidado.
— Eu... eu estava no campo, de repente e... — Thomas tentou
se explicar — Tudo foi tão real.
Sem se desvencilhar totalmente, ela se afastou um pouco e falou
baixinho.
— Foi apenas um pesadelo. Você sabe onde está, certo?
Ele sacudiu a cabeça.
— Estou na residência das Hollth.
Ela sorriu.
— Exatamente. Comigo. Você está a salvo comigo, querido.
Thomas concordou e a encarou por alguns momentos e as
palavras que proferiu, mesmo que sussurradas, eram carregadas de
certeza.
— Você sempre me trouxe de volta.
Charlotte não esperava ouvir aquilo, e de repente seu peito
transbordava de emoção. Ela sabia que Thomas tinha em si o forte
objetivo de cumprir sua promessa a Oliver e tinha conhecimento de
que as palavras em suas cartas o ajudaram em momentos solitários,
mas jamais imaginara que ela estivera em seus pensamentos em
situações de terror como aquela. Tal percepção a deixou sem
reação.
Quanto e o quê, verdadeiramente, ela significara para Thomas
todos aqueles anos?
Acariciando seu rosto, Charlotte limpou uma única lágrima que
escorria do olho dele e lhe deu um beijo, simples e emocionado. Ele
aceitou aqueles lábios suaves nos seus e utilizou sua mão para
trazê-la para mais perto.
Seus corpos estavam colados e ainda um pouco trêmulos, e eles
podiam sentir a alma um do outro naquele beijo. Nada ali era
passional ou urgente, mas sim um consolo, um afeto profundo e
verdadeiro entre duas pessoas interligadas.
Quando as bocas se separaram, suas testas continuaram
coladas e os dois permaneceram de olhos fechados por um tempo,
até que Charlotte finalmente quebrou o silêncio:
— Você acha que pode voltar a dormir, querido? — ela
perguntou.
— Você pode ficar aqui esta noite? — ele pediu.
Ela sorriu. Com aquele lindo e frágil homem lhe pedindo para
ficar, é claro que ela poderia passar a noite com Thomas.
Em realidade, ela estava desconfiava de que poderia ficar ali
para sempre.
Charlotte o abraçou de novo, envolvendo-o ternamente e sem
barreiras, até que eles adormeceram juntos e profundamente, sem
pesadelos e terrores desta vez.
Í
CAPÍTULO TREZE

Q , C
abriu os olhos e demorou uns segundos para se lembrar de que
estava no quarto dele. Ela se espreguiçou delicadamente e olhou
em sua volta, encontrando Thomas sentado junto à escrivaninha,
distraído com a leitura de um livro.
— Bom dia — disse, sem querer assustá-lo.
Ele levantou os olhos azuis para ela sem demonstrar surpresa,
mas com uma expressão constrangida.
— Bom dia, Charlotte. Dormiu bem?
Ela esticou os braços acima da cabeça, confirmando a pergunta.
— Sim. Na verdade, sinto até que dormi demais. Devo estar um
desastre.
Ele deu um meio sorriso.
— Primeiro, não, você não está um desastre. Está linda como
sempre. E depois, você dormiu bastante. Já é quase meio-dia.
Ela arregalou os olhos, surpresa, lisonjeada e inconformada.
Nunca podia se dar ao luxo de dormir até tão tarde, mas tinha que
admitir que fazia tempo que não se sentia tão descansada.
— Meu Deus! Jamais imaginei. Preciso ir até a vila hoje... Já
estou atrasada! — disse, levantando-se apressada.
Thomas riu com aquilo e então ela perguntou:
— Você dormiu bem?
— Sim! Tranquilamente. Bem, pelo menos depois... daquilo.
Ela percebeu que a feição dele se fechou totalmente. Thomas
estava constrangido.
— Sinto muito por tudo, Charlotte. Eu...
— Você não precisa se desculpar, Thomas.
E não precisava mesmo. Com tudo o que ele passara na vida,
Charlotte acreditava que era ao menos esperado que ele fosse
acometido com pesadelos de vez em quando.
— Sim, eu preciso. Preciso que você saiba que isso não
acontece sempre. Na verdade, não acontecia faz um tempo. Mas eu
certamente não esperava que acontecesse enquanto eu estivesse
aqui — o tom dele era de total culpa e remordimento. — Primeiro a
dor e agora isso. Eu te machuquei?
Ela franziu a testa para responder.
— Claro que não, Thomas. Você foi um pouco relutante em
aceitar meu auxílio de início, mas assim que te abracei, se acalmou
instantaneamente.
— Mas eu não tentei te atacar ou nada do tipo?
Quanta preocupação ela via no olhar dele... Charlotte teve que
se segurar para não correr e abraçá-lo de novo.
— Não. A única coisa que você fez foi aceitar meu abraço — ela
afirmou de forma enfática, para que ele não tivesse mais dúvidas.
Thomas pareceu aliviado.
— Graças a Deus. Eu não sei o que faria se... se tivesse te feito
algum dano. Eu...
— Tom. Está tudo bem. De verdade.
Como a expressão dele ainda era muito séria, ela se aproximou
e pegou na mão dele.
— Porque você não me acompanha até a vila, hoje? — ela
perguntou, carinhosamente. — Eu adoraria ter sua companhia.
Ele hesitou um pouco mas acabou sorrindo levemente e
aceitando a oferta dela.
— Sim, claro. Eu te acompanho.
Cerca de uma hora depois, Charlotte já havia se banhado e
estava pronta para sair. Thomas esperava por ela na sala. Os dois
deixaram a casa e começaram a caminhar até a vila. O ritmo de
seus passos não era rápido, e naquele dia Charlotte percebeu que
Thomas mancava um pouco mais que o normal.
— Você está com dor? — ela perguntou sem cerimônia, andando
a seu lado.
— Não exatamente. Eu acho que a pele está um pouco irritada,
então prefiro não abusar.
— Se quiser podemos voltar para casa — declarou.
— Não, fique tranquila. Estou acostumado — e sorriu para ela.
Apesar do ar sério que tinha, o sorriso dele era uma das coisas
mais lindas que ela já vira. Todas as vezes que Thomas olhava para
ela sorrindo, Charlotte sentia que poderia derreter completamente e
no mesmo instante.
Eles caminharam mais um pouco em silêncio e quando
praticamente chegaram no vilarejo, ela lembrou que tinha uma
pergunta a fazer a ele, em relação à noite anterior. Sabia que
provavelmente não deveria tocar no assunto tão cedo, mas eles
estavam de fato pensando em se casar e aquilo significava que
Thomas tinha grandes chances de passar por uma situação similar
novamente, e apesar de Charlotte não se importar com os traumas
dele, certamente gostaria de estar preparada.
Ela queria entender o que acontecera e porque ele parecia tão
aterrorizado. Buscando em sua mente as memórias da cena em que
o encontrara, as frases ditas por Thomas eram muito específicas e
Charlotte desconfiava que aquele terror não vinha das batalhas de
uma forma geral. Era um trauma particular e preciso, uma ferida que
certamente ainda sangrava dentro dele. E Charlotte, em seu
coração, tudo o que queria era ajudá-lo a curá-la.
Em meio às pessoas que caminhavam no vilarejo com seus
afazeres, ela tomou coragem e finalmente falou, sem olhar para ele:
— Thomas, posso te fazer uma pergunta indiscreta?
— Claro.
— É sobre ontem a noite.
Ela não o olhou, mas sentiu que a tensão o tomou de forma
significativa.
— Se você não quiser falar no assunto, não precisamos...
— Não, tudo bem. Pode perguntar. Você tem todo o direito de
saber — Thomas disse, tentando fingir que não tinha se abalado.
— Ontem, na hora em que você estava... em transe, você ficou
repetindo uma frase muitas vezes. Fiquei curiosa para saber o que
ela significa.
Thomas a olhou franzindo as sobrancelhas.
— Que frase era essa?
— Bem, você dizia que tinha que chegar lá, desesperadamente.
Era como se você não pudesse morrer somente por aquilo. Como
se fosse algo muito específico e particular. Onde era esse lugar?
Thomas a encarou. Não esperava que ela lhe perguntasse
aquilo. Ele sabia exatamente onde era o lugar a que ela se referia.
Na realidade, ele sabia quem era o lugar.
— Charlotte, eu...
— Maldição! — ela praguejou, de repente, olhando para frente.
Thomas olhou na mesma direção que ela e viu uma senhora se
aproximando, em meio à toda multidão.
— O que foi?
— Finja que não viu nada e vamos! — Charlotte enganchou no
braço dele e o virou com tudo, dando as costas para a mulher.
— Mas o que está acontecendo? — ele perguntou, não sabendo
ao certo do que estavam fugindo.
— Aquela senhora é a pior pessoa que você pode conhecer na
sua vida — Charlotte falou entredentes.
— Mas porque ela viria falar comigo?
— Porque você está comigo e ela adora me atormentar.
— Senhorita Hollth? — a mulher chamou e Charlotte continuou
andando rápido apesar do arrepio na espinha que sentiu.
— Não olhe para trás e continue comigo — ela disse a Thomas.
— Temos que escapar desse infortúnio.
— Então estamos literalmente fugindo?
— Sim. Venha por aqui — ela o puxou para o lado.
— Senhorita Hollth, espere — a mulher gritava, mas Charlotte
àquela altura já tinha desviado seu caminho entre as lojinhas do
vilarejo.
Olhando em volta, ela constatou que estavam fora do alcance da
mulher e respirou aliviada.
— Essa foi por pouco.
Charlotte então se virou para Thomas, que a olhava surpreso.
— O que pode ter feito essa mulher para que você agisse dessa
maneira?
Charlotte respirou fundo.
— Aquela senhora é Madeleine Bergon, tia de Oliver.
— Ah, então ela seria da sua família?
— Sim e não. Na verdade, nem os pais de Oliver gostam dela.
Ela é simplesmente a pessoa mais maldosa que já conheci. Quando
Oliver estava longe, sempre que ela me encontrava fazia questão de
dizer que era melhor eu me cuidar mais para quando ele voltasse.
Que eu estava gorda demais ou magra demais e que parecia que
tinha quinze anos a mais do que minha idade real.
Thomas a olhou desacreditado.
— Isso só pode ser brincadeira.
Charlotte sacudiu a cabeça.
— Não é. Da última vez que nos vimos, todos já sabiam que
Oliver não sobrevivera e ela me olhou dos pés a cabeça e disse que
para mim dava no mesmo, afinal era muito provável que se ele
tivesse conseguido voltar, não se casaria comigo. Que eu perdi
todos os encantos que ele pudesse ter visto em mim. Como se ele
tivesse sorte em não ter que voltar para mim.
Thomas apertou os olhos com força, sentindo a raiva tomar
conta de seu peito.
— Eu não consigo acreditar no que estou ouvindo, Charlotte.
Ela o olhou contida, mas era nítido que carregava algum tipo de
mágoa com aquela situação.
— Acredite. E isso não é nem metade de tudo que já ouvi dessa
mulher.
— Mas porque ela te trata assim?
— Porque ela queria que Oliver, o herdeiro do barão, se casasse
com a filha dela, mas ele gostou de mim primeiro.
Thomas estava achando aquele absurdo cada vez pior.
— Você deveria se impor, Char! Responder à altura.
— Eu não me importo com nada do que essa velha me diz, Tom.
Só estou evitando-a porque não quero que ela te encontre.
— Mas ela nem me conhece. Que mal ela poderia me causar?
Charlotte o encarou com um olhar irônico.
— Thomas, estamos num lugar pequeno e por mais que as
pessoas por aqui não se importem muito com assuntos alheios, com
certeza todos já sabem que você está aqui para se casar comigo.
Não é de se duvidar que olhando para você, um homem tão bonito e
bem apessoado, Madeleine queira te apresentar à filha também e
ainda jogue em minha cara o resto da história, dizendo que eu devo
isso a ela ou coisa do tipo.
Thomas não acreditava que a mulher chegaria a tal proeza, mas
tinha que admitir que gostou muito do elogio de Charlotte.
Um homem tão belo quanto ele. É assim que Charlotte o via? O
capitão quebrado, sem pé e cheio de marcas de guerra? Quem
diria?
— Você está com ciúmes, Charlotte? — ele perguntou, sorrindo
travesso.
— Claro que estou! Que pergunta! — ela disse espontânea e
aquilo o fez rir.
— Ora, eu não esperava por isso — disse, convencido.
Charlotte revirou os olhos e deu mais alguns passos.
— Você sabe que gosto de você. Já teria te mandado embora
para bem longe se fosse diferente. E se você está aqui para se
casar comigo, é comigo que deve se envolver, e não a filha daquela
bruxa.
Enquanto Thomas abria ainda mais seu sorriso satisfatório, ela
parou em frente à vitrine de uma loja de vestidos e puxou o braço
dele.
— Uau. Veja que modelo mais lindo! — exclamou, observando o
vestido verde em sua frente.
Thomas se admirou ao notar a expressão dela. Os olhos de
Charlotte brilhavam ao contemplar a bela peça de roupa refinada,
costurada nos mínimos detalhes em cetim brilhoso e de primeira
qualidade, com fitas e babados discretos e sofisticados, digno de ser
usado em um grande e importante baile nobre.
— É realmente muito bonito. O verde é quase da cor de seus
olhos.
Ela o olhou sorrindo.
— Uma pena que seja tão caro. Se eu tivesse o tecido adequado
e tempo, creio que conseguiria reproduzi-lo.
Thomas ficou impressionado. Aquela não era uma peça que
parecia fácil de costurar.
— E porque não o faz, então?
— Ah, um tecido que se adeque a esse corte vai custar uma boa
quantia. E não há tempo — ela inclinou a cabeça para o lado. —
Seria interessante se eu o usasse no baile. Já imaginou? Eu seria
uma atração.
Ele sorriu.
— Você é do tipo que gosta de chamar atenção?
Charlotte fez uma expressão divertida ao responder.
— Não. Nem um pouco — e se virou para ele. — E uma dama
não deve demonstrar querer chamar atenção, de qualquer forma.
Aquele comentário o fez lembrar de algo que ela lhe dissera
antes, quando o ajudava com sua dor no chão da sala de estar.
— Não é a primeira vez que você menciona o comportamento de
uma dama e naquela noite em que tive dor você disse que leu sobre
isso em algum lugar. Por que lia esse tipo de coisa? Para se
preparar para o título? — ele perguntou, afinal sabia que Oliver era
herdeiro de um barão e ao se casar com ele, eventualmente
Charlotte seria uma baronesa.
— Oh, não. Na verdade, nunca parei para pensar em meu futuro
com um título. Isso nunca me importou. Eu sei de tudo isso porque
minha mãe era uma dama antes de se casar com meu pai.
Aquela descoberta era realmente inesperada.
— Sua mãe era da nobreza?
— Sim. Ela era filha de um marquês e se apaixonou pelo meu
pai e decidiu abdicar de tudo para casar-se com ele — Charlotte
explicou, com um sorriso de saudades. — Meus avós a esqueceram
totalmente após essa decisão, mas ela nunca olhou para trás.
Nunca demonstrou qualquer tipo de arrependimento, mesmo com a
situação financeira de nossa família não sendo a melhor.
— Não fazia ideia, Charlotte. Meus pais também se amavam,
mas eram da mesma classe social. Acredito que deva ter sido difícil
para os seus, mesmo com a determinação.
Ela concordou com um aceno.
— Acho que sim, embora eles não demonstrassem. Mesmo
assim, ainda que não tivesse dinheiro ela continuava sendo uma
dama e ensinou a mim e a Elizabeth todos os protocolos que sabia.
Mamãe dizia que uma boa educação nunca era demais, com ou
sem fortuna. Meu pai tinha muito orgulho dela.
— Como ela morreu, Charlotte? — Thomas perguntou,
gentilmente.
— Após uma epidemia de tifo aqui na cidade. Muita gente
conhecida morreu naqueles dias terríveis. Meu pai nunca mais foi o
mesmo após ela partir.
Thomas engoliu em seco.
— Sei bem a sensação. Minha mãe também parecia que perdera
um pedaço de si quando meu pai se foi.
Ela suspirou.
— Bem... ao menos sabemos que eles se amaram e foram
felizes no tempo que tiveram. De alguma forma, isso me consola.
Thomas concordava com Charlotte. A lembrança da felicidade
dos pais era um dos poucos fatores que o consolava quando a
saudade apertava forte. Ele não pensava no amor que sentiam em
si, sustentando o pensamento de não fazer sentido algo descrito
como sublime ser tão instável e ingrato, mas felicidade certamente
era um sentimento do qual acreditava. Especialmente porque o
almejava, de certa forma.
Olhando para lado e contemplando a expressão nostálgica de
Charlotte, Thomas se deu conta de que nenhuma felicidade poderia
se superar a que ele pudesse compartilhar com ela. De que não
queria ser feliz com ninguém além dela.
E como desejava que ela também se sentisse assim por ele.
— Mas seria interessante, não seria? Eu chamar atenção com
um vestido daquele tipo no baile dos Trammel? — ela brincou,
voltando ao assunto de antes.
— Tudo em você é interessante, Char. Com ou sem vestido.
Olhando nos olhos dele, Charlotte corou imensamente e ele se
deu conta do que acabara de dizer e corou também.
E então, de repente, antes que Thomas conseguisse se explicar,
ela franziu a testa.
— Mas que porcaria! Lá está ela de novo! — ela exclamou alto,
avistando a senhora inconveniente de novo e puxando-o para trás
de um grande galpão.
Thomas mal teve tempo de entender o que estava acontecendo.
Charlotte se enfiou com ele em um espaço estreito e bem
escondido, onde era impossível serem vistos por quem quer que
fosse.
— O que está fazendo? — ele perguntou, apertando-se nela.
— Te escondendo. Ficaremos aqui até que essa bruxa não nos
incomode. Acredite em mim quando eu digo, Thomas, que estou te
salvando — ela afirmou e as palavras ecoaram na mente dele.
Ah, minha querida Charlotte, mas isso você já está fazendo há
muito tempo.
Thomas olhou para ela sorrindo, achando-a linda em sua
expressão atenta e irritada e soube instantaneamente que poderia
ficar ali para sempre. O corpo dela colado ao dele poderia ser
considerado o céu e após passar tanto tempo no inferno, ele
certamente sabia reconhecer o paraíso.
Sentindo as batidas fortes do seu coração, ele exclamou sem
hesitar:
— Era você.
Charlotte o olhou sem entender a afirmação que ele acabara de
fazer.
— O quê? — perguntou, confusa.
Colocando a mecha de cabelo dela que caía em seu rosto atrás
da orelha, a voz dele foi como uma carícia.
— Quando eu dizia que precisava chegar lá. Era em você que eu
pensava. Você era meu destino.
Ela não tirou os olhos do seus, mas sentiu que seu peito ia
explodir.
— Você era o meu único motivo de viver, Charlotte. Eu não podia
morrer ali, porque tinha que cumprir minha promessa e te encontrar.
Você sempre me salvou.
— Tom, eu... eu não sei o que dizer.
Ele sorriu.
— Não precisa dizer nada. Só quero que saiba a verdade. Você
é o motivo de eu ter conseguido. Não Oliver. Não minha honra.
Você.
Ele então se inclinou a ela e a beijou, bem ali enquanto se
escondiam atrás do galpão. Charlotte recebeu seu beijo com
completa abertura, e os dois foram tomados por um desejo intenso.
Ele levantou seus quadris levemente e ela o abraçou com as
pernas, apoiando as costas na parede atrás de si.
A língua de Thomas dançava com a dela, numa familiaridade
estranha e maravilhosa. Charlotte sentia sua pele toda formigar com
o toque dele, com as mãos fortes e calejadas tocando a seu rosto, a
pele exposta de seu braço, fazendo-a sentir o calor e a paixão que
Thomas lhe demonstrava.
Ele desceu o toque às pernas dela, sentindo sua excitação tocar
o ventre dela pelo volume que se formara em suas calças. A cada
vez que estava com Charlotte, seu desejo era mais forte e, por um
momento, Tom pensou em possui-la ali mesmo onde estavam, como
se sua necessidade fosse sem controle e primitiva. Porém, não era
isso que Thomas queria de verdade. Por mais que estivesse louco
de desejo por Charlotte, ele queria tratá-la sempre da melhor forma
possível, e fazer amor com ela atrás de um galpão, ouvindo todo o
barulho do movimento das pessoas da vila não fazia parte de suas
intenções.
Tentando se controlar, ele se afastou um pouco e olhou para o
rosto iluminado de Charlotte.
— Temos que parar ou eu não respondo por mim — ele disse,
engolindo em seco.
Charlotte sorriu.
— Você precisa se decidir, então — ela respondeu, se
endireitando.
— O que quer dizer? — ele perguntou, rindo.
— Acredito ter demonstrado que gosto muito quando nos
aproximamos... dessa forma. Da próxima vez que isso acontecer, eu
não vou te deixar parar tão cedo, então pense bem antes de
começar — ela lhe deu um sorriso travesso e começou a andar, e
Thomas olhou para cima, pedindo aos céus para que a próxima vez
não demorasse.
Í
CAPÍTULO CATORZE

C E
trabalhava, Charlotte e Thomas decidiram parar ali para tomarem
uma caneca de cerveja e a cumprimentarem.
Ao entrarem no estabelecimento, como sempre o refeitório
parecia mais escuro do que realmente era, com toda a cor de
madeira forte predominante. Alguns homens ocupavam os bancos
altos espalhados no decorrer no balcão e Elizabeth estava atrás
dele, concentrada em sua tarefa de lustrar os copos de vidro.
Thomas já conhecia o lugar — tinha ficado ali antes de se
hospedar na casa das irmãs — e logo se acomodou em um banco
vazio na frente de Liz, que nem notou sua presença. Charlotte
chegou logo atrás dele e sentou-se a seu lado.
— Quanto tempo até ela nos notar? — ele perguntou a Charlotte
baixinho, apontando para Elizabeth.
— Hum... — ela fez uma expressão pensativa, apertando os
olhos. — Ela parece bem concentrada.
Thomas apertou os lábios, segurando o riso.
— Eu realmente estou com sede.
Charlotte concordou e se inclinou levemente no balcão.
— A senhorita pode nos servir duas canecas de cerveja, por
favor? — ela disse para Liz, engrossando a voz.
Elizabeth acenou com a cabeça, sem olhar para eles.
— Claro — ela respondeu, pondo o pano branco nos ombros e
dando-lhes as costas para encher as canecas. Ao se virar para
colocá-las no balcão, um barulho vindo do outro lado do ambiente
chamou sua atenção e ela olhou naquela direção, ainda não
notando Charlotte e Thomas em sua frente.
— Obrigada, querida — Charlotte respondeu, com travessura e
Elizabeth, ao perceber o jeito carinhoso que a chamaram, finalmente
olhou para eles.
— Ora! Há quanto tempo vocês estão aqui? — ela perguntou
com um sorriso surpreso.
— Acabamos de chegar, mas certamente foi divertido ver sua
concentração — Thomas respondeu, dando um gole na cerveja.
— Liz concentrada é algo de outro mundo. Ela não nota mais
nada a seu redor. É realmente impressionante — comentou
Charlotte também tomando o líquido.
— Devo lustrar os copos direito. Manchas no vidro influenciam
na reputação do lugar e eu quero esta estalagem bem cheia para
que eu possa manter meu emprego.
— Você é basicamente o que faz este lugar funcionar, querida —
Charlotte sussurrou. — E te vejo cansada. Turno duplo hoje?
— Sim — respondeu Elizabeth, desanimada. — Mas estamos
com poucos hóspedes e à noite eu consigo me deitar um pouco em
um dos quartos livres. Não se preocupe.
Mas Charlotte se preocupava. Elizabeth focava toda sua energia
em trabalhar de sol a sol. Mesmo quando ficava em casa, se não
estava dormindo, a irmã mais velha arrumava alguma tarefa
doméstica para se ocupar. Fazia isso há anos.
Desde sua tragédia pessoal.
Charlotte desconfiava que o comportamento imparável da irmã
era na verdade uma maneira de fugir do ócio para evitar lidar com
seus sentimentos. Não a julgava, pois cada pessoa lida com suas
emoções a seu próprio modo, mas as olheiras e a aparência abatida
de Elizabeth eram algo que mereciam sua preocupação.
— O que traz vocês aqui, afinal? Estavam na vila? — Elizabeth
perguntou a Thomas.
— Sim. Charlotte precisava de uns aviamentos. Estava bem
movimentado.
Ele então tentou se ajeitar no banco e fez uma careta de dor.
— O que foi, querido? — perguntou Charlotte, preocupada,
notando a expressão dele.
— Cãibra. Não se preocupe, é comum acontecer, especialmente
por usar o espartilho apertando a coxa o dia todo. Liz, se importa se
eu usar os fundos para me alongar? Não quero chamar atenção.
— De forma alguma, Thomas, fique à vontade. Não há ninguém
lá, pode ficar tranquilo.
Thomas sorriu e se levantou com agilidade.
— Vou rapidinho para não piorar. Volto já — ele disse a
Charlotte, com uma piscadela.
Ela sentiu um tremor na região do estômago e respirou fundo
ante todo aquele charme dele. Suas bochechas esquentaram e ela
se arrumou no banco, virando para frente novamente e se
deparando com Elizabeth a olhando com uma sobrancelha
levantada.
— Oh, querida. Você consegue ser mais evidente?
Charlotte fingiu que não entendeu o comentário dela.
— Não sei do que você está falando.
Elizabeth tirou o pano branco do ombro e o utilizou para atingir a
irmã.
— É claro que sabe! Você está gostando dele e muito! É
totalmente visível.
Charlotte abriu a boca, e então a fechou de novo, tirando dois
segundos para pensar.
— Thomas é um homem muito fácil de se gostar — ela admitiu,
fazendo Elizabeth sorrir.
— Isso é ótimo, Charlotte. Gosto tanto de te ver feliz, querida.
Ele com certeza será um ótimo marido.
Ela negou com a cabeça.
— Eu disse que gosto dele, não que vou me casar com ele.
Elizabeth fungou e se aproximou dela.
— E por que não?
— Porque não quero apressar as coisas, Liz. Estamos nos
conhecendo e eu estou gostando muito desse processo, mas eu
quero ter certeza de minha decisão.
Elizabeth balançou a cabeça levemente.
— O que foi, Elizabeth? — perguntou Charlotte, revirando os
olhos.
— Nada. Tome seu tempo como quer, mas nem com Oliver eu a
vi assim desse jeito.
— Que jeito?
— Feliz! Você está radiante, Charlotte. Você ri mais, aproveita
mais o dia. E o mais bonito de tudo é que o capitão está feliz
também.
Charlotte olhou para baixo.
— O capitão está feliz porque está cumprindo sua promessa com
Oliver.
— Não! — Elizabeth estendeu a mão e agarrou os dedos da irmã
que pairavam no balcão. — Ele está feliz porque você o faz assim,
Char. E você sabe disso. Nenhum homem cria uma conexão com
uma mulher como a que vocês têm criado por obrigação. Você
percebe a diferença entre o sujeito que surgiu em nossa porta e o
de agora?
É claro que Charlotte percebia. O sujeito que chegou do nada
dizendo que queria se casar com ela por uma promessa a seu noivo
morto era rígido, fechado e arrogante. Tudo o que ela queria fazer
era mandá-lo embora. Enquanto o Thomas de agora a fazia rir,
compreendia seus anseios e deixava com que Charlotte o
abraçasse sem qualquer receio. E ainda assim, mesmo com todas
as diferenças entre os dois Thomas, o de antes e o de agora, ambos
tinham algo em comum: ela.
Não Oliver. Não a honra pessoal.
Charlotte.
— Ainda assim, Liz. Não me sinto pronta para aceitar o pedido
dele. Não ainda.
— Você acha que há alguma possibilidade de rejeitá-lo? —
perguntou Elizabeth, com a expressão mais séria.
Charlotte engoliu em seco.
— Bem... se não me sinto pronta, há um pouco de chance,
acredito.
Liz olhou bem fundo nos olhos verdes da irmã.
— Então tome cuidado para não o machucar.
— Eu nunca faria isso, Liz.
Ela ergueu os ombros.
— Ele gosta de você, Char. Muito. Tome bastante cuidado com
os sentimentos dele. E eu mais do que ninguém posso te dizer que
a culpa e dor que carregamos por quebrar o coração de alguém que
nos importa é insuportável. Pense nisso.

N , a casa estava quieta enquanto Thomas se dirigia


ao quarto de Charlotte. Eles chegaram da vila após o sol se pôr e
ele se deitou após o banho, mas não conseguiu dormir pensando
nela.
Passara mais um dia maravilhoso ao lado de Charlotte, mas
dessa vez com a lembrança de beijo contido que quase lhe tirara a
sanidade.
Thomas sabia que Elizabeth faria turno duplo naquela noite, o
que dava a ele e a Charlotte privacidade para não serem
interrompidos. Agora que sabia que ela o desejava tanto quanto ele,
o beijo que trocaram à tarde precisava ser continuado e de forma
correta.
Ele deu três batidas suaves na porta de madeira.
— Char?
Ela abriu a porta após alguns segundos, com o olhar atento.
— Thomas! Está tudo bem?
Ela estava com os cabelos castanhos soltos, ainda um pouco
molhados do banho e usava um vestido bege simples, dos tipos que
se usam em casa ou para as tarefas do dia.
— Sim! Eu apenas queria saber... se você ainda estava
acordada. Se queria companhia.
Ela então abriu um sorriso tão bonito que fez com que Thomas
desejasse tê-lo registrado em uma pintura.
— É claro. Entre, querido.
Ele entrou no quarto e seus olhos foram direto para o vestido em
cima da cama.
— O que é isso?
Charlotte afastou a peça para que ele pudesse se sentar.
— Esse é meu vestido de baile. Estava fazendo os reparos
necessários.
Ela o colocou na frente do corpo.
— O que você acha? Eu sei que está velho, mas ainda assim
acho que tem certo charme.
E ela estava certa. Era nítido que o vestido já estava bem
surrado, mas mesmo assim, a peça era bem bonita. O azul do
tecido já se encontrava desbotado, em alguns lugares mais que
outros, e a barra continha vários fios desfiados irregulares. Não
havia comparação em relação ao vestido que tinham visto na loja
naquela tarde, mas Thomas tinha certeza de que se Charlotte o
pusesse, ninguém repararia em qualquer que fossem seus defeitos,
porque ela o faria perfeito.
Perfeito como ela.
— Está bonito.
— Fiquei bonita com ele, então?
Thomas se levantou e caminhou até ela.
— Não. O vestido é bonito. Você é linda.
Os olhos de Charlotte encontraram os dele, e ela nem resistiu
quando Thomas tomou a peça de suas mãos e a deixou de lado.
— Eu vim até aqui com segundas intenções, Senhorita Hollth.
— Hum... e quais seriam suas segundas intenções? — ela
perguntou, sorrindo.
Thomas deu um sorriso malicioso.
— Estive pensando que até agora só te beijei em circunstâncias
estranhas. Com dor, sonhos ruins, mulheres inconvenientes nos
perseguindo...
— Sim, não podemos negar isso.
Ele pôs as mãos delicadamente nos ombros dela, acariciando a
pele com os dedos.
— Por isso mesmo vim até aqui. Porque quero te beijar,
Charlotte, mas quero te beijar direito.
Charlotte lambeu os lábios.
— Então quer dizer que até agora você não me beijou direito?
Os olhos famintos de Thomas escureceram.
— Ah, querida. Eu nem sequer comecei.
P , Charlotte achou que fosse cair ante a
declaração de Thomas. Ela estava totalmente surpresa — e
satisfeita — por ele aparecer em seu quarto daquela forma
inesperada. Ele tinha uma aparência fresca e descontraída, e usava
uma camisa simples de linho com os punhos à mostra e calças
escuras. Completamente rotineiro e comum. Mas quando ele a
olhou com aqueles olhos de oceano e lhe contou sobre suas
segundas intenções, Charlotte sentiu suas pernas amolecerem e
sua respiração pesar.
Aquilo certamente não fazia parte de sua rotina.
Thomas a desejava, e isso era muito bom.
Porque ela também o queria, com cada fibra do seu ser.
— Quem sou eu para impedir um homem de agir direito,
Capitão?
Thomas sorriu, e levou as mãos à cintura dela.
— Eu sei que estamos nos conhecendo e ainda não chegamos
ao nível de... bem, termos a maior das intimidades...
— Mas podemos chegar rapidinho! — ela respondeu sem
demora, e Thomas gargalhou.
— Sim, querida, chegar até lá não é o problema. Mas primeiro eu
quero te beijar sem pressa, te tocando devagar — ele passou o
dorso dos dedos no pescoço dela — sentindo sua pele, seu
perfume... te fazer suspirar.
Charlotte achou que poderia derreter naquele instante.
— Você já viu o pior de mim, ou quase, em diversas ocasiões.
Mas eu tenho mais a lhe mostrar. Eu quero te encher de carinho, me
entende?
Ela concordou com a cabeça.
— Posso? — ele perguntou, abaixando um pouco em sua
direção, e Charlotte terminou de diminuir a distância entre eles
suavemente.
Ao sentir o toque suave em seus lábios, Charlotte tentou
administrar o emaranhado de sensações que a tomavam. Sentir a
língua dele, o sabor maravilhoso que ele tinha, causavam nela algo
totalmente novo. A ansiedade, o desejo, o carinho que sentia por
Thomas, a levavam acreditar que todos aqueles sentimentos juntos
formavam algo completamente desconhecido por ela até então. Algo
que a excitava e a deixava sem fôlego e ainda assim, que lhe
parecia tão indispensável quanto o próprio ar. Ela queria gritar para
o mundo todo aquele sentimento.
Mas ao mesmo tempo, ainda não estava pronta para assumi-lo.
Thomas a tomou nos braços, acariciando suas costas devagar,
descendo com as mãos até a curva da coluna e enfim, chegando às
nádegas redondas e pequenas enquanto seus lábios continuavam
explorando a boca perfeita de Charlotte. Ela gemeu baixinho quando
ele traçou uma linha de beijos suaves e delicados em toda a
extensão do pescoço e suas mãos fortes a levantaram e a levaram
para a cama.
Deitando-a de costas e sobrepondo seu corpo sobre o dela,
Thomas se afastou um pouco para olhá-la.
— Posso te dar mais carinho? — ele sussurrou, levantando a
barra do vestido levemente, na altura da canela.
— Nem se atreva a parar! — ela exclamou, com a voz ansiosa.
Thomas sorriu ante o nervosismo dela. Ele tomou seus lábios
novamente e então desceu até a clavícula, passando a língua ali de
forma suave e sensual. Thomas podia ver a pele de Charlotte se
arrepiando, e aquilo o encheu de excitação.
Devagar e com delicadeza, ele afastou um pouco a manga do
vestido dela para o lado, desnudando um seio. Charlotte era magra
e pequena, e seus seios eram totalmente proporcionais a seu
tamanho. Thomas beijou a pele pálida deslizando a língua até o bico
rosado, chupando a região com suavidade.
— Ah, Thomas! — Charlotte exclamou, jogando a cabeça para
trás.
Ele se demorou naquela carícia, e sua mão subiu mais ainda a
barra do vestido e ele a enfiou por baixo da saia, tocando toda a
extensão da perna de Charlotte até suas coxas.
Ele levantou a cabeça por um momento.
— Char?
— Sim?
— Mais carinho? — ele perguntou, os dedos acariciando a pele
macia da coxa dela.
— Sim. Mais, por favor.
Thomas voltou a tomar o seio na boca e deslizou a mão para o
centro dela, encontrando a umidade já produzida pelas carícias
dele. Charlotte arfou suavemente sentindo o toque entre suas
pernas, e enquanto os dedos dele a abriam e exploravam, ela
inclinava o quadril na direção de sua mão, querendo mais.
O prazer foi crescendo dentro dela e Charlotte se sentia cada
vez mais ansiosa, consciente de todas as sensações dos toques
dele, da língua em seu mamilo teso e dos choques dos dedos de
Thomas. Quando ele encontrou com o polegar seu ponto mais
sensível, Charlotte mordeu o lábio e se deixou levar pelas ondas de
prazer repentinas que a tomaram.
Thomas aguardou que os espasmos dela diminuíssem e voltou a
beijar seu colo, seu ombro nu e seu pescoço.
— Eu costumava pensar em como seria te beijar... — Thomas
sussurrou junto à pele dela.
Charlotte estava de olhos fechados, ainda voltando a si.
— No que você pensava? — perguntou baixinho.
Ela conseguiu sentir o sorriso dele na sua pele quando ele subiu
com língua abaixo da orelha e mordeu o lóbulo macio.
— Em como você seria... se gostaria de mim...
— Eu gosto de você! — Charlotte respondeu, virando um pouco
o rosto para encontrar os olhos dele.
— Agora, mas não gostou quando eu cheguei.
— O problema não era você. Era a situação.
Os lábios dele encontraram os dela de forma possessiva, mas
ainda assim, gentil.
— A situação ainda é a mesma, Char — ele falou quando
levantou a cabeça para olhar para ela.
Charlotte levou os dedos ao maxilar dele, sentindo a maciez da
barba aparada.
— Eu sinto muito se fui muito grosseira...
Thomas voltou a tomar a boca dela mais uma vez. Sua língua
pressionava, exigia, e Charlotte queria dar tudo o que ele buscava.
Eles já haviam se beijado antes, mas nenhum dos beijos fora tão
completo quanto aquele. Era um beijo consciente, e ainda assim,
inebriante.
Se afastando, as mãos dele continuaram acariciando seu rosto,
e uma delas foi até os cabelos de Charlotte.
— Você não foi grosseira. E eu sei que... bom, eu acho que já
posso estar tranquilo em relação a você gostar de mim.
— Eu gosto.
E ela gostava.
Mas talvez...
— Na verdade, eu...
Ela hesitou, as palavras de Elizabeth pairando em sua mente.
— O quê, Char?
— Eu acho que gostar não é mais suficiente para o que sinto por
você.
Thomas sorriu suavemente e tomou a boca dela de novo, para
um beijo rápido.
Ainda assim, ela o sentiu tocar sua alma.
— Você não vai me beijar mais? — ela perguntou quando ele
ajeitou o vestido totalmente de volta ao lugar de origem.
— Char, eu não me envolvo com ninguém há muito tempo. Meu
controle está bem limitado — ele respondeu com um riso nervoso,
sentando-se na beira da cama com as duas mãos apoiadas no
queixo.
Charlotte logo se pôs ao seu lado, deitando a cabeça em seu
ombro.
— Você é muito bom beijador, Senhor Baker.
Ele gargalhou, endireitando a postura.
— Obrigado. Isso é muito bom de se ouvir.
— Eu nunca senti isso antes. Essa... plenitude toda.
Thomas se sentiu orgulhoso por aquilo. E Charlotte estava certa.
Plenitude era uma boa palavra para descrever o que sentia ao estar
com ela.
Beijando o topo da cabeça dela, ele se levantou.
— Vou deixar você dormir agora.
Quando estava na porta, Charlotte não se conteve em perguntar:
— Thomas, eu o assustei com o que disse?
Ele se virou para ela e respirou fundo.
— Um pouco — disse, com um sorriso triste.
— Por quê?
Ele ergueu os ombros levemente.
— Porque quando você diz isso eu sinto esperança.
Charlotte prendeu a respiração, se levantou e foi até ele,
abraçando-o. Os braços dele a envolveram sem hesitação, firmes.
— Eu sinto que posso me acostumar a você, que posso me
estabelecer aqui, e esperança não é um sentimento que eu estou
acostumado, Char. Porque todas as vezes que eu cogitei senti-lo, eu
me decepcionei. Então, sim, isso me assusta.
— Thomas, eu...
— Não — ele pegou o rosto dela e fez com que olhasse para ele.
— Você não está pronta para tomar essa decisão. E eu entendo.
Os olhos dela encheram de água e ele acariciou sua bochecha.
— O fato de eu estar assustado não é algo ruim. Ao contrário. Eu
só não quero mentir para você. Então, posso te pedir uma coisa?
Charlotte acenou, concordando.
— Assim que você souber o que quer, por favor, me diga. Não
me faça ficar aqui mais do que eu preciso, se for o caso. Me deixe ir.
Tome bastante cuidado com os sentimentos dele, foi o que
Elizabeth dissera.
A ideia de Thomas partindo quebrou o coração de Charlotte em
milhares de pedaços. Mesmo assim, ela ainda não se sentia
preparada para dar sua resposta a ele. E Thomas merecia algo
certo, convicto.
Ele merecia certeza.
— Eu prometo que digo.
Ele beijou-a levemente e se desfez do abraço.
— Boa noite, Charlotte.
Ao se deitar para dormir, Charlotte pensou em tudo o que sentira
naquele dia e desejou que Thomas estivesse ali com ela. E então
imaginou ele ao seu lado por muitas noites, e aquele cenário
preencheu seu coração, fazendo-a saber que sua promessa de
dizer a ele o que sentia não demoraria a se cumprir.
Í
CAPÍTULO QUINZE

N , T R
se encontrar com Susie em seu ateliê de costura.
Ele a conhecera em um dos chás da tarde que ela compartilhava
com Charlotte ao menos uma vez na semana e a achou uma mulher
agradável, apesar de tagarela. Talvez a estivesse comparando com
Charlotte, que era sempre muito delicada em tudo o que fazia. Fato
era que Susie definitivamente não parecia a amiga no quesito
comportamento. Susie era menos contida, é o que ele poderia dizer.
Ainda assim, ela o tratara muito bem, tentando conhecê-lo sem
ser inconveniente ou enchê-lo de perguntas desnecessárias.
Depois, Charlotte lhe contara um pouco da história da amiga, que
era muito sofrida por sinal. Não somente ela perdera os pais na
mesma epidemia de tifo que matara a mãe de Charlotte como seu
marido também fora convocado para a guerra e acabou não
voltando para casa.
Charlotte não entrara em detalhes do porquê era na casa do
barão que Susie vivia, mas Thomas tampouco perguntara. Após ele
concordar em participar do baile dos Trammel, Charlotte perguntou
a Susie se ela teria algum traje formal que ele pudesse utilizar e ela
se lembrava de dois ou três guardados no armário e que poderiam
lhe servir.
Assim, faltando apenas dois dias para o evento, Thomas
combinou de encontrá-la naquela tarde para tirar suas medidas e
fazer os ajustes necessários na roupa formal.
Ele estava tenso em ir até ali. Não conhecia os pais de Oliver, e
por mais que a situação o deixasse desconfortável, sabia que uma
hora ou outra precisaria fazer uma visita a eles, especialmente se
Charlotte aceitasse se casar com ele. Não fazia ideia do que poderia
dizer para os dois, mas estaria pronto para responder-lhes
quaisquer perguntas que o fizessem. Ainda assim, era muito
estranho visitar as pessoas cujo filho salvara sua vida, mas não
conseguira fazer o mesmo por si.
Ele se aproximou da casa grande que, diferente da das Hollth,
estava muito bem cuidada e preservada. Susie o esperava sentada
em pequeno banco na entrada, segurando um livro na mão.
Ela se levantou prontamente ao avistá-lo e sorriu
amigavelmente.
— Boa tarde, Senhor Baker. Como vai?
— Muito bem, obrigado. A senhora?
— Bem, apesar do calor. Venha, vamos entrar e já começo com
o senhor.
Thomas hesitou um momento, mas perguntou enquanto eles
caminhavam em direção ao ateliê dela.
— O barão e a baronesa estão em casa?
— Ah, não. Eles fizeram uma viagem rápida, mas acredito que
chegarão para o baile. O senhor poderá conhecê-los lá. Eles estão
animados para vê-lo, inclusive.
— Eles sabem que estou aqui, então? — ele perguntou
novamente, ao entrarem na sala de costura.
— Não há uma alma que não saiba de sua chegada, Senhor
Baker. Aqui as pessoas podem não apontar os dedos, mas todos
sabem muito bem tudo o que acontece — ela fez um gesto pedindo
para que ele ficasse em pé, de frente a um espelho.
Aquilo preocupava Thomas. Ele sabia que estar hospedado na
casa das Hollth era arriscado para a reputação delas, mas Charlotte
o garantira que não haveria problemas em relação àquilo. Mas se
todos já sabiam de sua chegada, e se Charlotte e Elizabeth
estivessem mal faladas por sua culpa?
— Eu não entendo bem essa linha de raciocínio. Quando
Charlotte ofereceu o quarto em sua casa, eu me preocupei com a
reputação delas e ...
— Senhor Baker, deixe-me tranquilizá-lo desde já —Susie
estendeu a mão. — Sim, as pessoas certamente falarão de sua
estadia na casa de Charlotte. Isso não será uma surpresa. Mas
depois desse período todo de guerra, fofocas de reputação alheia
não são motivos para excluir ou humilhar o vizinho.
Susie abriu uma gaveta da mesa de costura e tirou uma fita
métrica de dentro dela.
— Esta vila passou por muitas perdas em poucos anos. A
epidemia de tifo, a guerra... muitos morreram, jovens e velhos. Não
sobraram tantos para nos darmos ao luxo de excluirmos mais
pessoas do convívio, entende?
Thomas entendia e não entendia. Para ele, após todos os
horrores das batalhas, reputação era uma das coisas menos
importantes que existiam. Para ele. Era surpreendente que o
pensamento coletivo tivesse a mesma ideia a respeito.
— Além do mais, as pessoas gostam muito de Charlotte e
Elizabeth. Elas sempre serviram a comunidade, e a forma como
Charlotte honrou seu compromisso com Oliver sempre foi muito
admirada por todos. A reputação delas é muito bem-vista, e o fato
de o senhor ter aparecido para cumprir a promessa ao filho do barão
fez com que sua pessoa recebesse a mesma admiração.
Ele chacoalhou a cabeça.
— Essas pessoas nem me conhecem.
— Mas conheciam Oliver e sentem muito a falta dele. Todos
sentimos. Mas bem, vamos começar — Susie alcançou um traje
formal que estava posto em uma cadeira no canto da sala. — O que
acha deste?
Thomas olhou a peça de roupa composta por uma casaca preta
e muito bonita. O preto estava levemente desbotado, mas o corte
era de excelente qualidade.
— Gostei muito.
— Achei que gostaria. Esse modelo, apesar de um pouco
ultrapassado, é muito elegante. E com uma camisa e gravata
brancas vai lhe vestir muito bem. Os bailes daqui não são como os
dos salões londrinos, mas este é o primeiro após a guerra, então
acredito que todos estejam empolgados para se vestir — ela
comentou sorrindo.
Susie estendeu o traje para Thomas e pediu para que ele o
experimentasse atrás do biombo. Ele obedeceu aos comandos dela
e a casaca ficou com perfeito caimento. Somente as calças eram
um pouco mais compridas do que o ideal, e Susie notou aquele
detalhe logo que ele se mostrou com a roupa.
— Muito bem. Ficou ótimo, apenas... — ela disse, analisando-o
com os olhos castanhos. — Acredito que terei que ajustar a barra —
e assim abaixou-se para tirar as medidas necessárias, estendendo a
fita em sua frente.
Ao dobrar a barra da perna direita, Susie percebeu a prótese que
Thomas utilizava. Um pouco preocupada por tê-lo deixado
constrangido, ela perguntou:
— Tudo bem eu tirar as medidas nessa perna?
Thomas pigarreou, mantendo a compostura.
— Claro. Se não a incomodar.
Ela balançou a cabeça.
— Não se preocupe com isso — disse gentilmente e continuou
tirando as medidas.
Thomas estava tenso, mas não pela presença de Susie. Ele
apenas havia se desacostumado a situações rotineiras como tirar
medidas para um traje formal. Como era possível se sentir perdido
diante de algo tão simples?
— Como aconteceu? — ele ouviu Susie perguntar, de forma
natural.
— O quê?
— O pé. Como o senhor o perdeu?
— Algo explodiu nele. Não puderam salvá-lo.
— Sinto muito sua perda.
Ele ergueu os ombros.
— Obrigado. Pelo menos estou vivo e isso me é suficiente.
Ela apertou os lábios e se levantou.
— Meu marido não teve a mesma sorte.
Thomas lembrou que Charlotte havia comentado com ele sobre
Susie ser viúva e de seu marido também ter sido um soldado.
— Onde aconteceu? — ele perguntou.
— Espanha. Não fazia muito tempo que ele tinha partido — ela
deu um sorriso triste. — Oliver nunca soube da morte da Carl. Eles
eram melhores amigos por toda a vida.
— Sinto muito.
Ela concordou.
— Foi difícil. Eu perdi tudo, pois acabei ficando sem dinheiro e
meu marido possuía algumas dívidas e o banco tomou a casa. Não
fosse a mãe de Oliver me acolher, Deus sabe o que teria sido de
mim.
— Vocês eram próximas, então?
— Sim, a baronesa sempre me teve em muita estima, desde
criança. E com a ausência de Oliver, acredito que foi bom para nós
duas — e então ela riu. — Mas acho que ele não ficaria feliz em
saber disso.
Thomas franziu as sobrancelhas.
— E por quê?
— Ah, eu e Oliver nunca nos gostamos. Acredito que ele me
achava a pessoa mais irritante de todo o planeta. E eu nem
questiono, afinal ele era o ser mais prepotente que conheci. E
depois que me casei com Carl, nossa antipatia piorou.
Thomas estava surpreso com aquela afirmação. Oliver não era
em nada prepotente, mas se não o conhecesse, certamente
acreditaria na fala de Susie, tamanha era a convicção com que
afirmava aquilo.
— Jamais pensei que Oliver tivesse um desafeto — ele
comentou.
Susie deu um sorriso travesso.
— Cá estou eu — ela então parou de sorrir. — Sinto falta dele.
De vez em quando, era divertido irritá-lo.
Ao observá-la, Thomas notou certa melancolia no tom de voz
utilizado por Susie. Não parecia de forma alguma que a mulher em
sua frente se referia a uma pessoa com quem não tinha afinidade.
Ao contrário.
Os olhos escuros dela demonstravam certa tristeza ao se referir
ao amigo. Uma tristeza terna.
— Demorou muito tempo para aceitar a perda? — ela
interrompeu seus pensamentos e ele a mirou nos olhos, entendendo
que Susie se referia a seu pé.
— Na verdade, não. Curiosamente, não tive motivos de revolta
em relação a isto.
— Hum... — ela ponderou. — Curioso, de fato. Mesmo que um
pé seja um dano ínfimo se comparável à vida, ainda assim é uma
perda significativa. O que acha que aconteceu no seu caso?
Thomas ergueu os ombros.
— Eu preferi focar minhas energias em meu objetivo a chorar o
que não poderia ser mudado.
Susie o analisou, e então entendeu.
— Charlotte.
E ele apenas confirmou.
— Ela é uma mulher excepcional, Senhor Baker. E creio que
posso afirmar o mesmo do senhor. Oliver a amava muito e
certamente não o escolheria para tal tarefa se não o considerasse
assim.
Thomas não concordava com ela. Na verdade, Oliver apenas o
escolheu porque ele era tudo o que o amigo tinha. Tom não via em
si virtudes o suficiente para se dizer à altura de Charlotte. Não antes
e muito menos após conhecê-la. Ele não a merecia e sabia disso.
Ela era muito mais do que até mesmo o próprio Oliver pudesse
esperar.
Então não, Thomas não se considerava excepcional. Mas que
estava disposto a fazer o possível para chegar ao menos a uma
fração do que Charlotte merecia, isso estava.

T , a vila inteira estava agitada com o baile que os


Trammel ofereceriam naquela noite.
Susie passara mais cedo na casa dos Hollth para deixar o traje
formal de Thomas, já devidamente ajustado. Ela também
compareceria ao baile, apesar de não se ver tão animada quanto a
amiga.
Charlotte parou de trabalhar mais cedo para se arrumar com
calma para o evento. Ela fechou a porta da sala de costura e subiu
as escadas rapidamente, se dirigindo a seu quarto para tirar o
vestido do armário e deixá-lo arejar enquanto se banhava.
Ao entrar no cômodo, porém, foi surpreendida com uma grande
caixa deixada em cima de sua cama. Ela se aproximou e a abriu, e
seus olhos não acreditavam no que viam.
Ali, bem em sua frente, estava o vestido verde que vira na vitrine
da loja do vilarejo, em todo o seu esplendor. Sobre dele, havia um
envelope branco sem selo.
Charlotte pegou o envelope e o abriu com os dedos trêmulos,
puxando uma folha para cima.

C ,

Chame toda a atenção que quiser, mas aviso que estarei ao seu
lado o tempo todo.

T .

Ela levou o papel ao colo, emocionada.


Thomas se lembrara do vestido.
Ele se lembrara e o comprara para ela.
Olhando para a caligrafia dele, ela se perguntou em como não
notara antes que não era Oliver que a escrevia todas aquelas
últimas cartas recebidas.
Charlotte dobrou o papel e o guardou em sua gaveta com
carinho. Aquela era a única carta que possuía em que Thomas
assinava o seu próprio nome. E apesar daquelas palavras lhe
parecerem poucas, para ela, significavam o mundo.
Com o coração acelerado, ela foi se banhar ansiosa para usar
aquele presente maravilhoso e comparecer ao primeiro baile em
muito tempo, acompanhada por ninguém menos do que o modesto
e lindo Capitão Baker.
T por ela no andar de baixo, já devidamente
vestido. Os ajustes feitos por Susie estavam perfeitos e ninguém
poderia dizer que aquele traje não havia sido feito sob medida para
ele próprio.
Estava nervoso com a reação de Charlotte ante o vestido, com
medo de que ela se ofendesse com o presente ou não apreciasse o
feito, mas o fato de não tê-lo procurado antes o encheu de
expectativa. E uma expectativa muito boa, por sinal.
Alguns infindáveis minutos se passaram até que Thomas ouviu
os passos na escada. Ele se virou naquela direção e se deparou
com a figura maravilhosa de Charlotte no vestido verde encantador.
O tom era exatamente da cor dos olhos dela, como ele bem
reparara quando o admiravam na vitrine. O cabelo dela estava preso
em um penteado meio-solto e elegante, com um pequeno arranjo na
lateral.
Ele engoliu o seco, sem encontrar as palavras corretas para
elogiá-la de forma proporcional à beleza que seus olhos miravam.
Charlotte sorriu gentilmente ao vê-lo, e se aproximou dele devagar.
— O que acha? — ela perguntou, um pouco constrangida.
— Eu... — ele pigarreou e sorriu. — Você está maravilhosa,
Char.
Ela mordeu o lábio inferior.
— Eu lhe disse que ficava bonita arrumada, mas não precisa
exagerar, querido.
Ele tomou a mão dela nas suas.
— Não estou exagerando. E a senhorita sabe que não minto.
Charlotte sorriu.
Sim, ela sabia.
— O vestido... — ela olhou para a saia reluzente. — Eu não
tenho nem palavras. Como você...
— Eu pensei que realmente seria interessante se você
chamasse atenção.
Ela deu uma risada charmosa.
— E serviu perfeitamente.
— Elizabeth tinha suas medidas — ele confessou.
Charlotte sorriu e endireitou a postura.
— Você também não está nada mal, Senhor Baker.
E estava sendo sincera. O único defeito daquela roupa que ele
usava, deixando-o todo formal com seus cabelos claros, olhos azuis
e porte forte, era que Charlotte queria tirá-la inteira para se
aproveitar de Thomas como uma boa libertina.
— Susie fez um bom trabalho, de fato.
— Obrigada pelo vestido — Charlotte apertou os dedos dele.
Os olhos azuis de Thomas prenderam o olhar dela e ele se
aproximou sem cerimônia e tomou seus lábios em um beijo ardente,
segurando-a pelos ombros.
E ali, nos braços dele, Charlotte confirmou todas as suspeitas de
seu coração. Ela soube naquele momento que queria Thomas para
si, com todas as suas forças e desejos. Queria aceitar seu pedido
de casamento. Queria que ele a tocasse e fizesse amor com ela.
Queria se entregar a ele de corpo e alma. Porque ela estava,
verdadeiramente, apaixonada por Thomas Baker. E ela o escolhia,
por livre e espontânea vontade.
Sentindo o calor e a paixão dele, ela teve que se esforçar para
se afastar e tomar fôlego.
— Tom? — Charlotte sussurrou quando ele encostou a testa na
dela.
— Hum?
— Hoje, quando voltarmos do baile, eu... — ela olhou para ele e
respirou fundo. — Eu gostaria...
— O quê, meu bem? — ele perguntou, ansioso.
— Eu gostaria que fizesse amor comigo.
Thomas não esperava ouvir aquilo. Não estava preparado. Ele
sentiu sua respiração ofegante e as batidas já fortes de seu coração
acelerarem ainda mais, causando reflexos até a região da virilha,
onde algo parecia mais animado do que o ideal para quem estava
de saída para um baile.
— Tem certeza? — ele conseguiu perguntar, e Charlotte acenou,
sorrindo.
— Eu quero você. Só você.
Ele abriu um largo sorriso, ainda sem conseguir dizer nada, e
seguiu Charlotte quando ela o guiou porta afora.
— Vamos logo ao baile. Não quero desperdiçar roupas tão
bonitas.
Mas se fosse sincera, ela não se importaria nada com aquele
desperdício.
Í
CAPÍTULO DEZESSEIS

A T . A
conhecida por sua riqueza, apesar de nenhum deles possuir um
título nobre.
Quando Thomas e Charlotte chegaram, o grande salão já estava
lotado com todos os conhecidos da região. A decoração escolhida
pelos anfitriões era simples, apenas com alguns arranjos
espalhados aqui ou ali. A música que tocava era boa e animada,
vários casais já dançavam o minueto e devido ao calor, havia mais
vasilhas de ponche espalhadas do que o de costume.
— É um grande salão para uma cidade tão pequena —
comentou Thomas com Charlotte, quando eles entraram.
— Sim. A família é muito rica, mas muito gentil. Muitas festas de
casamento acabam sendo realizadas aqui. A de Carl e Susie foi. Me
lembro muito bem.
— Está bem cheio.
— É o primeiro desde o fim da guerra. E veja, todos estão muito
bem arrumados.
Thomas olhou para ela com carinho.
— Nenhum mais que você. Inclusive, estou sentindo alguns
olhares em nossa direção.
Charlotte lhe devolveu um sorriso zombeteiro.
— Talvez eles estejam curiosos sobre o soldado que está
hospedado em minha casa.
Thomas riu.
— É bem possível.
Ele e Charlotte então começaram a aproveitar o máximo que
podiam da festa. Eles comeram um pouco, apreciando a comida
diferente da rotineira e ela o apresentou a alguns conhecidos.
Todos ali eram muito simpáticos, e apesar do ambiente lotado e
barulhento, Thomas não se sentiu desconfortável. Não gostava de
lugares muito agitados, aquilo era uma verdade, mas parecia que
contanto que Charlotte estivesse ao seu lado, nada lhe causaria
qualquer tipo de problema.
Em determinado momento, Thomas notou os olhos do salão se
voltarem a um elegante casal de meia-idade que apareceu na porta
de entrada.
— Quem são eles? — perguntou curioso a Charlotte.
— Eles são os pais de Oliver. O barão e a baronesa.
Thomas engoliu em seco, não desviando os olhos dos recém-
chegados. Eles se aproximaram um pouco mais e ele conseguiu ver
nitidamente a semelhança de Oliver com a mãe. Ela possuía os
mesmos olhos verdes e cabelos escuros, mas a postura Oliver
certamente herdara do pai, um lorde de estatura mediana e quase
sem rugas, cujo olhos azuis e nariz aristocrático lhe traziam certo ar
de distinção, acompanhado do bigode grosso e grisalho.
— Eu gostaria de conhecê-los. Você pode me apresentar? — ele
pediu a Charlotte, que sorriu.
— Claro, querido. Acho que eles ficarão muito felizes em
conhecê-lo.
Eles se dirigiram até o distinto casal que conversava com Susie,
e o barão deu um sorriso aberto tão logo avistou Charlotte.
— Charlotte! Que bom vê-la por aqui, meu bem — ele exclamou
gentilmente, pousando um beijo na mão dela.
— Boa noite, sir. Senhora Ross — Charlotte os cumprimentou e
a baronesa a puxou para um abraço.
— Faz tempo que não a vejo, querida.
— Eu estive com Susie para o chá, mas vocês estavam viajando.
— Ah, sim. Voltamos ontem. Bem a tempo do evento do ano — o
barão sorriu e em seguida olhou para Thomas que pairava atrás de
Charlotte.
— Barão, baronesa, este é o Capitão Baker. Amigo e antigo
companheiro de Oliver.
Thomas endireitou a postura e fez uma reverência educada aos
dois.
— Milorde. Milady.
— Capitão — o barão repetiu o gesto de Thomas. — Ouvimos
mesmo falar de sua chegada. Estava ansioso para conhecê-lo.
— Certamente, Capitão Baker, conhecer um companheiro tão fiel
de Oliver me faz muito feliz — a baronesa sorriu gentilmente.
— É uma honra para mim conhecê-los. Oliver sempre falou
muito bem de vocês. Ele tinha muito orgulho de sua família.
O barão sorriu, orgulhoso.
— E nós dele. Meu filho era um homem muito honrado, Capitão.
O senhor certamente concorda comigo.
— Sem dúvida, milorde. Devo minha vida a Oliver. Sem ele, eu
não estaria vivo hoje.
A baronesa inclinou a cabeça gentilmente.
— É muito bonito isso que o senhor está fazendo por Charlotte,
Capitão Baker. Honrar sua promessa com alguém que já se foi
demonstra grande ato de caráter e lealdade.
Thomas sabia disso, apesar de já não conseguir afirmar que
eram aqueles os motivos que o faziam querer ficar ao lado de
Charlotte. Ela ouvia a conversa dos três atentamente, trocando
algumas palavras em voz baixa com Susie de vez em quando.
O barão e baronesa conversaram com Thomas um pouco mais
sobre Oliver e seus feitos e personalidade. Apesar da dor que
sentiam com sua morte, ambos tinham muito orgulho do filho, e isso
era visível até mesmo pelo tom de voz que usavam.
Thomas ficou bem satisfeito com aquele encontro. Mesmo que
no início tenha se sentido nervoso, fez muito bem a ele conversar
com os pais do homem que salvara sua vida.
— Susie, minha filha, você me faz companhia ao toilette? —
perguntou a baronesa à jovem, após alguns minutos de conversa.
— Não se importa que me ausente um pouco, meu bem?
— De forma alguma — respondeu o barão. — Inclusive,
poderíamos dançar a próxima valsa, Charlotte.
— Oh, sir, eu agradeço, mas estou na companhia de Thomas e...
— Charlotte, não precisa se preocupar — Thomas a interrompeu
gentilmente, tranquilizando-a. — Fico até agradecido se você dançar
ao menos uma valsa.
— Mas eu não me importo com isso, já te disse.
O barão franziu as sobrancelhas e Thomas percebeu sua
confusão.
— Eu perdi um pé em batalha, sir. Uso uma prótese e sou
limitado para algumas atividades.
— Oh — exclamou o homem — Perdoe-me, Capitão. Não queria
causar qualquer incomodo entre vocês...
— De forma alguma, milorde — Thomas o tranquilizou e se virou
para Charlotte novamente. — Char, não se preocupe. Dance com o
barão. Eu ficarei bem e lhe observarei.
Charlotte hesitou um pouco mas aceitou o convite,
acompanhando o barão até a pista de dança, e quando Susie e a
baronesa se afastaram, Thomas se viu só.
Ele observou a valsa começar e percebeu que Charlotte mentira
descaradamente sobre não dançar bem. A mulher que valsava em
sua frente era uma dançarina nata. A postura dela era perfeita e os
movimentos fluídos e naturais.
Thomas já tinha se acostumado às suas limitações por sua
condição e nunca se definiu extremamente melancólico a respeito
de tudo o que mudara em sua vida após a amputação. Naquele
momento, porém, observando a graciosidade de Charlotte ao valsar,
uma pontada de tristeza tomou seu coração, e ele lamentou
profundamente nunca poder tirá-la para dançar.
— Então, o senhor é o soldado da promessa... — ele ouviu de
repente uma voz feminina ao seu lado.
Virando-se para olhar para a mulher, se deparou com ninguém
menos do que Madeleine Bergon, a tia inconveniente e maldosa de
Oliver.
Ele lembrou da aparência da mulher daquele dia em que
Charlotte tão eficientemente os livrou de sua companhia e pensou
em fugir no mesmo instante, mas como não houve escapatória,
preferiu fingir que não sabia quem ela era.
— Me perdoe, senhora, mas eu não a conheço.
— Ah, mas eu conheço o senhor. Está aqui para casar-se com a
oportunista, não?
Thomas contou até três silenciosamente para não perder a
compostura. Em menos de trinta segundos em sua companhia, a
mulher se provara exatamente tudo que Charlotte lhe descrevera.
— Não sei do que a senhora está falando.
— Ora, claro que sabe. Não está aqui para se casar com
Charlotte Hollth porque fez uma promessa a meu sobrinho Oliver?
— Senhora, não vou discutir assuntos pessoais com uma
desconhecida — ele tentou cortá-la, mas a velha continuou.
— Eu estava curiosa para vê-lo. Ouvi boatos a seu respeito, mas
não acreditei neles de início. Achei que, como veio substituir Oliver,
eu encontraria algo à sua altura. Vejo que me enganei.
Onde aquela ordinária estava querendo chegar?
— E o que a senhora vê em sua frente, então?
— Vejo um meio-homem, exatamente como disseram. É verdade
que não tem uma perna? Como pretende cumprir suas obrigações
de marido em suas condições? — ela utilizava um tom hostil e
gratuito, deixando Thomas sem fala.
A mulher se virou para pista de dança e mirou Charlotte
dançando com o barão, com desprezo.
— Vejo que é insuficiente até mesmo para Charlotte. Mas talvez
isso seja apenas a lei do retorno. Ela tentou tirar Oliver de minha
filha e acabou com o senhor, que nem ao menos consegue tirá-la
para dançar.
— Porque faz isso, senhora? — Thomas perguntou, com o tom
de voz controlado apesar da raiva que sentia. — O que ganha
ofendendo os outros sem qualquer motivo?
Madeleine ergueu o queixo a ele, arrogantemente.
— Não tenho culpa se a verdade o ofende. Apenas acho a vida
justa o suficiente para que ela — e apontou com a cabeça para
Charlotte — tenha exatamente o que merece, após todas as suas
ambições egoístas.
As narinas de Thomas se dilataram e ele endireitou a postura
antes de dizer:
— Sim. A senhora tem razão. A vida é muito justa realmente e
tenho certeza de que Charlotte receberá exatamente o que merece.
A senhora sabe que sou capitão, não? — e naquele momento a
mulher arregalou os olhos, surpresa — A patente me dá uma vida
financeira extremamente confortável, apesar do meu pé faltante. Se
Charlotte aceitar se casar comigo, ela não apenas terá mais
conforto do que a senhora pode pensar, como também poderá
adquirir qualquer coisa que queira. Mas se não aceitar, tenho
certeza de que ficará muito bem, e sabe por quê? Porque ela tem
caráter e dignidade de sobra, e isso dinheiro nenhum no mundo
inteiro pode comprar.
Madeleine ficou vermelha de raiva, mas Thomas não a deixou
partir sem terminar.
— Já que senhora gosta tanto da verdade, aí vai uma: minha
mãe sempre me ensinou que todos oferecemos ao outro o que
temos em nosso interior. Então, eu entendo suas ofensas, porque
elas não apenas estão aí dentro, como transpassam sua imagem.
Deixe-me ser franco ao dizer-lhe que já estive nas mais diferentes
batalhas, com homens gritando ao meu lado, sem membros e
sangrando, mas nenhuma visão me foi tão deplorável e digna de
pena quanto a que presencio ao olhar para a senhora. Enquanto ela
— ele apontou com a cabeça na direção de Charlotte — é a coisa
mais maravilhosa que meus olhos já contemplaram.
Thomas sustentou o olhar até a mulher sair fungando salão
adentro. Nunca em toda a sua vida ele se lembrava de ter dito
qualquer coisa semelhantemente rude a alguém. Mas a velha
maldosa mereceu cada palavra que ele proferiu, e Thomas não se
arrependia de nenhuma delas. Ele queria defender Charlotte de
todas as ofensas já sofridas, de todos os comentários maldosos e
desnecessários.
Porém, por mais que pensasse ter agido à altura daquela bruxa,
toda a história sobre lei do retorno lhe trouxe à frente uma realidade
que Thomas não queria enfrentar: a de que Charlotte merecia o
melhor.
E ele não era o melhor.
Meio-homem, Madeleine dissera. Nem mesmo capaz de tirar
Charlotte para dançar.
Aquilo não era mentira.
Quando Thomas batera na porta de Charlotte, pronto para
cumprir sua promessa ao amigo, ele pensara que estaria ali para
socorrê-la. Pensara que ela precisasse dele. E então, alguns dias e
conversas depois, descobriu que Charlotte não precisava de socorro
algum. Ela não precisava de absolutamente ninguém.
Ao contrário, era ela quem estava constantemente indo a seu
auxílio, com ele estirado no chão da sala sem conseguir se mover,
ou descontrolado e aos gritos com pesadelos. Desde que entrara na
vida de Charlotte, Thomas era a pessoa que vinha sendo amparada
e cuidada.
E ele nem ao menos podia valsar com ela.
Desde que pôs os pés em Carlisle, o pensamento que tomara a
mente de Thomas foi o de que Charlotte precisava aceitar casar-se
com ele. Agora, ali naquele canto do salão, com as palavras cruéis e
verdadeiras de Madeleine Bergon ecoando em seu ouvido, pela
primeira vez desde a promessa feita a Oliver, Thomas entendia que,
na realidade, Charlotte não deveria aceitá-lo como esposo.
Porque ele não era nem de perto o que ela merecia. E aquilo não
era um comentário maldoso.
Era um fato.
E o peso da verdade daquela situação fez com que Thomas não
conseguisse respirar.

T C avistou Madeleine Bergon se aproximando


de Thomas, seu coração acelerou instantaneamente de
preocupação. Sua vontade foi interromper a valsa com o barão e
correr ao encontro deles, para que a velha não tivesse ao menos de
chance de importuná-lo.
Ela bem sabia o efeito que as palavras de Madeleine poderiam
causar. Sua maldade era tanta que muitas vezes até a própria
Charlotte se via duvidando da realidade e ponderando os absurdos
inventados pela velha. Mas ela já estava acostumada e sabia lidar
bem com isso. Thomas, por outro lado, não precisava enfrentar
aquele monstro em forma de dama.
Charlotte queria defendê-lo dela e de qualquer pessoa que o
pudesse insultar. Não porque o achava frágil ou melindroso. Na
realidade, Thomas era a pessoa mais forte que conhecera em toda
a sua vida. Em nenhum momento, durante todos aqueles dias
convivendo, ele se demonstrara afetado pelas inúmeras perdas e
rasteiras que passara. Tampouco se punha em um pedestal,
exibindo sua força e resiliência. Não. Thomas apenas seguia em
frente, com a cabeça erguida, sem necessidade de se afirmar. Ele
era humilde em suas conquistas e traumas. Um bom homem com
uma boa alma. E foi exatamente por essa essência tão bonita que
Charlotte se apaixonara por ele.
— Está tudo bem, querida? — perguntou o barão, notando a
distração de Charlotte em meio à dança.
— Ah, sim, sir. Estou bem — ela respondeu, ainda olhando de
soslaio para Thomas e Madeleine.
— Devo dizer que estou muito feliz em conhecer o Capitão Baker
— o barão comentou, e isso fez com Charlotte o encarasse. — Ele
parece gostar de você.
— Ele gosta, sir. Thomas é um homem muito honrado. O achei
arrogante quando ele chegou, mas nos últimos dias pude conhecê-
lo realmente e ele não para de me surpreender.
— Eu não poderia afirmar outra coisa. Quando soube dos
verdadeiros motivos de sua vinda até aqui, da preocupação dele em
se manter fiel à promessa de Oliver...
Charlotte sorriu levemente.
— Sim, não são todos que cumpririam sua palavra a alguém que
já partiu.
O barão a encarou por um momento, com um olhar paternal.
— Vai se casar com ele, Charlotte?
Ela corou um pouco.
— Eu...
— Não. Não responda. Ele deve saber sua decisão primeiro.
Apenas saiba que eu e a baronesa estamos muito felizes em vê-la
sorrindo de novo. Você merece ser feliz, Charlotte.
Charlotte tentou controlar a emoção que tomou conta de seus
olhos, os enchendo de água. Ela nunca saberia agradecer todo o
carinho e apoio que os pais de Oliver lhe dedicaram, desde o início.
Eles eram o melhor tipo de pessoa, e mesmo Charlotte não sendo
oficialmente parte da família, ela os amava como se fosse.
A valsa logo terminou e ela se lembrou de Thomas sendo
acuado por Madeleine. Indo para o canto em que o deixara, ele não
estava mais ali. Ela olhou em volta e Susie surgiu em seu encontro.
— Char, falei com Thomas há uns minutos.
— Onde ele está?
Susie fez uma expressão pesarosa.
— Ele foi embora. Me disse para avisá-la que iria para casa. Ele
não parecia bem, Charlotte.
Charlotte respirou fundo, sentindo um peso em seu coração.
Thomas se sentira tão mal que partira sem ela?
— Madeleine estava falando com ele na hora da valsa. Tenho
certeza de que ela tem culpa nisso.
Susie concordou.
— Não duvido. Thomas parecia muito afetado.
— Eu vou embora. Vou atrás dele — disse Charlotte, se
apressando em sair, mas Susie enganchou em seu braço.
— Eu te acompanho. Estou cansada e assim você não volta
sozinha.
Charlotte apenas assentiu e as duas deixaram o baile
rapidamente.
Í
CAPÍTULO DEZESSETE

C .
Precisava encontrá-lo para desmentir o que quer que fosse a
semente maligna plantada por Madeleine. Charlotte sabia que algo
muito sério tinha acontecido, pois somente isso justificava a partida
repentina dele. Ela olhou em volta e viu que ele não estava na sala
ou na cozinha, mas avistou uma pequena iluminação no andar de
cima.
Ela subiu as escadas e percebeu que a luz vinha do quarto dele.
A porta estava entreaberta e ao caminhar pelo corredor e chegar
ali, Charlotte deu uma batida de leve na madeira, aguardando um
momento, mas como não obteve resposta a abriu devagar.
— Thomas? — Charlotte perguntou, suavemente.
Ela entrou e percebeu que ele já tinha tirado a casaca e a
gravata e estava de costas para a porta.
— Tom? — ela repetiu.
Sem se virar, Thomas respondeu:
— Charlotte, agora não. Eu gostaria de ficar sozinho, se você
não se importar.
Charlotte sabia que deveria deixá-lo, mas não conseguiu.
— O que aconteceu? — ela insistiu.
— Eu... estou cansado.
Quando ele se virou, Charlotte viu nitidamente a desolação que
estampava seu rosto.
— Por que você partiu sem me falar? — ela perguntou, ainda
perto da porta. — Eu achei que você fosse ficar a meu lado a noite
toda. Estávamos juntos.
Ele se sentou na beirada da cama.
— Charlotte, eu estou cansado e gostaria de ficar sozinho.
Thomas olhava para baixo sem conseguir encará-la, sabendo
que tinha sido um idiota por deixá-la sozinha no baile. Por mais que
não fosse sua escolha, era impossível para ele não se deixar tomar
pelos sentimentos obscuros que sugiram em seu ser após a
conversa com Madeleine. Ele só precisava sair dali, ir embora, não
ver mais ninguém.
Ele estava constrangido.
Olhando para Thomas naquele estado, ela poderia fazer o que
ele lhe pedia e deixá-lo, mas algo lhe dizia que todas aquelas
palavras não eram verdade. Ela queria consolá-lo, fosse o que fosse
que o atormentava. Queria demonstrar a ele todo o seu apoio e
carinho. Charlotte sabia que, na realidade, deveria estar entristecida
ou mesmo magoada por ter sido abandonada por Thomas naquela
noite. Mas, da mesma forma, ela também tinha convicção de que
ele não o fez de forma proposital. Para onde havia ido toda a sua
animação e euforia? Ele estava feliz quando deixaram a casa a
caminho da residência dos Trammel. Nada nas atitudes dele era
nem ao menos próxima à expressão cansada e abatida que seus
olhos contemplavam.
— Eu não acredito em você. Não sei, mas algo me diz que você
não quer estar sozinho — Charlotte disse a ele, calmamente.
Thomas suspirou fundo ao sentir a ternura da doce voz dela e
pôs as mãos no rosto.
— Eu... eu não posso mais fazer isso — ele confessou, de
cabeça baixa.
Ela engoliu seco e devagar, se aproximou dele, abaixando para
ficar na altura que ele estava.
— Thomas, olhe para mim. O que Madeleine te disse? —
Charlotte pediu, mas ele não se mexeu.
— Não posso mais te obrigar a isso — Thomas então olhou para
ela, que não respondeu. — Eu... eu achei que poderia cumprir
minha promessa. Que poderia mostrar a Oliver que ele pode
descansar tranquilo, mas eu não posso. Não consigo...
— Por que você diz isso? — Charlotte o interrompeu, pegando
em suas mãos.
— Porque a cada dia vejo mais motivos para não fazer isso com
você. Você sabe o que senti hoje, quando não pude te tirar para
dançar?
— Eu disse que não me importava em não dançar.
— Mas eu me importo! — Thomas exclamou em voz alta e
Charlotte apenas o olhou.
Thomas parecia constrangido e desesperado. Sua voz estava
trêmula e tudo o que Charlotte queria fazer era abraçá-lo.
— O que foi que aquela velha infeliz te disse? Querido, por favor,
não deixe-a entrar na sua cabeça e...
— Ela me disse a verdade! Sim, Madeleine Bergon é uma
invejosa infeliz, mas ela não falou nada que não fosse verdade.
Charlotte, eu... — ele hesitou, seus olhos demonstrando o
desespero que sentia — Eu me importo em te fazer feliz. Eu me
importo com o fato de que não posso ir a um maldito baile sem te
acompanhar na volta porque não sou estável o suficiente para isso.
Para aturar comentários que não são nada além da mais pura
verdade!
Ele chacoalhava a cabeça, tentando afastar aqueles sentimentos
difíceis e ruins que o tomavam.
— Eu não sou o que você precisa. O que precisa... que ridículo,
não sou o que você merece. Não sou o homem ideal para você e
não posso mais fingir que não sei disso.
Charlotte respirou fundo, sem desviar o olhar dele em nenhum
momento. Ela mantinha a cabeça em alto, mesmo com seu coração
partindo por observá-lo daquela forma.
— E quem é, então, Tom? — ela perguntou baixo. — Me diga,
quem é o homem ideal para mim?
— Alguém que esteja inteiro e possa te dar tudo aquilo você
merece. Deus do céu, Charlotte, eu nem fisicamente posso dizer
que sou sufic...
— Pare! — Charlotte exclamou, firme.
Thomas levantou o rosto para ela, com os olhos cheios de
emoção.
— Você merece muito mais do eu posso te dar, Charlotte.
— Você é suficiente.
Ele negou com a cabeça e Charlotte segurou seu rosto de forma
que seus olhares continuassem fixos um no outro.
— Você é mais que suficiente. Você está me entendendo?
Thomas fechou os olhos, exausto e cheio de amargura, e sentiu
os lábios de Charlotte em sua bochecha. E então em seu nariz, sua
testa e em cada canto de seu rosto, enquanto suas mãos o
seguravam. A cada toque, ele sentia como se Charlotte lhe
devolvesse um pedacinho de sua alma perdida. Ela era o bálsamo
em toda a sua dor.
As mãos de Thomas foram às dela e Charlotte se afastou bem
pouco, fazendo-o abrir os olhos.
— Você é tudo, Tom. Tudo o que eu esperava. Tudo o que eu
queria. Tudo o que eu preciso.
Ele continuava a negar com a cabeça.
— Você é minha escolha. Eu escolho você — ela sussurrou junto
à pele quente do rosto dele.
— Não diga isso... — Thomas protestou, baixo.
— Por que não? — Charlotte quis saber.
Os olhos dele mergulharam nos dela.
— Porque eu vou acreditar em você.
— Que bom — ela disse, firmemente. — Porque eu não minto,
se lembra?
Não, ela não mentia.
Charlotte sorriu levemente, enquanto Thomas olhava em sua
alma com aqueles olhos azuis, e eles souberam, naquele momento,
que só havia uma coisa a ser feita.
Eles colaram seus lábios um no outro, sem grande intensidade.
Como ela conseguia com apenas um toque afastar toda a
obscuridade e incerteza dele?
— Charlotte, por favor... — ele tentou se distanciar, mas ela o
abraçou mais forte.
— Você não me quer? — ela perguntou.
Thomas queria gritar.
— Você é tudo o que eu quero, Charlotte.
— Então me ame, Thomas. E me deixe amá-lo também.
Charlotte voltou a tomar os lábios dele com os seus, e o
momento era extremamente emocionante. Quando suas línguas se
encostaram, era como se Tom e Charlotte compartilhassem da
mesma sensação.
A sensação de cura.
Para ele, das feridas, dos traumas, da rigidez que fora obrigado
a conviver nos últimos anos.
Para ela, das incertezas, das limitações.
Charlotte não estava com ele por obrigação e Tom tampouco
estava com ela por dever. Eles estavam ali por desejo, paixão. Por
necessidade e principalmente, por vontade.
Eles queriam estar ali.
Com aquele beijo, Thomas e Charlotte estavam a caminho da
cura para cada ferida em suas almas. E era perfeito.
Sem se separarem, ela se levantou e, em seguida, se sentou no
colo dele, entrelaçando suas pernas ao redor de sua cintura. As
mãos de Thomas foram até as costas dela, sentindo o tecido do
vestido, depois descendo para as nádegas e ele a agarrou com
força, gemendo seu nome.
— Ah, Char, eu te quero tanto — Thomas disse suplicante, entre
os beijos.
— Estou bem aqui — Charlotte gemeu em resposta. — Eu sou
inteira sua.
Thomas abriu os botões nas costas dela e abaixou o vestido
pelos ombros até a cintura, bem devagar. Seu olhar estava fixo no
movimento do tecido fino, e Charlotte sentiu a pele arrepiar com
tamanha sensualidade. Quando o monte de pano se acumulou no
quadril dela, Thomas engoliu seco e desfez o laço do espartilho,
retirando a peça por completo.
Charlotte se enrijeceu ao se ver exposta daquela maneira,
somente com a chemise separando-a de sua nudez. Não era a
primeira vez que ele a via mais intimamente, mas de alguma forma,
ela se sentiu diferente. E então, percebeu que ele também estava
encabulado.
As mãos de Thomas estavam na lateral dos braços dela e ele a
olhava encantado e hesitante. Ela umedeceu os lábios e bem
devagar, guiou as mãos dele para tocar seus seios. Ele encontrou o
olhar dela, e fechou os olhos ao sentir o corpo quente sob o tecido.
Charlotte adorou o calor das palmas dele, o jeito como Thomas
delicadamente acariciava os mamilos rígidos e teve certeza de que
também queria tocá-lo.
Ela puxou sua camisa pela cabeça e espalmou as mãos no peito
dele, sentindo a pele fervendo com seu tato. Correndo os olhos para
o tronco dele, Charlotte pôde ver a grande cicatriz que ele tinha no
ombro, resultado do ferimento da qual Oliver salvara sua vida.
O corpo dele, forte, lindo e quente, era composto por várias
marcas, umas maiores, outras menores, e ela observava tudo com
atenção, como se ele fosse uma pintura. Por um segundo, Thomas
ficou tenso, talvez aguardando o julgamento dela em relação àquilo.
Contudo, qualquer insegurança que ele tinha caiu por terra quando
Charlotte começou a beijar cada marca em seu corpo.
— Você é tão lindo — ela dizia, enquanto tocava os ferimentos já
cicatrizados com seus lábios e língua.
Thomas sentia como se um rastro de fogo ficasse em cada lugar
que ela beijava, mas diferente da dor que causara suas cicatrizes,
aquele toque só lhe trazia alívio. Ela beijou uma por uma e quando
terminou, eles se olharam e Charlotte sorriu.
— Você é o homem mais lindo que eu já conheci, Tom.
Ouvindo aquilo, Thomas sorriu de volta e então abaixou a
chemise dela e liberou seus seios. Se inclinando um pouco para
trás, se maravilhou os olhando de novo, se possível mais do que na
primeira vez que os tinha visto. Ele mergulhou ali, beijando e
chupando um, depois o outro, de leve e mais intensamente,
levando-a à loucura.
Tom então a deitou de costas na cama e começou a se despir,
enquanto Charlotte também retirava o resto do vestido. Antes que
pudesse se desvencilhar completamente de suas calças, ele retirou
a prótese, afrouxando o espartilho em sua coxa e sentindo um alívio
na pele levemente irritada. Ele deixou a peça cair no chão e se
deitou sobrepondo-se à Charlotte, beijando-a desde baixo, tremendo
de desejo a cada gemido que ela dava.
Seus lábios beijaram as pernas e o interior coxas. Ele se
aproximou do local mais secreto dela, ansioso e sedento para sentir
seu gosto.
— Charlotte?
— Sim? — ela se apoiou em seus cotovelos e olhou para ele, os
olhos queimando de desejo.
— Posso beijá-la?
Ela franziu as sobrancelhas, não entendendo por que ele pedia
permissão para fazer algo que já vinham fazendo há muito tempo,
mas quando a boca dele encontrou o baixo-ventre dela, ela
entendeu.
Ele queria beijá-la ali. E apesar da ideia parecer escandalosa e
indecente, Charlotte nunca ansiara tanto por algo em sua vida. Ela
concordou rapidamente e Thomas a abriu delicadamente para então
pousar sua boca nela.
A sensação que a tomou foi indescritível. Ela se sentia plena e
completa, e deixou que ele fizesse amor com ela daquela forma até
ser tomada por espasmos incontroláveis que a fizeram flutuar.
Thomas esperou o corpo dela se acalmar, subindo com beijos
delicados em toda a pele dela. A boca dele encontrou seus seios de
novo e suas mãos afastaram as coxas de Charlotte para senti-la em
seu centro.
Quando Thomas tomou os lábios de Charlotte de novo, sentiu-a
acariciar seu membro rígido, e soube, naquele instante, que não
aguentaria mais nem um segundo sequer. Precisava tomá-la como
sua, estar dentro dela, se afogar nela.
— Preciso de você, Tom — Charlotte falou, com a voz tomada de
desejo. — Por favor, me ame agora.
Ele a olhou concordando e se posicionou entre as pernas dela,
penetrando-a devagar.
— Ah — ele gemeu. — Charlotte... isso é perfeito.
Devagar, ele foi se aprofundando até sentir que estava inteiro
dentro dela. Ele começou a arremeter e Charlotte agarrou suas
costas, trazendo-o mais perto. Ela beijou seu pescoço, sua boca e
arfou no ouvido dele.
Eles se amaram com vontade e necessidade, se entregando
totalmente um ao outro, e então, de repente, atingiram juntos o
clímax e caíram cansados e ofegantes para o lado.
Quando as batidas de seu coração permitiram, ele se virou para
ela, rindo feito bobo.
— Me desculpe...
— Pelo quê? — ela não entendeu direito.
— Foi um pouco... rápido demais — Thomas explicou, ofegante.
— Eu não fazia isso há muito tempo.
Ela sorriu.
— Nem reparei. Foi maravilhoso.
— Eu ainda consigo fazer melhor — ele disse, provocando-a.
— É mesmo?
Thomas a olhou sorrindo e antes que pudesse responder,
Charlotte se levantou e ficou por cima dele.
— Me mostre, então.

— E , não estava? — Thomas perguntou, uma


quantidade significativa de tempo depois.
— O quê? — Charlotte apoiou o queixo em seu peito.
— Eu consigo fazer melhor, não consigo? — ele deu um sorriso
travesso.
— Sim, devo admitir que sim — ela riu. — Mas eu fiz minha
parte, não?
— Ah, sim! A senhorita fez muito mais do que sua parte — Tom
deu um beijo no topo da cabeça dela, e Charlotte sorriu.
— Você está se sentindo melhor?
— Estou ótimo! — ele respondeu, como quem falava sobre o que
eles tinham acabado de fazer.
— Tom. Falo sério...
Ele ficou sério, mas a olhou com carinho.
— Eu não sei ao certo, Char. Me perdoe por mais cedo, eu não
queria ter te deixado, mas...
— Você não tem que se desculpar por nada. Eu apenas queria
saber o que aconteceu.
Thomas a aconchegou melhor em seus braços.
— Eu não quero que você se conforme comigo. Quero que você
tenha tudo o que merece, Charlotte.
Ela acariciou o rosto dele.
— Você mudou de ideia em relação a mim?
— Não! Char, não tem nada a ver com você. Eu só... eu tenho
muitos problemas, Charlotte. A dor, os pesadelos, minhas
limitações... Você merece muito mais do que eu posso te oferecer, e
apesar de não ter pensado nisso quando cheguei, vejo isso agora.
Charlotte parou por um minuto para pensar e então falou:
— Você quer saber o que me ofereceu desde que chegou?
Thomas frisou a testa.
— Charlotte, eu...
— Você me ofereceu paz. Liberdade. Riso e leveza. Você me
respeitou e me deu prazer de uma forma que nunca achei possível
sentir. Você é honesto e não tenta se esconder de mim. Você nunca
mentiu para mim, Thomas.
Ele suspirou, fazendo carinho no cabelo dela.
Não, ele nunca mentira.
— Há coisas que eu nunca poderei te oferecer.
— Como uma dança? — ela deu de ombros. — Acho que posso
conviver com isso.
Ele balançou a cabeça e ela passou o dedo na barba aparada.
— Se você está inseguro em relação a nós dois, apenas me
diga, Tom. Você estava dizendo antes que não consegue mais fingir
e eu pensei...
— Charlotte, olhe para mim — disse Thomas, sério e olhando no
fundo dos olhos dela. — Eu não me referia a você. Você não é o
problema. Eu apenas quero que você seja feliz e às vezes não
posso negar que penso que não conseguirei estar à altura do que
você merece.
— Você confia em meu julgamento, certo? — ela perguntou,
também mais séria. — Se eu te digo que sim, quero me casar com
você porque acho que serei feliz ao seu lado, você vai confiar nisso
ou vai ficar se questionando o tempo todo?
Ele a olhou antes de responder.
Thomas tinha duas opções. A primeira era acreditar em todos os
seus pensamentos conturbados e deixar que eles o impedissem de
dar o seu melhor a Charlotte, a mulher por quem ele ansiava e
queria desesperadamente fazer feliz, voltando a ser o homem frio e
rígido que a guerra formara. A segunda era confiar na escolha dela.
Era acreditar que se Charlotte, sendo quem era, o achava suficiente
para se casar com ele, algo de bom ele devia ter.
Entre permanecer amargurado e sentir-se seguro e feliz ao lado
dela, ele definitivamente preferia a segunda opção.
— Eu confio em você.
— Eu não quero que você duvide de quem é, Tom. Não quero
que você ache que não é o suficiente para mim. Deixe-me decidir
isso e acredite em mim, tudo bem?
— Certo — ele respondeu. — Mas você tem que entender que
eu tenho feridas profundas, difíceis de lidar.
Ela se inclinou e deu um beijo carinhoso nos lábios dele.
— Posso tentar curá-las? — Charlotte perguntou, de forma
suave.
— Querida, eu não acho que seja tão fac...
— Posso tentar?
Ele olhou para ela e chacoalhou a cabeça positivamente. Não
havia nada que ela lhe pedisse que ele pudesse negar.
Que curioso era o que Charlotte fazia com ele. Quando Thomas
chegou até ali para cumprir sua promessa com o amigo, ele estava
convicto a não aceitar um não como resposta. Bastou uma única
conversa sincera com ela para que ele decidisse que a deixaria livre
para fazer aquela escolha. Da mesma forma, nunca foi sua intenção
se envolver emocionalmente com Charlotte. E lá estava ele, após
fazer amor com ela, deixando-a ciente de cada fragilidade em seu
ser, recebendo sua afeição como se fosse perecer se não a tivesse.
Charlotte o havia mudado em mais formas do que ele poderia
mensurar. E por um momento, mesmo que improvável, ele acreditou
que ela pudesse sim aplacar cada ferida em seu ser, por mais difícil
que fosse. E acreditou porque já se sentia, de certa forma, são.
— Sim — ela disse, com carinho.
Thomas franziu as sobrancelhas.
— Sim?
Ela concordou.
— Sim, eu me caso com você, Thomas.
Ele abriu um largo sorriso.
— De verdade, Charlotte?
— Nada me deixaria mais feliz — e Thomas viu em seus olhos
que aquilo era verdade.
Í
CAPÍTULO DEZOITO

S ,
apoiadas na parede e as pernas estendidas. A brisa noturna
certamente ajudava muito no calor do verão.
Após fazer companhia à Charlotte, ela aproveitou o tempo de
solidão no grande casarão até que o barão e a baronesa voltaram
do baile, animados e alegres por participarem do evento.
Susie gostava muito dos dois. Ela sempre os vira como figuras
paternas, mas após perder os pais, aquela afeição cresceu
significativamente, especialmente depois de a acolherem tão
prontamente com toda sua tragédia pessoal.
Ela então pensou em Oliver e em como gostaria que ele
estivesse ali, mesmo que implicando com seu jeito nada delicado de
ser. Susie podia não o suportar, mas sempre soube que Oliver era
um bom homem que merecia o melhor do mundo. Inclusive, jamais
teve dúvidas de que Charlotte certamente o faria feliz.
Uma pena que a vida muitas vezes tomasse rumos inesperados.
Ainda assim, Susie estava muito satisfeita por Charlotte ter
encontrado a felicidade outra vez. Seu compromisso com Thomas
não era nada oficial, mas era nítida a afeição que os dois nutriam
um pelo outro, e ela sabia que muito em breve a amiga cederia ao
pedido de casamento dele.
Suspirando, Susie se levantou para entrar. Ela sempre se sentia
melancólica após participar de eventos sociais. Mesmo após tanto
tempo, ela ainda conseguia sentir os olhares de julgamento em sua
direção, como se fossem dedos gigantes a apontando. Por esse e
outros motivos que ela preferia ficar em casa a sair. Se sentia mais
segura e protegida resguardada, mesmo que sozinha.
Ela se aproximou da porta e notou um pequeno vaso de barro no
chão, com a planta que se abrigava nele quase murcha. Se abaixou
e pegou-o nas mãos, para levá-lo para dentro e regar a pobrezinha.
Ao se virar para entrar, porém, o vaso caiu no chão e se
estraçalhou em inúmeros pedaços. Susie sentiu a cor sumir de sua
face e o corpo inteiro tremer de pavor. Ela perdeu o foco do olhar e
sua boca ficou seca.
Das duas, uma: ou estava ficando louca ou fantasmas realmente
existiam.

C de Thomas e, olhando na janela,


percebeu que o sol já estava para nascer. Ela sabia que o certo era
se levantar e ir até seu quarto, mas não o fez. Ao invés disso, se
aconchegou ainda mais nos braços fortes que a envolviam e
aproveitou aquele momento com ele.
Pensou em como a vida era curiosa. O homem que estava em
seus braços até poucos dias antes era um completo desconhecido
— com exceção das cartas que eles trocaram — mas agora,
Charlotte não conseguia se imaginar sem ele. Queria amá-lo e senti-
lo todos os dias. Queria ajudá-lo a entender que ele era muito mais
do que via do espelho. A melhor coisa que fizera em sua vida foi
seguir o conselho da irmã e utilizar aquele tempo para se
conhecerem.
Elizabeth era muito sábia, e Charlotte certamente admitiria isso a
ela depois.
Thomas se mexeu um pouco e levou as mãos ao cabelo dela,
acariciando-o.
— Bom dia, querida.
— Bom dia — ela respondeu, levantando os olhos para ele, que
apenas sorriu. — O que foi?
— Estou feliz, Char.
— Eu também, meu bem.
Abraçando-a ainda mais, ele fechou os olhos novamente.
— Eu estava pensando em algo.
— O quê? — Charlotte perguntou.
— Você se lembra em nossa primeira conversa, quando
estávamos indo para a vila e eu te disse para não acreditar em tudo
o que vê?
— Sim. Você me disse que a guerra o ensinou a esconder seus
sentimentos.
— Exatamente. Eu acho que é por isso que desde que cheguei,
tive tanto a dor como o sonho ruim.
— O que quer dizer?
Ele fez um carinho na bochecha dela com o dorso dos dedos.
— Quero dizer que não estou mais na guerra. Estou em casa,
em paz e bem... não preciso mais esconder nada — Thomas olhou
para ela, com afeto. — Com você, não quero esconder nada. É
estranho porque por mais que eu queira ser mais por você, não
quero fingir ser algo que não sou. Consegue entender?
Charlotte sorriu e assentiu.
— Tudo bem eu não esconder? — ele perguntou.
— Eu o proíbo de esconder, querido.
Sorrindo de volta e abraçando-a, ele deu um beijo no topo de
sua cabeça.
Se todas as manhãs com Charlotte seriam assim, ele certamente
não demoraria a se acostumar com isso.
— Parece que não quero sair da cama tão cedo... — disse,
preguiçoso. — Estou cansado. Me pergunto o motivo...
— Eu acho que sei o motivo! — ela respondeu, divertida. — Mas
eu devo me levantar. Ainda tenho algumas encomendas para
terminar.
— Oh, não faça isso — Ele deu um beijo no pescoço dela. —
Assim não posso nem ao menos argumentar para que você me faça
companhia.
— Desculpe, querido. Se eu soubesse que estaríamos assim,
teria terminado tudo antes.
— Se eu soubesse que terminaríamos assim, eu nem te deixaria
ir para o baile.
Charlotte riu e deu um beijo nele.
— Vou comer e começar a trabalhar, assim ficamos juntos mais
cedo.
Ele balançou a cabeça.
— Tudo bem. Eu te acompanho.
— Você não precisa se levantar, Tom!
— Claro que preciso! Não vou perder o primeiro café da manhã
com minha noiva.
Noiva.
Charlotte se deu conta de que era a noiva de Thomas Baker, e
nada nunca soou tão agradável em seus ouvidos quanto aquilo.
Alguns minutos depois, eles desceram as escadas juntos e
encontraram Liz tomando uma xícara de chá.
— Bom dia — disse. — E que sorrisos bonitos vocês trazem.
— Bom dia, Liz — respondeu Thomas, enquanto Charlotte
somente sorriu.
— O baile estava agradável?
— Sim... claro, o baile — Charlotte riu. — Estava sim.
Liz estreitou os olhos. Havia algo ali que ela não sabia.
— O que vocês têm para me contar?
Charlotte olhou para Thomas, que hesitou um pouco antes de
falar.
— Acho que isso é algo que minha noiva deveria lhe dizer.
— E por que tem que ser sua noi... Ah! Não me digam! Charlotte,
você aceitou finalmente? — ela perguntou, virando-se para a irmã.
— Sim, Liz. Thomas e eu vamos nos casar — respondeu
Charlotte, abraçando-o pela cintura e com um sorriso de orelha a
orelha.
— Aleluia! — Elizabeth exclamou, pondo a xícara na mesa. —
Finalmente algo que vale a pena celebrar.
— Bom... Uma guerra acabou de terminar... — disse Thomas,
provocando-a.
— Bem, você entendeu. E agora que será meu irmão, é melhor
baixar esse tom zombeteiro comigo — Liz o repreendeu, fazendo-o
rir. — E quando será isso?
— Não sei ainda, Liz. Mas logo. Não temos por que esperar —
respondeu Charlotte, e nisso elas ouviram alguém batendo na porta.
— Quem pode ser a esta hora?
— Deixem que eu atendo — Elizabeth disse, se levantando. —
Ora, estou muito feliz. Nada poderia alegrar mais meu dia.
— São nove horas da manhã, Liz.
— Eu sei, mas tenho certeza disso — ela riu e foi em direção à
porta.
Charlotte e Thomas se sentaram e ela serviu seu chá. Quando
olhou para Liz retornando da entrada, percebeu sua expressão
pálida e espantada. Os dois se levantaram num rompante.
— O que houve? — perguntou Charlotte, preocupada.
— Eu... — Liz não conseguiu dizer nada antes de uma figura
aparecer na sala logo após dela, fazendo com que Charlotte
derrubasse a xícara que segurava.
— Bom dia — disse o sujeito.
— Oliver? — Thomas e Charlotte disseram juntos, no mesmo
espanto.
— Eu mesmo. Estou vivo, no fim das contas.
Í
CAPÍTULO DEZENOVE

E
situação toda. Liz conseguiu recuperar sua cor rápido, e já tinha
recolhido os cacos da xícara derrubada por Charlotte.
Os quatro estavam sentados na sala de estar, cada um em um
canto. Thomas estava perplexo e Charlotte encarava Oliver como se
ele fosse um fantasma.
Porque para ela, na verdade, ele era.
Ele não mudara quase nada comparado à última vez Charlotte o
vira. Seu cabelo estava um pouco mais longo que o normal, e havia
poucos fios grisalhos nas laterais da cabeça. Os olhos verdes dele
também estavam mais intensos e de certa forma, sofridos. Não que
ele estivesse envelhecido, mas sua aparência trazia um ar de
maturidade que não o acompanhava anos antes.
— Bem, sinto que devo me explicar — ele quebrou o silêncio
ante à tensão.
— Seus pais já sabem que está vivo? — perguntou Charlotte, de
repente.
O barão e baronesa ficariam extasiados em saber que Oliver não
morrera. Só de imaginar a alegria deles, o coração de Charlotte
esquentava no peito.
— Sim. Eu cheguei ontem à noite e já falei com eles.
— Oh. Bom. Isso é muito bom — ela disse, voltando a encarar o
nada.
Ele esperou Charlotte dizer mais alguma coisa, e quando isso
não aconteceu, continuou.
— Bem... como eu estava dizendo, eu acredito que devo me
explicar.
— Onde você estava todo esse tempo? — foi Thomas quem o
interrompera desta vez.
— Escondido.
O amigo o olhou como quem não entendia e Oliver continuou.
— Eu fiquei gravemente ferido na última batalha que lutei.
Aquela em que você estava se recuperando...
— Eu me lembro muito bem.
— Eu fui atingido por balas em toda a região superior das costas,
mas como estava perto de um riacho, me arrastei até a beira. Eu
não fazia ideia de que ali era uma fronteira.
Charlotte e Liz o observavam atentamente enquanto ele contava
a história.
Oliver não demonstrava instabilidade ao proferir as palavras,
mas se via certo trauma no tom de sua voz. Era como se por muito
tempo ele tivesse que guardar aquilo para si e então, ali frente a
todos eles, finalmente Oliver exteriorizava tudo o que passara.
— Eu devo ter ficado ali uns dois dias, pelo que me contaram.
Acordei cerca de uma semana depois, na França, sendo cuidado
por uma família de camponeses de lá. Demorei muito para me
recuperar. Tive uma febre contínua e realmente quase morri.
— Isso faz quatro anos, Oliver. Por que não apareceu durante
todo esse tempo?
— Porque eu não podia, Tom. Eu até quis, mas a família que
cuidou de mim me convenceu a ficar quieto e esperar as coisas
passarem. Apesar de serem franceses, eles não concordavam com
a guerra e não me denunciaram.
Oliver juntou as mãos e chacoalhou as pernas, ansioso.
— Você e eu sabemos que se eu voltasse, me colocariam no
campo de batalha novamente, e eu não estava em condições de
lutar.
Thomas passou a mão pelos cabelos, incrédulo com tudo o que
escutava.
— Eu sei que parece covardia, mas eu não pude. Simplesmente
não consegui voltar para aquele inferno. E eu me afeiçoei àquelas
pessoas. Eu não sabia como agir, Tom. Se eu não morri depois de
vários tiros e dias agonizando, eu achei injusto simplesmente ser
jogado aos leões como um peão da Coroa novamente. Um homem
não faria diferença. Eu apenas pensei que deveria esperar a guerra
acabar e foi o que fiz.
— A Coroa sabe que você voltou?
Oliver balançou a cabeça, negando.
— Não. Não ainda.
— Você pode ser acusado de traição se eles souberem! —
Thomas exclamou, arregalando os olhos.
— Eu lidarei com isso se for necessário. Eu apenas... — Oliver
hesitou, olhando para baixo. — Por favor, não comentem isso com
ninguém. Minha mãe acabou de receber o filho de volta. Não quero
que ela saiba o que pode acontecer uma vez que descubram que
estou vivo.
Thomas o encarou e apenas concordou com um aceno. Oliver
estava certo, por um lado. Por outro, porém, Thomas sabia que ele
estava arriscando demais em se manter longe dos olhos da Coroa.
Apenas duas classes de soldados agiam daquela forma: os inimigos
e os traidores. E em nenhum dos casos o destino era algo bom.
— Se sabia do risco que corria, por que você voltou agora? —
perguntou Charlotte a Oliver, com os olhos aflitos.
Ele se virou para ela, sério, e respondeu sem hesitar:
— Por você. Porque eu sabia que estaria esperando por mim,
Charlotte.
Naquele momento, enquanto os olhos de Charlotte se encheram
de lágrimas desesperadas, Thomas sentiu como se algo o atingisse
em cheio no peito.
Desde que Oliver entrara pela porta, ele ainda não tinha se dado
conta de que aquele retorno inesperado significava que todo o
propósito de Thomas estar ali não existia mais.
Na verdade, nunca existiu.
E de que ao receber o amigo de volta em sua vida, estava
perdendo Charlotte.
Olhando para Thomas, Oliver exclamou:
— Imagino que esteja aqui porque está cumprindo o que me
prometeu.
Thomas balançou a cabeça, ainda sem poder falar nada.
— E vocês já se casaram?
— Não — Tom respondeu.
— Ótimo. Cheguei a tempo, então.
Charlotte olhou para Thomas e em seguida se virou para Oliver
novamente.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que estou aqui para nos casarmos. Thomas não
precisa mais cumprir sua promessa. Não existe nada pendente,
afinal.
Charlotte sentiu uma falta de ar instantânea, mas Oliver pareceu
não notar. Elizabeth, por outro lado, segurou firme a mão da irmã.
— Thomas — disse Oliver, se virando ao amigo. — Eu não tenho
palavras para lhe agradecer. Você é um homem honrado, de fato.
Obrigado por ser sempre meu amigo, mesmo quando eu estava
morto.
Ele se levantou e abraçou Thomas que, retribuindo o gesto,
encontrou o olhar de Charlotte.
Diga algo, ela pensou, mas Thomas não disse nada.
Ele desviou os olhos, mas não antes de ver uma lágrima
escorrendo pelo rosto dela.
— Eu espero que saiba que estou feliz que você esteja vivo,
Oliver — ele disse.
Era verdade. O fato de Oliver estar vivo enchia Thomas de
alegria, ao mesmo tempo que lhe matava lentamente.

C no sofá pensando e sofrendo com


toda aquela situação. Oliver permaneceu mais uns momentos junto
a eles, perguntando sobre Thomas e descobrindo o que acontecera
em sua vida desde a última despedida deles. Depois, ele voltou para
a casa de seus pais e anunciou que retornaria no dia seguinte.
Após sua partida, Thomas subiu as escadas em disparada e se
trancou no quarto. Charlotte não o incomodou, pois também não
conseguia reagir a tudo aquilo. Ela chorou uma bela parte da tarde,
e Liz pediu ao dono da estalagem uma folga para ficar com a irmã.
Tudo o que Charlotte conseguia pensar era em como a chegada
de Oliver afetava seu destino com Thomas.
Thomas, o homem que ela verdadeiramente amava.
Não foi necessário nem um segundo a mais após Oliver dizer
que se casariam para ela perceber que não somente não queria se
casar com ele, como não poderia fazer isso. Não amando outro
homem. Um homem que ela escolheu como seu. Um homem que
não disse absolutamente nada quando outro a tomou para si.
Porque Thomas, que parecia tão feliz em se casar com ela
apenas alguns momentos antes de tudo aquilo, não disse nada? Por
que ele não se impôs e enfrentou Oliver? Por que ele não lutou por
ela?
Charlotte estava com as mãos ao lado da cabeça, esfregando
suas têmporas quando ouviu um barulho de passos.
Thomas logo desceu as escadas saltitando e carregando sua
mala. O dia estava amanhecendo, mas ainda não estava claro o
suficiente para que as velas fossem apagadas. Ela se sobressaltou
ao vê-lo, surpresa.
— Aonde está indo? — perguntou, toda confusa.
Thomas pôs a mala no chão. Ao olhar para ela, sentiu seu
coração estraçalhar.
— Estou indo embora. Vou para a estalagem até conseguir uma
diligência até Yafforth.
— Você está indo embora? — Charlotte não podia acreditar no
que ouvia.
— Charlotte...
— Você não pode ir embora! Não pode me deixar! — ela
começou, inconformada.
— Charlotte...
— Não é assim que vamos resolv...
— Ele está vivo! — Thomas quase gritou, desesperado. — Oliver
está vivo, Charlotte! Não existem motivos para eu ficar aqui!
Charlotte sentiu seu maxilar se enrijecer.
— Não existem motivos? E quanto a mim? E quanto a nós?
— Nós só nos envolvemos porque ele não existia mais.
— Não. Nós nos envolvemos porque escolhemos isso — ela
retrucou, com a voz trêmula.
Thomas fez de tudo para não mostrar alteração em sua fala, mas
não conseguiu.
— Oliver voltou por você. Você o ouviu. Ele vai cuidar de você.
Você não precisa mais de mim.
Charlotte podia jurar que aquela era a sensação de um tiro.
— Claro. Entendi bem. Ele está vivo então não há promessa a
cumprir — ela dizia aquilo olhando fundo nos olhos dele.
— Há a sua promessa. O seu compromisso com ele.
— Mas não a sua. Você está livre agora, certo?
Tom ergueu o rosto antes de responder.
— Minha promessa com ele foi o único motivo que me trouxe
aqui, de qualquer forma.
Dizer aquilo o matou por dentro, mas ele se manteve sério.
— Porque amor não é algo verdadeiro, não é? É tudo sobre
honra.
— Minha honra está intacta! — Thomas disse, firmemente.
— Mas isto continua não sendo uma história de amor, certo?
Aquelas palavras fizeram sangrar o fundo de sua alma, e
Thomas não tinha resposta para elas.
— Mesmo que eu te diga que para mim é, na verdade, uma
história de amor, a mais linda e improvável história de amor, eu
ainda serei uma tola que confundiu as coisas, não é mesmo? —
Charlotte continuou, com a voz embargada. — Mesmo que eu te
diga que eu me apaixonei por você, dia após dia depois de você
entrar por essa maldita porta, certo?
Thomas não sabia se aquela era uma pergunta irônica ou uma
declaração. De qualquer forma, fosse o que fosse, o rasgava por
dentro como uma espada.
Charlotte então balançou a cabeça, mas não disse nada e
Thomas percebeu não podia mais estar ali. Não podia mais olhá-la
sabendo que nunca a teria.
Ele deu a volta e começou a andar e quando estava na porta,
ouviu-a dizer:
— Você se equivocou, Thomas.
Ele se virou para ela, mantendo a expressão séria.
— Você acha que conseguiu escapar de tudo por sua honra,
mas isso não é verdade. Não fui eu, ou Oliver ou sua promessa que
o fez sobreviver — ela deu um passo a frente, como que o
enfrentando. — Foi o medo. O medo de falhar. De não cumprir a
promessa que era a única coisa sob seu controle.
Thomas engoliu seco e sentiu sua respiração ficar mais difícil.
— De alguma forma, esse medo o fez mais forte, lá, no campo
de batalha, mesmo você não tendo consciência disso — Charlotte
disse e deu mais alguns passos ficando a uma curta distância dele.
— Mas isso mudou. Deixe-me te contar uma coisa, Thomas.
Aqui, de frente para mim, eu vejo um homem deixando tudo o que
poderia viver, o que merece viver, por medo. Medo de me amar e de
ser amado de verdade! E... — a voz embargada de Charlotte lutava
em sua garganta. — Nesse medo, eu não vejo força.
O olhar marejado dela penetrou no mais profundo da alma de
Thomas, enquanto uma lágrima escorria na bochecha dele.
— Hoje, esse medo só te faz mais fraco.
Charlotte se virou rápido e subiu as escadas em disparada,
deixando Thomas parado na porta.
Ele já tinha sido atingido por balas e explosões, tinha perdido um
membro em detrimento de ferimentos e quase padecido de febre,
mas nada, nunca, doeu tanto quanto a verdade nas palavras dela.
Í
CAPÍTULO VINTE

O H
horário do almoço. Charlotte estava concentrada costurando quando
o ouviu chamar. Ela olhou em um pequeno espelho que mantinha na
sala de costuras e percebeu que o inchaço do choro da manhã já
tinha se dissipado. Após a partida de Thomas, ela chorou
copiosamente e por um momento pensou que nunca mais fosse
conseguir parar.
Vê-lo deixando-a quebrou seu coração.
Charlotte não sabia de onde tinha conseguido tanta coragem
para dizer aquelas palavras a Thomas, mas estava feliz por tê-lo
feito. Tudo o que ela via em seu olhar era medo e ela sabia disso
justamente porque o conhecia tão bem. Porque o amava.
Era uma audácia, depois de tudo o que eles tinham vivido nos
últimos dias, Thomas simplesmente se esconder em sua honra e
deixá-la. Ela até entendia o peso da amizade dele com Oliver, mas
tudo aquilo poderia ser resolvido com uma conversa sincera, mesmo
porque, quem Oliver pensava que era para surgir depois de tanto
tempo se fingindo de morto, achando que nada mudara em sua
ausência? Toda aquela situação era até mesmo ridícula! Como
podiam aqueles soldados que lutaram em tantas batalhas mortais
terem medo de simples palavras?
Charlotte encarou mais uma vez a folha de papel em sua frente.
Thomas lhe deixara uma carta de despedida — como se isso fosse
suficiente —, que ela encontrou no quarto dele após ele partir.

Q C
S H ,
Agora que sabemos que Oliver está vivo, creio não haver mais
motivos para eu ficar aqui. Eu agradeço imensamente sua
hospitalidade e atenção durante todos esses últimos dias. Me
perdoe por não me despedir, mas creio ser melhor assim.
Eu desejo que seja feliz. Você não merece nada menos do que isso.
De certa forma, cheguei em Carlisle para protegê-la e parto em
dívida com a senhorita.
Eu jamais a esquecerei.

T B .

Os olhos dela lacrimejaram novamente ao ler aquelas palavras.


Eram todas tão... impessoais. Como se eles fossem apenas dois
conhecidos que não compartilharam nada além de um teto.
Respirando fundo, Charlotte afastou a folha de papel e se
levantou para ir ao encontro de Oliver. Ela não sabia qual seria seu
futuro a partir daquele momento sem Thomas em sua vida.
Porém, o que ela sabia era que não agiria como uma covarde
igual a ele.
Ela chegou na sala de estar e Oliver já estava sentado com uma
xícara de chá na mão, de frente para Elizabeth. Ao perceber a
presença de Charlotte, ele se levantou rapidamente.
— Char, bom dia — disse, acenando com a cabeça.
— Bom dia, Oliver. Liz — ela cumprimentou a irmã, pois era a
primeira vez que a via naquele dia.
— Como você está, querida? — perguntou Elizabeth, do jeito
carinhoso que fazia todas as manhãs.
Ela conhecia a irmã o suficiente para saber que tinha chorado,
mas não disse nada a respeito.
— Estou bem, mas gostaria de falar com Oliver a sós.
— Vou deixar vocês conversarem. Estou de saída para a
estalagem, hoje creio que devo ficar até tarde, tudo bem? — ela
disse, pegando a sacola que estava em cima da mesa e dando um
beijo na bochecha de Charlotte.
— Bom trabalho, querida — Charlotte respondeu.
— Obrigada. Thomas está aqui?
Charlotte fez de tudo para controlar sua expressão.
— Ele partiu de madrugada.
Tanto Oliver como Elizabeth a encaram, surpresos com a nova
informação.
— Partiu para onde? — Liz perguntou.
— Eu não sei, querida. Simplesmente partiu.
Percebendo o tom de Charlotte, Elizabeth achou melhor não
prolongar o assunto, por mais espantada que estivesse.
— Bem... Vou-me, então. Até logo, Oliver — disse ela, saindo
porta afora.
Oliver olhou para Charlotte que indicou com a mão para que se
sentasse.
— Como passou a noite? — ele perguntou, direto.
— Bem. Você? — Charlotte respondeu, tentando conter seu
nervosismo.
— Bem, na medida do possível. Tive um pouco de dor de cabeça
forte ontem à noite. Acabei entrando no quarto de Susie por engano
e quando ela foi dormir se assustou e gritou. Não ajudou na dor —
comentou.
— Ah, sim. Susie está em seu antigo quarto, não é?
— Sim. Bem... é o quarto dela agora. Aquela irritante se apossou
do lugar. Mas não posso reclamar. Acredito que quando morremos
perdemos o direito de reivindicar qualquer cômodo — ele tentou
fazer piada, mas Charlotte não riu.
Oliver entendia. Ele também não achava divertido o fato de ter
se fingido de morto por tanto tempo. Quando pensava no quanto
seus entes queridos sofreram com sua ausência, ele sentia um
aperto terrível no peito. Sua covardia durante todo aquele tempo
quase o sufocava.
Mas isso era um fardo que ele estava disposto a carregar
sozinho.
— Char, a vejo um pouco cansada. Está tudo bem? — ele
perguntou, notando o abatimento dela.
— Na verdade, não — ela respondeu, num tom que Oliver não
se lembrava de tê-la visto utilizar antes.
Era um tom firme, decidido.
Ele endireitou sua postura, com uma expressão preocupada.
A Charlotte que ele tinha em sua frente, sua noiva, não era a
mesma da qual se despedira anos antes.
Ela era uma estranha.
Tirando a aparência que permanecera a mesma, talvez apenas
com alguns traços mais maduros, aquela bela mulher que olhava
para ele era diferente.
Mas, se parasse para pensar bem, tudo era diferente, na
verdade. Inclusive ele mesmo.
— Há algo que eu possa fazer para ajudar?
— Sim. Peço apenas que me escute, tudo bem?
Oliver franziu as sobrancelhas e acenou com a cabeça.
— Oliver, para mim é uma grande surpresa e alegria vê-lo vivo.
Eu jamais esperava e eu quero que saiba que sofri muito com a
notícia de sua morte. Eu me senti sem chão e por muito tempo foi
muito difícil me imaginar seguindo em frente sem você.
— Eu acredito em você — Oliver respondeu, sério.
Charlotte respirou uma vez e continuou.
— Pois bem. Mesmo assim, Oliver, você ter voltado não muda o
fato de que já não sou a mesma pessoa que um dia se
comprometeu a você. Eu mudei, e você precisa saber disso.
— Charlotte, eu entendo. Nenhum de nós somos os mesmos
após tudo o que aconteceu. Mas minhas intenções são. Nada do
que possa ter mudado fará com que eu não me case com você e...
— Eu não quero me casar com você, Oliver.
Oliver a olhou surpreso. Ele esperava muitas coisas, mas ouvir
aquilo não era uma delas.
— O quê?
Charlotte engoliu em seco e hesitou por alguns segundos. Sua
expressão era muito similar a dos soldados quando eles estavam
tomando coragem para avançar. Naquele momento, Oliver percebeu
que ela estava tentando superar o medo.
Mas medo de quê?
— Na noite antes de você partir, quando nós... estivemos juntos,
eu percebi que não te amava. Que gostava de você, sim, mas não
te amava como eu pensava. E então passei a me culpar por ter
aceitado me casar com você.
Charlotte estava decidida a contar tudo a ele, sem ocultar
nenhum detalhe.
— Mas então eu vi que não era minha culpa. Você me pediu em
casamento indo para a guerra! Como eu diria não a você, Oliver?
Oliver engoliu em seco, sem dizer nada.
— E eu estava disposta a me casar com você, mesmo assim.
Porque você é um bom homem e eu tenho certeza de que também
seria um bom esposo. Mas a guerra se prolongou e minha vida foi
toda moldada em uma promessa, Oliver. Tudo o que fazia era com
base no que havia te prometido, e eu me mantive fiel a você. Todos
os dias de sua ausência, eu fui fiel a você. E então você morreu, e
eu tive que aprender a seguir em frente. E quando eu nem tinha tido
o tempo para me refazer, Thomas chegou me dizendo que você o
tinha mandado. Lá estava eu, novamente, fazendo o que você tinha
decidido.
Oliver percebeu que o tom dela começou a se alterar, ficando
cada vez mais irritado.
— Agora você está aqui, na minha frente, me dizendo que eu
devo me casar com você, que voltou por mim. Estou farta, Oliver!
Não posso mais! — exclamou Charlotte, em alto e bom tom. — Eu
cansei de obedecer às suas decisões. E por isso te digo, eu
agradeço que tenha pensado em mim. Que tenha mandado Thomas
e que tenha voltado, mas não vou me casar com você.
Oliver passou a mão nos olhos, processando tudo aquilo.
Em todos aqueles anos, Charlotte foi a única coisa a qual ele
tinha certeza de que permaneceria igual em sua ausência. Ele sabia
que ela esperaria por ele porque a conhecia. Charlotte era leal.
Justamente por isso, aquela atitude dela certamente o pegava de
surpresa.
— Você se casaria com Thomas, mas não vai se casar comigo?
— ele perguntou, e Charlotte franziu a testa.
— Quando retornei e perguntei se vocês já tinham se casado,
ele me respondeu que ainda não. E ele estava hospedado aqui, o
que significa que você iria se casar com ele, não é?
Charlotte manteve a cabeça em alto.
— Sim, eu ia me casar com ele, mas não é porque você tinha
dito que o fizesse.
Oliver, então, entendeu tudo.
— Você o ama?
— Eu amo — ela respondeu, decidida. — Mas isso não faz
diferença no que estou te dizendo agora.
— Não? Porque eu acho que faz.
— Ele partiu, Oliver. Ele não tem mais promessa nenhuma a
cumprir. Não é meu amor por Thomas que me impede de casar-me
com você. É meu amor-próprio. Eu cansei de ter medo de fazer o
que acho certo. Se um dia eu me casar, é porque eu quero e não
porque alguém me disse que fizesse.
Oliver ficou olhando para o chão por um momento, antes de
Charlotte continuar.
— Oliver, olhe para mim.
Quando ele o fez, ela sorriu.
— Você está vivo! Você merece alguém que te ame, que te faça
feliz, e eu não sou essa pessoa.
Ele deu um sorriso debochado, como quem não acreditava nela.
Oliver e Charlotte podiam estar distantes há muito tempo, mas ela o
conhecia bem e naquele exato momento ela soube que havia algo
que ele não estava lhe contando.
— Oliver? — Charlotte perguntou com carinho. — Me diga.
— Eu só... eu achei que você precisasse de mim. Sei que
provavelmente deveria estar feliz por não precisar, mas... — Oliver
hesitou, sem olhar para ela.
Charlotte pegou na mão dele.
— Oliver, sou eu. Você pode me dizer qualquer coisa.
Oliver engoliu seco e seu olhar marejado encontrou o dela.
— Eu não sei mais quem eu sou, Char. Com tudo o que
aconteceu, eu... eu perdi minha identidade, meu propósito. A única
coisa que me parecia palpável era meu dever com você e agora,
com tudo isso, não sei o que fazer.
Charlotte o olhou cheia de compaixão. Nunca, em toda a sua
vida, ela imaginou ser o último fiapo de sentido na vida de um
homem, pudera dois.
— Fui arrogante o bastante para pensar que você não mudaria
nada. Que estaria aqui me esperando, mesmo depois de morto. Eu
sou patético, Charlotte.
— Oliver, eu entendo. Quando você estava mort... bem, quando
pensei que estava, eu me senti assim também. Mas, querido, esse
sentimento não era justo comigo, e não é com você.
— Eu não queria que você tivesse vivido sua vida em minha
função. Não foi essa minha intenção. Eu voltei porque achei egoísta
da minha parte t...
— Nada do que você fez nesse período foi egoísta. Aliás, não há
qualquer sinal de egoísmo nesta casa. Nem você, nem eu, nem
Thomas, nenhum de nós foi egoísta.
— Mas eu preciso que você saiba que eu te amei todos esses
anos.
Ela concordou com a cabeça.
— Eu sei, Oliver. Eu também te amei. A grande questão é que
você também não está apaixonado por mim.
Oliver percebeu que aquilo não era uma pergunta.
— Não.
E realmente, não estava. Talvez... desde há muito tempo.
Oliver fechou os olhos antes de perguntar:
— E agora o quê?
Charlotte tocou carinhosamente em seu rosto, e ele voltou a
olhá-la.
— Agora é hora de sermos livres.
Livre. Se ao menos Charlotte soubesse o quão impossível era
aquela palavra para ele.
Uma lágrima solitária escorreu na bochecha dele, e Charlotte a
limpou com o dedo.
— Nada mais te prende, querido. Nem o exército, nem
compromisso, nem eu. Você está livre para ser o quiser.
— Eu não tenho ideia de como fazer isso.
Ela sorriu.
— Você já enfrentou dilemas piores. Tenho certeza de que vai
conseguir.
Talvez, naquele momento, pela primeira vez na vida, Charlotte e
Oliver se entenderam de verdade, sem suposições ou enganos.
— É essa sua decisão final? — Oliver perguntou, pegando na
mão dela.
— Sim. Essa é minha decisão.
— E quanto a você? Você ficará bem?
Charlotte sorriu e concordou.
— Prometo que sim.
Ele a abraçou forte. Charlotte era uma mulher maravilhosa.
Antes de sair, contudo, ele se virou para ela novamente.
— Você não tem que ficar sozinha.
Ao ouvir aquilo, Charlotte pensou que talvez aquela fosse a
última tentativa de argumentação de Oliver em relação ao
compromisso dos dois, mas ele logo continuou jogando suas
suposições por terra.
— Thomas está apaixonado por você, Char. Eu vi algo diferente
nos olhos dele quando eu cheguei. Algo como... desespero.
Ela deu de ombros, tentando disfarçar o tanto que o nome dele a
abalou.
— Ele não me ama.
— Eu conheço desespero quando vejo, Charlotte. Thomas te
ama.
— Aparentemente não o suficiente — ela vociferou firmemente,
com uma pontada de ressentimento em sua voz.
Oliver inclinou a cabeça.
— Char, dê um refresco ao homem. Ele passou por tanta coisa...
— Ele poderia lutar por mim, Oliver. Ele poderia escolher ficar,
mas não. Ele partiu na primeira dificuldade que surgiu.
— Você o pediu para ficar? — Oliver perguntou, mas Charlotte
apenas abaixou a cabeça.
— Charlotte — Oliver se aproximou dela novamente — Thomas
é alguém que só sabe perder. Ele perdeu a mãe, o irmão, a noiva, o
pé... ele me perdeu quando só tínhamos um ao outro lá. Perder
você é mais uma das grandes perdas da vida dele. Não acha que já
passamos do ponto de sermos orgulhosos? Você acabou de me
dizer que quer agir por si. Se o ama e já não tem mais seu
compromisso comigo, por que esperar que ele lute por você quando
pode lutar por ele? O que ainda está fazendo aqui?
Charlotte continuou com a cabeça baixa, ao dizer algo que foi
quase um sussurro.
— E se mesmo assim ele não me quiser?
Foi a vez de Oliver levar a mão ao rosto dela, fazendo-a mirar
seus olhos.
— Lute por ele, Charlotte. Se ele, mesmo após você se declarar,
continuar sendo uma mula teimosa, lute por ele. Talvez isso seja
tudo o que ele precise, por fim.
Ela balançou a cabeça, tentando afastar as lágrimas.
— É tarde demais, Oliver. Ele tomou sua decisão. Estou cansada
de esperar por outras pessoas para seguir minha vida.
Oliver ergueu os ombros suavemente.
— A decisão é sua, Char. Eu só acho que você merece ser feliz.
Ao observar Oliver ir embora, Charlotte fungou e engoliu seco.
Ela também achava que merecia ser feliz. Ela tinha escolhido
isso. Tinha escolhido Thomas. Tinha lhe dado e demonstrado cada
fragmento de seu ser, de sua essência. Tinha lhe amado e lhe
cuidado, com todo o carinho do mundo. E ainda assim, ele decidiu
deixá-la, sem nem ao menos hesitar, sem nem ao menos insistir nos
dois.
Mesmo depois de tudo o que viveram, Thomas tivera a coragem
de dizer que não tinha motivos para estar com ela. Foi ele quem
bateu na porta dela. Foi ele quem insistiu para que Charlotte o
aceitasse em sua vida. Foi Thomas que prometeu que não iria
embora, a não ser que ela o pedisse isso.
E ainda assim, ele foi. E isso a quebrou por dentro.
Ela não queria mais lutar. Já tinha lutado. Ela já tinha dado tudo
de si naquela situação. Charlotte estava exausta, e por mais
corajosa que fosse, ela não queria mais insistir numa causa perdida.
Especialmente uma que lhe partira o coração.
Í
CAPÍTULO VINTE E UM

T . E
odiava uísque.
O sabor amargo da bebida escocesa nunca lhe apeteceu. Seu
paladar sempre preferiu beber vinho ou mesma uma boa caneca de
cerveja. Mas mesmo odiando o gosto forte do líquido âmbar, para o
que estava sentindo naquele momento, uísque era a bebida ideal.
O aperto no peito que sentiu ao deixar Charlotte naquela manhã
não parecia diminuir. Ao contrário, apenas aumentava. Em todos
aqueles anos de guerra, Thomas achava que já passara por todas
as situações difíceis que poderia pensar. Mas não. Nada nunca foi
tão difícil quanto fazer as malas e partir da casa das Hollth.
Não era sua intenção deixá-la sem se despedir. Mas ele não viu
opção. Apesar de ter demorado para entender o que a volta de
Oliver significava, Thomas era apenas um homem. Trancado em
seu quarto refletindo sobre tudo aquilo, ele soube que a tinha
perdido. Charlotte estava comprometida com Oliver, afinal ele
estava, de fato, vivo. E ela era leal e cumpriria sua promessa com
ele.
Oliver voltara e retomaria sua vida por direito. Ir embora era o
correto a ser feito. Thomas sabia disso. Mas não era fácil. Não era
fácil abandonar a mulher que o fez sorrir novamente, que viu e
compreendeu todos os seus traumas e anseios. A mulher que lhe
deu prazer como nenhuma outra antes e cujo sorriso iluminava seus
dias mais nublados.
A mulher que o fazia feliz.
Thomas sabia que se olhasse dois segundos nos olhos verdes
dela, perderia toda a coragem de partir. E ainda assim, lá estava
Charlotte, em plena madrugada, pedindo-o para ficar.
Aquilo o dilacerava. Ele queria tomá-la nos braços para nunca
mais soltar. Queria enxugar cada lágrima dela.
Mesmo que eu te diga que eu me apaixonei por você, dia após
dia depois de você entrar por essa maldita porta.
As palavras dela ecoavam em sua mente como as badaladas de
um sino, chegando ao mais profundo de sua alma. E como aquilo
doía. De que adiantava Charlotte ter se apaixonado por ele se ela
não lhe pertencia?
Que tolo ele era, achando que podia ser feliz. Por Deus, com ela
Thomas sentiu esperança. O sentimento que mais o decepcionou
em toda sua vida, uma e outra vez.
Dando mais um gole no uísque, Thomas fez uma careta de
desgosto e encarou o nada.
— Você não se despediu de mim — ele ouviu a voz em sua
frente.
Elizabeth o encarava, já vestindo o avental de serviço.
Thomas não respondeu.
— Achei que fôssemos amigos. Eu merecia um adeus, pelo
menos.
Ele levantou os olhos sem se mexer.
— Me perdoe, Liz, mas você ainda estava dormindo.
— Aonde está indo?
— Para casa.
Ela ergueu as sobrancelhas.
— Claro... a casa vazia, certo?
Thomas respirou fundo e fechou os olhos.
— Se despediu dela, pelo menos? — Elizabeth perguntou,
lustrando um copo de vidro.
— Ela me viu sair.
— Hum... Me explique de novo porque você saiu no meio da
madrugada?
Thomas deu o último gole em sua bebida amarga, sem
responder.
— Ou melhor, porque você está partindo, de qualquer forma?
— Porque não há mais motivo para eu estar aqui, Liz! — ele
exclamou, um pouco mais alto que o normal, mas aquilo não a
afetou.
Ao invés disso, Elizabeth ergueu o queixo e endireitou a postura.
— Vocês estão noivos, Thomas!
Ele balançou a cabeça.
— Não. Eu não posso estar noivo de alguém que já é
comprometido.
Elizabeth revirou os olhos.
— Thomas, isso não faz nenhum sentido. Vocês são felizes
juntos e...
— O motivo que me trouxe até aqui não existe mais.
Ela o olhava com firmeza.
— Você ama minha irmã, não ama?
Thomas a encarou de volta, sem falar nada.
— Não queira reforçar essa história de não acreditar em amor.
Vamos, pode ser sincero comigo, você a ama, não ama?
Ele abaixou a cabeça. Que diferença fazia o que sentia por
Charlotte se não podia tê-la como sua?
Com a reação dele, Elizabeth sorriu com ironia.
— Eu vou te contar uma história, Thomas. Curta, sem muitos
detalhes, mas eu creio que possa te ajudar.
Liz serviu um pouco de uísque a si mesma e começou.
— Quando eu era jovem, a guerra tinha apenas começado e eu
não me importava com nada. Sabe por quê? Eu estava apaixonada.
Eu o amava como nunca achei que fosse possível amar alguém, e
quando descobri que ele também me queria, meu mundo se fez tão
perfeito que eu não ligava para mais nada. Tudo estava bem,
tirando a doença de meu pai. Charlotte estava bem encaminhada
com seu compromisso, e por mais que existissem certas
dificuldades, meu amor seria suficiente para que tudo ficasse bem.
Thomas percebeu que mesmo que disfarçando, Liz demonstrou
certa fragilidade ao lhe contar aquela história.
— Quando cheguei em casa, logo depois de jurar meu amor a
esse homem, descobri que Oliver havia sido convocado. Charlotte
chorava muito, meu pai teve uma pequena recaída devido aos
nervos... enfim, foi tudo um desastre. Como a irmã mais velha, e
você sabe bem do que estou falando, eu tomei uma decisão diante
daquele cenário novo. E essa decisão, embora fosse a mais
honrada que já fiz, me custou o amor da minha vida.
Thomas passou o dedo na borda do copo em sua mão e não se
conteve em perguntar.
— Por que está me contando isso?
— Porque diferente do que as pessoas costumam dizer, eu não
faria tudo de novo se fosse necessário. Eu faria diferente. E acho
que você está cometendo um grande erro se escondendo em sua
honra.
Os olhos de Liz se encheram de lágrimas.
— Eu mantive minha honra, Thomas, mantive minha obrigação,
mas não pense você que eu não me arrependo disso todos os dias.
Thomas processava o peso das palavras dela.
— Sabe o que eu penso? — Elizabeth perguntou, após se
recompor. — Que eu queria ter tido mais discernimento para
entender que o amor também pode ser forte, principalmente por não
ser algo fácil. Que se eu tivesse tido mais coragem em enfrentar as
coisas, que se tivesse pensado um pouco mais, talvez eu estivesse
feliz com ele ao meu lado agora. Me diga, Thomas, com toda a
sinceridade de seu coração, após tudo o que você e Charlotte
viveram nos últimos dias, para um sentimento tão sublime, o que
pode ser mais honrado do que um ato de amor?
Touché.
E a resposta era: nada. Um ato de amor era, de fato, honrado.
Era a personificação da honra. Era a coragem de se expor e se
arriscar por outro alguém.
Amar era um ato de coragem.
E Thomas descobrira isso sem se dar conta.
— Eu amo sua irmã, Liz — ele exclamou, lutando para respirar.
— Eu a amo tanto que me dói.
— Sim, você ama — Elizabeth exclamou, vitoriosa.
— Ela tem que saber isso. Eu nunca disse isso a ela. Eu tenho
que dizer.
— Sim, você tem.
Thomas se levantou do banco, aflito.
— Eu não posso perdê-la, Liz.
Ela pegou em sua mão que pairava sobre o balcão de madeira.
— Então lute por ela!
— Você acha que ela poderá me perdoar?
Elizabeth lhe olhou com carinho.
— Thomas, querido, acho que eu e você a conhecemos o
suficiente para saber essa resposta, não?
Deus era testemunha que ele esperava que sim.

— O , o que está fazendo? — exclamou Susie, olhando


inconformada para o monte de terra amontoada no jardim.
Fechando os olhos com força, ele tentou ignorar o som irritante
da voz dela e continuou batendo a enxada na terra.
— Oliver, pare já com isso!
— Qual é o seu problema, afinal? — ele perguntou, virando-se
para ela.
— Qual é o meu problema? — Susie fechou a cara, franzindo as
sobrancelhas. — Qual é o seu problema? Você está destruindo o
jardim!
— Bem, o jardim é meu, de qualquer forma.
— Não. O jardim é da sua mãe e ela com certeza vai ficar uma
fera quando ver o estrago que você fez aqui.
Ele respirou fundo e enxugou o suor da testa com a palma da
mão.
— Esta parte estava praticamente morta, Susie. A grama estava
toda seca. Só de olhá-la eu me deprimia.
Susie o encarou, com a expressão mais branda.
— Você vai plantar algo no lugar?
— Eu não sei. Só sei que era um pedaço de terra morto e agora,
talvez eu consiga fazer algo que preste aqui.
Ela juntou as pequenas mãos brancas na frente do corpo.
— Eu sei alguns tipos de planta que vingam. Se quiser me falar
após terminar com a terra, podemos decidir juntos algo para plantar.
Oliver voltou a bater a enxada na terra.
— Eu não preciso de ajuda, Susie. Espec... —, mas ele se
deteve.
Susie apertou os olhos, novamente irritada.
— Especialmente a minha, não é, seu cretino arrogante?
— Se sou tão arrogante assim, por que você insiste em me
perturbar? Me deixe sozinho, Susie!
Ela endireitou a postura.
— Você é impossível, Oliver — e se virou, caminhando para
dentro da casa.
Oliver voltou a se concentrar na tarefa, pensando em como
aquela mulher conseguia irritar cada fibra de seu ser. Os anos
podiam se passar, guerras começavam e terminavam, mas Susie
sempre o tiraria do sério.
O que importava o que ele estava fazendo ali? O jardim era dele!
Ela era a intrusa em sua casa.
Após dois ou três golpes na terra mexida, Oliver voltou a ouvir
passos atrás de si.
Céus, a mulher não o deixaria em paz?
— O que foi agora? — ele perguntou, sem olhar para trás.
— Você não vai se casar com Charlotte — disse a voz grossa e
masculina.
Oliver endireitou a postura e se virou. Thomas estava ali em sua
frente, com a expressão decidida.
— Perdão? — perguntou ele, deixando a enxada cair no chão e
limpando as mãos nas calças.
— Você não vai se casar com Charlotte. Você perdeu esse
direito — Thomas o encarava sem hesitação. — Você estava morto!
Por quatro longos e infernais anos você não existiu mais. E ainda
assim ela te esperou. Mas as coisas mudaram, Oliver!
Oliver o encarou, com as mãos na cintura e o queixo erguido.
— E o que exatamente mudou, posso saber?
— Tudo, seu babaca cretino! — Thomas quase explodiu. —
Charlotte mudou. Eu mudei. Passei todos esses anos pensando em
você, em cumprir a promessa que em seu desespero você me
obrigou a fazer, e acredite, eu quis cumpri-la todos os dias. Até que
cheguei aqui e me deparei com uma mulher que não precisava de
nada além de liberdade. Liberdade que você a privou.
Ele andou dois passos para frente, se aproximando do amigo.
— Charlotte não precisava de você e não precisa de mim. Mas
eu a amo e se ela quiser ficar comigo, não há promessa ou honra no
mundo que vai me impedir de lutar por ela. Então estou lhe dizendo
que não, você não vai se casar com ela só porque voltou. Não é
assim que as coisas funcionam.
— Thomas...
— Não quero ouvir, Oliver. Vim até aqui para...
— Eu não vou me casar com ela, imbecil! — gritou Oliver.
Thomas piscou duas vezes ante à informação.
— Não vai?
— Não. Porque ela não quer se casar comigo. Ela me disse isso
agora há pouco.
Oliver passou a mão pelos cabelos.
— Ela te ama e quer ficar com você. Eu jamais a obrigaria a
fazer algo contra sua vontade.
— Ela te disse tudo isso?
Oliver concordou com a cabeça.
— Sim. Você está certo. Eu estava morto e as coisas mudaram.
Sou eu que devo me adaptar ao mundo e não o contrário.
Thomas franziu as sobrancelhas.
— Então... está tudo bem para você eu me casar com ela?
Oliver ergueu os ombros.
— Se vocês se amarem, vão em frente. Eu não estou
apaixonado por ela, Tom. E já errei o suficiente amarrando tanto
você quanto Charlotte em minhas promessas desesperadas.
Ele deu um passo para frente e posou a mão no ombro do
amigo.
— Vá atrás dela. Ela está te esperando. Está na hora de ser
feliz, Capitão.
Thomas sorriu, aliviado.
— Eu te devo minha vida, Oliver.
— Sim, você me deve. Mas estamos bem.
Thomas concordou rapidamente e se virou apressado. Charlotte
dissera a Oliver que o amava, mesmo após tudo o que ele fizera.
A chama de esperança em seu coração voltou a brilhar mais
forte do que nunca. Todos já sabiam que ele a amava e que queria
lutar por ela, menos Charlotte.
Mas aquilo não era problema, porque ela estava prestes a
descobrir.

A do dedo de Charlotte latejava. Já era a terceira vez que


ela errava a mira e enfiava a agulha no dedo indicador e se
machucava.
Na esperança de o trabalho a distrair da dor e do vazio que
sentia com a ausência de Thomas, ela se trancara na sala de
costuras para adiantar as inúmeras encomendas que tinha.
Grande tola.
Não se distraía a dor de um coração partido com linhas e
agulhas.
Charlotte achou melhor interromper os serviços, pois nada de
qualidade sairia dali e sua clientela não poderia ficar prejudicada.
Ela se levantou e estalou o pescoço, fechando os olhos ao sentir
toda a tensão acumulada ali. Elizabeth com certeza não era normal,
ao conseguir desempenhar tantas tarefas com maestria mesmo com
as decepções amorosas que sofrera. Charlotte podia jurar que
nunca, em todos aqueles anos, viu a irmã esmorecer ante sua dor,
enquanto ela tudo o que queria era se enfiar no quarto e chorar até
sentir que suas lágrimas chegaram ao limite.
Curioso como cada pessoa age diferente para superar seus
traumas.
Fechando a porta atrás de si, Charlotte resolveu tomar um ar.
Logo escureceria e ela pensou que talvez seria interessante
observar o pôr do sol sentada na varanda.
Ela foi primeiro até a cozinha e se serviu um copo de água.
Encostou as costas no balcão, da mesma forma que fizera na noite
em que encontrou Thomas sentado no chão, lutando contra sua dor.
Lembrou-se em como ele aceitou seu auxílio, em como o beijo que
trocaram tocou sua alma. Seu coração apertou, pensando em como
ela gostaria de ter a oportunidade de poder ajudá-lo em todos os
momentos necessários.
— Charlotte? — ela ouviu a voz dele.
Sorrindo ironicamente, era insano o quão instável ela se
encontrava. Estava ouvindo a voz dele chamá-la, pelo amor de
Deus!
— Charlotte? — a voz soou mais alta.
Espere. Aquilo não parecia ser sua imaginação. Charlotte deixou
o copo no balcão e correu para sala, dando de encontro com
Thomas.
— Thomas? — ela chamou, com o coração acelerado, não
acreditando que ele estava ali em sua frente.
Thomas não disse nada e apenas mancou em sua direção o
mais rápido que pôde. Ele a abraçou forte pela cintura, enfiando o
rosto em seus cabelos.
— Eu te amo — A voz dele estava embargada. — Eu te amo
com tudo o que sou.
Charlotte ainda estava tonta com a surpresa do momento, da
chegada repentina dele, da sensação maravilhosa de estar em seus
braços.
— Me perdoe.
Thomas se afastou e encontrou os olhos dela com os seus.
— Você estava certa. Eu estava com medo. Estava com medo
de lutar por você, mas eu não quero mais sentir medo. Eu quero
você, Charlotte, só você.
Ela lutava para respirar.
— Você disse que não existiam mais razões para você ficar.
O rosto de Thomas foi tomado por culpa ao perceber a mágoa
dela.
— Ah, querida! Eu...
— Eu te ofereci tudo de mim, Thomas. Tudo, e se eu não
estivesse acordada você teria saído da minha vida sem nem ao
menos se despedir.
Ele tocou o rosto dela com a mão trêmula, fazendo seu olhar
ficar fixado no dele.
— Charlotte, por favor, me perdoe. Eu me senti tão perdido
quando Oliver voltou. Eu senti que a volta dele significava perder
você e eu não pude suportar.
Ela enxugou uma lágrima e se afastou do abraço dele.
— Eu nunca fiz nada para que você entendesse isso. Eu fui firme
em todos os momentos e nem ao menos quando eu disse que te
amava você cedeu. Foi Oliver que ressurgiu dos mortos com a ideia
ridícula de que se casaria comigo. E o pior é que você não disse
nada!
— Eu fui falar com ele! Fui dizer a ele que as coisas não
funcionam assim e...
— Pois o que quer que você tenha dito, foi inútil, Capitão. Eu
mesma disse que não me casarei com ele. Eu me impus, como
deveria ter feito há muito tempo. Eu não preciso que você me salve.
Não precisava antes e não preciso agora.
Ela sentia as bochechas arderem com a adrenalina, mas
precisava dizer a ele tudo o que estava entalado em sua garganta.
— Eu até esperei, Thomas, que você interrompesse aquela
conversa insana que tivemos com ele. Mas não. Você se trancou em
seu quarto e então partiu e me deixou estraçalhada no lugar. Você
alegou honra no mesmo momento em que pisava na promessa que
fez a mim quando chegou. A de que não iria embora a menos que
eu te dissesse para ir. Tem ideia do quanto aquilo me machucou?
Sim, ele tinha.
Respirando fundo, ele deixou as mãos caírem nas laterais de
seu corpo.
— Charlotte, eu estou aqui agora.
Ela não respondeu.
— Estou aqui implorando seu perdão. Implorando que me dê
mais uma chance de te provar que nada para mim vai ser mais
honrado do que te amar.
Ela piscou entre as lágrimas que se acumulavam em seus olhos.
— Eu não sou o que você merece. Depois de te conhecer eu
nunca estive tão certo sobre algo, mas eu não consigo mais ficar
longe de você. Eu lutei e me machuquei e quase morri mais de uma
vez, mas nada me doeu tanto quanto a possibilidade de te perder.
Todo esse tempo eu achei que era você quem precisava de mim,
mas não era! Eu precisava de você. Eu preciso de você.
Thomas deu dois passos a frente e vendo que ela não se
afastava, tocou em seu rosto.
— Eu vim para cá com a certeza de que isso entre nós não era
uma história de amor. Mas eu estava errado, porque eu também me
apaixonei por você a cada momento depois de entrar por aquela
maldita porta e se você me deixar, eu farei a nossa a mais bonita de
todas as histórias.
Como Charlotte ainda conseguia ficar em pé, ela não sabia. A
única coisa da qual tinha certeza era a de que ali em sua frente,
dentro daqueles maravilhosos olhos azuis, ela via amor.
Amor de verdade.
Por ela.
— E quanto à sua dívida com Oliver? E se você se ressentir de
mim depois?
Um meio sorriso se formou nos lábios de Thomas.
— Eu devo a Oliver minha vida. Mas somente você é aquela que
faz com que eu me sinta vivo de verdade.
Charlotte sorriu e chorou.
— Eu te amo, Thomas. Cada pedaço arrogante e petulante de
você.
Ele sorriu e então colou seus lábios nos dela, tentando
demonstrar a grandeza do sentimento que sentia naquele beijo.
— Me perdoe por ser tão tolo, meu bem.
— Eu te perdoo, se você se casar comigo de uma vez.
Thomas se afastou e a olhou, surpreso.
— Está pedindo minha mão em casamento?
Ela soltou uma gargalhada ante a expressão dele.
— Estou. Não aguento mais noivar de novo, e de novo e de
novo. Não preciso esperar que façam por nada por mim. Eu mesma
faço minhas escolhas.
— E eu te amo por isso, mais do que posso explicar.
Ela o olhou com carinho.
— E então, Senhor Baker? Estamos acertados?
— Sim, Senhorita Hollth. Eu aceito seu pedido. E prometo que
vou lutar todos os dias para te fazer feliz — Thomas disse a ela,
voltando a olhá-la. — Te prometo que sou seu, por inteiro.
E aquela era uma promessa que Charlotte o obrigaria a cumprir,
sem sombra de dúvidas.
Í
EPÍLOGO
CI NCO ME S E S DE POI S

— S ,
bastante chuva no caminho — avisou Liz, enquanto passava um
pano no balcão da estalagem.
— Mas o céu está limpinho — argumentou Thomas, olhando
para fora.
— Querido, você não conhece essa habilidade de Liz ainda. Se
ela diz que vai chover, é porque vai. Não sei como ela faz isso, mas
sempre dá certo — explicou Charlotte.
Thomas e a esposa estavam ali na estalagem esperando uma
carruagem alugada. Eles iriam finalmente para a cidade natal dele,
verificar como se encontrava a antiga casa de seus pais.
Era a primeira vez desde que voltara da guerra que Thomas
decidira enfrentar os fantasmas de seu passado de frente. Mesmo
após se resolver com Charlotte, ele não se sentia à vontade em
retornar a seu lar de origem. A ideia de ver a residência de sua
família lhe era muito triste, especialmente porque nenhum deles
estaria ali para recebê-lo. Assim, Charlotte e ele conversaram e ela
garantiu que estaria ao seu lado durante todo o tempo que
permanecessem ali, o que deu a Thomas uma boa dose de
coragem e bravura para enfrentar aquela visita melancólica.
Charlotte sempre o fazia corajoso, em qualquer situação.
O casamento deles ocorreu rápido, em uma viagem de última
hora para a Escócia. Ambos estavam muito apaixonados para
esperar o tempo de praxe e Charlotte achava uma bobagem
gastarem uma quantia exacerbada com a licença especial, motivo
pelo qual atravessar a fronteira fez total sentido. Eles moravam ali
mesmo, na casa dos Hollth, mas estavam considerando a
possibilidade de adquirir outra propriedade por perto com as
economias de Thomas, que em nada ostentava seu confortável
salário de capitão.
Ele, por sinal, nunca se viu mais feliz. Charlotte não somente era
a mulher que amava com todo o coração como também a que fazia
de seus dias de luta e guerra apenas um simples borrão em seu
passado. Os pesadelos que ele tinha vez ou outra nunca mais
apareceram após adormecer todas as noites nos braços dela, mas
Thomas acreditava que cumprir seu desejo mais profundo ao
encontrar Charlotte também ajudara naquilo. Apesar dos poucos
episódios da dor que o abatia, ele podia dizer que não somente a
esposa curara todas as suas feridas, como também amenizara suas
mais profundas cicatrizes.
E como se fosse possível ser ainda mais feliz, recentemente eles
tinham descoberto que seriam pais — e aquele provavelmente fora
resultado da primeira noite de paixão dos dois, após o baile dos
Trammel.
— Querida, você não quer se sentar? — ele disse à esposa, com
todo o cuidado do mundo.
— Tom, não se preocupe. Estou de cinco meses apenas. Não
fico muito cansada.
— Nem mesmo após o baile ontem? — ele perguntou.
Charlotte negou com a cabeça.
— Nem um pouco. Por sinal, me diverti imensamente. Mas
saímos logo, de qualquer forma e ainda é muito cedo para o bebê
me cansar.
— Se não fosse essa barriguinha discreta, eu nem desconfiaria
que ela está grávida — comentou Liz, atrás do balcão.
— Nem me diga. Parece que comi um pouco mais no almoço e
só — riu Charlotte.
— Mas isso é bom para você, querida. Pelo menos você fica
mais confortável trabalhando — a mais velha comentou.
— Coisa que, por sinal, eu acho que a senhora deveria diminuir
— exclamou o marido, levantando as sobrancelhas.
— Eu me sinto ótima e adoro costurar. Não teria muito o que
fazer se parasse.
— Bem, pelo menos esses dias que passaremos em Yafforth
servirão para que você descanse um pouco — Thomas falou
carinhoso.
Ele não se importava nem um pouco com o fato de Charlotte ter
insistido em continuar costurando, pois sabia o quanto ela amava o
que fazia. Sua preocupação era mais relacionada ao bem-estar
dela. Ele se lembrava de quando se conheceram, Charlotte
passando os dias na sala de costura para dar conta de tantas
encomendas e ajudar nas despesas. Na época, aquilo era
realmente necessário, mas Charlotte não precisava mais se
desdobrar para pagar as contas e ainda assim ela parecia esquecer
daquele detalhe e, nessas ocasiões, era Thomas quem a lembrava
e a tranquilizava.
A carruagem chegou na porta da estalagem e Liz os
acompanhou até a porta.
— Querida, tem certeza de que não quer ir conosco? —
perguntou Charlotte quando chegaram do lado de fora do
estabelecimento.
— Não posso abandonar meu trabalho, Char. Mas não se
preocupe. Eu estarei bem e nos comunicaremos por cartas nesse
tempo.
— Você é outra que eu preciso ficar lembrando que não precisa
trabalhar tanto — comentou Thomas, com carinho e preocupação
fraternais.
Elizabeth o olhou de lado.
— Thomas, eu trabalho porque preciso disso. Ficar parada me
deixa maluca. Não se preocupe comigo, estou muito bem como
estou — ela piscou para ele.
Era muito bela a amizade formada entre Thomas e Elizabeth.
Não somente ele amava e cuidava de Charlotte, como também se
preocupava com o bem-estar e felicidade de Liz. Ela se sentia
protegida e amparada, como se ele fosse seu irmão mais velho e
aquela sensação era muito reconfortante. Era a família deles que
fazia com que Elizabeth não se sentisse tão só.
— Ainda acho que é muito tempo longe, Liz — reclamou
Charlotte, pegando nas mãos da irmã e fazendo bico. — É muito
tempo para você ficar sozinha.
— Não serão nem dois meses, Charlotte. Thomas precisa ir até
sua casa de infância e vai ser difícil para ele. Concentre-se nisso e
não se preocupe comigo. — ela aconselhou baixinho. — Estarei
bem. Aliás, tenho Susie para me acompanhar no chá da tarde.
— Tudo bem. Eu esperarei suas cartas e voltaremos assim que
possível. Qualquer mudança de planos, eu aviso.
— Combinado, querida.
Elizabeth sorriu para a irmã, que se dirigiu para a carruagem,
enquanto Thomas tirava uma pequena maleta do chão, segurando-a
e se virando para Liz.
— Liz, se cuide, tudo bem? Você sabe que qualquer coisa é só
me chamar e est...
— Estarei bem, Thomas. Vocês também se cuidem e boa sorte
em sua visita. Sei que será difícil não encontrar ninguém ali, mas
pense em tudo o que eles te deixaram de herança para que você
construísse a sua família — ela sorriu e Thomas a abraçou.
— Tenho a sorte em você fazer parte dela — ele disse, com um
sorriso agradecido e se despedindo dela.
Sua afirmação era completamente genuína. Thomas se sentia
eternamente agradecido a Elizabeth por tê-lo ajudado a perceber
seus sentimentos por Charlotte e esperava um dia poder retribui-la
na mesma proporção.
Ele entrou na carruagem e fechou a porta, com o cocheiro dando
o comando aos dois cavalos para partirem.
Elizabeth acenou de longe quando o veículo se distanciou e
sentiu o primeiro pingo de chuva em sua testa.
Eu sabia, ela pensou, entrando de volta na taverna.

O com a claridade do quarto que penetrava os


vidros da janela. A cabeça ainda latejava e ele se lembrava da
caneca de cerveja a mais da noite anterior. Era incrível como após
tanto tempo sem beber uma gota sequer de álcool, uma caneca
extra era suficiente para lhe dar uma bela e irritante dor de cabeça
aguda.
Apertando os olhos com força, apesar do desconforto da
“ressaca” ele não conseguiu ignorar uma sensação que há muito
tempo não sentia: saciedade. Oliver se sentia são e completamente
relaxado.
Ele levantou a cabeça devagar, tentando evitar o máximo de dor,
e em um movimento discreto de sua perna, sentiu um toque de pele
quente e suave embaixo dos lençóis. A noite anterior voltou à sua
mente num rompante e ele então caiu em si: não estava sozinho.
A figura feminina ao seu lado tinha traços perfeitos. O lençol
cobria boa parte de seu corpo curvilíneo, e o olhar de Oliver passou
pelas pernas leitosas, subindo pelo tronco até chegar à parte do
seio descoberto e do mamilo rosado. E ele se lembrava de tê-lo
beijado.
E gostado. Muito.
Subindo um pouco mais o olhar, o rosto de Susie descansava
suavemente no travesseiro. Os lábios carnudos estavam vermelhos,
mas o inchaço dos beijos trocados já não estava mais ali.
Beijos dele. De Oliver.
O cabelo loiro caía ao lado da cabeça dela como uma cascata, e
Oliver teve que se segurar para não a acariciar. Ao invés disso,
levantou-se com cuidado e foi atrás de suas roupas, que ele sabia
que deviam estar jogadas em algum lugar do quarto.
Ao encontrar suas calças, se abaixou para pegá-las e ao se pôr
em pé, viu seu reflexo no espelho da penteadeira. Uma pequena
marca roxa em seu peito se destacava entre as inúmeras cicatrizes
de guerra, e aquilo o fez lembrar da sensação da mordida ali
depositada.
Por ela. Por Susie.
Ele se lembrou da sensação que teve ao senti-la, da maciez da
língua dela em sua pele, do gemido de desejo que exprimiu e
engoliu em seco.
Oliver vestiu as calças e abriu a porta discretamente, dando uma
última olhada na bela mulher deitada em meio aos lençóis. Pelo que
ele se lembrava, ela era deliciosa. Estupenda. Mas Oliver não
gostava dela e Susie tampouco gostava dele.
Ele saiu do quarto e fechou a porta atrás de si, sabendo que o
melhor era fingir que aquela noite nunca acontecera.
Por mais que desejasse repeti-la uma e outra vez, ou talvez para
sempre.
AO LEITOR

H .
Quando eu pensei em criar outra série além da “Amor & Acaso”, eu
queria algo diferente, fora dos bailes londrinos.
E por que não uma história de honra e superação?
Como toda história de guerra, acho as cartas um elemento
importante no enredo, mas aqui, eu não queria que fossem o tema
central. Por isso, apesar de terem seu peso na jornada de Thomas e
Charlotte, as cartas trocadas entre eles ficam em segundo plano de
forma proposital.
A questão da dor sentida por Thomas em seu membro amputado
é real. O nome que se dá a isso é “dor fantasma” e a técnica do
espelho utilizada por Charlotte é uma das que ajudam a superar
esse tipo de trauma. Embora o membro em si seja somente uma
percepção, esse tipo de dor é real (causada por questões nas
terminações nervosas) e vem acompanhada de diversos outros
problemas, como depressão, ansiedade, insônia etc. A prótese de
criação do Dr. James Potts também é verídica, e as pessoas que
necessitavam de algo do tipo realmente utilizavam um espartilho
para fixá-lo ao corpo. Foi somente em 1863 que surgiu o primeiro
modelo de prótese de sucção, ou seja, 50 anos depois de nossa
história.
Thomas sofreu muito, e em geral, todos sofreram. A maneira
como ele e Charlotte se envolvem, conscientes de seus sentimentos
e propósitos foi algo muito gostoso de escrever. Eu gosto muito de
acompanhar a forma como Charlotte utiliza sua voz, especialmente
com Oliver (que será nosso protagonista no próximo livro).
Sobre as convocações de Oliver e Carl, devo comentar que fiz
uso de licença poética para adequar a história. Em realidade, o
Exército Britânico, diferente de outros países europeus, não
convocava os soldados, mas sim se utilizava do alistamento
voluntário.
Eu espero que vocês tenham aproveitado esta nova série e
continuem comigo nas próximas histórias.
Não esqueçam de me acompanhar no Instagram
@stefanynunes_ para os próximos lançamentos e me mandem seus
feedbacks. É sempre um prazer ler a opinião de vocês.

Com apreço,
Stefany Nunes
OUTRAS OBRAS DA AUTORA
A A P O S T A D E U M C AV A L H E I R O
S É R I E AMOR & ACAS O -1

Lorde Winston Maxwell deixou Londres há dois anos, fugindo da


vergonha de uma traição que sofreu. Desiludido e com o coração
partido, ele decide renunciar ao amor e tudo que ele possa
proporcionar. Agora, o recém titulado Conde de Suffolk precisa
retornar à cidade e aos eventos sociais para arcar com as
responsabilidades do título. Ele achava que todos já haviam esquecido
as fofocas envolvendo seu nome, mas não é necessário mais do que
um mísero baile para descobrir que não.
Após uma noite de bebedeira e provocações envolvendo sua honra,
ele faz uma aposta que comprovaria a todos que ele ainda era o
homem de antes. Os termos são claros: conquistar e descartar, sem
nenhum remorso, Lady Amelia Berrycloth, uma senhorita nada
convencional, que já aceitou seu status de solteirona, mas que
surpreende o conde a cada nova conversa. Porém, ao ficar sóbrio,
Winston percebe que jamais conseguiria magoar a dama em questão.
E por isso resolve, novamente, deixar a cidade.
O destino vai contra suas intenções, não somente o impedindo de ir
embora como também o aproximando de Amelia, das formas mais
improváveis possíveis. Tudo o que ele quer é evitar problemas, partir e
esquecer a consequência de suas ações. Mas uma vez que o amor
volte a bater em sua porta, conseguirá ele resistir?
A P R O P O S T A D E U M C AV A L H E I R O
UM CON TO DA S É R I E “AMOR & ACAS O ”

Há coisas na vida nas quais as pessoas possuem completa convicção


e saber o que acontece depois do “felizes para sempre” é uma delas.
Com Amelia e Winston, não foi diferente.
Atendendo a pedidos dos leitores de “A Aposta de um Cavalheiro”
(que não se conformaram com a falta de um epílogo), “A Proposta de
um Cavalheiro” é um conto bônus que traz o que aconteceu com
Amelia e Winston imediatamente após a reconciliação dos dois, em
plena Mayfair regencial.
Um conto leve, divertido e romântico, para aquecer o coração
daqueles que se cativaram com o casal do primeiro livro da série e
ficaram com “gostinho de quero mais”.
Á
U M E R R O I N E V I T ÁV E L
S PI N -OFF DA S É R I E “AMOR & ACAS O ”

Annabel Wilson e Timothy Clifford são vistos com maus olhos perante
toda a sociedade londrina e não é à toa. Ambos cometeram um erro
terrível envolvendo o melhor amigo de Timothy, Lorde Winston
Maxwell, o Conde de Suffolk, resultando em uma das desilusões
amorosas mais escandalosas da cidade. Os falatórios retratam uma
versão da história, mas o que, de fato, aconteceu entre eles?
“Um Erro Inevitável” é uma novela spin-off da Série “Amor & Acaso”
que conta a história por trás do escândalo de dois personagens um
tanto polêmicos do primeiro livro da série, “A Aposta de um
Cavalheiro.”
Seria o amor tão ardiloso para acertar até mesmo em um grave
equívoco?
Aviso: Contém spoiler do livro “A Aposta de um Cavalheiro”.
A LUZ DO MEU AMOR
CON TO DE É PO CA

Quando Bernard Lefreve foi contratado para ser tutor de francês da


senhorita Svetlana Lebedeva, ele mal imaginava que toda a escuridão
que cercava sua vida estava prestes a acabar.
Na Rússia de 1801, um francês e uma russa têm seus caminhos
cruzados.
Um amor impossível, mas real.
“— Mesmo que esteja certa, Lana, você sabe que não há futuro para
nós.
Ela abaixou o olhar, hesitando.
— Eu sei. Mas há o presente. O agora.”
SOBRE A AUTORA

Stefany Nunes é sorocabana, nascida em 1992, formada em Letras e Direito e


apaixonada pela leitura desde que se entende por gente. Grande amante dos
romances de época, sempre criou histórias na sua cabeça, sem colocá-las no
papel. Após se mudar para Londres, inspirada pela vibração da cidade,
finalmente tomou coragem de realizar seu sonho de escrever.
https://stefanynunes.com/
Ô
BÔNUS
Á
U M A D A M A I M P E N S ÁV E L
S É R I E AMOR & ACAS O - 2

L 05 /21

H
é chegada a hora de se casar. Aos trinta e dois anos, o
grandiosamente bonito e organizado Lorde Hugh Turner percebe
que deve assumir tal responsabilidade e quer fazê-lo o quanto
antes, pois ainda quer estar jovem quando seus herdeiros
nascerem. Ele está pronto para abandonar a vida de libertino e se
comprometer com uma mulher com quem possa compartilhar uma
convivência amigável e, de preferência, não enfadonha.
A opção mais viável para seu objetivo é Lady Phillipa
Greenwood, uma linda mulher com inúmeras qualidades, mas que
possui a fama de rejeitar diversas propostas de casamento
anteriores. Para que seu tempo não seja desperdiçado, Hugh decide
que precisa de um plano adequado para a corte, de forma que Lady
Phillipa se permita conhecê-lo.
Ele então recorre à criada pessoal de sua pretendente, a quieta
e misteriosa Rose Mitchell, e a implora que lhe ajude dando-lhe
informações sobre sua possível futura noiva. Mesmo relutante, Rose
concorda em ajudá-lo, e conforme convivem, sentimentos e
situações inesperadas cruzam seus caminhos, colocando-os à
prova e lhes ensinando que o amor tem truques que vão muito além
de qualquer planejamento.
Ó
PRÓLOGO
KE NCHE S TE R , I NG L ATE R R A, 1 81 3 .

R M .E ,
mas nos seus poucos dezenove anos, já passara por inúmeras
situações das quais não pensou que sairia. Ainda assim, todos
aqueles acontecimentos a tinham levado para aquele momento
específico. Talvez, o mais feliz de sua vida.
E ela estava atrasada.
Ele já deve estar me esperando, ela pensou, com urgência.
Como podia ter se atrasado tanto? Mesmo após ter calculado com
cuidado o tempo que levaria para terminar todas as suas tarefas,
Rose não acreditou que fosse se atrasar. Devia estar ansiosa
demais pensando em como tudo se passaria. Sim, devia ser isso.
Sem contar as saudades que sentia dele. Harry fizera muita falta
naquelas duas semanas fora e ela sofrera grandemente com sua
ausência.
Rose e Harry White se conheciam há pouco tempo, mas o que
tinham era muito especial. Ele preenchera todo o vazio que ela
sentia desde a morte de sua mãe, a Senhora Lilian Mitchell, dois
anos antes. Quando Rose soube de seu falecimento, foi como se a
matassem junto.
Um tiro no meio do peito.
Rose sabia que a mãe estava doente. Ela começou a se sentir
mal uns meses antes, com uma tosse contínua e seca. Rose, que
de início não se preocupou, percebeu que havia algo seriamente
errado quando encontrou um lenço com gotas de sangue na trouxa
de roupa suja. Ela questionou a matriarca e após muita insistência
procuraram um médico, e o diagnóstico não foi nada bom. Apesar
das recomendações de descanso e cuidado, não demorou muito
tempo para que Lilian se sentisse pior a cada dia, até que finalmente
estava acamada, pálida e totalmente sem forças.
Rose fez de tudo para que ela melhorasse e assumiu todas as
tarefas da casa sozinha. Foram semanas de agonia. Não havendo
saída, o doutor avisara Rose para que se preparasse, pois o tempo
de sua mãe era curto e a morte chegaria a qualquer momento, mas
mesmo assim, Rose acreditava firmemente que as coisas talvez
pudessem se reverter.
Não foi o que aconteceu.
Quando Lilian deu seu último suspiro, Rose foi acometida com a
dor, tão forte e intensa que, inclusive, Rose soube que jamais a
sentiria de novo. Não era possível um ser humano sentir algo tão
extremo mais de uma vez.
Sua mãe era a única pessoa que Rose tinha, desde sempre.
Elas eram muito unidas, e a filha a admirava muitíssimo,
principalmente por como a mulher sempre vencera as adversidades
da vida, criando-a sozinha e educando-a da melhor forma possível,
mesmo após a morte de seu pai, o Senhor Noah Mitchell, o padeiro
na vila, que morreu de tifo cerca de um mês antes de Rose nascer.
A história do casal era muito bonita, apesar de singela. Tinham se
conhecido ali mesmo em Suckley, quando eram bem jovens. Lilian
fora atraída até a pequena padaria do pai de Noah através do cheiro
de pão fresco e quando chegou no balcão, deu de encontro com o
jovem, e Rose se lembrava bem de como a Senhora Mitchell lhe
contava que a paixão entre os dois tinha sido instantânea. Foram
imensamente felizes, porém por pouco tempo, pois quando a
epidemia se alastrou na vila, o homem não teve a sorte de escapar
e logo padeceu.
Rose lamentava muito não tê-lo conhecido. Tinha certeza de que
ele seria um ótimo pai. Ainda assim, mesmo sem conhecê-lo, não
sabia como, sentia falta dele. Não podia negar, contudo, a grande
conexão que tinha com Noah, que era a paixão por fazer pães.
Rose tinha certeza de que se as coisas tivessem sido diferentes, ela
com certeza o ajudaria em seu pequeno negócio, e vez ou outra, se
pegava pensando em como seria viver aquela realidade.
Era uma pena que isso nunca pôde acontecer.
Às vezes, as melhores lembranças do coração são aquelas que
nunca existiram.
Mas Rose não abaixava a cabeça ante à ausência dele e,
inclusive, tinha um sonho de algum dia tocar uma padaria própria,
de forma que conseguisse se manter através de sua paixão.
Infelizmente, com tudo que aconteceu após a morte da mãe, ela
acabou abandonando seus planos, pois provavelmente eles jamais
se tornariam realidade.
Após ficar sozinha, Rose não teve outra escolha senão começar
a trabalhar como criada. Foi muito triste ter que deixar a casa que
vivia, afinal ela amava aquele lugar. Os pequenos riachos de água
cristalina, as campinas de um verde suave e os campos de flores
faziam Suckley realmente especial. O único “defeito” do local era
que não havia nenhum campo de margaridas na região, e as
pequenas flores brancas sempre foram as favoritas de Rose, mas
ainda assim, ela poderia viver ali para sempre.
Aquele era seu lar, no final das contas.
E então, não era mais.
Quando partiu, graças a ajuda do vigário de sua paróquia, Rose
conseguiu um posto na casa da família dos Hammstown, em
Kenchester.
E tinha dado muita sorte.
Rose passara algumas semanas trabalhando na cozinha, pois
geralmente eram as posições de criadagem mais fáceis de se
conseguir, mas ela logo foi promovida à criada pessoal da família.
Rose não sabia nada sobre como desenvolver suas funções, que
consistiam em administrar todos os cuidados pessoais de sua
patroa, como vestimentas, penteados e medicamentos, mas quando
soube que também ganharia um maior salário do que antes, não
hesitou em aceitar o posto, se esforçando também para aprender o
máximo sobre aquele mundo que não conhecia. Estudou, inclusive,
francês, pois era esperado que uma criada pessoal dominasse ao
menos uma língua estrangeira.
Ela trabalhava diretamente com a Senhorita Miranda
Hammstown, filha única da família, uma moça muito gentil e
amigável, que logo pedira para que Rose a chamasse pelo nome.
Elas tinham a mesma idade e se davam muito bem. Mesmo
mantendo a relação de criada e patroa, as duas haviam
desenvolvido um relacionamento bom, e isso fazia com que Rose
não se sentisse tão só. Ela tinha total liberdade quando não estava
em suas funções e realmente se sentia tão à vontade junto à família,
que Rose pensava jamais querer partir dali.
Até a chegada de Harry.
Com ele, tudo mudou.
Rose finalmente chegara até o ponto combinado com o amado
para que se encontrassem, mas olhando em volta, percebeu que ele
não estava lá.
Estúpida, Rose pensou de si mesma. Harry provavelmente não
conseguiu esperá-la após seu atraso, e apesar de sentir uma
pontada de decepção ante à ausência dele, Rose não o julgava.
Harry tinha muito o que administrar, agora que retornara de Londres.
Ao tomar o caminho de volta para casa, Rose lembrou-se de
como os dois se conheceram, após se esbarrarem em um baile
oferecido pelos patrões. Não era para ela estar ali, participando do
evento, mas após um imprevisto, Rose precisou ajudar Miranda com
seu penteado e esta insistiu para que Rose permanecesse na festa.
Mesmo ela negando veemente, Miranda não a deixou partir, e Rose
então se viu em meio ao primeiro baile de sua vida.
Ela se lembrava de como se surpreendera com o evento, e como
cada detalhe do ambiente lhe chamara a atenção. Os arranjos de
vela suspensos, a música tocando, os casais valsando. Era tudo
magnífico. E então, inesperadamente em um canto do salão, ela o
viu, Harry, olhando para ela com uma intensidade quente e fugaz.
Rose se sentiu diferente no mesmo momento.
Ela se sentiu... viva.
Harry mudara-se para a região há pouco tempo, para viver com
seu tio, o Duque de Norfolk, homem tradicional e rígido. E mesmo
ele sendo nobre, o amor deles foi inevitável. Harry conseguira um
jeito discreto de falar com ela na festa e dali para frente, os
encontros deles se tornaram mais frequentes — e em segredo, claro
—, até perceberem, enfim, que se amavam.
Quando estavam juntos, Harry fazia questão de dizer a Rose o
quanto ele enlouquecia ao seu lado e, com o passar dos dias, os
beijos que começaram suaves se tornaram mais intensos, até que
em uma noite, quando ele pediu a mão dela em casamento, Rose
se entregou a ele, de corpo e alma.
Harry se mostrara muito disposto a enfrentar todas as barreiras
que pudessem se intrometer entre eles. No fim do dia, ambos
sabiam que ela ainda era uma criada e um casamento entre
pessoas de classes sociais diferentes jamais era esperado ou
sequer bem aceito na sociedade. Mas Rose estava certa de que o
amor deles seria mais forte que qualquer pressão social externa.
Apesar disso, ela entendia que quebrar o status quo não era algo
fácil. Harry tinha muito a fazer por eles para que conseguissem
enfim seu final feliz. Mas ele a prometera que faria aquela viagem
necessária de duas semanas a Londres para tratar de assuntos
pessoais e quando retornasse, a pediria propriamente em
casamento, enfrentaria o tio, e então nada poderia jamais se
interpor entre os dois.
Um frio tomou seu interior quando ela pensou em Harry lutando
por eles, e quando se deu por si, Rose já estava quase chegando de
volta à casa principal. Olhando a fachada do casarão, mesmo já
morando ali há muito tempo, Rose ainda se espantava com o
tamanho da mansão. Perto da pequena casa em que vivia em
Suckley, aquilo era um verdadeiro palácio.
Ela então imaginou como seria a sua casa. Em realidade, em
como seria a casa deles. Dela e de Harry. Não que Rose se
importasse com o material, mas a ideia de formar uma família
própria a enchia de esperança e alegria.
Rose subiu os três degraus da varanda e, sem esperar,
encontrou Miranda na porta, que saía apressada de casa trajando
um vestido formal.
— Rose, aí está você! — disse ela, afoita.
— Senhorita Miranda, o que aconteceu? — perguntou Rose
confusa.
Rose nem imaginava que a patroa tivesse algum compromisso
naquela noite.
— Te procurei por toda parte. Surgiu um jantar de última hora e
devo comparecer! Meus pais já estão lá. Como você não estava,
demorei mais para me arrumar — afirmou ela, rindo.
Miranda jamais a tratara como se Rose devesse somente
obedecer às suas ordens, mesmo que fosse sua função agir como
tal.
— Mil desculpas! Eu não sabia que... — disse Rose, já se
sentindo muito mal por toda a situação.
Miranda, porém, a interrompeu rápido.
— Rose, não se preocupe! — ela a tranquilizou. —Você não
tinha como saber. Mas devo ir imediatamente. Já estão me
esperando. Ainda bem que o duque mora perto, assim posso ir
andando.
— O duque? É lá seu compromisso? — Rose não pôde se
conter a perguntar.
Isso com certeza explicava por que Harry não estava esperando
por ela. O duque devia ter marcado um jantar de última hora com os
vizinhos e muito possivelmente Harry não conseguira avisá-la
previamente.
— Sim! Vou para o noivado do Senhor White! Parece que ele
não perdeu tempo em sua ida para Londres.
Noivado do Senhor White?
Ouvindo aquilo, Rose não sabia ao certo o que passava por sua
cabeça naquele momento. Confusão, talvez. Mesmo assim, foi
tomada por uma estranha sensação que a gelou por dentro.
— Senhor White? — foi o único que ela conseguiu perguntar.
— Sim, Rose. Harry White! Ele chegou de Londres hoje à tarde e
trouxe sua noiva. Minha mãe disse que é filha de um marquês, se
não estou enganada. Pretendem casar-se ainda esse mês! Parece,
inclusive, que ele já conseguiu uma licença especial. Mas Rose,
querida, devo ir. Depois te conto tudo com detalhes!
Miranda saiu apressada, deixando Rose parada nos degraus na
entrada da casa da família com uma sensação já conhecida.
Era possível sentir a dor mais de uma vez, afinal.

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