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Criado no Brasil.
Ao homem com quem divido minha cama,
Gatilhos:
Automutilação, palavrões, cenas gráficas de sexo, transtornos
psicológicos (depressão e síndrome do estresse pós-traumático), violência
física e psicológica, abandono, abuso de substâncias lícitas e ilícitas,
lactofilia, morte, ideação suicida, suicídio, luto, menção a abuso sexual.
Érico Veríssimo
Sumário
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Epílogo
Agradecimentos
Prólogo
Tempos difíceis vão te fazer se perguntar por que você ainda tenta
Vão te colocar para baixo e rir quando você chorar
E eu ainda não sei como consigo sobreviver
Hard Times – Paramore
Ana Oliveira
Dias atuais...
“Quem provou do ódio desejará provar coisas cada vez mais intensas”.
Caio Fernando Abreu
Ana Oliveira
Dias Atuais...
Ana Oliveira
Dias Atuais...
Ana Oliveira
Dias atuais...
Sabe quando algo nos assusta tanto, que de repente tudo parece
silenciar? Eu não estava mais em um bar lotado de pessoas falando pelos
cotovelos, me via em um limbo, escuro, onde dois olhos viperinos
prometiam me devorar.
Josiah estava sentado em uma das poltronas da área que estava
separada com o cordão, a que parecia vip. Juntos estavam Harry, Isa, e mais
um monte de tatuados e com vibe de malvados ao redor, parecendo aqueles
clubinhos de roqueiros que toda cidade tinha. Era aquele pessoal que
podíamos ter dois pensamentos ao olhar: ou que eram fodões e queríamos
fazer parte do grupo, ou que eram filhos da puta e precisávamos ficar longe.
Sempre ficava com a segunda opção.
Ele estava bonito, largado sobre a poltrona, com as pernas abertas, as
costas pressionando o encosto e uma garrafa de água presa entre os dedos
grandes. Entre algumas goladas, encarava o meu objeto de flerte. Seu olhar
era profundo, repleto de promessas de morte. Josiah estava enfiado em
calças pretas, coturnos de mesma cor, e uma camiseta com os tons da noite.
— Tentei avisar que ele estava ali, mas você não me ouvia — Luana
sussurrou, tropeçando nas palavras.
— Merda! — murmurei, coçando a cabeça.
— Que coisa! Mil anos que não vejo Josiah, e, de repente, ele brota,
parecendo que surgiu dos bueiros.
O comentário de Luana me arrancou uma risadinha. Realmente, eu
estava tão entretida com minha paquera que não vi o grupinho chegar. O
destino adorava pregar essas peças, não era possível... Qual a probabilidade
de ele sair da Tijuca, onde morávamos, e estar no mesmo bar que eu, na
Lapa e no mesmo horário? Que saco!
— O que foi? — o carinha com quem eu estava flertando perguntou.
— Você conhece aquele homem? Está olhando como se fosse seu
namorado...
— Não. É só o babaca do primo dela! — expliquei, levantando-me da
cadeira. — Um minuto — pedi. — Vou ao banheiro.
Eu precisava sair dali. Caminhei, trocando os pés, olhando ao redor e
procurando uma placa que indicasse o banheiro. Quando percebi que seria
impossível ler qualquer coisa, porque minha visão estava levemente
embaçada a distância, capturei um garçom, que me apontou o corredor do
meu destino.
Enquanto notava que, para chegar até lá, teria que passar pela mesa
“vip”, observei Isabela grudada ao colo de Josiah. A garota não me notou,
enquanto ria com um dos brutamontes que lhe entregava um copo com
alguma bebida azulada. Algumas mesas foram colocadas na frente dos
sofás, repletas de baldes, alguns com destilados e energéticos, outros
suportavam garrafas de cervejas variadas. Ignorei a queimação nos olhos e
o nó na garganta com aquela cena, e passei por eles. Abaixei a cabeça,
tentando fazer com que mais ninguém daquele grupo nojento me visse.
Virei no corredor estreito, batendo em um peitoral masculino com
cheiro cítrico. Olhei para cima, vi um sorrisinho branco, de lábios grossos e
contornados, e gelei. Sabia o que viria a seguir:
— Olha só quem está aqui! — Harry gritou, segurando meu ombro,
enquanto eu tentava escapar de seus braços. — A surtada...
— Cai fora! — mandei, entre dentes.
Ouvi Isabela fazer algum comentário, causando risadinhas no seu
pessoal. Cerrei os dentes. Só queria sair correndo dos olhares que
queimavam atrás de mim, das piadinhas idiotas sussurradas em meio ao
caos dos amigos de Josiah.
— Calma, surtadinha! — Harry pediu, rendendo-se ao sair da frente,
com seu gingado de malandro em uma calça jogger repleta de correntes em
cor escura, e uma camiseta terrivelmente baixa no peitoral, exibindo os
músculos do peito e os mamilos, ambos com piercings prateados.
Corri para o banheiro, empurrando a porta vermelha com força e
chegando até a imensa bancada de mármore preto, em frente a um imenso
espelho. Que droga! Eu me sentia encurralada quando ficava perto daquele
bando de corvos. Estava tão nervosa, que minhas mãos tremiam. Encarei o
meu reflexo, arfando, notando que estava um pouco suada, com o rímel
levemente borrado, porque devo ter lacrimejado ao ver Isabela se sarrando
nele...
Não sabia como foi que as coisas chegaram naquele ponto entre os
dois. Não sabia se ambos tinham um relacionamento, se eram amigos com
benefícios, ou se só faziam aquilo quando eu estava olhando. Mas faziam, e
sempre me afetava.
Respirei, trêmula, tentando me acalmar, então notei a bola molhada ao
redor do meu seio esquerdo.
— Merda, merda, merda! — sussurrei, entrando na cabine e pegando
um bolo de papel higiênico.
Tentei secar o cropped pelo lado de fora, e, quando não surtiu efeito,
repeti o gesto pelo lado de dentro.
— Ai, que ódio! — berrei, atirando o papel dentro do vaso sanitário, e
apertando a descarga de metal na parede. — Isso é porque a porra da noite
estava perfeita...
Saí da cabine, lavei as mãos na pia e as sequei, tentando controlar a
vontade de surtar. Quando olhei para as manchas no espelho, dei um leve
salto. Josiah entrou no banheiro e se apoiou de costas na porta vermelha,
cruzando os braços musculosos. Meu coração começou a bater tão forte,
que parecia tamborilar em meus ouvidos. Me afastei do espelho, assustada,
encarando o seu olhar e seu semblante misterioso.
— Não pode entrar aqui! — avisei.
— É mesmo? — debochou, erguendo uma das sobrancelhas. —Acho
que já entrei, não é?
— Sai da frente da porta! — ordenei, contraindo o maxilar, com ódio.
— Eu não quero falar com você.
— Não vou sair, Docinho. Pode gritar, meus caras estão do lado de
fora segurando a porta. Só vão abrir quando eu mandar — sussurrou,
cruzando os braços fortes. — E não estou a fim de fazer isso agora.
Recuei quando ele começou a dar passos lentos em minha direção,
com seu coturno pesado sendo o único som no ambiente a contrastar com a
música baixa que soava na caixa de som do teto. Dei passos mínimos para
trás, até sentir a parede de tijolos gelados em contato com as minhas costas.
Ele estava cada vez mais perto. Quando achei que iria parar, porque não
havia mais nenhum espaço sequer para ele, Josiah agarrou o meu quadril,
sustentando o peso do meu corpo ao me erguer, pousando-me com força em
cima da pia de tampo preto.
— O que está fazendo? — perguntei, tentando empurrar o seu peito.
Ele riu quando minha agressão não lhe causou cócegas. Meu corpo
inteiro esquentou com o toque das minhas mãos em sua camiseta, e era
irritante a maneira como ele causava sensações em mim. Sentia o sangue
fervendo ao me percorrer, enquanto sua respiração quente batia em meu
rosto, fazendo todo o meu corpo se arrepiar. Josiah não retirou as mãos do
meu quadril.
— E você? — indagou, sorrindo enquanto erguia a mão direita em
direção ao meu rosto, usando as costas do indicador para alisar a minha
bochecha. — Largou a Coisinha em casa para arrumar uma trepada na
Lapa? Não era assim que você imaginava estar aos vinte e dois anos...
Sua provocação atingiu meu corpo como uma pancada. Engoli em seco
e segurei as lágrimas com fúria. Ele me conhecia tão bem, que sempre sabia
os pontos certos para me atingir. Entendi a menção ao passado, falando
sobre como eu me imaginava adulta, sobre meus fracassos pessoais... Mas o
golpe mais baixo foi citar a minha filha.
— Não fala nela, porra! — gritei, deixando as lágrimas irromperem,
escorrendo pelas minhas bochechas. — E nunca mais a chame assim!
— Não chamar assim? Assim como? — fingiu-se de desentendido,
esfregando o dedo por uma das minhas lágrimas. Estremeci sob o toque,
tentando me afastar, com o coração doendo pela proximidade, pelo cheiro,
pela dor em ver tudo em que ele havia se transformado. Solucei quando
Josiah levou o dedo à boca, provou minha lágrima e sorriu. — Para de
drama, Ana! Só disse a verdade, você deixou a Coisinha com a Marta para
arrumar um sexo ca...
Antes que ele terminasse a frase, bati em seu rosto, dando um tapa,
ouvindo um estalo. Encarei a feição surpresa dele com ódio, tentando
empurrá-lo para longe das minhas pernas. Josiah sorriu de maneira amarga,
enfiando a língua entre os dentes, alisando a bochecha enquanto me engolia
com os olhos. Percebi que meus empurrões não o faziam sair do lugar.
— Eu já disse... — murmurei, aproximando o rosto muito lentamente
do dele, cravando as unhas em sua camiseta na região do peitoral. — Não
fala dela, e não a chame como se não fosse um bebê! Não é por que você
finge que Júlia não existe, que ela é apenas uma coisa, que não é sua...
— Cala a boca! — sussurrou, contraindo o rosto, tentando se afastar
como se tivesse sido golpeado.
Com uma injeção de raiva em minhas veias, saltei da pia e o
empurrei na parede, com tanto ódio, que ele chegou a se desequilibrar. Seu
semblante parecia perdido, atordoado.
— Como consegue, hein? Como consegue se deitar na cama e dormir,
como se não tivesse feito nada? — gritei, chegando muito perto do seu
rosto, de novo, ficando na ponta dos pés — Como se não tivesse me
arruinado?
— Eu disse para calar a boca, Ana! — avisou, avançando sobre mim.
Foi tudo em questão de segundos. Josiah envolveu os dedos imensos
em meu pescoço e me girou, trocando de lugar comigo e me colocando na
parede. Senti sua mão apertando de leve o meu pescoço.
— Sério? — perguntou, respirando fundo enquanto eu podia vê-lo
quase soltando fumaça pelas narinas. Meu peito batia tão forte que eu
poderia desmaiar. — Você vai mesmo falar em dormir com a consciência
limpa? Quer que eu te lembre? Quer que eu jogue na sua cara a porra toda
que você fez? Como você acabou conosco? Que você é a porra de uma
criminosa, que não foi presa porque o meu pai, o velho que você tanto
condena, impediu?
— Cala essa maldita boca! — gritei, apertando a mão dele, tentando
me soltar.
— Você não é a santinha que finge acreditar ser... E não tenta me
colocar como culpado em relação à Coisinha! Foi você quem me afastou,
quem nunca me deixou chegar perto.
— Para de falar! — gritei, histérica.
Quando percebi que ele não pararia, que continuaria atirando coisas
em cima de mim, desesperada, avancei contra sua boca e a mordi. Capturei
seu lábio inferior e cravei os dentes, com fúria. Ele gemeu de dor, apertando
o meu pescoço, enquanto eu sentia o sangue escorrendo pela minha língua.
Quando meu ex-namorado apertou tanto, a ponto de eu sentir o ar escapar
do meu corpo, eu o soltei.
Josiah estava com um olhar perverso sobre o meu rosto, com o lábio
inferior repleto das marcas dos meus dentes, e eu sentia o gosto metálico
em minha boca. Sentia o rosto molhado das lágrimas que eu não queria
mais deixar escondidas, enquanto ele lambia a boca, dava passos para trás e
depois andava em círculos pela minha frente, enfiando as mãos nevosas
entre os fios do cabelo, alisando-os para trás.
— Isso precisa acabar, Josiah — supliquei, caminhando até ele e
segurando seus ombros. — Precisa me deixar em paz.
— Eu odeio você! — gritou, me empurrando novamente contra a
parede de tijolos. — Não vou deixar você em paz, nem vou ir embora,
como você espera que eu faça. Vou te destruir, fazer tudo que eu puder para
minar qualquer coisa que a deixe feliz. Ou você acha que merece paz?
— Vai me destruir, sim — murmurei, encarando-o nos olhos. — E vai
se acabar no processo, queimar tudo e todos que nos cercam juntos, porque,
se você não parar, vou começar a revidar com a mesma força.
— Então está feito! — ele sussurrou, enquanto apoiava a cabeça na
parede ao meu lado e inspirava o cheiro do meu pescoço. Senti novamente
meu corpo incendiar, com uma mistura tensa de ódio e outra coisa. —
Vamos ver quem acaba com o outro primeiro!
E antes que eu pudesse responder, ele cravou os dentes no meu ombro
e o mordeu, com força, me fazendo gritar enquanto apertava seus ombros.
Senti uma imensa ardência enquanto ele se afastava, sorrindo, prometendo
coisas somente com o olhar. Observei enquanto Josiah dava socos leves na
porta do banheiro, e então alguém do outro lado abria a porta.
— Eita! — Harry debochou do lado de fora. — Foi boa a parada, hein?
Está até sangrando...
— Fica quieto! — Josiah murmurou.
— Merda! — gritei, chutando a lixeira do banheiro.
Me apoiei na pia, encarando o espelho. Havia uma marca de
mordida imensa no meu ombro esquerdo. A alça fina do meu top preto
estava caída sobre o braço, e a coloquei no lugar. Enxuguei o rosto com
papel e respirei fundo.
Ele realmente queria guerra e, pelo visto, não iria parar. Não podia
deixar que aquele homem continuasse me atacando, perturbando,
acreditando que era realmente inocente em todo aquele caos. Ele iria
queimar na mesma chama que tentava todos os dias me incendiar. Queria
me colocar na fogueira, como se eu fosse uma bruxa que merecia arder, mas
agora eu estava disposta a fazê-lo arder também, mesmo que não fizesse a
menor ideia de como me vingar dele.
Saí do banheiro, engolindo em seco enquanto notava o silêncio entre
o grupo de Josiah. Ele estava sentado, largado no sofá, com uma pedra de
gelo sobre o lábio, que começava a inchar. Isabela estava ao seu lado,
encarando-me de maneira confusa. O restante bebia, trocando olhares entre
si.
Vi Luana no mesmo lugar em que a deixei, tomando alguns goles de
água e me encarando, preocupada. Dei as costas ao grupo do caos,
caminhando até ela, meio tonta por conta do álcool e do estresse. Queria ir
embora e tentar apagar aquela maldita noite da memória.
— E aí, Jow, quando a Ana chupava o seu pau, ela também usava os
dentes como fez na sua boca? — Isabela zombou, fazendo o grupo inteiro
cair na gargalhada.
Cessei os meus passos, tentando conter o demônio que estava prestes a
escapar por meus poros. Mordi o lábio inferior e me virei. Encarei a garota,
que estava sentada com as pernas cruzadas, enfiada em um short jeans curto
e rasgado, e uma blusa vermelha repleta de buracos.
— Não! — Josiah respondeu baixo e com o semblante sério. — Ela
era boa em usar a boca.
Irritada com os comentários, caminhei até a mesa e peguei uma cerveja
do balde. Sorri ao dar umas goladas, enquanto via o grupo em silêncio,
alguns pareciam preocupados. Pela visão periférica, notei que Luana já
estava bem próxima, para me conter. Então me aproximei de Josiah, parei
bem na frente dele e virei o líquido sobre o seu cabelo escuro. Observei
enquanto a cerveja ia escorrendo sobre seu rosto, enquanto ele respirava
fundo e contraía o maxilar. Antes que o meu ex pudesse fazer qualquer
coisa, devolvi a garrafa ao balde, joguei-me por cima de suas pernas e
agarrei o cabelo vermelho de Isabela, puxando-o com força.
Capítulo 5
Ana Oliveira
Há seis anos...
Era o primeiro dia de aula, meu primeiro dia no terceiro ano do ensino
médio. A nova escola era um prédio de cinco andares, moderno e com
janelas espelhadas que me lembravam os prédios comerciais do centro da
cidade. Era estranho estar ali, enfiada em um uniforme azul, sentindo uma
calça jeans apertando as minhas pernas. Bom, ainda era melhor do que o
emaranhado de tecido branco que eu morria de medo, aquela maldita
camisa que diziam que prendia você inteira, a camisa de forças.
Eu havia passado a primeira metade de 2015 inteira em um sono
esquisito, como se estivesse viva, mas vendo a vida através de uma densa
camada de vidro. Passava os dias sedada com remédios, vivendo em um
limbo, entre comprimidos tranquilizantes, antipsicóticos e antidepressivos
que desciam arranhando minha garganta. Depois, fiquei mais três meses
atrás dos muros de uma clínica psiquiátrica. E eu tinha quinze anos... A
porra de quinze primaveras, e meus pais haviam resolvido que se matar era
uma boa opção. Juntos. E a Aninha, o pequeno docinho que eles sempre
diziam amar, que diziam ser um presente, ficou sozinha, tendo que lidar
com a própria existência medíocre, com o abandono, com o luto, com a
culpa...
Tinha dias em que tudo que eu pensava o tempo inteiro era na
sensação que os meus pais experimentaram na hora da partida. Será que
sentiram medo? Será que estavam finalmente se sentindo aliviados? Será
que tudo o que eles pensavam era que enfim a dor estava cessando? E o que
eles viram por último? As luzes do farol do caminhão cargueiro? Ou teria
sido mais romântico, com uma troca de olhares enquanto o choque entre os
veículos cravava o fim? Não havia remédio que me impedisse de pensar,
que travasse aqueles pensamentos automáticos que me mantinham morta,
mesmo que eu ainda tivesse pulso...
Quase um ano depois, lá estava eu, sentada na carteira da escola, na
primeira fileira, com a cabeça apoiada na parede do lado esquerdo após
resolver me enrolar em um casaco com capuz preto. O mundo inteiro
parecia distante, como se eu estivesse o tempo todo dispersa, longe, vendo a
vida em um filme em preto e branco.
A escola sempre fora um terror para mim, e eu costumava me esforçar
para passar de ano, organizando o tempo da semana de maneira metódica,
para não perder nenhum conteúdo, para absorver tudo do conhecimento
daquele inferno povoado por demônios em idade de alfabetização. Não
porque eu gostasse de estudar, era para fugir logo, acabar aquele martírio.
Isso foi durante a vida que existia antes dos meus pais morrerem. Só que,
quando eles se foram, nada mais fez sentido. Eu só estava lá, naquela bosta
de carteira azul caneta, naquela patética nova vida, porque minha tia estava
me obrigando. Ou era isso, ou uma cama em um abrigo público até a
maioridade. “Seus pais morreram e nós não temos ninguém! Você sabe
disso, sabe que eu perdi a única irmã que a vida me deu. E se continuar
tentando morrer também, você vai acabar comigo, Ana!”, minha tia gritava
ao me chacoalhar, tentando me trazer de volta ao me encontrar no chão da
cozinha, segundos após eu engolir uma cartela inteira de sedativos. Ela era
dura porque só tinha a mim, porque só tinha trinta anos, tendo que lidar
com uma adolescente suicida e órfã. Entendia que a tia Marina estava
exausta, eu também estava...
A vida parecia uma eterna piada de mau gosto... Roguei a porra da
vida inteira por um irmão, e meu pai negava, alegando que não queria mais
trabalho, que eu estava crescendo e ele e minha mãe queriam aproveitar a
vida. Eu ignorava, ansiando por ter um bebê pela casa. Era um sonho bobo,
porque eu não gostava da solidão de ser filha única. E eu era feliz, era uma
garotinha tola, que qualquer pequena coisa a alegrava, que vibrava com
tudo e sorria facilmente.
Por que eu precisava de mais? Por quê, porra?
Quando a vida resolveu ir contra a vontade do meu pai, minha mãe
acabou grávida. Lembro que ela me fez uma surpresa para dar a notícia,
sorrindo com aqueles cabelos castanhos, com ondas serenas e curtas, os
olhos gentis enquanto me entregava uma caixinha vermelha que cabia na
palma da minha mão. Quando abri, quase desmaiei ao ver aquele sapatinho
de tricô azul. Foi mágico e agradeci tanto a Deus, contei a todos os meus
amigos da escola... Que tola!
Três anos e meio depois e a minha vida inteira foi por água abaixo,
todo o solo embaixo dos meus pés foi despencando, eu fui caindo.
Caindo.
E caindo.
Até não restar nada.
Aconteceu a maldita tragédia que me deixou sozinha, me sentindo
culpada por ter soprado velas de aniversário, uma atrás da outra, ano a ano,
pedindo pela benção de ter um irmão. A maneira como a vida resolvia bater
tanto em algumas famílias só podia ser traduzida com uma palavra:
covardia.
Não estava pronta para a selva que era uma escola. Não estava
preparada para os alunos, porque eu sabia que podiam ser cruéis, a maioria
era. E, sem a mínima vontade de continuar respirando, como eu poderia
estudar, começar uma vida nova em um lugar novo?
Eu fui a primeira a chegar na sala naquele dia, e aos poucos o lugar foi
se tornando movimentado, com alunos que provavelmente se conheciam há
anos. Havia um menino, Bernardo, que parecia ser uma boa pessoa. Ele
estava tão animado com o novo ano escolar, que me irritava. O garoto ria,
brincava e tratava todos bem. Não revidava o grupinho de valentões no
fundo da sala, que o chamavam de “boiola”.
Passei a aula daquele jeito, com cara de poucos amigos e encarando
tudo o que acontecia ao redor. Não anotei as lições de Literatura, mesmo
que sempre tenha sido minha matéria favorita. Então, quase no final do
segundo tempo, enquanto um menino terrível chamado Caíque atirava
bolinhas de papel em Bernardo, um carinha lindo entrou na sala. Ele era tão
bonito e tinha um olhar muito profundo. Eram olhos tão intensos sob
sobrancelhas grossas, arqueadas, que o faziam parecer mau. Quando chegou
e jogou a mochila com estampa militar ao lado de Bernardo, todos os
meninos que estavam fazendo bullying silenciaram. Eu não fui a única a
notar que ele tinha uma postura intimidadora.
O garoto era tão alto, que parecia o mais velho da turma. Era um
pouco corpulento, com braços fortes e músculos bem delineados. Quando
eu o olhava, porque não conseguia fazer outra coisa, ele não parecia notar,
absorto entre risadas e brincadeiras com Bernardo. Pareciam tão amigos...
Ambos bisbilhotavam o caderno um do outro, copiando informações para as
próprias folhas, exibiam a tela do telefone um ao outro entre gargalhadas,
cochichavam e volta e meia recebiam um “puxão de orelhas” da professora.
Era uma mulher na faixa dos quarenta anos, que circulava pela sala com
óculos tão redondos como os do Harry Potter, falando pelos cotovelos com
uma voz estridente e anasalada. A professora, Lílian, volta e meia encarava
a duplinha por quem eu estava momentaneamente obcecada. E mesmo que
fossem uma dupla “problema”, pareciam alunos inteligentes, com cara de
que aprontavam, porém, para irritar mais os professores, tiravam as
melhores notas.
Meu pesadelo começou quando os alunos caminharam para o vestiário
da ala esportiva, algumas meninas retirando calças leggings ou shortinhos
de malha das mochilas. A aula seguinte seria Educação Física. Minha única
vontade era a de ficar estática, existindo e com olhos e ouvidos atentos na
vida alheia, para fugir dos pensamentos automáticos que me sugavam e
empurravam para baixo.
Para acabar de vez com minha paz, não tinha levado roupa de
ginástica. O professor, um homem de meia idade, quase completamente
calvo e com aquela maldita vibe de saúde, com rosto sorridente, corado de
sol e um corpo em perfeita forma, me mandou fazer a aula na quadra junto
com todo mundo. Pedi para substituir o exercício físico por uma atividade
escrita, me propus até a copiar a frase que ele quisesse cem vezes, mas ele
retrucou que era só para eu escrever um resumo do futebol da turma.
Fiquei sentada em um dos bancos ao lado da quadra esportiva,
observando enquanto algumas meninas ficavam fazendo de tudo para
chamar a atenção do “gostosão de olhos claros”. Peguei meu caderno e
comecei a escrever frases desconexas sobre querer morrer.
— Eu também quero...
Girei o rosto na direção do som, sobressaltada, encarando a menina de
cabelo ruivo sentada ao meu lado. Seu cabelo era tão vermelho, que parecia
uma cascata ensanguentada. Ela era muito magra, com olhos escuros e um
rímel borrado ao redor, parecendo que havia chorado. Era a cara da
adolescente problemática, com uma argolinha prateada saltando do septo,
um casaco fino estampado em um xadrez vermelho, com mangas
aparecendo por baixo da blusa azul escolar, e AllStar Converse preto de
cano alto envolviam os pés pequenos. A mochila jeans era repleta de pins
do Metallica, largada no chão, ao lado dos seus sapatos. E por mais que
tudo nela parecesse afiado, seu rosto era suave, com contornos redondos e
um nariz muito pequeno, daqueles que as mulheres fariam cirurgias para ter
igual.
— O quê? — perguntei.
— Morrer... — murmurou com sua voz doce, enquanto erguia o casaco
do braço direito, para exibir o pulso repleto de cicatrizes extensas na
horizontal.
— Por quê?
Torci internamente para que ela não fosse uma daquelas meninas que
me irritavam, as meninas por quem eu julgava muito difícil ter empatia. As
que reclamavam da vida que eu queria ter, cheia de zelo e pais sufocantes.
Queria pelo menos os meus pais ali, vivos...
— Porque o meu padrasto é um tarado, que bate em mim e na minha
mãe, vive fazendo piadas sobre o meu corpo e encarando os meus seios —
contou, sem cerimônia, sacando um caderno preto e uma caneta para fazer o
resumo da aula — E ela não vai largar aquele cuzão, então eu fico muito
tentada a procurar uma fuga dessa vida de merda, antes de acabar estuprada
ou matando o desgraçado. E você?
A confissão fez um líquido ácido subir em minha garganta. Nauseada,
entendi que ela não era aquela pessoa de aparência endurecida à toa, fora
forjada para ser um objeto cortante, para não ser um doce. A adolescente
não parecia ter conhecido doçura na vida...
— Meu irmão de três anos morreu afogado enquanto eu lia um livro na
sala, e, em consequência, meus pais se mataram em um pacto de suicídio.
A garota, branca como uma pessoa que evitava a luz do dia, mordeu o
lábio ressecado depois do que eu disse. Então pegou algo dentro da
mochila. Fiquei encarado o punho fechado que ela direcionou a mim e,
quando a menina abriu os dedos, vi que estava me ofertando um chiclete.
Sorri enquanto pegava o doce, enfiando o Bubbaloo de uva boca adentro.
Gostei da ruivinha, só pelo fato de que não disse nada. Não tentou me
consolar. Só me deu o silêncio, e aquilo era uma boa resposta quando se
ouvia algo tão pesado. E, por mais que fosse horrível admitir aquilo, eu
estava feliz por ter encontrado alguém como eu, com uma vida de merda.
— Meu nome é Ana — avisei, sem tirar os olhos dos riscos pretos que
eu fazia no caderno.
— O meu é Isabela. Quer ser minha amiga? Pelo menos sabemos que
somos duas fodidas.
— Quer mesmo ser amiga de uma bostinha?
— Sou outra bostinha... — brincou, sorrindo.
De repente, a bola de futebol pousou bem na frente de meus tênis
brancos. Deixei o caderno de lado e capturei o objeto, para lançar ao
pessoal da quadra. Caíque então veio correndo, com seus cabelos ruivos
alaranjados molhados de suor, e me preparei para lançar a bola a ele,
cerrando os olhos por conta da claridade.
— Vai, gordinha! Chuta a bola, mas não sai rolando junto! — ele
zombou, dando um sorrisinho perverso.
Irritada, atirei a bola com força, mirando no alto da cabeça para acertar
a cara dele. Estava ansiosa para causar um estrago em seu semblante
rosado, mas o garoto a pegou bem rápido, com um sorrisinho de lábios
cerrados, triunfante.
— Se me chamar assim novamente, vou quebrar a sua cara, otário! —
avisei, ficando de pé ao apontar meu dedo indicador em sua direção.
Em geral, eu ficava muito triste quando zombavam do meu corpo. Eu
tinha uns seis quilos acima do peso ideal para quem tinha 1,63 de altura.
Era o suficiente para canalhinhas como Caíque zombarem de mim. Ouvi
piadinhas a minha vida inteira, apelidavam-me de “porquinha”,
“rosquinha”, “baleia”... A criatividade era grande, e a lista de apelidos,
também. Minha autoestima era muito baixa, por conta de pessoas como ele.
Se fosse antes, me calaria, sairia correndo aos prantos e me esconderia no
banheiro da escola. Só que estava tão cansada de tudo, que não dava para
aturar nada. Eu era um copo repleto de água pronto para transbordar.
— Bate que eu amasso o seu rosto! — o garoto avisou, chegando bem
perto de mim, segurando a bola ao lado da cintura.
Tive que olhar para cima para encarar aqueles olhos estreitos demais.
Quando me aprontei para enfiar as unhas em seu rosto, preparada para
causar um caos, Isa surgiu ao meu lado, segurando minha cintura em um
abraço lateral.
— Você amassa a cara dela e eu corto a sua inteira. Já tem um
tempinho que ando querendo conhecer uma casa de menores infratores... —
ela sussurrou, enquanto empunhava uma gilete para ele.
Vi quando o babaca abriu a boca em um pequeno “O” e,
covardemente, se afastou. Era bem típico dos valentões, correr quando
encontravam outro.
— Você sempre anda armada por aí? — brinquei, aliviada por minha
nova amiga ter interferido, enquanto nos sentávamos.
— Ah, sabe como é... Volta e meia os pelos das sobrancelhas crescem
— brincou, guardando o objeto em um papel fino e enfiando-o no bolso
frontal da calça jeans — Ou os pulsos coçam.
Engoli em seco, absorvendo o seu humor ácido. Eu realmente gostava
daquela garota. Ao menos uma surpresa legal quando tudo o que eu
esperava era mais algumas doses de morte lenta.
●●●
Só me separei da minha nova pessoa favorita quando tive que entrar no
ônibus escolar. Trocamos telefone, combinamos de assistir a uma série à
noite, enquanto faríamos uma chamada por telefone para comentar. Um
enredo de terror, ela disse. Nem precisou de muito para me convencer,
afinal, o que eu tinha para fazer além de ficar encarando o teto e
imaginando como seria o meu fim?
Quando caminhei pelas fileiras de cadeiras azuis do ônibus, evitando
qualquer poltrona que tivesse alguém do lado, notei que a última fileira
estava praticamente vazia. Sentei-me do lado direito, aninhada a janela,
pensando em como o dia tinha sido melhor do que eu esperava. Nada que
fizesse a dor no meu peito suavizar, mas foi... diferente do que acreditei que
seria. Me preparei para colocar os fones de ouvidos, quando ouvi um
assovio. Trinquei as sobrancelhas prestando atenção no menino na janela
oposta.
— Pensou que eu não havia notado? — indagou, dando-me um
sorrisinho de canto.
Não entendi aquela sensação de imediato, um leve desconforto na
barriga. Meu coração deu alguns solavancos, resolveu dançar em um ritmo
desenfreado.
— O... quê? — gaguejei.
Por que ele estava falando comigo? De repente, fiquei preocupada em
como estava feia, alisando os fios ásperos e ondulados grudados a minha
cabeça. Droga! Não lavava o cabelo há três dias. E as olheiras? Estavam
profundas o suficiente para eu parecer um panda.
— Que você estava me encarando a aula inteirinha...
Engoli em seco, sentindo a pele gelada enquanto gotículas de suor
escapuliram da minha testa. Olhei pela janela, observando a paisagem dos
prédios da Tijuca, sentindo as bochechas arderem. Fui pega! Ele me viu
encarando...
— Não estava! — neguei, sem coragem de fitar aquela mandíbula
bem-marcada, aquele nariz perfeito, ou a boca naturalmente avermelhada.
Senti quando ele pulou algumas poltronas, aterrissando ao meu lado, e
meu coração parecia uma bateria de escola de samba. A respiração do
garoto estava próxima, quente, com cheiro de... cheiro de...
— Você fuma! — sussurrei, pensando alto.
— Sim! — reconheceu, sorrindo e exibindo covinhas quando notou
meu embaraço. — Você está toda vermelha, garotinha!
Engoli em seco, chocada com a proximidade, com o fato de o rosto
dele estar a centímetros do meu. Notei os dentes brancos perfeitos, e em
como combinavam com aquele rosto inteiro. Ele era quase uma obra de
arte, e achei que não era justo uma pessoa concentrar tanta beleza em si...
Mordi o lábio superior, encarando a maneira como a barba rala estava por
fazer, e era tão sexy!
— Vai me contar por que estava me encarando? — insistiu, sorrindo de
uma maneira provocativa. Ele estava muito cheiroso, e aquilo tudo estava
fazendo a minha barriga dar voltas, esquentando.
— Eu não estava olhando para você! — menti, observando os seus
olhos que eram tão límpidos e profundos. — Estava encarando o Bernardo,
ele é divertido e...
— Sei... — cortou, parecendo decepcionado ao olhar para baixo.
Fiquei brava! Brava por ter sido pega, e por ele estar ali, falando
comigo e me fazendo sentir coisas. Olhei para a janela, querendo ignorar
toda aquela proximidade. E então, fiquei surpresa ao notar que estava muito
perto de casa. Vi a praça, a estação de metrô e, sobressaltada, passei por
cima das pernas dele, sem me importar com as partes impróprias onde meu
corpo tocou o do garoto.
— Motorista! — gritei. — Para na frente do condomínio La Grassa,
por favor!
Não olhei para trás ao correr para fora do ônibus, vendo a placa do
meu condomínio estampada em tons de rosa. Quando por fim saí do ônibus,
senti-o partir atrás de mim, ouvindo o motor pesado se distanciando.
Apoiei-me nos joelhos e soltei o ar, sorrindo. Aquilo foi... foi... legal.
O carinha gato da escola falou comigo, sentou-se bem ao meu lado e
pareceu estar interessado. Lembrei-me daquele olhar enigmático, em como
ele não sentia constrangimento em encarar o meu rosto, em percorrer cada
centímetro das minhas feições. Era difícil conseguir pensar no que se
passava na cabeça dele. Não conseguia aceitar a ideia de que o garoto mais
bonito da sala poderia ter se interessado por mim, principalmente num
momento em que eu estava tão apagada e sombria.
— É meio inadequado encostar no colo de um cara do jeito que você
fez... — Ergui o corpo imediatamente, sentindo-me nervosa com aquela voz
grossa e sensual atrás de mim. — Não vai dar para controlar minha
imaginação na hora do banho.
Fiquei paralisada, sentindo-o passar por mim como uma brisa
despreocupada. Que merda ele estava fazendo? Fiquei vendo-o entrar pelos
portões metálicos em tons de marrom do meu condomínio. Observei
enquanto o meu colega de turma cumprimentava o porteiro, caminhando de
maneira confiante para a casa rosa na esquina. Então ele parou na frente do
portão social, virou em minha direção e acendeu um cigarro preto.
Engolindo em seco, sentindo uma certa dificuldade de andar, segurei
as alças da mochila e fui caminhando em direção à calçada do lado oposto,
tentando ignorá-lo. Talvez conhecesse alguém daquela casa. Só que eu não
conseguia entender o que ele quis dizer sobre o seu banho. Será que ele
disse que iria se...
Não! Pensei, girando a cabeça de um lado a outro, enquanto tentava
acelerar o passo.
— Docinho! — ouvi um gritinho atrás de mim.
Girei sobre os calcanhares, encarando a mulher correndo em minha
direção de maneira atrapalhada, empunhando sacos de mercado em ambas
as mãos. Fui até ela e me prontifiquei a pegar algumas sacolas.
— Oi, tia! — cumprimentei, aceitando o beijo na bochecha que ela
ofereceu.
Marina estava com a pele corada. Na mínima exposição solar, suas
bochechas ficavam vermelhas. Acho que aquilo era genético, também
acontecia comigo. Seus cabelos cacheados estavam presos em um coque no
alto da cabeça. Seu vestido longo e amarelo estava com as alças finas caídas
sob o ombro, e com a mão direita eu as acertei. O rosto quadrado estava
abatido, e rugas de preocupação começaram a se formar no alto da testa.
— Docinho, você está com uma cara tão boa... Como foi a aula? —
indagou, carinhosa.
— Foi melhor do que eu esperava... — contei, olhando para o portão
do garoto.
Estremeci ao perceber que ele tragava o cigarro enquanto caminhava
até nós duas. Merda! Por que ele estava vindo até nós?
— Olá! — cumprimentou, chegando por trás de Marina, assustando-a.
— Menino! — ralhou. — Não se chega assim por trás das pessoas,
ainda mais no Rio de Janeiro.
— Ah, mas aqui no condomínio é tranquilo — brincou. — A
propósito, meu nome é Josiah Marquez! Moro aqui.
Marina e eu encaramos a casa que ele apontou, que ficava bem na
esquina da rua principal. Minha tia encarou-o, mordendo a bochecha
internamente, um tique que fazia quando estava intrigada.
— Marquez? Então você é o filho do prefeito? — questionou,
acertando a postura, interessada.
O semblante de Josiah ficou um pouco fechado, ele pareceu contrair o
maxilar, enquanto assentiu e apagou o cigarro com a sola do sapato.
Aproveitei para encarar mais cada pedacinho dele, observando que tinha um
alargador preto bem pequeno na orelha direita. Deus! Estava tão nervosa
que gotículas de suor escorriam pelas minhas costas.
— E vocês? Como se chamam?
— Eu sou a Marina, e essa é minha sobrinha, Ana. — informou,
enquanto Josiah abaixava e pegava sua bituca de cigarro do chão. — Pelo
uniforme, vocês estudam na mesma escola.
— E na mesma turma. — o garoto disse, sorrindo para mim.
Minha tia cravou seu olhar escuro em mim com curiosidade. Uma voz
rouca soando ao longe fez Marina retirar sua atenção de mim. Olhamos
todos na mesma direção, enquanto o idoso de baixa estatura acenava,
mostrando ao longe um bolo de cartas.
— Aqui, Josiah, leve essas compras lá em casa com a Ana enquanto
pego minha correspondência!
Ela não pediu, enfiou as sacolas nos braços do garoto e caminhou para
longe. Fiquei embaraçada, andando ao lado do rapaz em silêncio. Ainda não
conseguia esquecer o que Josiah disse sobre o banho, e sempre que a frase
voltava em minha cabeça, algo esquentava em mim.
— Sua tia parece ser gente boa — disse, enquanto seguíamos a passos
lentos. — Já a vi por aqui muitas vezes, mas você foi a primeira vez.
— É, vim morar com ela há pouco tempo, e não saí muito de casa.
— Entendi...
Seguimos em silêncio por várias ruas, até finalmente chegarmos à casa
amarela. Era uma construção simples, de dois andares com janelas e portas
de uma madeira lustrosa. O muro era alto, só permitindo que se pudesse ver
o segundo pavimento pelo lado de fora.
— Obrigada pela ajuda! — disse, pegando o restante das sacolas das
mãos enormes dele.
— De nada, Ana!
Observei o garoto se virar, enquanto atirava a guimba de cigarro na
lixeira laranja de rua, presa a um poste. Coloquei as sacolas na calçada e
comecei a girar a chave no portão social branco, enquanto ouvi de novo
aquele assovio. Encarei-o do outro lado da rua, com os lábios abertos em
um sorriso perfeito para mim. Meu coração deu uma leve dançada, me
fazendo ficar irritada por perceber que só olhar para Josiah já o fazia reagir.
Uma coisa era surpreendente: por todos os momentos desde o ônibus,
eu não lembrava que estava de luto. Tinha esquecido, e isso nunca
acontecia.
— O nome Ana não combina com você! — gritou, me fazendo bufar.
Dei as costas, empurrando o portão com o pé, irritada, porque eu gostava do
meu nome. — Vou te chamar de Docinho!
Só quando entrei em casa e o cheiro de jamelões invadiu minhas
narinas, é que as lembranças me atacaram. Era a fruta favorita do meu pai.
Mas, ainda assim, era chocante perceber que poucos momentos com aquele
menino me fizeram sentir uma leve centelha de vida.
Capítulo 6
Josiah Marquez
Dias atuais...
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¹ Perda total ou PT é uma gíria para dizer que uma pessoa bebeu ao
ponto de passar muito mal, vomitar, ou esquecer tudo em um verdadeiro
apagão mental.
Capítulo 7
Ana Oliveira
Dias Atuais...
Às vezes, você precisa queimar algumas pontes para criar uma certa
distância
I Hate U, I Love U - Gnash feat Olivia O'Brien
Ana Oliveira
Dias atuais...
Coisa linda
Vou pra onde você está
Não precisa nem chamar
Coisa Linda - Tiago Iorc
Ana Oliveira
Dias atuais...
O dia foi repleto de tensões. Estava me preparando para tudo o que iria
acontecer, embora a sensação fosse de total despreparo. Eu não fazia ideia
de como seria, embora tivesse ensaiado cada palavra do que deveria dizer.
Era sexta-feira, e o dia estava findando com uma lua que lembrava o
sorriso do gato Cheshire começando a dar as caras, desinibida. Luana
entretinha Júlia, sentada no tapete da sala e brincando com um trenzinho de
madeira em tons de azul e amarelo. Era engraçado observar minha amiga
tentando ser interessante para a minha bebê. Ela notavelmente não tinha o
menor jeito, chacoalhando o brinquedo em seus dedos grandes e finos, e
Júlia encarava a mulher com olhos arregalados, a boquinha minúscula e
vermelha aberta.
Terminei de aplicar o batom nude e encarei minhas feições no espelho
em meia lua. Tinha lavado o cabelo, aplicado um aparador de pontas com
um cheiro delicioso de coco, coberto as olheiras e aplicado um contorno
bem leve na face. Nos olhos, apenas um rímel. Queria estar apresentável.
Respirei fundo, mas o nervosismo escapava por cada pedaço do meu
corpo, e se a prima de Josiah não tivesse aceitado estar ao meu lado naquele
momento, certamente eu teria dado para trás.
Alisei o vestido preto colado ao corpo e espirrei um pouco de La Vie
Est Belle no pescoço. Peguei o telefone no aparador, que jazia abaixo de um
espelho médio em meia lua e emoldurado em ferro dourado, posicionado ao
lado da porta de entrada. Uma porta toda envidraçada, com moldura de
madeira escura e lustrosa.
— Estou nervosa... — confessei. — E se ele não atender?
— Aí você liga de novo, ué... — Luana disse, sendo prática como
sempre.
— Melhor eu deixar para depois, porque...
— Nada disso! Faz agora, semana que vem vou dar aulas na parte da
manhã e passar a tarde as planejando.
— Ok! Meu Deus, meu coração vai sair pela boca.
Trêmula e insegura, deslizei o dedo pela tela do celular, procurando o
contato dele, tentando não pensar muito ao apertar a opção de chamar.
Um toque.
Dois.
Três.
Quatro...
— Docinho... — atendeu, com a voz estridente dos amigos ao fundo,
além do maldito zumbido da maldita máquina de tatuar. — O que você
quer? A Coisinha está bem?
— Júlia está ótima! — avisei, tentando conter o nervosismo na voz. —
É sobre ela que quero falar. Pode vir a minha casa?
— Como assim? Por que não fala por aqui?
— É uma conversa longa, para acertar os detalhes da sua convivência
com ela. Não é o que você quer? Estou disposta a aceitar a sua participação
na vida da nossa filha — expliquei, sendo delicada no tom de voz.
— Sabe que não entro em sua casa! — disse, com a voz baixa,
parecendo ter saído do ambiente barulhento do estúdio. — Vem você aqui.
— Não! — neguei, curta e enfática. — Se quiser ter essa conversa, vai
ter que entrar aqui, e tem que ser agora. A porta está destrancada, então
entre pela sala!
Desliguei a chamada. Soltei todo ar que estava prendendo, sentindo
que poderia vomitar de tanta tensão. Não era assim que eu jogaria com ele.
Minha vingança seria outra. Aquela conversa era por ela, pela criança que
estava com lacinho rosa na cabeça, de vestidinho de alças jeans enquanto
tagarelava na própria língua com Luana.
— Fui bem? — indaguei, encarando o olhar da minha amiga, que
corria entre minha filha e eu.
— Foi ótima.
Pensei a madrugada inteira e a conclusão que cheguei era de que seria
melhor conversar com Josiah, acertar os pontos, definir os limites de como
seria a convivência dele com a filha.
Alguns minutos se passaram e então ouvi o portão sendo batido lá fora
e senti o coração tamborilando forte, o sangue percorrendo as veias de
maneira acelerada enquanto me apoiava na parede que ligava a sala ao
corredor. Vi quando aqueles dedos enormes abriram a porta. Estava vestido
com a habitual calça preta, uma blusa de mangas de mesma cor, e uma meia
que era única peça de roupa na cor clara, pois tinha retirado o coturno para
entrar na casa.
— Oi... — sussurrei.
Ele sequer me viu, seus olhos foram direto até a criança, que brincava
despreocupada no tapete imenso em um mosaico em tons de rosa, cinza e
branco. Tinha carinho na maneira que encarava a Júlia, e outra coisa:
ansiedade.
— Vamos para a cozinha? — convidei, apontando a direção, mas ele já
conhecia toda a casa.
Meu ex cumpriu minha orientação, seguindo sem cumprimentar
Luana, afinal, Josiah a considerava tão traidora quanto a mim. Capturei o
envelope branco que jazia acima do aparador, contendo anotações que
passei a manhã inteira fazendo, após ter passado a noite inteira em claro
com coisas fervilhando em minha mente.
O pai da Júlia parou no meio do caminho. Gelei quando ele virou o
olhar na direção dos quadros em preto e branco na parede esquerda, a foto
que exibia o homem que ele odiava, o homem a quem prometi jamais
chegar perto. Josiah virou o rosto de lado, me dando um olhar repleto de
mágoa por cima do ombro. Fiquei paralisada, com medo, enquanto ele
seguia o restante do caminho em silêncio.
Mordi o lábio inferior enquanto o seguia. Notei que se sentou em uma
das cadeiras, sem cerimônia, mas se mexendo, notavelmente
desconfortável.
Caminhei até ele, apoiando delicadamente o envelope na mesa a sua
frente. Segui para a pia, apoiando minhas costas. Josiah o abriu, retirou o
papel, olhou os valores que jaziam ali e soltou todo o ar que estava
prendendo, parecendo compreender que continha a metade dos gastos da
bebê mensalmente.
— Vamos fazer uma guarda compartilhada da nossa filha — avisei,
vendo os olhos dele se suavizando, repletos de esperança. Contive o aperto
no peito. Lambi o lábio inferior, umedecendo-os antes de continuar. Minhas
mãos suavam frio. — Você vai poder ficar com ela em finais de semana
alternados enquanto ainda for bebê. Depois podemos dividir durante os dias
da semana também.
— Jura? — perguntou, boquiaberto. — Não está caçoando de mim,
né? Seria baixo demais, até para você...
— É claro que não! — revidei, de maneira áspera. — Como eu estava
dizendo, vamos dividir tudo a respeito dela. Teremos que ir juntos à creche,
para eu apresentar você às professoras e te autorizar a buscá-la.
Ele assentiu, encarando-me, repleto de interesse e com um sorriso
pleno nos lábios. Lembrou o meu Josiah, aquele adolescente que sorria
muito em minha presença, ao ver filmes, fazendo piadas, bebendo por aí...
— Mas precisamos fazer uma aproximação delicada de vocês dois,
afinal, ela não te conhece.
— Claro... Como quiser.
— E, assim como você me impediu de ficar junto a ela estando
bêbada, vou te pedir a mesma coisa. E não fume dentro de casa, ou estando
ao lado da Júlia.
— Nunca faria isso! — explicou.
— Outra coisa, não vamos brigar na frente dela. Nos tratamos com
respeito, deixando nossas diferenças e problemáticas para quando
estivermos longe da nossa filha.
— Poderia ter sido assim desde o começo... — Josiah sussurrou.
— Enfim... — pigarreei, desconfortável. — Você também precisa
aprender tudo, a trocar fralda, como é a alimentação da Júlia, os brinquedos
que pode ou não dar a ela...
— Posso observar você por um tempo, antes de ficar a sós com a
Coisinha — sugeriu, passando o dedo indicador pelos lábios. Adorava
quando ele fazia aquilo... Era tão...
Não, Ana! Ele é um cretino, você só está convivendo por conta da sua
filha!
— Isso! — respondi, ouvindo meu inconsciente e travando aqueles
pensamentos. — Uma coisa importante é que você tem que retirar aquelas
decorações de vidro do seu rack na sala. Retire produtos, qualquer coisa
nociva que ficar ao alcance dela. Júlia já sobe em tudo — avisei — Ah, já ia
me esquecer, Josiah... Tem que colocar protetor em todas as tomadas da
casa. Vai se surpreender com a mania que ela tem de colocar os dedinhos
em tudo.
Ele deu uma pequena risada com o comentário, fazendo meu coração
aquecer. A maneira como os olhos dele se iluminaram ao sorrir fez algumas
borboletas percorrerem minha barriga.
— Lembrei de uma coisa, Docinho...
— Pare com esse apelido! — ralhei, fechando o semblante.
— É claro, Docinho! — debochou, largando o corpo de maneira
despreocupada sobre a cadeira, se esticando inteiro. Mordi o lábio superior.
Que cretino bonito! Ao menos ele estava relaxando, se soltando, parecendo
menos desconfortável. — Você precisa colocar uma tela nas janelas da
casa. É meio perigoso a Coisinha ficar no andar de cima...
— Nossa, é verdade!
Céus! Como pude ficar relapsa com aquilo? E se ela tivesse subido na
escrivaninha? Meu coração doeu só de pensar em algo de ruim acontecendo
com a minha bebê. Engoli em seco, sentindo-me uma péssima mãe pela
milésima vez na última semana.
— Vou arrumar alguém para fazer isso ainda amanhã. Ela tem plano de
saúde?
— Tem o do Lucah...
Josiah trincou o maxilar, me encarando com fúria. Dei um passo para o
lado, com medo de ele avançar sobre mim. Então olhou para outra direção,
respirou fundo e suavizou o semblante, desfazendo a contração no maxilar.
— Ok! Retire-a desse plano, vou colocar como dependente no meu... E
providenciarei os trâmites para que ela tenha meu nome no registro de
nascimento.
— Tudo bem! — concordei. — Justo. E a minha câmera de segurança?
Pretende colocar outra? Afinal, você a quebrou...
— Se parar de ficar tomando conta da minha vida, sim.
— Deixa de ser presunçoso! — gargalhei, fingindo que não era
exatamente o que eu fazia. — Moro aqui sozinha com uma criança, não
acha que preciso de uma câmera de segurança?
— Ok, vou comprar e arrumar alguém para instalar isso também. Mais
alguma coisa, vossa alteza? — perguntou, com um tom ácido na voz.
— Quero colocar a Júlia em uma aula de natação... — Minha voz saiu
quase inaudível. Meu cérebro deu um gatilho imediato da criança que
boiava na piscina, na maneira como eu mergulhei até ele, desesperada. Em
Ben completamente sem vida em meus braços. Segurei o choro e encarei o
meu ex-namorado. — Acho importante.
— É claro, Ana. Pode procurar o local, terei prazer em pagar tudo o
que for necessário para a minha filha viver bem.
— É só a metade do valor, Josiah. Faço questão de arcar com a minha
parte.
— Bom, você é quem sabe...
— Vamos, vem conhecer a sua filha! — convidei, passando por ele.
Josiah me segurou, me virando em direção a ele. Envolveu as duas
mãos grandes ao redor do meu quadril, fazendo a pele arder com o contato.
Olhei para baixo, surpresa, fitando os seus olhos.
— Obrigada, Docinho!
— De nada, Jow!
Segurei o nervosismo e afastei com delicadeza as suas mãos do meu
corpo. Ordenei ao meu coração que parasse de bater tão forte... Mas, em
rebeldia, ele só acelerou ainda mais.
— Vamos logo, daqui a pouco tenho que dar a janta a ela.
Segui até a sala, vendo minha bebê empilhando blocos distraidamente.
Segui até ela, pegando-a no colo, com aquele cheirinho de bebê delicioso
me invadindo.
— Vem, meu amor — sussurrei, caminhando devagar com a pequena
em meus braços, indo até Josiah.
O pai da criança parecia assustado, com olhos arregalados e
esfregando as mãos sem parar, enquanto olhava para a bebê.
— Esse é o seu pai... — avisei, parando na frente dele.
Júlia encarou o rosto de Josiah, com os olhos imensos cravados no
rosto dele. Senti que ela se empertigou, estava estranhando a figura enorme
diante dela. Embora fosse uma criança simpática, seu primeiro contato com
outros adultos era um pouco desconfiado.
— É o seu pai, filha... — sussurrei.
— Não... — negou, balançando a cabecinha.
Então minha filha ergueu o indicador pequeno e roliço, depois apontou
para o corredor. Sabia que ela estava falando sobre as fotos. A única ideia
dessa palavra que ela tinha era quando eu mostrava as fotos do Lucah. Eu
exibia os quadros dizendo que ele era o “papai”.
Encarei pesarosa o rosto de Josiah, com medo de encontrar raiva ali,
mas só havia uma profunda tristeza em seu rosto, com um pequeno fio de
lágrima escorrendo pela bochecha.
Céus! Me senti a pior pessoa do mundo. Foi como tomar um soco no
estômago. Senti um gosto amargo tomando a minha boca.
— Tisti?
— Não estou triste, meu amor... — ele respondeu, aceitando o carinho
tímido que Júlia se curvou para fazer em sua bochecha.
— No chola!
Meu coração estava pesado. Segurei o choro, deixando que ela fosse
para o colo dele, quando ela se jogou para o pai. Josiah a segurou,
caminhou com a filha no colo para o sofá, sentando-se na sequência.
Meu olhar dispersou-se até Luana, e fiquei surpresa ao vê-la debulhada
em lágrimas, ao ponto de soltar um pequeno soluço, abraçando o próprio
corpo com uma mão e tapando a boca com as costas da outra. Voltei a olhar
para o pai da minha filha, me sentando em uma das poltronas de couro
marrom da sala, de frente para ambos.
— Que issu?
Sorri ao ver Júlia enfiar o dedinho no alargador da orelha direita de
Josiah. Foi lindo vê-lo gargalhar, fazendo pequenas rugas surgirem no canto
dos olhos, com a filha em pé sobre as pernas dele, enquanto Josiah a
segurava pelas axilas.
— O brinco do papai...
— Papai? — perguntou.
— Sou seu papai, sim! — ele disse, sorrindo e com lágrimas
escorrendo pelo rosto.
Não contive minha própria emoção ao vê-la abraçá-lo, deixando uma
lágrima intrusa escapulir. Ela era uma criança muito amorosa. Fiquei um
pouco chocada por ela se abrir tão rápido para o contato com o Jow.
— No chola... — consolou, com a cabeça deitada no ombro dele, o
narizinho roçando o pescoço do pai.
Josiah girou o rosto e beijou sua cabecinha, aspirou o cheiro com os
olhos fechados, envolvendo-a nos braços fortes, em um abraço que deixava
claro, que gritava o amor que ele sentia pela filha.
Saquei o telefone devagar, disparando a câmera de maneira sorrateira,
depois enviando a imagem para a Marta. Imediatamente os pontinhos da
mensagem ficaram azuis, e ela respondeu com vários emojis de olhos
marejados. Provavelmente estava ansiosa para saber tudo sobre esse
momento.
— Eu te amo! — ele disse, quando a pequena findou o abraço.
— Bincar
Josiah me encarou, com as sobrancelhas trincadas, parecendo não
entender o que ela disse, tentando equilibrar a criança em seus braços,
quando ela começara a se remexer de maneira animada.
— Está te chamando para brincar — expliquei, com um leve sorriso
emoldurando o meu rosto. — Pega os blocos e a ajude a empilhar... —
apontei.
Ele a levou para o chão, atrapalhado com os cubos coloridos entre os
dedos grandes. Meu Deus! Aquilo era tão fofo. Eu certamente arderia no
inferno por tê-lo impedido de viver aquilo antes. Por ter impedido a minha
filha também...
— Lu, vamos lá para a cozinha? — chamei, pensando em dar mais
privacidade a ele.
●●●
Josiah ficou a noite inteira na minha casa, deu a comida da filha na
boca, trocou a primeira fralda, colocando tudo torto e completamente sem
jeito. Foi tão fofo vê-lo segurando o pezinho dela enquanto eu a
amamentava, relaxado ao nosso lado no sofá, até sua filha pegar no sono.
Depois eu a coloquei no berço do quarto de cima, observando o homem
inspecionar a janela que ficava de frente para seu estúdio, trancando-a bem.
Ele foi até a porta que dava para a sacada na varanda, também trancando e
se certificando de que não fosse reabrir. Depois, direcionou os seus passos
até o berço, debruçou-se e beijou a cabeça da pequena. Sussurrou um “te
amo” e caminhou para fora, acenando para que eu o acompanhasse.
Liguei a babá eletrônica e o segui, vendo-o percorrer o corredor da
escada, certificando-se novamente que tudo estivesse trancado.
— Tem que colocar um daqueles portõezinhos aqui também, Ana! —
apontou a escada de madeira. — E, ou você coloca novas ripas nesse
corrimão, ou coloca uma tela. Ela é arteira, pode se enfiar aí no meio...
— Já faz o orçamento com a pessoa que você arrumar para a tela de
proteção... — pedi, enquanto descíamos os degraus e caminhávamos até a
sala. Meu coração tinha voltado ao descompasso, enquanto sentia o cheiro
dele, o calor do seu corpo próximo ao meu. — Outra coisa, Josiah, coloque
cortinas naquela janela do seu estúdio!
Ele sorriu largamente quando parou diante da porta de entrada,
exibindo sua fileira de dentes brancos e perfeitos para mim. Eu podia
imaginar a satisfação dançando pelo corpo dele, percebendo que citei sua
provocação.
— Gostou do que viu, Docinho? — perguntou, chegando bem perto do
meu corpo.
— Acho você um canalha! — acusei, recuando um passo.
— Duvido que não tenha desejado estar sentada sobre mim daquele
jeito... — provocou. — Sabe que ainda dá tempo, né?
Engoli em seco, sentindo um calor fervilhando em minha barriga,
tentando não demonstrar aquilo para ele. Desviei o olhar da maneira safada
como ele mordeu o lábio inferior.
— Amanhã eu vou sair com a Luana, à noite, então você pode ficar
com a Júlia... Talvez ela chore, então seria bom que fosse lá na casa da sua
mãe.
Josiah se mexeu, desconfortável, recostando-se na porta.
— Tá a fim de me enfiar em casas em que não quero estar, não é?
Encarei o meu ex, trocando o peso sobre os pés. Cruzei os braços e
ergui a sobrancelha esquerda, escondendo a mão direita sob a axila. Eu
realmente queria uma desculpa para Josiah ir à casa da mãe, isso a deixaria
muito feliz.
— Bom, você pode ficar com ela na sua casa, mas nada de festinhas ou
amigos esquisitos! — avisei, com o olhar amargo ao falar das festinhas. —
E ainda acho que ela vai chorar. Conheço a minha filha.
— Pode ser na Marta! — resignou-se, encarando-me dos pés à cabeça
e lambendo o lábio inferior. — Está gostosa com esse vestidinho.
Céus! Ele precisava ir embora logo. Encarei aqueles lábios
avermelhados, tão convidativos... Já não havia marcas de dentes ali. Mas
meu subconsciente mandou a lembrança de que jogaria com ele, da mesma
maneira que costumava jogar comigo, com ciúmes.
— Pode ir embora! — comuniquei, apontando a porta com a mão
esquerda.
— Hum... Minha casa está longe, não quer brincar ali? — disse,
mordendo o lábio e encarando os meus seios ao apontar o sofá.
— Para de gracinha! — ordenei, fechando o semblante. — Não vou
abrir as pernas para depois você me tratar mal, ou aparecer com outra puta
embaixo do meu nariz.
— Eu estou solteiro, Docinho. Preciso foder com alguém... E você não
parece disposta a me dar — debochou, percorrendo o meu corpo como um
predador.
Encarei o volume que parecia querer escapar da calça, ignorando a
maneira como a minha boca se encheu de água e que tive que apertar as
pernas para conter as sensações.
— Preciso dormir! Vai logo!
— Aonde você vai amanhã, Docinho?
— Não é da sua conta!
— Hum... Sabe que não precisa ir longe para transar. Sempre estou
aqui! — avisou, me agarrando pela cintura, puxando-me para grudar-me em
seu corpo e encarando a minha boca com seus enigmáticos olhos das cores
da folhagem vívida de um pinheiro. — Me deixe tirar a sua roupa?
Senti meus seios encostando no alto de sua barriga, olhando para cima,
para o rosto perfeito daquele cafajeste.
— Pensei que me odiasse... — murmurei, empurrando o seu peito com
as mãos.
— E odeio! Mas também sinto outras coisas... — sussurrou no meu
ouvido, mordendo o lóbulo da minha orelha, fazendo um jato úmido se
amontoar na minha calcinha. — Tipo isso!
Josiah levou minha mão ao seu pênis, apertando os meus dedos
esquerdos ao redor de sua ereção. Céus, eu não podia cair naquela tentação!
Então me afastei, respirando pela boca, segurando o desejo.
Dei a volta nele, agarrei a maçaneta, sentindo o seu olhar queimando
nas minhas costas, e abri a porta.
— Amanhã, às 20:00, na casa da sua mãe! — expliquei, segurando a
porta para ele passar.
Josiah sorriu, caminhando de maneira preguiçosa pela minha frente.
Senti um calor percorrendo cada poro arrepiado do meu corpo, observando-
o se abaixar e colocar o sapato. Depois ele se ergueu, me deu um olhar mais
fechado e disse:
— Pare de ensinar a minha filha que o cuzão do Lucah é o pai dela!
Surpresa, respirei fundo, segurando a fúria de vê-lo falar daquela
maneira sobre ele. Reviveu minha saudade, as lembranças, a dor...
— Por favor, não fale assim dele! — pedi, com raiva contida.
— Eu já disse! — avisou, entredentes. — Se eu a vir fazendo isso, vai
ver o Josiah que você não gosta!
— Ele também era pai da minha filha. Lucah amou a ideia dela desde a
minha barriga, amou cada chute, ele a amou antes de ela nascer... É justo
que Júlia cresça sabendo disso.
— Essa é uma das razões de eu odiar você! — murmurou, me dando as
costas e batendo o portão com força ao sair.
Capítulo 10
Josiah Marquez
Há seis anos...
“Sim, cara! Tava com aquela garota de cabelo vermelho, a que vive
xingando todo mundo”.
“Não fode! Eu a achei muito gata, quero chamar a Ana para sair. Me
dá uma dica de um lugar maneiro...”
Digitando...
Porra! Por mais que o meu amigo fosse um cara sensível, não sabia se
Bernardo seria a melhor opção para me aconselhar.
Aquela garota não tinha saído da minha cabeça. Por quê? Cada vez que
eu fechava os olhos, podia ver aquelas covinhas afundando enquanto ela
sorria. Eu a via corando ao lembrar quando fiz uma piadinha sobre me tocar
no banho. Estava pensando tanto naquela deusa de cabelos castanhos, que
eu a podia sentir deslizando sobre o meu corpo, enquanto ela se apressava
para fora do ônibus.
Merda! Ana parecia tão novinha... Eu arderia na porra do inferno por
realmente ter concluído meus planos no banho!
A menina estava no terceiro ano! Certamente não tinha uma idade
muito diferente da minha... Mas eu tinha que ir com calma, mesmo que
meus pensamentos pervertidos estivessem acabando comigo.
Só que tinha uma certeza: eu a chamaria para um encontro! Faria de
tudo para ter mais momentos encarando aqueles olhos que eram quase da
cor de um favo de mel, aquela boca redonda e provocante. Eu iria sentir
mais aquela fragrância gostosa de coco que exalou daquele cabelo enorme e
bonito enquanto ela se arrastava pelo meu colo no ônibus.
— Mãe... — chamei, retirando os olhos das mensagens que trocava
com meu melhor amigo.
— Sim, Jow!
— Conheci uma garota aqui do condomínio... — contei, puxando um
maço de cigarro do bolso da bermuda preta.
Estava ansioso só de pensar em Ana, em chamá-la para um encontro e
comecei a balançar a perna.
— Mas o que é isso? — gritou, puxando o maço de cigarros das
minhas mãos. — Nada de fumar em minha presença...
— Calma, “Dona Encrenca”! — zombei, me esgueirando de seus
dedos, ao receber dois beliscões no braço direito.
— Sim, continue... Você conheceu uma menina do condomínio? —
perguntou, com uma entonação de voz repleta de animação, mudando
subitamente o humor.
— Sim, o seu nome é Ana. Ela estuda na minha sala, mora na rua
Quatro com a tia Marina e...
— A Ana Oliveira? — perguntou, descrente. — Uma gordinha, um
pouco baixinha, com o cabelo encaracolado?
— Isso... — confirmei, desconfiado.
Eu podia sentir que os dedos de Marta estavam muito mais tensos
sobre o meu cabelo, e minha mãe puxava os fios com uma certa força
enquanto os repartia para pintar.
— Acho que não é muito bom ficar próximo dessa menina, filho... —
aconselhou.
A voz dela era como uma daquelas ondas quebrando na praia, que
olhamos e pensamos ser pequenas, mas se espatifam com força ao encontrar
a areia.
— O que você sabe sobre ela?
— Esteve internada em uma clínica psiquiátrica... — confessou,
respirando fundo. Senti quando ela retirou as luvas, jogando-as na lixeira da
área de serviço azulejada. — Tentou o suicídio várias vezes, em uma delas a
ambulância chegou às pressas aqui no condomínio...
Caralho! Senti meu corpo empertigando, com um arrepio gélido
percorrendo a porra das minhas costas. Como eu nunca soube de uma
história assim? Ela parecia tão doce e tímida me encarando durante a aula.
Eu a via pela visão periférica, recostada na parede da sala de aula,
completamente obcecada e vidrada em mim o tempo inteiro.
Não era possível! Tão linda enquanto eu lhe despejava gracejos, dando
sorrisos leves...
— Tem certeza, mãe? Quem te contou isso?
— Sobre o suicídio? Todos aqui no condomínio sabem, mas a razão
quem me contou foi Helena.
— E qual foi a motivação, então?
— Diz que os pais dela se mataram juntos. Jogaram-se com o carro na
frente de um caminhão que transportava gasolina — contou, respirando
fundo e com ar pesaroso ao limpar as mãos embaixo do jato de água da
torneira, com a luz que escapava de maneira ardilosa pela janela de vidro
acima da pia da área de serviço refletindo sobre o rosto. — Fiquei com tanta
pena! A menina só tem dezesseis anos e já ficou órfã, e ainda daquela
maneira...
Dezesseis anos!
— E por que os pais da Ana se mataram?
— Isso, eu não faço ideia.
— Helena é uma fofoqueira de araque. Nem para saber uma fofoca
inteira... — murmurei.
Minha mãe deu uma leve risada, pegando um algodão com um líquido
fedorento e começando a limpar a minha testa.
Coitada da Docinho... Senti uma coisa estranha em meu peito, como se
algo estivesse segurando meu coração e apertando. Pensei naqueles olhos
acanhados ao descobrir que os pais a haviam deixado, e daquela maneira
tão pesada.
Será que se sentia sozinha?
Será que tinha amigos?
— É demaquilante, uma dica que ajuda a não deixar a pele marcada —
explicou, me apertando nos ombros para ficar quieto. — Tudo o que mais
peço a Deus é para que você encontre pessoas que o ajudem a ser menos
caótico, porque vejo essa brasa que tem bem atrás dos seus olhos...
— Ah, mãe, não vai começar com sermão, né?
— Vou, sim! Gosto muito do Bernardo, um menino de bem, bondoso...
Amo que sejam amigos. Mas essa... essa jovem, a Ana, tenho medo de que
seja tempestuosa demais para você. Eu já a vi passar aqui no portão, sempre
muito distante, parecendo que pairava por aí com uma nuvem de chuva
cabeça adentro.
— Eita, dona Marta! Está filosofando? — zombei.
Me levantei do banco, estalando as costas ao parar acima do limiar
branco, que jazia entre a cozinha e a área de lavar. Minha mãe não era
ciumenta... Não costumava implicar com nenhuma garota com quem eu me
envolvesse, pelo contrário, dizia que queria ver meus olhos um dia repletos
de amor por alguém. Marta era tão de boa, que eu podia arrastar mulheres
com idades acima da minha para o meu quarto, entrando escondido à noite,
e minha mãe as recebia com um bolo durante a manhã, puxando assunto e
as convidando para voltar sempre.
— Relaxa, ok? Só vou sair com ela, não disse que vou pedi-la em
casamento! — avisei, dando as costas à mulher de meia idade e caminhando
para o meu quarto.
Adentrei o cômodo de paredes pintadas de preto, parando em frente à
escrivaninha de mogno. Larguei meu corpo sobre a cadeira de couro escura,
sacando o celular do bolso e encarando a página de WhatsApp com o rosto
do meu amigo.
Sua foto ostentava um sorriso largo, sob um rosto de contornos
tranquilos, olhos azuis, cabelos tão pretos que me faziam ter inveja.
Algumas sardas aleatórias salpicaram-lhe o rosto. Ele odiava aquelas
marcas...
“Jow...”
Digitando...
“Só umas mil vezes, mas... é sério, ela tem uma vibe daquelas virgens
que é melhor você nem tentar comer se não quiser casar com ela!"
“Tu acha?”
“Minha mãe tá implicando com a Ana, mas vou chamar para vir aqui
assim mesmo”.
“Ah, umas paradas sinistras aí, cara. Agora eu vou tomar banho e
lavar a porra da tinta do cabelo”.
“Cuzão...”
●●●
A aula mal começou e eu não conseguia nem prestar atenção nas
ladainhas do Ber. Ficava o tempo todo fitando aquela deusa de cabelos
marrons, enquanto ela sorria e conversava muito com a amiga ruiva.
Eu estava balançando a perna sem parar, além de ficar coçando os
dedos com uma vontade absurda de fumar um maço repleto de cigarros.
Treinei a noite inteira em como a chamaria para ir lá em casa.
“Se prepare para chorar, sorrir e molhar a calcinha com essa saga.
Sem carinho, Isa!”
Ana Oliveira
Dias atuais...
Ana Oliveira
Há seis anos...
“Deve haver algo na água porque a cada dia fica mais frio. E se
apenas eu pudesse te abraçar, você impediria que minha cabeça ficasse
pior”.
Bruises - Lewis Capaldi
Josiah Marquez
Há seis anos...
“Eu te odeio, disse ela para um homem cujo crime único era o de não a
amar. Eu te odeio, disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se
fazia”.
Clarice Lispector
Josiah Marquez
Dias atuais...
Ana Oliveira
Há seis anos...
A primeira semana com meu namorado foi incrível, mas eu não fazia
ideia de que as semanas virariam meses e logo chegaríamos a primeira
virada do ano como um casal. Eu poderia resumir 2016 como o ano em que
“ressurgi”. Josiah era como o meu herói, como alguém que me tirou do
poço em que meus pais me jogaram.
Ele tinha tudo na medida perfeita para mim, com sua boca que se
encaixava bem na minha, a visão romântica e revoltada da vida, com seus
desenhos lindos que descobri logo na primeira semana de namoro, o amor
pelas tatuagens que volta e meia iam surgindo pelo corpo, seu toque
perfeito e forte sobre mim...
Josiah foi como um presente. Como se Deus soubesse que eu precisava
daquilo, que precisava de uma maneira de voltar à vida. E nossa, como era
bom viver com ele. Eu acordei por meses com aquele cheiro gostoso ao
meu redor, com beijos delicados sobre a minha orelha, com sorrisinhos
sonolentos e de canto enquanto alisava locais sugestivos do meu corpo,
sempre provocando-me na intenção de que eu me abrisse para o que ele
morria de vontade de ter, para os locais onde queria explorar.
E eu estava quase cedendo, quase indo além das carícias bobas que
fazíamos com a mão um no outro... Mas tinha muito medo. Medo do
tamanho dele, medo de descobrir que não era a hora certa, medo de não
saber me cuidar e acabar tendo um bebê. Eram tantos temores... Meu
namorado nunca verbalizava que queria transar, apenas... me tocava. E eram
toques tão bons, com a mão, com os lábios... Mesmo que nunca tenha
chegado às minhas partes íntimas, todos os locais onde ele provocava
sugeriam malícia.
Eu quase não parava em casa. Ia à escola, e o beijava muito lá,
inclusive chamaram nossos responsáveis porque não conseguíamos não nos
agarrar na sala de aula. E a conversa que Marta teve conosco orientando-
nos a não fazer mais sequer adiantou, porque simplesmente não conseguia
querer ficar longe dele, daquele poço de perfeição. Eu queria ficar grudada
em Josiah a todo momento, e acho que no fim os professores se resignaram,
parando de se importar com o tempo em que eu ficava no colo dele durante
a aula.
Isabela e Bernardo se tornaram tão amigos, que passei a me sentar com
Josiah com nossas mesas em dupla, e eles ficavam a nossa frente,
tagarelando como se fossem ligados desde a infância. Na hora do intervalo,
ficávamos os quatro como um grupo inabalável, e aqueles momentos eram
tão bonitos, tão... felizes.
As perdas que tive foram horríveis, quase... insuportáveis, mas aquelas
pessoas estavam me salvando. Eles me mostravam um lado bom na vida,
eles me deram motivos para querer ficar, para desejar viver. E teve um dia
em que fiquei tão emotiva enquanto os via gargalhando, que comecei a
chorar e ganhei um abraço grupal, verbalizei tudo o que sentia, o quanto os
amava, os quatro, por serem tão importantes para mim.
E quando eu ia para casa, Josiah estava sempre lá, comendo o
macarrão delicioso da minha tia, deitado no sofá da sala vendo filmes com
ela enquanto eu terminava os meus afazeres. E depois eu sempre ia dormir
com aquele garoto perfeito, naquela caverna escura e quente que era o
quarto de Josiah.
Minha tia não era mais a mesma pessoa, ela ria muito pouco, quase
nunca estava em casa. Marina sempre tratava o meu namorado com carinho,
assim como a mim, mas existia um vazio tão grande em seus olhos, uma
ausência de vida. Tinha medo de ela me deixar. Era um medo irracional,
mas, às vezes, eu percebia o quanto ela parecia aliviada quando eu dizia que
sairia ou que dormiria fora. Como se ficasse feliz por eu ir. Às vezes,
achava que era coisa da minha cabeça, que era o medo de rejeição
sussurrando na minha cabeça, contando histórias horríveis sobre eu não
merecer ser amada.
Marina tinha recebido uma promoção no trabalho, uma oferta para
morar fora do país, afinal, minha tia era secretária de um gerente comercial
em uma multinacional. Ela disse que negou, avisando que tinha a mim para
cuidar, e ficou até com medo de perder o emprego. Não gostava da ideia de
como eu parecia um empecilho. Sei que me amava, mas também sei que ela
nunca quis ter filhos e acabou sendo obrigada a agir como se tivesse.
Finalmente nos formamos no ensino médio, e tomamos um porre para
comemorar. Foi naquele dia de novembro em que me tornei amiga da
Luana. Ela já estava na faculdade, cursava Economia. A mulher era a
pessoa mais doida que já conheci na vida, me apresentou os shots de
tequila, algo que decididamente era maravilhoso, mas me deixava super
bêbada.
Lembro que fomos expulsos do bar, porque Isa, Bernardo e eu ficamos
tão doidos com nosso primeiro porre, que subimos no balcão do bar dizendo
que éramos Coyotes, como no filme Show Bar, começamos a dançar. Josiah
ficou bem preocupado, tomando sua cerveja e nos observando, depois tendo
que subornar os policiais que foram chamados para nos levar para casa,
quando os outros clientes fizeram a denúncia de ter um monte de
adolescentes bêbados em um bar na Lapa, causando tumulto. “Eu tenho
dezoito anos, querido!”, Bernardo ficou dizendo ao policial, panfletando
sua carteira de identidade, mas Isa, Jow e eu não podíamos dizer o mesmo,
né? Sei que a noite terminou com um sermão da Marta em todos nós,
Isabela vomitando no banheiro do corredor da casa de Josiah, Bernardo
dizendo a minha sogra que também iria para o exército, e eu rindo, sem
entender nadinha. “Imagina só, eu, o Ber, gato e fardado!”. Não fazia ideia
de onde tinha vindo aquele delírio, afinal, ele nunca comentou nada sobre
entrar para o exército, e o “também”? Quem iria com ele?
Desde aquela noite, Luana passou a integrar mais o nosso grupo.
Sempre puxava assunto comigo sobre sexualidade, tentando me dar dicas e
conselhos. Eu adorava a visão dela desprendida da vida, seu senso de
liberdade, a maneira como via beleza nas coisas. Às vezes, passávamos a
noite conversando, eu contava sobre os medos em relação ao sexo, ela
contava suas aventuras e me fazia corar, dava dicas sobre como deveria me
prevenir, e ainda marcou uma consulta para que eu fosse ao ginecologista
pela primeira vez.
Sei que ela era pouca coisa mais velha que eu, apenas dois anos, mas
criei tanta confiança em Luana. Era tão gentil... Foi ela também quem
intermediou a minha relação com a Marta. A mãe de Josiah me tratava bem,
mas era um pouco distante de mim. Tinha uma certa cautela em seu olhar,
mas a maneira como Luana foi inserindo-a em nossas conversas, foi me
dando espaço para ir quebrando os escudos da Marta. Passamos a conversar
sobre diversas coisas, enquanto eu a ajudava a preparar a comida no dia a
dia, ela me contava coisas de seu antigo casamento, sobre seus filhos, o ex-
marido, as expectativas em conhecer um novo parceiro amoroso.
Naquela manhã, eu estava enrolando bolinhos de bacalhau para a ceia
natalina. Marta tinha uma empregada que limpava a casa, mas fazia questão
de cozinhar, e nunca deixava a funcionária mexer em sua cozinha. Volta e
meia, chamava a mim e Luana para ajudá-la com coisas simples, como
cortar ou descascar legumes, mas não deixava ninguém tocar nas panelas.
Sabia que a minha sogra nos chamava para ficar mais perto de nós, e eu
estava adorando a proximidade que fui ganhado com as duas. Era como se
eu tivesse uma família, como se Josiah tivesse me dado isso, o que me fazia
amá-lo ainda mais.
Lembro-me claramente do nosso primeiro “eu te amo”. Bem no
comecinho do namoro, quando ele cismou de me desenhar, dizendo que eu
era sua Rose, e que me desenharia como “uma francesa”. Lembro que
estava tocando uma música que repetia a frase “Coisa Linda” várias vezes
no rádio, e foi a primeira vez que ele me viu de calcinha e sutiã, um
conjunto rendado preto. Eu o deixei fazer, muito tímida sob seu olhar de
fascínio, e, quando terminou, disse que faria um quadro da arte. Josiah
avançou em mim sobre a cama, me encheu de beijos, e, entre eles,
sussurrou que me amava. Trocamos diversos “te amo”, e ele disse que eu
era a Coisa mais linda que já viu na vida, que um dia faria milhares de
Coisinhas Lindas em mim, e que rezaria para que tivessem as covinhas que
ele tanto amava no meu rosto. Deus! Eu estava apaixonada por aquele
garoto...
— Acho que Lucah virá para a ceia — Marta avisou, fazendo minha
postura dar uma enrijecida. — Depois daquela briga entre os dois, lá no
começo do ano, ele nunca mais veio aqui...
Senti o tom de tristeza dela, enquanto abria o forno de inox e usava
uma colher de silicone para apanhar o azeite com ervas do fundo do peru,
regando mais a ave. O cheiro que subia pela cozinha era maravilhoso. Mas
não bom o suficiente para dispersar os pensamentos. Josiah sempre se
recusou a me contar o que o irmão fez para que houvesse aquela
necessidade de uma promessa, uma promessa para que eu ficasse longe.
— Lucah é um ótimo rapaz, Ana! Não acredito nessas teorias doidas
do Josiah sobre o meu menino... — lamentou, sentando-se na mesa de
tampo branco e redonda da cozinha, onde eu jazia apoiada em meu serviço.
— Amo tanto o meu pequeno e revoltado Jow, mas a maneira como ele
afastou o irmão de casa com suas implicâncias me deixou profundamente
triste.
— O que aconteceu entre eles? — perguntei, me sentando sobre uma
das cadeiras brancas, onde antes só apoiava um joelho.
— Não conte isso a ninguém, ok? — pediu, me encarando com o rosto
inundado em sofrimento, escorrendo lágrimas. — Não sei bem como o meu
filho tirou essas conclusões sobre o irmão, mas ele disse que viu fotos de
crianças nuas no computador dele. Josiah tinha treze anos e começou a
ofender o Lucah, mas desde pequeno já acusava o mais velho de pregar
trotes nele.
— Então Josiah acha que Lucah é um pedófilo? — inquiri, com um nó
na garganta.
— Sim! Ele mostrou um pendrive com as tais fotos que supostamente
copiara do notebook do irmão. Não acreditei naquilo, muito menos Cristian.
Meu filho mais velho é um homem bom, sensível, sequer aceitou o dinheiro
do pai, acusando-o de ser ilícito. Ele pega seu dinheirinho do trabalho e
ainda ajuda muitas pessoas, transferiu as ações que dei a ele para o meu
nome, porque sempre se recusou a viver bem com o dinheiro dos esquemas
do pai. — Minha sogra respirou fundo. — Josiah diz também que Lucah se
vestiu com a fantasia de bate-bola e o enforcou quando ele tinha seis anos.
Sempre teve imaginação demais e, quando cresceu, começou a agredir o
mais velho.
— Por isso Lucah saiu de casa? — indaguei, tentando me controlar e
não confrontar sobre de onde Josiah tiraria foto de crianças só para
incriminá-lo. Não fazia sentido, e eu conhecia meu namorado o suficiente
para saber que ele não era de mentir.
— Sim! Pode entrar no Instagram dele, tem todas as entidades em que
ele trabalha, a Ong que fundou para viciados em drogas. Lucah ama o
irmão, e me deixa muito triste ver a maneira como essa “rixa” com meu
caçula o afastou de mim.
— Por que você acha que essas coisas do Josiah são fruto de
imaginação? Josiah não me parece alguém dado a isso...
— Ele sempre teve raiva da maneira como o pai pegava em seu pé. E
não o julgo, foi essa a maior razão do meu divórcio. Cristian tinha uma
obsessão com o Jow, dizia que via nele uma pessoa destemida, e que
poderia continuar o seu legado. Ele era narcisista, batia no meu menino com
o cinto, era impaciente com o Josiah, dizendo que ele quebrava tudo o que
tocava. Se o menino deixasse um copo cair, era motivo de surra — Marta
contou, pegando um copo de água com a mão trêmula ao bebericar. — E eu
poderia suportar as amantes se ele fosse um pai digno, só que não, ele
maltratava o meu filho, e isso era demais. Pedi o divórcio, e, como ele já
estava com a amante, a que hoje é sua atual esposa, nem ligou. Mas ainda
tentou me impedir de morar com Josiah, só que meu pequeno rebelde
sempre foi indomável, fugiu tantas vezes que o meu ex acabou se
resignando e o deixando morar comigo.
— Você disse que Cristian só tratava o Jow assim... porque Lucah
sempre ficou longe dessa hostilidade? — Me senti culpada por estimular
que ela continuasse me contando as coisas, mas estava tão curiosa, que não
conseguia evitar. — Não faz sentido.
— Lucah sempre foi calmo demais! O pai dizia que ele tinha alma de
“marica” e que faria vergonha tanto no exército quanto na política. Josiah
nunca entendeu que a hostilidade de Cristian com o filho mais velho era
diferente. Não era violenta, envolvia desprezo.
Fiquei pensando em tudo o que Marta contou enquanto terminava de
ajudar com a ceia, com a montagem da mesa e depois enquanto me
arrumava com Luana. Vesti um macacão vermelho longo, que tinha um
decote aberto na frente, valorizando os seios só para aguçar o meu
namorado. Deixei os cabelos soltos como Josiah amava, permiti a minha
amiga me maquiar, mas estava morrendo de medo do que poderia acontecer
entre os irmãos durante o jantar.
Marta e eu enfeitamos a imensa mesa retangular de madeira que ficava
na parte traseira do quintal da casa, colocando uma toalha de tecido branco,
com milhares de renas brilhantes vermelhas estampando-o. Organizamos
tudo, com cada lugar tendo um sousplat vermelho, prato branco de
cerâmica, guardanapos de tecido dourado e taças de cristal com as bordas
com pinturas de arabescos vermelhos. Havia uma enorme árvore de Natal
sob o pergolado amadeirado do quintal, toda enfeitada em tons de
vermelho, branco e dourado.
Eu nunca tinha participado de uma confraternização chique como
aquela. Estava animada com a quantidade de comida que preparamos, além
de que Marta prometeu nos deixar beber um pouco de vinho durante a ceia.
A única coisa que estragava o momento era o medo de haver alguma
confusão com Lucah e Josiah. Fora minha tia, que se recusou a participar e
me disse que queria ficar sozinha. Eu nem quis argumentar, ela andava
muito esquisita comigo...
Terminei de colocar uma tábua de frios no centro da mesa, ao lado do
jarro de flores vermelhas. Senti uma pegada em meu quadril, enquanto
ainda posicionava a tábua de petiscos, tentando deixar o mais alinhada
possível com a decoração. Os dedos grossos deram um leve apertão,
enquanto eu podia sentir o tecido da calça dele roçando a minha bunda. Dei
um leve sorriso, erguendo o corpo e sentindo a minha nuca ir de encontro
ao peito dele.
— Docinho... — sussurrou em meu ouvido, envolvendo por completo
o meu corpo em seus braços, enquanto eu podia sentir algo duro roçando a
minha lombar. — Essa roupa está muito... muito excitante.
— Para com isso! — ralhei, sentindo meu corpo fervendo enquanto ele
mexia o corpo, me provocando no meio do quintal, roçando a ereção para
cima e para baixo na minha bunda.
— É hoje, amor? — Mordeu o lóbulo da minha orelha, enquanto
deslizava as mãos pela minha barriga. Eu amava aquele perfume atrelado
aquele cheiro de cigarro mentolado que escapava daqueles lábios e fazia
minha boca umedecer, repleta de vontade de provar. — Me diz? É hoje que
vai finalmente me deixar comer você?
Paralisei com a pergunta sussurrada, me fazendo arder, fazendo eu
roçar as pernas para tentar conter o jato úmido que se amontoava lá. Ele
nunca tinha perguntado aquilo, muito menos com aquelas palavras. Josiah
me tocava, roçava a mão pelo meu peitoral, provocando, fingindo que
desceria e agarraria os meus seios, ou deslizava as mãos pelas minhas
coxas, dava apertões na minha bunda ou se encostava em mim quando eu
passava por ele. E já era sugestivo o suficiente, já me enlouquecia o
bastante...
— Ainda não! — respondi, tentando afastar as suas mãos, mas uma
delas subiu até o meu pescoço e o segurou, fazendo a coisa que me deixava
doida... Envolvendo-o entre os dedos e dando uma leve apertada enquanto
respirava sobre o meu ouvindo, roçando o nariz.
— Estou enlouquecendo... e com muitos calos na mão! — reclamou,
me fazendo dar uma pequena risadinha. — E brincar? Sabe que também
podemos fazer algumas coisas com a boca, né?
— Ana! — Bernardo chamou, ao longe, me fazendo ter uma desculpa
de fugir daquele momento.
— Vou pensar, Jow — avisei, tentando me livrar das mãos dele.
Josiah me virou de frente, agarrando um punhado dos meus cabelos e
os puxando para trás, enquanto me trazia mais ainda para perto de si e
forçava o meu rosto a encarar o seu. Tinha muito desejo em seus olhos
semicerrados. Josiah envolveu os meus lábios em um beijo quente,
deslizando a língua sobre a minha, apertando tanto a minha bunda com uma
mão e puxando os fios de cabelo com a outra, que gemi contra a sua boca.
— Meu Deus! — Bernardo gritou, fazendo-me abrir os olhos entre o
beijo e encarar a porta da cozinha, onde ele jazia parado, envolto em uma
calça jeans vermelha e uma blusa polo verde. — Tia Martaaaa! Olha ali o
Josiah e a Ana quase transando no quintal!
Dei uma gargalhada entre os lábios do Josiah, que sorriu, virando o
meu rosto para ignorar o Ber, me fazendo encarar os seus olhos. Céus, eu
estava molhada demais.
— Já estou há quase um ano inteiro sem transar, Docinho. Não
aguento mais... — sussurrou.
— Eu vou pensar no que fazer, mas não vamos transar. Ainda não me
sinto segura.
— Pensa, amor... Meu pau vai explodir!
Gargalhando, me soltei de seus braços, dei a volta em seu corpo e fui
até Isabela e Bernardo, que nos encaravam, parados diante da porta branca
nos fundos da casa. Abracei a minha amiga. Estava, como sempre, enfiada
em calças jeans, casacos largos, mas pelo menos o moletom tinha estampa
de Natal. Eu sabia a razão de ela esconder tanto o corpo...
— Oi, Bostinha! — cumprimentei, beijando sua bochecha repleta de
blush. — Você veio!
— Eca! — Isa disse, fingindo sentir nojo do meu beijo. — Está me
beijando com essa boca de Josiah!
— É, e do jeito que eles andam se agarrando, talvez essa boca da Ana
ande pairando por locais mais “sombrios” — Bernardo zombou, causando
risadinhas em todos nós.
— Ah, você está com ciúmes, né? — perguntei, envolvendo a cintura
dele com os braços e enchendo seu rosto de beijinhos.
— Sai daqui! Cê nem tem o que eu gosto! — Bernardo zombou,
fingindo que me expulsaria, mas depois me abraçando e dando um beijinho
no topo da minha cabeça.
— Pare de agarrar a minha mulher, hein! — Josiah ameaçou, puxando-
me dos braços de seu amigo, unindo novamente as minhas costas ao seu
peito. — E, aí, boneca assassina? Tudo bem?
— Vai se foder! — Isa respondeu, fingindo uma carranca e cruzando
os braços. — Eu gostei da mulher em que você nos levou para fazer a
tatuagem, Jow. Estou com vontade de fazer outra, além da “bostinha” que
Ana e eu fizemos semana passada.
— Depois me lembra de mandar o número dela para você, Isabela.
Caminhamos em conjunto para a mesa. Josiah, sentado ao meu lado,
tentava beliscar as coisas, mas eu segurava os seus dedos, enquanto o
lembrava de esperar o restante das pessoas. Ele estava tão lindo, aceitou
colocar a camisa polo vermelha que a mãe comprou. Marta me pediu para
convencê-lo a usar, e finalmente tirar um pouco as roupas pretas que ele
amava... Funcionou, eu só pedi entre alguns beijos na noite anterior e meu
namorado aceitou. Foi mais fácil do que eu imaginei.
Começamos a falar sobre nossos planos para o próximo ano. Contei
sobre o sonho de estudar Letras, beliscando Josiah quando começou a
recitar um dos meus poemas sobre ele, zombando dos “cabelos negros que
me faziam sentir que beijava o próprio Hades”.
Enquanto Isabela tagarelava sobre a sua mãe não a deixar estudar
Música como ela queria, notei que Josiah e Bernardo estavam trocando
olhares estranhos. Perguntei a ambos o que estavam escondendo, mas meu
telefone vibrou na hora, e, quando olhei para a tela, tinha uma mensagem da
minha tia:
“Venha aqui!”
Dei um selinho no Jow, avisando-o que minha tia havia me chamado.
Meu namorado quis ir junto, mas o dispensei. Talvez ela não estivesse bem,
e ainda levar Josiah poderia deixá-la pior. Eu não sabia o que estava
acontecendo com a tia Marina. Até pensei em sugerir que fosse a uma
psicóloga, mas acabei desistindo de falar.
Avisei a Marta que iria em casa, e minha sogra insistiu que levasse um
pote com rabanadas para minha tia. Queria colocar um pouco de tudo da
ceia, mas eu não aceitei. Minha tia não comia quase nada, mas jamais
recusava os doces.
Fui caminhando pelas ruas do condomínio, com o pote nas mãos e
pensando no motivo pelo qual minha tia não disse o que queria na
mensagem. Ela não era de enviar mensagens, gostava de falar por ligação.
Só que Marina estava tão diferente, que nada surpreenderia mais.
Quando eu estava virando na nossa rua, vi um caminhão de mudança
enorme passando pela esquina, fazendo barulho com seu peso sobre o
calçamento. Que estranho... Quem se mudava em uma noite de Natal?
Quando abri o portão de casa, notei que algo estava anormal. Por que
estava tudo apagado? Ela sempre deixava a luz da varanda frontal acesa.
Senti vontade de recuar, mas, com medo de que algo errado tivesse
acontecido, entrei em casa correndo, acendendo a luz da sala e... Deixei o
pote com as rabanadas cair no chão.
Meu Deus!
Não!
Senti o mundo despencando... de novo!
— Não! — choraminguei, alisando o cabelo para trás com as duas
mãos, sentindo muitas coisas pesadas ao mesmo tempo.
A sala estava completamente vazia. Não havia mais nada dentro de
casa, nenhum móvel, nenhuma piedade, nenhuma consideração. Perambulei
pelos cômodos com o coração em frangalhos, chorando e sentindo que eu
realmente não merecia ser amada, que as pessoas não faziam questão de
mim.
Aquele caminhão de mudança era da minha tia. Como ela pôde ir
embora assim? Me segurando nas paredes, evitando que a pressão baixa me
fizesse cair, cheguei à cozinha e notei um envelope pardo em cima da pia.
Tentei ter forças para não desmaiar, enquanto pegava os documentos de
dentro do envelope.
Eram muitas coisas... Todos os meus documentos, a escritura da casa,
os dados da conta com a pensão por morte dos meus pais, os dados de uma
poupança com muito dinheiro, um documento que dizia que eu era
emancipada, onde minha tia havia me dado o direito de me cuidar como
uma adulta, de ser completamente responsável por mim mesma.
— Desgraçada! — gritei, atirando os papéis o mais longe possível.
Um envelope branco voou do emaranho de documentos, flutuando no
ar antes de cair no chão. Com ódio, caminhei até ele, o peguei nas mãos,
retirando a maldita carta com a letra dela e me desfazendo em lágrimas ao
ler.
Ana...
Me desculpe por fazer isso sem falar com você, mas está impossível
continuar vivendo dessa maneira. Eu não escolhi ter filhos, e cuidar de
você tem me matado. Eu olho para o seu rosto e vejo a minha irmã, e, antes
que eu cometa uma besteira com a minha vida, estou indo embora. Tem
uma poupança em seu nome no banco, com o dinheiro da venda da antiga
residência dos seus pais. Você pode usar esse dinheiro para remobiliar essa
casa. Estou deixando-a como um presente para você. Levo os móveis
porque era a herança da minha mãe, não conseguiria ir e deixá-los. Me
perdoe, Ana! Agora você tem ao Josiah, e sei que é forte o suficiente para
continuar vivendo sem mim.
Me perdoe,
Marina!
Não poderia ir e deixar os móveis, mas eu era algo que poderia ficar
para trás?
Peguei o telefone no seio, do lado esquerdo, e liguei para ela,
deslizando em prantos para o chão. Liguei por quase uma hora, sem que ela
se desse o trabalho de atender. Deitada sobre o chão da cozinha, chorando,
me senti um lixo, senti que no fim das contas eu deveria ter algo de errado.
Por que ninguém fazia questão de ficar comigo?
Como ela podia achar que ir embora sem me avisar, me largar como
um saco de lixo para trás, levar tudo da casa poderia ser desculpado com a
porra de uma carta? Com a porra de uma casa vazia?
“Como você pôde fazer isso comigo?”, gritei em sua caixa postal,
deixando uma mensagem atrás da outra.
Então era por isso que ela estava estranha.
Há quanto tempo minha tia planejava me abandonar e de um jeito tão
covarde? Ela levou todos os móveis da casa... Todos. Meu Deus! Quando
aquilo teria fim? Eu não ia aguentar! Eu não ia! Que ódiooooo! Comecei a
arranhar os meus próprios braços, tentando sentir algo pior do que a dor
dentro do meu peito, chorando, gritando, querendo morrer.
Quanto eu ainda poderia aguentar?
Por que a vida estava me destruindo?
Por que as pessoas que eu amava me deixavam?
Iam embora sem se despedir?
Gritei tanto, que minha garganta doeu. Quando a porta da casa se
abriu, achei que fosse ela, que fosse a minha tia, que tinha se arrependido.
Levantei a cabeça do chão, tonta, amassando a carta enquanto apertava a
vista embaçada pelas lágrimas.
— Você está bem? — Lucah perguntou, se abaixando vagarosamente a
minha frente, tentando segurar os meus ombros. Meu Deus! Morrendo de
medo, me afastei de seus dedos com cheiro amadeirado, rastejando para
trás. — Estava deixando uma entrega da minha mãe com a vizinha, e
ouvimos os seus gritos.
— Está tudo bem, minha filha? — Dona Helena perguntou, com sua
voz rouca, me encarando sob os óculos em meia lua, trajando uma camisola
florida. Me senti mais calma ao ver que não estava sozinha com aquele
homem perigoso. — Quer que eu chame o seu namorado?
— A minha tia... — sussurrei. — Ela... Ela...
— Achei que você soubesse que Marina estava indo embora. Vocês
brigaram? — a vizinha indagou, com o semblante piedoso me percorrendo.
— Ajude a menina a levantar, meu filho...
— Não! Ela me abandonou... Ela me abandonou, como os meus pais!
— gritei, me deixando cair sobre os braços daquele homem, enquanto ele
tentava me erguer.
— Calma! — Lucah disse, com a voz serena e calma ao me erguer do
chão. — Vou levar você para a casa da minha mãe!
— Não! O Jow vai brigar comigo. Não posso ficar perto, eu prometi, e
você é tarado... — falei rápido demais, tentando me afastar dele.
Eu estava surtando. Precisava respirar... Estava enlouquecendo.
— Tudo bem! Eu não sou tarado, mas ok, posso ligar para minha mãe
vir aqui te buscar, mas não posso deixar você sozinha, ainda mais nesse
estado.
Demorei muito tempo até finalmente conseguir me concentrar em algo
que não fosse os pensamentos gritando na minha cabeça. A sensação de ter
sido abandonada era exatamente a mesma que eu estava sentindo naquele
momento, a mesma de quando descobri que meus pais haviam morrido. Era
idêntica, a mesma sensação de ser quebrada, de ser ruim, de não merecer
ser amada. Era a certeza de que, no fim das contas, talvez tudo fosse culpa
minha.
Fiquei encarando aqueles olhos de um verde quase azul, com as
palavras embaralhadas na minha cabeça, com os olhos pesados, doendo, e
observei aquele rosto. Ele era tão bonito, com o rosto levemente mais fino
que o de Josiah, era tão loiro, quase tão alto quanto o irmão mais novo,
tinha uma barba bem leve sobre o maxilar e trajava roupas num estilo mais
social. Estava vestindo uma camisa de botões azul escura, solta sobre calças
jeans.
— Por que Josiah não é loiro? — pensei alto, encarando os fios
arrepiados do filho mais velho de Marta.
— Porque ele pinta o cabelo de preto. Josiah é um garoto revoltado...
— falou, parecendo conter carinho no tom de voz.
Fiquei olhando Lucah, obcecada em como ele tinha um jeito diferente
do que eu imaginei. Não parecia um monstro, pelo contrário, a voz dele era
tão calma, tão serena, que estava conseguindo me distrair.
— Chama o Jow, por favor! — pedi. — Dona Helena...
Me virei para a idosa, agarrando suas mãos ressecadas e enrugadas.
Ela cheirava a talco, e me dei conta de que estava preparada para dormir...
Sozinha, na noite de Natal... Ela realmente não tinha ninguém, nunca vi
filhos ou familiares em sua casa, e subitamente senti medo de ser sozinha
no futuro. Voltei a chorar, sentindo pena dela e de mim.
— Não quero ficar nessa casa! Preciso... Preciso sair daqui! —
murmurei, segurando os cabelos com as duas mãos.
— Venha, querida! Vamos até a minha casa, vou te dar algo para beber
enquanto esperamos.
Dona Helena pareceu triste ao encarar a casa vazia, me segurando pelo
ombro enquanto seguia junto a mim e Lucah para a sua casa. Quando me
sentei na varanda dela, sobre uma cadeira de madeira densa e escura, fiquei
encarando Lucah ao telefone. Ele parecia irritado, brigando com alguém do
outro lado. Pareceu estar falando com o meu namorado.
Eu estava apavorada. O que seria de mim? Eu não podia simplesmente
morar na casa do Josiah, obrigá-lo a ficar comigo de uma maneira tão séria.
Que desgraça! Que merda! Ainda estava com medo do meu namorado
brigar comigo porque falei com o Lucah.
Não sei quanto tempo demorou até ele chegar, mas fiquei tomando o
leite quente que Dona Helena me deu, pensando no que fazer, em como
seria destruidor tentar refazer a vida mais uma vez.
Eu só soube que era Josiah porque a BMW X4 branca parou cantando
pneu na frente da casa, enquanto ele descia do banco do motorista, com a
Marta o puxando pela gola da camisa e gritando para ele ficar calmo. Não
sabia que Jow dirigia...
— Que porra aconteceu, hein? — Josiah gritou, chutando o portão de
madeira ao entrar. — Por que você está perto dela? Eu não mandei você
ficar longe?
Chorei copiosamente ao ver a maneira como ele estava nervoso, a ira
no rosto dele ao encarar o irmão, a veia saltada no pescoço. Lucah estava
muito calmo, encarando o meu namorado com um olhar tranquilo. Eram
extremos, opostos em todos os sentidos...
— Calma, Jow! — pedi.
— Eu disse para você não fazer gracinhas, Josiah! O momento já está
grave demais! — Marta gritou, beliscando-o no braço, antes de vir até mim.
— Minha filha, eu não entendi nada... Sua tia foi embora?
Contei tudo a eles, como as coisas aconteceram, como cheguei e não
tinha mais nada dentro de casa, sobre a carta, os documentos e sobre a
vontade enorme que estava me dando de morrer. De acabar com tudo, de,
finalmente fazer a porra da dor dentro do meu peito ir embora.
— E, Jow, o seu irmão, ele nem fez nada... Não fez... Eu...eu que fiz.
Eu sempre faço, faço tudo errado. Eu só sei acabar com as pessoas, e então
elas fogem, se matam, somem e eu acabo sozinha.
— Shhh! — Josiah sussurrou, agachando na minha frente e
envolvendo as mãos no meu rosto, forçando-me a encará-lo. — Não é nada
disso. Não foi culpa sua. Você é uma garota de dezesseis anos, não tem a
menor responsabilidade sobre o que a Marina fez. — Ele sussurrou,
deixando beijos pelo meu rosto, depois me envolvendo em um abraço.
— Sim... Eu tenho, claro que tenho — falei, rápido demais, puxando a
camisa dele das costas, tentando afastá-lo. — Tudo começou com o Ben, e
terminou aqui, minha tia foi embora porque eu vim morar com ela, e ela...
Ela...
— Para, meu amor... Olha para mim! — ele implorou, novamente
segurando o meu rosto e posicionando-o para encará-lo. Fixei o meu olhar
em seu rosto, sentindo que o ar começava a escapar dos meus pulmões. —
Presta atenção, você é a pessoa mais doce e maravilhosa que já conheci. Eu
sou apaixonado por você e todo mundo que te conhece se apaixona pelo seu
jeito... Então, a sua tia foi embora de uma maneira muito, muito errada, mas
isso não teve a ver com você. Isso diz mais sobre ela. Fica calma!
Deixei minha cabeça cair no ombro dele, sentindo o seu cheiro,
tentando realmente focar em suas palavras. Mas...
— Dói tanto, Jow... Meu coração está doendo. Eu quero que essa dor
acabe.
— Eu sei que dói, mas eu estou aqui e vou fazer de tudo para que seu
coração não doa mais.
Ficamos muitos minutos abraçados, com ele agachado na minha frente,
e a minha cabeça pousada de lado em seu ombro. Ele tinha tanto, tanto
cheiro de segurança. A voz era tão serena, tão perfeita. Eu não o merecia...
Quando nos afastamos, notei o Josiah fixando o olhar em Lucah, trincando
o maxilar. Quando ia abrir a boca, Dona Helena entrou na frente do meu
cunhado:
— Seu irmão trouxe algumas comidas da ceia de vocês para mim,
como sua mãe pediu. Ele estava me contando do projeto da igreja em que
está envolvido, quando ouvimos Ana gritando. Pedi a Lucah que fosse ver...
— Dona Helena explicou, fazendo um pouco da ira do meu namorado ir
embora. Marta aproximou-se, puxando-me pelos pulsos para que eu ficasse
de pé, e me deu um abraço que demorou muito tempo, beijou a minha
cabeça e me fez uma promessa.
— Eu sempre estarei aqui para você! Sempre! Você é uma boa
menina... Não merece passar por isso.
Quando cheguei à casa de Josiah, consegui um tempo sozinha para ir
ao banheiro e ingeri cinco comprimidos de remédio para dormir que eu
tinha na gaveta do quarto do Josiah. Eu queria só apagar, só não sentir.
Estava doendo tanto, tanto... Por que ela me deixou? Por que não conversou
comigo? Por que não me disse que estava cansada? Por que não me
preparou para aquele momento?
Eu jamais a perdoaria por ter me abandonado, por ter escolhido me
deixar daquela maneira. Por fazer aquilo mesmo sabendo tudo o que eu
passei. Foi tão covarde, tão... cruel.
Eu me lembro do Josiah desesperado ao me ver embolando as palavras
ao arrombar a porta do banheiro, me erguendo do box do chuveiro, de
vários rostos ao meu redor, do Lucah tentando me forçar o vômito com os
dedos na minha garganta. Lembro-me dos braços do Josiah ao meu redor,
do Lucah dirigindo, e de só ver escuridão...
Acordei no dia seguinte, com dor de cabeça e em um quarto azulado
de hospital. Foi horrível ver meu namorado chorando, vê-lo me abraçar com
tanto medo no olhar. Ficou me pedindo para prometer que nunca mais faria
aquilo. Josiah estava com um olhar tão triste, repleto de olheiras, com o
rosto inchado.
“Você foi abandonada pela sua tia, mas eu estou aqui! Eu, a minha
mãe, a Isabela, o Bernardo, a Luana... Nós te amamos e não merecemos
perder você! Se você morrer, eu não vou aguentar! Não é justo me fazer
amá-la tanto, só para partir assim...”.
Foi horrível vê-lo sofrendo, e foi horrível a sensação de que não tinha
sido um sonho.
Eu fui abandonada... de novo!
E quantos abandonos eram necessários para uma pessoa não confiar
mais em ninguém?
Quantos abandonos eram necessários para alguém enlouquecer?
Capítulo 16
Josiah Marquez
Dias atuais...
Deixei quando ela se encaixou bem acima das minhas pernas, de frente
para mim, envolvendo os braços ao redor do meu pescoço, com a bunda
sobre o meu pau. Percorri as mãos por seu quadril, sentindo aquele cheiro
que me fazia enlouquecer, querendo me afundar naquele pescoço que era
sempre um convite, subindo as mãos e alisando suas costas por cima do
tecido macio que envolvia sua pele suave, em uma carícia lenta, ainda
tentando pensar no que fazer. Aquele cheiro doce, aquele cabelo caindo
sobre os seios dela, roçando no meu rosto...
— Ana... — sussurrei, enquanto ela se mexia, arfando, começando sua
dança sedutora sobre mim.
Minha espinha se arrepiou, quando ela deslizou a ponta das unhas pela
minha nuca, e uma reação instantânea se acendeu no meu pau, fazendo-o
enrijecer.
— Shhhh! — pediu. — Eu só quero alívio... — disse, aproximando o
rosto e roçando os lábios nos meus.
Aquele cheiro de bala de maçã verde estava lá, escapando por sua
respiração quente sobre o meu rosto. Ana era uma mulher muito sedutora,
que ainda iria me enlouquecer, mas quem era eu para julgar a maneira como
ela buscava fugir da dor? De quantas formas diferentes tentei escapar dos
sentimentos conflituosos que tinha por ela? Um baseado aqui, bebidas e
festas ali, músicas altas, maços inteiros de cigarro, vozes perdidas em um
bar, peles desconhecias sobre a minha. Foram tantas as maneiras que eu
busquei de fugir do que sentia por aquela mulher na minha frente, e falhei
miseravelmente em todas. Afinal, nada me afastou dos braços onde eu jazia
perdido naquele exato momento. E, então, apenas me permiti afundar
naqueles lábios, os mesmos que eu jurei foder, morder, lamber, mas nunca
mais beijar. Tolo... Nenhum dos esforços que eu fazia para ser o cara mau
funcionavam quando se tratava daquela desgraçada.
Aqueles lábios macios, molhados e ávidos envolveram os meus, e era
como se eu estivesse sedento. Senti vontade de recuar, mas já estava
molhado demais para procurar abrigo da tempestade que era aquela mulher,
louca, intensa e apaixonante sobre mim. Eu a beijei, de leve, segurando a
raiva que me fazia ser bruto com ela, deixando nossas línguas se
encontrarem, percorrerem um caminho doce juntas, com o pau latejando
sobre a boceta que roçava sob o tecido, acima da minha calça jeans. Com
uma das mãos, cravei os dedos ao redor de um punhado de cabelo sedoso, e
com a outra, desci por suas costas, lentamente, até chegar ao seu quadril,
apertando-a com a força necessária para a fazer gemer sob os meus lábios.
Me permiti beber daquele gosto, daquele Docinho viciante e tão quebrado
sobre mim, sentindo que ela tinha o gosto da coisa mais perfeita do mundo.
Nosso beijo se tornou tão intenso, tão cheio de necessidade, tão cheio de...
saudade.
— Jow... — Ana sussurrou, entre os meus lábios. — Por que você tem
gosto de segurança?
Ignorei suas palavras, aquela voz repleta de tristeza. Senti raiva da
maneira como eu gostava dela, da maneira como poderia beijá-la por horas
a fio, do modo como eu a achava a mulher mais linda que já vi na vida. Eu
a calei com a boca, apertando-a entre os meus dedos, descendo a mão para
sua bunda redonda e cravando os dedos, sentindo a sua carne sob o tecido,
ouvindo-a arfar entre a minha língua, fechando os olhos e sentindo o
momento.
— Coloca a música com a qual você me pintou... — pediu, segurando
o meu rosto entre as duas mãos e beijando uma lágrima que eu sequer tinha
noção de ter deixado cair.
Porque, mesmo que eu a quisesse, aquilo doía tanto... Doía tocar
aquilo que perdi, com tanto carinho, relembrando a parte boa dos meus
sentimentos, de que eu era um homem fraco, o homem que tentei esconder
com todas as cores mais escuras que eu encontrei, o cara sensível que eu
nunca quis deixar ninguém ver, exceto ela, a mãe da minha filha. Ela estava
conseguindo quebrar as minhas defesas e me derrotar...
— Alexa, toque Coisa Linda!
Então fui inundado pelas lembranças da primeira vez em que a vi
seminua, de como foi lindo traçar cada pedacinho daquele corpo, de como
eu escondia aquele desenho até hoje e era um verdadeiro tesouro, de como
dormi chorando muitas e muitas vezes agarrado a ele.
E aquela música? Foi ela que deu o apelido a nossa filha... Antes
mesmo de ela nascer.
E sob aquela melodia, reconheci que estava vencido, que estava
deixando os sentimentos escondidos emergirem.
— Eu sempre amei você! — Ana sussurrou, enquanto eu podia sentir
que as lágrimas dela se misturavam as minhas. Não, Ana! Não diga isso...
— Me perdoa, por favor!
— Cale a boca! — supliquei.
Ana silenciou, com a testa pousada sobre a minha, soltando um
pequeno soluço. Ainda tinha tanta raiva morando sob a minha pele, me
machucando, querendo afastá-la, lembrando que nem milhões de pedidos
como aquele me fariam perdoar o que ela me tirou. Quando dei por mim,
ela gemia, porque não percebi a força com que puxava os seus cabelos
acima da nuca. Balancei a cabeça, dispersando os pensamentos ruins
enquanto suavizava a pegada.
— Vamos viver esse momento... — pedi, sofrendo. — Sem falar do
passado.
— Sim!
Desci as alças finas de sua roupa, deixando aquele ombro perfeito
desnudo. Depositei beijos por eles, enquanto deslizava mais a peça de roupa
para baixo. Havia um cheiro de flores tão suave sobre aquela pele. Meu pau
latejava, com o desejo ardendo e me fazendo ter vontade de apressar as
coisas. Mas respirei, enquanto soltava os ferros do sutiã preto e sem alças
que ela usava, encarando com desejo aqueles seios lindos, transformados
pela maternidade, com auréolas marrons tão convidativas, com trilhas
azuladas de veias os desenhando.
Percorri o caminho até aqueles olhos de um verde quase amarelado,
repletos de ansiedade, aflitos, necessitados... Envolvi os seus seios entre as
mãos, com uma pegada firme, juntando-os, enquanto voltava os lábios em
um beijo forte sobre os seus, mordendo, enquanto apertava aqueles
monumentos com as mãos, sentindo-os espirrando líquido sobre a minha
camiseta.
— Vou ficar triste quando esse leite acabar... — avisei, descendo a
boca e sugando o seu seio direito, sentindo o líquido branco que em breve
sumiria daqueles peitos inundando a minha língua. Ana tremeu sob o meu
toque, enquanto eu enlouquecia com o sabor daquilo.
Belisquei seu mamilo esquerdo entre o meu indicador e o polegar,
fazendo-a soltar um palavrão, quase gozando com a sensação gostosa que
era ter aquela mulher a minha mercê. A mulher que já foi minha, que
poderia voltar a ser...
Ouvia a música tocando ao fundo, bem baixinha, com a letra perfeita
para descrevê-la, com o corpo que a maternidade só deixou ainda mais
maravilhoso. Deslizei o traje para fora do seu corpo, com ela se movendo
para facilitar o movimento, enquanto não perdia tempo ao me ajudar a
soltar a minha camiseta preta.
Ana se afastou o suficiente para me permitir ficar nu, exatamente
como ela estava, mas grudando a boca à minha, deixando-me doido para
enterrar-me naquela boceta rosada. Mas seria do meu jeito, e ela pediu para
fazer doer, e, por mais que não quisesse deixar tão doloroso, ainda era o
cara cujo pau endurecia ao vê-la chorando.
Segurei-a pelos pulsos, afastando-a de leve, apenas para poder
observar sem pressa aquele corpo inteiramente nu. Não havia qualquer
sombra de timidez nela, e isso me fascinava. Ana se entregou e confiou em
mim completamente, desde a primeira vez em que a deflorei. Quando eu a
comi pela primeira vez, ainda havia muito receio, afinal, ela tinha apenas
dezesseis anos. Mas, da segunda em diante, já havia outro comportamento,
uma entrega por inteiro, ousadia, e ela curtia o meu jeito de foder: fazer o
mais forte possível, o mais pesado, o mais hard que conseguíssemos.
Observei seu rosto, bem mais fino do que quando a conheci, afinal,
após a Coisinha, Ana emagreceu muito. Os seios estavam ainda maiores do
que antes de terminarmos o namoro, a barriga estava diferente, com estrias,
e havia uma cicatriz acima da vagina, uma linha arroxeada, que imagino
que tenha sido por onde nossa filha saiu.
— Você continua a coisa mais linda, Ana! — elogiei, abaixando-me
em sua frente e beijando toda a extensão da cicatriz na barriga.
Subi depositando beijos por todo o seu peito, chegando por fim a um
beijo apaixonado em sua boca, fazendo Ana arfar de desejo e algo mais...
Deixei nossas línguas em uma valsa por um bom tempo, alisando e
apertando todas as partes do seu corpo em que meus dedos alcançavam, e,
quando terminei de beijá-la, fiquei muito animado em ver o quanto de
paixão havia naquele olhar submisso que a minha ex me dedicou.
— Ajoelhe-se, Docinho! — mandei, enquanto alisava sua bochecha
direita com o dorso do indicador.
Observei aquele olhar assustado e ao mesmo tempo fascinado que
minha ex-namorada dedicou ao meu pau. Aquela deusa lentamente se
ajoelhou, apoiando a palma das duas mãos no chão a minha frente,
deixando o cabelo cair em cascata sobre o lado direito do corpo, sem
desviar o olhar do meu. Não havia vergonha ali, nenhuma tentativa de
esconder a mão, e senti vontade de beijá-la só por vê-la tão entregue.
— Agora, Ana... — disse, enrolando o punho direito em seu cabelo,
dando uma volta com eles em meu pulso e posicionando a cabeça dela para
trás, para olhar bem para mim. Alisei meu pau com a mão contrária,
sentindo que ele iria explodir de tanto tesão, posicionando-o na frente dos
lábios dela. — Chupa, e já relaxe bem a garganta!
Ana era uma cachorra, deliciosa, e que sabia o que fazer para me
enlouquecer. Ela molhou os lábios, sem desviar um segundo sequer dos
meus olhos, e, antes que pudesse abocanhar o meu pau, soltei o pênis e
deixei um tapa forte em uma de suas bochechas. Ela quase caiu, mas o
puxão firme em seu cabelo a segurou. Com os olhos cheios de lágrimas e a
pele avermelhada no local onde bati, Ana sorriu de maneira desafiadora e
lambeu a cabeça do meu pau. Dei um leve sorriso, sentindo a língua macia
dela me fazendo tremer de desejo.
Minha ex-namorada sugou a cabeça do meu pau, me encarando a cada
movimento, enlouquecendo-me. Ana deslizou a boca quente por meu
membro, indo até a metade e recuando, sugando enquanto deslizava os
lábios macios pela minha extensão. Eu estava fissurado de desejo com
aquela cena, com a sensação daquela boca gostosa me engolindo, enquanto
retirava o meu pênis da boca e cuspia sobre ele, para depois engolir
novamente. Ana mamava como se estivesse com fome, fazendo barulho
quando os lábios escorregavam por minha extensão. Tentei me segurar,
tentei deixar que ela chegasse até o fim sozinha, mas eu era um cretino e
tinha consciência disso. Ainda com o cabelo dela enrolado ao redor da mão,
envolvi a outra na cabeça daquele Docinho, vendo como ela se retesou,
percebendo as minhas intenções.
Vê-la com os olhos arregalados, toda dura, assustada e com minha pica
dentro da boca fez o meu lado sádico acordar por inteiro. Empurrei a sua
cabeça, forçando-a a engasgar com o meu pau, vendo a maneira como ela
ficava vermelha, ouvindo aquele barulho dela sufocando com minha pica
batendo no fundo da garganta, que era quase uma música para os meus
ouvidos.
Deixei que ela finalmente respirasse quando Ana deu um tranco para
trás com a cabeça. Gemi enquanto via a quantidade de baba que escorria
dos lábios inchados para o queixo, enlouquecendo com uma teia pegajosa
que dançava pelo ar, indo do meu pau até a sua boca.
— Puta que pariu, Ana! — grunhi.
Estremeci quando ela colocou a língua inteira para fora, me desafiando
com um sorriso. Que visão! Bati com o pênis na língua dela, ficando na
ponta do pé de tanto tesão, com o pau queimando, sentido a pressão do
gozo começar a dar as caras. Antes que eu jorrasse porra naquela boca, a
puxei pelos cabelos, para que se levantasse.
Ana ficou de pé, e abaixei até seus lábios, beijando-a, sentindo meu
gosto, com o pau latejando e quase gozando só com aquela junção de
línguas, com aquele beijo frenético e babado.
Deslizei a mão direita pelo corpo daquela deusa, enquanto soltava os
seus lábios e descia, beijando, lascando chupões pesados por aquele
pescoço, por aquela pele que nunca deveria ter deixado de ser minha.
Queria marcá-la, deixá-la cheia de destroços desse momento, cheia de
lembretes de que foi minha, de que a possuí e do quanto foi bom.
Ana gemia sob o meu toque possessivo por seu corpo pequeno,
enquanto meus dedos pousavam no poço úmido que era aquele grelinho
delicado...
— Eu sabia que você já estava encharcada esperando o meu pau... —
sussurrei, percorrendo bem lentamente a ponta do indicador esquerdo por
toda aquela boceta pequena quase chegando até o cu, então voltei até seu
clitóris, enlouquecendo com a maneira como ela estava completamente
molhada. — Agora, me diz, Docinho... Posso te comer sem camisinha? Não
teremos surpresas, não é?
— Estou preparada para você jogar tudo dentro de mim. Pode fazer o
que quiser, e não teremos surpresas novamente!
Nem foi preciso dizer mais nada! Eu a virei, deixando-a despencar de
quatro sobre o sofá. E a cena daquela boceta aberta, exposta, pronta para
mim, me deixou doido. Fiquei encarando aquela bunda redonda,
completamente empinada, aquele brilho molhado desfilando naquela vagina
rosada.
Soltei um enorme tapa naquele traseiro, antes de me abaixar e encaixar
o pau na entrada dela, sentindo a maneira como estava louca. Ouvia a
respiração ofegante da Ana, enquanto deslizava a cabeça do pau pela parte
de fora daquela boceta, para cima e para baixo, roçando, friccionando.
Minha boca salivava, repleta de vontade de provar o gosto doce dela, mas,
como fugiu da última vez, não perderia a chance de fodê-la daquela vez.
Lentamente fui entrando, forçando espaço por sua bocetinha. Porra!
Era tão apertada e quente quanto eu me lembrava. Gemi, mordendo o lábio,
enquanto apertava tanto a bunda dela, que sentia a unha se enterrando em
sua pele.
— Que porra de boceta apertada! — grunhi, rouco, sofrendo com a
maneira como meu pau estava sendo esfolado naquele buraquinho quente.
Ana soluçou, com uma mistura de dor e alívio. Continuei deslizando o
pau para dentro dela, até sentir encostar bem no fundo, vendo como Ana se
mexeu, desconfortável.
Eu ainda iria para o inferno, porque sentir que estava doendo nela me
fazia ter vontade de ir mais fundo... Mas me contive. Deslizei para fora e
lentamente coloquei só a metade do pau para dentro, sentindo-a me
apertando, me fazendo ter um ímpeto de gozo, que, com esforço, consegui
segurar. Tinha esquecido o dom especial da Ana, a maneira como aquela
bocetinha minúscula enforcava o meu pau.
Continuei o vai e vem lento, pegando novamente aquele cabelo sedoso
entre uma das mãos, enquanto alisava aquela bunda perfeita. A visão
daquele rabo redondo exposto, marcado pelas minhas mãos, fazia a minha
piroca latejar, envolta por aquela boceta quente.
— Que bundinha deliciosa, Docinho! — elogiei, acariciando com o
dedão o seu cuzinho pequeno. — Ainda vou realizar o desejo de comer esse
cu.
— Não! — Ana gemeu, agarrando o sofá, me fazendo surtar de tesão
com a maneira em que ela enfiava aquelas unhas enormes no estofado.
— Me dá esses bracinhos aqui! — ordenei, puxando-os para as costas,
unindo os dois pulsos acima do rabo bonito, deixando a mais ereta,
enquanto estocava segurando o seu quadril com uma mão, e os seus pulsos
com a outra.
Comecei a meter rápido, sentindo a ponta do meu pau batendo no
fundo da sua bocetinha, fazendo a Ana soltar um gemido intenso com a
primeira estocada mais forte em sua boceta. Cravei a unha em seu quadril,
sentindo o pau começar a latejar com os movimentos, pulsando enquanto
ela gemia cada vez mais forte, conforme eu a comia.
Deixei tapas sobre sua bunda, enquanto Ana começava a tremer sob o
meu corpo, com a boceta envolvendo cada vez mais forte o meu pau. E
quando gozou, fiz uma força absurda para não derramar o meu sêmen
naquele momento, cerrando os dentes. Ana gritava, enlouquecida, tentando
fugir da minha piroca, fechando as pernas, completamente suada, enquanto
eu continuava estocando fundo dentro dela, sem pena, até que amolecesse
completamente embaixo de mim.
— Jow... — murmurou, enquanto eu lentamente saía de dentro dela. —
Que... delícia...
Dei um sorrisinho, com o coração batendo forte enquanto eu abaixava
e, faminto, bebia todo o gozo que escorria de sua vagina. Aquele gosto era a
coisa mais maravilhosa do mundo, e eu poderia ficar ali, chupando aquela
boceta por muito tempo, mas ainda tinha que gozar, e queria que fosse na
minha cama.
Virei a Ana de frente, enlouquecido com a maneira como estava mole
nos meus braços, enquanto eu a puxava, encaixando-a no meu colo, de
frente, enfiando novamente o pau nela. Ela gemia baixinho, no mundo da
lua, enquanto eu a levava para o quarto. Ana envolveu os braços ao meu
redor, completamente entregue ao que eu quisesse fazer com ela.
Pousei de costas sobre a cama, com a minha ex encaixada na minha
piroca, na posição exata que eu idealizei, em que me masturbei várias vezes
imaginando a comer.
— Agora, você fode o meu pau, e eu vou gozar olhando esse rostinho
lindo!
Ana estava completamente anestesiada, lenta, ainda acordando do
orgasmo, enquanto se mexia devagar sobre o meu membro. Olhar para ela
ali, montada sobre mim, nua e com o corpo repleto de marcas... Marcas
minhas naquela pele, isso me fez latejar. Ela rebolando sobre o meu pau,
acordando cada vez mais, se mexendo cada vez mais rápido enquanto
cravava as unhas no meu peito, me fez começar a pulsar. Minhas pernas
tremiam, e eu começava a ficar cada vez mais acelerado. Meu coração
estava na boca, enquanto eu sentia o gozo chegando cada vez mais perto.
Deslizei a mão para cima, envolvendo-a no pescoço daquela mulher
deliciosa, daquele pedaço de perdição montado sobre mim, enquanto Ana
apertava a boceta ao redor da minha piroca, quicando. E quando eu urrei,
me derramando inteiro dentro dela, despejando tudo naquela boceta
deliciosa, Ana gemeu de uma maneira arrastada, deslizando para fora da
minha pica e me molhando completamente ao dar um daqueles gozos para
fora que só ela me dava, me presenteando com aquele jorro que molhava a
porra toda.
Foi de outro mundo vê-la tombando o corpo sobre o meu peito, e
fechei os olhos para tentar controlar as sensações, a respiração, o coração
que parecia que explodiria. Quando encarei aquela cena, era o paraíso, com
minha ex-namorada montada sobre a minha barriga, amolecida, com meu
corpo e a cama repletos do jato de gozo daquela boceta...
●●●
Ficamos muito tempo deitados naquela posição, com a boceta da Ana
molhada sobre a minha barriga, a cama abaixo de nós completamente
inundada pelo gozo dela, aquele cheiro delicioso dela em todos os cantos.
Puta que pariu!
— Você foi maravilhosa, Docinho — elogiei, pousando o lábio no topo
de sua cabeça, envolvendo-a em meus braços, puxando-a para deitar a
cabeça no meu peito.
— Isso... quase... me... matou... — ela soluçou, com a respiração
entrecortada, completamente ofegante.
Quando por fim controlei a respiração, arrastei a Ana para um banho
quente, muito animado em poder ensaboar cada pedacinho dela. Foi tão
excitante passar sabão naqueles peitos perfeitos, que acabei me animando e
a comendo de novo... e de novo... e de novo.
Passei a manhã fodendo e metendo naquela boceta, beijando-a,
deixando-a gemer o meu nome por muito tempo. E quando Ana por fim
adormeceu, deitada de conchinha comigo, após eu trocar os lençóis, fiquei
beijando cada um de seus dedinhos deformados e pensando em como eu
deixaria um monstro sair quando descobrisse quem foi o desgraçado que fez
aquela brincadeira de mau gosto com ela.
Se fosse o meu pai, eu daria um soco nele, mas, agora, do outro lado
do rosto. Se Cristian não havia aprendido a não se meter com a minha
Ana... Ele aprenderia de uma vez por todas.
Capítulo 17
Ana Oliveira
Há seis anos...
Ana Oliveira
Dias atuais...
Eu ainda estava com uma moleza absurda, como se meu corpo fosse
uma geleia. Enquanto Josiah dormia, comecei a preparar a comida. Fiquei
com um certo receio de meu ex-namorado não gostar de me ver em sua
cozinha, mas estava com fome. Assumi os riscos de tomar uma represália.
Achei interessante a maneira como a cozinha dele estava
completamente equipada, além de ter os suprimentos necessários para
preparar diversos pratos. A geladeira estava repleta de coisas gostosas,
como o sorvete favorito dele, potes de doce de leite, refrigerantes... Como
ele continuava tão definido, se tinha tantas coisas gostosas pela casa? Sorri
ao ver o Cheetos laranja em grande quantidade dentro do armário. Ele
adorava aqueles salgadinhos...
Escolhi fazer o que ele amava, macarrão com frango ao molho branco.
Almocei sozinha, na bancada da cozinha, tentando evitar as lembranças, e
sendo ineficaz, ao ficar relembrando a maneira como esguichei em tudo...
Sentada ali, tive uma visão privilegiada da cama dele, visto que a casa
não tinha quase nenhuma parede interna, encarando a maneira
despreocupada com que ele dormia. Josiah era tão lindo... Estava com
apenas uma parte do edredom preto cobrindo a bunda, abraçado ao
travesseiro enorme e macio, com aqueles músculos delineados espalhados
despreocupadamente sobre a cama.
Ainda podia sentir o gosto dos seus lábios sobre os meus, e foi tão
incrível ver que ele finalmente me beijou... Em todos os nossos contatos
recentes, em nenhum momento Josiah o havia feito. Eu realmente bloqueei
os sentimentos sobre aquela percepção, ignorando o fato de que meu ex
tinha tanta raiva, que lambeu a minha boca bem sobre essa bancada da
cozinha, mas se recusou a beijá-la.
Hoje foi diferente, e senti tantas coisas sob o seu toque. Queria que
Josiah pudesse me perdoar, que existisse um botão mágico que apagasse
todos os destroços de nossos erros, do que ele fez comigo. E eu tinha mágoa
porque nunca mais consegui escrever após aquilo, do que fiz com todos nós
e nos separou. Eu realmente queria voltar a ser dele, e que Jow voltasse a
ser meu. Porque eu o amava, muito, e jamais deixei de amar. E eu sabia,
humilhada, que, se ele me quisesse, enquanto quisesse, a hora que quisesse,
eu seria sua. Que faria qualquer coisa para receber o seu perdão...
A gente transou enlouquecidamente e, por muito tempo, minha vagina
estava ardida e sensível. Tive um pouco de medo quando vi que ele iria me
penetrar comigo de quatro, porque, desde que tive bebê, nunca mais havia
feito sexo. Mas acabou que foi muito bom e não tive desconforto como
imaginei que teria enquanto ele deslizava para dentro de mim.
Acabei adormecendo quando transamos pela última vez, e, quando eu
acordei, com ele feito uma rocha com os braços ao meu redor, Josiah
despertou também, me encarando com um semblante sonolento. Depois
apertou o meu queixo, enquanto eu tentava deslizar para fora, e ordenou
que eu não saísse da casa dele. Literalmente ordenou.
Ele estava preocupado comigo... E me conhecendo, quem não ficaria?
Fiquei pensando se não seria obra do Cristian. Aquele velho miserável me
detestava, porque, depois que ferrei com tudo, que cravei de vez uma estaca
no meu relacionamento com o Josiah, eu joguei milhares de podres do
prefeito no ventilador, bem na frente do delegado que estava louco para me
encarcerar. Meu ex-sogro me esbofeteou, e Josiah deu um murro no rosto
do pai... Foram dias de caos após eu ter tido a Júlia.
Cristian me odiava, e nem negava aquilo. Ele nunca me quis na vida
do filho, e acabou me tendo não só na vida do Jow e no caminho do Lucah,
mas também como mãe de sua neta. Lembro-me perfeitamente daquele
sorrisinho com a frase “fazemos tudo pela família”, foi quase uma ameaça.
Se eu pudesse, enfiaria aquela porcaria de balde na garganta daquele
corrupto desgraçado.
— Cheiro gostoso...
Mal o vi despertando, mas fiquei vermelha ao observá-lo desfilando
pelado, com o membro que, mesmo flácido, ainda era grande. Ele
caminhava em direção às panelas, mas parou ao meu lado, me fazendo
arfar.
— Acho que ainda não acabei com você... — avisou, sorrindo ao notar
o quão rápido conseguia mexer comigo.
Meu corpo inteiro arrepiou com a proximidade, e minha respiração
tornou-se acelerada. Eu estava literalmente apaixonada novamente... Ou
nunca deixei de estar? Quando voltei a me encantar, depois do bar, quando
ele me fez gozar aqui? Ou quando o vi com a nossa filha, quando notei a
maneira como ele a amava? Quando foi que meu coração começou a entrar
na frente da minha razão?
O amor e o ódio caminhavam juntos, é o que Marta sempre dizia.
Costumava falar que Jow me amava, e que toda aquela revolta e insistência
em me obrigar a conviver com ele era sinal de que tinha sentimentos. Ela
gostava de contar sobre o Cristian, sobre quando deixou de amá-lo, e que
tudo o que sentia por ele era gélido e indiferente.
— Acho que acabou, sim! — sussurrei, engolindo em seco. — Estou
toda dolorida.
Josiah agarrou o meu pescoço, me fazendo olhar para cima, para o seu
rosto, com os dedos imensos ao redor da minha garganta. Meu coração
bateu forte. Ele estava me encarando de um jeito bem mais suave, com a
ausência de todo o ódio que costumava me cortar inteira. Amoleci sob o seu
toque possessivo.
— É assim que eu acho mais gostoso, Docinho... — sussurrou,
deixando um beijo casto sobre os meus lábios. — Quando você urra de dor
feito uma cadela.
E, da mesma maneira que me segurou, e que eu jurei ter menos raiva
em seu olhar, ele me dedicou um semblante cruel e passou por mim. Senti
meus olhos marejando, mas me virei de frente para a ilha, apenas girando o
corpo sobre a banqueta, e apoiando o queixo na mão esquerda. Fiquei
observando Josiah enchendo um prato cinza e fosco com macarrão,
enquanto comia de pé, me encarando ao fazê-lo.
— Não tem veneno, né? — perguntou, de boca cheia, dando um leve
sorriso e depois fechando os olhos, como se comesse a coisa mais gostosa
do mundo.
Neguei, apenas com um gesto de cabeça, sentindo o coração doendo.
Eu era uma boba... Achei que aquela manhã inteira com ele dentro de mim
realmente o faria lembrar que sentia algo, que já me amou um dia.
— Estou brincando, Docinho. Por que está chorando?
— Não estou! — menti, limpando o rosto com as duas mãos.
Quando o vi encarando minha mão direita, a escondi abaixo da
bancada e desviei o olhar. Que merda! Eu não estava conseguido controlar
as lágrimas, mas me recusei a soltar qualquer barulho. Podia senti-lo me
encarando, enquanto tentava usar o decote da roupa para secar o rosto.
Depois ouvi quando Josiah deixou o prato dentro da pia e caminhou para o
banheiro.
Deslizei da bancada e lavei o prato, olhando ao redor da casa enquanto
sentia a porra do meu coração completamente quebrado. Só lavei aquela
merda porque realmente queria controlar a minha cabeça com alguma
distração. Eu o vi com a visão periférica, saindo do banheiro e caminhando
para o quarto. Ele se vestiu, e eu coloquei o prato sobre o escorredor de
metal ao lado da pia. Josiah caminhou até mim, enquanto eu voltava a me
sentar na mesma banqueta, agora de costas para a cozinha e de frente para o
Jow. Ele colocou apenas uma calça de moletom preta, deixando o abdômen
definido a mostra.
— Vou descobrir quem fez aquilo com você! Só não fui à casa do meu
pai porque soube que ele está nas Maldivas, certamente com uma de suas
amantes, já que foi a esposa dele quem me contou isso ao telefone — ele
disse, cruzando os braços diante de mim.
— E precisa descobrir? Só pode ter sido ele... — murmurei, ignorando
o rosto perfeito parado diante de mim.
— É apenas pelo balde que você continua chorando? — insistiu,
caminhando até mim e segurando o meu rosto entre os dedos, encurtando a
distância entre o nosso rosto ao encurvar o corpo. — Ou está chorando
porque está arrependida de ter transado comigo?
Olhei para cima, para o seu rosto a centímetros do meu, sentindo
aquele cheiro, e solucei. Neguei, balançando a cabeça, movendo a mão dele
junto comigo.
— Estou chorando porque tenho a certeza de que você me odeia por
todo esse tempo, me odeia de verdade, e eu nunca senti ódio por você! Eu
sempre senti amor, tristeza, saudade, e muitas coisas, mas nunca te odiei de
verdade, mesmo que o contrário tenha saído da minha boca! — confessei,
fazendo-o levar um susto com o peso das minhas palavras.
Josiah soltou o meu rosto, ficando vermelho de raiva, balançando a
cabeça enquanto dava voltas na minha frente. Ele estava ficando bravo.
— E mesmo que me faça gemer como uma “cadela”, não foi isso que
acabou de dizer? Mesmo que faça isso... Eu sei que nada que eu lhe der vai
fazer você me perdoar — avisei, secando as lágrimas.
— Ana... Eu... — gaguejou, parecendo se segurar para não pular em
cima de mim, como adorava fazer quando estava nervoso. — Eu vivo
sonhando com momentos que nunca vão acontecer. Eu costumo imaginar
cenários onde acordo com você de um lado do meu peito, e a Coisinha do
outro. Mundos onde você carrega outro bebê nosso na barriga, onde
viajamos, onde você me diz sim na igreja diante de Deus. Eu não consigo
me apaixonar por ninguém, porque você é a única mulher que inunda o meu
coração, que não deixa espaço para mais nada. — Ele estava chorando,
com os braços abertos diante de mim, como se estivesse completamente
exposto, como se revelasse algo muito profundo dele, me encarando com
tanto sofrimento, que eu me odiava, me odiava por tudo de errado que já
fiz. — Eu imagino universos paralelos onde tudo o que sonhei para nós dois
acontece, mas sabe quem também está nesse cenário?
Então ele me golpeou, de um jeito que não imaginei que faria, logo
depois de dizer coisas tão lindas, de expor que sentia exatamente a mesma
coisa que eu, que tinha os mesmos desejos que jamais poderiam ser
realizados. Mas ele começou aquela maldita frase, e eu sabia o que viria a
seguir. Sabia o que Josiah estava pensando, e eu estava frágil com os
acontecimentos do dia. O que ele estava prestes a dizer acabaria comigo.
Meu coração palpitou, doendo literalmente, me fazendo quase perder o ar.
— Cala a boca! — supliquei, tapando os ouvidos, sabendo exatamente
o que Josiah atiraria na minha cara. — Não fala sobre isso, por favor!
Josiah avançou, me forçando a soltar as mãos dos ouvidos, e tombei a
cabeça em sua barriga chorando, me preparando para a porrada que seria
ouvir aquilo:
— Eu sonho com mundos onde você não matou o meu melhor amigo.
Com mundos onde o Bernardo não foi parar na porra de uma cama de
hospital, sem vida, sendo apenas um corpo vegetando, porque você foi uma
descontrolada! — ele gritou, apertando-me em um abraço. — E, sim, eu te
odeio com toda a força que eu consigo, porque morro de vergonha de ainda
amar a mulher que prometeu ser minha, que prometeu me esperar, a mulher
por quem eu assumi a carreira que odiava, a mulher por quem abandonei os
meus sonhos, e que ainda teve a coragem de ficar com a única pessoa que
eu pedi que não ficasse. A pessoa com quem doeria, a mulher que fodeu
com o meu irmão.
— Para, por favor! — supliquei, sentindo que desmaiaria com todas
aquelas lembranças fodidas na minha cabeça. — Eu não vou aguentar.
— Você vai aguentar, porque eu acordo todos os dias e aguento saber
que não vi minha filha dar os primeiros passos, que não sei a primeira
palavra que a Júlia disse, que não vi o seu rostinho ao nascer... — ele gritou,
chorando, puxando o meu cabelo com fúria para trás, me fazendo encará-lo.
Eu estava tremendo sob o seu toque raivoso, ficando sem ar. — Eu construí
essa merda de casa para poder ver migalhas da minha filha, para ver
migalhas suas. E quando eu não consigo controlar o ódio, como no dia em
que atirei ovos na sua casa, eu vou para lá, para o hospital, onde o meu
melhor amigo está vegetando, e fico desejando que ele acorde, que ele volte
a viver, por um milagre, para que eu possa perdoá-la. Para que eu possa ser
feliz de novo...
Eu simplesmente fui invadida pelas lembranças do que fiz. Lembrei-
me da noite em que eu havia dado à luz e descoberto que o meu melhor
amigo, que o homem que amava a minha filha, que me amava, que amava o
ingrato do irmão por quem faria tudo, tinha morrido. O homem com a alma
mais linda do mundo morreu em um acidente de automóvel, por minha
culpa, porque estava indo ver o parto da minha filha. E dois dias depois, eu
surtei... Surtei quando cheguei em casa e Josiah estava lá. Surtei por estar
sozinha com uma bebê, porque Marta não havia conseguido chegar a tempo
da viagem pela Europa em que estava com seu namorado, e eu mal sabia
como segurar a minha filha... Surtei porque o pai da Júlia achava que ela era
fruto de uma infidelidade que jamais existiu. Surtei porque eu era uma filha
da puta que destruía tudo. E estava tudo tão barulhento, que eu realmente
queria fazer o barulho parar.
E eu só lembro de quando estava tentando fazer o barulho acabar. Eu
sequer lembro de ver o Ber. Mas o Josiah diz que eu fiz isso. Que me viu
com o Bernardo, enquanto ele estava desacordado. Eu só lembro de quebrar
o carro com a maldita caixa de som e do que Jow fez comigo e destruiu a
minha carreira, me deixando deformada.
— Eu não me lembro de ter feito isso... — sussurrei, muito baixo,
sentindo que iria desmaiar.
— Você não se lembra — ele repetiu. — Do que não se lembra, Ana?
— De ter feito aquilo com o Bernardo.
— Mas eu a vi, você estava lá.
— Eu só lembro de você me deixando e me quebrando, me deixando
cair por cima da mão com que eu fazia tudo... De me deixar cair, enquanto
eu estava de resguardo, abrindo os pontos da minha cesárea. Da maldita
festa que você estava dando, e que me enlouqueceu de raiva. Você me
soltou, me deixou cair, e sequer olhou para trás. Harry que apareceu com a
Isa, e foram eles que me ajudaram — acusei, vendo-o me soltar e cambalear
para trás, como se estivesse surpreso, atordoado. — Eu sei que não foi sua
intenção. Sei que foi sem querer, mas eu o culpei por isso por muito tempo,
em cada momento em que não conseguia segurar a minha bebê, em que
tinha que reaprender a fazer tudo com a mão esquerda, sendo destra. E
imagino mundos onde nada disso aconteceu, mas eu não preciso deles para
perdoar você...
Capítulo 19
Eu tenho te amado por muitos anos. Talvez eu não seja suficiente. Você
me fez perceber o meu maior medo. Mentindo e nos destruindo
I'm Not The Only One - Sam Smith
Josiah Marquez
Há quatro anos...
Ana Oliveira
Há quatro anos...
Já são doze longos meses desde que Josiah começou a carreira militar.
Tantas coisas aconteceram ao longo do último ano... E meu coração se
quebrava a cada vez em que eu tinha que me despedir do meu namorado,
quando ele tinha que voltar para Minas.
Nas primeiras semanas, mal sabia se vivia ou apenas existia, esperando
Jow voltar. Eu sentia saudade o tempo inteiro, porque estava acostumada a
dormir e acordar todos os dias nos braços do homem que eu amava. De
repente, fui obrigada a me adaptar a uma existência onde ele estava ausente
na maior parte do tempo.
Josiah fazia um esforço danado para estar comigo e a mãe, vindo em
finais de semana bem corridos, para passar o tempo de seu descanso
conosco. Esses eram os dias mais felizes, porque ele estava lá,
preenchendo-os, colorindo.
No comecinho do ano passado, após Josiah partir, eu passei no
vestibular para estudar Letras. Aquilo me deu uma rotina, uma fuga da
saudade absurda que sentia do Jow. Isabela, minha melhor amiga, estava
estudando na mesma faculdade, mas cursava Marketing.
Outra coisa mágica foi finalmente ter escrito um livro inteiro. Comecei
a escrever de maneira despreocupada em um aplicativo de leitura,
colocando para fora uma história muito sombria. Me assustei quando
acordei durante a madrugada com meu telefone apitando, eram notificações
de comentários no meu livro, cujo nome era Dark Dress. De uma hora para
outra, o livro viralizou, antes mesmo de ser terminado. E ver a maneira
como tinham pessoas gostando daquilo, trouxe-me a percepção de que
escrever era o que precisava para a minha vida.
Recebi a proposta de uma agente literária, que me telefonou
completamente entusiasmada, oferecendo-me um contrato para ser
agenciada. E aceitar aquilo foi a coisa mais certa que fiz na vida. Ela
encontrou uma editora e lancei o meu livro, lotando uma sessão de
autógrafos, com a presença de Marta, Isa, Bernardo, meu namorado e várias
pessoas da minha faculdade, bem como muitas leitoras que já me
acompanhavam.
Lembro que fiquei morrendo de medo de não ir ninguém ao
lançamento, além das minhas pessoas próximas, e aquele dia foi tão ao
contrário das expectativas, tão perfeito, que entendi que não existia outra
carreira em minha vida. O meu coração e a minha alma gritavam que nasci
para ser escritora.
Estava muito feliz com o início da minha jornada como escritora, mas,
ainda assim, meu coração doía de saudade do Jow. Me sentia um pouco
solitária, porque, mesmo que Marta e Luana estivessem sempre presentes, a
ausência dele me deixava um pouco deslocada. Costumava me surpreender
com a maneira como meu cérebro jogava lembranças dele a todo momento.
Em um desses dias em que me via com o pensamento longe, me surpreendi
com um filhotinho vira-lata abanando o rabo para mim na cozinha da casa
de Marta. Eu ainda morava com ela, e sequer tinha coragem de entrar na
casa que minha tia deixou para mim. Lembro que estava colocando a louça
para lavar, na máquina de inox abaixo da pia da cozinha, quando o cãozinho
deu uma pequena latida. Foi quase um ressonar, fino, e muito fofo. Lembro
que me abaixei, e o cachorrinho correu, quase pulando, até mim. Peguei
aquela coisinha minúscula e barriguda em meus dedos, sorrindo enquanto
ele tentava lamber o meu rosto.
— Como foi que entrou aqui, “bafinho de leite”? — perguntei,
sorrindo com a animação do vira-lata de pelagem marrom.
— Me desculpe... — Lucah disse, parado na entrada da cozinha.
Encarei-o, imediatamente travando o sorriso. — Estava tentando convencer
a minha mãe a deixar o “Senhor Barriga” ficar aqui, até ele conseguir um
lar. Esse pequeno travesso cruzou a rua bem na frente do meu carro...
Encarei aquele homem elegante, trajado com uma camisa social branca
solta sobre as calças jeans justas. Por que ele parecia um homem bom? Não
fazia sentido...
— Tentei que meu namorado ficasse com esse neném, mas como
minha sogra detesta animais, ficou impossível — contou, respirando fundo
e segurando o quadril com as mãos, bufando ao encarar o cachorrinho, que
começava a aninhar-se em meu peito.
Demorei alguns segundos para a compreensão do que disse me atingir,
enquanto aninhava mais o filhotinho contra o peito. Ele disse... disse a
palavra “namorado”. Cada vez ficava mais confusa sobre aquele homem. A
voz do Josiah invadiu minha mente, me causando um arrepio: “Fique longe
do meu irmão!”.
— Meu filho, eu não sei se quero esse filhote por aqui... Vai fazer xixi
em tudo! — Marta disse, sorrindo ao apertar a bochecha dele, ficando na
ponta dos pés, e depois pousando um beijo em sua bochecha. — Mas como
vou dizer não para o meu filhinho, hein?
— Por que você mesmo não fica com ele? — inquiri, ainda
desconfiada daquela carapuça de bondade.
— Eu moro em uma república para rapazes, e uma regra explícita da
proprietária, uma ranzinza, é “Nada de animais”! — ele contou, imitando
uma voz rouca e jocosa.
Tentei ficar séria, mas a careta que fez, atrelado ao gesto de estar sendo
enforcado, causou-me uma risada.
— Há quanto tempo está namorando? — perguntei, com minha sogra
chegando perto e alisando a cabeça do pequeno cachorrinho. Ele se animou
todo, começando a se chacoalhar em meu colo, fazendo gracinha para
Marta, tentando acertar o seu rosto com uma lambida.
— Há sete anos! — contou, sacando o telefone e se aproximando. —
Esse é o Jonas, o meu príncipe.
Ignorando aquela voz conhecida em minha cabeça, dizendo-me para
ficar longe, inclinei o rosto e encarei a foto, que exibia Lucah e outro
homem. O rapaz era bem baixinho, e estava sorrindo, na frente do Lucah,
que o segurava pela cintura em um abraço. O fundo da foto mostrava que
estavam no Cristo Redentor.
— Caramba, que legal! — disse, chocada. — Sua mãe não me contou
sobre você ser gay, nem sobre Jonas.
— Quando confidenciei a ela sobre minha sexualidade, a fiz prometer
nunca contar ao meu pai ou ao Jow. Não quero o Cristian me atacando mais
ainda... — ele disse, guardando o celular no bolso frontal da calça e se
inclinando para capturar o Senhor Barriga do meu colo. — Meu pai é
homofóbico.
— Entendo... — sussurrei.
Então... Sete anos de namoro com Jonas. Marta era realmente um cofre
de segredos. Mas, talvez aquela pequena informação pudesse fazer o Josiah
entender que... talvez... tenha se enganado.
Caramba! Estava me sentindo péssima por duvidar do julgamento do
Josiah, mas, ver aquele homem, tão... ao contrário do que imaginei,
realmente plantava um questionamento pesado em minha cabeça.
— Já postei as fotos desse pequeno barrigudo em meu Instagram. Ele
deve ficar aqui por poucos dias, porque já tem gente interessada em adotá-
lo. Porém, sabe como é... Precisamos investigar esses pretendentes, não é,
menininho? — ele contou, segurando o cachorrinho entre os dedos e o
chacoalhando de leve diante do rosto. Lucah era uma pessoa com uma aura
tão serena... — Então, vou indo... Cuidem bem desse garotão, hein!
Meu cunhado deixou o cãozinho no meu colo, depois deixou sobre a
mesa da cozinha uma bolsa com os alimentos para o animal, bem como
uma caminha estofada de cor amarela e um saco imenso de tapetes
higiênicos. Minha cabeça estava confusa, e, dentro do meu peito, uma
dúvida cruel estava plantada.
Eu amava e confiava no meu namorado, mas, ao mesmo tempo, Lucah
não parecia a pessoa descrita pelo Jow. Seria o irmão do Josiah um tipo de
psicopata? Parecia doce, cativante e escondia um lobo espreitando sob a
pele? Ou seria realmente um bom homem, e, de alguma maneira muito
louca, meu namorado se equivocou sobre ele?
Somente o fato de ter ficado na dúvida sobre a índole do irmão mais
velho do Josiah já me trazia uma sensação de culpa absurda.
●●●
Os dias passaram e Senhor Barriga foi me deixando completamente
apaixonada por sua doçura e companhia. Ele era a coisa mais doce, fofa e
inocente do mundo. Enlouquecia a mim, a Marta e Luana, fazendo xixi no
lugar errado, mordendo os sapatos, as quinas dos móveis. Contudo, também
trazia muitas risadas e suspiros de fofura.
Marta dizia que o cãozinho era seu neto, enquanto Luana não
conseguia gostar do animal. Enxotava sempre que podia, franzindo o nariz.
Ela dizia que não gostava de cachorros porque eles lambiam as partes
íntimas e depois tentavam nos beijar. O que não deixava de ser verdade,
mas Senhor Barriga era a coisa mais linda. Eu enchia sua barriguinha roliça
de beijos, e, se não fosse o fato de já ter uma família o esperando, tendo
Lucah ficado de o buscar naquele dia, eu ficaria tentada a ser sua mamãe.
Tomei um banho demorado, e, enquanto escovava o cabelo no
banheiro de Josiah, Marta se enfiou no pequeno cômodo, com os olhos
marejados. Encarei seu reflexo no espelho, vestida elegantemente com um
conjunto em tons de vinho, em seda refinada, com o cabelo recém-cortado
em um Chanel com pontas repicadas e escovadas.
— Lucah já levou o Senhor Barriga — contou, secando uma lágrima.
— Meu netinho foi embora...
— Ah, não fica assim... — consolei, desligando o secador, que fazia
um barulho absurdo. Senti uma pontada de tristeza no peito ao pensar que
não teria mais aquela bolinha quentinha dormindo comigo. — Ele
certamente está indo para uma família maravilhosa.
— Sim, está mesmo. Lucah investigou tudinho, disse que se chama
“adoção consciente” — contou, começando a se afastar.
— Ele vai ficar bem!
— Vai, sim. Agora vou deixar você se embelezar... — avisou.
Marta era sem dúvida um ser humano excepcional. Continuei a tarefa
de escovar os fios, afinal, estava quase na hora marcada com Luana.
Iríamos a um barzinho na Lapa. Jow disse-me que não poderia vir nesse fim
de semana, e fiquei tão xoxa, que Lu me chamou para sair.
Terminei de me aprontar, colocando um macaquinho jeans que ia até o
meio das pernas e ostentava um babado sutil sobre o decote. Arrematei o
look com um tênis Iate e fui até o quarto da Luana.
— Já estou prontinha! — disse, terminando de passar o batom
vermelho sobre os lábios, depois os esfregando para espalhá-lo. — Vamos...
E, antes que eu pudesse piscar, ela jogou a bolsa transversal sobre o
ombro e foi me puxando para fora com a mão ao redor de meu pulso,
animada.
— Tequila... Aí vamos nós! — comemorou.
E assim seguimos a noite, animadas, bebendo sob o som de uma banda
tocando MPB ao vivo, contando histórias enquanto virávamos shots do
líquido claro e amargo, intercalando com bolinhos de bacalhau.
— Aí, eu finalmente resolvi que vou me inscrever no processo para o
mestrado naquela federal que te contei. Já comecei a preparar o meu projeto
de pesquisa e... — contava, empolgada, até que paralisou, encarando a porta
do bar, atrás de mim. Depois, começou a acenar, chamando alguém. —
Venham, sentem conosco!
Olhei por cima do ombro, curiosa, e ao mesmo tempo temerosa de
minha amiga estar convidando pessoas que eu não conhecia para a nossa
mesa. Sempre ficava mais tímida, e ainda não estava bêbada o suficiente
para socializar sem cautela.
— Oi, Lu! — alguém disse, passando por mim e indo até minha
amiga, que ficara de pé, dando pulinhos de animação.
Luana abraçou o rapaz, bem mais baixinho que ela, envolto em uma
camisa florida e uma bermuda de sarja bege. Quando, após dar dois
beijinhos em suas bochechas, o homem voltou-se para mim, imediatamente
o reconheci. O rosto redondo, bronzeado, a barba densa e os cálidos olhos
escuros... Era Jonas, o homem que Lucah mostrou-me na foto. Então girei
na cadeira, intuindo olhar para trás, e notei o namorado dele me dando um
sorriso simpático, parado atrás de mim.
— Não queremos atrapalhar — meu cunhado avisou, timidamente
erguendo as mãos, como se estivesse rendido.
— A gente quer atrapalhar, sim — Jonas contradisse, já puxando uma
cadeira e se sentando. — Prazer, me chamo Jonas!
— Prazer, Ana! — Sorri, aceitando o seu aperto de mão.
Lucah, tímido, sentou-se ao meu lado direito, enquanto o namorado
ficava a sua frente sob a mesa de madeira avermelhada. Meu coração deu
uma leve tamborilada. Céus, eu já tinha traído a confiança do Josiah tantas
vezes nos últimos dias, interagindo com a única pessoa que ele me fizera
prometer que não teria contato...
Será que, caso Jow soubesse mais sobre o irmão, visse esse lado
apaixonado, comprometido em um relacionamento duradouro, engajado em
causas sociais, teria suavizado suas percepções da infância? Será que, aos
olhos de uma criança, uma sombra na parede pareceria um lobo mau?
Droga! Eu estava fazendo a mesma coisa que a Marta, duvidando da
palavra do meu namorado... Mas precisava tomar uma decisão, e a mais
correta era observar. Era ir pensando com a minha cabeça, enxergando com
meus próprios olhos, porque, até aquele momento, Lucah apenas me
mostrara gentileza e respeito.
— Ah, você é a namorada do Josiah! — falou, parecendo surpreso. —
Mulher do céu, esse seu boy é muito nervosinho...
— Ele tem um jeitinho especial — disse, causando risadinhas no
grupo. — Acho que muita coisa seria suavizada se Josiah soubesse da sua
existência... — contei, apontando em sua direção.
— Ah, ele acha que sou amigo do Lucah, e inclusive já bateu a porta
do quarto na minha cara ao me ver pela casa.
— Nossa... — Corei, sentindo-me subitamente envergonhada.
— Tem nada não, mulher! — Fez carinho no meu ombro, fazendo-me
imediatamente sentir que já gostava dele. — Irmãos que se entendam, né,
mas esse rolê de pedofilia é que foi sinistro.
Lucah se mexeu, e Luana imediatamente pareceu assustada. Nunca
tinha visto aquele semblante nela, mas imaginei que, assim como eu, minha
amiga ficara assustada ao ver a maneira despreocupada com que Jonas
falara aquilo em voz alta. Mas eu precisava aproveitar o momento, afinal,
havia uma abertura para abordar o assunto:
— Sobre esse lance da acusação de pedofilia... Como isso aconteceu?
— Então... — Lucah disse, raspando a garganta — É simples, um dia
cheguei do trabalho e Josiah começou a me xingar. Acho que ficou atrás da
porta o dia inteiro, me esperando chegar para fazer aquilo. Estava com o
meu computador na mão, e disse que eu era um tarado, que tinham fotos de
meninas jovens em meu computador.
— E tinha? — questionei, erguendo uma sobrancelha, apoiando os
cotovelos na mesa, interessada.
— Sim! Tinha uma pasta criada naquele mesmo dia, e eu não faço
ideia de onde foi que vieram aquelas fotos. Amo o meu irmão, faria tudo
por ele, como sempre fiz, mas não entendo de onde surgiu aquilo. Não fui
eu. Eram fotos de crianças! Não sou um pedófilo.
— Pode ter sido coisa do Cristian para fazer vocês brigarem... —
Luana disse, com o olhar distante. — Essa sempre foi a minha teoria.
— Faz sentido... — murmurei. — Você disse que a pasta foi criada
naquele dia?
— Sim, e eu sequer tinha dormido em casa. Mas nada do que eu fale
vai mudar a opinião do Jow sobre mim. Ele cisma que preguei trotes nele a
infância inteira, acusando-me de o enforcar, de colocar um rato morto em
sua cama, de destruir suas coisas. Não faço ideia de como ele cria essas
histórias, mas acho que a infância violenta com o meu pai o fez ficar
assim...
— Josiah não é de fantasiar situações! — defendi, virando um shot de
tequila. — Mas acho que podemos juntar vocês dois em algum momento,
você contar sobre o Jonas e sua versão dos fatos.
— Bom... Eu não sei! — Lucah murmurou, bebendo sua água com
gelo e limão, enquanto seu namorado entornava dois shots de tequila de
uma vez. — Queria que isso fosse possível, mas sequer tenho esperanças de
um dia conseguir conviver bem com o meu irmão.
Fiquei em silêncio. Se Lucah nem dormira em casa e a pasta com fotos
tinha sido criada naquele dia, como Josiah ainda achara que podia ter sido o
irmão? Algo na história não se encaixava. Jow era doce, carinhoso e
bondoso. Por que acusaria o meu cunhado de coisas que não tinham
fundamento?
Estava confusa, mas talvez fosse o álcool, talvez a empatia que sentia
por Lucah, mas decidi que me permitiria conhecê-lo, dar um voto de
confiança a minha intuição, que sussurrava que não tinha perigo.
No dia seguinte, acordei sobre o tapete da sala, deitada ao lado de
Jonas, que dormia com a boca aberta, pousado de barriga para cima, com
saliva escorrendo por um canto da boca. Luana estava largada desacordada
sobre o sofá da sala, deitada com o rosto no encosto do sofá e roncando
feito o motor de um carro.
Merda! Uma dor de cabeça chata percorria-me, enquanto tentava
lembrar de como chegamos em casa. Minha última lembrança era a de
Lucah contando sobre seus problemas com Jow, e não consigo me recordar
de mais nada.
Sentando-me sobre o tapete, prendi os fios embaraçados de meu cabelo
em um coque. Franzi a sobrancelha com a claridade que entrava pelas
janelas, fazendo meus olhos doerem para se adaptarem. Notei que um de
meus pés jazia desnudo, sequer de meia, enquanto o outro ostentava o tênis.
Retirei o calçado, depois caminhei ainda cambaleante, seguindo o cheiro do
café até a cozinha.
— Acordou, “Margarida”? — Marta brincou, pousando uma xícara
branca fumegante de café a Lucah, que estava mordiscando uma fatia de
bolo, que, à primeira vista, parecia ser de milho.
— Nossa... — murmurei, caminhando ainda tonta até uma cadeira do
outro lado da mesa, pousando de maneira desastrada sobre ela. — Lucah...
Como a gente chegou em casa?
— Eu trouxe vocês — contou, de boca cheia. Estreitei os olhos,
notando que, pela primeira vez, ele estava vestido sem as roupas sociais.
Trajava uma bermuda florida vermelha e uma camiseta branca. — Eu não
bebi, né, Ana!
— Ah, é verdade! — reconheci, aceitando a caneca de café quentinho
que Marta me entregou.
— Come, minha filha. Tem bolinho de milho, o favorito do meu
bebezinho aqui! — contou, beijando a cabeça do filho. — Está fresquinho.
— Ai, Marta, estou enjoada. E não consigo me lembrar de nada após o
quarto shot de tequila... — contei, bebericando o café. — Acho que preciso
é de uma dipirona, um banho, e um sono de doze horas...
— Boa ideia... — Lucah disse, gargalhando. — Acho melhor começar
pelo banho, que cê vomitou meu carro todo ontem!
— Quê? — indaguei, realmente notando o cheiro azedo escapando do
meu macaquinho.
— Querida, você não lembra de nadinha? — ele indagou, parecendo
confuso.
— Estou te dizendo... A última coisa que me recordo é de virar a
quarta dose de tequila.
— Bom, basicamente o Jonas ficou louco primeiro, começou a cantar
na frente dos cantores, já você e Luana resolveram que seria interessante
pegar o microfone. Nem preciso continuar, né? — contou, fazendo Marta
gargalhar, enquanto balançava a cabeça. — Aí a gente foi gentilmente
convidado a se retirar do barzinho...
— Não?! — perguntei, chocada, encarando o semblante de animação
dele, parecendo narrar uma aventura.
— Sim, querida! Vocês estavam doidos! E, para piorar a noite, tu veio
vomitando meu carro inteiro...
— Eu só vi a parte em que você e Luana estavam competindo quem
conseguia chegar no tapete primeiro... engatinhando! — Marta contou,
ficando vermelha ao rir.
— Céus! Eu não posso beber... — murmurei.
Após descobrir a humilhação da noite anterior, tomei banho e passei o
dia inteiro dormindo. Quando finalmente recuperei um pouco de minha
dignidade, resolvendo ir caçar uma janta, e a cena que vi deixou meu
coração quentinho: Marta, Jonas, Lucah e Luana estavam sentados ao redor
da sala, comendo pipoca, tomando refrigerante e sorrindo. O olhar da minha
sogra para o filho mais velho era de tanto amor, que chegava a brilhar.
Jonas estava com as costas pousadas no peito do namorado, enrolado
em uma manta felpuda, afinal, uma frente fria chegara à cidade e prometia
ficar por mais uma semana. Me larguei ao lado de Luana, em uma das
poltronas cinza.
— Ana, ainda bem que chegou, estou contando aos meninos que criei
um perfil no Tinder — Marta disse, sorrindo ao exibir o telefone. — Agora
vai, finalmente encontrarei uma paquera.
— Dona Marta, vou ficar preocupado... — Lucah disse, coçando a
cabeça, lembrando-me imediatamente de Josiah, que costumava fazer a
mesma coisa quando estava nervoso. — Tem que tomar cuidado com essas
coisas de Internet, mãe...
— Ai, mô, deixa ela! — Jonas ralhou.
Ficamos horas vendo os pretendentes que surgiam para Marta no
aplicativo, enquanto ríamos. Não sei nem como terminamos a noite ouvindo
Katy Perry e dançando no tapete da sala, com a playlist tocando na TV. Foi
divertido ver Lucah dançando, descontraído, encostando as costas no peito
do namorado e fazendo de conta que o controle da televisão era um
microfone. Ele sabia todas as músicas e parecia tão feliz... Até Marta ficou
com a gente, rindo e fingindo conhecer as músicas.
Quando acordei na manhã seguinte, recebi um telefonema do Jow
dizendo que me amava, e que novamente não poderia vir na próxima
semana. Fiquei triste, porque estava morrendo de saudades e queria beijá-lo,
sentir seu cheiro, dormir agarrada a ele... Mas entendia que às vezes era
difícil Josiah conseguir vir, porque sua rotina naquela escola era exaustiva.
Lembro de inquirir Marta sobre o que o pai de Josiah usara para o
obrigar a assumir aquela carreira. Nem ela sabia, e meu namorado, turrão
que só, sempre se recusava a responder nossos interrogatórios.
A semana passou voando, enquanto eu organizava minha rotina, entre
os estudos da faculdade, a carreira de escritora, meus afazeres domésticos,
saídas com Isabela... Minha amiga estava sendo bem cabeça dura, pois,
quando contei a ela sobre as coisas do Lucah, Isabela emburrou e disse que
não era porque ele era gay que mudaria o fato do que Josiah viu sobre ele
em seu computador. Repeti duas vezes a Isa sobre os argumentos do meu
cunhado, e mesmo assim a minha amiga disse que preferia a versão do Jow,
até que se provasse o contrário.
Estava ajudando minha sogra no preparo da janta, cortando tomates
para a salada, quanto me veio a convicção de que eu precisava conversar
com o Josiah sobre tudo o que aconteceu. Eu contaria tudo ao meu
namorado, como foi o fim de semana, e ele precisaria entender que Lucah
era um cara legal comigo, respeitoso, que ele precisaria separar as coisas.
Era impossível para mim ter a mesma visão que meu namorado sobre seu
irmão. E ainda tinha o Jonas, que era muito divertido e aprendi a gostar da
companhia.
Minha sogra sentia falta do Josiah, mas estava aproveitando os
momentos para poder ter o Lucah por perto, afinal, naquela noite, ele viria
com o namorado para o jantar. E por isso preparamos uma mesa posta linda
em tons de amarelo, além de Marta ter feito um bobó de camarão delicioso.
A surpresa da noite foi Jonas ter faltado a confraternização, porque teve que
trocar o turno no trabalho, pois era enfermeiro.
A noite estava fria, com o céu parecendo carrancudo ao desaguar
impiedosamente sobre a cidade. Luana, eu, minha sogra e o filho ficamos
conversando nos fundos do quintal, tomando chocolate quente e falando
sobre a vida.
— Eu amava tomar banho de chuva! — Marta disse, em dado
momento. — Josiah, então, quando era menino, eu tinha que lhe dar umas
palmadas, pois corria para fora durante a chuva, e volta e meia terminava
resfriado.
— Era mesmo... — Lucah concordou, sorrindo, fazendo pequenas
rugas surgirem nos cantos dos olhos. — Jow perambulava pela chuva, com
os pezinhos descalços, sujando-os e depois espalhando lama pela casa. Eu
tinha que pegá-lo no colo, para evitar que meu pai o visse e lhe punisse...
E todos os sorrisos cessaram quando Lucah disse aquilo. Notei seus
olhos marejando, e Marta imediatamente respirou fundo. Olhei para a
caneca branca fumegante em meu colo, pensando no meu namorado, que
fora tão maltratado por aquele pai cruel, desgraçado!
— Podíamos tomar um banho de chuva agora... — Marta sugeriu,
fazendo com que trocássemos olhares.
— Nesse frio? — Luana indagou, mas, vendo que Lucah e eu
estávamos considerando a hipótese, deu de ombros. — Ok, vou colocar um
biquíni, porque não vou molhar minha roupinha, né...
E, dando-nos as costas, minha amiga entrou saltitando na casa. Marta e
eu decidimos seguir a ideia da Lu, e, depois, corremos em grupo para a
chuva. Me senti literalmente uma criança, rodando enquanto a água
percorria o meu corpo. Era incrível o quanto a chuva podia ser revigorante.
Estava frio, e a água gelada escorria, ensopando o meu biquíni branco,
além do resto do meu corpo. Eu sentia as gotículas pousando em meu rosto
e sorria. Encarei a Marta, enquanto a via anestesiada, de braços abertos com
um maiô vermelho, com a maquiagem borrada, enquanto sorria e olhava
para o céu. Lucah a sacudiu, abraçando-a pelas costas.
— Você é a mãe mais maneira que alguém poderia ter! — ele disse,
girando-a em uma volta, como se estivessem dançando.
E aquele momento, com Lu, Marta e meu cunhado, enquanto
dançávamos na chuva, fez me sentir feliz. Feliz de verdade, como quando
era criança, antes de tudo desabar em minhas costas.
Entramos correndo na casa, molhando a varanda ao buscarmos toalhas
para enrolar no corpo. Me joguei sobre o estofado de quintal, com o coração
batendo forte de animação enquanto minha sogra pousava delicadamente ao
meu lado, e depois envolvia minha mão direita na sua, dando-me um sorriso
de satisfação.
Terminamos a noite tomando vinho, sem termos preocupação com
trocar a roupa molhada. Nem contei quantas garrafas foram viradas naquele
momento. Mas estava tudo tão perfeito, tão... silencioso na minha cabeça.
Não havia vozes intrusas, sentimentos depressivos, não havia nada além da
sensação de plenitude. Observei Luana contando sobre o seu primeiro
namorado, sobre suas primeiras aventuras sexuais, nos causando
gargalhadas absurdas pela maneira como tinha sido um desastre.
Quando finalmente fui para o quarto, resolvi tomar um banho, depois
coloquei uma camiseta e uma calcinha, jogando-me sobre a cama do Jow.
Fiquei deitada um bom tempo, encarando um porta-retrato ao lado da
cabeceira. Era um mosaico em preto e branco de nós dois em poses bobas,
com a língua para fora, fazendo caretas...
— Ana... — Lucah chamou, batendo na porta.
— Entra... — disse, procurando a coberta porque estava de calcinha,
mas ela estava bem em cima da escrivaninha, porque eu tinha trocado os
lençóis antes de me deitar.
Lucah notou meu embaraço e revirou os olhos:
— Querida, eu sou gay! Não tem nada aí que me interesse... — disse,
fazendo-me dar um leve sorriso. — Mas posso esperar lá fora até você se
vestir.
— Não, pode falar...
— Ah, só queria te mostrar um áudio do Jonas... Ele mandou um
recado para você.
Lucah se agachou ao lado da cama, soltando uma gravação do
WhatsApp:
“Ana, sua traidora... Quer dizer que vocês curtiram à beça a noite
sem mim, né? Vai ter que me compensar me colocando em um dos seus
livros e me tornando um cara riquíssimo, ou, quando eu morrer, vou
assombrar você!”.
Dei uma gargalhada. Era a segunda vez que Jonas dizia que era para eu
criar uma história onde ele era rico. Quando abri a boca para comentar com
Lucah, Josiah surgiu na soleira da porta, atirando um buquê de flores em
cima de mim e do irmão. Pisquei, assustada, ouvindo-o me xingar, antes de
avançar sobre o irmão.
Foram momentos terríveis, nos quais meu namorado entendeu tudo
completamente errado, acreditando que eu o havia traído com o irmão. Se
Bernardo não tivesse imobilizado o Josiah, provavelmente teria acontecido
uma tragédia. Afinal, Lucah estava sob efeitos do álcool, sequer conseguiu
se defender, cambaleando para fora, sangrando...
Me senti tão vulnerável diante da grosseria e do descontrole do Jow.
Enquanto pedia para que ficasse calmo, tentando esclarecer a situação,
explicar que havia entendido as coisas de uma maneira errada, tudo o que
eu sentia era que o meu namoro estava indo por água abaixo, que o meu
relacionamento estava chegando em um ponto que seria impossível
retornar. Não tinha como controlar aquela situação, porque o meu namorado
estava completamente convicto do que achava ter visto. Eu me senti
quebrando ao ver o homem que eu amava gritando que me pediria em
casamento, atirando a aliança com fúria sobre o meu corpo, depois me
segurando pelo rosto, me atingindo com xingamentos. Senti medo dele, tive
medo do homem a quem entreguei tudo o que restava de bom em mim. A
decepção gritava, revoltada dentro do meu corpo, e fiquei tão ultrajada que
o agredi com socos, tentando o fazer me soltar. Naquele momento, eu
desabei em lágrimas de fúria, decepção, raiva...
Bernardo estava lá, chocado ao encarar a cena, e cheguei a me
perguntar se meu amigo também achava que eu era uma traidora, se
acreditava que eu era uma puta que seria capaz de ter um caso com o meu
cunhado. Senti tanta vergonha por ver que Marta e Luana também estavam
presenciando a minha humilhação.
Meu coração estava doendo, enquanto o apertão dele ao redor do meu
braço fazia com que me sentisse vulnerável. Estava tão triste e chocada, que
demorei a entender que ele gritava que eu iria sair da casa deles, que meu
namorado estava me expulsando de casa. Eu quis fincar os pés no chão e o
impedir, enquanto Luana se atirava contra o Jow, ansiando me defender.
Mas estava doendo tanto, eu estava tão dilacerada, que sequer consegui
reagir. Dentro de mim, a vontade de gritar contra aquela injustiça era
enorme, mas, ao mesmo tempo, me sentia tão humilhada com o fato de ele
sequer me conhecer como imaginei. Fazia com que eu me sentisse tão
ultrajada, que vi que Josiah não merecia o esforço de uma explicação.
Era tão estranho ver tanta raiva escapando dos poros dele, tanta fúria
destinada a mim vindo do homem que sempre me dedicou amor e cuidado...
Eu não tive chance, nem vontade de explicar as coisas, porque Josiah
estava transtornado e terminou o nosso relacionamento comigo de calcinha
e no meio da rua, onde ele me atirou, me desequilibrando e quase me
derrubando. Meu coração se fragmentou em milhares de pedaços, e senti o
mundo me engolindo, mas me obriguei a ser forte quando Marta me
abraçou, murmurando algo que, por estar nervosa e assustada, não ouvi,
enquanto me guiava para dentro da casa. Eu percebia os vizinhos me
olhando através das janelas ao redor da rua, e as lágrimas escorriam por
minha face, misturando-se à chuva.
E, nada, nada poderia me fazer ter vontade de ir atrás dele para
esclarecer as coisas. Josiah agiu de um jeito cruel comigo, e de maneira
injusta. O homem que eu amava disse que estava tudo acabado... E estava
mesmo!
Capítulo 21
Ana Oliveira
Dias atuais...
Ana Oliveira
Dias atuais...
Você grita alto, mas não consigo ouvir uma palavra que você diz
Eu estou falando alto, sem dizer muito
Sou criticada, mas as suas balas ricocheteiam
Você me derruba, mas eu me levanto
Titanium - David Guetta feat. Sia
Ana Oliveira
Há quatro anos...
Josiah Marquez
Dias atuais...
Agora, o dia sangra ao anoitecer e você não está aqui para me ajudar
nisso tudo. Eu abaixei minha guarda e você puxou o tapete
Eu estava me acostumando a ser alguém que você amava
Someone You Loved - Lewis Capaldi
Ana Oliveira
Há três anos...
Ana Oliveira
Há dois anos e meio...
Ana Oliveira
Dias atuais...
— Amiga, tem certeza de que a sua avó não mandou construir esse
lugar só para você finalmente ir correr atrás do seu sonho de ser cantora? —
questionei, com a boca aberta de tão assustada. Pelo anúncio, a faculdade
parecia desenhada para ela. — Esse lugar é a sua cara!
— É, confesso que fiquei tentada.
— Então...
Antes que eu pudesse concluir o meu raciocínio, uma chamada do
Josiah me fez começar a tremer. Céus! Fiquei encarando o telefone que
chacoalhava entre os meus dedos. Afastei uma mecha do cabelo que
escapara do rabo de cavalo e pousara na frente do meu olho. Acertei meus
seios sobre o sutiã, visto que um quase escapava pelo decote rendado da
blusa de cetim rosa claro. Após o leite dos meus seios secar, eles ficaram
parecendo geleias.
— Atende, mulher — Isabela aconselhou, abrindo a palma da mão
para cima, apontando o telefone.
— Oi, Jow! — sussurrei, sentindo que meu coração explodiria de tanto
que batia forte. Será que ele finalmente diria o que eu estava esperando?
Mas o que ouvi em seguida fez meu coração se espatifar, quebrar em tantos
pedaços, que seria impossível contar.
— Ele se foi, Docinho! — Josiah choramingou, fazendo eu me sentir a
Alice, caindo por um buraco fundo e sombrio. — Ele se foi... Por favor, me
ajuda, eu... não estou aguentando — Soluçou, me deixando ainda mais
destroçada.
Senti as lágrimas se acumulando e formando bolsas sobre os meus
olhos. Meu coração apertou tanto, que parecia que a dor queria esmagá-lo.
Meu olhar correu até Isabela, e imaginando a maneira como ela também
sofreria, que também sairia quebrada, desabei em lágrimas. Ber! Deus, por
quê? Por que tanto sofrimento?
O quanto de perda um ser humano podia aguentar?
Caralho!
Eu sentia cada célula do meu corpo carregando uma única coisa: dor.
Dor. Dor. Dor. Dor. Doooor... Mas eu precisava ser uma porra de mulher
forte, feita de titânio para não quebrar, porque agora tinha pessoas que eu
amava e que quebrariam. Eu já tinha sido refeita muitas vezes, já conhecia a
sensação de despedaçar. Agora eu tinha que segurar as pontas...
— Jow, você está em casa? Quem está aí com você e a Júlia? —
indaguei, vendo Isabela me encarando com os olhos arregalados, sentindo
que algo de errado tinha acontecido. Me levantei, deslizando o elástico para
fora dos fios, soltando-o do cabelo e alisando-os com as mãos tremendo e a
pressão começando a cair.
Josiah soluçava de maneira incessante do outro lado da linha, mas
tentava a todo custo conseguir falar, puxando a respiração, começando a
verbalizar as palavras, só para voltar a chorar na sequência. Por fim, após
um último soluço longo, respondeu:
— Harry e Bill... Mas eu preciso de você. Por favor, ele se foi, eu não
vou aguentar. Eu o perdi. Foi culpa minha! Ele estava indo embora porque
tinha brigado comigo, Ana. Ele mandou que eu parasse de beber, que fosse
ver algo com ele, então ficou bravo e foi embora. Ele morreu. E estava com
raiva e decepcionado comigo. Ana, por favor!
— Jow, vai ficar tudo bem. Pede ao Harry para trazer você e nossa
filha aqui, por favor — supliquei, mesmo sabendo que ele poderia jogar a
culpa daquilo em mim, que poderia pisotear os cacos do meu coração.
Mesmo assim eu ainda queria tentar confortá-lo de alguma maneira. Da
mesma forma que fizera por mim em diversos momentos. Pois éramos duas
pessoas destroçadas, arruinadas e quebradas, mas também éramos tudo o
que o outro precisava.
— Tá bem... Eu... Tá bem!
Josiah desligou o telefone. Queria desabar, queria me encher de
remédios e dormir para não sentir a avalanche que estava a caminho e me
soterraria. Mas não tinha opção que não fosse ser forte, porque, além de ser
mãe, eu tinha que segurar a garota quebrada à minha frente. A garota
machucada que só confiara cegamente em mim e no Bernardo. Agora, o
menino por quem ela passava noites no hospital rezando para que ficasse
bem tinha morrido.
Ele tinha partido.
— Isa... Vem cá! — chamei, abrindo os braços, me aproximando dela
para um abraço.
Deus, se está aí, me ajuda! Me ajuda a aguentar! Me segura! Me faz
ainda mais forte!
Confusa, a ruiva aceitou se aconchegar em meus braços, mas foi bem
rápido, porque ela percebeu o que eu ainda não estava tendo coragem de
verbalizar. Respirei fundo, segurando o meu próprio corpo, ordenando-o a
ficar firme. Ordenando que meus joelhos não cedessem. Isabela afastou
levemente a cabeça do meu ombro, inclinando-a para trás, tentando capturar
meus olhos em seu olhar, mas a apertei com mais força, e foi impossível
que minha amiga não entendesse os sinais. Foi aí que ela verbalizou sua
percepção:
— Não... Por favor, Ana. Me diz que não é o que estou pensando —
Isabela começou a gritar, apertando minha blusa em minhas costas e
puxando o tecido para longe da pele, se apoiando para não cair, chorando,
sentindo dor. — O Ber, é ele, não é? Ele morreu? — perguntou. Não
consegui dizer, porque falar aquilo em voz alta acabaria comigo. —
Responde, porra! — Me agarrou pelos ombros e me chacoalhou, com o
rosto escorrendo lágrimas incessantes, completamente vermelha. — Por
favor, amiga, por favor...
— Sim, Isa... Sim.
— Como... Ah, não! Meu Deus! — choramingou, deslizando pelo
tapete felpudo e rosa no chão, se apoiando ao pé da cama imensa e gritando.
Eu precisava dizer algo... Mas o medo de que aquilo tudo fosse culpa
minha estava rastejando pelo meu corpo feito uma cobra peçonhenta pronta
para dar o bote e destruir minha sanidade. Engoli o nó em minha garganta,
com os olhos muito abertos e o corpo inteiro arrepiado.
— Ana! — Isabela me encarou, depois arregalou os olhos. — Amiga,
não foi você. Não se culpa, por favor! — Isabela se levantou e se jogou
contra mim, me apertando entre os braços, me fazendo despencar sobre o
seu corpo e desabar. — Não pensa isso, porque eu sei que, se você aceitar
uma culpa assim, não vai aguentar. Olha para mim, olha, porra! — ela
ordenou, agarrando o meu rosto entre as mãos pequenas e chorando. — Eu
não posso perder você também, está ouvindo?
— Sim... Fica tranquila, Isabela. Lembra que eu sou mãe! Nunca vou
deixar a minha filha. Se acalma! — pedi, como se eu não estivesse quase
gritando de tão desesperada. Nossos olhos pairavam sobre o rosto uma da
outra, vidrados, encharcados com as lágrimas que eram resultado da dor
compartilhada pela pessoa em comum que acabávamos de perder. E a dor
em meu peito era pesada, sólida, e ver aquele sofrimento no olhar desolado
que Isabela dava a mim, me fez ter certeza de que o peso em seu peito era
exatamente igual.
— Cadê ela, mãe? — Josiah gritou, do lado de fora do quarto.
— Não se descontrole assim na frente da Júlia, filho... Fica calmo! Vai
ficar tudo bem. — Marta aconselhou, ao longe. Sua voz era um fiapo triste
e derrotado.
— Ana! — Josiah berrou.
Isabela saiu correndo do quarto, e, em um ímpeto natural, fui atrás dela
por me preocupar com o que minha amiga poderia fazer. Quando chegamos
à sala da casa, o recinto em tons tão claros parecia preso em escuridão,
porque os tons da dor eram assim, sombrios, tiravam o brilho das coisas.
Harry balançava Júlia em seu colo, caminhando para a cozinha,
provavelmente para tirá-la daquele ambiente caótico. Minha amiga saiu
correndo e parou diante do Bill, como se pensasse em se jogar em seus
braços, mas brigando consigo mesma antes disso. Não vi o que aconteceu a
seguir, porque Josiah veio rápido até mim. Eu o vi, com medo de que fosse
chegar como um rolo compressor fazendo com que me sentisse pior. Achei
que fosse gritar, que fosse me acusar, mas ele apenas se deixou cair de
joelhos diante do meu corpo, chorando, agarrando o meu quadril.
Girei os olhos até a Marta, que chorava, desolada. Ela encarava o filho
com tanto sofrimento no rosto. Sabia que minha sogra chorava por tudo,
pelo Ber, por ver o seu caçula sofrendo tanto, pela maneira como ele estava
mal.
Me abaixei diante do Josiah, ainda temendo suas palavras. Meu
coração estava sangrando, como se permanecer inteiro fosse uma luta. E eu
tinha muita dor morando em meu corpo naquele momento, mas eu a
segurava e a domava, me impedindo de fraquejar, de sofrer da maneira que
eu gostaria. Olhar para o homem que eu amava, ali, de joelhos, daquele
jeito, me fez sentir que eu conhecia exatamente aquela sensação. A
sensação de perder um irmão, de ser incapaz de salvar alguém que amamos.
Alisei o rosto dele, abraçando-o, beijando suas lágrimas, tentando não
chorar ainda mais. Rezando que meu coração fosse blindado, para que
estivesse preparado caso aquelas pessoas que eu tanto amava resolvessem
me culpar por aquela tragédia.
— Shhhh! — consolei, brigando com o lado do meu corpo que queria
sofrer em paz, que queria ser livre para viver a dor. — Vai ficar tudo bem,
meu amor. Eu sei que está doendo, acredite. Sei exatamente como está o seu
coração agora...
— Eu nem sei como ele ainda bate, Docinho... Como? —
choramingou, pousando a testa em meu ombro e soltando um longo soluço.
Josiah estava descalço, como se tivesse saído sem pensar em nada ao
vir para cá. Estava apenas com sua habitual blusa de mangas escuras e sua
calça preta, com o rosto muito vermelho e abatido. Estava um pouquinho
mais magro, com olheiras...
— Como aconteceu? — perguntei, segurando o rosto dele.
— Um trombo se desprendeu da perna e entupiu a veia do coração
dele. Não conseguiram conter a tempo... Eu o amava tanto, Ana. Tanto... —
choramingou — Coitado, ele não merecia isso.
— Ele também amava você, Josiah! — confortei, beijando as
bochechas dele. — Sinto muito!
Meu coração doía pelo Bernardo. Era doce, mesmo que após o meu
término com Josiah ele tivesse ficado bravo comigo e me afastado de sua
vida. Eu fiquei, sim, com mágoa, mas jamais seria capaz de fazer algo
contra o Ber. Eu não podia acreditar naquilo, porque, por mais que estivesse
descontrolada, eu não esqueci nenhum detalhe importante daquela noite.
Por que esqueceria o fato de ter batido em alguém? Se eu o tivesse feito,
teria lembrado, como lembrava dos outros acontecimentos daquele
momento.
— Fica tranquila, pois eu não vou culpar você. Depois... Quando... E
se... eu ficar bem, vamos conversar sobre isso. Agora, eu só quero os seus
braços, só me ajuda. Não quero te perder também — implorou. Aquelas
palavras foram no fundo da minha alma, e eu o abracei com tanta força,
unindo nossas lágrimas ao encostar sua bochecha na minha, que sentia que
precisava daquela pressão para que ele não escapasse de mim. — Me
perdoa... Só me faz ficar bem.
Fiquei abraçada a ele, de joelhos, por um bom tempo no tapete da sala,
sentindo o seu coração batendo freneticamente acima do meu próprio peito.
Assim que consegui que ele tomasse um banho e aceitasse um chá de
camomila, Marta pediu para conversar com o filho. Deixei os dois no
quarto dele e corri para fora. Eu corri chorando, porque precisava de ar, eu
precisava desabar. Eu me mantive de pé por todos aqueles momentos após a
descoberta da morte do nosso amigo, só porque eles precisavam de mim. Eu
sabia da minha inocência, mas uma insegurança horrível sussurrava em meu
ouvido que eles me culpavam, que achavam que tinha sido eu a responsável
pela perda do homem que todos nós amávamos. Sabia que eles acreditavam
que fui eu quem comecei todo aquele vendaval que nos roubara o Bernardo.
Caí de joelhos no quintal, gritando, deixando a dor sair a ponto de
minha garganta arder. Gritei por minutos a fio, deixando a dor que tentei
esconder rastejar por minhas cordas vocais.
Merda!
O Ber! Por quê, caralho?
Por que isso tinha que acontecer com ele? Por que a vida foi tão cruel
com alguém que tinha um coração de ouro? Ele amava tanto o Josiah, era
tão fiel a ele, que ficou magoado comigo por pensar que havia quebrado o
coração do seu irmão. Porque era isso que os dois eram: irmãos. Ele era
doce e... brilhava. E agora, tinha uma nova estrela no céu. Uma estrela que
certamente estaria mais acessa do que qualquer outra.
— Cuida do Ben por mim, Bernardo! — sussurrei, olhando para o céu.
— Ana... — Ouvi a voz do Harry atrás de mim, enxuguei as lágrimas
ao notar como a entonação da voz dele jazia distante do que costumava ser,
não havia o tom alegre e inabalável que me irritava. — Não sei se é o
momento mais tranquilo para falar isso, mas eu sempre soube que não foi
você que bateu no Bernardo.
Aceitei a mão que ele me ofertou para me erguer do chão, engolindo
em seco ao encarar o homem diante de mim. Ele tinha as mesmas cores da
roupa do Josiah em seus trajes, usando uma calça jogger com correntes na
lateral do quadril e uma regata simples.
— Aí, você não parecia bem, mas estava distante de onde Bernardo
caiu. Ele estava na esquina da rua e tinha vidro ao redor dele, cara. Eu falei
isso com o Josiah. Até perguntei para a sua amiga se não viu quem foi,
porque ela estava correndo para longe, assustada.
Meu coração saltou do peito, fazendo minha pressão cair tanto, que
Harry teve que me segurar. Meu Deus! Porraaaaa! Como eu não vi?! Como
deixei todos os sinais passarem bem embaixo do meu nariz? Como eu não
percebi?
Capítulo 28
Josiah Marquez
Dias atuais...
Eu percebi que nunca tinha de fato ido a um enterro, até ver meu
amigo dentro de um caixão. Nem precisei mudar as cores que sempre
estavam ao redor do meu corpo para aquele momento, preto era minha
tonalidade favorita. Mas nunca imaginei que ver tantas pessoas com aquela
cor pudesse me deixar triste. Eu estava derrotado, perdido em um mar de
sofrimento e dor. Estar ali, no cemitério, o mesmo onde Lucah fora
sepultado, me lembrava do dia em que soube que ele seria velado ali.
Quando o meu irmão morreu, até tentei ir ao seu enterro. Mesmo
detestando e tendo passado boa parte da vida brigado com o Lucah, eu...
fiquei triste ao descobrir que tinha morrido enquanto ia ao hospital assistir
ao parto da Júlia.
Eu estava bebendo, porque perguntei a Luana sobre quando seria a
previsão do parto da Júlia, e a desgraçada disse que não podia contar.
Estava revoltado por não poder sequer chegar perto da Ana naquela fase
final da gravidez, porque minha prima me disse que minha ex passava mal
só de me ver ao longe. Eu soube que Ana havia dado à luz e aquela
desgraçada da Lu me impediu de sequer entrar na maternidade, disse que
estava autorizada a chamar a polícia e o caralho.
Então veio a notícia da morte do Lucah. Mas, mesmo alcoolizado,
quando Harry, Bernardo e Bill se propuseram a ir comigo me despedir do
meu irmão, encontramos Luana na entrada do cemitério. Lembro como se
fosse hoje da imagem dela. Estava apática, sem emoção em um vestido
longo e escuro, os cabelos soltos... Seu semblante mudou ao nos ver,
parecendo se assombrar. Veio correndo até nós e disse que não era para
entrar, pois Ana estava de resguardo e debilitada, e que não queria minha
presença lá. Minha prima me contou até mesmo que Ana iria ficar com a
recém-nascida aqueles primeiros dias na casa da minha mãe, e que eu não
deveria ir lá importuná-la.
Respirei fundo, roendo as unhas enquanto estava ali na maldita capela
que cravava minha despedida do Bernardo. Roí o canto do indicador direito
até machucar e sentir a pele sangrar, percebendo o rosto quente das lágrimas
que rastejavam feito feras indomadas. Estava tão fraco, que meu corpo
parecia travar uma guerra para se manter de pé, enquanto as memórias
passadas recheavam a minha cabeça, doidas para se libertarem em minha
mente consciente...
Lembrei que fiquei muito puto quando minha prima me barrou logo na
entrada do cemitério quando eu tentava entrar para me despedir do meu
irmão, então voltei para casa e retomei a rotina destrutiva de beber e fumar
maconha. Nunca consegui entender por que Luana mentiu sobre minha ex,
me dizendo que ela ficaria na casa da Marta, sendo que minha mãe estava
com seu namorado, Henrique, viajando pela França. Não sabia se aquela
mentira havia sido a pedido da Ana, mas culminou em toda aquela merda
das caixas de som. Eu nunca teria feito aquilo se soubesse que minha filha e
Ana estavam lá. E, sem poder me despedir do meu irmão, continuei a fazer
as merdas que já conhecia para aliviar a cabeça: fumar e beber, respeitando
o que “supostamente” era um desejo da Ana. Meu coração sangrava por
sequer ter conseguido ver o rostinho da bebê que também era minha.
Eu sentia bem no fundo da minha alma que eu era o pai daquela
criança, que era o meu DNA que corria no corpo daquele bebê. Era uma
intuição inexplicável, e ninguém conseguia colocar o contrário em minha
cabeça, nem mesmo os gritos enfurecidos de Ana de que a neném não era
minha filha.
Voltando ao presente, me aproximei e fiquei parado diante do caixão,
ora afastando as memórias intrusas, ora observando o meu amigo em uma
“mortalha”, com seus cabelos negros e lustrosos perfeitamente alinhados,
seu semblante sereno. Por mais que eu não quisesse perdê-lo, que meu
coração estivesse despedaçado, que parecesse que tinham arrancado um
membro do meu próprio corpo, entendia que aquilo era um descanso para o
Bernardo. Meu amigo finalmente estava partindo daquela existência onde
não conseguia interagir com o mundo, e eu tinha certeza de que, se
houvesse um local destinado às pessoas que eram genuinamente lindas de
coração, a alma do Ber estava lá... Brilhando, como a estrela que ele era.
Ber esteve comigo em todas as horas. Lembro que, quando me separei
da Ana, fiquei muito mal e acabei entrando em depressão. Ficava horas
chorando e reparando em cada pedacinho lindo do sorriso dela retratado em
suas fotos, relendo as cartinhas apaixonadas que me enviava quando eu
estava longe de casa. Para tentar me fazer melhorar, meu amigo propôs que
usássemos nossas folgas para viajar. E, assim, eu fui tentando esquecer a
Ana. Com mulheres, bebidas e baseados, saindo com nossos novos amigos,
e até Isabela, que era muito amiga do Ber e se convidava para o nosso meio.
Eu tentava blindar o meu coração para não pensar em desistir. Porque,
mesmo quando terminei com a mulher da minha vida, continuei minha
rotina exaustiva naquele purgatório que era a carreira militar. Eu segui em
frente para salvá-la das mãos do meu pai. Mesmo com o coração partido, eu
ainda a amava. Nunca consegui deixar de sentir tanto...De querer tanto...E
meu amigo via aquilo. Bernardo ficava muito preocupado com a maneira
como eu estava fraco e abalado, e sempre tentava fazer com que me sentisse
melhor.
Desviando das memórias insistentes e intrusas, me afastei um pouco,
olhando ao redor e buscando a minha deusa de cabelos castanhos, a mulher
maravilhosa que mesmo que tivesse me dado um ultimato e “terminado”
comigo, ainda tinha gemido embaixo de mim a noite passada inteira para
que nos sentíssemos melhor, me dando a fuga perfeita para os pensamentos
que gritavam e arranhavam a minha mente. Era a deusa que tinha me
beijado na boca em meio às nossas lágrimas, até que pegássemos no sono
por exaustão. A mulher empática e que esfregava em meu rosto a
compaixão que era capaz de me dar, mesmo que eu houvesse negado aquilo
a ela. Seus olhos, molhados e vermelhos, encontraram os meus. Mesmo
devastada, Docinho ainda exibia sua força. Ana estava do outro lado da
capela de paredes azuladas, sentada em um banquinho e amparando Isabela
em seus braços, beijando a cabeça da nossa amiga, que chorava de maneira
desolada com as costas contra o peito da minha mulher. Isa tinha se
apegado muito ao Ber, afinal, quem não se apegaria a um homem tão
divertido e inteligente como ele?
Apertei os lábios, choramingando ao lembrar que foi Bernardo quem
planejou nossa expulsão do exército, ao perceber que já não estávamos
aguentando seguir em frente após sermos diplomados. Ele sabia que eu
tinha um pendrive onde copiei todas os dados do computador do Lucah, e
nele havia um verdadeiro dossiê com informações sobre o superfaturamento
de obras públicas praticado por Cristian e uma série de empresas de
construção. Ou seja, seríamos os mais insubordinados possíveis para sermos
expulsos, depois eu chantagearia o meu pai para que me deixasse
finalmente em paz. Só pedir para sair da corporação não adiantaria, porque
não me mancharia o suficiente para que o meu pai largasse do meu pé. E eu
queria sujar os planos do meu amado paizinho. Por isso, passamos a não
bater continência, a andar sem a vestimenta obrigatória, e, quando tomamos
uma surra dos nossos superiores e fomos para a prisão do exército por conta
daquilo, Bill deu um soco no olho de um deles e foi imediatamente expulso.
Passamos a ser vistos com maus olhos. Planejaram nos expulsar também,
mas Cristian resolveu molhar a mão de algumas pessoas, assim Harry,
Bernardo e eu fomos reformados por “insanidade”. Meu pai literalmente
ficou azul ao ver tudo que eu tinha contra ele, eu possuía até os contatos dos
jornalistas que dedicavam a carreira a denunciar políticos corruptos. E deu
certo, Cristian ficou mansinho por um bom tempo. Bernardo era um
gênio...
Só que a maneira como conduzi as coisas após termos nos reformado
chateou o meu amigo. A suposta traição ferrou com a minha cabeça,
disparou os gatilhos das memórias da infidelidade que minha mãe
experimentou vinda do Cristian. Eu odiava pessoas infiéis, e ter acreditado
por tanto tempo que Ana tivesse ficado com o meu irmão me enlouqueceu.
Eu soube pela Luana que Lucah estava morando na casa da Ana.
Enfurecido e enciumado, comprei o terreno ao lado da casa dela para
construir o meu estúdio de tatuagem, porém acabei comendo a Ana
enquanto estávamos os dois podres de bêbados, e Docinho acabou grávida.
Todos os meus planos mudaram quando eu a vi com aquela barriguinha... E
decidi construir também a minha casa. Eu queria migalhas dela, migalhas
da filha que nasceria e a mãe havia deixado claro que não pretendia me
deixar chegar perto. Bernardo ficou enfurecido com minhas atitudes. Queria
que eu seguisse em frente longe da Ana e brigasse na justiça para conviver
com a minha filha... Mas ele não entendia. Como eu faria aquilo com a
mulher que amava? Brigar com ela pela criança poderia a fazer surtar. Ela
já não tinha ninguém... Não podia.
Eu não pretendia tocar o terror para cima da Ana, ia viver minha vida e
apenas me manter nas sombras, inclusive uma vez parei o Lucah no
condomínio. Falei com ele numa boa após saber da gravidez da Ana,
perguntei o que ele tinha com ela, se eram ou não um casal. Lucah me
chamou de otário. Como foi mesmo que disse? “Não tenho culpa se você
não soube ser o suficiente, se sua mulher preferiu correr para mim”.
Depois Ana não entendia a razão de eu ter tanta mágoa daquele... do meu
irmão. Por que ele disse aquilo se não tinha nada com ela? Se era namorado
do Jonas? Lucah sentia prazer em me ferir, aquilo era um fato.
Me aproximei do caixão, dando um longo soluço que fez meu peito
inteiro tremer e o corpo chacoalhar. Ergui meu braço direito de maneira
trêmula e insegura e o guiei até segurar sua mão gelada por baixo da
camada de flores brancas que o envolvia inteiro, e que deixava apenas a sua
face à mostra, sentindo meu rosto quente, minha respiração pesada e a
maneira como era difícil sustentar o peso do meu corpo. Aquela seria a
última vez que o tocaria, que sentiria sua mão. Aquela seria a última
memória de sua imagem em minha mente.
Por quê?
Por que isso foi acontecer com ele?
O meu sangue estava quente em meu corpo, enquanto o sofrimento
dilacerante de estacas cravadas em meu peito quase me fazia ficar sem ar,
saindo em forma de soluços descontrolados de um choro desesperador. Era
uma sensação tão grande de impotência diante da vida, tanta... dor.
A maneira como eu me culpava era muito pesada. Vozes sussurravam
em minha cabeça sobre eu ter sido um amigo de merda, sobre como fui
idiota e dei mais vazão a minha dor do que as outras pessoas ao meu redor.
Bernardo tinha invadido a minha casa, porque ele queria conversar sobre
alguma coisa. Eu estava bebendo desde que chegara em casa... Ber queria
que eu parasse e fosse com ele resolver alguma coisa, mas eu não consegui
entender o que meu amigo estava dizendo, porque ele falava alto sobre
alguma foto, algo que tinha visto sobre alguém.
Eu estava chateado naquele dia, com o coração dilacerado, porque meu
irmão havia morrido e eu deixei as mágoas de lado para ir me despedir, mas
não pude dar o último adeus. Queria só ficar com o barulho das melodias,
porque Ana supostamente estava na Marta, e eu podia ficar com o som alto.
A música nas alturas diminuía o barulho dos pensamentos de culpa que
agrediam a minha cabeça, que cravavam as garras da agonia em meu corpo.
Se eu tivesse ido até ele, teria impedido que quem quer que fosse tivesse o
agredido.
Acabei ficando realmente instável após o acidente do Bernardo. Eu
sentia que tinha perdido tudo, e o que Luana me disse sobre a Ana estar em
cima do corpo desfalecido do Ber piorava o barulho em minha cabeça.
Cheguei a achar por um tempo que foi a Luana, afinal, Harry a viu
correndo por lá após o acidente com o Bernardo. Eu quase dei uns tapas
nela, quase mesmo, quando a coloquei contra a parede para explicar melhor
aquilo tudo. Luana disse que sequer tinha encontrado com o Bernardo antes
de o ver caído. Que só estava indo ver se Ana estava bem porque acabara de
descobrir que Marta estava viajando e a minha ex-namorada tinha mentido
para ela para poder ficar sozinha. Luana contou que, ao chegar à esquina da
minha casa, viu Bernardo caído e a Ana parada diante dele, segurando um
pé de cabra, e que depois subiu na caçamba da picape para destruir o som.
Luana contou que havia saído correndo para pegar o carro da Marta com o
intuito de levá-lo ao hospital, quando esbarrou com Harry. Ela pediu minha
palavra de homem de que não contaria a Ana sobre aquelas coisas, então
me mantive em silêncio. Mas eu teria que contar a minha mulher sobre
todos os nossos desencontros, e, na hora certa em que decidíssemos tocar
em nossas dores para realmente perdoar cada uma delas, expostos diante
um do outro, eu falaria tudo a ela, inclusive sobre a acusação da minha
prima. Sempre achei que, se contasse a Ana sobre a certeza de que Luana
me deu de tê-la visto com o Ber, minha Docinho se partiria inteira. E
mesmo na hora da raiva, em que queria gritar a ela sobre aquele
testemunho, eu ainda desistia pelo medo do que aquilo causaria nela. Às
vezes, durante meus picos de raiva, acusações escapuliam da minha boca,
mas a maneira como o rosto dela se partia em dor sempre me travava de
falar da certeza que Luana dera sobre o que viu. Eu não teria desconfiado da
Ana, não se Luana não tivesse dito aquelas coisas... Foi minha prima quem
girou aquela chave em minha mente, lembrando-me de que Ana estava com
um pé de cabra na mão... Mas aquilo não explicava os estilhaços de vidro
sobre o ferimento na cabeça do Bernardo.
Foda! Ninguém viu nada naquela merda de condomínio. Dona Helena
sabia fofocas da rua inteira, mas, como ela estava com a Júlia em sua casa
enquanto Ana chegava ao limite e destruía o som, ela não estava vigiando a
rua... As casas da esquina não tinham câmeras, não havia nada que pudesse
nos dar uma pista do que aconteceu de fato ao Bernardo. Somente dois
elementos estavam lá... Luana e Ana.
Isabela estava na minha casa, me julgando com uma carranca enquanto
eu me embriagava. Não tinha como ter sido ela, porque só foi para fora da
casa depois de mim.
Encarei novamente o Bernardo, pensando em como ele morrera e
levara consigo a verdade sobre tudo aquilo...
Ele morreu...
E estava levando com ele um pedaço meu. Eu estava sofrendo, porque,
dentro do meu coração sombrio, ainda havia uma pequena chama de
esperança que gostava de acreditar que... talvez... um dia ele acordasse.
Me aproximei do seu ouvido, sentindo uma dor tão forte em meu peito,
que me fazia duvidar de que eu fosse capaz de conseguir continuar vivo. Eu
o amava tanto... Então, sentindo que estava na hora, sussurrei minha
despedida:
“O dia mais feliz da minha infância foi quando um menino tagarela
sentou ao meu lado na sala de aula, me encarando sob os olhos mais azuis
que já vi na vida. Quando um garoto que eu julguei um intrometido não
teve medo da minha armadura de criança revoltada e quebrou os meus
escudos com sua simpatia. O dia mais feliz do Josiah criança foi quando
uma estrela resolveu iluminar o meu caos. Você foi minha lanterna, Ber. E
vou te amar para sempre, meu amigo. Agora descanse. Quem sabe, daqui a
muitos anos, a gente se reencontre”.
Soltei sua mão e deixei um beijo em sua testa, sentindo os meus lábios
gelarem pelo contato com sua pele inanimada, tendo certeza de que ele já
não estava mais ali. Era a última vez que o veria, a última imagem dele que
ficaria congelada em cada célula do meu corpo.
Puta que pariu!
Como doía...
Era dilacerante perder alguém que tanto amava.
Alguém bom.
Alguém que não merecia sofrer, que não merecia aquele destino, uma
pessoa que só trazia luz e sorrisos...
Alguém com quem dividi todas as partes boas que ainda existiam em
mim, que me entendia e que me amava de volta.
Um amigo de verdade, que virava um leão para me defender, que
tomava minhas dores para si.
Alguém que estava partindo antes da hora, que viveu a vida
intensamente ao meu lado, sendo o homem mais forte que poderia ser,
destemido, corajoso, decidido... Ainda assim, tinha muitas coisas mais que
merecia ver, que merecia viver, que merecia ter conquistado. Ele sequer
chegou a ter um amor em sua vida, a sentir seu coração bater fora do peito
por outra pessoa.
Ah... Ber! Por que isso foi acontecer com você, meu amigo? Por quê?
Segurei o meu coração, a dor, a maneira como aquela despedida o
despedaçava em milhares de partes.
Milhares de fragmentos de momentos com ele rodopiavam em minha
cabeça. Imagem dos olhos azuis dançando e brilhando quando foi elogiado
por ter tido a destreza de prover o alimento em nosso primeiro
acampamento no treinamento do exército, a maneira como fazia piadas e
arrancava sorrisos de todos ao redor, suas dancinhas, seus apelidos
melosos...
Meu melhor amigo partiu e arrancou um pedaço do meu coração que
seria para sempre soterrado junto ao seu corpo, um pedaço que nunca mais
seria refeito.
Subitamente entendi a Ana, seu desespero e ânsia de acabar com a dor
que às vezes varria seu interior. Perder alguém para a morte era como ter
um membro amputado, a porra de um pedaço do corpo arrancado de
maneira compulsória. Era um sentimento que me enfraquecia, que fazia
uma dor dilacerante se apoderar, que me fazia sentir que seria impossível
continuar vivendo, que trazia a dúvida de se era possível sorrir depois
daquilo. Era como se todas as cores da vida desbotassem, como se as
estações do ano sumissem, e um mar de cinzas dançasse e me soterrasse...
Era como se o sangue do meu corpo esfriasse tanto, a ponto de doer.
E como ser feliz depois de tudo? Existe felicidade possível?
“Deus, pode me dar algo que amenize a dor?
Pode me... amortecer da queda?
Deus, pode me... tornar um homem mais forte do que o pedaço de
vidro pronto para quebrar que me sinto?”, sussurrei.
A verdade é que o luto era uma dor horrível, e invejava a força da
minha mulher. Como alguém podia aguentar todas aquelas mortes e
continuar de pé?
Eu não ficaria para ver o sepultamento, porque seria doloroso demais.
Meu peito sangrava ao olhar ao redor, procurando a minha Ana, mas acabei
vendo Isabela correndo aos prantos para fora, deixando seu esvoaçante
vestido preto balançar ao vento enquanto partia, soluçando. Eu sabia o que
ela estava sentindo, tinha noção da dor esmagadora que a percorria, que a
fazia sentir que viver sem uma parte sua poderia ser impossível.
Busquei a minha mulher novamente, mas ela já não estava dentro da
capela.
Só queria ir para casa e ver minha filha, aquele pequeno serzinho que
me trazia a enorme sensação de ser completo, que poderia amenizar o
buraco imenso em meu coração, a criança que era capaz de pisar em um
terreno cinza e o transformar inteiro, inundando tudo com as cores mais
lindas e vibrantes possíveis.
Caminhei para fora da pequena capela com teto colonial de madeira,
passeando entre as pessoas chorosas ao redor do corpo sendo velado, e vi
Leda sentada sobre um banco de alvenaria próximo à entrada. Ela
lamentava, entregue as lágrimas, com um terço de madeira em uma mão e
um lenço branco sobre o nariz ossudo e longo. Pousei a mão sobre o seu
ombro esquálido, deixando uma lágrima percorrer o meu nariz e cair ao
murmurar um “fica bem”.
Quando cheguei ao lado de fora, Ana falava com Harry, e meu amigo
contava algo a ela, fazendo-a chorar sem parar. Imaginei que ele a estivesse
reconfortando sobre sua sensação de culpa, ou o medo de que a culpassem
por aquilo.
Eu tive um mês e duas semanas para pensar sobre tudo, e meu pedido
de perdão a Ana seria também por ter sido injusto em minha acusação.
Ninguém acreditava que ela tinha feito aquilo ao Ber, nem Leda, nem meus
amigos ou minha mãe... Talvez apenas a Lu, que sempre alimentara aquela
incerteza em minha cabeça. Ela foi quem disse para que eu jamais
questionasse a Ana sobre o que contou, porque dizia amar tanto minha
Docinho, que sofreria pelo remorso que corroeria a mãe da minha filha.
Mesmo com aquela informação que Luana dera, divaguei muito sobre
todas aquelas coisas, e entendi que eu não vi Ana fazer nada, então como a
condenar por minha incerteza? Por que condenar a minha mulher e
inocentar a Lu, que também estava na cena do crime?
Ninguém viu o que aconteceu com o Ber, nem mesmo podia acusar
minha prima, porque também não vi. Eu não testemunhei a agressão ao meu
amigo que culminara em sua morte. Decidi que não acusaria mais ninguém.
Eu fui um precipitado... Percebi minha injustiça em todos os dias desse
último mês, planejando como implorar que a Ana me perdoasse por aquilo,
mas aí o Bernardo morreu.
Na hora certa, eu conversaria com ela, me humilharia se fosse
necessário... O que precisasse fazer para que Ana me perdoasse, eu faria. E,
se decidisse que não me queria mais, não me restaria nada diferente de
aceitação. Faria o que a mulher que eu amava quisesse e me esforçaria para
não a perder. Mas se a mãe da minha filha dissesse que o caminho para nós
dois seria realmente um término, eu a deixaria seguir em frente de maneira
definitiva.
Estava torcendo que, quando estivesse bem o suficiente para conversar
com ela, Ana ainda estivesse de abraços abertos para mim, pois me jogaria
neles e não os soltaria mais.
Capítulo 29
Ana Oliveira
Dias atuais...
Achei que meu coração já tivesse se partido tantas vezes, que seria
impossível que alguma coisa ainda o pudesse quebrar, mas tinha pedaços
intactos para suportar mais pancadas. E foi o que aconteceu. Bernardo
morreu e despedaçou um pouco a cada um de nós.
Eu tive tanto medo de vir ao enterro, que quase desisti. Mas Josiah
agarrou minha mão como se estivesse se sustentando com o meu corpo,
como se não fosse uma opção eu não ir à despedida. Um pavor absurdo
varreu o meu corpo ao encarar Leda, sentada sobre um banco a poucos
metros de Isabela e eu. Sequer tive coragem de me aproximar da mãe do
Bernardo, de... dizer algo, uma mínima palavra de conforto. Tinha um
fantasma cruel chamado Culpa me infernizando, me fazendo temer a reação
das pessoas, o julgamento. Eu sabia da minha inocência e já até nomeava o
verdadeiro assassino, mas quantas pessoas realmente acreditavam nela?
Eu juro que implorei muito a Deus que não tivesse mais que entrar em
um cemitério, que não tivesse mais que encarar uma pessoa que eu amava
partindo. Mas sabia que era um desejo tolo, pessoas morriam, e era um
efeito colateral, um ato indomável da vida. Fiquei observando Josiah
debruçado sobre o corpo do amigo. Era tanto sofrimento ver o meu amor
ali, soluçando, desolado. O rosto dele exibia tanta dor.
Eu conhecia a perda como ninguém. Era a sensação de que um vento
absurdamente forte percorreu a vida, bagunçando, tirando tudo do lugar,
arrancando pessoas que amávamos sem qualquer aviso, sem qualquer
chance de despedida. Você se sente injustiçado, com saudade, revoltado
com a impotência diante da morte. Porque a morte é uma força
incontrolável... Não tem como remediar, não tem como prever.
Eu poderia definir o luto como uma devastação. Como uma força
pesada que chega e acaba com o brilho, com a luz, com a esperança. E não
existe nada, absolutamente nada que possa trazer qualquer conforto quando
se trata de perder alguém. As coisas podem atenuar, mas nada jamais
poderá confortar a perda de uma pessoa. Porque pessoas são singulares, e
Bernardo era alguém muito singular e insubstituível.
Meu coração estava apertado, e me sustentei em toda a força que
restava em mim para travar os pensamentos automáticos de culpa que
insistiam em surgir, dizendo que causei meu afastamento do Ber quando
não desfiz os maus entendidos. Quando deixei meu orgulho reinar, quando
não o procurei para gritar que fora injustiçada. Eu mantive a barreira entre
nós dois erguida, e sequer consegui me lembrar de quando foi a última vez
que o vi.
Me senti despedaçada ao perceber o quanto de coisas poderiam ter sido
evitadas com uma simples conversa. Quantos vilões teriam sido
desmascarados com o simples ato de reunir todo mundo e “lavar a roupa
suja”? Quanta dor teria sido evitada se o orgulho fosse abandonado e eu
apenas procurasse as pessoas e contasse a minha versão?
Deixei uma lágrima rolar, contendo os pensamentos, enquanto vi
Isabela correr para fora da capela. Ela estava nervosa demais, se tremendo
inteira, e estava comendo doces desenfreadamente desde ontem, a ponto de
ficar com uma enorme enxaqueca. Nem as aspirinas que dei a ela estavam
ajudando com a dor. Sabia que Bill a conteria lá fora. Ele estava o tempo
todo de olho na Isa sobre a soleira da porta, e havia combinado comigo de
levá-la para casa e não deixá-la sozinha de jeito algum. E quando ele
acenou com a cabeça para mim, retirando o boné preto para tal, entendi que
estava confirmando que levaria Isa embora naquele momento.
Era bom mesmo que ela não visse o que iria acontecer. Que não
presenciasse o caos que estava prestes a tomar conta de tudo.
Eu sabia do fogaréu que estava o meu peito. Ele brigava com a dor do
luto, querendo se soltar e incendiar a porra toda, querendo ir atrás da
maldita da Luana e colocar aquela vadia contra a parede. Eu era a porra de
uma bruxa brincando com o fogo, domando aquela chama até a hora certa
de deixar o demônio se soltar.
Dei uma última olhada para o Jow, e ele estava debruçado sobre o
caixão, sussurrando algo ao Bernardo. Não queria chegar lá perto, e podia
parecer egoísta não querer ver aquele corpo sem vida de perto, mas, se eu
fizesse aquilo, se fosse perto para me despedir, seria incapaz de manter
meus escudos e desabaria. E eu tinha que ser como uma muralha revestida
em titânio, afinal, ainda tinha uma cobra para desmascarar.
Fechei os olhos e murmurei uma despedida. Sabia que, onde quer que
Bernardo estivesse, seu espírito ouviria. Pedi perdão por nossos
desencontros, por não me lembrar da última vez em que o vi, por não ter
sido madura. Desejei luz ao seu espírito, que descansasse e causasse alegria
no céu. Me desculpei por não desejar ver seu sepultamento, mas sabia que
ele entenderia. Meus traumas eram grandes demais para ficar ali me
machucando.
Me levantei do banco, sentindo uma tonelada ser retirada do meu
ombro ao finalmente pisar do lado de fora da capela, deixando a luz do dia
ensolarado beijar o meu rosto. Abracei o meu corpo, sentindo o vento fraco
levantar de maneira suave a barra do meu vestido preto, na altura dos
joelhos. Quando abri os olhos, exalando profundamente, notei Harry ao
longe. Estava parado diante de uma fileira de jazigos perpétuos feitos de
mármore preto.
Fui caminhando até ele, lentamente, observando-o limpando algumas
lágrimas que escorriam por baixo dos óculos escuros que usava para manter
sua pose de inquebrável. Trajava uma calça jeans e uma regata preta,
sustentando seu corpo de pé sobre coturnos pesados. Parei diante dele,
quase espirrando com o cheiro forte e cítrico de seu perfume.
Harry estava na subida da rampa cimentada que era a entrada do
cemitério. Me pus a conversar com ele. Repassamos as informações sobre
as coisas que envolviam a Luana, e sobre os planos do que aconteceria a
seguir. Deixei algumas lágrimas escaparem enquanto conversávamos, me
assustando ao sentir os braços do Josiah surgirem de forma inesperada ao
meu redor. A maneira como me puxou, grudou minhas costas em seu peito
e chorou sobre o meu ombro me despedaçou. Tentei não soluçar, mas Harry
o fez antes de mim, desarmando a pose e deixando a dor escapar por seu
corpo esguio.
— Moleque era maneiro, porra... — Harry soluçou.
— Era, sim... — sussurrei.
●●●
Fiquei por algumas dezenas de minutos na entrada do cemitério com
Josiah, enquanto esperávamos Harry, que fez questão de assistir ao
sepultamento. Jow optou por não ver aquele momento, e eu o entendia
perfeitamente. Era a parte mais traumática. Aquelas pás de terra sobre o
caixão era a certeza do fim, de que a pessoa jamais voltaria. Ainda bem que
Josiah não quis assistir.
Eu nunca dirigia, mas a maneira como todos estavam abalados me fez
colocar a mão na massa e guiar aquela picape pesada do Josiah até a casa de
Marta. Fui tão no automático, com os pensamentos gritando em minha
mente, enquanto dentro do carro o silêncio era mortal entre Jow e Harry,
que mal senti ao estacionar diante da casa.
Havia um Porsche prateado parado na calçada do lado oposto à casa
da minha sogra, e uma fileira de carros pretos à frente dele. A trupe de
seguranças trajando preto do lado de fora da casa fez meu coração saltar.
Estava na hora...
— Que porra o Cristian está fazendo aqui? — Josiah gritou, girando os
olhos sobre todos os detalhes que denunciavam a presença de seu pai,
tentando abrir a porta do carro, exaltado.
Eu não queria aquele velho desgraçado perto da minha filha, mas, com
tudo o que descobri pela manhã, queria alguém para deixar Marta e Júlia
mais seguras naquela casa... Além de que aquele político de merda também
fazia parte do plano que elaborei.
— Calma! — eu disse, travando as portas e o puxando pela gola da
blusa preta. — Olha dentro dos meus olhos e presta bastante atenção! —
Josiah me encarou e, vendo a seriedade com que eu o fitava, tensionou o
corpo inteiro e arregalou os olhos. — Sei que não é o melhor momento, mas
temos algumas roupas sujas para lavar, algumas cobras para retirar da toca e
acabar de vez com o poder que demos para que nos destruíssem. E
provavelmente desmascarar a pessoa que matou o Bernardo.
Contraindo o maxilar, Josiah se soltou da minha mão, abrindo a porta
com força e pisando duro para dentro da casa, sendo seguido por Harry.
Desci do carro, lembrando a razão que me fez chamar o cretino do
meu sogro para aquele momento. Muitas coisas aconteceram essa manhã.
Foi quando eu descobri quem era de fato a Luana e toda a podridão que era
escondida sob um piso solto em seu quarto.
Há duas semanas, eu entrei no quarto dela para conversar sobre
Isabela, para pedir a Luana que parasse de ficar emburrada comigo por ter
voltado a ser amiga da Isa. Luana estava de joelhos sobre o piso castanho
em régua. Colocara algo escondido abaixo dele, depois recolocou-o para
tapar. Bati na porta e fingi que não havia presenciado a cena para não a
constranger. Eu era tão cega e idiota, que sequer fiquei desconfiada do que
poderia estar escondido ali. Mas, ontem, quando Harry me contou cada
detalhe das coisas que Luana disse ao Josiah, desde a maternidade até o
enterro do irmão dele, eu soube que aquela cretina tinha feito coisas para
me manter afastada do meu namorado. Tinha mentido para ele sobre vários
detalhes, inclusive o impedindo de entrar na maternidade enquanto eu dava
à luz. Desgraçada!
E eu queria cada maldito detalhe, cada maldita coisa que passou
batida. Então, quando Luana saiu hoje cedo para trabalhar, sob a desculpa
de ter traumas de enterro após a morte do primo, me esgueirei para o seu
quarto e fui direto ao seu esconderijo. Meu coração sangrava em revolta,
tristeza e uma enorme sensação de ter sido feita de boba. Quando peguei o
plástico transparente com o pequeno pendrive, meu coração quase escapulia
pela boca, gotas de suor escorriam por minhas têmporas. Enquanto Júlia,
vestindo um macacão rosa, dormia agarrada ao pai sobre a cama imensa no
quarto que era dele, me esgueirei para o computador sobre a escrivaninha,
pluguei o pendrive e me permiti abrir aquele cofre de segredos sujos.
E eu quase vomitei.
Quando vi aquela infinidade de pastas, peguei o notebook do Josiah e
fui para a sala, para poder abrir aqueles vídeos infames sem que ambos
acordassem ou vissem. E a primeira filmagem tinha a data de muitos anos
atrás.
Luana e Lucah... Muito jovens, se filmando enquanto transavam sobre
uma pedra robusta em uma cachoeira.
Entre todas as coisas que imaginei encontrar ali, nunca teria passado
pela minha cabeça que os primos tivessem um caso. Eu podia sentir a bile
subindo pela minha garganta, enquanto uma lágrima de choque rolava
solitária por minha bochecha. Meu coração estava muito apertado e um nó
pesado se prendia em minha garganta. Eu queria gritar, queria urrar de
frustração, de vergonha por ter duvidado da palavra do Jow.
“Então, aí eu o enforquei até ele começar a espumar. Um fracote... Só
não o matei porque ouvi minha mãe saindo do quarto dela, pois o medroso
deu um grito ao me ver fantasiado diante dele”.
Uma versão jovem do Lucah contava, enquanto Luana girava a
câmera, movendo a filmagem para si mesma. Estava nua e com o cabelo
enorme escorrendo até o quadril.
“Por que a gente tem que odiar o Jow mesmo?”, Luana perguntava,
sorrindo e voltando a filmagem para o primo, que agora nadava pela
cachoeira, imerso em uma água esverdeada. Seus cabelos loiros estavam
um pouco longos e flutuando sobre a água. O olhar dele... Não havia
sombra do homem bondoso que conheci. Era um olhar sem emoção,
escurecido, um sorriso completamente forçado. Será que sempre fora assim
e não percebi?
“Porque ele é um merdinha. Meu pai puxa o saco dele, diz que Josiah
tem um belo futuro. E quando meu irmão não existia, o cretino do Cristian
me tratava bem, ele... não me xingava como faz hoje”.
“Mas o tio Cris também bate no Jow...”
“Vai defender ele agora, sua puta?”
Foi só um dos inúmeros vídeos dos dois, alguns eram planejando
sacanagens contra o Josiah, vídeos e mais vídeos de sexo dos dois, às vezes
juntos a outros homens...
Outra coisa presente naquele pendrive era uma pasta chamada Dossiê.
Dentro dela, estavam várias coisas... sobre o Lucah, dando a impressão de
que Luana estava se calçando contra ele. Tinha a tal pasta das crianças,
mensagens trocadas em um site esquisito onde ele parecia vender aquelas
fotos para outros criminosos. Fotos da Luana completamente machucada,
inclusive um vídeo deles transando e ela o questionara sobre por que ele
insistia em ficar com o Jonas. A câmera estava posicionada para filmar a
cama, e tive a impressão de que Lucah não sabia que estava sendo filmado,
em um cômodo que eu não conhecia, provavelmente era um motel por
conta da cama de couro vermelha e circular. Ele a agrediu após a pergunta,
deixando-a completamente inconsciente.
Deus! Como Lucah conseguia vestir tão bem a carapuça de bom
moço? Eu fiquei muito apavorada ao ver aquelas coisas. Chorei de medo,
de culpa, de raiva... Porque morei sob o mesmo teto que dois psicopatas.
Porque os chamei de amigos. Porque deixei que estivessem muito perto a
ponto de destruir completamente a coisa mais bonita que já tive na vida. A
ponto de acabarem com o meu relacionamento com o homem da minha
vida.
No dossiê contra o Lucah, havia muitas coisas sobre o Cristian.
Deixava claro que o meu cunhado via o pai como um inimigo a quem
queria derrotar. Tinha inúmeras provas de desvio de dinheiro público,
superfaturamento de obras públicas, fotos do meu sogro com amantes e
mais amantes... Ou seja... Cristian não era um aliado do Lucah ou Luana,
parecia ser visto como um inimigo...
E doeu, doeu demais ter que mostrar aquilo a Marta. Me quebrou ver
ela quase desmaiar, a maneira como segurou a boca para não gritar entre o
choro, como mordeu a mão ao cair sobre a cama. Eu me senti tão mal por
precisar fazer aquilo, mas não existia uma forma de contar a minha sogra
sem exibir as provas. Ela acreditava cegamente no Lucah, assim como eu...
Demorou muito tempo até Marta parar de chorar, tive que medir a sua
pressão, que tinha caído, também lhe dei um copo com água e açúcar para
ajudar a acalmá-la. Depois de um tempo, Marta pediu para tomar café. E
quando fomos até a cozinha, lhe entreguei a bebida. Um pouco depois,
Josiah surgiu na cozinha e se assustou ao ver a mãe sem maquiagem,
descabelada, de camisola e tremendo. Mas ele não fez perguntas. Acho que
acreditou que a desordem emocional dela era em decorrência da morte de
seu amigo.
Contei o plano a Marta enquanto Josiah dava banho na Júlia, antes de
sair para a despedida do Bernardo. Ela precisava entender que Luana era
perigosa, que não podia ficar sozinha com ela, e muito menos deixar minha
filha perto daquela cobra. Afinal, Júlia ficaria em casa para que pudéssemos
ir ao enterro. E então minha sogra me surpreendeu, sugerindo que
chamássemos o Cristian, dizendo que ele saberia tirar as informações da
Luana, porque, do jeito que era fingida, não saciaria nossas dúvidas sem
certo esforço.
Tive medo de aceitar chamar o prefeito, mas minha sogra me lembrou
que, nas coisas que vimos ali naquele pendrive, Luana conspirava com
Lucah contra o Cristian a todo tempo. Não havia nada contra o pai do
Josiah. Era sobre ela e o meu cunhado.
Respirei fundo e me permiti entrar na casa, para finalmente procurar
sanar as dúvidas que ficaram. Assim que adentrei a sala, Luana já estava lá.
Jazia sentada sobre uma cadeira no meio do tapete. Não estava amarrada,
mas havia dois seguranças pousados acima dela, um de cada lado. Eram
homens engravatados, enormes e mal-encarados.
Luana me deu um sorriso debochado que me fez gelar. Tive que
segurar a vontade de avançar naquela cretina, que trajava um vestido que já
vi nela outras vezes, uma peça longa com a estampa da pele de uma onça. E
fazia bastante jus a ela, amiga da onça!
Um pequeno fio de sangue saía do canto direito de seu lábio inferior.
Ela percorria as pessoas na sala com o olhar, parecendo uma cobra. Como
me enganei tanto? Como não percebi nada? Agora era nítida a ausência de
emoção em seu olhar, o cinismo na forma como encarava as pessoas de
cima, como se fossem inferiores a ela.
Josiah estava ao lado do pai, o que me deixou surpresa. Ele jazia
inclinado sobre a mesa de jantar, rolando algo na tela do notebook escuro.
Cristian se virou abruptamente, desviando o olhar do computador com
repulsa, parecendo conter o vômito.
O prefeito, que estava quase no fim de seu segundo mandato, estava
vestido de maneira menos formal, com uma calça justa em tons de verde
musgo, e uma camisa branca sofisticada estava solta sobre a peça de baixo.
As mangas de sua camisa jaziam dobradas, deixando os músculos do braço
marcados. Seu rosto quadrado estava completamente esticadinho... As
plásticas seguiam em dia. Era um homem bonito, e Josiah parecia muito
com ele. O cretino me fitou, erguendo a sobrancelha e dando um pequeno
sorrisinho. Revirei os olhos, encarando o ambiente e procurando a minha
sogra.
— Cadê a Júlia? — perguntei, vendo que a mãe do Jow estava parada
em frente a Luana, com os punhos fechados diante do corpo.
Marta ainda estava de camisola e descabelada. A mulher parecia ter
envelhecido dez anos em apenas algumas horas. Ela me olhou por cima do
ombro, com uma ira que jamais vi em seu rosto, mas suavizou o semblante
ao me encarar.
— Está na casa da Dona Helena — avisou. — Achei adequado que ela
não ficasse aqui.
— Não é melhor chamar a polícia? — Josiah sugeriu, caminhando até
mim e parando ao meu lado, me dando um leve conforto ao sentir sua
presença eletrizante próxima ao meu corpo.
— Não! — Marta e Cristian disseram em uníssono.
— Quem bateu nela? — perguntei, erguendo a sobrancelha para o
Cristian.
— Eu! — Marta avisou, avançando novamente contra a mulher diante
de si, mas Cristian a conteve, agarrando-lhe pelo braço.
Ela se afastou com rapidez do corpo do ex-marido, como se o toque
dele fosse repulsivo. Luana sequer se encolheu sob a ameaça de ser
agredida. Na verdade, ela sorriu largamente para a tia, em um deboche com
ar de desafio. Cruzou as pernas, segurando o joelho com as mãos ossudas.
— Bati nessa filha da puta porque se recusa a responder nossos
questionamentos — Marta avisou, com o tom de voz mais apático que já
ouvira nela. Fiquei muito chocada por vê-la xingar. Em seis anos, eu nunca
a ouvi proferir um palavrão sequer.
Girei o olhar até o pai da minha filha, e Josiah segurou minha
encarada. Havia dor em seu olhar, mas outra coisa também: curiosidade.
— Pensei que fosse ver você em cima do seu pai ao entrar — sussurrei
para ele.
— Ah, eu ia mesmo. Mas, quando vi minha mãe esbofeteando a
Luana, entendi tudo — murmurou, cruzando os braços e balançando a
cabeça. Então Jow guiou o olhar até sua prima. — Por que você agrediu o
Bernardo, Luana?
Ela imitou o gesto do Josiah, encarando-o com desdém e fechando o
semblante.
— Não vou falar nada se eu não sentir vontade — avisou. — Podem
me bater, me torturar... Eu aguento.
— Vou trazer sua mãe então — Cristian ameaçou, com sua voz serena
e sua postura que lembrava perfeitamente uma raposa. Meu corpo inteiro
gelou ao vê-lo ameaçar torturar a mãe da Luana, afinal, a mulher era sua
irmã. Isso só deixava claro a frieza dele. Aquele velho era perigoso... —
Vamos fazer tudo o que disse com ela, bem na sua frente, até você começar
a cantar as informações.
— Tô nem aí... Pode até esquartejar a minha mãe bem aqui. Não vou
sentir nada. Só vou falar se for interessante para mim — deu de ombros,
chocando a todos no ambiente. — Eu não tenho fraquezas. Isso me
diferencia de vocês, passionais, emocionais demais.
Meu coração estava acelerado, meus punhos cerrados ao lado do meu
corpo, e eu trincava tanto os dentes, que poderia quebrá-los.
— Fala, sua cretina! Por que você agrediu o Bernardo? — berrei,
saindo de mim e pronta para partir para cima dela, sendo contida pelos
braços imensos e fortes do Josiah enlaçados em minha cintura.
— Olha... A surtadinha está colocando as asinhas de fora — Luana
cantarolou, encarando as unhas em desdém. — Ana, você é uma fraca! Não
me assusta.
— Eu confiei em você! — gritei, quicando de raiva sobre a contenção
do corpo do meu ex-namorado. — Acreditei que fosse minha amiga.
Luana bufou, me dando um sorriso irônico. Ergueu uma sobrancelha e
lambeu os lábios, como se saboreasse me ver descontrolada. Marta alisava o
cabelo, dando voltas pelo tapete da sala. Lembrou-me completamente do
gesto que ambos os filhos dela faziam ao ficar nervosos. Os olhos dela eram
como cascatas vermelhas, escorrendo lágrimas de ira e tristeza.
— Aninha... A putinha depressiva, suicida, a assassina que afogou o
pequeno Benício — Luana cantarolou, soltando uma gargalhada com a boca
larga ao perceber a maneira como tapei os ouvidos. Flashbacks do meu
irmão na piscina invadiram a minha cabeça, e todos os sentimentos do meu
trauma vieram à tona. — A Ana afoga criancinhas...
— Cala a boca! Cala a boca! Cala a bocaaaaaaa! — ordenei, chorando
sem parar. Josiah me apertou em seus braços, com o calor do seu corpo me
impedindo de sair completamente da realidade e me perder nas lembranças.
— Calma, Docinho! — Josiah pediu, com o tom de voz assustado,
beijando minha cabeça. — Faz ela calar a boca, pai!
Meu peito doía. O medo, a dor, a saudade, a impotência, a culpa...
Aqueles sentimentos pesados gritavam na minha cabeça, e me senti a Ana
pequena, a Ana adolescente que ficou paralisada enquanto a sua mãe
tentava reanimar o Ben.
— Seus pais se mataram por sua culpa! — Luana gritou entre
gargalhadas, fazendo milhares de estacas fervendo furarem o meu peito.
Ela estava entrando na minha cabeça. Que mulher horrível!
Girei o olhar até ela, vendo que finalmente um dos seguranças havia a
agarrado sobre a cadeira, grudando as costas dela ao encosto do acento e
tapado a sua boca. Mas a maneira como os olhos de Luana dançavam,
divertidos ao me encarar, me fez perceber que estava caindo no joguinho
dela. Me afetava, usava palavras para me ferir, intuindo fugir das respostas.
— Foi você que colocou a porra do balde na minha porta! — acusei,
me soltando dos braços do Josiah e me lançando sobre ela.
Quando a agarrei pelos cabelos e a joguei sobre o tapete, montando
nela e desferindo milhares de tapas naquele rosto magro, ninguém me
impediu. Descontei minha frustração nela, minha ira, deixei escapar por
meus golpes toda a revolta, até que senti aquele perfume caro ao meu redor.
Aqueles braços fortes do pai do Josiah me ergueram de cima da Luana, que
gritava parecendo estar endemoniada, enquanto era arrastada por Harry de
volta para a cadeira.
— Sua órfã desgraçada! — Luana berrou, limpando o sangue da boca
e arfando com a respiração descompassada.
Seus cabelos desgrenhados por meus puxões estavam fazendo
companhia para as bochechas vermelhas e inchadas.
— Pelo menos eu não sou uma incestuosa! — acusei. — Uma
assassina cruel! O que aconteceu com o meu irmão foi um acidente, mas
você assassinou o Bernardo.
— Por isso que fiz questão de acabar com o seu namoro, sua puta! —
Luana debochou, alisando os cabelos, tentando colocá-los no lugar. — Foi
delicioso avisar ao Lucah que Josiah estava chegando, então ele correu para
o seu quarto e armamos o flagrante da “traição”. Nossa... Foi ótimo ver seu
relacionamento perfeitinho ir por água abaixo.
— Filha da puta! — Josiah xingou, contraindo o maxilar e parecendo
fazer força para não avançar em cima dela.
— E você? O queridinho do papai, o que sempre teve o mundo aos
seus pés e ainda assim reclamava do dinheiro que tinha. Reclamava que o
papai traía a mamãe, mas sempre teve tudo. Você nunca teve que trabalhar
de verdade, seu mauricinho de merda! — a cobra cuspiu as palavras para
Josiah.
Eu sequer o via, meu olhar estava vidrado e ensandecido sobre aquela
mulher. Eu queria acabar com ela. Aquela cobra destruiu o meu
relacionamento. Então foram eles que planejaram aquilo tudo, para que
Josiah me visse com Lucah. Mas e o...
— O Jonas fazia parte disso? — perguntei, preparando meu coração
para se partir mais ainda.
— Jonas? Aquele merda? Ele era um asno, não via nada. Te adorava..
E ainda acreditava que o namorado fosse um cordeirinho... — bufou ao
revirar os olhos e cruzar os braços — Lucah era obcecado por ele. Meu
primo era possessivo, tomava as coisas que queria para si. Foi assim
comigo. Lucah decidiu que eu seria dele quando eu tinha doze anos. E
assim foi... Depois ficou obcecado pelo Jonas, o seduziu e ficou com ele. Se
fingia de bonzinho, de engajado em causas benevolentes, mas era apenas o
personagem que usou para conquistar o idiota do namorado. Pena não ter
dado tempo de matar o Jonas...
Falar sobre matar alguém daquela forma, de maneira tão torpe, só
deixava claro o quanto Luana era fria e narcisista.
— Você não se envergonha de falar essas coisas? — Marta perguntou,
alisando o peito, perplexa.
— Ah, velha... Vai se foder! — xingou, cuspindo na direção da Marta.
Como aquela mulher horrível nos enganou por tanto tempo? — Vergonha é
para os fracos. Por isso é tão fácil jogar com vocês. Sentem vergonha,
empatia, remorso. Eu não sinto nada.
— E mesmo assim é uma fodida! — debochei. — Mesmo se achando
essa supermulher que brinca com pessoas como se fossem peças de
tabuleiro, aqui está você. Desmascarada e a um passo da prisão.
— Foda-se! — deu de ombros. — Eu não sinto medo. Nada me
assusta. Eu nasci assim... Esse é meu superpoder.
Girei o olhar para Josiah. Ele contraía o maxilar e franzia o lábio
inferior, como se sentisse nojo. Certamente aquelas palavras perturbadas da
psicopata diante de nós causavam o mesmo em todos, o mais puro asco.
Exceto em Cristian, que provavelmente entendia aquela forma doentia de
ser.
— Sabe o que amávamos fazer, Aninha? — perguntou, com os olhos
brilhando de excitação. — A gente adorava fazer você ficar bem bêbada.
Assim, quando Jonas não estava perto, Lucah e eu te contávamos tudinho,
que fizemos você e Josiah se separarem, que íamos fazer de tudo para
nunca voltarem. Na manhã seguinte, você acordava e, feito uma imbecil,
esquecia a porra toda...
— Cretina! — Josiah berrou, se segurando para não avançar nela.
— Ah, não me odeiem! — debochou, mandando um beijo no ar para o
Josiah. — A filhinha de vocês só existe porque dei um antialérgico a Ana
no lugar de uma pílula do dia seguinte — contou, fazendo um choque
percorrer o ambiente.
Meu coração acelerou ainda mais enquanto eu varria minha memória
em busca do dia em que Luana me entregou o comprimido e um copo de
água. Merda!
— Por quê? — perguntei, afinal, não fazia o menor sentido. — Por que
me dar um elo eterno com o Josiah se nos queria separados, Luana?
— Porque o desgraçado do Lucah estava obcecado por você! Só me
comia chamando o seu nome! Ele achava que vocês dois brigariam mais,
talvez de uma maneira definitiva caso Josiah acreditasse que o filho não
fosse dele, deixando espaço para que Lucah ficasse de vez eu seu lugar.
Senti a bile subindo a minha garganta e segurei a barriga ao prender o
choro. Luana estava nos observando, procurando as fraquezas para atirar
palavras que pudessem ferir. Como podiam existir pessoas tão ruins no
mundo?
— Ana, eu não a suporto. Tenho ódio pelo fato de o Lucah ter morrido
por sua culpa, enquanto ia ver o parto da sua filha, sua puta de merda! Eu a
detesto, porque desde que você surgiu em nossas vidas, ele não me via mais
da mesma forma. Então, mesmo quando Lucah se foi, decidi continuar o
plano de acabar com o seu namoro, de me manter perto para que vocês não
ficassem bem.
Como me deixei enganar pelo monstro do Lucah? Ele era tão
asqueroso e perigoso quanto a Luana. Marta soluçava, enquanto deslizava
para se sentar no sofá. Eu não queria estar na pele dela. Porque, por mais
que o remorso me percorresse por ter duvidado dos relatos do Josiah, eu
sabia que o peso daquilo deveria estar triplicado sobre os ombros da minha
sogra.
— Viu, tio? Lucah puxou a você... — Luana debochou, dando um
sorrisinho vitorioso para o prefeito. — Você via fraqueza no filho errado.
— Não! Está enganada, menina... Eu nunca desrespeitaria os meus
laços de sangue, nunca seria tão depravado. Também não faria joguinhos
assim com pessoas a esmo. Meu interesse é poder. Jamais gastaria minha
energia de maneira burra como você ou meu filho mais velho fizeram.
Ainda bem que ele morreu, ou eu mesmo o mataria! — cuspiu as palavras
com desprezo. — E você é uma completa idiota, Luana. Ainda guardava as
provas contra si mesma dentro do seu quarto...
Um peso absurdo varreu o ambiente após ele dizer que mataria o filho,
mas, por mais que aquelas palavras fossem horríveis vindas de um pai, nem
Marta o contradisse. Acho que era um alívio para todos que Lucah estivesse
morto. Era terrível admitir, mas ele teve um fim merecido!
— É libertador poder falar isso tudo. Me sinto leve... — Luana disse,
suspirando de maneira dramática e encenada. — Ah, sabe o que era muito
divertido? Botar pilha para os barracos desse casalzinho. Afinal, separamos
vocês, mas o show ficou bem por conta dessa personalidade esquentadinha
de ambos. Ah, a maneira como a Ana cimentou os cacos das garrafas de
cerveja sobre o muro entre a casa de vocês foi divina.
Minha mente viajou até o dia posterior ao que Josiah se mudou para a
casa dele. Eu estava quase chegando aos seis meses de gestação. Lucah
tinha contratado um pedreiro para trocar os pisos da varanda naquela
manhã. Jow havia dado uma festa e, para debochar de mim, havia colocado
várias garrafas de cerveja sobre o muro entre as nossas casas. Irada, peguei
uma vassoura e derrubei todas elas. Algumas caíram no quintal dele, outras
no meu. Elas espatifaram, se dividindo em incontáveis cacos de vidro. Eu
pirei de fúria, peguei uma escada, um punhado de cimento com uma colher
de pedreiro e coloquei vários cacos cimentados acima do muro, bem na
direção de nossas janelas, chegando a cortar os dedos ao movimentar os
pedaços afiados do que sobrara das garrafas. Aqueles destroços do vidro me
lembravam os cacos que eram o meu coração, quebrado por ele e de
maneira tão injusta. Queria compartilhar com Josiah todos os pedaços de
vidro que eu sentia dilacerando minha alma. Eu estava no meu limite, e
aquele ato deixava isso bem claro.
Aquilo foi o marco da nossa guerra. Os cacos de vidro eram um
recado. Aquilo era o que havíamos nos tornado, dois objetos cortantes
prontos para nos dilacerar. Toda vez que olhávamos para a casa um do
outro, víamos os cacos sobre o muro. Encarávamos o lembrete.
Balanço a cabeça, como se o movimento pudesse dispersar os
pensamentos.
— Foi como a cena de um belo filme, Aninha. — Luana brindou com
uma taça imaginária. Que vontade de socar a cara daquela piranha... —
Separar vocês foi muito fácil.
— Chega, puta dos infernos! — Josiah grunhiu. — Por que fez aquilo
com o Bernardo?
— Ah, Jow, só vou te contar porque todas essas revelações
melhoraram o meu humor — avisou, apontando o indicador para ele de
maneira divertida. — Seu amiguinho intrometido me parou na rua e pediu
para eu contar a Ana sobre você ter ido à maternidade e ao enterro do
Lucah, mesmo que eu tivesse dito que não o queria lá. Esse otário chegou
logo quando eu estava vendo fotos minhas e do Lucah no telefone, e parece
até que foi obra do destino, mas o meu celular caiu no chão com a tela
voltada para cima. E quando Bernardo viu o nude do meu primo e eu, se
abaixou antes que eu pudesse reagir e agarrou meu telefone. Tentei segurá-
lo, mas ele saiu correndo. Então o segui, esperei o veadinho sair da sua casa
e chegar à esquina, depois bati com uma garrafa de vinho na cabeça dele.
Aninha estava irada sobre a caçamba do seu carro e sequer viu algo... E
olha que foi bem na frente dela. Limpei minhas digitais e joguei o que
sobrou da garrafa na lixeira da rua, além de recuperar o meu telefone das
mãos imundas daquele intrometido. Foda foi esse Harry ter me visto... Até
planejei dar um jeito nele, mas não deu tempo e ele já abriu a boca e te
contou tudo. Quando você me colocou contra a parede, achei que tivesse
visto o meu telefone, afinal, Bernardo havia entrado em sua casa, mas não...
Você não sabia de nada. Brindei com o destino e usei a deixa para culpar a
única pessoa que também estava na cena do crime.
— Meu santo é forte! — Harry avisou, apontando o indicador para ela.
— Se tentasse a sorte, tu ia ver com quantos paus se faz uma canoa!
— Ah, eu ia gostar de ver o seu pau... — Luana debochou, soltando
uma gargalhada forçada.
— Então resolveu fazer uma denúncia anônima para incriminar a Ana?
— Cristian indagou, passeando pelo tapete da sala sobre seu sapato caro e
lustroso, enquanto alisava o lábio inferior.
— Ah, com certeza, titio. Só não esperava que você fosse um coração
mole e limpasse a barra da putinha. E por que o fez?
— Fazemos tudo pela família... — Cristian respondeu, fazendo um
arrepio subir na minha espinha. — Excluindo estercos como você, é claro.
Uma súbita lembrança percorreu o meu corpo. Um carro da polícia me
pegou em casa, comigo com a mão engessada e recém-operada, ainda de
resguardo. Passei horas sob o interrogatório de um delegado. Josiah estava
lá quando eu cheguei, tinha um olhar de tristeza, mas não saiu do meu lado
um segundo sequer. Até achei que havia sido ele por trás da denúncia. Júlia
estava com a avó na entrada da delegacia, e tudo o que eu sentia era medo
de ser presa, de ser taxada de assassina e criminosa, de ficar longe da minha
bebê. Então o velho, o maldito a minha frente, surgiu e subornou o
delegado, conseguindo que tudo fosse para baixo do tapete e fosse
declarado que não havia um suspeito na cena do crime. Após os acertos,
Cristian disse a frase que acabara de repetir, na sequência declarando que
queria conhecer a neta. Então eu surtei e revidei que minha filha jamais
chegaria perto dele, soltando todos os seus podres diante do delegado para
justificar minha decisão. Fui silenciada com uma bofetada, e a noite foi
encerrada ao Josiah acertar um soco na bochecha do pai.
— Bom, já ouvimos o suficiente — encerrei o show de horrores,
sentindo um peso horrível em meu corpo, enquanto um gosto amargo
percorria minha boca. — Agora vamos chamar a polícia.
Luana sequer esboçou medo ou qualquer reação. Seguiu com seu olhar
viperino para todos os presentes. Josiah acenou para mim com a cabeça,
concordando.
— Espero que você apodreça na cadeia — Jow disse, apontando o
dedo em direção à prima.
— Já deixei tudo acertado com as pessoas que interessam, conforme
Marta e Ana solicitaram na ligação hoje cedo. Um delegado já está à espera,
e já tenho as pessoas necessárias para garantir um laudo descrevendo o
perigo que ela oferece para a sociedade, que faça Luana ficar o maior tempo
possível atrás das grades — Cristian contou, digitando algo em seu telefone.
— Pronto, agora a viatura está a caminho.
— Sabe que tenho um dossiê completo contra você, não é, Cristian?
Vai mesmo se meter comigo? — Luana ameaçou, e, mesmo que tenha
tentado manter a pose de destemida, uma sombra de dúvida atravessou o
seu semblante.
— Sobrinha... — Cristian respondeu, caminhando feito uma raposa até
bem perto dela. — Se ao menos mencionar qualquer coisa a meu respeito, o
mesmo delegado que está esperando o seu depoimento é o que vai cortar a
sua garganta. Fique esperta... Eu, sim, sou alguém que não sente medo de
nada.
Assim que a viatura chegou, Luana foi levada para fora, gritando
xingamentos a todos os presentes, além de proferir ameaças, sendo
silenciada apenas quando a porta da viatura se fechou.
Um peso enorme deixou o meu corpo quando aquela psicopata
finalmente partiu. Sabia que todos nós teríamos que depor contra ela, mas,
por enquanto, eu iria descansar, até que os advogados do Cristian nos
ligassem para irmos deixar o testemunho na delegacia.
— Pequena Ana Oliveira... — Cristian sussurrou, surgindo ao meu
lado feito uma rocha e fazendo o meu coração dar um tranco. Droga! Ainda
tinha que lidar com aquele cretino... Útil... Mas ainda um cretino. — Você é
uma mulher intrigante.
— Vamos deixar as coisas claras, querido sogro... — grunhi, virando o
meu rosto lateralmente, encarando-o nos olhos. — Fique bem longe da
minha família!
— Sabe, eu achava que Josiah era perfeito para assumir o meu legado,
mas estava errado. Ele não teve a força necessária para resistir a uma
mulher... Jamais conseguiria me substituir. Então, fique tranquila, querida!
Sua única preocupação deve ser cuidar da minha neta e fazer meu filho
feliz.
Paralisei diante do choque que aquelas palavras me causaram. Quando
me preparei para dizer algo, o homem caminhou para longe, acenando com
a mão para que seus seguranças o seguissem.
Aquilo era uma trégua?
Quando Cristian partiu em seu carro, senti que finalmente uma nuvem
escura se dissipava de nossas vidas. E tinha outras coisas pelas quais valia a
pena lutar agora que as tempestades haviam partido.
Capítulo 30
Foi você nas luzes da cidade. Foi você quando eu quase perdi o
controle. Foi você nos momentos mais sombrios. Foi você que me faria
brilhar. Foi você que eu segurei firme. Sempre foi você.
It's Always Been You - Caleb Hearn
Ana Oliveira
Dias atuais...
Josiah Marquez
Uma linda galeria era o lugar onde eu jazia parado. Júlia, que havia
completado seus cinco anos há dois dias, corria entre as pessoas com seu
vestido rodado e preto, exibindo a medalha de bronze que ganhara em um
campeonato de natação para todos os presentes. Qualquer um que lhe desse
uma mínima olhada, já veria aquele objeto. Ela costumava capturar mais a
atenção de Bill e Harry, os dois tios babões que ela tinha. Ambos estavam
parados cochichando algo no canto oposto do local.
Júlia era uma coisa linda, simpática e exibida. Seus braços estavam
repletos de tatuagens de chiclete, e os cabelos cacheados e de um castanho
claro como os da mãe flutuavam ao redor de seus ombros roliços.
Pelas paredes brancas e altas do amplo local, dezenas de quadros com
armadura branca e uma camada de vidro contendo desenhos meus estavam
em exposição na galeria, local que eu havia alugado para aquele evento, a
exposição dos meus desenhos. A galeria ficava bem perto do Ravina, agora
que tínhamos mudado o estúdio para o asfalto.
Os desenhos eram pequenos fragmentos da nossa vida. Covinhas da
Ana e Júlia aqui, traços do cabelo da minha mãe ali, máquinas de tatuagens
acolá, a bela curva da barriga da minha esposa, e tantas outras coisas
retratadas sob os traços de um lápis. Eu retomei os desenhos assim que
casei, pois minha mulher voltou para a faculdade de Letras e resolvi me
aventurar no hobby que amava.
Uma linda mulher estava parada diante de um dos desenhos. A
ilustração retratava uma deusa com cabelos cacheados e uma coroa de
flores sobre eles, com uma lanterna sobre a mão pequena e delicada
iluminando uma nuvem escura.
Cheguei por trás dela, daquela rainha que trajava um vestido plissado
longo em tons de rosa queimado. “Plissado”. Fora o tipo de tecido que ela
me ensinara durante a manhã. Quando parei atrás dela, aproximando as
mãos sobre a curva daquela barriga perfeita, Ana deu um sorriso.
— Ansiosa para o lançamento do seu novo livro amanhã? — sussurrei
em sua orelha perfeita, beijando a pele bela e exposta de seu ombro direito,
que agora ostentava a tatuagem de uma delicada rosa.
— Mais ansiosa para finalmente saber o sexo desses bebezinhos aqui
dentro — confessou, virando de frente para mim e exibindo a barriga de
quatro meses, a barriga que abrigava gêmeos.
Quase desmaiamos ao descobrir que eram dois, pois foi uma surpresa.
Mas eu queria muito mais coisinhas, e duas de uma vez me deixou animado
mesmo com o choque inicial...
— Está na hora! — minha mãe chamou ao longe, caminhando para
frente de um dos quadros do lado oposto a nós, o que jazia com um pano
preto escondendo sua superfície.
Ela estava de braços dados a Henrique, agora seu marido. O homem
alto, de cabelos escuros e feições gentis acenou para mim, e me forcei a
revidar. Dava um leve ciúme da minha mãe, mas gostava de vê-la feliz.
Lembro-me da depressão que ela entrou ao descobrir as coisas sobre o
meu irmão, da maneira como tentou se ajoelhar para pedir meu perdão por
ter duvidado das minhas palavras, mas a segurei e a abracei tão forte em
meus braços, que minha mãe entendeu que eu a amava. Eu sussurrei no
ouvido dela que era passado, que só importava a maneira como
reconstruiríamos nossa relação. Então me mantive presente na vida daquela
rainha elegante e que fazia o melhor bolo do mundo por todos os dias desde
então, e nunca mais a vi chorar como naquele dia. Ainda bem que Ana não
ouvia pensamentos, ou se chatearia ao saber que o bolo da minha mãe era
melhor, mesmo que toda a comida de minha esposa fosse como uma
ambrosia dos deuses.
Caminhei com ela até o objeto que continha a informação sobre o sexo
dos nossos filhos.
— Eu! Eu vou revelar, né, vovó? — Júlia gritou, correndo para a frente
da Marta.
— Sim, querida. Foi o que combinamos.
E quando minha mãe ergueu Júlia em seu colo, quando minha filha
puxou o tecido escuro da frente do quadro, meu corpo inteiro jazia gelado, e
meu coração dera um leve tranco com os pulinhos animados da Ana. Os
peitões balançavam com a alegria dela, fazendo com que meu lado safado
acordasse, mas me concentrei no momento.
Meninos.
Era o que estava escrito em azul no quadro de armadura quadrada.
Ana se voltou para mim, sorrindo com aquelas covinhas perfeitas.
Minha esposa procurou minhas mãos, e entrelacei-as nas suas diante de
nossos corpos.
— E então? Vai me contar os nomes agora? — perguntou, ansiosa,
pois como havíamos combinado, eu os escolheria.
Olhei para Ana com carinho, fazendo uma pausa para aumentar o
suspense. Ela arregalava os olhos, repleta de expectativa enquanto soltava
uma das mãos e alisava a barriga:
— Bernardo e Benício — tomei a força necessária e disse os nomes
em voz alta, vendo a emoção percorrer o rosto perfeito e corado dela.
Ana se jogou sobre o meu pescoço, chorando, com a ponta de sua
barriga separando levemente o nosso corpo.
— Ber e Ben... Que perfeito, amor.
— Sim... Esses serão os nomes dos nossos meninos.
Fim...
Agradecimentos