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Os direitos autorais dessa história pertencem à autora.

Esta é uma obra de ficção.


Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

Todos os direitos reservados.

São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução total ou


parcial de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios.

Leitura Crítica: Adriana Mantovanelli


Revisão e Projeto Gráfico: AB Serviços Editoriais

Criado no Brasil.
Ao homem com quem divido minha cama,

meu coração e a minha vida, meu marido Marcelo.


Nota da Autora
Esse livro é um Dark Romance, ou seja, os personagens vão ao
extremo das emoções e comportamentos considerados inaceitáveis
socialmente.
O estilo do livro pode gerar desconforto no leitor.
Fica o pedido de que não ignorem a lista abaixo. Se você for sensível
aos gatilhos, essa leitura não vai funcionar para você.

Gatilhos:
Automutilação, palavrões, cenas gráficas de sexo, transtornos
psicológicos (depressão e síndrome do estresse pós-traumático), violência
física e psicológica, abandono, abuso de substâncias lícitas e ilícitas,
lactofilia, morte, ideação suicida, suicídio, luto, menção a abuso sexual.

Este livro é destinado a leitores maiores de 18 anos.


A autora não pratica ou compactua com comportamentos ilícitos ou
inaceitáveis socialmente.
“O amor está mais perto do ódio do que a gente geralmente supõe.

São o verso e o reverso da mesma moeda de paixão.

O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença...”

Érico Veríssimo
Sumário
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Epílogo
Agradecimentos
Prólogo

Respirei fundo e olhei para a escrivaninha de uma madeira


acastanhada. Repeti o processo que eu costumava fazer todas as noites e me
sentei de maneira ansiosa na cadeira de couro robusta. Abri o notebook,
observando o teclado se iluminar em tons de rubro. Deslizei o dedo
indicador sobre o touchpad, tentando não me concentrar nos lugares onde o
osso do dedo se deformava. Era uma tarefa impossível. Eu sempre acabava
encarando aquela mão horrorosa, deformada, torta, e meus olhos traidores
se direcionavam até aquela maldita casa. Por que ele tinha feito aquilo? Por
que comprou o terreno bem ao lado da minha casa, construiu aquela porra
de container preto, e ainda montou seu estúdio de tatuagem virado para a
janela do meu quarto?
Cretino! Filho da mãe!
Encarei o cursor piscando na tela em branco do documento no Google
Drive. Então bati com força a tela do notebook e olhei com ódio para a
imensa janela de vidro em frente à minha. Eu podia ver tudo do outro lado
do muro, cuja superfície ostentava os cacos de vidro, a única resposta que
dei a ele sobre o que éramos: dois objetos cortantes, afiados, prontos para
destruir e dilacerar um ao outro.
A luz vermelha do estúdio brilhava, eu sempre acabava ouvindo aquele
maldito zumbido de quando Josiah estava trabalhando, trilhando caminhos
nas peles alheias com tinta e agulhas. Mas hoje estava silencioso, ele não
estava em casa. Provavelmente ficaria sumido por dias, afinal, era sempre
assim. Quando ele surtava e fazia coisas para me infernizar, sumia por dias,
e então recomeçava o ciclo.
Capítulo 1

Tempos difíceis vão te fazer se perguntar por que você ainda tenta
Vão te colocar para baixo e rir quando você chorar
E eu ainda não sei como consigo sobreviver
Hard Times – Paramore

Ana Oliveira
Dias atuais...

Ouvi mais uma vez o barulho do lado de fora do portão de alumínio


cinza. Era como um déjà vu, aquele suave estalo, repetidas vezes, como o
soar de um sino me lembrando de que ele estava lá.
Caminhei pelo corredor estreito, com rodapés brancos e paredes em
suaves tons de amarelo, indo da sala de estar à cozinha. Retratos de minha
vida antiga inundavam as paredes, parecendo caçoar de mim em apáticos
tons de preto e branco. Olhei a câmera de segurança do portão e lá estava
ele, com uma cartela de ovos, estilhaçando-os bem na entrada da minha
casa. Júlia dormia, soltando pequenos roncos com a cabeça apoiada em meu
ombro direito. Alisei seu cabelinho loiro, com sua franjinha roçando de leve
meu maxilar. Cheirei sua cabeça, exalava um cheiro de morango. Eu não
fazia ideia de como era o paraíso, mas, se ele existisse, teria o cheiro da
minha bebê.
Segurei as lágrimas enquanto via Josiah esvaziar o arsenal de ovos na
minha fachada, aninhando mais minha filha em meus braços. Quando
aquilo teria fim? Quem dos dois se destruiria mais naquele processo? Eu
tinha certeza de que sairia mais quebrada, porque não revidava, porque
engolia tudo como se fossem cacos de vidro escorrendo pela minha
garganta, se aninhando em minha barriga.
Quando por fim atirou o último ovo, o meu maldito vizinho encarou a
câmera, com aqueles olhos intensos parecendo que podiam me enxergar,
que podiam engolir cada centímetro do meu corpo, devorar o meu medo.
No susto, cambaleei para trás, fazendo a pequena se remexer em meus
braços. Pesada, encarava aqueles gigantes olhos esverdeados que me
fitavam, que juravam vingança, mais do que ele já costumava fazer.
No momento seguinte, senti uma imensa tontura ao notar o que ele
estava fazendo. Soltei o corpo sobre a cadeira de armadura de ferro e banco
acolchoado, sob a mesa com tampo de granito da cozinha. Fiquei encarando
o monitor em tons de cinza em um apoio de TV na parede, observando a
miniatura de Josiah socar a câmera, até que só restasse uma tela em preto.
Mesmo com os ouvidos ficando mudos, eu não chorei. Sabia que ele
tinha terminado por hoje. Júlia despertou, parecendo pressentir minha
aflição. Encarou-me com as imensas esmeraldas que carregava no lugar dos
olhos, alisou meu rosto e sorriu, com seus dentinhos branquinhos exibidos
para mim.
— Tete... — sussurrou, ainda sonolenta.
Coloquei o seio para fora, encarando seu rostinho naquele momento de
conexão perfeita e deixei que ela apertasse meu indicador enquanto o
sugava. Deixei a leveza do momento da amamentação me tocar, inundar
meu peito e varrer a tensão que aquele maldito causava em mim.
O dia passou como sempre ocorria nas quintas-feiras. Eu vi a novela
das seis aninhada no sofá da sala, ouvindo as cigarras cantando, grudadas a
algum galho da minha árvore de jamelão. Tomei a terceira caneca de café
do dia, com minha bebê brincando com blocos de empilhar no tapete da
sala. Depois me dediquei à tarefa de preparar a nossa janta.
Observei a mão direita que envolvia a alça da panela repleta de água.
A mão chacoalhava, tremendo ao sustentar o peso da panela. Até as tarefas
mais simples se tornavam complexas, afinal, depois do acidente os ossos de
três dedos estilhaçaram em alguns lugares. Meus movimentos nunca mais
foram os mesmos, além da flexibilidade ou força... Tentei não chorar,
pensando em como nunca mais consegui escrever perfeitamente. Nem
mesmo um pequeno poema sobre maternidade, sobre nada... Que dirá os
romances que surgiam do nada na minha cabeça. Às vezes, eu acabava
repleta de ideias incríveis para novos trabalhos, mas era só começar a tocar
no computador, que meus olhos iam direto para a mão que me trazia o
sentimento de defectividade, e eu desistia...
Eu me sentia muito fracassada. Às vezes, entrava na minha página de
escritora, relia os comentários animados feito por leitores, as avaliações dos
livros que já lancei na vida, e sorria com uma mistura de saudade e tristeza.
Cozinhei um macarrão ao molho branco para mim, fiz uma papinha
caseira com carne e legumes para a pequena comilona que dei à luz, depois
a deixei vendo Masha e o Urso no cadeirão de bebê da cozinha, enquanto
tratava de colocar tudo em ordem. Dormir com a casa limpa era lei para
mim. Não que eu gostasse, que fosse uma supermãe, mas eu gostava de
cuidar do templo em que montamos juntos, do lugar onde o homem que
cuidou de nós duas viveu...
Quando enfim minha pia de granito estava brilhando, cheirando a
spray desengordurante e com todos os utensílios no lugar, desliguei a TV da
cozinha, ignorando a birra que Júlia fez. Contive seus bracinhos roliços
enquanto ela se debatia e tentava se prender ao cadeirão branco.
— Não... Nãoooooo! — ela gritava.
— Pode parar! — murmurei, apertando-a em meus braços. — Se ficar
quietinha e for para cama, mamãe promete que coloca vídeo no telefone.
Finalmente a pequena fera se conteve. Eu costumava pensar que era
uma mãe muito mole, evitava as rodinhas que as responsáveis formavam na
saída da creche. Adoravam ficar lá fofocando, ou criticando a criação uma
das outras. Raramente alguém conseguia me enredar para conversar quando
eu buscava Júlia. Justamente porque não permitia que criticassem a maneira
como eu cuidava dela, porque Deus e eu sabíamos como era difícil seguir
em frente, como era difícil ser uma mãe solo com todo aquele peso nos
ombros.
Fiquei deitada na cama imensa, com o corpo de lado, com Júlia
grudada em meu seio, enquanto uma trupe de galinhas em desenho cantava
sem parar. Eu já conhecia todas aquelas músicas de cor, mas minha bebê
nunca se cansava. Quando ela por fim pegou no sono, recolhi o seio e a
coloquei deitada no travesseiro ao meu lado. Grudei a chupeta em seus
lábios na velocidade da luz, antes que ela acordasse aos choramingos, e
deslizei para fora da cama que podia abrigar três adultos com folga.
Refiz a rotina de sofrimento de todas as noites: tentar escrever. Não era
uma surpresa que eu acabaria frustrada, encarando a janela que jazia
iluminada em tons de rubro em frente à minha. Eu podia ter milhares de
ideias, mas não conseguia colocar para fora. As palavras se afundavam em
mim, cavando profundamente, e se recusavam a sair.
Resignada, tomei chá de camomila, me aninhei embaixo das cobertas
de conchinha com a minha bebê e deixei que o dia finalmente terminasse,
pedindo que meu inconsciente parasse de jogar lembranças do passado
como sonhos. E entre o sonho e a realidade, tive a impressão de ver aqueles
assustadores olhos verdes no escuro, olhando profundamente para mim.
Capítulo 2

“Quem provou do ódio desejará provar coisas cada vez mais intensas”.
Caio Fernando Abreu

Ana Oliveira
Dias Atuais...

É estranho pensar na maneira como mudei com o passar dos anos. Eu


costumava ver cores nas coisas depois que conheci o amor. Ultimamente, só
tenho visto a vida em tons de cinza, como se eu estivesse eternamente
perdida em um temporal. Tinha certos momentos em que conseguia
enxergar alguns tons de rubro, a cor do ódio que sentia, a fúria infernal que
tomava conta quando tinha que confrontar as consequências do descontrole
de Josiah.
Quando desci as escadas com piso de cerâmica bege, que davam da
pequena varanda em tons de amarelo para a parte frontal do quintal, o
cheiro que senti foi de podridão, de coisas mortas, putrefatas. Já tinha
sentido que cheirava mal quando levei minha bebê à creche, mas, parada
aqui, o odor parece mil vezes pior. Retirei uma bandana branca do bolso
traseiro do meu short jeans, amarrei-a no cabelo, organizando os fios
castanhos ondulados que caíam em cascata ao lado do meu rosto,
arrastando-os para trás, como uma camponesa de filmes antigos. Assim
pude ter uma visão ampla da sujeira que estava na minha calçada.
Encarei a residência da senhora Helena a minha frente, a vizinha da
casa de madeira com telhado colonial. Volta e meia, eu a via na varanda do
segundo andar de sua casa, tricotando em uma cadeira de balanço, espiando
a rua sob os óculos em meia lua. Só corria para dentro quando o pessoal
barra pesada chegava no estúdio de tatuagem ao lado de minha casa, afinal,
todos detestavam a bagunça que fazia, com sua trupe de roqueiros,
tatuadores e mulheres pelo condomínio... Balancei a cabeça com o
pensamento, enquanto caminhava até o jacarandá mimoso que ficava em
frente à casa dela. Aquela majestosa árvore invejava a vizinhança,
principalmente quando florescia como naquele dia, gritando sua beleza em
tons de lilás. Parei bem embaixo da folhagem, enquanto encarava bem os
danos feitos pela sujeira no meu portão. Aproveitei para encarar a casa
container, tão preta quanto a noite e disposta em dois pavimentos. Dava
para ver o quintal, por conta da fachada moderna com grades negras, bem
como o portão de ferro vazado. Era uma casa bonita, moderna, com uma
escada do lado de fora que levava ao estúdio de tatuagem no segundo andar.
As imensas janelas de vidro dariam uma vista perfeita do interior, se Josiah
não mantivesse as cortinas sempre fechadas.
Voltando a minha calçada, posicionei a lixeira preta ao lado direito do
portão da casa, enquanto usei uma vassoura para juntar as cascas de ovos e
outros detritos causados pelo ataque do meu vizinho. O cheiro rançoso
enjoava, e provavelmente eu não era a única a sentir, o odor deveria estar
entrando também na casa dele. Mas o carro de Josiah não estava na
garagem, a única que estava se ferrando era eu.
Cretino! Cretino! Cretino!
Com o auxílio de uma pá, fui jogando tudo dentro da lixeira. Por fim,
utilizei uma mangueira para lavar tudo com água e sabão. Respirei fundo,
limpei o suor da testa e encarei o relógio prateado em meu pulso. Fazia
apenas uma hora que tinha deixado Júlia na creche, e ela ficaria lá até o fim
da tarde. Era meu pequeno escape diário, onde podia organizar a casa e a
minha mente. Se eu não tivesse a creche ou a avó dela, Marta, eu
certamente já teria surtado.
As ruas largas do condomínio estavam silenciosas, as crianças seguiam
sua rotina escolar, os adultos trabalhavam... ou a maioria. Eu podia ouvir
alguns passarinhos voarem em par, fazendo sons ao percorrer o espaço entre
duas árvores. Os canteiros da rua estavam com a grama aparada, e alguns
carros ficavam estacionados em frente às residências. Não fosse o inferno
pessoal que eu vivia com meu carrasco, ou alguns vizinhos fofoqueiros,
aquele lugar seria a moradia perfeita. Eu sabia que não era a única cansada
de Josiah, do caos que ele trazia para a região. Mas quem iria se opor? Todo
mundo sabia de quem ele era filho e ninguém estava disposto a pagar o
preço de mexer com ele, o papai poderoso não deixaria barato. Eu podia
ouvir a voz do velho, com aquele sorrisinho amarelo ao repetir “Fazemos
tudo pela família, Ana”.
Volta e meia, eu considerava a ideia do que minha psicóloga
aconselhava... A ideia de me afastar daquela casa, de viver em paz. Só que
eu não conseguiria, mesmo se quisesse. Tinha história demais naquelas
paredes, tinha lembranças de coisas que jamais voltariam.
O sol ardia em mais um dia do verão carioca, imponente e egoísta
sobre o céu azul. Não havia uma nuvem sequer, mostrando que os próximos
dias também seriam quentes. Com as bochechas avermelhadas por conta do
calor, resolvi molhar o rosto com a mangueira e senti um imenso alívio. Era
refrescante e relaxante. Não sei quanto tempo fiquei ali, aliviada,
respirando, existindo enquanto a água escorria pelo meu rosto, lavando o
suor e o cansaço.
— Dizem que um dia a água do mundo vai acabar... — uma voz
feminina e sensual avisou, enquanto eu podia ouvi-la mascando chiclete e
estourando bolas nojentas como sempre fazia. Sabia quem era: Isabela... —
Talvez existam mais vacas como você no mundo, desperdiçando tudo.
Segurei o palavrão na ponta da língua, enquanto largava a mangueira
no chão, sem me importar em secar o rosto. Apoiei as mãos nas coxas e
respirei fundo. Se ela estava ali, Josiah tinha voltado. Era incomum ele
aparecer no dia seguinte em que aprontou comigo. Fiz como uma criança
faria: ignorei. Se eu não olhasse, não estaria lá. Caminhei até o lado de
dentro do muro da minha casa e desliguei a torneira preta, que quase tocava
o chão. Voltei para enrolar a mangueira e confirmei minhas suspeitas: a
Ranger preta de Josiah estava parada do outro lado da rua, com sua trupe ao
redor. Isabela estava sentada na caçamba da picape, com seus cabelos
vermelhos presos em um coque no alto da cabeça. Encarou-me com seus
olhos negros, com o rímel borrado propositalmente. Seu piercing no septo
estava sempre torto, com a argola virada para um dos lados do rosto. Aquilo
sempre atiçou meu toque, e meu olho esquerdo tremia de nervoso. Por que
ela nunca acertava aquela merda?
Continuei, pegando a mangueira transparente e começando a fazer
voltas entre minha mão esquerda e o cotovelo. Meu coração estava
acelerado, e, ao invés de suar de calor, comecei a suar frio. Disfarcei o
tremor das mãos acelerando meus movimentos, e finalmente encarei Josiah,
que estava com as costas apoiadas na porta do motorista. Seu cabelo preto
estava molhado, caindo sobre as laterais da testa. Me encarava, feito uma
naja, com seu maxilar quadrado trincado. Suas sobrancelhas grossas
estavam erguidas, provocando-me. Pareciam me desafiar. O homem cruzou
os braços sobre o peito. Era um cretino muito bonito, sempre foi. Vestia
uma camiseta preta, bem larga abaixo das axilas, uma calça escura e
coturnos. Tentei não encarar o emaranhado de tatuagens que era seu corpo,
seus braços e seu pescoço. Eram tantas que mal podia observar sem ser
pega encarando. Mas era tanta informação, que eu quase não conseguia
disfarçar. Um exemplo eram os alargadores, um em cada orelha, maiores do
que da última vez que eu os havia notado. Ele havia transformado seu corpo
completamente, como se tivesse engolido o Josiah que conheci, ou o tivesse
matado e substituído por essa nova versão. Uma versão pesada, complexa e
sombria.
Isabela se mexeu, balançando o carro enquanto descia da caçamba.
Terminei de enrolar a mangueira e continuei ignorando o insulto dela. Eu
nunca entendi como ela conseguia usar coturno naquele calor. Ficava bonito
com aquele short jeans e o top vermelho escuro. Mas era visivelmente
quente...
— Já ouviu falar em sutiã? — Harry perguntou, assim que desceu do
banco do carona de Josiah, e parou ao lado dele.
Estreitei as sobrancelhas, tentando entender a provocação enquanto o
via dar uma golada na garrafa de Corona. Tinha tanto tempo que eu não
bebia, chegou a dar uma certa inveja vê-lo sorver o líquido âmbar, com um
pequeno pedaço de limão próximo à borda. Harry era diferente de Josiah.
Era moreno, magro, com porte de atleta. Josiah era muito alto, próximo aos
dois metros de altura, muito forte, com braços imensos e coxas muito
grossas. Embora Harry fosse bonito, ficava muito apagado ao lado do meu
vizinho. Nem mesmo todos os piercings que ele usava no rosto o fariam
chamar mais atenção do que o gigante musculoso ao lado dele.
Notei que o trio ternura tinha um olhar focado em um mesmo ponto...
em mim! Encaravam meus seios de maneira indiscriminada, e então notei o
que estava acontecendo. Olhei para baixo e vi que minha regata branca
estava encharcada, assim como meu short jeans. Era possível ver
perfeitamente os meus mamilos. Cobri os seios com a mão direita, mesmo
que odiasse que eles vissem os dedos deformados, e entrei em casa
segurando a mangueira com a mão esquerda.
Eu odiava Josiah, mas odiava ainda mais seus companheiros. Eram
debochados, idiotas e pareciam mais capangas do que amigos. Joguei a
mangueira no piso antiderrapante do quintal, feito para imitar o contorno
das pedras. Retirei a bandana da cabeça, dobrei e coloquei dentro da blusa,
para cobrir o bico dos seios. Não podia demorar ou eles poderiam...
— Isso, Jow... — Isabela gargalhava.
Não precisei chegar lá fora para entender que Josiah havia espalhado o
lixo inteiro novamente. Ele ficou parado, em frente ao meu portão de
garagem branco, enquanto eu apoiei a mão no muro amarelo e respirei
fundo, para não pirar e enfiar a mão na cara dele. Seria ótimo ver um
contorno avermelhado naquelas bochechas brancas.
— O que foi, Docinho? — provocou com a voz grossa e aveludada. —
Não ama ser uma empregadinha? Limpa essa porra de novo!
Encarei o sorriso cínico e de canto que Josiah me deu, e então olhei
para a lixeira jogada sobre a calçada de cimento. O lixo que me dera um
trabalhão estava todo espalhado, junto a punhado de frutinhas escuras que
eu havia recolhido do quintal. Meus olhos encheram-se de lágrimas e eu
pude perceber a feição dele mudando, estava repleto de um prazer sádico.
Seus olhos assumiram um tom de verde escurecido. Assenti para o meu
vizinho e caminhei até a lixeira, levantei-a e peguei a vassoura que estava
apoiada no muro. Ele não se moveu enquanto me observava atentamente,
devorando minha humilhação.
Fiquei ouvindo as risadinhas de Harry e Isa enquanto eu limpava
novamente a calçada. Engolia em seco, sentindo o orgulho arranhar a
garganta. Podia notar o olhar de Helena queimando em minhas costas,
escondida atrás das cortinas para Josiah não a ver. Também sentia outro
olhar, como o de um gavião, observando-me, como se eu fosse sua refeição.
Às vezes, eu erguia o olhar enquanto varria, ele estava vidrado em mim. Me
percorria, atento, curioso.
Executei a tarefa mais rápido do que da última vez, suando, arfando, e,
quando joguei a última pá de sujeira na lixeira, pude ouvir os amiguinhos
do meu vizinho sussurrando de que ainda estava sujo.
— Pronto! — disse ao meu vizinho, enquanto amarrava o saco de lixo
pelas bordas e o retirava da lixeira.
Notei o olhar de curiosidade do gigante de cabelos negros enquanto eu
caminhava em passos lentos para longe da minha lata de lixo. Percebi que
achou que eu iria até a lixeira de aço que ficava na calçada entre nossas
casas, mas parei bem onde ficava a divisão do muro que separava nossas
residências, no meio do contraste entre o amarelo e o negro. Encarei o
portão eletrônico preto da casa dele, depois o fitei, segurei seu olhar, ergui a
postura e sorri. Quando Josiah percebeu o que eu estava fazendo, se moveu
em minha direção, mas já era tarde. Eu já havia girado o braço e atirado o
saco de lixo por cima da grade. E dava para ver pelo portão vazado que eu
havia amarrado o saco muito mal, pois se abriu e derramou o conteúdo na
rampa da garagem dele.
Sorri de maneira debochada, triunfante enquanto virei para encará-lo,
mas ele já havia agarrado meu maxilar com força, enquanto empurrava meu
corpo com fúria até o portão de ferro. Bati as costas e respirei fundo,
vacilante, sentindo os seus dedos enterrados no meu rosto. Josiah arfava,
com ódio estampado nos olhos e o corpo curvado para chegar o mais
próximo possível do meu rosto. Podia sentir o cheiro dele, sempre o
mesmo, uma mistura de lavanda, hortelã e tangerina. Meu pesadelo nunca
trocava o perfume.
— Você vai me pagar por isso! — ameaçou, tão perto, que senti seu
hálito de cigarro mentolado.
— E quanto é que eu ainda devo? Afinal, já estou pagando há tempo
demais!
Seus olhos se arregalaram com minha resposta, cravados com acidez
sobre os meus. Vi suas pupilas dilatando, seu semblante tornando-se atento,
e a cabeça pendeu para o lado, como um cachorro furioso, mas intrigado.
— Está atrevida, Docinho... O que está querendo?
— Sabe o que eu quero? — sussurrei, chegando tão perto, de maneira
tão abusada, que quase colei meus lábios aos dele. — Que você se foda!
Havia certa diversão no sorriso atravessado que me dedicou. Não
afastou o rosto, encarou os meus lábios por um certo tempo e continuou a
sorrir. Havia um desafio no ar, e ele captou. Percebeu que eu estava cansada
de aguentar, que não iria mais me manter submissa. Eu queria revidar. Eu
iria revidar...
— Seu desejo é uma ordem, Docinho!
Em segundos, seu corpo se afastou do meu e fiquei paralisada, com o
coração batendo tão forte, que eu podia sentir a veia do meu pescoço
saltando. Ouvi quando ele abriu o portão social de sua casa aos chutes, e
sua dupla dinâmica o seguiu. O desafio estava no ar, e eu sabia que ele não
iria parar mais, que agora seus ataques seriam piores. Mas eu estava pronta,
revidaria.
Capítulo 3

“O ódio tem melhor memória do que o amor”.


Honoré de Balzac

Ana Oliveira
Dias Atuais...

Estava com raiva enquanto me despia e ia para o banho, entrando no


pequeno cômodo de azulejos desbotados, procurando uma maneira de
aliviar a tensão que varria meu corpo. Xingava Isabela, Josiah e até Harry.
Xingava todas as memórias que me prendiam naquela maldita casa, que não
me deixavam ir embora, que me mantinham refém das paredes e toda a
história que nelas fora forjada.
Permaneci embaixo do chuveiro por um certo tempo, lavando os
cabelos que escorriam em ondas marrons até o quadril, relaxando, sentindo
alguns nós de tensão nos músculos se desfazerem. Apoiei a cabeça no
azulejo esbranquiçado do banheiro, exalando o ar pela boca profundamente.
Repassei, mentalmente, dezenas e dezenas de vezes a cena que havia
acontecido no portão. Engolia em seco ao lembrar daquele maxilar
contraído, da postura rígida, o olhar curioso...
Mal podia acreditar que tinha reagido, finalmente. Fora o momento
dos cacos de vidro que vivemos no passado, eu nunca revidei as
provocações, os ataques pessoais de Josiah. Hoje foi diferente, meu sangue
ferveu nas veias e eu não consegui ficar quieta. Senti tanta satisfação ao ver
aquele olhar tomar contorno de surpresa, as sobrancelhas se contraindo, os
olhos estreitando. Foi tão prazeroso fazê-lo sentir a mesma fúria que me
provocava a todo o tempo...
Quando finalmente tive coragem de sair do banho, recomecei a rotina
diária, me revezando entre manter a casa e as roupas limpas, retirar as
folhas e jamelões que caíam da árvore nos fundos do quintal, retirar leite
com a bombinha, porque meus seios sempre acabavam vazando um pouco...
Marta, a avó de Júlia, sempre me dizia para retirá-la do peito. “Ela já tem
um ano e quatro meses, Ana. Já come de tudo e está repleta de dentes, não
precisa mais ficar grudada ao seu peito vinte e quatro horas”, ela repetia.
Eu já havia desistido de explicar que queria amamentar a livre demanda,
pelo tempo que minha bebê quisesse. Marta sempre dizia que não era
normal meus seios ainda vazarem, que isso só acontecia até os três meses
do bebê. “Eu tive dois filhos, sei do que estou falando”, tagarelava.
Não contava à avó de Júlia que costumava tomar um SOS
administrado por minha psiquiatra, pois, quando o meu mundo desabou,
somente os antidepressivos conseguiram me manter sã. A médica me disse
que aquilo poderia estar aumentando o hormônio responsável pela produção
de leite, mas eu não queria deixar o remédio, nem tomar algo que pudesse
afetar a amamentação. Era um remédio seguro para minha bebê e me
ajudava... Enfim, os benefícios superaram as partes ruins. Eu preferia vazar
leite como uma vaca leiteira, era o preço.
Não vi o sol se arrastando pelo céu, nem o momento em que a lua,
preguiçosa e terrivelmente redonda, se apossara do ambiente. Fiquei
perdida em meus afazeres, até que o alarme do meu relógio de pulso tocou,
marcando que faltavam vinte minutos para as dezoito horas. Coloquei um
macaquinho preto, solto no corpo e com babados ao redor do decote, depois
caminhei até a creche, que era bem pertinho do condomínio, a apenas uma
quadra. Quando cheguei à escolinha, observei o edifício de dois
pavimentos, pintados em um tom de verde vivo e que gritava aos olhos. Era
fofo ver a turminha de Júlia reunida. As miniaturas de seres humanos
vinham de mãozinhas dadas e sempre corriam em direções diferentes, aos
braços de seus responsáveis. Era tão leve e doce notar aqueles olhinhos
ávidos me procurando em meio às pessoas... Quando me notava, corria
trocando os pezinhos em minha direção. Eu costumava agarrá-la e encher
de beijos, provocando as gargalhadas mais gostosas de ouvir em todo o
mundo. Depois a professora surgia para me entregar a mochilinha da Masha
e o Urso e me contar as proezas, algum exercício lúdico feito durante o dia,
ou uma nova palavra que aprendeu e ficou repetindo sem parar. A parte
mais feliz da minha vida era ela, ou talvez a única. Nem mesmo ler livros
tinha a mesma magia que chegou a ter um dia.
Fui caminhando de mãos dadas com a criança para casa, enquanto ela
segurava em uma das mãos um pop it de estrela, até que Júlia se cansou e
pediu colo. Ela amava ficar enfiando o dedinho indicador naquilo, e eu
venerava qualquer coisa que chamasse sua atenção e me desse uns
minutinhos de alívio.
Assim que entramos no condomínio, passando pelos enormes portões
de vigas de ferro e pela pequena cabine da guarita, lembrei-me do jantar
que Marta nos ofereceu, por pouco não esquecendo-me completamente do
combinado. Avistei a casa imponente na esquina da Rua Um. Era uma
construção de apenas um pavimento e grades ao invés de muro, toda feita
em suaves tons de rosa pálido. Quando Júlia viu a avó, que estreitava os
olhos para nos ver de longe, tentou se soltar de meus braços para correr até
a senhora que ela tanto amava.
— Boa noite!
— Boa noite, Ana, querida! Me dê essa princesinha!
Entreguei minha filha à avó, uma mulher de baixa estatura, na faixa
dos sessenta, com cabelos grisalhos e curtos, sempre bem escovados.
Costumava trajar conjuntos finos, monocromáticos, com sandálias Anabela
e joias à mostra. Júlia volta e meia tentava arrancar seus cordões.
— Preparei um arroz de forno maravilhoso, com uma saladinha
caprese que você tanto ama... — avisou, caminhando pelo jardim repleto de
flores e anões feitos de argila. — E de sobremesa, um bolinho mole de leite
condensado.
— Sabe que não precisava ter todo esse trabalho...
— Não é trabalho algum agradar minha norinha.
Sorri timidamente, enquanto caminhava até a mesa quadrada e com
tampo de vidro da sala. Era uma casa elegante, repleta de quadros e colunas
romanas em tons de branco. Sentei-me ao lado dela, enquanto a mulher
posicionava a neta no cadeirão branco. Havia uma mesa posta perfeita em
tons de azul, com taças bico de abacaxi, pratos de cerâmica sofisticada e
guardanapos de tecido que combinavam perfeitamente com o jogo
americano. Ela era muito chique e caprichosa, além de carinhosa comigo.
Seu único defeito era o comum à maioria das sogras, dar pitaco na criação
da neta. E esse defeito era o que mais me irritava em qualquer pessoa...
Não fiz cerimônia, servindo-me com a salada, salivando ao ver o
molho pesto por cima das bolotas de muçarela de búfala, com folhas de
manjericão sobressalentes. Agradeci quando ela me serviu o suco de laranja
e sentou-se à minha frente. Fisguei dois cubos de gelo do baldinho de aço
com o pegador, soltando-os sobre o líquido amarelo.
— Como ele tem estado? — fez a pergunta que eu já esperava,
enquanto servia o prato de plástico rosa com abóbora amassada, feijão e
carne picada para Júlia, e começava a preparar as colheradas. — Soube de
algumas coisas...
Senti meus músculos contraindo, minha postura empertigou enquanto
tossi, engasgando subitamente com a pergunta, erguendo meu olhar do
prato e direcionando-o a ela.
— De mal a pior, Marta. — Sorvi um pouco do suco, sentindo como
aos poucos até a comida ia perdendo o sabor. Era esse o poder que ele tinha
sobre mim, conseguia apagar tudo, retirando o gosto, a cor... — Atacou meu
portão com ovos, quebrou a câmera de segurança e ainda se indignou
quando eu atirei o lixo no quintal dele, em represália.
Observei os olhos claros se apertarem, os lábios se contraírem
enquanto levava a comida à boca de minha filha. Senti o clima pesado e
pousei o garfo dourado ao lado do prato, enquanto me sentia subitamente
enjoada.
— Sinto muito, Ana — sussurrou, com os olhos marejados. — Queria
poder fazer algo, mudar as coisas...
— Sabe que não é sua responsabilidade! E não tem que se desculpar
por algo que não foi você quem fez. Não é você quem anda me ferindo...
— Helena me ligou, contou que ele a havia abordado junto aos seus
amigos desocupados.
— Eu a vi bisbilhotando...— murmurei.
— Ela só fez isso porque pedi que ficasse de olho.
— Sei...
— Está tricotando um cachecol para mim — desconversou, e eu não
sabia se ficava feliz ou chocada com sua capacidade de trocar o assunto. —
Sabe que pretendo ir a Gramado no inverno?
— Sério? Que incrível! Ano passado até nevou por lá. Ouvi dizer que
é uma cidade encantadora.
— É, sim. Irei com Henrique. Será como uma lua de mel, só que para
namorados.
Era nítido o brilho vívido que ela adquiria quando falava de seu
amado. Estavam juntos há quase dois anos. E embora ele fosse vinte anos
mais jovem, era perceptível que o homem a olhava com amor. Um dos
motivos de ela viver sozinha, era que a maior parte de sua família não
aprovava a relação. Julgavam tanto, que aos poucos foram se afastando.
— Tenho certeza de que será...
— Ah, olha quem chegou! — Marta comemorou. — Pensei que não
fosse vir...
Então notei o lugar a mais na mesa, e me virei para a entrada. Sorri
largamente ao ver Luana. Ela desfilava com sua altivez até a mesa, em um
vestido longo e com estampa de onça, enquanto largava sua mochila sobre o
sofá em L.
— Oi, tia! — cumprimentou, beijando a testa da senhora. Era uma das
poucas pessoas que não se afastou. — E você, minha amiga gostosa?!
— Oi, Lu! — disse, levantando-me para abraçá-la. — Quanto tempo...
— Sim, finalmente tive uma folga da monografia. Esse mestrado em
Economia ainda vai me enlouquecer. — Então deixou meus braços e se
voltou para a criança. — E você, princesa? Mas come, hein...
— Comida... — Júlia apontou para o prato, com as sobrancelhas
erguidas e certa surpresa, afinal, não reconhecia Luana.
— Ela já está falando, Deus do céu! — exclamou, sentando-se do
outro lado da mesa. — Como esses monstrinhos crescem rápido...
— Crescem, menina — concordei. — Júlia já anda tagarelando várias
palavras.
E então eu tive uma certa impressão do que ela diria a seguir. Seus
olhos anunciaram, a postura enrijeceu e ela engoliu em seco, fitando-me
com o semblante tornando-se escuro:
— E Josiah?
— Na mesma... — desconversei. Detestava a maneira como
costumavam me questionar sobre ele, como se ainda fôssemos algo, como
se eu realmente devesse saber sobre aquele maldito, estar prestando a porra
da atenção em Josiah para notificar a família. Eu as amava, as duas, mas
não gostava daquilo, de ser usada daquele jeito. — E você, como vai?
— Ah, estou bem. Mas o mestrado tem me deixado de cabelos em pé.
Já estou na reta final, e, quando titia me ligou, topei na hora.
— Ah, ela caprichou no jantar.
Comemos sob as piadas e histórias mirabolantes de Luana com seus
peguetes. Foi a maneira leve de descomprimir o ambiente, mas, mesmo que
ela fosse divertida, que já tivesse sido uma de minhas pessoas favoritas no
mundo, vê-la sorrir me lembrava. Ela, Marta, minha bebê: tudo... Aquela
vida era um eterno gatilho das coisas que eu havia perdido. De tudo que a
vida havia me roubado. Eram fodidos lembretes de que eu estava sozinha,
que ele havia partido e nunca mais voltaria a ser o amor da minha vida. Que
minha filha e eu estávamos sozinhas, e, mesmo que Marta existisse, não ter
a figura do pai da Júlia acabava comigo. Me sentia fraca, impotente, e nem
mesmo a porra das horas semanais com a minha psicóloga conseguiam
amenizar o buraco dentro do meu peito, o barulho insano que vivia em tons
de cinza na minha mente. Eu odiava viver na sombra eterna do passado
perfeito.
— Ana?
Dei um pequeno salto na cadeira, encarando o olhar fixo de Luana e
Marta sobre mim, e até mesmo a neném parecia boquiaberta me encarando.
— Sim?
— Ah, você estava aí com a maior cara de perdida, olhando fixamente
para a parede. Achei que precisava despertá-la de qualquer que fosse o
mundo em que você estava — Luana sorriu, estalando o dedo para enfatizar
a palavra “despertar”.
— Valeu, já peguei a passagem de volta — brinquei.
— Então... — Marta pigarreou. — Chamei a Luana hoje, mas não foi à
toa, querida. — Fechei o semblante. Não gostava de segredos, de surpresas,
preferia que tudo sempre fosse as claras. — Achei que seria bom você
passear, sair para... Como se diz hoje em dia? “Curtir”...
— Eu? — perguntei, rindo de maneira completamente descrente.
— Sim — Luana interrompeu. — Titia me chamou para que nós duas
pudéssemos ter uma noite das garotas. Sair, se embriagar, como nos velhos
tempos.
— Beber? Tá doida? Júlia ficou o dia inteiro na creche e...
— E? Você precisa viver! Até quando vai ficar se matando em doses
homeopáticas?
Encarei o olhar de cima que Lu me deu, com o rosto ossudo e
quadrado inquisidor sobre mim. Estava com raiva por minha sogra ter
marcado um compromisso sem minha permissão. Um compromisso que
envolvia sair à noite, sem a minha bebê. Droga! Eu nunca a deixei sozinha à
noite, nunca, desde que nasceu. Sabia que a avó era para ela como um
verdadeiro anjo da guarda... Senti uma dúvida cruel e fiquei surpresa por
não negar a ideia de maneira imediata. Tinha uma chamazinha, quase se
apagando, que me lembrava das noitadas, de como eu me sentia feliz atrás
de uma mesa em um barzinho, tomando destilado ou cerveja, falando alto,
vivendo...
— Não sou mais essa pessoa, Luana — avisei, começando a me
levantar e retirar a mesa. — Essa pessoa com vida, que vai a bares, que faz
noites de garotas.
Segui para a cozinha, abrindo a porta de madeira branca com o quadril.
Ouvi os passos no porcelanato.
— Não é mais essa pessoa com vida? — Marta indagou, de maneira
calma. — Você não está morta, Ana. E não vou deixar que continue agindo
como se estivesse. Todos estamos seguindo em frente, até Josiah... Você
deve seguir também.
A menção de Josiah fez minha mente mergulhar em lembranças da
festa que ele deu em sua casa, no estúdio repleto de mulheres, a casa tão
cheia de pessoas que elas se espalharam pela rua, bebendo e atirando
guimbas de cigarro em tudo. Colocaram aquele maldito som alto, que
tremeu as paredes e fez a Júlia chorar por não conseguir dormir. Ele
realmente estava vivendo, me culpava por tudo, mas nunca parou de viver.
Eu parei, e não era justo.
— Tem razão! — Resignei-me. — Vamos fazer a noite das garotas.
Lu, que havia surgido ao meu lado com alguns pratos, sorriu,
abraçando-me pelos ombros.
— E quem sabe dar uns amassos? Ana está virgem de novo... — Marta
zombou, nos fazendo cair na gargalhada.
— Acho que não estou pronta para amassos... — sussurrei. — Mas
vocês estão certas. Acho que preciso me descomprimir.
— É isso aí, garota. É hoje que você coloca o cropped finalmente.
●●●
Me sentia um pouco estranha com aquela roupa. Sentada em um dos
barzinhos da Lapa, bem pertinho dos Arcos, via-me um pouco deslocada.
Toda hora eu descia a saia curta em malha preta, e que ainda tinha uma
fenda do lado direito da coxa. Ficamos na área coberta, dentro do bar,
porque do lado de fora costumava ficar cheio, com pessoas fumando, e
Luana odiava cigarro.
Luana havia se preparado para me arrastar para uma noitada, trouxe
roupas para nós duas, além de ressuscitar minha maleta de maquiagens.
Meus cabelos estavam soltos, em ondas pelas costas, a maquiagem estava
pesada, com um esfumado em tons de marrom e preto nos olhos, a boca
com um gloss avermelhado, e uma choker preta alisava-me o pescoço. Eu
estava com um ar de mulher gata, mas minha autoestima andava no chão.
Sentia-me inchada, com o rosto feio, e ainda tinha esquecido de levar os
absorventes para os seios. Estava morrendo de medo de ficar com a roupa
molhada de leite.
Olhei ao redor, e o bar era muito bonito, com paredes de tijolinhos
vermelhos, mesas no meio do salão em madeira clara, e os cantos com
sofazinhos vermelhos. Uma área inteira no fundo do salão estava reservada,
separada com um cordão, tipo aqueles onde eles distinguiam os ricos do
restante dos mortais.
— Garçom... — Lu chamou, enquanto o homem de meia idade
chegava, com seu uniforme preto e o talão de pedido. — Duas tequilas, por
favor!
— E uma água sem gás — pedi, olhando ao redor.
Como já estava perto das dez da noite, em plena sexta-feira, o reduto
da boemia começou a lotar. Havia grupos de pessoas em todas as mesas, e
foi difícil conseguir a nossa. Uma música ambiente soava nas caixas de
som, bem baixa, sendo ultrapassada pelas vozes ávidas e embebedadas.
— Vai, se anima! — Luana me cutucou, tirando uma selfie de nós
duas.
Nem precisei olhar uma segunda vez para ver que saí com um sorriso
amarelo e um olhar assustado. Tentava não olhar o relógio a todo momento,
nem ficar pensando em Júlia. Aquilo estava sendo o mais difícil.
— Estou tentando... — ralhei, abaixando novamente a saia, enquanto
me mexia na cadeira de madeira.
Quando o garçom chegou com a bebida, salivei, encarando o líquido
claro, ao lado de sal e limão. Luana me encarou, sorrindo ao erguer uma das
sobrancelhas bem preenchidas. Captei o comando e não me contive ao virar
o shot, em um coro com ela.
— Uh! Que delícia... — comemorei, chacoalhando a cabeça, como
antigamente.
— Há quanto tempo eu queria isso! — ela comentou, tentando gritar
por cima das vozes do lugar. — Sair e só me embriagar sem pensar em
nada! Faz ideia?
— E eu, que nem imaginava que fosse fazer isso antes da próxima
década?
Quatros shots depois, minha amiga e eu já não estávamos ligando de
pagar calcinha. Fiquei flertando indiscriminadamente com um gostosão da
mesa ao lado, enquanto Luana estava de pé, embaixo de uma das caixas de
música da parede, rebolando ao som de uma música da Ludmilla.
— E aí, eu fiquei com a mão assim... — expliquei, percebendo que seu
olhar continha um certo ar de pena. — Mas não liga, não! Ainda dá para
fazer coisas bem gostosas com essa mão.
O homem alto, moreno e de olhos penetrantes sorriu, com seus lábios
grossos afastando-se para exibir um sorriso com dentes brancos. Sua camisa
azul escura estava aberta, dando um leve vislumbre do peitoral malhado.
Me remexi na cadeira, mordendo os lábios com minha maior cara de safada.
Céus, estava me sentindo poderosa, gostosa... Nada poderia estragar minha
noite, ou aquela vibe boa.
— E você faz o quê?
— Sou escritora — expliquei. — Mas ando em um enorme bloqueio.
Depois do acidente, nunca mais consegui escrever nada, e sabe como é...
Uma bebê pequena também suga muito o meu tempo.
O homem se remexeu na cadeira após ouvir a palavra bebê. Fechei o
semblante. Será que um homem gostoso daqueles poderia ser outro babaca?
Não era possível que eu estava tão fadada a encontrar cretinos. Dando uma
última chance, resolvi continuar a conversa:
— E você?
— Sou professor de Geologia.
— Ah, que legal — elogiei, enquanto minha amiga se sentava ao meu
lado, dando-me um leve cutucão. Expulsei o braço dela, cruzando as pernas
e chegando mais perto da mesa do homem, que ainda nem sabia o nome. —
Quer ir à minha casa analisar como é o solo?
Fiquei vendo a gargalhada tímida que ele deu, até que Luana deu-me
outra cutucada, dessa vez com mais força. Olhei para ela, brava. E então me
segurei na mesa para não cair. Aqueles olhos mortalmente claros estavam
vidrados em mim, me devorando, enquanto seu maxilar se trincava, e eu
podia jurar que seus dentes iriam quebrar, de tanto que ele os cerrava. Havia
uma fúria mortal nos olhos de Josiah.
Capítulo 4

Só vai ficar lá e me ver queimar


Mas tudo bem, porque eu gosto do jeito que dói
Love The Way You Lie - Rihanna

Ana Oliveira
Dias atuais...

Sabe quando algo nos assusta tanto, que de repente tudo parece
silenciar? Eu não estava mais em um bar lotado de pessoas falando pelos
cotovelos, me via em um limbo, escuro, onde dois olhos viperinos
prometiam me devorar.
Josiah estava sentado em uma das poltronas da área que estava
separada com o cordão, a que parecia vip. Juntos estavam Harry, Isa, e mais
um monte de tatuados e com vibe de malvados ao redor, parecendo aqueles
clubinhos de roqueiros que toda cidade tinha. Era aquele pessoal que
podíamos ter dois pensamentos ao olhar: ou que eram fodões e queríamos
fazer parte do grupo, ou que eram filhos da puta e precisávamos ficar longe.
Sempre ficava com a segunda opção.
Ele estava bonito, largado sobre a poltrona, com as pernas abertas, as
costas pressionando o encosto e uma garrafa de água presa entre os dedos
grandes. Entre algumas goladas, encarava o meu objeto de flerte. Seu olhar
era profundo, repleto de promessas de morte. Josiah estava enfiado em
calças pretas, coturnos de mesma cor, e uma camiseta com os tons da noite.
— Tentei avisar que ele estava ali, mas você não me ouvia — Luana
sussurrou, tropeçando nas palavras.
— Merda! — murmurei, coçando a cabeça.
— Que coisa! Mil anos que não vejo Josiah, e, de repente, ele brota,
parecendo que surgiu dos bueiros.
O comentário de Luana me arrancou uma risadinha. Realmente, eu
estava tão entretida com minha paquera que não vi o grupinho chegar. O
destino adorava pregar essas peças, não era possível... Qual a probabilidade
de ele sair da Tijuca, onde morávamos, e estar no mesmo bar que eu, na
Lapa e no mesmo horário? Que saco!
— O que foi? — o carinha com quem eu estava flertando perguntou.
— Você conhece aquele homem? Está olhando como se fosse seu
namorado...
— Não. É só o babaca do primo dela! — expliquei, levantando-me da
cadeira. — Um minuto — pedi. — Vou ao banheiro.
Eu precisava sair dali. Caminhei, trocando os pés, olhando ao redor e
procurando uma placa que indicasse o banheiro. Quando percebi que seria
impossível ler qualquer coisa, porque minha visão estava levemente
embaçada a distância, capturei um garçom, que me apontou o corredor do
meu destino.
Enquanto notava que, para chegar até lá, teria que passar pela mesa
“vip”, observei Isabela grudada ao colo de Josiah. A garota não me notou,
enquanto ria com um dos brutamontes que lhe entregava um copo com
alguma bebida azulada. Algumas mesas foram colocadas na frente dos
sofás, repletas de baldes, alguns com destilados e energéticos, outros
suportavam garrafas de cervejas variadas. Ignorei a queimação nos olhos e
o nó na garganta com aquela cena, e passei por eles. Abaixei a cabeça,
tentando fazer com que mais ninguém daquele grupo nojento me visse.
Virei no corredor estreito, batendo em um peitoral masculino com
cheiro cítrico. Olhei para cima, vi um sorrisinho branco, de lábios grossos e
contornados, e gelei. Sabia o que viria a seguir:
— Olha só quem está aqui! — Harry gritou, segurando meu ombro,
enquanto eu tentava escapar de seus braços. — A surtada...
— Cai fora! — mandei, entre dentes.
Ouvi Isabela fazer algum comentário, causando risadinhas no seu
pessoal. Cerrei os dentes. Só queria sair correndo dos olhares que
queimavam atrás de mim, das piadinhas idiotas sussurradas em meio ao
caos dos amigos de Josiah.
— Calma, surtadinha! — Harry pediu, rendendo-se ao sair da frente,
com seu gingado de malandro em uma calça jogger repleta de correntes em
cor escura, e uma camiseta terrivelmente baixa no peitoral, exibindo os
músculos do peito e os mamilos, ambos com piercings prateados.
Corri para o banheiro, empurrando a porta vermelha com força e
chegando até a imensa bancada de mármore preto, em frente a um imenso
espelho. Que droga! Eu me sentia encurralada quando ficava perto daquele
bando de corvos. Estava tão nervosa, que minhas mãos tremiam. Encarei o
meu reflexo, arfando, notando que estava um pouco suada, com o rímel
levemente borrado, porque devo ter lacrimejado ao ver Isabela se sarrando
nele...
Não sabia como foi que as coisas chegaram naquele ponto entre os
dois. Não sabia se ambos tinham um relacionamento, se eram amigos com
benefícios, ou se só faziam aquilo quando eu estava olhando. Mas faziam, e
sempre me afetava.
Respirei, trêmula, tentando me acalmar, então notei a bola molhada ao
redor do meu seio esquerdo.
— Merda, merda, merda! — sussurrei, entrando na cabine e pegando
um bolo de papel higiênico.
Tentei secar o cropped pelo lado de fora, e, quando não surtiu efeito,
repeti o gesto pelo lado de dentro.
— Ai, que ódio! — berrei, atirando o papel dentro do vaso sanitário, e
apertando a descarga de metal na parede. — Isso é porque a porra da noite
estava perfeita...
Saí da cabine, lavei as mãos na pia e as sequei, tentando controlar a
vontade de surtar. Quando olhei para as manchas no espelho, dei um leve
salto. Josiah entrou no banheiro e se apoiou de costas na porta vermelha,
cruzando os braços musculosos. Meu coração começou a bater tão forte,
que parecia tamborilar em meus ouvidos. Me afastei do espelho, assustada,
encarando o seu olhar e seu semblante misterioso.
— Não pode entrar aqui! — avisei.
— É mesmo? — debochou, erguendo uma das sobrancelhas. —Acho
que já entrei, não é?
— Sai da frente da porta! — ordenei, contraindo o maxilar, com ódio.
— Eu não quero falar com você.
— Não vou sair, Docinho. Pode gritar, meus caras estão do lado de
fora segurando a porta. Só vão abrir quando eu mandar — sussurrou,
cruzando os braços fortes. — E não estou a fim de fazer isso agora.
Recuei quando ele começou a dar passos lentos em minha direção,
com seu coturno pesado sendo o único som no ambiente a contrastar com a
música baixa que soava na caixa de som do teto. Dei passos mínimos para
trás, até sentir a parede de tijolos gelados em contato com as minhas costas.
Ele estava cada vez mais perto. Quando achei que iria parar, porque não
havia mais nenhum espaço sequer para ele, Josiah agarrou o meu quadril,
sustentando o peso do meu corpo ao me erguer, pousando-me com força em
cima da pia de tampo preto.
— O que está fazendo? — perguntei, tentando empurrar o seu peito.
Ele riu quando minha agressão não lhe causou cócegas. Meu corpo
inteiro esquentou com o toque das minhas mãos em sua camiseta, e era
irritante a maneira como ele causava sensações em mim. Sentia o sangue
fervendo ao me percorrer, enquanto sua respiração quente batia em meu
rosto, fazendo todo o meu corpo se arrepiar. Josiah não retirou as mãos do
meu quadril.
— E você? — indagou, sorrindo enquanto erguia a mão direita em
direção ao meu rosto, usando as costas do indicador para alisar a minha
bochecha. — Largou a Coisinha em casa para arrumar uma trepada na
Lapa? Não era assim que você imaginava estar aos vinte e dois anos...
Sua provocação atingiu meu corpo como uma pancada. Engoli em seco
e segurei as lágrimas com fúria. Ele me conhecia tão bem, que sempre sabia
os pontos certos para me atingir. Entendi a menção ao passado, falando
sobre como eu me imaginava adulta, sobre meus fracassos pessoais... Mas o
golpe mais baixo foi citar a minha filha.
— Não fala nela, porra! — gritei, deixando as lágrimas irromperem,
escorrendo pelas minhas bochechas. — E nunca mais a chame assim!
— Não chamar assim? Assim como? — fingiu-se de desentendido,
esfregando o dedo por uma das minhas lágrimas. Estremeci sob o toque,
tentando me afastar, com o coração doendo pela proximidade, pelo cheiro,
pela dor em ver tudo em que ele havia se transformado. Solucei quando
Josiah levou o dedo à boca, provou minha lágrima e sorriu. — Para de
drama, Ana! Só disse a verdade, você deixou a Coisinha com a Marta para
arrumar um sexo ca...
Antes que ele terminasse a frase, bati em seu rosto, dando um tapa,
ouvindo um estalo. Encarei a feição surpresa dele com ódio, tentando
empurrá-lo para longe das minhas pernas. Josiah sorriu de maneira amarga,
enfiando a língua entre os dentes, alisando a bochecha enquanto me engolia
com os olhos. Percebi que meus empurrões não o faziam sair do lugar.
— Eu já disse... — murmurei, aproximando o rosto muito lentamente
do dele, cravando as unhas em sua camiseta na região do peitoral. — Não
fala dela, e não a chame como se não fosse um bebê! Não é por que você
finge que Júlia não existe, que ela é apenas uma coisa, que não é sua...
— Cala a boca! — sussurrou, contraindo o rosto, tentando se afastar
como se tivesse sido golpeado.
Com uma injeção de raiva em minhas veias, saltei da pia e o
empurrei na parede, com tanto ódio, que ele chegou a se desequilibrar. Seu
semblante parecia perdido, atordoado.
— Como consegue, hein? Como consegue se deitar na cama e dormir,
como se não tivesse feito nada? — gritei, chegando muito perto do seu
rosto, de novo, ficando na ponta dos pés — Como se não tivesse me
arruinado?
— Eu disse para calar a boca, Ana! — avisou, avançando sobre mim.
Foi tudo em questão de segundos. Josiah envolveu os dedos imensos
em meu pescoço e me girou, trocando de lugar comigo e me colocando na
parede. Senti sua mão apertando de leve o meu pescoço.
— Sério? — perguntou, respirando fundo enquanto eu podia vê-lo
quase soltando fumaça pelas narinas. Meu peito batia tão forte que eu
poderia desmaiar. — Você vai mesmo falar em dormir com a consciência
limpa? Quer que eu te lembre? Quer que eu jogue na sua cara a porra toda
que você fez? Como você acabou conosco? Que você é a porra de uma
criminosa, que não foi presa porque o meu pai, o velho que você tanto
condena, impediu?
— Cala essa maldita boca! — gritei, apertando a mão dele, tentando
me soltar.
— Você não é a santinha que finge acreditar ser... E não tenta me
colocar como culpado em relação à Coisinha! Foi você quem me afastou,
quem nunca me deixou chegar perto.
— Para de falar! — gritei, histérica.
Quando percebi que ele não pararia, que continuaria atirando coisas
em cima de mim, desesperada, avancei contra sua boca e a mordi. Capturei
seu lábio inferior e cravei os dentes, com fúria. Ele gemeu de dor, apertando
o meu pescoço, enquanto eu sentia o sangue escorrendo pela minha língua.
Quando meu ex-namorado apertou tanto, a ponto de eu sentir o ar escapar
do meu corpo, eu o soltei.
Josiah estava com um olhar perverso sobre o meu rosto, com o lábio
inferior repleto das marcas dos meus dentes, e eu sentia o gosto metálico
em minha boca. Sentia o rosto molhado das lágrimas que eu não queria
mais deixar escondidas, enquanto ele lambia a boca, dava passos para trás e
depois andava em círculos pela minha frente, enfiando as mãos nevosas
entre os fios do cabelo, alisando-os para trás.
— Isso precisa acabar, Josiah — supliquei, caminhando até ele e
segurando seus ombros. — Precisa me deixar em paz.
— Eu odeio você! — gritou, me empurrando novamente contra a
parede de tijolos. — Não vou deixar você em paz, nem vou ir embora,
como você espera que eu faça. Vou te destruir, fazer tudo que eu puder para
minar qualquer coisa que a deixe feliz. Ou você acha que merece paz?
— Vai me destruir, sim — murmurei, encarando-o nos olhos. — E vai
se acabar no processo, queimar tudo e todos que nos cercam juntos, porque,
se você não parar, vou começar a revidar com a mesma força.
— Então está feito! — ele sussurrou, enquanto apoiava a cabeça na
parede ao meu lado e inspirava o cheiro do meu pescoço. Senti novamente
meu corpo incendiar, com uma mistura tensa de ódio e outra coisa. —
Vamos ver quem acaba com o outro primeiro!
E antes que eu pudesse responder, ele cravou os dentes no meu ombro
e o mordeu, com força, me fazendo gritar enquanto apertava seus ombros.
Senti uma imensa ardência enquanto ele se afastava, sorrindo, prometendo
coisas somente com o olhar. Observei enquanto Josiah dava socos leves na
porta do banheiro, e então alguém do outro lado abria a porta.
— Eita! — Harry debochou do lado de fora. — Foi boa a parada, hein?
Está até sangrando...
— Fica quieto! — Josiah murmurou.
— Merda! — gritei, chutando a lixeira do banheiro.
Me apoiei na pia, encarando o espelho. Havia uma marca de
mordida imensa no meu ombro esquerdo. A alça fina do meu top preto
estava caída sobre o braço, e a coloquei no lugar. Enxuguei o rosto com
papel e respirei fundo.
Ele realmente queria guerra e, pelo visto, não iria parar. Não podia
deixar que aquele homem continuasse me atacando, perturbando,
acreditando que era realmente inocente em todo aquele caos. Ele iria
queimar na mesma chama que tentava todos os dias me incendiar. Queria
me colocar na fogueira, como se eu fosse uma bruxa que merecia arder, mas
agora eu estava disposta a fazê-lo arder também, mesmo que não fizesse a
menor ideia de como me vingar dele.
Saí do banheiro, engolindo em seco enquanto notava o silêncio entre
o grupo de Josiah. Ele estava sentado, largado no sofá, com uma pedra de
gelo sobre o lábio, que começava a inchar. Isabela estava ao seu lado,
encarando-me de maneira confusa. O restante bebia, trocando olhares entre
si.
Vi Luana no mesmo lugar em que a deixei, tomando alguns goles de
água e me encarando, preocupada. Dei as costas ao grupo do caos,
caminhando até ela, meio tonta por conta do álcool e do estresse. Queria ir
embora e tentar apagar aquela maldita noite da memória.
— E aí, Jow, quando a Ana chupava o seu pau, ela também usava os
dentes como fez na sua boca? — Isabela zombou, fazendo o grupo inteiro
cair na gargalhada.
Cessei os meus passos, tentando conter o demônio que estava prestes a
escapar por meus poros. Mordi o lábio inferior e me virei. Encarei a garota,
que estava sentada com as pernas cruzadas, enfiada em um short jeans curto
e rasgado, e uma blusa vermelha repleta de buracos.
— Não! — Josiah respondeu baixo e com o semblante sério. — Ela
era boa em usar a boca.
Irritada com os comentários, caminhei até a mesa e peguei uma cerveja
do balde. Sorri ao dar umas goladas, enquanto via o grupo em silêncio,
alguns pareciam preocupados. Pela visão periférica, notei que Luana já
estava bem próxima, para me conter. Então me aproximei de Josiah, parei
bem na frente dele e virei o líquido sobre o seu cabelo escuro. Observei
enquanto a cerveja ia escorrendo sobre seu rosto, enquanto ele respirava
fundo e contraía o maxilar. Antes que o meu ex pudesse fazer qualquer
coisa, devolvi a garrafa ao balde, joguei-me por cima de suas pernas e
agarrei o cabelo vermelho de Isabela, puxando-o com força.
Capítulo 5

Andando por aí com a minha pequena nuvem de chuva


Pairando sobre a minha cabeça e ela não vai embora
Para onde eu vou? Me dê algum tipo de sinal.
Me atinja com um raio! Talvez eu volte à vida
Hard Times – Paramore

Ana Oliveira
Há seis anos...

Era o primeiro dia de aula, meu primeiro dia no terceiro ano do ensino
médio. A nova escola era um prédio de cinco andares, moderno e com
janelas espelhadas que me lembravam os prédios comerciais do centro da
cidade. Era estranho estar ali, enfiada em um uniforme azul, sentindo uma
calça jeans apertando as minhas pernas. Bom, ainda era melhor do que o
emaranhado de tecido branco que eu morria de medo, aquela maldita
camisa que diziam que prendia você inteira, a camisa de forças.
Eu havia passado a primeira metade de 2015 inteira em um sono
esquisito, como se estivesse viva, mas vendo a vida através de uma densa
camada de vidro. Passava os dias sedada com remédios, vivendo em um
limbo, entre comprimidos tranquilizantes, antipsicóticos e antidepressivos
que desciam arranhando minha garganta. Depois, fiquei mais três meses
atrás dos muros de uma clínica psiquiátrica. E eu tinha quinze anos... A
porra de quinze primaveras, e meus pais haviam resolvido que se matar era
uma boa opção. Juntos. E a Aninha, o pequeno docinho que eles sempre
diziam amar, que diziam ser um presente, ficou sozinha, tendo que lidar
com a própria existência medíocre, com o abandono, com o luto, com a
culpa...
Tinha dias em que tudo que eu pensava o tempo inteiro era na
sensação que os meus pais experimentaram na hora da partida. Será que
sentiram medo? Será que estavam finalmente se sentindo aliviados? Será
que tudo o que eles pensavam era que enfim a dor estava cessando? E o que
eles viram por último? As luzes do farol do caminhão cargueiro? Ou teria
sido mais romântico, com uma troca de olhares enquanto o choque entre os
veículos cravava o fim? Não havia remédio que me impedisse de pensar,
que travasse aqueles pensamentos automáticos que me mantinham morta,
mesmo que eu ainda tivesse pulso...
Quase um ano depois, lá estava eu, sentada na carteira da escola, na
primeira fileira, com a cabeça apoiada na parede do lado esquerdo após
resolver me enrolar em um casaco com capuz preto. O mundo inteiro
parecia distante, como se eu estivesse o tempo todo dispersa, longe, vendo a
vida em um filme em preto e branco.
A escola sempre fora um terror para mim, e eu costumava me esforçar
para passar de ano, organizando o tempo da semana de maneira metódica,
para não perder nenhum conteúdo, para absorver tudo do conhecimento
daquele inferno povoado por demônios em idade de alfabetização. Não
porque eu gostasse de estudar, era para fugir logo, acabar aquele martírio.
Isso foi durante a vida que existia antes dos meus pais morrerem. Só que,
quando eles se foram, nada mais fez sentido. Eu só estava lá, naquela bosta
de carteira azul caneta, naquela patética nova vida, porque minha tia estava
me obrigando. Ou era isso, ou uma cama em um abrigo público até a
maioridade. “Seus pais morreram e nós não temos ninguém! Você sabe
disso, sabe que eu perdi a única irmã que a vida me deu. E se continuar
tentando morrer também, você vai acabar comigo, Ana!”, minha tia gritava
ao me chacoalhar, tentando me trazer de volta ao me encontrar no chão da
cozinha, segundos após eu engolir uma cartela inteira de sedativos. Ela era
dura porque só tinha a mim, porque só tinha trinta anos, tendo que lidar
com uma adolescente suicida e órfã. Entendia que a tia Marina estava
exausta, eu também estava...
A vida parecia uma eterna piada de mau gosto... Roguei a porra da
vida inteira por um irmão, e meu pai negava, alegando que não queria mais
trabalho, que eu estava crescendo e ele e minha mãe queriam aproveitar a
vida. Eu ignorava, ansiando por ter um bebê pela casa. Era um sonho bobo,
porque eu não gostava da solidão de ser filha única. E eu era feliz, era uma
garotinha tola, que qualquer pequena coisa a alegrava, que vibrava com
tudo e sorria facilmente.
Por que eu precisava de mais? Por quê, porra?
Quando a vida resolveu ir contra a vontade do meu pai, minha mãe
acabou grávida. Lembro que ela me fez uma surpresa para dar a notícia,
sorrindo com aqueles cabelos castanhos, com ondas serenas e curtas, os
olhos gentis enquanto me entregava uma caixinha vermelha que cabia na
palma da minha mão. Quando abri, quase desmaiei ao ver aquele sapatinho
de tricô azul. Foi mágico e agradeci tanto a Deus, contei a todos os meus
amigos da escola... Que tola!
Três anos e meio depois e a minha vida inteira foi por água abaixo,
todo o solo embaixo dos meus pés foi despencando, eu fui caindo.
Caindo.
E caindo.
Até não restar nada.
Aconteceu a maldita tragédia que me deixou sozinha, me sentindo
culpada por ter soprado velas de aniversário, uma atrás da outra, ano a ano,
pedindo pela benção de ter um irmão. A maneira como a vida resolvia bater
tanto em algumas famílias só podia ser traduzida com uma palavra:
covardia.
Não estava pronta para a selva que era uma escola. Não estava
preparada para os alunos, porque eu sabia que podiam ser cruéis, a maioria
era. E, sem a mínima vontade de continuar respirando, como eu poderia
estudar, começar uma vida nova em um lugar novo?
Eu fui a primeira a chegar na sala naquele dia, e aos poucos o lugar foi
se tornando movimentado, com alunos que provavelmente se conheciam há
anos. Havia um menino, Bernardo, que parecia ser uma boa pessoa. Ele
estava tão animado com o novo ano escolar, que me irritava. O garoto ria,
brincava e tratava todos bem. Não revidava o grupinho de valentões no
fundo da sala, que o chamavam de “boiola”.
Passei a aula daquele jeito, com cara de poucos amigos e encarando
tudo o que acontecia ao redor. Não anotei as lições de Literatura, mesmo
que sempre tenha sido minha matéria favorita. Então, quase no final do
segundo tempo, enquanto um menino terrível chamado Caíque atirava
bolinhas de papel em Bernardo, um carinha lindo entrou na sala. Ele era tão
bonito e tinha um olhar muito profundo. Eram olhos tão intensos sob
sobrancelhas grossas, arqueadas, que o faziam parecer mau. Quando chegou
e jogou a mochila com estampa militar ao lado de Bernardo, todos os
meninos que estavam fazendo bullying silenciaram. Eu não fui a única a
notar que ele tinha uma postura intimidadora.
O garoto era tão alto, que parecia o mais velho da turma. Era um
pouco corpulento, com braços fortes e músculos bem delineados. Quando
eu o olhava, porque não conseguia fazer outra coisa, ele não parecia notar,
absorto entre risadas e brincadeiras com Bernardo. Pareciam tão amigos...
Ambos bisbilhotavam o caderno um do outro, copiando informações para as
próprias folhas, exibiam a tela do telefone um ao outro entre gargalhadas,
cochichavam e volta e meia recebiam um “puxão de orelhas” da professora.
Era uma mulher na faixa dos quarenta anos, que circulava pela sala com
óculos tão redondos como os do Harry Potter, falando pelos cotovelos com
uma voz estridente e anasalada. A professora, Lílian, volta e meia encarava
a duplinha por quem eu estava momentaneamente obcecada. E mesmo que
fossem uma dupla “problema”, pareciam alunos inteligentes, com cara de
que aprontavam, porém, para irritar mais os professores, tiravam as
melhores notas.
Meu pesadelo começou quando os alunos caminharam para o vestiário
da ala esportiva, algumas meninas retirando calças leggings ou shortinhos
de malha das mochilas. A aula seguinte seria Educação Física. Minha única
vontade era a de ficar estática, existindo e com olhos e ouvidos atentos na
vida alheia, para fugir dos pensamentos automáticos que me sugavam e
empurravam para baixo.
Para acabar de vez com minha paz, não tinha levado roupa de
ginástica. O professor, um homem de meia idade, quase completamente
calvo e com aquela maldita vibe de saúde, com rosto sorridente, corado de
sol e um corpo em perfeita forma, me mandou fazer a aula na quadra junto
com todo mundo. Pedi para substituir o exercício físico por uma atividade
escrita, me propus até a copiar a frase que ele quisesse cem vezes, mas ele
retrucou que era só para eu escrever um resumo do futebol da turma.
Fiquei sentada em um dos bancos ao lado da quadra esportiva,
observando enquanto algumas meninas ficavam fazendo de tudo para
chamar a atenção do “gostosão de olhos claros”. Peguei meu caderno e
comecei a escrever frases desconexas sobre querer morrer.
— Eu também quero...
Girei o rosto na direção do som, sobressaltada, encarando a menina de
cabelo ruivo sentada ao meu lado. Seu cabelo era tão vermelho, que parecia
uma cascata ensanguentada. Ela era muito magra, com olhos escuros e um
rímel borrado ao redor, parecendo que havia chorado. Era a cara da
adolescente problemática, com uma argolinha prateada saltando do septo,
um casaco fino estampado em um xadrez vermelho, com mangas
aparecendo por baixo da blusa azul escolar, e AllStar Converse preto de
cano alto envolviam os pés pequenos. A mochila jeans era repleta de pins
do Metallica, largada no chão, ao lado dos seus sapatos. E por mais que
tudo nela parecesse afiado, seu rosto era suave, com contornos redondos e
um nariz muito pequeno, daqueles que as mulheres fariam cirurgias para ter
igual.
— O quê? — perguntei.
— Morrer... — murmurou com sua voz doce, enquanto erguia o casaco
do braço direito, para exibir o pulso repleto de cicatrizes extensas na
horizontal.
— Por quê?
Torci internamente para que ela não fosse uma daquelas meninas que
me irritavam, as meninas por quem eu julgava muito difícil ter empatia. As
que reclamavam da vida que eu queria ter, cheia de zelo e pais sufocantes.
Queria pelo menos os meus pais ali, vivos...
— Porque o meu padrasto é um tarado, que bate em mim e na minha
mãe, vive fazendo piadas sobre o meu corpo e encarando os meus seios —
contou, sem cerimônia, sacando um caderno preto e uma caneta para fazer o
resumo da aula — E ela não vai largar aquele cuzão, então eu fico muito
tentada a procurar uma fuga dessa vida de merda, antes de acabar estuprada
ou matando o desgraçado. E você?
A confissão fez um líquido ácido subir em minha garganta. Nauseada,
entendi que ela não era aquela pessoa de aparência endurecida à toa, fora
forjada para ser um objeto cortante, para não ser um doce. A adolescente
não parecia ter conhecido doçura na vida...
— Meu irmão de três anos morreu afogado enquanto eu lia um livro na
sala, e, em consequência, meus pais se mataram em um pacto de suicídio.
A garota, branca como uma pessoa que evitava a luz do dia, mordeu o
lábio ressecado depois do que eu disse. Então pegou algo dentro da
mochila. Fiquei encarado o punho fechado que ela direcionou a mim e,
quando a menina abriu os dedos, vi que estava me ofertando um chiclete.
Sorri enquanto pegava o doce, enfiando o Bubbaloo de uva boca adentro.
Gostei da ruivinha, só pelo fato de que não disse nada. Não tentou me
consolar. Só me deu o silêncio, e aquilo era uma boa resposta quando se
ouvia algo tão pesado. E, por mais que fosse horrível admitir aquilo, eu
estava feliz por ter encontrado alguém como eu, com uma vida de merda.
— Meu nome é Ana — avisei, sem tirar os olhos dos riscos pretos que
eu fazia no caderno.
— O meu é Isabela. Quer ser minha amiga? Pelo menos sabemos que
somos duas fodidas.
— Quer mesmo ser amiga de uma bostinha?
— Sou outra bostinha... — brincou, sorrindo.
De repente, a bola de futebol pousou bem na frente de meus tênis
brancos. Deixei o caderno de lado e capturei o objeto, para lançar ao
pessoal da quadra. Caíque então veio correndo, com seus cabelos ruivos
alaranjados molhados de suor, e me preparei para lançar a bola a ele,
cerrando os olhos por conta da claridade.
— Vai, gordinha! Chuta a bola, mas não sai rolando junto! — ele
zombou, dando um sorrisinho perverso.
Irritada, atirei a bola com força, mirando no alto da cabeça para acertar
a cara dele. Estava ansiosa para causar um estrago em seu semblante
rosado, mas o garoto a pegou bem rápido, com um sorrisinho de lábios
cerrados, triunfante.
— Se me chamar assim novamente, vou quebrar a sua cara, otário! —
avisei, ficando de pé ao apontar meu dedo indicador em sua direção.
Em geral, eu ficava muito triste quando zombavam do meu corpo. Eu
tinha uns seis quilos acima do peso ideal para quem tinha 1,63 de altura.
Era o suficiente para canalhinhas como Caíque zombarem de mim. Ouvi
piadinhas a minha vida inteira, apelidavam-me de “porquinha”,
“rosquinha”, “baleia”... A criatividade era grande, e a lista de apelidos,
também. Minha autoestima era muito baixa, por conta de pessoas como ele.
Se fosse antes, me calaria, sairia correndo aos prantos e me esconderia no
banheiro da escola. Só que estava tão cansada de tudo, que não dava para
aturar nada. Eu era um copo repleto de água pronto para transbordar.
— Bate que eu amasso o seu rosto! — o garoto avisou, chegando bem
perto de mim, segurando a bola ao lado da cintura.
Tive que olhar para cima para encarar aqueles olhos estreitos demais.
Quando me aprontei para enfiar as unhas em seu rosto, preparada para
causar um caos, Isa surgiu ao meu lado, segurando minha cintura em um
abraço lateral.
— Você amassa a cara dela e eu corto a sua inteira. Já tem um
tempinho que ando querendo conhecer uma casa de menores infratores... —
ela sussurrou, enquanto empunhava uma gilete para ele.
Vi quando o babaca abriu a boca em um pequeno “O” e,
covardemente, se afastou. Era bem típico dos valentões, correr quando
encontravam outro.
— Você sempre anda armada por aí? — brinquei, aliviada por minha
nova amiga ter interferido, enquanto nos sentávamos.
— Ah, sabe como é... Volta e meia os pelos das sobrancelhas crescem
— brincou, guardando o objeto em um papel fino e enfiando-o no bolso
frontal da calça jeans — Ou os pulsos coçam.
Engoli em seco, absorvendo o seu humor ácido. Eu realmente gostava
daquela garota. Ao menos uma surpresa legal quando tudo o que eu
esperava era mais algumas doses de morte lenta.
●●●
Só me separei da minha nova pessoa favorita quando tive que entrar no
ônibus escolar. Trocamos telefone, combinamos de assistir a uma série à
noite, enquanto faríamos uma chamada por telefone para comentar. Um
enredo de terror, ela disse. Nem precisou de muito para me convencer,
afinal, o que eu tinha para fazer além de ficar encarando o teto e
imaginando como seria o meu fim?
Quando caminhei pelas fileiras de cadeiras azuis do ônibus, evitando
qualquer poltrona que tivesse alguém do lado, notei que a última fileira
estava praticamente vazia. Sentei-me do lado direito, aninhada a janela,
pensando em como o dia tinha sido melhor do que eu esperava. Nada que
fizesse a dor no meu peito suavizar, mas foi... diferente do que acreditei que
seria. Me preparei para colocar os fones de ouvidos, quando ouvi um
assovio. Trinquei as sobrancelhas prestando atenção no menino na janela
oposta.
— Pensou que eu não havia notado? — indagou, dando-me um
sorrisinho de canto.
Não entendi aquela sensação de imediato, um leve desconforto na
barriga. Meu coração deu alguns solavancos, resolveu dançar em um ritmo
desenfreado.
— O... quê? — gaguejei.
Por que ele estava falando comigo? De repente, fiquei preocupada em
como estava feia, alisando os fios ásperos e ondulados grudados a minha
cabeça. Droga! Não lavava o cabelo há três dias. E as olheiras? Estavam
profundas o suficiente para eu parecer um panda.
— Que você estava me encarando a aula inteirinha...
Engoli em seco, sentindo a pele gelada enquanto gotículas de suor
escapuliram da minha testa. Olhei pela janela, observando a paisagem dos
prédios da Tijuca, sentindo as bochechas arderem. Fui pega! Ele me viu
encarando...
— Não estava! — neguei, sem coragem de fitar aquela mandíbula
bem-marcada, aquele nariz perfeito, ou a boca naturalmente avermelhada.
Senti quando ele pulou algumas poltronas, aterrissando ao meu lado, e
meu coração parecia uma bateria de escola de samba. A respiração do
garoto estava próxima, quente, com cheiro de... cheiro de...
— Você fuma! — sussurrei, pensando alto.
— Sim! — reconheceu, sorrindo e exibindo covinhas quando notou
meu embaraço. — Você está toda vermelha, garotinha!
Engoli em seco, chocada com a proximidade, com o fato de o rosto
dele estar a centímetros do meu. Notei os dentes brancos perfeitos, e em
como combinavam com aquele rosto inteiro. Ele era quase uma obra de
arte, e achei que não era justo uma pessoa concentrar tanta beleza em si...
Mordi o lábio superior, encarando a maneira como a barba rala estava por
fazer, e era tão sexy!
— Vai me contar por que estava me encarando? — insistiu, sorrindo de
uma maneira provocativa. Ele estava muito cheiroso, e aquilo tudo estava
fazendo a minha barriga dar voltas, esquentando.
— Eu não estava olhando para você! — menti, observando os seus
olhos que eram tão límpidos e profundos. — Estava encarando o Bernardo,
ele é divertido e...
— Sei... — cortou, parecendo decepcionado ao olhar para baixo.
Fiquei brava! Brava por ter sido pega, e por ele estar ali, falando
comigo e me fazendo sentir coisas. Olhei para a janela, querendo ignorar
toda aquela proximidade. E então, fiquei surpresa ao notar que estava muito
perto de casa. Vi a praça, a estação de metrô e, sobressaltada, passei por
cima das pernas dele, sem me importar com as partes impróprias onde meu
corpo tocou o do garoto.
— Motorista! — gritei. — Para na frente do condomínio La Grassa,
por favor!
Não olhei para trás ao correr para fora do ônibus, vendo a placa do
meu condomínio estampada em tons de rosa. Quando por fim saí do ônibus,
senti-o partir atrás de mim, ouvindo o motor pesado se distanciando.
Apoiei-me nos joelhos e soltei o ar, sorrindo. Aquilo foi... foi... legal.
O carinha gato da escola falou comigo, sentou-se bem ao meu lado e
pareceu estar interessado. Lembrei-me daquele olhar enigmático, em como
ele não sentia constrangimento em encarar o meu rosto, em percorrer cada
centímetro das minhas feições. Era difícil conseguir pensar no que se
passava na cabeça dele. Não conseguia aceitar a ideia de que o garoto mais
bonito da sala poderia ter se interessado por mim, principalmente num
momento em que eu estava tão apagada e sombria.
— É meio inadequado encostar no colo de um cara do jeito que você
fez... — Ergui o corpo imediatamente, sentindo-me nervosa com aquela voz
grossa e sensual atrás de mim. — Não vai dar para controlar minha
imaginação na hora do banho.
Fiquei paralisada, sentindo-o passar por mim como uma brisa
despreocupada. Que merda ele estava fazendo? Fiquei vendo-o entrar pelos
portões metálicos em tons de marrom do meu condomínio. Observei
enquanto o meu colega de turma cumprimentava o porteiro, caminhando de
maneira confiante para a casa rosa na esquina. Então ele parou na frente do
portão social, virou em minha direção e acendeu um cigarro preto.
Engolindo em seco, sentindo uma certa dificuldade de andar, segurei
as alças da mochila e fui caminhando em direção à calçada do lado oposto,
tentando ignorá-lo. Talvez conhecesse alguém daquela casa. Só que eu não
conseguia entender o que ele quis dizer sobre o seu banho. Será que ele
disse que iria se...
Não! Pensei, girando a cabeça de um lado a outro, enquanto tentava
acelerar o passo.
— Docinho! — ouvi um gritinho atrás de mim.
Girei sobre os calcanhares, encarando a mulher correndo em minha
direção de maneira atrapalhada, empunhando sacos de mercado em ambas
as mãos. Fui até ela e me prontifiquei a pegar algumas sacolas.
— Oi, tia! — cumprimentei, aceitando o beijo na bochecha que ela
ofereceu.
Marina estava com a pele corada. Na mínima exposição solar, suas
bochechas ficavam vermelhas. Acho que aquilo era genético, também
acontecia comigo. Seus cabelos cacheados estavam presos em um coque no
alto da cabeça. Seu vestido longo e amarelo estava com as alças finas caídas
sob o ombro, e com a mão direita eu as acertei. O rosto quadrado estava
abatido, e rugas de preocupação começaram a se formar no alto da testa.
— Docinho, você está com uma cara tão boa... Como foi a aula? —
indagou, carinhosa.
— Foi melhor do que eu esperava... — contei, olhando para o portão
do garoto.
Estremeci ao perceber que ele tragava o cigarro enquanto caminhava
até nós duas. Merda! Por que ele estava vindo até nós?
— Olá! — cumprimentou, chegando por trás de Marina, assustando-a.
— Menino! — ralhou. — Não se chega assim por trás das pessoas,
ainda mais no Rio de Janeiro.
— Ah, mas aqui no condomínio é tranquilo — brincou. — A
propósito, meu nome é Josiah Marquez! Moro aqui.
Marina e eu encaramos a casa que ele apontou, que ficava bem na
esquina da rua principal. Minha tia encarou-o, mordendo a bochecha
internamente, um tique que fazia quando estava intrigada.
— Marquez? Então você é o filho do prefeito? — questionou,
acertando a postura, interessada.
O semblante de Josiah ficou um pouco fechado, ele pareceu contrair o
maxilar, enquanto assentiu e apagou o cigarro com a sola do sapato.
Aproveitei para encarar mais cada pedacinho dele, observando que tinha um
alargador preto bem pequeno na orelha direita. Deus! Estava tão nervosa
que gotículas de suor escorriam pelas minhas costas.
— E vocês? Como se chamam?
— Eu sou a Marina, e essa é minha sobrinha, Ana. — informou,
enquanto Josiah abaixava e pegava sua bituca de cigarro do chão. — Pelo
uniforme, vocês estudam na mesma escola.
— E na mesma turma. — o garoto disse, sorrindo para mim.
Minha tia cravou seu olhar escuro em mim com curiosidade. Uma voz
rouca soando ao longe fez Marina retirar sua atenção de mim. Olhamos
todos na mesma direção, enquanto o idoso de baixa estatura acenava,
mostrando ao longe um bolo de cartas.
— Aqui, Josiah, leve essas compras lá em casa com a Ana enquanto
pego minha correspondência!
Ela não pediu, enfiou as sacolas nos braços do garoto e caminhou para
longe. Fiquei embaraçada, andando ao lado do rapaz em silêncio. Ainda não
conseguia esquecer o que Josiah disse sobre o banho, e sempre que a frase
voltava em minha cabeça, algo esquentava em mim.
— Sua tia parece ser gente boa — disse, enquanto seguíamos a passos
lentos. — Já a vi por aqui muitas vezes, mas você foi a primeira vez.
— É, vim morar com ela há pouco tempo, e não saí muito de casa.
— Entendi...
Seguimos em silêncio por várias ruas, até finalmente chegarmos à casa
amarela. Era uma construção simples, de dois andares com janelas e portas
de uma madeira lustrosa. O muro era alto, só permitindo que se pudesse ver
o segundo pavimento pelo lado de fora.
— Obrigada pela ajuda! — disse, pegando o restante das sacolas das
mãos enormes dele.
— De nada, Ana!
Observei o garoto se virar, enquanto atirava a guimba de cigarro na
lixeira laranja de rua, presa a um poste. Coloquei as sacolas na calçada e
comecei a girar a chave no portão social branco, enquanto ouvi de novo
aquele assovio. Encarei-o do outro lado da rua, com os lábios abertos em
um sorriso perfeito para mim. Meu coração deu uma leve dançada, me
fazendo ficar irritada por perceber que só olhar para Josiah já o fazia reagir.
Uma coisa era surpreendente: por todos os momentos desde o ônibus,
eu não lembrava que estava de luto. Tinha esquecido, e isso nunca
acontecia.
— O nome Ana não combina com você! — gritou, me fazendo bufar.
Dei as costas, empurrando o portão com o pé, irritada, porque eu gostava do
meu nome. — Vou te chamar de Docinho!
Só quando entrei em casa e o cheiro de jamelões invadiu minhas
narinas, é que as lembranças me atacaram. Era a fruta favorita do meu pai.
Mas, ainda assim, era chocante perceber que poucos momentos com aquele
menino me fizeram sentir uma leve centelha de vida.
Capítulo 6

Você já se perguntou o que poderíamos ter sido?


Você disse que não faria, e você ferrou com tudo
Mentir para mim, deitar-se comigo, conserte essa merda
Agora todas as minhas bebidas e todos
os sentimentos estão misturados
I Hate U, I Love U - Gnash feat Olivia O'Brien

Josiah Marquez
Dias atuais...

Minha boca latejava enquanto o cheiro amargo da cerveja parecia


impregnar todos os meus poros. Ouvia vozes estridentes soando ao redor,
muitos palavrões, enquanto Ana puxava o cabelo de Isabela, com um joelho
no meio das minhas pernas e o outro no banco ao meu lado. Ouvi os estalos
de tapas, grunhidos, e me vi obrigado a reagir.
Cravei os dedos no quadril de Ana e a puxei, só não previa que isso
daria mais impulso na força que ela colocou para tentar arrancar fora o
cabelo da ruiva. Isabela reagia, socando o ar, tentando atingir a agressora.
Então, fiquei de pé e enfiei meus braços na frente do peitoral da fera,
forçando os seus braços para baixo, tentando fazer com que ela soltasse a
minha amiga.
— Ana, pare com isso! — ordenei, enquanto ela se debatia ao ser
afastada.
— Me solta, porra! — berrou.
— Não!
A mulher se debatia, possuída, enquanto eu dava passos para trás,
puxando-a contra o meu corpo, sentindo a pele queimar nas partes onde
encontrava o corpo dela. Sentia o topo da sua cabeça embaixo do meu
queixo, com aqueles cabelos com cheiro de coco me trazendo lembranças.
Era difícil estabilizar os movimentos da garota quando tudo o que ela fazia
era chutar o ar e gritar que iria acabar com a rival. Por sinal, do outro lado,
Bill, um grandalhão de cabeça raspada, e Harry precisavam de uma força
conjunta para segurar Isa, que havia quebrado uma garrafa, empunhando-a,
e tentava a todo custo se jogar na direção da Ana.
Luana nos seguia, e era com quem eu precisava ter uma conversinha,
por ter deixado a surtada da minha vizinha tomar todas, mesmo enquanto
ela praticamente se oferecia para tocar uma punheta a um desconhecido...
— Para de gracinha! — ordenei, entre dentes, em seu ouvido.
— Vai se foder! — ela gritou, debatendo-se ainda mais, a ponto de o
tecido da saia deslizar para cima e ir parar no quadril, mostrando a calcinha
vermelha para quem quisesse ver.
Quando um dos garçons sacou um celular, com certeza tentando
registrar a cena, fui rápido em girar o corpo de Ana em direção à porta,
dando as costas à câmera, e a jogar em meu ombro. Abaixei sua saia, antes
que além da calcinha, algo mais aparecesse, ignorando a maneira como
minha mão queimava em contato com aquela bunda clara e redonda. Peguei
a chave do carro em meu bolso com a outra mão e joguei em cima da minha
prima, ignorando seus olhos imensos e assustados.
— Vai na frente abrir a porta do carona da Ranger!
Lu conhecia o meu carro e correu para fazer o que mandei, enquanto
usei a mão sobrando para segurar as pernas da minha ex, que se esforçava
para se debater em meu peito.
— Me solta, seu cretino! — berrava, fora de si.
Ignorei todos os olhares assustados nos bares ao redor, ávidos em
presenciar a confusão, até finalmente chegar ao meu carro, que estava
estacionado na lateral direita da rua. Joguei Ana sobre o banco do carona e
fechei a porta, segurando a maçaneta enquanto ela socava tudo lá dentro e
tentava sair.
— Deus! — Luana sussurrou, apavorada e cambaleante ao meu lado,
segurando os cabelos com as mãos magras e ossudas.
— O que deu na sua cabeça? — gritei, virando o rosto para ela, sem
soltar a porta. — Trouxe a Ana para um bar e a deixou tomar todas,
sabendo que ela dá “perda total”¹? Que porra de amiga você é?
— Foi a sua mãe que mandou a gente vir. E, além do mais, Ana não é
de dar PT! Você e sua turminha é que andam infernizando a garota, por isso
é que ela partiu a cara daquela vadia!
— Ela dá PT, sim. Não seja mentirosa! E depois de fazer merdas como
hoje, sempre esquece de tudo — gritei, puto da vida.
— Merdas? — questionou. — Você espantou o homem que ela estava
conversando quando Ana foi ao banheiro, disse que sua turma ia quebrá-lo
se o cara não caísse fora — acusou, irada, apontando o dedo indicador para
mim. — Você e Ana ainda fizeram sei lá o que no banheiro, e voltaram
cheios de mordidas... Será que ela é a única a fazer merdas bêbada?
— Eu nem bebi! E quer saber? Cala a boca, entra na merda do carro e
faz ela ficar quieta! — gritei, entre dentes, assustando-a.
— Vai se foder, Josiah! — xingou, abrindo a porta do banco traseiro.
“Ana, pelo amor de Deus, vamos para casa...”.
“Eu quero acabar com ela... Aquela falsa, desgraçada, filha da
puta!”.
Espero que a Coisinha não fique ouvindo esse tipo de palavrão o dia
inteiro...
“Faz isso outro dia, cara! A gente está muito bêbada, e a Júlia está em
casa com a minha tia. Lembra que você tem uma filha? Precisa voltar para
a sua casa, se hidratar e ficar bem para cuidar dela amanhã”.
Falar da Coisinha era sempre um gatilho.
Não só para a mãe dela.
Era um gatilho do caralho para mim também.
Vi quando ela parou de socar a porta, esperei uns segundos e, quando
olhou para mim através do vidro, percebi que me mataria se pudesse. Seus
olhos, de um verde quase mel, estavam possessos, repletos de um ódio
selvagem. Tentei não sorrir, mas foi difícil. Ana estava com a maquiagem
borrada, a pele do ombro marcada pelos meus dentes, e aquilo era
enlouquecedor. Aquele olhar por cima me fazia lembrar dela de joelhos, me
engolindo inteiro, lacrimejando enquanto eu socava o pau em sua
garganta... Porra! Não podia ficar duro ali, no meio da rua.
Circulei o carro e me preparei para abrir a porta.
Assim que a vi naquela mesa, flertando com um homem qualquer e
virando doses de tequila, sabia que a noite acabaria daquele jeito, com ela
podre de bêbada e surtada. Era o que ela fazia quando bebia demais, mas só
quando tomava antidepressivos. Os remédios que Ana ingeria
potencializavam os efeitos do álcool. Se ela estava daquele jeito, era porque
tinha voltado a tomar aquelas merdas... Pensei que tivesse parado depois da
gravidez.
Respirei fundo, me preparando para entrar no carro, com medo de que
ela me cravasse as unhas enquanto eu dirigia. Fazer o quê? Provoquei-a
tanto, que uma hora acabaria nisso. Sentei-me no banco do motorista, abri
as janelas e acendi um cigarro.
— Ah, pelo amor de Deus! — Luana grunhiu e a fitei pelo retrovisor,
enquanto ela jogava a chave do carro no meu colo. — Deixa para fumar
naquele caixão que você chama de casa.
— Vai de Uber, porra! — sugeri. — E eu nem bebi, porque as duas
princesas resolveram acabar com a minha noite, e fiquei na água porque
sabia que teria que levar essa surtada em casa.
— Vai à merda, Josiah! — Ana disse, baixinho, enquanto olhava para
o vidro do carona, embolando as palavras. Dei partida no carro com um
sorrisinho nos lábios. Era ótimo conseguir irritar as duas de uma vez só.
Ambas culpadas por eu estar tendo que levá-las para o La Grassa, o
condomínio onde morávamos. — Eu perco noites há um ano e quatro
meses. Nunca joguei essa porra na sua cara.
Engoli em seco, deixando minha boca em uma linha fina. Fui dirigindo
pelas ruas em silêncio, entre tragadas de cigarro e olhares de esguelha para
Ana. Ela era uma coisa tão linda, mesmo com aqueles lábios grossos em um
bico de raiva. E a Coisinha era uma cópia dela, exceto por aquelas
sobrancelhas arqueadas e aquele cabelo loiro.
Senti um aperto no peito, pensando em tudo que eu perdi por conta
dela, daquela mulher ao meu lado. Me privou de tudo o que eu sonhei, do
meu futuro, acabou com a minha paz. E por mais que olhar para ela ali, tão
quieta, aquecesse um lado diferente em mim, eu sabia que Ana não merecia
nada de bom. Ela merecia se foder. No fundo, sabia de tudo o que fez
comigo.
O Docinho que eu conheci ainda estava ali, dentro daquela casca oca
de uma mulher ressentida, com tanto ódio que colocava o rancor dela à
frente do que era melhor para a pessoinha que ela tanto amava.
Lembro o quanto era uma menina quebrada, muito mais que eu. E me
recordo de como foi refazer os pedaços, trazendo-a de volta à vida, dando o
meu melhor, para no fim a puta cravar a porra de uma faca bem nas minhas
costas.
Com raiva, estacionei o carro em um solavanco na residência da
Marta. Quando Ana foi abrir a porta, travei-as, acionando o botão
automático.
— Você, não! Não vai se deitar ao lado da Coisinha podre de bêbada!
— disse, rosnando, encarando aquele olhar cínico e desafiador.
— E você lá manda em mim? Está ficando doido ou o quê?
Ana tentou abrir a porta novamente, mas eu a peguei pela nuca e a
forcei a me encarar.
— Não irá se deitar ao lado da minha filha podre de bêbada! — grunhi,
pausadamente, puxando com hostilidade o rosto dela para próximo do meu.
— Luana, sai do carro e avisa a Marta que Ana vem pela manhã!
— Estou de saco cheio de vocês! — Luana bufou, saltando do carro e
indo em direção à casa rosa. — Conseguiram ferrar com a noite — gritou.
Soltei o pescoço da Ana, enquanto ela parecia assustada por me ver
dizer em voz alta o que tanto tentava tomar de mim, o direito de dizer que
eu era o pai da Júlia.
— Agora é muito fácil você dizer isso... — sussurrou, chorando e me
irritando por novamente ver aquele drama.
— Eu nunca disse, porque, quando tentava, você berrava que eu não
era. Ou já esqueceu? Não tenta mudar as coisas, garota! O passado não vai
se alterar porque está sentindo pena de si mesma.
Corri com o carro até a nossa porta, bravo, puto, vendo os pneus
cantando no calçamento. Estacionei de qualquer jeito em um solavanco.
Apaguei a porra do cigarro no volante e enfiei a bituca no porta-copos entre
o meu banco e o dela. Virei o rosto na direção de Ana, enfiei a mão na parte
traseira da cabeça dela, apanhando uma porção de cabelos, fazendo-a arfar
enquanto os puxava. Cravei os olhos nos dela, cerrando os dentes e com
muita vontade de acabar com ela bem ali, no meio da rua. Respirei fundo,
com o peito subindo e descendo enquanto olhava aquele rosto redondo e
perfeito, as sobrancelhas marrons, os lábios cheios, as covinhas nas
bochechas que ficavam marcadas, prontas para afundar na mínima menção
de sorriso. E antes que pudesse fazer a besteira de morder a sua boca, como
teve a ousadia de fazer comigo, a soltei.
— Some da minha frente! — gritei, fazendo-a pular no assento.
Sempre que as lembranças de tudo o que ela fez voltavam, um ódio se
acendia dentro de mim. Tudo e qualquer coisa de bom que eu sentia por ela
era ofuscado, e minha única vontade era fazê-la sofrer. Não importava que
fosse a mãe da minha filha, não importavam os anos que passamos juntos,
nada importava, porque ela conseguiu ferrar com a minha cabeça mais do
que qualquer maldita pessoa havia feito. Ana sempre foi um problema, a
porra de uma nuvem cheia de chuva, e me avisaram que era para ficar
longe, mas eu gostava de me molhar.
Ana desceu do carro choramingando, e saiu correndo aos tropeços para
o portão branco. Estava descalça, com os pés pequenos e brancos naquele
chão sujo. Até os sapatos ela perdeu naquela ceninha no bar. Fiquei parado,
esperando que ela entrasse em casa para voltar à minha turma, encher a cara
e procurar alguém para foder e descontar a tensão que estava me matando.
Mas ela estava a fim de ferrar minha paciência, que já quase não existia.
Ficou parada de costas para mim, com a testa apoiada no portão metálico.
Eu odiava aquela porra de casa. Quando tudo acabou, nunca mais
entrei ali. Só a fachada era a mesma, pois lá dentro tudo tinha mudado,
virado algo que me lembrava daquela traição suja, daquela maldita facada
nas costas...
Desliguei o motor e desci do carro, pisando duro ao chegar perto dela.
— Qual é a gracinha agora, Docinho? — vociferei, enquanto ela
retesou o corpo, em um susto. Disse algo ininteligível, encarando os meus
olhos, parecendo ainda mais bêbada do que eu havia notado. — Fala alto,
porra!
— Perdi a minha bolsa, Jow! — murmurou. O apelido saindo dela foi
um pequeno golpe, mas não me deixei amolecer. — Estou enjoada... —
sussurrou.
— Puta que pariu... — murmurei, dando voltas curtas sem sair do
lugar e alisando o cabelo.
— Me leva para a sua mãe. Eu quero dormir — pediu, caminhando em
minha direção.
Me afastei, tendo a impressão de que ela iria me abraçar. Eu não podia
ter aquele tipo de contato, não podia! Ela era uma puta que me ferrou, e eu
não ia deixá-la me amolecer.
— Já disse que você não vai ficar ao lado da Júlia bêbada desse jeito
— avisei, ameno, coçando a cabeça.
— Eu durmo longe dela, porque eu estou... Estou ficando com raiva de
você, e quero dormir, e quero a nossa filha... e... eu... o Ben, tão pequeno
e... na piscina...
Começou... Agora ela iria começar a chorar, falar do passado, falar dos
pais, do irmão, dizer mil e uma coisas melosas e depois apagar bem ali, no
chão. Eu a queria humilhada, mas não ia deixar Ana dormindo no meio da
rua, mesmo porque Helena estava bem atrás da cortina do quarto no
segundo andar da casa à frente, no telefone com a minha mãe. Nem
precisava olhar na direção daquela residência de madeira para saber que a
velha, a X-9 pessoal da Marta, estava delatando tudo. E eu não queria falar
com a Marta, não queria um sermão por deixar a mãe da minha filha bêbada
dormindo no portão.
Então, sem a menor delicadeza, envolvi meus dedos em seu pulso e a
arrastei para dentro da minha casa, retirei os sapatos na porta e entrei,
quebrando a minha regra de nunca deixá-la entrar no meu espaço.
— Alexa, acenda as luzes!
Guiei a mãe da minha filha até o sofá cinza, circulado por paredes de
cimento queimado em um tom de cinza tão escuro, que se confundia
facilmente com o preto. As luzes amarelas cintilavam acima de nossas
cabeças, escapando pela sanca aberta e preta do teto. Fiz a Ana sentar e
corri para pegar lenços umedecidos no banheiro. Meu toque me impedia de
deixá-la sair sujando tudo com aqueles pezinhos de unhas vermelhas
repletos de detritos da rua.
Quando voltei para a sala, ela estava deitada, com os pés sujando tudo
e quase fechando os olhos. Eu realmente não esperava ser babá da Ana
naquela noite. Bravo, encarei a mulher à minha frente, muito tentado a
colocá-la para dormir no tapete. Deslizei tiras de lenços pelos pés dela até
ficarem limpos. Quando terminei, mordi o lábio, e o arrependimento me
consumiu quando fisgadas o percorreram. A porra da mordida!
De repente, Ana abriu os imensos olhos e me encarou.
— Você... tão... bonito — disse, entre um soluço e outro.
Ignorei o elogio bêbado, torcendo para que ela não vomitasse na porra
toda. Seria interessante observá-la acordando no dia seguinte. Teria o prazer
de contar tudo o que fez, de ver a carinha de decepção do meu Docinho.
— Eu te amava — disse, segurando o choro. Eu deveria ficar puto,
mas me sentei na mesa de centro que era quase idêntica ao tom das paredes
altas, feita de mármore, apoiando os pulsos nos joelhos e fiquei olhando
para ela. — E você é um desgraçado.
— Aham... — sussurrei, pegando o celular do bolso e disparando a
câmera, capturando a imagem do corpo esbelto sobre o sofá. Estava deitada
de lado, com a cabeça sobre o braço, escondendo a mão deformada sob o
rosto. Ana tinha emagrecido muito depois de dar à luz. — Repete!
— Eu sempre amei você... — sussurrou e sorriu, com um fio de
lágrima escorrendo pelo nariz. — E vou amar sempre, mesmo quando eu te
odiar.
Desliguei o telefone após a filmagem, com aquela frase quase
quebrando o gelo que eu sentia. Passei o indicador pelo lábio mordido,
encarando o rosto dela. Só estava com aquela ladainha porque estava
bêbada. Sóbria, estaria me xingando.
— A Júlia tem os seus olhos — disse, quase adormecendo.
— E as suas covinhas... — murmurei.
— Mas não é sua filha!
— Você sabe que é!
— Você só foi o doador do esperma...
— Vai dormir, Ana!
Então ela se mexeu, sentando-se em um sobressalto. Achei que fosse
me xingar, tentar bater, sei lá, mas ela se curvou e vomitou bem em cima de
mim.
— Mas... que... merda! — gritei.
— Desculpa! — murmurou, tonta, sentando-se no sofá e encarando
minha camiseta vomitada.
— Não senta!
Retirei a camiseta, xingando baixinho, jogando-a sobre a mesa de
centro. Encerrei o espaço entre nós, levantando os braços dela e retirando o
top vomitado. Ignorei os seios fartos e repleto de veias, com auréolas
marrons parecendo me encarar. Envolvi os pulsos dela, puxando-a para
ficar de pé. Ela ficou quieta, enquanto eu deslizava a saia dela para baixo, e
depois seguia o mesmo ritual com o tecido em renda vermelha. Tentei não
olhar para aquela boceta branca e sempre com um fio de pelos clarinhos
acima do centro de prazer.
— Não vai me comer, né? — perguntou.
— Não agora... com você bêbada — respondi, ficando atrás dela e a
guiando pela casa, segurando a cintura, passando pela cozinha em conceito
aberto e entrando no imenso banheiro marmorizado em tons de preto —
Quando eu for comer você, vai ser porque você pediu, porque consentiu. E
não se trata de se eu vou... — Empurrei-a para dentro do box, colocando-a
contra a parede. Retirei minha roupa restante e entrei embaixo do jato
morno de água, trazendo Ana comigo — é quando vou.
— Hum... — disse, virando de frente para mim.
Ela pareceu surpresa ao me ver nu, olhou meu pau por um bom tempo,
depois ergueu a mão e tentou segurá-lo.
Meu membro estava meio acordado, mas, com o gesto, o carinha
despertou por completo. Porém, me afastei. Não queria gracinha, só tomar
banho e dormir. Queria acabar com aquela porra de noite. Peguei uma
esponja de banho preta e enchi de sabonete líquido, lavei o corpo dela
tentando não olhar demais. Ana ficou quieta, me encarando o tempo inteiro
enquanto percorria o corpo dela, lavando-o. Esfreguei o rosto dela com a
mão ensaboada, tentando limpar o vômito da boca, e nessa hora ela
choramingou como uma criança. Evitei mexer no ombro dela, que estava
todo avermelhado, pois só com o mínimo encostar a garota já reclamou.
Me lavei depressa, fugindo o tempo todo das mãos de Ana. Óbvio que
um lado meu queria colocá-la de quatro e enterrar meu pau inteiro dentro
dela, mesmo sem ligar com o quanto de dor Ana sentiria por estocar bem
fundo... Mas eu não era um canalha. Nunca fui de comer uma mulher que
não consentisse.
Sequei o corpo dela como deu, me enrolei em uma toalha e encontrei
uma camiseta branca para enfiar nela. Com minha ex-namorada já
dormindo em pé, guiei-a para baixo das cobertas na cama com edredons
negros, grudado no corpo dela em uma conchinha quente e acolhedora.
Mesmo que meu corpo fosse um puta traidor, evitei as lembranças, evitei
sentir, e só me deixei adormecer com o cansaço, com aquele cheiro gostoso
de coco que aquelas ondas marrons soltavam nas minhas narinas.

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¹ Perda total ou PT é uma gíria para dizer que uma pessoa bebeu ao
ponto de passar muito mal, vomitar, ou esquecer tudo em um verdadeiro
apagão mental.
Capítulo 7

Me sentindo usada, mas eu ainda sinto sua falta


E eu não consigo ver o final disto
Só quero sentir seu beijo nos meus lábios
I hate u, i love u - Ganash feat Olivia O'Brien

Ana Oliveira
Dias Atuais...

Forcei os olhos a se abrirem, mas pareciam rebeldes, resistentes à


ordem. A sensação era de que uma manada havia sapateado por cima da
minha cabeça. A pressão nas têmporas era insuportável, um latejar dolorido,
enquanto um regurgitar percorria-me a garganta.
Lentamente dobrei a impressão de corpo pesado e consegui me sentar.
Nossa! Minha respiração estava lenta e todos os meus músculos doíam,
tensionados. Aquela tequila só podia estar batizada... Ou dei uma “perda
total” e esqueci tudo depois de algumas doses.
Quando notei o lugar onde eu estava, senti como se estivesse
despencando de um penhasco, em uma queda lenta. Porra! Girei a cabeça,
percorrendo o local com os olhos ávidos, em uma curiosidade pulsante.
Parecia um loft todo em tons de preto, onde não havia divisão de cômodos
por paredes. Era óbvio, aquela casa em tons escuros só podia ser a
residência dele.
Como vim parar aqui?
Devagar, saí de baixo do edredom e rastejei para fora da cama, que era
um pouco baixa demais. Com o mínimo ruído do lado de fora, como um
carro acelerando sob o calçamento, alguém gritando ao longe, o canto dos
passarinhos, minha testa trincava e uma dor lancinante tomava conta da
minha cabeça.
Com a garganta ressecada, caminhei sobre o piso de cerâmica escura,
olhando para o meu corpo e vendo que trajava uma camiseta branca, que
ficava extremamente grande ao meu redor. Rocei as pernas e percebi que
estava sem calcinha. Merda! Ele não faria nada comigo sem condições de
consentir... Não era o estilo dele. Mas como vim parar na casa do Josiah?
Por que acordei seminua?
Se eu estava na residência do meu vizinho, Júlia ainda estava na
Marta. Que saco! Não conseguia me lembrar de nada. A última memória
que dançava em minha cabeça era a de estar virando shots seguidos de
tequila, conversando da vida e rindo com Luana no Belmonder.
Caminhei até a sala, me sentindo subitamente pequena sob aquelas
paredes altas demais. Fiquei encarando uma porta enorme de madeira
negra, tentada a ligar o modo “nem aí” e passar por ela em direção à rua,
caminhando assim para casa. Logo desisti da ideia, preocupada em
despertar ainda mais comentários negativos sobre mim pela vizinhança.
Bufei, segurando o quadril e olhando para a direita. Uma enorme
cozinha surgiu sob os meus olhos. Do lado esquerdo do cômodo, janelas de
vidro, tão altas que poderiam ser facilmente maiores que meu corpo inteiro,
estavam ocultas atrás de cortinas de um branco translúcido. Um paredão de
armários planejados pretos jazia atrás de uma ilha em mármore negro,
repleto de suaves rajadas douradas. Havia quatro banquetas escuras abaixo
da ilha, e, quando ia caminhar até uma delas, a porta de correr do lado
direito da cozinha deslizou.
Meu coração dançou em uma valsa desordenada, observando Josiah
seminu, trajando uma toalha felpuda preta ao redor do quadril, saindo de
um banheiro envolto em nuvens de vapor. Ele chacoalhou os fios de cabelo
negros, soltando gotículas de água ao redor da cabeça. Quando seus olhos
pousaram em meu rosto, seus lábios se abriram, exibindo um sorriso largo e
triunfante. Fiquei chocada ao notar as perfurações pequenas por todo o
lábio inferior, que jazia inchado e avermelhado. Pareciam marcas de dentes.
Merda!
Será que fui eu?
Não! Não era possível...
— Acordou, Docinho? — Josiah zombou, caminhando calmamente até
o outro lado da ilha, repleto de segurança em seu castelo pessoal.
— O que estou fazendo na sua toca? — questionei, pousando meu
traseiro acima da banqueta, apoiando o rosto preguiçosamente sobre uma
das mãos.
Josiah me ignorou, e era muito previsível que o homem não saciaria
minha curiosidade de imediato. Ah, como o conhecia bem... Provavelmente
estava amando saber o quanto eu estava desesperada por informações.
Observei atentamente os gestos dele, que se encaminhou a uma cafeteira e
começou o processo de preparar o líquido marrom.
— Quero água! — avisei.
Esperei que ele fosse negar ou simplesmente cagar para o meu pedido,
mas o garoto caminhou até uma geladeira de inox imensa e pegou uma jarra
de água. Era tão óbvio que até o vidro da porra da garrafa seria preto...
Peguei o copo com rapidez e ingeri o líquido transparente com
vontade, ansiosa por hidratar aquela garganta ressecada, só respirando
quando havia bebido tudo. Nem liguei para a quantidade de água que
acabou escorrendo pelo meu queixo, em direção ao pescoço. Foi só quando
um fio dela desceu até o meu ombro, molhando o tecido e grudando-o a
pele, causando ardência, é que notei o ferimento.
Meu pulso acelerou quando investiguei atentamente, afastando o
tecido e olhando para o enorme hematoma no ombro esquerdo. Tinha
inúmeras marcas de dentes, completamente avermelhadas e doloridas. Meu
peito subia e descia, assustada, enquanto cravava os olhos nele.
— Você me mordeu! — acusei, em um sussurro.
Josiah franziu o cenho, com uma patética risada de deboche enfeitando
a face, enquanto apoiava os antebraços no mármore, fitando-me nos olhos.
Os músculos dos braços e ombros se retesaram, e eu tentei não encarar o
quanto o corpo dele havia crescido, tornando-se definido...
— Quer uma nota dez por ter ligado os pontos? — zombou, fazendo
uma ira percorrer o meu corpo. — Só devolvi isso aqui!
Quando ele apontou para os lábios, arregalei os olhos, assustada. Eu o
agredi mesmo...
— Isso foi um beijo, ou eu só mordi você, tipo... deliberadamente?
— Sem respostas por hoje, Docinho! — disse, pegando uma caneca
escura em um dos armários atrás dele e enchendo de café. — Bebe essa
porra e dá o fora da minha casa!
Adocei o café com algumas gotas do adoçante que encontrei sobre a
bancada em que Josiah se apoiava, com a mão esquerda, a mão com que
tive que reaprender a viver, escondendo a direita sob a bancada, que era a
deformada. O olhar dele pousando sobre mim tinha todos os contornos de
uma única palavra: ódio.
— Gosta de jogar, né? — perguntei, surpreendendo-o. — Vou pegar o
meu telefone e ligar para Luana, rapidinho vou saber de tudo o que
aconteceu.
Sorvi o líquido quente e escuro, louca para me sentir com energia o
suficiente para dar o fora daquela presença pesada. Josiah parecia a porra do
Hades, em um limbo sombrio e repleto de perigo. Ainda bem que aqueles
amigos dele, Harry, Isa e Bill... as três cabeças do Cérbero não estavam ali,
ou eu literalmente me sentiria no “inferno”.
Pelo menos a enxaqueca estava sumindo.
— Ah, pode ligar, mas ela só vai saber te contar o que aconteceu no
bar — avisou, caminhando lentamente até o meu corpo, chegando bem ao
meu lado. Meu coração tamborilou e tentei não demonstrar a tremedeira nas
mãos enquanto segurava a caneca e olhava para frente, assustada com
aquele gigante pairando sobre a lateral do meu corpo. — Só que ela não
estava aqui durante a madrugada, não vai saber se eu soquei meu pau na sua
garganta a noite inteira, ou se só deixei você andando de quatro como uma
cadelinha pela minha casa...
Engasguei com o café. Engasguei de verdade, a ponto de perder o ar e
ficar preocupada com a crise de tosse. Josiah deu tapas nada sutis nas
minhas costas, enquanto aos poucos fui conseguindo voltar a respirar.
Sentia o rosto queimando, largando o café sobre a bancada da ilha da
cozinha. Ignorei as gargalhadas do babaca e corri para o banheiro.
Droga! Eu perdia a linha quando bebia e fazia uso de antidepressivos...
Será que eu estava tão mal a ponto de ele me humilhar daquele jeito? Não
era possível!
Ele tinha muito ódio, me detestava, mas será que havia mudado a
ponto de passar por cima de todos os princípios e me violar? Se aproveitar
assim de mim?
Não!
Ele cuidou de mim em vários momentos e nunca fez nada, e éramos
um casal. Josiah estava brincando com a minha cabeça, com o meu medo.
Brava, agarrei uma escova de dentes que jazia em um copo na pia
escura, atirei pasta e lavei a boca. Ele sempre detestou quando eu usava sua
escova. Assim que terminei, fiquei encarando o objeto sobre os meus dedos.
Cogitei esfregar dentro do vaso sanitário, mas ele ainda era o pai da minha
filha... Não queria que morresse com uma bactéria.
Quando saí do banheiro, Josiah estava de frente para mim, ainda com a
toalha ao redor do corpo, sentado na bancada da cozinha.
— Quero conversar sobre a Coisinha! — avisou, sério, com uma
nuvem escura em seu semblante. — Já passou da hora de você entender que
eu sou o pai dela.
Paralisei, ficando tonta, me apoiando na parede para não cair. Por que
ele estava falando sobre aquilo abertamente? Com tanta segurança? Tentei
não demonstrar surpresa, mas era impossível. Meus olhos queimaram, mas
segurei as lágrimas e acertei a postura.
— Você não é o pai dela! — menti, com a voz embargada pelas
lágrimas, encarando-o nos olhos.
— Para com essa porra! — ele gritou, perdendo a paciência,
avançando contra o meu corpo, me assustando ao apertar o meu rosto.
Havia muita ira no semblante de Josiah. — Você sabe que a Júlia é minha
filha, todo mundo nesse maldito condomínio sabe! E só tem uma razão para
eu não exigir o meu direito de pai na justiça...
— E qual é? — sussurrei, sustentando o seu olhar de ódio.
— Você só tem a nossa filha — murmurou, suavizando o rosto em um
semblante piedoso. Aquilo me deixou brava, com vontade de dizer mil e
uma besteiras. Aquele olhar de pena acabava comigo, me lembrava que eu
era pequena, abandonada, e eu não gostava de me ver assim. — E é a única
razão para eu ter aceitado o seu teatro.
— Mentira! — gritei, socando o peito dele. — Você nunca foi à justiça
porque tem medo de tudo o que eu diria se estivesse lá. Sua única verdade é
de que eu só tenho a ela, só tenho a nossa filha. E se um dia eu não a tiver,
nada vai me segurar e eu vou abrir a boca.
— É, sua filha da puta... — xingou, me fazendo chorar de
ódio, por não conseguir me soltar das mãos dele, que apertavam o meu
rosto e me prendiam à parede. — Então você quer pagar para ver? Não
tenho nada a esconder, nada... Mas se você quer continuar colocando a
minha filha em uma guerra que é só nossa, aguarde as consequências.
Não aceitei quando ele me soltou e avancei, esgueirando meu corpo
para sua frente, irada.
— Eu não quero que você conviva com ela! — avisei. — Josiah, você
me deixou quando eu mais precisei. Me fez mal no pior dia das nossas vidas
e me culpou pela porra de uma coisa que eu não fiz.
— Não fez? — gritou, me pegando pelo pescoço, tão rápido que eu
mal senti. Josiah me jogou deitada contra a enorme bancada da pia, me
sufocando com seu corpo grande e seu semblante raivoso. — Fez, sim!
Você sabe que fez.
Fui invadida pelas lembranças. Ele não entendia, nunca entenderia o
que eu estava sentindo, repleta de pontos na barriga, surtando, com todos os
meus gatilhos de luto e abandono sussurrando na minha cabeça. Josiah
jamais entenderia...
— Estou cansada de brigar! — sussurrei, chorando. — Me solta!
— Sempre com esse drama... — murmurou, amargo, parecendo sentir
nojo. — Se não quer brigar, tenha a mínima decência de entender que a sua
filha precisa do pai e...
De repente, Josiah ficou em silêncio, encarando o meu peito que subia
e descia de maneira desesperada. Estava difícil respirar com aquele aperto
cravado ao redor do meu pescoço, deixando marcas. A raiva ainda estava lá,
por trás daqueles olhos, mas havia algo mais, repleto de uma necessidade
estranha.
— Você anda molhando a blusa só para me provocar, não é? —
perguntou, se curvando para encarar o meu rosto.
Tentei erguer o rosto para ver do que estava falando, então ele soltou
de leve o meu pescoço e eu notei que meus seios estavam vazando.
— Deixa de ser idiota, Josiah! — grunhi. — Eu não amamentei esse
tempo todo, meus seios estão vazando leite.
Ele não me deixou falar, parecia tão selvagem e transtornado de desejo
enquanto rasgava minha camiseta ao meio, me deixando completamente
pelada diante de seu corpo imenso. Eu poderia mandá-lo se afastar, mas
estava tão triste, com tanta raiva, que tudo o que queria era algo que me
tirasse daquela maldita dor, daquelas lembranças que me dilaceravam, que
faziam com que me sentisse culpada por todo aquele caos, por todo o ódio
que ele estava demonstrando sentir por mim.
Sentia os pelos do meu corpo arrepiados, enquanto a respiração quente
e mentolada de Josiah pairava sobre o meu rosto. Encarei de perto aquelas
tatuagens no peito, desenhos de tanques de guerra, flores, caveiras,
desenhos com trejeitos tribais tomando do pulso ao pescoço... Eram tantas
coisas, que eu mal podia prestar atenção em todas. Mas meu coração
esquentou ao ver a tatuagem de um minúsculo pezinho no peito direito com
uma data bem abaixo, o dia do nascimento da Júlia. Senti uma pequena
trilha de lágrimas escorrendo pelo meu rosto, e uma dúvida cruel
questionou minhas decisões. Tinha amor naquilo, tinha sentimento demais
naquela demonstração, naquele desenho...
Josiah cravou o olhar no meu, virando o meu rosto para encará-lo. Ele
limpou as minhas lágrimas com seus dedos grandes, de maneira gentil.
Contrastou com o ogro que acabara de me deixar nua com ferocidade.
Envolveu uma mão em carícias em meu maxilar, e a outra desceu pelo meu
pescoço. Tentei erguer as mãos para tocar aqueles cabelos bonitos... Mas ele
agarrou os meus pulsos com brutalidade e os grudou ao lado do meu corpo,
respirando fundo, feito um predador.
— Sem tocar! — rosnou, aproximando o rosto do meu.
Meu corpo parecia ter sido jogado em brasas, enquanto Josiah descia o
rosto sobre o meu corpo, respirando sobre o meu pescoço, subindo e
percorrendo a língua macia sobre o lado esquerdo do meu maxilar. Ele
estava debruçado sobre mim, fazendo grunhidos enquanto abria as minhas
pernas e descia o rosto, lambendo meu pescoço, deslizando para baixo.
Enlouquecida, cruzei as pernas, com tanto desejo que meu sexo latejava.
— Nada de se fechar! — ralhou, sobre a pele do meu colo, abrindo
minhas pernas com hostilidade, depois batendo as costas da mão na minha
vagina, me arrancando um suspiro de dor.
— Josiah... — murmurei.
Ignorando o meu gemido, ele continuou lambendo o meu corpo, até
pousar os lábios sobre meu seio esquerdo, aspirando meu cheiro e arfando
de desejo, me fazendo pirar com aquela mínima menção de contato. Me
arrepiei inteira, sentindo-me afundada naquele perfume que ele jamais
trocava. Sentia ânsia de envolver as mãos nos cabelos dele e direcionar
aquela boca para onde me interessava, o meio das minhas pernas. Só que
Josiah tinha outros planos, envolvendo os dentes ao redor de um dos meus
mamilos e dando uma leve mordida. Arqueei o corpo, enlouquecida, repleta
de um desejo há muito contido.
— Esses peitos estão acabando comigo... — sussurrou, roçando os
lábios por um, enquanto envolvia com a mão o outro, com força, fazendo
um líquido branco espirrar. — Puta que pariu!
Gemi com o momento em que ele finalmente se enterrou no meu seio,
mordendo, sugando, se afundando e arrancando coisas de mim. Josiah
parecia um monstro, faminto, me devorando, se deleitando com o líquido
que ele sugava para fora do meu corpo.
Agarrei as laterais da bancada, sentindo que poderia gozar só com
aquela boca perfeita me devorando, e então ele soltou meu seio direito,
deslizando a mão pela minha barriga, torturando-me com a lentidão que
levou até finalmente afundar a ponta dos dedos em meu clitóris encharcado.
— Que porra, Ana! Você é uma delícia...
Ele circulou o dedo em meu centro de prazer, subindo a boca com
carícias até o meu pescoço, roçando o nariz em meus lábios. Uma sensação
de estar à beira da loucura me dominou quando encarou os meus olhos,
enquanto arfava e começava a tortura na bolota inchada que era o meu
clitóris. Os movimentos ritmados me enchiam de fogo, fazendo o meu
ventre pulsar, me deixando trêmula, até que um dedo deslizou para dentro
de mim, fazendo a tensão avançar conforme ele estimulava o clitóris ao
mesmo tempo em que bombava o dedo lá dentro. Eu me perdia naquele mar
esverdeado, louca, transtornada com aquele prazer.
— Goza! — mandou, enquanto passava a me invadir com dois dedos e
usando o dedão para torturar o meu clitóris, lambendo os meus lábios.
A tensão explodiu pelo meu corpo, me fazendo arquear as costas em
um grito repleto de desejo, enquanto os lábios dele agora faziam uma dança
selvagem em marcar o meu pescoço. Minha boceta explodiu em um
orgasmo forte, pesado, delicioso, jorrando líquido por toda a bancada
abaixo de mim. Gemia, descontrolada, enquanto o homem responsável pelo
meu prazer alisava fios de cabelo ao redor da minha testa, de uma maneira
tão carinhosa...
— Muito bem, Docinho! — elogiou, beijando o meu queixo enquanto
eu arfava.
Meu corpo inteiro parecia relaxado, com gotículas de suor por toda a
minha pele. Senti os dedos dele me percorrendo, de maneira carinhosa,
enquanto o semblante dele estava suave, sereno, e aquilo me fez sentir um
pouco de paz.
Virei a cabeça para o lado esquerdo, onde ele estava de pé, notando o
movimento da outra mão dele, que lentamente deslizava a toalha para longe
do corpo. Era muito excitante observar aquelas mãos grandes alisando seu
pênis imenso, extremamente grosso, com veias serpenteando por toda a sua
extensão. Minha boca salivou, enquanto meu ex-namorado lentamente
aproximava o membro dos meus lábios, permeada por lembranças dos
nossos momentos em que não havia o menor pudor ou preocupação com a
respiração, enquanto tudo o que importava era socar aquele pau o mais
profundo que conseguisse garganta adentro.
Ergui a mão para tocar aquele monumento, mas ele novamente
segurou o meu braço.
— Sem tocar, Docinho — avisou.
Me decepcionei, engolindo a saliva que enchia a minha boca inteira,
com muita vontade de sentir o gosto da umidade que percorria aquela
cabeça rosa e roliça.
— Coloca a língua para fora! — ordenou, me encarando de cima.
E tudo o que me mandasse fazer naquele momento, eu sentia que faria.
Obedeci, respirando pela boca enquanto fitava com ar de safada aqueles
olhos repletos de um desejo sombrio. Josiah pousou o pênis na minha
língua, deslizando a mão sobre o pau. Não resisti, envolvendo o membro
dele com a boca e sugando aquela gota salgada que escapava dele. O
homem então afastou o pau dos meus lábios, desferindo um tapa forte no
meu rosto, fazendo meus olhos arderem.
— Sem tocar! — reforçou a ordem.
Aquilo era o que eu costumava lembrar de nós dois, sempre tão forte,
profundo, denso e repleto de violência. Era inexplicável a maneira que eu
me excitava com aquela brutalidade. Voltei a olhar para ele, respirando
fundo e sentindo a bochecha queimando.
Sustentando de maneira afiada o olhar dele, recoloquei a língua para
fora, sentindo-o se masturbar sobre ela, com força, com vontade. Ele gemia,
encarando os meus olhos com desejo, mordendo os lábios sem parecer se
importar com a dor que aquilo causava. Me assustei quando um jato quente
beijou os meus lábios, preenchendo a minha boca, escorrendo pelo meu
queixo.
Josiah tremia na ponta do pé, até jorrar a última gota de seu sêmen.
Engoli tudo o que ele me deu, louca com aquele sabor de que sentia tanta
falta. Deslizei o indicador sobre o fio branco que escorria pelo meu queixo
e o lambi.
Ficamos um tempo ali. Eu, deitada sobre a bancada, respirando
profundamente e o encarando. Ele, parado na minha frente, com uma mão
apoiada no balcão, arfando e parecendo esperar o coração parar de bater tão
rápido.
Eu não sabia o que estava sentindo por ele naquele momento, mas
tinha sido tão bom. Deixaria para me arrepender depois. Josiah então
começou a se afastar, alisando o cabelo enquanto ia até o banheiro. Me
sentei na bancada, retirando o que restou da camiseta dos meus braços.
Encarei a imensidão de líquido que havia jorrado da minha vagina sobre a
bancada, sentindo as bochechas queimarem. Voltou segundos depois,
carregando a minha bolsa preta. Ele a colocou sobre uma das banquetas, e
me encarou de maneira séria. Depois ele se abaixou e pegou a toalha preta,
pousando-a sobre as minhas coxas. Seu semblante era pesado, complexo,
quase não me dizia nada.
— Harry trouxe sua bolsa hoje de manhã, você a havia esquecido no
bar.
— Tudo bem...
— Agora, Ana... — disse, dando-me as costas, a caminho do banheiro,
enquanto só virava o rosto em minha direção. — Some da minha casa!
Fiquei encarando a porta que ele bateu na minha cara, com descrença.
Senti uma humilhação horrível varrer o meu corpo, apertando cada
músculo. Nauseada, com nojo dele e de mim mesma, me enrolei na toalha e
corri para fora daquele lugar.
Capítulo 8

Às vezes, você precisa queimar algumas pontes para criar uma certa
distância
I Hate U, I Love U - Gnash feat Olivia O'Brien

Ana Oliveira
Dias atuais...

Não sei quantos dias passei assim, chorando, enquanto a lembrança


dele me expulsando logo após termos tido um momento íntimo ficou em
flashback na minha mente.
Eu cuidava da minha filha, mas mal conseguia ir à rua. Não a levei na
creche, não limpei a casa, mal tomei banho. Meu cabelo era quase um ninho
de passarinho emaranhado sobre a minha cabeça, com dias e dias sem ver
uma escova. Ter tido Josiah tão perto tinha doído muito mais do que a
distância. Eu me senti tão burra, tão tola. Como pude confiar? Só para ele
me partir de novo.
De novo.
E de novo!
Josiah finalmente estava conseguindo mexer com a minha cabeça,
seguindo sua teia de vingança, plantando uma culpa horrível dentro de mim.
Era aquele o plano, afinal? Destruir qualquer sanidade que ainda me
restava? Podia ter me deixado ir presa, teria sido menos doloroso do que
aquela fogueira perpétua em que o homem me atirava.
Passei os dias olhando para aquela bebê, com cabelos loiros escuros e
que lentamente iam dando sinais de que ficariam castanhos, olhos grandes e
perfeitos, e pensando na merda de mãe que eu era.
Júlia perambulava pelo tapete da sala, correndo com a chupeta rosa na
boca, enquanto gargalhava sozinha.
Estava tirando algo precioso da vida dela?
Minha filha me odiaria no futuro por eu a ter impedido de conviver
com o pai?
O que ela escolheria se fosse grande?
Era justo fazê-la escolher?
Essa última pergunta era a que mais me fazia ter certeza do fracasso
que eu era. Não com ele, queria que Josiah ardesse no quinto dos infernos,
carregando a puta da Isabela, dos amigos, e aquele estúdio de merda que ele
havia colocado a todo vapor nos últimos dias. Estava sendo injusta com o
que tinha de mais precioso: minha filhinha.
Era uma quinta-feira nublada, mas tão quente quanto as brasas de uma
fogueira. Durante o dia, tive a consulta online com a Rita, minha psicóloga.
Foi pesado ter que nomear as coisas que eu sentia, jogando para fora as
verdades que eu sequer queria aceitar. Muito pior era ouvir o conselho que
costumeiramente saía dos lábios grossos da mulher de meia idade, com
cabelos trançados e sobrancelhas bem finas e em arco, que tudo só
melhoraria dentro de mim quando saísse daquela casa, quando fugisse da
presença dele, e quando desse ao Josiah o que era seu direito: ser pai. “Ou o
seu ex fez algo que demonstrasse que seria um perigo para a filha?”, Rita
insistia nessa pergunta. A resposta é que dependeria de quem o olhasse. Se
perguntassem a dona Helena, ela certamente diria que ele era perigoso,
assustador... Mas, no fundo do meu coração, sabia que Josiah não oferecia
perigo para Júlia.
Meu problema era que não conseguia distanciar o mal que sofri, o mal
que foi causado por ele, da filha que tivemos juntos. As feridas me
perfuraram tanto, foram tão profundas, que eu sentia que não era justo
deixar que aquele homem ainda fosse pai dela. Que ficasse tão perto...
No fim, não valeu de nada.
Ele forçou a convivência.
Ele voltou.
Ele saiu da porra do exército e veio morar ao meu lado.
Rita me lembrava que aquela decisão de Josiah conviver ou não com a
Júlia não era minha. Reforçava que era eu e somente eu quem precisava de
menos contato com o meu ex. E não a minha filha.
A psicóloga costumava dizer para que me afastasse da casa em que eu
morava, daquelas lembranças, para poder alcançar uma cura de todas
aquelas feridas. Rá! Aquilo nunca aconteceria, porque eu era incapaz de
esquecer, ou de sair da única memória viva, sólida, que possuía das pessoas
que tanto amei.
Minha mente viajou até o dia do bar, nas reminiscências daquela noite.
Demorou horrores até as manchas da nossa relação na cozinha saírem da
minha pele. Meu corpo doía, com tantos hematomas de chupões e apertões,
que parecia que eu tinha tomado uma surra. Foi inclusive Luana quem
pegou minha bebê com a avó e trouxe para minha casa, porque eu não
queria que Marta visse minha desgraça, meu rosto com os contornos
perfeitos dos dedos dele, ou as marcas em meu pescoço que confessaram
que cedi, que fui fraca...
Luana ficou de vir hoje. Finalmente defendeu a monografia e estava de
volta à casa da tia por tempo indeterminado. Me lembrou a adolescência,
quando minha amiga morava na casa rosa, andava com o primo, com
Bernardo, e formamos junto a Isabela aquele grupinho que parecia
inabalável, sólido como uma rocha. Quem diria que as rachaduras
sorrateiras que surgiam silenciosas quebrariam por completo nosso elo,
devastando todos os sentimentos que existiam, quebrando um pouco cada
um de nós.
Foram duas baixas... Mas cinco pessoas jovens completamente
quebradas. Acho que a única que ficou um pouco melhor da cabeça foi a
Luana. Isabela, coitada, já era uma ferrada desde que nos conhecemos. Sorri
amargamente, encarando a porra de tatuagem minúscula que eu tinha no
pulso esquerdo. Um emoji que era nosso, que nos descrevia, uma pequena
“bostinha” com dois olhos saltando dela. Tinha que cobrir aquela droga!
Lembrei do que Luana me disse sobre meu vexame no bar. Era para
ser uma noite feliz, mas acabei dando uma surra naquela vaca, tendo que
sair da casa do Josiah de toalha, com os vizinhos vendo, aumentando minha
fama pelo condomínio, que já não era lá essas coisas...
Olhei novamente para a marca da nossa extinta amizade, a tatuagem
que fizemos escondido quando tínhamos dezesseis anos.
Isabela jamais me perdoaria.
Josiah nunca me perdoaria.
Eu não os perdoava!
A verdade é que ele me quebrou, quebrava tudo o que tocava... Fiquei
tão cega, que ferrei com tudo, e aquilo nunca seria remediável.
Eu conviveria com aquela sombra, e estava tudo bem.
Não estava bem porra nenhuma!
— Mamãe! — Júlia gritou, me despertando daquele ciclo vicioso de
pensamentos. Quando a encarei, estava tremendo o corpinho e com o rosto
completamente rubro. — Cocô!
Corri para limpá-la. Céus, amava tanto ser mãe, mas aquela semana
com minha bebê fora da creche estava acabando comigo. Estava exausta,
drenada, cansada...
Não percebi o dia passando, mal notando que lá fora as luzes das casas
começavam a se acender, a lua já travava uma guerra com as nuvens
ansiando por dominar o céu de maneira solitária.
Fiquei sentada no sofá da sala, encarando a televisão que exibia a
novela das seis, com a mente dispersa enquanto Júlia jazia agarrada a um
dos meus seios, cravada em um sono profundo.
— Ai, amiga... Que fossa, hein! — Luana disse, apontando minha
aparência decadente, diminuindo o tom no fim da frase, ao notar que a bebê
dormia.
Havia a deixado avisada de que tinha mantido as portas abertas, para
que ela pudesse entrar sem bater. Era um alívio sentir que finalmente teria
novamente uma amiga, alguém que me entendia.
Notei a sua aparência saudável, bronzeada de sol e exibindo as marcas
onde o biquíni repousou sobre a pele.
— Foi à praia? — perguntei, indo até o chiqueirinho da sala e
colocando a bebê adormecida dentro dele. — Quer um suco?
— Sim, para os dois! — disse, me seguindo até a cozinha. — Está
menos roxa, parabéns!
— Ai, não! Nem me lembre dessa desgraça, por favor! Estou tentando
livrar minha mente disso... — avisei, pegando uma garrafa de suco pronto
de laranja.
— Suco de garrafa? Amiga, cê tá muito na bad... Que pau destruidor é
esse do Josiah?
— Ah, me erra! — ralhei, pegando também um cacho de uvas na
geladeira e me sentando na cadeira.
— É sério, você está super arrasada só por uma gozadinha na
cozinha... Imagina se ele tivesse te comido? Ana, você estaria enterrada —
zombou, me fazendo dar a primeira risada em dias.
Senti minhas bochechas queimando.
— Foi só ladeira abaixo... Estou até com medo de noitadas agora.
— Ah, é só você não tomar destilado. Toma cerveja quando a gente for
sair novamente — sussurrou. — Vou nem falar alto, ou a próxima enforcada
serei eu. Porque você sabe que Josiah disse para não te dar bebida, né?
— Sim! Você já me contou as vergonhas daquela sexta
detalhadamente... — disse. — Sabe que ele reabriu o estúdio, né?
— Sim! Vi uma fileira de vadias vindo para cá. Harry as buscou lá no
portão — contou, mordendo o canto do lábio inferior. — Falando em Harry,
de onde Josiah conhece essa figura?
— Marta disse que foi no exército... Foram expulsos juntos. Quer
dizer, “reformados” — contei, fazendo o sinal de aspas com os dedos.
— Titio Marquez usou os contatinhos para o filho não ser expulso, né?
Soube que Josiah chegou a ficar preso lá na cadeia do quartel, quando fez
aquelas merdas. Não sabia que o gostosão dos piercings também era
militar...
— É, sim — afirmei, roendo as unhas enquanto falava. — Isabela está
o tempo inteiro subindo e descendo as escadas do estúdio, estou até
dormindo aqui embaixo, no quarto dos fundos, para não ouvir aquelas
gargalhadas.
Luana roubou uma de minhas uvas, erguendo a sobrancelha e fazendo
uma pequena careta.
— Ela trabalha aí, né?
— Acho que ela é a recepcionista. Já a vi com uma camisa de
uniforme escrito Ravina, com aquele logo de corvo ridículo — murmurei.
— Sei que você tem muita história aqui, mas acho que deveria se
afastar um pouco desse lugar — sugeriu, indo até minha geladeira e a
abrindo. — A gente podia viajar! Tem umas pousadas maneiras para levar
crianças...
— Seria uma boa, mas não estou com grana para gastar com nada.
Estou com o dinheiro contado para tudo — confessei.
— Por que você não aceita a pensão do Josiah? — inquiriu, surgindo
com uma garrafa de Cabernet Sauvignon. — Não precisa me acompanhar,
vou tomar essa garrafa com esse queijinho que tem aqui.
Assenti, vendo Luana cortar o queijo minas com uma pequena faca
azul celeste, depois a observei pegar uma taça. Agarrei a garrafa de suco de
laranja e despejei em um copo. Bebi o líquido pensando na ideia da pensão.
— Não quero nada dele!
— Ah, minha mãe disse que Josiah sempre deposita a pensão da filha,
e que você retorna os pagamentos toda vez.
— Marta ama fazer uma fofoca para a sua mãe, né? — resmunguei,
amarga.
— Você está dando mole demais para esse cuzão! — disse, arrastando
uma cadeira para a frente da pia e sentando o corpo alto e envolto em um
vestido longo de cor escura. — Está aí, criando uma bebê sozinha,
sustentando uma casa só com a pensão dos seus entes que morreram... Você
nem consegue trabalhar, Josiah deveria pagar uma porcentagem dos
rendimentos que tem daquelas ações. Sabe que ele tem muito dinheiro, né?
— Sei! Eu sei tudo, que o Cristian é um corrupto, cheio da grana, que
encheu os filhos de ações e dinheiro para limpar a bunda — expliquei. —
Só que aceitar uma pensão do Josiah é como dar consentimento para ele ter
os direitos de pai.
Luana limpou os dentes com a língua e cravou os olhos sobre mim. Eu
conhecia bem aquele olhar, era um olhar afiado, de cima, repleto de
julgamento.
— Não vou passar a mão na sua cabeça por suas escolhas de merda!
— avisou.
— Eu sei... — sussurrei.
— É a porra do direito dele. Você deu, Josiah comeu, você ficou
grávida. Entende que não é justo ficar sozinha com todo esse peso?
— Eu...
— Não terminei! — cortou, me fazendo engolir em seco. — Não é
justo com você! Entenda isso, amiga! Você sequer terminou a faculdade de
Letras, poderia estar terminando e depois dar aulas se estivesse dividindo o
trabalho de cuidar da filha com ele. Porque agora você não consegue mais
escrever, mas não significa que não pode focar na sua outra carreira...
Também poderia estar saindo, conhecendo pessoas. Você merece isso, Ana.
— Ela se levantou e segurou o meu rosto entre as mãos magras. — Você
não teve culpa daquilo o que aconteceu e não merece levar uma vida de
sofrimento.
— Vou pensar nisso... — avisei, cabisbaixa.
— Sim, pense! — Sorriu, mostrando seu sorriso envolto em um
aparelho com borrachinhas de cor rosa. — Agora, tenho que te contar uma
fofoca...
●●●
A noite passou voando, entre risadas e fofocas, histórias revividas
sobre nossa adolescência, planos futuros da Lu. Me senti bem, criando
ânimo e finalmente sentindo vontade de fazer as coisas.
Quando Luana foi para a casa da tia, me pus a organizar o meu lar,
aproveitando o sono profundo de Júlia. Organizei a louça, limpei o chão da
casa, guardei os brinquedos espalhados e resolvi colocar a roupa para lavar
antes de ir dormir.
Subi as escadas de madeira em direção ao meu quarto, para pegar o
cesto de roupas sujas do meu banheiro. Céus, o ambiente estava uma
verdadeira zona. Repleto de roupas da Júlia jogadas sobre a escrivaninha,
brinquedos pelo chão. Fui colocando tudo no lugar, deixando para pegar a
roupa suja por último, até que comecei a ouvir o pessoal saindo do estúdio.
Ouvi Isabela e Harry gritando uma despedida para Josiah, enquanto saíam
às gargalhadas e batiam o portão social.
Comecei a dobrar as roupas da minha filha, apoiando o joelho na
cadeira de escritório e tentando não olhar para o Ravina. Mas foi impossível
não cravar os olhos na janela imensa de vidro do outro lado do muro,
porque gargalhadas sensuais escapavam de lá. Puxei a cortina com força,
fechando-a quando vi uma mulher jovem passeando sob a luz vermelha que
escapava de leds na parede.
Tudo o que senti foi raiva, dobrando os vestidinhos coloridos enquanto
xingava milhares de palavrões. A mulher estava com ar de flerte, sorrindo
com aqueles lábios vermelhos e carnudos enquanto encarava algo fora do
meu campo de visão.
Guardei as roupas da pequena na cômoda de madeira castanha que
ficava na parede ao lado da porta do banheiro. Segurei o cesto de bambu
claro com as duas mãos, levando-o para fora do banheiro pequeno da minha
suíte.
Será que aquela mulher era só uma cliente do estúdio? Será que era
Josiah quem estava com ela? Poderia ser o Bill, ou algum outro cretino da
turma do meu ex. Fui caminhando a passos lentos em direção à saída do
quarto, mas não dava. A curiosidade estava me matando, então me esgueirei
até a janela, puxei a cortina de voil creme e me pus a bisbilhotar.
Seria melhor não ter olhado.
Seria ótimo não ter visto aquela porra!
Mas eu vi.
Lá estava ele, sentado sobre uma poltrona de couro preta, encarando-
me nos olhos, perfurando-me diretamente com aqueles malditos olhos
verdes repletos de desejo. A mulher estava nua sobre o seu colo, com as
costas grudadas ao peito do Josiah, enquanto rebolava sobre o pênis dele,
com a... a... a vagina exibida para mim, ostentando o que parecia ser um...
Deus! A mulher tinha a porra de um piercing no clitóris. E ele parecia
enlouquecido enquanto percorria o dedo pela joia, com a outra mão
passeando sobre os seios dela.
Eu poderia sair correndo, começar a chorar, ficar com raiva. Só que
Josiah era solteiro. Poderia fazer o que quisesse da vida, e eu não tinha nada
a ver com aquela porra. Mas não corri, fiquei parada, com a porra de um
cesto de roupas nas mãos enquanto o meu ex comia uma mulher linda bem
na minha frente. Encarei os cabelos lisos e enormes da garota,
completamente loiros, o rosto magro e de feições sensuais, o corpo com
poucas curvas, os seios fartos...
Me inclinei mais para perto do vidro para ver se ele ao menos estava
usando camisinha, e sim, lá estava aquela camada de látex. Dei um pequeno
sorrisinho para Josiah enquanto fechava a cortina. A garota não me notou,
estava completamente extasiada com a boca semiaberta e os olhos fechados.
Que cretino! Nem se importou com o fato de que ali era o quarto onde
dormia com a filha dele, ou ele não sabia que Júlia dormia na cama
comigo? Eu costumava manter aquela cortina fechada para que ninguém do
estúdio ficasse me vendo, mas, ainda assim, eu poderia ter olhado da janela
com a filha dele no colo...
Depois quer que eu acredite que pode ser um bom pai para ela.
Desci com as roupas e coloquei na máquina, depois agarrei o meu
telefone e enviei uma mensagem àquele número. O mesmo que ele usou
para enviar um vídeo meu bêbada. Me filmou dizendo que o amava, depois
enviou para mim só para tentar me humilhar.
“É isso que você imagina que um bom pai faz? E se eu estivesse na
janela com a sua filha?”.
Enviei a mensagem e me enfiei embaixo dos jatos do chuveiro. Tomei
um banho gelado, porque negar que aquela merda de pornô ao vivo não
havia feito algo esquentar em mim seria uma puta mentira.
Terminei a noite capturando a bebê do chiqueirinho, carregando-a
comigo para o quarto de hóspedes que ficava no térreo. Troquei a fralda
dela com cuidado para não a acordar, depois deitei minha filha de costas
para mim, em uma conchinha e beijei sua cabecinha.
— Que pai de merda foi esse que arrumei para você... — sussurrei. —
Lucah teria sido bem melhor...
Pensei a noite inteira em tudo o que faria, em cada passo para revidar.
Ele queria jogar com a minha cabeça, me magoar, fazer doer... Josiah me
conhecia como ninguém, sabia dos pontos fracos. Só esquecia que eu
também era perita sobre ele. E agora, meu ex iria queimar também!
Capítulo 9

Coisa linda
Vou pra onde você está
Não precisa nem chamar
Coisa Linda - Tiago Iorc

Ana Oliveira
Dias atuais...

O dia foi repleto de tensões. Estava me preparando para tudo o que iria
acontecer, embora a sensação fosse de total despreparo. Eu não fazia ideia
de como seria, embora tivesse ensaiado cada palavra do que deveria dizer.
Era sexta-feira, e o dia estava findando com uma lua que lembrava o
sorriso do gato Cheshire começando a dar as caras, desinibida. Luana
entretinha Júlia, sentada no tapete da sala e brincando com um trenzinho de
madeira em tons de azul e amarelo. Era engraçado observar minha amiga
tentando ser interessante para a minha bebê. Ela notavelmente não tinha o
menor jeito, chacoalhando o brinquedo em seus dedos grandes e finos, e
Júlia encarava a mulher com olhos arregalados, a boquinha minúscula e
vermelha aberta.
Terminei de aplicar o batom nude e encarei minhas feições no espelho
em meia lua. Tinha lavado o cabelo, aplicado um aparador de pontas com
um cheiro delicioso de coco, coberto as olheiras e aplicado um contorno
bem leve na face. Nos olhos, apenas um rímel. Queria estar apresentável.
Respirei fundo, mas o nervosismo escapava por cada pedaço do meu
corpo, e se a prima de Josiah não tivesse aceitado estar ao meu lado naquele
momento, certamente eu teria dado para trás.
Alisei o vestido preto colado ao corpo e espirrei um pouco de La Vie
Est Belle no pescoço. Peguei o telefone no aparador, que jazia abaixo de um
espelho médio em meia lua e emoldurado em ferro dourado, posicionado ao
lado da porta de entrada. Uma porta toda envidraçada, com moldura de
madeira escura e lustrosa.
— Estou nervosa... — confessei. — E se ele não atender?
— Aí você liga de novo, ué... — Luana disse, sendo prática como
sempre.
— Melhor eu deixar para depois, porque...
— Nada disso! Faz agora, semana que vem vou dar aulas na parte da
manhã e passar a tarde as planejando.
— Ok! Meu Deus, meu coração vai sair pela boca.
Trêmula e insegura, deslizei o dedo pela tela do celular, procurando o
contato dele, tentando não pensar muito ao apertar a opção de chamar.
Um toque.
Dois.
Três.
Quatro...
— Docinho... — atendeu, com a voz estridente dos amigos ao fundo,
além do maldito zumbido da maldita máquina de tatuar. — O que você
quer? A Coisinha está bem?
— Júlia está ótima! — avisei, tentando conter o nervosismo na voz. —
É sobre ela que quero falar. Pode vir a minha casa?
— Como assim? Por que não fala por aqui?
— É uma conversa longa, para acertar os detalhes da sua convivência
com ela. Não é o que você quer? Estou disposta a aceitar a sua participação
na vida da nossa filha — expliquei, sendo delicada no tom de voz.
— Sabe que não entro em sua casa! — disse, com a voz baixa,
parecendo ter saído do ambiente barulhento do estúdio. — Vem você aqui.
— Não! — neguei, curta e enfática. — Se quiser ter essa conversa, vai
ter que entrar aqui, e tem que ser agora. A porta está destrancada, então
entre pela sala!
Desliguei a chamada. Soltei todo ar que estava prendendo, sentindo
que poderia vomitar de tanta tensão. Não era assim que eu jogaria com ele.
Minha vingança seria outra. Aquela conversa era por ela, pela criança que
estava com lacinho rosa na cabeça, de vestidinho de alças jeans enquanto
tagarelava na própria língua com Luana.
— Fui bem? — indaguei, encarando o olhar da minha amiga, que
corria entre minha filha e eu.
— Foi ótima.
Pensei a madrugada inteira e a conclusão que cheguei era de que seria
melhor conversar com Josiah, acertar os pontos, definir os limites de como
seria a convivência dele com a filha.
Alguns minutos se passaram e então ouvi o portão sendo batido lá fora
e senti o coração tamborilando forte, o sangue percorrendo as veias de
maneira acelerada enquanto me apoiava na parede que ligava a sala ao
corredor. Vi quando aqueles dedos enormes abriram a porta. Estava vestido
com a habitual calça preta, uma blusa de mangas de mesma cor, e uma meia
que era única peça de roupa na cor clara, pois tinha retirado o coturno para
entrar na casa.
— Oi... — sussurrei.
Ele sequer me viu, seus olhos foram direto até a criança, que brincava
despreocupada no tapete imenso em um mosaico em tons de rosa, cinza e
branco. Tinha carinho na maneira que encarava a Júlia, e outra coisa:
ansiedade.
— Vamos para a cozinha? — convidei, apontando a direção, mas ele já
conhecia toda a casa.
Meu ex cumpriu minha orientação, seguindo sem cumprimentar
Luana, afinal, Josiah a considerava tão traidora quanto a mim. Capturei o
envelope branco que jazia acima do aparador, contendo anotações que
passei a manhã inteira fazendo, após ter passado a noite inteira em claro
com coisas fervilhando em minha mente.
O pai da Júlia parou no meio do caminho. Gelei quando ele virou o
olhar na direção dos quadros em preto e branco na parede esquerda, a foto
que exibia o homem que ele odiava, o homem a quem prometi jamais
chegar perto. Josiah virou o rosto de lado, me dando um olhar repleto de
mágoa por cima do ombro. Fiquei paralisada, com medo, enquanto ele
seguia o restante do caminho em silêncio.
Mordi o lábio inferior enquanto o seguia. Notei que se sentou em uma
das cadeiras, sem cerimônia, mas se mexendo, notavelmente
desconfortável.
Caminhei até ele, apoiando delicadamente o envelope na mesa a sua
frente. Segui para a pia, apoiando minhas costas. Josiah o abriu, retirou o
papel, olhou os valores que jaziam ali e soltou todo o ar que estava
prendendo, parecendo compreender que continha a metade dos gastos da
bebê mensalmente.
— Vamos fazer uma guarda compartilhada da nossa filha — avisei,
vendo os olhos dele se suavizando, repletos de esperança. Contive o aperto
no peito. Lambi o lábio inferior, umedecendo-os antes de continuar. Minhas
mãos suavam frio. — Você vai poder ficar com ela em finais de semana
alternados enquanto ainda for bebê. Depois podemos dividir durante os dias
da semana também.
— Jura? — perguntou, boquiaberto. — Não está caçoando de mim,
né? Seria baixo demais, até para você...
— É claro que não! — revidei, de maneira áspera. — Como eu estava
dizendo, vamos dividir tudo a respeito dela. Teremos que ir juntos à creche,
para eu apresentar você às professoras e te autorizar a buscá-la.
Ele assentiu, encarando-me, repleto de interesse e com um sorriso
pleno nos lábios. Lembrou o meu Josiah, aquele adolescente que sorria
muito em minha presença, ao ver filmes, fazendo piadas, bebendo por aí...
— Mas precisamos fazer uma aproximação delicada de vocês dois,
afinal, ela não te conhece.
— Claro... Como quiser.
— E, assim como você me impediu de ficar junto a ela estando
bêbada, vou te pedir a mesma coisa. E não fume dentro de casa, ou estando
ao lado da Júlia.
— Nunca faria isso! — explicou.
— Outra coisa, não vamos brigar na frente dela. Nos tratamos com
respeito, deixando nossas diferenças e problemáticas para quando
estivermos longe da nossa filha.
— Poderia ter sido assim desde o começo... — Josiah sussurrou.
— Enfim... — pigarreei, desconfortável. — Você também precisa
aprender tudo, a trocar fralda, como é a alimentação da Júlia, os brinquedos
que pode ou não dar a ela...
— Posso observar você por um tempo, antes de ficar a sós com a
Coisinha — sugeriu, passando o dedo indicador pelos lábios. Adorava
quando ele fazia aquilo... Era tão...
Não, Ana! Ele é um cretino, você só está convivendo por conta da sua
filha!
— Isso! — respondi, ouvindo meu inconsciente e travando aqueles
pensamentos. — Uma coisa importante é que você tem que retirar aquelas
decorações de vidro do seu rack na sala. Retire produtos, qualquer coisa
nociva que ficar ao alcance dela. Júlia já sobe em tudo — avisei — Ah, já ia
me esquecer, Josiah... Tem que colocar protetor em todas as tomadas da
casa. Vai se surpreender com a mania que ela tem de colocar os dedinhos
em tudo.
Ele deu uma pequena risada com o comentário, fazendo meu coração
aquecer. A maneira como os olhos dele se iluminaram ao sorrir fez algumas
borboletas percorrerem minha barriga.
— Lembrei de uma coisa, Docinho...
— Pare com esse apelido! — ralhei, fechando o semblante.
— É claro, Docinho! — debochou, largando o corpo de maneira
despreocupada sobre a cadeira, se esticando inteiro. Mordi o lábio superior.
Que cretino bonito! Ao menos ele estava relaxando, se soltando, parecendo
menos desconfortável. — Você precisa colocar uma tela nas janelas da
casa. É meio perigoso a Coisinha ficar no andar de cima...
— Nossa, é verdade!
Céus! Como pude ficar relapsa com aquilo? E se ela tivesse subido na
escrivaninha? Meu coração doeu só de pensar em algo de ruim acontecendo
com a minha bebê. Engoli em seco, sentindo-me uma péssima mãe pela
milésima vez na última semana.
— Vou arrumar alguém para fazer isso ainda amanhã. Ela tem plano de
saúde?
— Tem o do Lucah...
Josiah trincou o maxilar, me encarando com fúria. Dei um passo para o
lado, com medo de ele avançar sobre mim. Então olhou para outra direção,
respirou fundo e suavizou o semblante, desfazendo a contração no maxilar.
— Ok! Retire-a desse plano, vou colocar como dependente no meu... E
providenciarei os trâmites para que ela tenha meu nome no registro de
nascimento.
— Tudo bem! — concordei. — Justo. E a minha câmera de segurança?
Pretende colocar outra? Afinal, você a quebrou...
— Se parar de ficar tomando conta da minha vida, sim.
— Deixa de ser presunçoso! — gargalhei, fingindo que não era
exatamente o que eu fazia. — Moro aqui sozinha com uma criança, não
acha que preciso de uma câmera de segurança?
— Ok, vou comprar e arrumar alguém para instalar isso também. Mais
alguma coisa, vossa alteza? — perguntou, com um tom ácido na voz.
— Quero colocar a Júlia em uma aula de natação... — Minha voz saiu
quase inaudível. Meu cérebro deu um gatilho imediato da criança que
boiava na piscina, na maneira como eu mergulhei até ele, desesperada. Em
Ben completamente sem vida em meus braços. Segurei o choro e encarei o
meu ex-namorado. — Acho importante.
— É claro, Ana. Pode procurar o local, terei prazer em pagar tudo o
que for necessário para a minha filha viver bem.
— É só a metade do valor, Josiah. Faço questão de arcar com a minha
parte.
— Bom, você é quem sabe...
— Vamos, vem conhecer a sua filha! — convidei, passando por ele.
Josiah me segurou, me virando em direção a ele. Envolveu as duas
mãos grandes ao redor do meu quadril, fazendo a pele arder com o contato.
Olhei para baixo, surpresa, fitando os seus olhos.
— Obrigada, Docinho!
— De nada, Jow!
Segurei o nervosismo e afastei com delicadeza as suas mãos do meu
corpo. Ordenei ao meu coração que parasse de bater tão forte... Mas, em
rebeldia, ele só acelerou ainda mais.
— Vamos logo, daqui a pouco tenho que dar a janta a ela.
Segui até a sala, vendo minha bebê empilhando blocos distraidamente.
Segui até ela, pegando-a no colo, com aquele cheirinho de bebê delicioso
me invadindo.
— Vem, meu amor — sussurrei, caminhando devagar com a pequena
em meus braços, indo até Josiah.
O pai da criança parecia assustado, com olhos arregalados e
esfregando as mãos sem parar, enquanto olhava para a bebê.
— Esse é o seu pai... — avisei, parando na frente dele.
Júlia encarou o rosto de Josiah, com os olhos imensos cravados no
rosto dele. Senti que ela se empertigou, estava estranhando a figura enorme
diante dela. Embora fosse uma criança simpática, seu primeiro contato com
outros adultos era um pouco desconfiado.
— É o seu pai, filha... — sussurrei.
— Não... — negou, balançando a cabecinha.
Então minha filha ergueu o indicador pequeno e roliço, depois apontou
para o corredor. Sabia que ela estava falando sobre as fotos. A única ideia
dessa palavra que ela tinha era quando eu mostrava as fotos do Lucah. Eu
exibia os quadros dizendo que ele era o “papai”.
Encarei pesarosa o rosto de Josiah, com medo de encontrar raiva ali,
mas só havia uma profunda tristeza em seu rosto, com um pequeno fio de
lágrima escorrendo pela bochecha.
Céus! Me senti a pior pessoa do mundo. Foi como tomar um soco no
estômago. Senti um gosto amargo tomando a minha boca.
— Tisti?
— Não estou triste, meu amor... — ele respondeu, aceitando o carinho
tímido que Júlia se curvou para fazer em sua bochecha.
— No chola!
Meu coração estava pesado. Segurei o choro, deixando que ela fosse
para o colo dele, quando ela se jogou para o pai. Josiah a segurou,
caminhou com a filha no colo para o sofá, sentando-se na sequência.
Meu olhar dispersou-se até Luana, e fiquei surpresa ao vê-la debulhada
em lágrimas, ao ponto de soltar um pequeno soluço, abraçando o próprio
corpo com uma mão e tapando a boca com as costas da outra. Voltei a olhar
para o pai da minha filha, me sentando em uma das poltronas de couro
marrom da sala, de frente para ambos.
— Que issu?
Sorri ao ver Júlia enfiar o dedinho no alargador da orelha direita de
Josiah. Foi lindo vê-lo gargalhar, fazendo pequenas rugas surgirem no canto
dos olhos, com a filha em pé sobre as pernas dele, enquanto Josiah a
segurava pelas axilas.
— O brinco do papai...
— Papai? — perguntou.
— Sou seu papai, sim! — ele disse, sorrindo e com lágrimas
escorrendo pelo rosto.
Não contive minha própria emoção ao vê-la abraçá-lo, deixando uma
lágrima intrusa escapulir. Ela era uma criança muito amorosa. Fiquei um
pouco chocada por ela se abrir tão rápido para o contato com o Jow.
— No chola... — consolou, com a cabeça deitada no ombro dele, o
narizinho roçando o pescoço do pai.
Josiah girou o rosto e beijou sua cabecinha, aspirou o cheiro com os
olhos fechados, envolvendo-a nos braços fortes, em um abraço que deixava
claro, que gritava o amor que ele sentia pela filha.
Saquei o telefone devagar, disparando a câmera de maneira sorrateira,
depois enviando a imagem para a Marta. Imediatamente os pontinhos da
mensagem ficaram azuis, e ela respondeu com vários emojis de olhos
marejados. Provavelmente estava ansiosa para saber tudo sobre esse
momento.
— Eu te amo! — ele disse, quando a pequena findou o abraço.
— Bincar
Josiah me encarou, com as sobrancelhas trincadas, parecendo não
entender o que ela disse, tentando equilibrar a criança em seus braços,
quando ela começara a se remexer de maneira animada.
— Está te chamando para brincar — expliquei, com um leve sorriso
emoldurando o meu rosto. — Pega os blocos e a ajude a empilhar... —
apontei.
Ele a levou para o chão, atrapalhado com os cubos coloridos entre os
dedos grandes. Meu Deus! Aquilo era tão fofo. Eu certamente arderia no
inferno por tê-lo impedido de viver aquilo antes. Por ter impedido a minha
filha também...
— Lu, vamos lá para a cozinha? — chamei, pensando em dar mais
privacidade a ele.
●●●
Josiah ficou a noite inteira na minha casa, deu a comida da filha na
boca, trocou a primeira fralda, colocando tudo torto e completamente sem
jeito. Foi tão fofo vê-lo segurando o pezinho dela enquanto eu a
amamentava, relaxado ao nosso lado no sofá, até sua filha pegar no sono.
Depois eu a coloquei no berço do quarto de cima, observando o homem
inspecionar a janela que ficava de frente para seu estúdio, trancando-a bem.
Ele foi até a porta que dava para a sacada na varanda, também trancando e
se certificando de que não fosse reabrir. Depois, direcionou os seus passos
até o berço, debruçou-se e beijou a cabeça da pequena. Sussurrou um “te
amo” e caminhou para fora, acenando para que eu o acompanhasse.
Liguei a babá eletrônica e o segui, vendo-o percorrer o corredor da
escada, certificando-se novamente que tudo estivesse trancado.
— Tem que colocar um daqueles portõezinhos aqui também, Ana! —
apontou a escada de madeira. — E, ou você coloca novas ripas nesse
corrimão, ou coloca uma tela. Ela é arteira, pode se enfiar aí no meio...
— Já faz o orçamento com a pessoa que você arrumar para a tela de
proteção... — pedi, enquanto descíamos os degraus e caminhávamos até a
sala. Meu coração tinha voltado ao descompasso, enquanto sentia o cheiro
dele, o calor do seu corpo próximo ao meu. — Outra coisa, Josiah, coloque
cortinas naquela janela do seu estúdio!
Ele sorriu largamente quando parou diante da porta de entrada,
exibindo sua fileira de dentes brancos e perfeitos para mim. Eu podia
imaginar a satisfação dançando pelo corpo dele, percebendo que citei sua
provocação.
— Gostou do que viu, Docinho? — perguntou, chegando bem perto do
meu corpo.
— Acho você um canalha! — acusei, recuando um passo.
— Duvido que não tenha desejado estar sentada sobre mim daquele
jeito... — provocou. — Sabe que ainda dá tempo, né?
Engoli em seco, sentindo um calor fervilhando em minha barriga,
tentando não demonstrar aquilo para ele. Desviei o olhar da maneira safada
como ele mordeu o lábio inferior.
— Amanhã eu vou sair com a Luana, à noite, então você pode ficar
com a Júlia... Talvez ela chore, então seria bom que fosse lá na casa da sua
mãe.
Josiah se mexeu, desconfortável, recostando-se na porta.
— Tá a fim de me enfiar em casas em que não quero estar, não é?
Encarei o meu ex, trocando o peso sobre os pés. Cruzei os braços e
ergui a sobrancelha esquerda, escondendo a mão direita sob a axila. Eu
realmente queria uma desculpa para Josiah ir à casa da mãe, isso a deixaria
muito feliz.
— Bom, você pode ficar com ela na sua casa, mas nada de festinhas ou
amigos esquisitos! — avisei, com o olhar amargo ao falar das festinhas. —
E ainda acho que ela vai chorar. Conheço a minha filha.
— Pode ser na Marta! — resignou-se, encarando-me dos pés à cabeça
e lambendo o lábio inferior. — Está gostosa com esse vestidinho.
Céus! Ele precisava ir embora logo. Encarei aqueles lábios
avermelhados, tão convidativos... Já não havia marcas de dentes ali. Mas
meu subconsciente mandou a lembrança de que jogaria com ele, da mesma
maneira que costumava jogar comigo, com ciúmes.
— Pode ir embora! — comuniquei, apontando a porta com a mão
esquerda.
— Hum... Minha casa está longe, não quer brincar ali? — disse,
mordendo o lábio e encarando os meus seios ao apontar o sofá.
— Para de gracinha! — ordenei, fechando o semblante. — Não vou
abrir as pernas para depois você me tratar mal, ou aparecer com outra puta
embaixo do meu nariz.
— Eu estou solteiro, Docinho. Preciso foder com alguém... E você não
parece disposta a me dar — debochou, percorrendo o meu corpo como um
predador.
Encarei o volume que parecia querer escapar da calça, ignorando a
maneira como a minha boca se encheu de água e que tive que apertar as
pernas para conter as sensações.
— Preciso dormir! Vai logo!
— Aonde você vai amanhã, Docinho?
— Não é da sua conta!
— Hum... Sabe que não precisa ir longe para transar. Sempre estou
aqui! — avisou, me agarrando pela cintura, puxando-me para grudar-me em
seu corpo e encarando a minha boca com seus enigmáticos olhos das cores
da folhagem vívida de um pinheiro. — Me deixe tirar a sua roupa?
Senti meus seios encostando no alto de sua barriga, olhando para cima,
para o rosto perfeito daquele cafajeste.
— Pensei que me odiasse... — murmurei, empurrando o seu peito com
as mãos.
— E odeio! Mas também sinto outras coisas... — sussurrou no meu
ouvido, mordendo o lóbulo da minha orelha, fazendo um jato úmido se
amontoar na minha calcinha. — Tipo isso!
Josiah levou minha mão ao seu pênis, apertando os meus dedos
esquerdos ao redor de sua ereção. Céus, eu não podia cair naquela tentação!
Então me afastei, respirando pela boca, segurando o desejo.
Dei a volta nele, agarrei a maçaneta, sentindo o seu olhar queimando
nas minhas costas, e abri a porta.
— Amanhã, às 20:00, na casa da sua mãe! — expliquei, segurando a
porta para ele passar.
Josiah sorriu, caminhando de maneira preguiçosa pela minha frente.
Senti um calor percorrendo cada poro arrepiado do meu corpo, observando-
o se abaixar e colocar o sapato. Depois ele se ergueu, me deu um olhar mais
fechado e disse:
— Pare de ensinar a minha filha que o cuzão do Lucah é o pai dela!
Surpresa, respirei fundo, segurando a fúria de vê-lo falar daquela
maneira sobre ele. Reviveu minha saudade, as lembranças, a dor...
— Por favor, não fale assim dele! — pedi, com raiva contida.
— Eu já disse! — avisou, entredentes. — Se eu a vir fazendo isso, vai
ver o Josiah que você não gosta!
— Ele também era pai da minha filha. Lucah amou a ideia dela desde a
minha barriga, amou cada chute, ele a amou antes de ela nascer... É justo
que Júlia cresça sabendo disso.
— Essa é uma das razões de eu odiar você! — murmurou, me dando as
costas e batendo o portão com força ao sair.
Capítulo 10

Eu amo o seu cabelo assim


A forma como ele cai de lado em seu pescoço
Ed Sheeran - Tenerife sea

Josiah Marquez
Há seis anos...

— Ai, mãe! — ralhei. — Vai manchar a minha testa!


— Fique quieto!
Me remexi na banqueta de plástico preta. Tinha certeza de que a minha
rainha me mancharia com a tinta, mesmo que seus dedos finos deslizassem
de maneira delicada, envoltos em uma luva plástica. Bosta! Sabia que
deveria ter esperado Luana chegar da faculdade. Minha prima era ótima
com essas coisas de cuidar do cabelo.
— Não sei por que você insiste em mudar a cor. Amo seus fios
loirinhos, sempre pareceu um anjo, filho — Marta disse.
Eu nem precisei girar os olhos para o lado, onde ela estava postada ao
deslizar um pincel repleto de tinta preta sobre o meu cabelo, para saber que
estava fazendo um bico de decepção.
Eu suava por conta do vento abafado, o que me obrigava a ficar sem
camisa.
Uma segunda-feira se findava, e resolvi colorir logo o cabelo antes de
voltar à escola na manhã seguinte. Não queria que nenhum daqueles cuzões
soubessem que meu cabelo era loiro, gostava do ar mais sério que os fios
escuros me davam. Achava que me deixava com uma vibe de fodão, além
de me distanciar da aparência natural que eu tinha. A porra da aparência do
meu pai!
— Gosto do meu cabelo na cor preta — avisei, impedindo que
apertasse a minha bochecha, travando a mão dela no ar.
— Está tão crescido, Josiah. Antes vivia grudado em meu colo, agora
não me deixa nem fazer um carinho? — reclamou, fingindo uma voz de
choro. — Só porque tem dezessete anos?
Sorri, me levantando de supetão e tascando um beijo naquela bochecha
maquiada. Minha mãe era linda. Meus amigos adoravam dizer que ela era
uma “coroa” bonita, eu os mandava tomar no cu, mas, no fim, nem ficava
tão puto assim. Eu a achava uma gata mesmo...
— Espero que não tenha encostado essa coisa preta em meus cabelos!
— reclamou, fingindo estar brava. — Agora, sente-se aí, ainda não
terminei.
Obedeci, deslizando meu celular para fora do bolso da bermuda de
sarja nos tons da mais profunda escuridão e vendo uma mensagem do
Bernardo apitando nas notificações. Sabia que ele logo responderia, pois eu
contei que conheci uma menina no ônibus voltando da escola.

“E aí? A garota te deu o número dela pelo menos?”

“Não. Mas ela mora aqui no condomínio, na rua Quatro”.

“Estava na aula hoje, Jow?”

“Sim, cara! Tava com aquela garota de cabelo vermelho, a que vive
xingando todo mundo”.

“Ah, uma menina de cabelo cacheado, com maior vibe de depressão?”

“Não fode! Eu a achei muito gata, quero chamar a Ana para sair. Me
dá uma dica de um lugar maneiro...”

“Ah, sei lá...”

Digitando...

Porra! Por mais que o meu amigo fosse um cara sensível, não sabia se
Bernardo seria a melhor opção para me aconselhar.
Aquela garota não tinha saído da minha cabeça. Por quê? Cada vez que
eu fechava os olhos, podia ver aquelas covinhas afundando enquanto ela
sorria. Eu a via corando ao lembrar quando fiz uma piadinha sobre me tocar
no banho. Estava pensando tanto naquela deusa de cabelos castanhos, que
eu a podia sentir deslizando sobre o meu corpo, enquanto ela se apressava
para fora do ônibus.
Merda! Ana parecia tão novinha... Eu arderia na porra do inferno por
realmente ter concluído meus planos no banho!
A menina estava no terceiro ano! Certamente não tinha uma idade
muito diferente da minha... Mas eu tinha que ir com calma, mesmo que
meus pensamentos pervertidos estivessem acabando comigo.
Só que tinha uma certeza: eu a chamaria para um encontro! Faria de
tudo para ter mais momentos encarando aqueles olhos que eram quase da
cor de um favo de mel, aquela boca redonda e provocante. Eu iria sentir
mais aquela fragrância gostosa de coco que exalou daquele cabelo enorme e
bonito enquanto ela se arrastava pelo meu colo no ônibus.
— Mãe... — chamei, retirando os olhos das mensagens que trocava
com meu melhor amigo.
— Sim, Jow!
— Conheci uma garota aqui do condomínio... — contei, puxando um
maço de cigarro do bolso da bermuda preta.
Estava ansioso só de pensar em Ana, em chamá-la para um encontro e
comecei a balançar a perna.
— Mas o que é isso? — gritou, puxando o maço de cigarros das
minhas mãos. — Nada de fumar em minha presença...
— Calma, “Dona Encrenca”! — zombei, me esgueirando de seus
dedos, ao receber dois beliscões no braço direito.
— Sim, continue... Você conheceu uma menina do condomínio? —
perguntou, com uma entonação de voz repleta de animação, mudando
subitamente o humor.
— Sim, o seu nome é Ana. Ela estuda na minha sala, mora na rua
Quatro com a tia Marina e...
— A Ana Oliveira? — perguntou, descrente. — Uma gordinha, um
pouco baixinha, com o cabelo encaracolado?
— Isso... — confirmei, desconfiado.
Eu podia sentir que os dedos de Marta estavam muito mais tensos
sobre o meu cabelo, e minha mãe puxava os fios com uma certa força
enquanto os repartia para pintar.
— Acho que não é muito bom ficar próximo dessa menina, filho... —
aconselhou.
A voz dela era como uma daquelas ondas quebrando na praia, que
olhamos e pensamos ser pequenas, mas se espatifam com força ao encontrar
a areia.
— O que você sabe sobre ela?
— Esteve internada em uma clínica psiquiátrica... — confessou,
respirando fundo. Senti quando ela retirou as luvas, jogando-as na lixeira da
área de serviço azulejada. — Tentou o suicídio várias vezes, em uma delas a
ambulância chegou às pressas aqui no condomínio...
Caralho! Senti meu corpo empertigando, com um arrepio gélido
percorrendo a porra das minhas costas. Como eu nunca soube de uma
história assim? Ela parecia tão doce e tímida me encarando durante a aula.
Eu a via pela visão periférica, recostada na parede da sala de aula,
completamente obcecada e vidrada em mim o tempo inteiro.
Não era possível! Tão linda enquanto eu lhe despejava gracejos, dando
sorrisos leves...
— Tem certeza, mãe? Quem te contou isso?
— Sobre o suicídio? Todos aqui no condomínio sabem, mas a razão
quem me contou foi Helena.
— E qual foi a motivação, então?
— Diz que os pais dela se mataram juntos. Jogaram-se com o carro na
frente de um caminhão que transportava gasolina — contou, respirando
fundo e com ar pesaroso ao limpar as mãos embaixo do jato de água da
torneira, com a luz que escapava de maneira ardilosa pela janela de vidro
acima da pia da área de serviço refletindo sobre o rosto. — Fiquei com tanta
pena! A menina só tem dezesseis anos e já ficou órfã, e ainda daquela
maneira...
Dezesseis anos!
— E por que os pais da Ana se mataram?
— Isso, eu não faço ideia.
— Helena é uma fofoqueira de araque. Nem para saber uma fofoca
inteira... — murmurei.
Minha mãe deu uma leve risada, pegando um algodão com um líquido
fedorento e começando a limpar a minha testa.
Coitada da Docinho... Senti uma coisa estranha em meu peito, como se
algo estivesse segurando meu coração e apertando. Pensei naqueles olhos
acanhados ao descobrir que os pais a haviam deixado, e daquela maneira
tão pesada.
Será que se sentia sozinha?
Será que tinha amigos?
— É demaquilante, uma dica que ajuda a não deixar a pele marcada —
explicou, me apertando nos ombros para ficar quieto. — Tudo o que mais
peço a Deus é para que você encontre pessoas que o ajudem a ser menos
caótico, porque vejo essa brasa que tem bem atrás dos seus olhos...
— Ah, mãe, não vai começar com sermão, né?
— Vou, sim! Gosto muito do Bernardo, um menino de bem, bondoso...
Amo que sejam amigos. Mas essa... essa jovem, a Ana, tenho medo de que
seja tempestuosa demais para você. Eu já a vi passar aqui no portão, sempre
muito distante, parecendo que pairava por aí com uma nuvem de chuva
cabeça adentro.
— Eita, dona Marta! Está filosofando? — zombei.
Me levantei do banco, estalando as costas ao parar acima do limiar
branco, que jazia entre a cozinha e a área de lavar. Minha mãe não era
ciumenta... Não costumava implicar com nenhuma garota com quem eu me
envolvesse, pelo contrário, dizia que queria ver meus olhos um dia repletos
de amor por alguém. Marta era tão de boa, que eu podia arrastar mulheres
com idades acima da minha para o meu quarto, entrando escondido à noite,
e minha mãe as recebia com um bolo durante a manhã, puxando assunto e
as convidando para voltar sempre.
— Relaxa, ok? Só vou sair com ela, não disse que vou pedi-la em
casamento! — avisei, dando as costas à mulher de meia idade e caminhando
para o meu quarto.
Adentrei o cômodo de paredes pintadas de preto, parando em frente à
escrivaninha de mogno. Larguei meu corpo sobre a cadeira de couro escura,
sacando o celular do bolso e encarando a página de WhatsApp com o rosto
do meu amigo.
Sua foto ostentava um sorriso largo, sob um rosto de contornos
tranquilos, olhos azuis, cabelos tão pretos que me faziam ter inveja.
Algumas sardas aleatórias salpicaram-lhe o rosto. Ele odiava aquelas
marcas...

“Eu chamaria um boy para ir ao cinema, afinal, é o passeio mais


coringa que tem. Se ela for naturalista, igual ao Lucah, chama para ir ao
Jardim Botânico, se for mais ligada em balada, chama para uma noitada
em qualquer boate, mas se bem que ela tem uma cara de criança... Vão
barrar logo na porta”.

“Pedi um conselho, mano... Não um monólogo”.

“Jow...”

Fiquei sorrindo com as carinhas de choro que ele colocou.


“Ok, vou chamar ela para vir ao meu quarto ver alguma coisa no
Netflix, aí compro... sei lá, um chocolate? Um perfume?”.

Digitando...

“Manda um áudio, Bernardo! Tô ansioso e cê tá demorando muito...”

Estava nervoso pra caralho só de pensar no que dizer a Ana. Foda-se


que ela fosse quebrada, foda-se que os pais a deixaram. Ela não tinha culpa!
Fosse lá o que tivesse acontecido, Ana foi abandonada.
E se minha mãe tinha achado que me contar aquilo me faria ter
vontade de ficar longe, Marta estava tão enganada! Aquilo só me fez ter
vontade de grudar nela, de causar sorrisos, de fazer aquele Docinho
gargalhar e aprofundar ainda mais aqueles buraquinhos na bochecha rosada.

"Você não sabe se ela gosta de perfume e nem de chocolates... Compra


um cordão, sei lá, com um pingente maneiro”.

“Porra, show, mano! Já disse que tu é um gênio?”

“Só umas mil vezes, mas... é sério, ela tem uma vibe daquelas virgens
que é melhor você nem tentar comer se não quiser casar com ela!"

“Tu acha?”

“Sim! Super vibe de virgenzinha...”

“Minha mãe tá implicando com a Ana, mas vou chamar para vir aqui
assim mesmo”.

“Sério? Tia Marta nunca implica com ninguém...”

“Ah, umas paradas sinistras aí, cara. Agora eu vou tomar banho e
lavar a porra da tinta do cabelo”.

“Se um dia você ficar arquimilionário, vou usar a informação de que


seu cabelo é loiro para fazer chantagem... Lá lá lá lá”.

“Cuzão...”
●●●
A aula mal começou e eu não conseguia nem prestar atenção nas
ladainhas do Ber. Ficava o tempo todo fitando aquela deusa de cabelos
marrons, enquanto ela sorria e conversava muito com a amiga ruiva.
Eu estava balançando a perna sem parar, além de ficar coçando os
dedos com uma vontade absurda de fumar um maço repleto de cigarros.
Treinei a noite inteira em como a chamaria para ir lá em casa.

“Vamos ver um filme?”


“Quer ir lá em casa ver alguma parada legal?”
“E aí, já viu The Walking Dead?”

Puta que pariu! Eu estava endoidando...


— Você reparou? — Bernardo indagou, puxando a manga da minha
camisa na altura do ombro, prostrado na carteira do meu lado direito. — A
Isa nunca sentava na frente, e nem falava com ninguém a não ser para
mandar tomar no cu, agora ela está na primeira fileira, best friend da sua
futura “primeira-dama” e ainda falando pelos cotovelos?
— Surpreendente...
Continuei encarando aquele rosto. Parecia que tinha brilho nas
bochechas como os que minha mãe costumava iluminar a cara, além de
estar com os lábios molhados... Ela estava maquiada? E a blusa estava mais
apertada do que a que usou ontem. Tentei disfarçar a reação que apontava
no meio das minhas pernas quando olhava para Ana.
— Ei... Para de encarar! Dá uma disfarçada! — Bernardo sussurrou,
me dando uma leve cotovelada na costela. — E por que você está se
curvando assim?
Tentei esconder que estava com o pau duro, só que o puto percebeu e
começou a gargalhar, tapando a boca. Senti minha bochecha esquentando.
Deu maior vontade de dar um cascudo no Bernardo por chamar atenção.
Sabia nem disfarçar...
Assim que o sinal soou anunciando a próxima aula, me levantei e fui
até a carteira dela. Meu coração estava quase saindo pela merda da minha
boca, só que aquilo não ia me impedir. Eu ia ter aquela deusa no meu
quarto, ia sentir aquele lábio molhado sobre os meus. Não importava o
quanto demorasse.
Ana ria, descontraída, mas, quando seus olhos intensos pousaram
sobre os meus, comigo estacado de pé em frente à carteira dela e de sua
amiga, a garota gelou. Isabela me encarou, fitando-me dos pés à cabeça e
franzindo o lábio superior, parecendo que eu era asqueroso.
— O que foi, projetinho de galã? Mete o pé! — mandou, tentando
fazer cara de brava.
— Oi, Docinho! — cumprimentei, ignorando a ruiva histérica.
Porra! Será que aquela “cabelo de fogo” ia atrapalhar os meus planos?
Me preparei para mandá-la cair fora, mas a voz estridente do meu amigo
nos chamou atenção.
— Ô, “AF”, vem cá! — Bernardo chamou, parado acima do umbral da
porta da sala de aula, cravando o olhar em Isa.
A ruiva me encarou, fuzilando-me com os olhos envoltos em uma
parada preta, que escorria por baixo dos cílios volumosos. Parecia uma
boneca assassina. Ela levantou, irritada, pisando duro ao caminhar até ele.
— O que é AF? — Ana indagou, soprando um hálito de bala de maçã
verde em meu rosto. Senti vontade de beijar aquela boca grossa, repleta de
um batom brilhoso e transparente... Como minha mãe dizia que era aquela
porra? Gloss?
— Ah, significa “atrasa foda” — expliquei, me deliciando ao ver
aquela bochechinha redonda corando. Ergui o dedo e apertei sua maçã do
rosto, não resistindo ao impulso. — Você está bem?
A Docinho se surpreendeu com a indagação, e imediatamente me
arrependi do questionamento. Para quebrar o desconforto ao vê-la se
remexendo na cadeira, me sentei ao seu lado. Sentia meus batimentos
cardíacos acelerados, palpitando tão forte, que eu quase os ouvia.
Mesmo nervoso, tinha noção de que a garota tinha uma postura
acanhada, e que por isso eu teria que conduzir as coisas.
— Estou ótima! — respondeu, carrancuda.
— Sai, Josiah! — Isabela gritou, prostrada ao meu lado. Bernardo não
foi eficaz ao tentar afastar aquela metida? — A aula de Matemática vai
começar. Vai lá irritar o seu amigo...
— Vou fazer a aula aqui, obrigado! — avisei, apoiando o braço sobre o
encosto da cadeira de Ana.
A ruiva me trucidou com o olhar, fazendo um cheiro absurdo de uva
pairar no ar conforme ela soprava a respiração acima da minha cabeça,
bufando. Isa suplicava a Ana com os olhos escuros, parecendo pedir à
amiga que a ajudasse a me expulsar.
— Vem, Isabela! — Bernardo chamou. — Deixe-os ficar juntos, para
de ser antirromântica!
— Vai se ferrar! Só vou sentar aí porque a safada da Ana está gostando
do braço do seu amigo bombado ao redor dela.
— Isso, mas senta aqui e cala a boquinha, linda! — Ouvi Bernardo
aconselhando ao longe.
Ana deu uma pequena risadinha, e eu percebi que alisava a calça jeans
na altura das coxas. Estava nervosa. Aquilo alimentou o lado sádico que
costumava morar bem na parte de baixo do meu corpo. Comecei a deixar o
nervosismo de lado, sentindo que poderia dominar a situação.
— Seu amigo é espirituoso, né?
— E a sua, não?
— É verdade! Tomara que se entendam...
— Será? Ela nos manda “tomar no cu” sempre que pode.
— Sério? — gargalhou, mordendo o lábio superior e me encarando por
cima dos olhos. Caralho! — Ela é gente boa...
— Já se conheciam?
— Não! Eu a conheci ontem, mas acredita que parece que somos
amigas a vida inteira? — contou, abrindo a mochila para pegar o caderno.
— Foi assim também com Bernardo. Me sentei ao lado dele na quinta
série, aí ele grudou em mim e nunca mais me deixou em paz. Vive na minha
casa, só falta chamar a Marta de mãe...
— Quem é Marta? — perguntou, deixando algo cair da mochila
enquanto puxava um caderno com uma estampa de frutinhas em um fundo
rosa.
— Minha mãe — disse, me abaixando para pegar o objeto.
Segurei o livro entre os dedos, enquanto ela tentava retirar das minhas
mãos, apressada. Curioso, ergui o objeto bem acima da minha cabeça,
vendo seus olhinhos pidões repletos de preocupação.
— Trono de Vidro? — questionei, vendo o rosto dela completamente
vermelho.
— É só uma fantasia... — murmurou, enquanto parecia resignada ao
me ver lendo a sinopse.
Só um livrinho fantástico com uma assassina fodona? Não! Tinha que
ter algo mais...
— Por que tanta preocupação com uma fantasia? — questionei,
pousando o manuscrito sobre a mesa a frente dela.
— Isabela me emprestou... — ela sussurrou. — Não tem nada! Eu
disse...
Então ela avançou as mãos de dedos finos, pequenos e perfeitos em
direção ao livro, mas algo naqueles olhos me intrigou. Me impulsionei,
travando os ombros dela com as minhas costas e capturando o livro. Abri a
primeira página e li a dedicatória escrita à mão, vendo a garota se
transformar em um tomate de tão corada.

“Se prepare para chorar, sorrir e molhar a calcinha com essa saga.
Sem carinho, Isa!”

— Molhar a calcinha? — perguntei, dando uma pequena gargalhada


enquanto ela batia a página do livro para fechá-lo, me encarando com uma
carranca.
— Não gosto que bisbilhotem minhas coisas! — avisou, fechando o
semblante e parecendo magoada.
— Não fique brava, Docinho! Foi mais forte que eu.
Ana não respondeu. Ela ficou com um bico imenso a maior parte da
aula, anotando com tanta força a matéria, que chegava a fazer rasgos no
papel.
Fiquei observando aquele semblante enfurecido, me divertindo com o
quanto conseguia ficar ainda mais bonita. Deslizei o braço sobre o encosto
da cadeira dela, vendo-a se assustar com a maneira como eu envolvi seu
ombro esquerdo entre meus dedos, sentindo a pele quente e macia. Seu
corpo, que antes jazia completamente rijo, amoleceu, e ela suavizou as
sobrancelhas, outrora trincadas. Aproximei o rosto do seu ouvido,
absorvendo a maneira como ela ficava repleta de vergonha e ruborizando.
Inspirei o cheiro gostoso que escapava daquelas ondas lustrosas ao redor de
sua cabeça.
— Vamos a minha casa hoje? Podemos assistir a um filme... —
sussurrei, roçando a boca de leve sobre o lóbulo de sua orelha.
Ana respirou pela boca, assustada, mas não se afastou do meu toque.
— Preciso pedir a minha tia... — avisou, apertando os dedos de ambas
as mãos ao escondê-los sob a carteira.
— Vamos assim que acabar a aula! — avisei, cessando o contato,
deixando-a com um ar perdido e gostando da maneira como a garota
demonstrava sensações com o mínimo contato do meu corpo. — Nos
vemos no ônibus?
— Sim... — ela sussurrou, encarando meus olhos com fascínio.
●●●
Tive que assistir de longe Ana despedindo-se de Isabela, enquanto
permanecia parado em frente ao ônibus escolar. Bernardo já tinha ido
embora com a mãe, que o viera buscar de carro. A ruiva seguiu seu
caminho, mas não antes de me dedicar um dedo do meio enrolado em um
band-aid vermelho. Balancei a cabeça gargalhando... Aquela Isabela era
mesmo uma figura. Será que estava com ciúmes da amiga?
— Mandei mensagem para a minha tia, e ela deixou eu ir a sua casa —
avisou, parando de maneira tímida a minha frente.
Ana segurava as alças da mochila, enquanto eu a deixava entrar
primeiro no ônibus de cor amarela e com faixas negras. Ela ia parar logo na
primeira cadeira, mas passei por ela, arrastando-a pela mão até a última
fileira.
Seguimos a viagem em silêncio, enquanto eu só ficava observando
cada reação do corpo perfeito dela. Corava sem parar, com olhos muito
abertos entre respirações profundas. Que fofa!
Quando chegamos a minha casa, procurei minha mãe em todos os
cômodos, mas foi na cozinha que encontrei um bilhete grudado na imensa
geladeira de inox:
“Fui buscar a Lu na faculdade, depois vamos passar no mercado.
Beijos, mamãe!”.
Notei que minha colega de turma estava observando tudo, percorrendo
de maneira curiosa o ambiente. Guiei-a pelo corredor de portas de madeira
clara e rodapés brancos, fazendo-a adentrar a única porta preta da casa. Ana
ficou muito tímida quando a deixei no meu quarto, parecendo
completamente desconfortável.
Corri pela cozinha, pegando Cheetos e algumas latas de Coca. Fiquei
com medo de a garota sair correndo a qualquer momento. Quando pousei os
itens sobre a mesa de cabeceira, me joguei sobre a cama, fazendo-a
balançar. Ana ficou de pé, estática sobre o tapete de hexágonos de crochê
em tons da noite. Bati na cama ao meu lado, convidando-a para se sentar.
Mano... Eu nem estava de maldade na parada. Mas onde ela iria ficar?
Era aleatório mandar se sentar na cadeira da escrivaninha.
Ana retirou os sapatos antes de obedecer ao comando, ficando de meia
ao subir ao meu lado, em uma cama de casal com cabeceira acolchoada
negra e uma colcha laranja do Dragon Ball Z. Quando ela se sentou bem na
ponta da cama, tímida, me recostei nos travesseiros imensos e a puxei para
mim, grudando suas costas em meu peito. Liguei a televisão com um
controle remoto, sentindo aquele corpinho completamente rígido sobre os
meus braços.
— Relaxa... — pedi, passando a mão pela barriga dela para abraçá-la.
— Só vamos ver um filme! Não quero nada além de passar um tempo com
você...
— Quero ir devagar! — sussurrou, sem olhar para mim e sem se
mover.
— É claro! Como eu disse, só quero ficar com você. O que quer
assistir?
— Sei lá, uma comédia romântica?
Eu dei uma pequena risada. Previsível?
Escolhi um filme no qual um casal tinha que morar juntos para criar a
filha dos amigos falecidos. E mesmo que o longa fosse engraçado, bem no
comecinho, quando o casal de amigos morria, tive a impressão de ter visto
Ana chorar.
Eu a puxei para uma conchinha e fiquei alisando os pequenos fios de
cabelo ao redor de sua testa, mal prestando atenção em nada que não fosse
ela. Tiraria aquela dor dela se pudesse, porque, no fundo daqueles olhos
enormes, o que mais havia era tristeza.
Engolia todas as reações, os sorrisos, os olhinhos ávidos e repletos de
interesse na tela de LED grudada à parede, sua boca se sujando com o
biscoito enquanto ela lambia os dedos, distraída, sequer percebendo que me
provocava. Por que eu estava "de quatro" por aquela garota? Ana era linda,
perfeita, mas eu estava sentindo uma coisa tão no fundo do meu peito, que
era incompreensível.
Teve uma hora que ela gargalhou e olhou para mim, desfazendo a
conchinha, certamente querendo compartilhar a piada que assistia, mas,
quando notou que eu a observava, ficou séria. Percorri seus lábios com os
olhos, doido para lamber todos os vestígios dos farelos ao redor, mas me
lembrei do seu pedido. Devagar...
Então me aproximei lentamente do seu rosto, vendo-a arfar, com seus
olhos cor de mel repletos de ansiedade enquanto fitavam os meus lábios.
Dei uma pequena risadinha ao contrariar suas expectativas e pegar uma lata
de Coca ao lado de sua cabeça, sobre a mesinha de cabeceira.
Ana lambeu o lábio inferior de maneira sensual, parecendo
decepcionada, mas levando a situação na diversão.
— Você pediu para ir devagar... — avisei, abrindo a lata e me
recostando no travesseiro, dando um gole no líquido escuro.
— Não tão devagar!
Aquela frase me surpreendeu, fazendo meu coração dar um leve salto.
Ana queria ser beijada. Encarei o seu rosto, com uma admiração em meu
sorriso de canto.
Tinha tanta coisa que eu queria perguntar, tanto que queria saber sobre
aquela figura repleta de segredos... Mas não queria atrapalhar o momento.
Me aproximei dela, vendo a surpresa em seu semblante enquanto eu
apoiava a lata de refrigerante em seus lábios. Ela sorveu o líquido,
preocupada, sem tirar a atenção de mim. Porra... Aquele olhar por cima me
dava tantas ideias.
Retirei a lata do lábio dela, vendo uma pequena trilha do líquido
escorrendo por sua boca, cavando o caminho até seu queixo. Me aproximei,
notando o quanto estava nervosa. Percorri a língua pelo queixo dela,
lambendo o refrigerante.
— Sem desperdício, Docinho! — murmurei, desviando o rosto com
paciência até seus lábios.
Respirei fundo com o rosto pairando sobre o dela, com os olhos
fechados e o coração batendo bem forte em mim. Eu era uma muralha por
fora, mesmo que por dentro existisse um caos. Quando abri os olhos, ela me
fitava, com o peito subindo e descendo de maneira tensa. Seu olhar era
repleto de desejo e expectativa. Com calma, subi a mão por sua nuca,
sentindo os fios sedosos esparramando-se entre os meus dedos, e a beijei.
Senti a timidez daqueles lábios macios, a maneira como esperavam
que fossem conduzidos por mim. Tinha tanta inocência ali, que tive certeza
de que era o seu primeiro beijo. Quanta responsabilidade...
Fui, aos poucos, abrindo espaço entre os nossos lábios, roçando minha
língua na dela, percorrendo minha outra mão por sua cintura, descendo pela
lateral até o quadril.
Ela tinha um gosto de inocência misturada a refrigerante e bala de
maçã verde. Fui movendo a língua aos poucos, deixando que ela fosse
aprendendo os movimentos, respirando pela boca entre o nosso beijo, até
que... estava começando a ficar impossível me conter. Meu demônio
interior começou a cravar as garras em mim, ansiando por se soltar. Eu já
estava queimando, então a apertei entre os meus dedos, puxando de leve o
seu cabelo. Deslizei a mão para sua pele, por baixo da blusa, enquanto
devorava sua boca e sentia algo lá embaixo latejando, revoltado por estar
preso em tanto tecido. Apertei com força o quadril dela, brigando comigo
mesmo.
— Porra! — xinguei ao me afastar.
— O que foi? — questionou, com o semblante tensionado em
decepção. — Fiz algo errado?
— Não, é que... Tenho muitos problemas com limites — avisei,
voltando a me recostar no travesseiro, puxando-a comigo, deitando sua
cabeça em meu peito. — Você tem um cheiro tão bom.
Ela respirou fundo.
E só ficamos ali, deitados, em silêncio por um bom tempo. Ela alisava
minha barriga por baixo da blusa, me causando arrepios, de maneira tão
despreocupada e perdida em seus pensamentos, que eu tinha certeza de que
fazia aquilo sem perceber.
— Seu pai também mora aqui? — ela perguntou.
— Não!
— Então sua mãe e ele não estão mais juntos?
— Não! Eles são divorciados — avisei, desconfortável por Ana querer
falar da porra do meu pai.
— E você é próximo dele?
— Você é uma coisinha curiosa, sabia? — brinquei, apoiando-a pela
nuca, forçando-a a me encarar. Fitei aquele semblante angelical, tão sereno,
apertando de leve o seu nariz. — Não! Eu quase não falo com ele. Minha
mãe é quem ama ficar fazendo fofoquinhas da minha vida para o Cristian.
— Entendo...
Fiquei em silêncio, mesmo que tivesse muita vontade de fazer mil e
uma perguntas sobre ela, sobre os seus pais, sobre como Ana se sentia.
Deslizei meus dedos por seu braço, enfiando o nariz naqueles cabelos que
eram como uma praia ensolarada, com o cheiro perfeito de verão.
— Eu era muito amiga do meu pai — contou, com a voz quase como
um fio. Tentei dizer algo, mas meu coração estava tão apertado com a
maneira como ela tinha começado a tremer sobre mim... — A gente falava
sobre tudo. Ele era um entusiasta, acreditava em amores eternos, finais
perfeitos, almas gêmeas. Acredita que se apaixonou pela minha mãe apenas
com uma troca de olhares no supermercado?
— Que fofo, Docinho.
— Foi ele quem me deu esse apelido — E então ela desabou. Envolvi
Ana em meus braços, enquanto ela chorava sem fazer qualquer barulho,
apenas engolindo os soluços. — Ele dizia que eu deixei tudo em sua vida
doce ao nascer. Meu pai me ensinou a gostar de livros, a acreditar que todos
aqueles finais felizes e românticos eram possíveis, e ele nem fazia ideia de
que se tornava o primeiro amor da minha vida.
Senti um amontoado de lágrimas se acumulando sobre os cílios, me
sentindo tão péssimo por ver uma menina tão quebrada, tão pequena e
delicada, sendo jogada em uma vida tão solitária, tão cheia de dor.
— Qual era o nome dele?
— Davi.
— Um nome lindo!
— Sim...
— Quer me contar o que houve?
— Me desculpe, é melhor eu ir... — sussurrou, tentando se soltar dos
meus braços ao limpar as lágrimas com as costas das mãos delicadas. —
Estraguei tudo.
Me sentei, segurando-a em meus braços e envolvendo-a em um abraço
apertado.
— Você não estragou nada, Ana — avisei, beijando seguidas vezes o
topo de sua cabeça. — Estou doido por você, e só te conheço há
pouquíssimo tempo. Você tem noção disso?
Senti o peito dela batendo freneticamente, e nem tinha certeza se ela
estava me ouvindo.
— Amei esse tempo com você, e... o beijo... e tudo — sussurrou,
girando a cabeça para encarar os meus olhos. — Mas agora quero ir para
casa.
— Sim! Posso levar você?
Ela assentiu, se desviando dos meus braços e caminhando para colocar
os sapatos. Quando eu a levei em direção à sala, lembrei que não havia
entregado o presente, e ele ainda estava na gaveta da mesa de cabeceira.
— Espera só um minuto, vou pegar uma coisa.
Deixei Ana de pé sobre o tapete da sala. Corri até o quarto e agarrei a
pequena caixinha azul, colocando no bolso da minha calça jeans. Tentei
voltar o mais rápido que pude, mas o que vi me fez...
EN
FU
RE
CER.
Lá estava o puto, envolto em seu terno engomadinho cinza e
abraçando Ana. Ele estava parado entre Luana e minha mãe, na frente da
porta de entrada da casa.
— Prazer, me chamo Lucah! — o homem disse, sorrindo de maneira
confiante para ela. Ana estava se recompondo de suas lágrimas, mal
notando os olhos claros dele ou o cabelo louro arrepiado. O desgraçado
parecia confuso, encarando as lágrimas dela. — Sou o irmão mais velho do
Josiah.
Capítulo 11

Nunca vai levar muito tempo ou atenção


Leva apenas um segundo para fazer nossa conexão
Eu faria qualquer coisa pelo seu carinho
Meio divertido tentando fazer isso de todas as formas erradas
Love You Still (abcdefu romantic version)

Ana Oliveira
Dias atuais...

Quando virei a esquina na rua da Marta, fiquei muito surpresa e


irritada com o que vi. Três das cadeiras da mesa de jantar dela estavam
sobre a calçada, em frente à casa, e, sobre elas, o trio de pessoas que me
irritavam ao máximo.
Josiah estava com um semblante tranquilo, atento com algo que Harry
contava, em uma história animada e que causava gargalhadas em Isabela.
Havia combinado de encontrar Luana e Josiah ali, na casa da avó da
minha filha, onde deixaria Júlia sobre os cuidados dele e de sua mãe, e
sairia com a Luana. Não imaginava que o cão iria convidar sua pequena
matilha para ficar perto da nossa filha.
Cerrei os dentes, respirando fundo, enquanto caminhava com duas
bolsas sobre um ombro, e minha filha agarrada ao braço oposto. Tentei não
ficar nervosa além da conta, afinal, quando entendi que ele era o pai da
minha bebê, também aceitei a ideia de que Júlia acabaria tendo aqueles dois
patetas como tios, Harry e Isa. Afinal, Josiah quase não existia sem aqueles
dois.
Quando cheguei à frente do grupo, o homem me engoliu, em uma
checagem dos pés à cabeça, percorrendo minhas pernas sob o short jeans de
cintura alta, e meus ombros que ostentavam uma blusa preta em estilo
ciganinha, antes de encarar a filha. Ignorei completamente a existência de
Isabela, enquanto Júlia começava a se agitar no meu colo, saracoteando de
animação.
— Papai? — ela perguntou, rindo para ele e ansiosa para ir ao seu
colo.
Pelo visto, a pequena não tinha esquecido do Josiah, e nem da
quantidade de vezes em que repetiu para ela que era para chamá-lo de
papai.
— Oi, Coisinha! — meu ex disse, se levantando e a capturando de
meus braços.
Seus olhos tinham calmaria pousados sobre a pequena. Ele sorria ao
encarar a criança, que estava contornada com um vestido de babados azul
céu e com dois lacinhos prendendo a maria chiquinha.
— Olhaaaa! — Júlia gritou, balançando uma pelúcia da Masha entre
os dedos, fazendo-a bater no queixo do pai.
Dei um leve sorriso, pegando a bolsa da pequena, contendo fraldas,
pomadas, roupas e seu paninho que ela gostava que amarrasse a chupeta,
para ficar segurando e perambulando pela casa. Embora já tivesse tudo
aquilo na casa da avó, eu sempre levava extra por precaução. Apoiei a bolsa
de maneira desavisada sobre as coxas desnudas de Isabela, envolta em um
vestido muito curto e de cor preta, ignorando o olhar repleto de ódio que ela
me deu.
— Já que quer ser tia, melhor ir aprendendo a trocar uma fralda! —
Harry zombou.
— E você também, otário!
— Otalio... — Júlia repetiu, sobre o colo do pai, que já havia retornado
a cadeira.
Todos ficamos chocados com a rapidez com que ela repetiu a palavra.
Harry começou a gargalhar, mas eu fechei o semblante e Josiah, também.
Isabela corava, mordendo o lábio inferior, com um pedido de desculpas no
rosto, encarando o pai da pequena.
— Vamos às regras, já que as crianças não sabem se comportar! —
avisei, encarando o trio. — Obviamente, nada de xingar na frente dela, ok,
V-A-C-A?
Soletrei o xingamento, finalmente fuzilando aquela falsa com o olhar.
Josiah deu uma pequena risadinha, sendo censurado com meu semblante
ácido.
Eu não queria ter que conviver com ele, ou com seus amiguinhos, mas,
pelo visto, aquelas interações seriam cada vez mais constantes.
— Tudo bem, P-U-T-A — a ruiva revidou, com o olhar colérico sobre
mim.
Peguei os sentimentos que tinha por Isa e os tranquei, ignorando o
carinho que ainda existia, dando voz somente ao desprezo. Encarei a
pequena mesinha de madeira branca na frente deles, inspecionando,
procurando algo alcóolico, mas só encontrei refrigerante e água no balde de
gelo.
Dei as costas a todos, caminhando até a casa. Fui a passos lentos,
esperando que Júlia me gritasse, que pedisse para voltar ao meu colo.
Quando cheguei diante da suntuosa porta de madeira, olhei por cima do
ombro. Josiah erguia a menina diante do corpo, com ela de pé sobre suas
coxas, chamando-a de “Coisinha fofa” diversas vezes, enquanto a filha
gargalhava.
Segurei o ciúme, engolindo em seco enquanto entrava na residência. O
cheiro do perfume de Luana inundava o ambiente, uma fragrância que
lembrava dias ensolarados. Outro cheiro que dominava o local era o do bolo
de laranja sob o forno. Certamente Marta faria o bolinho que o filho amava,
e serviria a ele e sua turma, ao lado de um café quentinho. Aquela mulher
amava conquistar as pessoas pela barriga, e sempre funcionava.
Deixei a bolsa transversal preta sobre o sofá em L, e me encaminhei ao
quarto de hóspedes no corredor extenso. A residência tinha somente um
pavimento, mas era imensa, ostentando cinco suítes maravilhosas. Em
geral, a casa tinha um cheiro incrível de verbena, mas, quando chegava o
fim de semana, que era quando Marta pedia para ficar com a neta, todos os
cheiros estavam mais suaves, para não irritar a criança.
Cheguei ao quarto da Luana, e ela estava terminando de passar rímel,
aumentando ainda mais o volume de seus cílios extensos.
— Amiga! — comemorou. — Vem se maquiar!
— Mas o plano não é apenas ir ao cinema? — sussurrei, colocando a
cabeça para fora, para garantir que Josiah não estivesse perto para ouvir.
— Sim! — Luana concordou em um sussurro complacente. — Só que
é melhor parecer que vamos para uma noitada, não é? Ou não quer que ele
fique com ciúmes?
— Claro que quero... Quero que ele arda, como faz comigo —
murmurei, como se estivesse pensando em voz alta.
— Isso aí, garota! Agora senta aqui e venha carregar essa make!
Deixei que ela deslizasse pinceis pela minha face, fazendo camadas
com base, corretivo, e muitas outras coisas. Quando por fim me olhei no
espelho, era quase outra Ana. Era uma Ana sexy, sedutora, com um
esfumado em tons de marrom sob um delineado Fox Eyes, tornando o meu
olhar arrebatador, e um batom vermelho para terminar de me deixar
incrível.
— Vão achar que somos exageradas, chegando para ver um filme de
Super-herói com uma maquiagem digna de um tapete vermelho.
— Que pensem! — Deu de ombros.
Por fim, Lu acertou o meu cabelo, posicionando-o para que uma
mecha cacheada caísse pela parte direita do meu rosto, enquanto a esquerda
foi puxada para trás da orelha.
— Agora vamos arrasar, Aninha!
Me despedi da Marta, pedindo que ela ficasse de olho na minha filha.
Eu sabia que a Isabela me odiava, mas também a conhecia tão
profundamente, que podia perceber seu olhar de carinho pela criança
sempre que me via com Júlia. Meu medo era que eles não prestassem
atenção e algo de ruim acontecesse. Eram as minhas sombras, que
costumavam sussurrar pesadelos no meu ouvido, me lembrando da criança
a quem eu não salvei.
Respirei fundo enquanto caminhava atrás da Luana, em direção à
portaria para encontrar o Uber que estava a minutos do nosso local.
Cheguei ao portão da casa da mãe do Josiah, observando o tempo e
preocupada que Júlia ficasse no sereno.
— Josiah, é melhor vocês entrarem. Não acho legal a Júlia ficar aqui
fora assim, durante a noite — avisei, me abaixando para dar um beijinho em
sua franjinha dourada. — Até logo, filha.
— Mamãe — ela disse, acenando e dando tchau, depois virando o
rosto, como se estivesse me expulsando.
— Já vou entrar com ela — respondeu, voltando a encarar as minhas
pernas, com seu semblante tornando-se predatório. — Aonde você vai?
— Não te interessa! — repliquei, com olhos jocosos para cima dele.
— E quando vai voltar? — inquiriu.
— Quando eu achar que devo!
Virei as costas, farta de seu interrogatório descabido, vendo Harry
segurar uma risada.
— Cara, você parece uma hiena! — zombei, olhando por cima do
ombro para o companheiro do meu ex.
— Qual foi, surtada? Deixa meu cavalo andar... Segue teu rumo, aí! —
Harry retorquiu, irritado.
Isabela começou a rir, e eu também não consegui evitar a crise de
risos, seguindo ao lado de Luana para nosso destino. Meu tênis estilo Iate
fazia meu pé suar, naquele vapor extremo que costumava ser a minha
cidade natal. E então nos encaminhamos para seguir os planos da noite, que
eram simples: sair o mais gata possível e deixar a imaginação do Josiah
falando por si.
●●●
Quando chegamos em casa, já eram 23 horas. A casa já estava
entregue à escuridão. Já não havia sinal de Josiah ou dos amigos. Luana foi
para o quarto dela, bocejando ao me desejar boa noite.
Fui em silêncio até o quarto da Marta, olhando por uma fresta da porta
se estava tudo bem. Júlia jazia adormecida, com a chupeta pendendo dos
lábios e agarrada a avó. Marta estava no décimo sono, com uma touca de
cetim sobre os cabelos, e os óculos de leitura sobre os olhos. Provavelmente
adormeceu lendo um de seus romances picantes.
Meu coração ficava tão quentinho com a maneira como as duas eram
ligadas... Era tão bom ver que meu pedacinho de mundo tinha alguém que
poderia ser para ela como uma mãe, caso eu não estivesse mais aqui.
Segui o meu caminho, pegando uma caixinha de suco de uva na
geladeira e caminhando para o quarto de hóspedes no fim do corredor.
Entrei no recinto de paredes em tons de salmão, uma cama queen com
lençóis macios e cheirosos e larguei os meus sapatos ao lado da porta.
Eu não iria para casa. Odiava andar sozinha pelo condomínio naquele
horário. Não tinha perigo ali, mas eu me sentia vulnerável, e odiava aquela
sensação.
Entrei no chuveiro e tomei uma ducha vaporosa, enrolando-me em
uma das toalhas felpudas de Marta, antes de me enfiar em uma camisola de
seda preta. Prendi o cabelo em um coque desordenado, me jogando sobre a
cama.
Tentei manter a cabeça serena para adormecer, mas, a cada momento
em que me permitia tentar dormir, dois intrigantes olhos claros apareciam
na minha mente.
Será que ele estava com raiva?
Será que sentiu uma fração do que me fez sentir ao foder uma mulher
na minha frente? Sem conseguir dispersar os pensamentos, levantei,
perambulando pelo quarto, agarrando a caixinha de suco de uva e
bebericando. Que desgraçado! Minha filha sequer sentiu minha falta,
adorando aqueles braços imensos e com um emaranhado de desenhos.
Aposto que, se enterrasse o nariz no cabelinho dela, aquele maldito cheiro
de Calvin Klein One estaria lá.
Nem sei como foi que cheguei lá, mas meus passos nervosos me
guiaram até a única porta preta da casa, àquele lugar, tão intocado, que
Marta mantinha como um templo, como se o filho fosse voltar para lá a
qualquer momento.
Apoiei os dedos na porta, empurrando devagar. Não sabia o que queria
ali, porque sentia tanta necessidade de buscar algo dele, alguma presença.
Encontrei o quarto entregue à penumbra, sentindo o cheiro dele
insanamente impregnado no ambiente.
— Ainda cheira como se ele estivesse aqui... — sussurrei, com os
olhos tentando se ajustar à escuridão.
— É porque eu estou, Docinho.
Quase caí dura! Céus! Acendi a luz, eufórica, ansiando para descobrir
se havia um espírito perverso zombando de mim. A única perversão no
ambiente era Josiah com uma cueca preta e camiseta, deitado sobre sua
cama, com o antebraço apoiado no topo da cabeça.
Olhei para seu rosto perfeito, que ostentava um sorrisinho sonolento.
Meu coração se contraiu, mandando para minha cabeça as lembranças
daquele mesmo sorriso pelos anos em que acordei ao seu lado. Senti
vontade de chorar, mas forcei o meu rosto a se tornar uma barreira,
impenetrável.
— Conseguiu alguém para trepar? — zombou, coçando os olhos.
— Você é mesmo um idiota, né?
Caminhei para a escrivaninha do quarto, aquela onde ele já apoiou o
meu rosto diversas vezes, me fazendo quase sentir o gosto do mogno,
enquanto se enterrava em mim.
Que ódio!
Malditas lembranças.
Me sentei sobre o topo da mesa, empurrando a cadeira de couro com o
pé. Os olhos viperinos de Josiah me devoraram, curiosos, me comendo de
maneira desinibida. Só aquela bosta de olhar, aqueles braços finalmente
envoltos em uma camiseta branca, aquele cabelo desgrenhado, já fariam
qualquer uma ter vontade de gozar.
Desgraçado!
— O que você quer aqui, hein? — ele perguntou, parecendo sem
paciência. Seu rosto começou a exibir uma ausência de diversão, não me
dando chance para respostas. — Júlia chora para dormir. Fica pedindo peito
— ele disse, ficando de pé e pegando água sobre sua mesa de cabeceira. —
Você não acha que deveria acostumar a nossa filha com outra rotina de
sono?
— Não começa a se meter demais, ok? — ralhei, puta, enquanto o via
dar goladas na água.
— Vou me meter sempre, querida! — avisou, puxando a cadeira de
rodinhas, se sentando e girando as rodas para bem longe de mim. — Estou
falando o que é certo. Se você quer sair mais à noite, o que não estou
julgando, deveria pensar no bem-estar dela. Sei lá, acostume a Coisinha
com mamadeira. Não quero a minha filha esgoelando para dormir.
Fiquei em silêncio, com os olhos marejados e me sentindo muito cruel.
Até quando tentava ser uma boa mãe, acabava errando.
— Não é para chorar! Não estou brigando com você — consolou, com
a voz muito suave. — Só quero o que é melhor para a minha Coisinha.
— Também quero, Josiah.
Ficamos quietos, nos encarando por um bom tempo. Fiquei perdida em
pensamentos, planejando buscar as informações necessárias para começar a
retirar o peito da Júlia, preocupada. A avó costumava dar mamadeira a ela
quando eu a deixava lá, mas me disse que ela choramingou para dormir no
dia em que a deixei para ir ao bar, pedindo realmente pelo peito.
A verdade é que eu estava gostando de viver, e me sentia culpada por
amar os momentos em que podia ser algo além de mãe. Era como dar um
grito preso na garganta.
Saco!
Tudo é tão difícil quando se trata de ser mãe. Ele não entenderia,
porque para ele era mais fácil, e, mesmo que tivesse sido presente desde o
início, não teria sido tão difícil quanto foi para mim. Foram os meus seios
que pareciam que cairiam de tão rachados, os meus pontos que abriram, a
porra da minha mão que quebrou e eu quase não conseguia pegá-la no colo
quando recém-nascida. E eu me recusei a lembrar a causa de tudo aquilo...
— Aonde você foi?
— Para de encher o meu saco! Eu não vou te falar — gritei, irritada.
— Tá nervosinha? — zombou, com um semblante divertido. — Isso
deixa o meu pau duro.
— Você é mesmo um cuzão, Josiah! — murmurei, bebericando o suco
de cor violácea. — Não fico lhe questionando sobre onde vai ou deixa de ir.
Josiah se levantou, literalmente do nada, caminhando até mim. Ele
empurrou a cadeira, e ela bateu na parede do lado oposto, com força. Seu
olhar prendia o meu, e, quando notei que ele avançaria sobre mim, ergui os
pés, segurando seu peito de maneira sensual.
— O que você quer, Docinho? — debochei com o coração aos saltos,
entrando em seu joguinho.
— Quero foder você bem em cima dessa mesa! — ele grunhiu, com
muito desejo estampado em seu maxilar quadrado.
— Vamos fazer um jogo... — avisei, bebericando o suco e deixando-o
escorrer pelo meu queixo, traçando um caminho pelo meu corpo.
Eu tinha ficado triste, e era capaz de muita coisa para escapar da dor.
E, ao mesmo tempo que aquele desgraçado me fazia enfurecer, também
podia me oferecer alívio.
Josiah tentou avançar, dobrando as minhas pernas, que o afastavam do
meu corpo.
— Não! — avisei.
Tentei manter a barreira, mas novamente ele tentou avançar. A pressão
na perna era meio dolorida, e minhas costas começaram a se curvar. Eu iria
cair de costas sobre a madeira.
— É sem tocar! — grunhi, segurando o seu olhar de uma maneira
intimidadora.
— Agora eu entendi... — sussurrou, mordendo o lábio inferior,
cessando a força.
— Então ajoelha! — ordenei, apoiando o suco do meu lado.
Quando ele por fim parou de se jogar contra as minhas pernas, segurei
a borda da camisola, mordiscando a parte interna do lábio inferior, enquanto
vagarosamente enfiava as mãos por baixo dela. Agarrei a borda da calcinha
de renda rosa, enrolando o tecido enquanto o retirava lentamente do meu
corpo.
Seu olhar sobre mim era animalesco. Meu ex contraiu o maxilar, como
se contivesse uma fera dentro de si. Era muito excitante vê-lo se ajoelhar
diante de mim, com os músculos das coxas se contraindo e delineando os
contornos. Deslizei o tecido de seda para cima das coxas, pousando-o preso
no decote da camisola. Desci devagar da mesa, aterrissando os pés no chão
de maneira sensual. Apoiei a mão esquerda na mesa, e com a direita,
derrubei o suco de uva por minha barriga desnuda, vendo o líquido
escorrendo pelo meio das minhas pernas.
— Agora, Docinho, você lambe... E não desperdice nada! — ordenei,
arfando de desejo enquanto falava.
Não precisei esperar, em segundos ele já estava diante de mim, de
joelhos, com suas mãos apertando a minha bunda e seus dentes sedentos se
cravando em minha barriga.
— Não! — Gemi, quase não tendo forças para afastar suas mãos.
Cravei os dedos em seus ombros pesados, e o afastei, tendo que fazer muita
força para tal. — Sem tocar!
Dei um leve tapa no rosto dele, e, sem que eu ao menos esperasse, ele
se ergueu em um impulso e agarrou o meu cabelo sobre a nuca, grunhindo
sobre o meu rosto.
— Sua safada, você pode ditar as regras sobre eu te dar prazer, mas
nunca bata no meu rosto, ou vou foder o seu rabo mesmo que você proteste,
até que não consiga se sentar por muito tempo! — Ele quase gritou,
intensificando o aperto e me fazendo gemer.
— Se não me soltar e me chupar agora, eu vou acabar desistindo e
liberando a minha tensão com os dedos, bem longe de você — avisei,
respirando muito perto daqueles lábios com cheiro de cigarro. — E, em
contrapartida, querido, vai se aliviar com esses dedos grossos, que seriam
ótimos se você os colocasse dentro de mim! Agora!
Josiah me jogou sobre a cama, arrastando-me pelos cabelos, como um
homem das cavernas. Pousei de barriga sobre a cama e girei, arrastando as
costas para trás, tentando usar toda a força do mundo para resistir ao
impulso de gritar para que ele soltasse aquele pau enorme que marcava a
cueca e o cravasse sem pena dentro de mim. Só apoiei as costas na
cabeceira da cama, enquanto o homem arfava, de pé, na borda do móvel.
Josiah parecia brigar com um demônio interno, me lembrando a cena do
nosso primeiro beijo, “tenho sérios problemas com limites”, ele disse.
Ele tirou a camiseta afinal, já suava só com a menção de nosso contato.
Quando ele deslizou, como um deus grego repleto de músculos até mim,
deitando de barriga sobre a cama ao encaixar o rosto no meio das minhas
pernas, eu enlouqueci.
Minha boceta despejou uma trilha úmida para a minha bunda, animada
com a maneira satisfeita em que ele aspirou o cheiro dela.
— Que cheiro delicioso você tem, Ana — elogiou, olhando para o meu
rosto, por cima dos olhos, enquanto lambia a minha barriga.
Me contorci com o contato daquela língua quente e macia, que descia
em uma tortura lenta até encontrar o meu centro úmido e inchado. Quando
aquela língua sedosa percorreu toda a minha umidade, indo da testa da
vagina até quase chegar a minha bunda, surtei.
Josiah sugou todo o líquido que escapava da minha vagina, encarando
de maneira sedutora o meu olhar entorpecido, afastando a língua e exibindo
o fio pegajoso de umidade que escapulia da minha boceta. Eu gemi, sem
timidez, cravando as mãos em seus cabelos lustrosos.
— Me chupa, porra! — ordenei, rosnando, transtornada.
Ele subiu a língua pela trilha por onde desceu, me causando uma leve
tremedeira de tesão. Quando finalmente encontrou o meu clitóris, circulou-
o por alguns momentos, me causando pequenos espasmos, e depois sugou,
com movimentos cíclicos, torturando-o, mordiscando-o, fazendo barulho.
— Porra! — grunhi, puxando os cabelos dele entre os meus dedos,
rodando o quadril e esfregando a boceta em sua boca.
— Delícia! — elogiou, afastando-se brevemente para respirar pela
boca e deslizando dois dedos para dentro de mim.
Gemi alto quando sua língua voltou a me percorrer, enquanto o
gostoso intensificou sua tortura deliciosa, socando os dedos e rodando
dentro de mim, em um coro perfeito com sua chupada.
Meu ventre começou a latejar, enquanto uma pulsação absurda tomava
conta do meu clitóris, aumentando, tornando-se insuportável. Eu explodi
sobre a língua dele, arqueando as costas, gemendo o nome dele de maneira
desesperada, apertando a boceta ao redor de seus dedos e jogando para fora
toda a tensão que estava acumulada, despejando líquido pela cama abaixo
de mim.
Respirei de maneira afobada, cansada, satisfeita, com o coração
querendo escapar pela boca. Montes de suor desfilavam por minha testa,
enquanto lentamente a sensação do orgasmo ia me deixando.
Ainda estava atônita, enquanto Josiah afastava a boca e se ajoelhava
sobre a cama. Quando abri os olhos, encarando-o, ele já estava sem roupa.
Fui puxada pelos calcanhares, com as costas deslizando sobre a umidade
vergonhosa que maculava a cama, enquanto ele parecia transtornado sobre
mim. Josiah pegou o meu quadril, apoiou as mãos na minha bunda, puxou
minha boceta até a boca e bebeu tudo, tudo o que deixei escapar, me
deixando secar sobre a sua língua.
Merda! Que coisa gostosa!
— Agora eu vou te foder! — avisou, rosnando, me jogando sobre a
cama e cravando a mão na minha nuca, enquanto me ajeitava com a outra
embaixo dele.
— Calma! — pedi, enquanto meu ex quase enfiava o pau imenso em
mim. Encarei os seus olhos com minha melhor versão submissa, piscando
os cílios e mordendo o lábio inferior. — Deixa eu chupar você...
— Pedindo assim, pode fazer o que quiser comigo — brincou, ficando
de pé e me chamando com o indicador, enquanto deslizava a outra mão
sobre o pau bonito.
A luz amarelada do quarto brilhava sobre aqueles cabelos escuros,
enquanto a feição desejosa dele sorria para mim. Ele mordia o lábio
inferior, repleto de fogo. Deslizei pela cama, até chegar à borda. Sorri,
caminhando de maneira despreocupada até ele. Tinha muita expectativa
naquele rosto, naquele maxilar quadrado que me enchia de vontade de
morder.
Mas, antes que Josiah pudesse me agarrar e me fazer ajoelhar diante de
si, saí correndo, enquanto gargalhava como uma menina para fora do
quarto.
— Agora use os dedos no banho! — gritei.
Com o coração aos saltos, sentindo-o atrás de mim pisando duro, me
enfiei no quarto de hóspedes e bati a porta. Não antes de ver aquele rosto
todo contorcido de raiva ao me alcançar. Havia fúria atrelada a desejo
naqueles olhos vividamente verdes. Ri, vitoriosa, ao girar a chave da porta.
— Ana, sua desgraçada! — ele grunhiu, quase sussurrando, enquanto
tentava abrir a maçaneta. — Quando eu te comer, vou acabar com você!
— Você tá pelado no corredor da sua mãe! — avisei, ainda rindo sem
parar.
Aquilo era tão divertido!
Ouvi quando se afastou da porta. Com o coração em saltos, me
sentindo triunfante por finalmente conseguir irritá-lo, tomei um banho
delicioso, sentindo todos os meus músculos relaxados e plenos. Josiah
realmente sabia o que fazer com a língua...
Agora era só não o deixar me comer, ou, diferente de relaxada, ficaria
toda dolorida.
Capítulo 12

Você e eu fizemos uma promessa


(...)
Não acredito que você me decepcionou
Mas a prova está no jeito como isso dói
I'm Not The Only One - Sam Smith

Ana Oliveira
Há seis anos...

— Prazer, Ana! — cumprimentei o homem à minha frente.


Ainda estava me recompondo, puta por ter mostrado a minha
fragilidade. Estava tudo tão perfeito! Ainda podia sentir a fragrância
daquele perfume maravilhoso, o cheiro do garoto estava em cada pedacinho
meu, percorrendo-me, tendo escapulido pelo contato dos nossos corpos.
Jamais tinha atado meus lábios aos de outro garoto antes. Gostaria de
guardar aquele momento em um potinho dentro do meu coração, de
congelar e poder reviver, porque realmente foi especial... Até eu estragar
tudo com os meus gatilhos. Acabei conduzindo a situação para os meus
sofrimentos e destruindo o clima.
Eu vivi em um limbo por um ano inteiro, sem sentir nada além de dor,
procurando os meios mais obscuros de escapar. E aquele garoto, com ar
rebelde e sombrio havia me feito vivenciar coisas intensas e boas, como eu
já quase havia me esquecido de como era sentir.
Talvez nem fosse mais querer ficar comigo. Quem vai querer uma
pessoa que é incapaz de tocar algo sem destruir? Sem deixar se afogar?
Nem meus pais me quiseram...
— Sou a Marta! — uma senhora de postura gentil e elegante anunciou,
apertando meus ombros ao me dar um beijo em cada bochecha. — Mãe do
Josiah.
Dei um sorriso apático, percebendo que o olhar dela era afiado sobre
mim, parecendo conter um aviso. Eu queria sair correndo, mas ainda tinha
que me apresentar à garota que faltava. Cumprimentei a menina de sorriso
largo, que me contou se chamar Luana.
Sem jeito, encarei o trio à frente da imensa porta branca. Eles pareciam
repletos de curiosidade, cada um a seu modo. Me senti um objeto de
mostruário, curioso, bizarro... Então, comecei a percorrê-los como faziam
comigo. A mulher tinha cabelos grisalhos, estava repleta de joias e
ostentava uma maquiagem refinada; já a garota jazia enfiada em uma saia
longa preta e um cropped rendado; e o homem... Ele era bonito, alto, com
cabelos arrepiados loiros e lisos. Seu sorriso era sútil e amistoso, e seu olhar
era leve, calmo e, ao mesmo tempo, questionador.
— Bom, galera, boa tarde para todos! — Josiah disse, quebrando o
clima. — Agora vou levar a Ana na casa dela e já volto.
Nem houve tempo de revidar o aviso, porque o garoto enlaçou os
dedos em minha mão direita e me guiou para fora, dando a volta na família
e encontrando o caminho para a rua. Ele parecia estranho, com a postura
endurecida enquanto caminhava comigo de mãos dadas até minha casa.
Não gostava de andar no condomínio, porque eu sempre enxergava os
olhares repletos de julgamento, os cochichos escondidos, quase podia ouvir
os sussurros que me acusavam de ser suicida, ou os lamentos por ser órfã.
Por isso, eu preferia que minha tia pudesse me buscar na escola, mas ela
trabalhava e nunca tinha tempo para isso.
Olhei de soslaio para o menino ao meu lado, caminhando sob o sol
quente. Eu podia sentir os dedos dele quase triturando os meus, com aquele
aperto firme. Será que ele sentia a tensão que estava colocando ali? E fomos
assim até o meu portão, comigo pensando em maneiras de perguntar se
tinha sido tão ruim assim o nosso momento juntos.
— Está entregue! — Josiah disse, parando diante de mim e acendendo
um cigarro com um isqueiro preto.
— Obrigada! — Merda! Pensei em mil e uma coisas, mas isso foi o
que escapou dos meus lábios.
— Está agradecendo por quê, Docinho? — ele indagou, soprando
fumaça no meu rosto.
Sua postura toda estava diferente, bruta. Seu tom de voz estava áspero,
e seu olhar sobre mim era como uma muralha. O que Josiah estava
pensando? Queria poder ler a sua mente. Afastei a fumaça com a mão,
tossindo um pouco, vendo aqueles olhos tão profundos surgindo por trás da
nuvem que eu dispersava.
— Por tudo. Por me convidar para ver um filme, por me trazer até
aqui... — expliquei, dando um sorriso tímido.
Josiah não disse nada. Ficou com o olhar fixo sobre o meu rosto, mas
não havia desejo algum. Não tinha nada naquele semblante, quando retirou
uma pequena caixinha do bolso, agarrou meu braço e a pousou sobre os
meus dedos. E tão subitamente como me deu o presente, Josiah se virou e
foi embora. Não disse nada, só... trilhou o seu caminho para longe de mim.
Entrei em casa com os olhos repletos de lágrimas. Minha tia ainda não
havia chegado, então eu só larguei o meu corpo sobre o sofá branco da sala,
encarando o papel de parede florido, pensando em tudo o que tinha
acontecido.
Com a garganta embargada, desfiz o laço de cetim azul claro, sobre a
pequena caixinha de papel azul caneta. Dei um leve sorriso, usando o dorso
da mão para limpar o fiapo de lágrima que escorria pelo nariz, encarando a
correntinha prateada, pegando-a entre os dedos, percorrendo o indicador
sobre o pequeno pingente. Como uma coisa tão pequena podia conter tanto
significado?
Mordi o lábio superior, contendo um sorriso ao encarar o pequeno
brigadeiro. Entendi que era um “docinho”. Ele se preocupou em fazer o
momento ser especial, não é? Ou não teria me dado um presente tão fofo.
Ou será que todos os meninos davam presentes assim?
Céus! Eu ia enlouquecer. O mesmo carinha que me levou para o seu
quarto, me deu um beijo tão perfeito e um colar com mais significado do
que qualquer coisa que eu havia ganhado, também foi o rapaz que me
encarou sem emoção, partindo sem se despedir.
Talvez aquela mudança de humor tenha sido provocada por minha
causa, por eu ter dito que não queria ir rápido. Josiah parecia ter
experiência, sabia sobre as coisas, sobre como beijar. Até mesmo o toque
dele na minha pele me deixou incendiada...
Coloquei o cordão, sorrindo, mesmo que meu coração estivesse pesado
e repleto de dúvidas. Corri para contar todos os detalhes em ligação para
Isabela, com ela gritando animada por meus fones de ouvido, enquanto eu
limpava a casa para evitar sermões da minha tia. “Ele gostou de você, sim,
ou sequer teria comprado um presente”, disse, enquanto eu a podia ouvir
estourando bolas de chiclete do outro lado.
Passei a noite riscando versos sobre ele em meu caderno. A caneta
fluiu, em uma dança sobre as folhas, parecendo saber o caminho correto
para cada palavra. E, quando terminei, reli tantas vezes o que escrevi, que
acabei decorando.
Folheei as páginas repletas de poemas. Tantos, que eu às vezes até
esquecia sobre alguns. A maioria falava sobre a dor, sobre o medo, sobre
ser pequena, sobre ser falha e quebrada. Mas... a última página falava de
algo diferente. Em cada pequena palavra repleta de significado, eu narrava
um pouco sobre os olhos de um verde rebelde, sobre os cabelos tão escuros
quanto a noite, sobre a boca tão vermelha quanto a cor da perdição, sobre
sua altura que fazia eu me sentir diante de uma muralha... E sobre seu beijo
que me lançou dentro do próprio inferno, queimando...
E mesmo com todos os medos a respeito do comportamento dele ao
me deixar em casa, eu ainda dormi sorrindo, com meus dedos deslizando
sobre a correntinha.
●●●
Passaram-se dias e mais dias de expectativa sobre vê-lo na aula. Só
que ele não apareceu. Os dias se arrastavam e Isabela tagarelava sem parar,
me fazia sorrir, me fazia esquecer, mas sempre que meus olhos saíam dos
dela, corriam pela sala procurando aquele menino de aparência perfeita e
revoltada. Só que Josiah nunca estava lá.
Bernardo ficava perdido, solitário, cabisbaixo, até sem brilho enquanto
os valentões da turma, que só surgiam quando Josiah não estava, ficavam
implicando com ele a aula inteira.
Será que meu beijo foi tão ruim assim? Ou seria minha falta de
experiência? Saco! Eu me perguntava mil e uma coisas e não chegava a
resposta alguma. Como alguém te leva ao céu em minutos, para depois te
lançar no inferno, sem pena alguma?
Josiah era como uma montanha russa, me elevando e derrubando, e eu,
tonta, sentia falta do garoto que só havia visto duas vezes na vida. Decidida
a tentar descobrir um pouco sobre o sumiço, caminhei até a cadeira do
Bernardo e me sentei ao seu lado. Ele pareceu surpreso ao me ver ali, mas
depois fechou o semblante e apoiou o rosto na mão.
— Tudo bem? — perguntei.
— Não!
— Quer conversar?
— Não de novo! — grunhiu, revirando os olhos.
— Por que ele sumiu? — reuni coragem e indaguei, vendo finalmente
o menino me encarar.
— Não sou fofoqueiro. Pergunta direto para ele, ué! — Bernardo disse.
— Agora volta lá para sua amiga, e me deixa na minha!
Chocada com a grosseria, permaneci emburrada o restante da aula.
Quando cheguei em casa, minha tia estava dormindo, entupida de remédios
sobre o sofá da sala. Cheguei perto e a beijei no rosto, sentindo um leve
aperto no peito. Ela estava tão mal nos últimos dias. Já vinha com a tristeza
do luto, mas, desde o meu primeiro dia de aula, ela mudou. Parecia que sua
vida havia sido sugada. Eu a pegava chorando pelos cantos, olhando pela
janela, apertando com força o relicário que costumava carregar sobre o
pescoço. O relicário com a foto dela e da mamãe quando crianças...
Uma fresta de sol entrava pela janela da sala, caminhando direto até o
rosto de Marina, fazendo sua testa suar. Caminhei até as cortinas e envolvi a
corda das persianas nos dedos, então olhei para o gramado vazio, notando a
placa de venda bem na calçada da propriedade ao lado. Minha tia sempre se
preocupava com aquele terreno. Dizia que vivia bem naquela casa e que,
dependendo de quem comprasse o lote vizinho no futuro, poderia acabar
perdendo a paz.
De repente, um silvo estridente me sobressaltou, um assovio, como
aquele em que ouvi no ônibus em meu primeiro dia de aula. Eu conhecia
aquele barulho. Tinha notas perfeitas para fazer um coração dançar. Era o
som dele...
Animada, corri para fora, mas, antes que saísse feito uma bala, respirei
fundo. Tranquei as emoções à flor da pele e me permiti abrir o portão e dar
de cara com aquele garoto de cabelos escuros, vestindo preto dos pés à
cabeça, e que agora tinha um enorme arabesco tatuado no ombro direito,
com contornos vermelhos e um filme plástico envolvendo a pintura.
— Oi! — cumprimentei, tão nervosa, que passarinhos voavam no meu
estômago, e eu podia sentir que meu coração estava louco para sair pela
boca e falar com o garoto antes de mim.
Não houve uma resposta imediata, além de um sorriso largo de dentes
brancos e alinhados. Meu peito subia e descia, eu suava frio com o corpo
sendo percorrido por uma onda sôfrega. Fui surpreendida com seus braços
fortes me envolvendo, sentindo aquele cheiro que me fez quase desmaiar.
Por que ele cheirava a segurança? Meu peito apertou com o abraço
carinhoso, enquanto Josiah enfiava o nariz sobre os meus cabelos e me
inspirava, parecendo se alimentar.
O garoto deslizou o dorso dos indicadores por meus ombros, no
mesmo instante em que esfregava o nariz na minha testa e descia a carícia
pelo meu rosto, pela bochecha, então parando bem ao lado dos meus lábios.
— Ana... Ana... — murmurou.
Josiah trilhou o caminho até um beijo, abrindo passagem com a língua
entre os nossos lábios, de maneira lenta, carinhosa. Aquilo tinha tanto
sentimento, que doía.
Como podia sentir tanta saudade dele?
Por que gostava assim de uma pessoa que tinha acabado de chegar?
Por que a boca dele tinha sabor de lar?
— Onde você esteve, Josiah? — sussurrei, roçando meus lábios nos
dele, envolvendo seu rosto entre minhas mãos.
— Pode me chamar de Jow! — informou, entre beijos curtos por todo
o meu rosto. — Eu fiz umas coisas e acabei tendo que ir para a casa do meu
pai por uns dias. Senti muita saudade de você, Docinho...
— Também senti saudade de você, Jow! — sussurrei, retribuindo
beijos por seu maxilar. — Achei que não tivesse curtido o nosso momento
juntos.
— O quê? — gargalhou, me apertando mais contra o seu corpo.
Arrepios intensos percorreram a minha coluna, enquanto eu sentia algo rijo
sobre a minha barriga. — Eu curto tanto, que fico assim... — Meu rosto
inteiro esquentou, fazendo uma coisa estranha acontecer no meu corpo. —
Você é muito fofa, Ana! — elogiou, beliscando minha bochecha ao me
encarar, sorrindo largamente, e sem soltar a outra mão da minha cintura.
— Por que você não me avisou? — tomei coragem e indaguei.
— Estava organizando a bagunça dentro de mim.
Olhei para baixo, enquanto ele soltava minha cintura e envolvia os
dedos na minha mão. Percorri a mão direita na correntinha fina que
ornamentava meu pescoço. Josiah desviou o olhar até o gesto.
— Gostou do presente?
— Sim, é a coisa mais especial que eu já ganhei.
— Que bom, Docinho — disse, soltando minha mão e acendendo um
cigarro. Ele se afastou alguns centímetros e tragou, soltando a fumaça pelo
nariz. — Quero ficar com você!
Meu coração acelerou forte, me fazendo ter certeza de que cairia. Senti
as mãos suando frio, enquanto observava Jow com um sorrisinho
presunçoso, olhando-me como se soubesse exatamente o que causara em
mim. Não consegui dizer nada, engolindo em seco e com expectativa
enquanto os lábios dele formulavam as quatro palavras mais mágicas que eu
ouviria:
— Quer ser minha namorada?
Não consegui me conter, eu o agarrei, fazendo-o gemer por esbarrar
em sua tatuagem. Dei alguns pulinhos animados enquanto dizia várias vezes
que sim e mordia seu maxilar.
— Nossa, se eu soubesse que você reagiria assim, teria pedido antes.
— Estou tão animada! — disse, me dando conta de como parecia
pateta mostrando assim o quanto estava apaixonada.
— Só tenho uma regra, Ana — ele disse, jogando o cigarro longe e
envolvendo os dedos em meu rosto. Havia uma sombra em sua face e muita
seriedade em seus olhos verdes. — Fique longe do meu irmão!
Trinquei as sobrancelhas, tentando entender aquela ordem. Por que eu
ficaria perto daquele homem? Eu tinha dezesseis anos, e o irmão dele
parecia bem mais velho. Qual era a ponta do fio daquele pensamento?
Jow tinha problemas com o irmão, e isso era muito claro.
Problemas com o pai, problemas com o irmão... Meu namorado era um
potinho escuro repleto de surpresas.
— Por quê?
— Porque eu estou mandando você ficar — retorquiu, apertando de
leve o meu rosto entre os dedos. Existia necessidade naquelas palavras, e
uma coisa nublada, era medo o que jazia por trás daquele pedido? O que
tinha acontecido entre eles? — Precisa confiar em mim, ok?
— Sim — assenti. — Vou ficar longe dele.
— Promete?
— Eu prometo.
Capítulo 13

“Deve haver algo na água porque a cada dia fica mais frio. E se
apenas eu pudesse te abraçar, você impediria que minha cabeça ficasse
pior”.
Bruises - Lewis Capaldi

Josiah Marquez
Há seis anos...

Os planos não eram entregar o presente daquela maneira. Eu mal


conseguia pensar em nada que não fosse o meu irmão. Nem vi a expressão
naqueles olhinhos quase dourados ao receber o presente, não pude observá-
la abrir como tinha imaginado.
Que ódio, porra!
Milhares de choques nervosos percorriam o meu corpo enquanto eu
abria a porta de casa com um chute. Meu irmão estava sentado no sofá
branco da sala, conversando com Luana, que gargalhava e contava algo
supérfluo.
O desgraçado não esperava me ver, ele sequer notou quando eu me
lancei sobre ele, fazendo os meus punhos soarem sobre o seu rosto. Tudo o
que eu ouvia era o som do silêncio, da ira, do ódio que me varria enquanto
eu fazia os meus dedos trincados acabarem com o rosto do desgraçado do
Lucah.
Aquilo não era um irmão!
Eu tinha nojo dele!
Tinha até mesmo medo...
Ele era uma dessas sombras fodidas e perversas vagando pelo mundo.
O sentimento que eu tinha por Lucah era um grito em uma montanha
em meio ao nada. Ele se repetia, se fragmentava, e ecoava, devolvendo-me
sempre a mesma coisa, o mais profundo, o mais primitivo, o mais ferrado
ódio.
Me distraí com os pensamentos enquanto descontava a ira em sua cara,
disperso, mas por tempo suficiente para que o meu rosto parecesse que
explodiria. O desgraçado acertou um murro na minha cara, cambaleei e
finalmente o larguei. Senti o mundo em espiral, com a bochecha direita
latejando.
— Desgraçado! — gritei, atordoado, cuspindo sangue.
— Parem com isso, pelo amor de Deus! — Marta gritava.
Todos os sons pareciam distantes. Meus olhos pareciam que se
cruzavam, antes que o cretino acertasse novamente o meu rosto e
finalmente um apagão dispersasse meus sentimentos.
●●●
Os dias seguintes passaram em um piscar de olhos. Não que isso tenha
feito as coisas serem menos bosta. Eu estava apaixonado, porra, e tudo o
que eu queria era ficar perto da Ana. Só que não dava para aparecer na
frente dela parecendo um monstro, com o lado direito do rosto destruído.
Ainda fui momentaneamente “expulso de casa”. Tive que ir para a casa
do meu pai. Não podia sair do quarto. Estava sem telefone, sem Internet,
sem qualquer maneira de falar com Bernardo e Ana. Até tentei dar uma
voltinha no segurança prostrado do lado de fora da porta, para procurar
qualquer eletrônico que me permitisse ligar para o Ber, mas o desgraçado
era quase uma sombra que me seguia por qualquer lugar.
Meu pai ainda não tinha voltado de viagem, estava em uma
conferência na Argentina. Graças a Deus! Eu não queria falar com ele, e
pior ainda era ficar vendo a esposa dele desfilando pela casa com sua trupe
de madames de estimação.
Odiava a Barra da Tijuca. Não tinha ninguém que eu conhecesse, além
de que lembrava uma prisão. Ficar com o meu pai era como dormir e
acordar em um quartel general. E não poderia ser diferente, o político
corrupto vinha de uma linhagem de militares. Meu pai dizia que prezava
pela ordem, mas havia ordem em todos os esquemas de corrupção em que
ele vivia enfiado? Com certeza não havia ordem em largar a esposa por uma
socialite com quem a traiu por dez anos, jogando uma teia de humilhações
públicas em suas costas, com matérias em jornais debochando das amantes
do Cristian Marquez. Minha mãe era a rainha da minha vida, e o meu pai a
magoou muito, e por isso eu também não o perdoava.
Uma das coisas que mais me traziam mágoa era que meu pai tentava
sempre me colocar em uma teia de regras, um código de conduta, e eu
sempre precisei de muita luta para fugir disso. Quando meus pais se
separaram, minha mãe, além de sofrer com o fim do casamento, quase
morreu quando ele não me deixou viver com ela.
Eu fugia todos os dias da casa de Cristian.
Fugi tantas vezes, que Cristian entendeu que jamais conseguiria me
fazer morar com ele.
Ao menos o larápio ainda dava uma vida decente à minha mãe, tendo
comprado uma casa para ela onde Marta escolheu, além de lhe pagar a
pensão que a permitia viver bem. Se não tivesse feito isso, certamente eu
jamais teria qualquer sentimento bom por ele, e não que eu tivesse muitos.
Outra coisa que alimentava o meu rancor por meu pai, era que ele não
pegava no pé do Lucah. O desgraçado vivia enfiado em ladainhas de
trabalhos sociais, evitando todo e qualquer dinheiro do Cristian. Passou em
uma faculdade pública, trabalhou em mercadinhos e tantos outros lugares
para custear os estudos, e agora trabalhava em uma empresa.
Cristian não o obrigava a nada, então por que queria me forçar a tudo?
A ser sua miniatura? A ser seu fantoche? Se o desgraçado do Lucah podia
viver brincando de ser o que quisesse, por que eu tinha que seguir os passos
daquele corrupto?
Dias e dias se passavam, e eu seguia, rabiscando muitas páginas de
caderno. Algumas eram somente aquelas ondas incríveis e marrons, outras,
aqueles olhos medrosos e lindos, ou aquela boca... ou a “coisa linda” por
inteiro. Eu só pensava nela, só queria desenhar sobre ela.
Por que eu a queria tanto?
Por que tinha gostado tanto da Ana?
Ela não fazia o tipo que eu me interessava.
Eu só gostava de mulheres mais velhas...
Mas, quando eu a vi me observando a aula inteira, foi inexplicável a
curiosidade.
Os dias foram passando, se convertendo em semanas, e eu estava tão
fodido que passei a só dormir. Nem a televisão conseguia me distrair. Eu
pensava em Ana, em nosso beijo, em seu rosto... Pensava em meu amigo,
que era meu verdadeiro e único irmão, em suas piadas engraçadas, em
nossas tardes jogando RPG.
Um clarão de luz me fez cerrar os olhos. Eram muitos dias me
agarrando ao escuro. Dias e noites se misturavam com as cortinas fechadas,
com a pouca emoção daquele maldito lugar.
— Levante-se desta cama, Josiah! — meu pai gritou, com seu sapato
social tamborilando pelo piso. O barulho estridente das cortinas se
arrastando nos trilhos me fizeram ter náusea e ódio.
Não contente em só ter acendido a luz, o homem de estatura média
ainda abriu as cortinas. Um clarão tomou o quarto, me fazendo bufar ao me
sentar, enquanto coçava a cabeça.
— Olha só esse rosto, todo esverdeado! — reclamou, parado em frente
à cama king size.
— Tava pior, cara! — debochei. — E você não teria que olhar se não
tivesse me obrigado a vir para cá.
— O que disse?
Fiquei em silêncio, trincando o maxilar enquanto encarava o novo
MontBlanc sobre seu pulso. Ele estava sem terno, apenas ostentando uma
de suas camisas sociais bem passadas, enquanto afrouxava a gravata e
perambulava pelo quarto. Seus cabelos loiros escuros estavam bem fixos
em um topete, a barba bem aparada e a pele bronzeada mostravam que ele
certamente não estava na Argentina.
Maria era corna, assim como toda e qualquer mulher do meu pai seria.
Provavelmente o senhor prefeito estava com uma modelo em alguma praia
do Caribe, bebericando espumante enquanto descansava e fingia que não
era casado.
Era por isso que eu detestava pessoas infiéis, não tolerava gente
mentirosa, porque elas me lembravam desse homem parado bem na minha
frente. O homem de quem eu morria de nojo.
— Soube que agora anda por aí com uma órfã pobretona, que ainda
por cima é “tantan” da cabeça — ele gritou, apontando o indicador para
mim. Senti vontade de berrar, de xingar, mas me controlei. Eu não podia
mostrar a ele o quanto Ana era importante para mim. Meu pai era um
sociopata, sem sentimentos, não podia saber que existia alguém que
atrapalhasse os seus planos. — Nem para arrumar a porra de uma namorada
decente.
— Você não arrumou uma esposa decente! — repliquei, com um
sorrisinho de canto. — Arrumou uma perua, que mal sabe fazer uma soma
sem usar a calculadora.
— É por essa sua falta de respeito que você vai entrar para o exército!
— disse, amargo, alisando o queixo enquanto contraia os lábios. — Lá, sim,
você aprenderá a ser homem!
— Você aprendeu?
— É melhor não ser insolente, moleque! — ameaçou, alisando o cinto
envolto ao quadril. Eu não tinha mais medo daquele cinto, e ele já deveria
ter percebido. — Lucah me disse que você o agrediu, e por conta daquela
descontrolada da sua escola, a delinquente por quem você parece
apaixonado.
— Não estou apaixonado por ninguém. Apenas levei uma garota para
comer no meu quarto — menti, sentindo uma dor imensa ao falar daquele
jeito sobre o meu Docinho — E estourei a cara do seu filhinho como um
aviso, para que não fique de olho em nenhuma das minhas garotas.
— Que absurdo! Por que ele iria olhar para uma menina tão jovem?
Está delirando? Essa porra de cigarro deve estar queimando os seus
neurônios, moleque!
— Seu filho ama uma garotinha, não é muito diferente de você, afinal
— debochei, esperando que ele partisse para cima de mim e me fizesse
novos hematomas.
Mas meu pai apenas deu um sorriso amargo, me encarando com fúria
contida. Eu odiava a maneira como o rosto dele me lembrava o meu reflexo
no espelho.
— Sabe, filho, você tem uma natureza insolente. Não sei a quem
puxou... — disse, reflexivo, perambulando pelo quarto. Fiquei encarando a
silhueta dele abaixo da janela, enquanto olhava para fora. — Você vai fazer
a prova para a Escola de Sargentos no próximo ano.
— Posso fazer... Vou adorar desenhar um pau no cartão resposta. —
Me espreguicei como um gato, recostando-me na cabeceira preta, fitando
aqueles olhos parecidos com os meus.
— Não, meu filho, você não vai fazer isso. Você vai fazer a prova e vai
passar, e sabe por quê? — perguntou. Agora seu semblante estava envolto
em um ar predatório, com promessas sendo ditas por seu olhar viperino. —
Se não fizer o que mandei, vou retirar a pensão da sua mãe, vou despejá-la
daquela casa que ela tanto ama. E sabe a gordinha desengonçada que você
anda paquerando? Talvez algum carro desavisado a acabe pegando em uma
esquina qualquer, ou algum ladrão acabe invadindo a casa dela, e, por um
descuido, descarregue um pente sobre a cabeça da tia dela.
— Desgraçado! — gritei, avançando sobre ele e o jogando contra a
porta. — Fique longe delas, miserável!
Eu grunhi sobre o rosto daquele homem, com saliva escapando dos
lábios e sentindo as veias do meu rosto saltando. Eu espumava, com um
ódio perverso, brigando com uma fera interna, tentando não cometer o
pecado de bater no meu pai.
— Você vai me soltar agora, filho, porque você sabe que quer o melhor
para elas — sussurrou, com um sorriso vitorioso. — Fique com a
pobretona. Aproveite o ano ao lado da pequena Ana Oliveira, é só o que
terá com ela!
Capítulo 14

“Eu te odeio, disse ela para um homem cujo crime único era o de não a
amar. Eu te odeio, disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se
fazia”.
Clarice Lispector

Josiah Marquez
Dias atuais...

Finalmente consegui fazer tudo o que precisava na casa da minha filha.


Já tinha telas de proteção nas janelas, a escada jazia mais segura, além da
câmera de segurança estar em perfeitas condições de uso, embora tivesse
certeza de que Ana voltaria a me espionar, razão pela qual eu quebrei a
anterior. Ela ficava girando a câmera para o meu portão, e depois fazia
fofoquinhas à Marta sobre tudo o que via. Já bastava ter que lidar com a X-
9 que era dona Helena, a amiga da minha mãe que morava bem na minha
frente!
Eu me senti um bosta por não ter conseguido ver os detalhes da
segurança daquela casa antes. Não sabia se um dia conseguiria perdoar a
minha ex por ter me afastado da minha filha. Eu odiava Ana por isso, mas
tinha um canto em mim que sempre lembrava que foi ela quem me deu
aquela Coisinha de cabelinhos loiros, e sem planejamento, sem me
consultar, sem conversar comigo sobre a existência da minha pequena e
linda bebezinha. Nada disso me importava, ela não ter me consultado e ter
engravidado... No fim, o resultado de ser pai, da descoberta daquela criança,
apenas me deixou feliz. Estava em meio a um enorme caos, com a
revelação daquela traição, minha insubordinação que culminou na saída do
exército, tudo ao mesmo tempo... Mas quando eu a vi na janela, inchada,
com aquela bebezinha minúscula no colo, o meu ódio foi suplantado e eu
fiquei contente. Mesmo com tudo o que tinha acontecido, com tudo o que
tinha me tirado meses antes de eu ver aquela cena, de ver a minha bebê pela
primeira vez. Foi de longe, eu não a peguei no colo, não senti o seu cheiro,
mas foi tão importante... Se não tivessem me avisado que era eu o pai da
Júlia, se não tivesse visto aquela cena, acho que teria me perdido no ódio
que estava sentindo.
Sempre que queria tocar o terror, deixar a minha ex enfurecida,
enciumada, me odiando, vinha aquela voz irritante na minha cabeça,
sussurrando de que aquela mesma mulher a quem eu queria destruir,
também tinha um elo comigo que duraria até o fim de nossas vidas. Ela era
a mãe da minha filha, e isso jamais mudaria.
Para piorar, eu não estava conseguindo resistir a Ana. Ela me seduzia
só com o olhar. Com o mínimo contorno de um sorriso naquele rosto
redondo e perfeito, meu pau latejava e eu ardia em vontade de me enterrar
inteiro dentro dela, porque eu odiava vê-la sorrir, odiava e amava. Que
merda! Era uma bosta sentir ódio e tantas outras coisas por uma mesma
mulher.
Ela achava que me enganava com aquela historinha de sair
arrumadinha, mas um de meus amigos, o Bill, nem se importou em
descobrir para mim que ela apenas foi ao cinema. Deixei Ana acreditar que
tinha me enganado, e aquilo me deixou animado. Era um sinal de que ela
queria me provocar, ou seja, eu podia continuar o meu game. Ela queria
jogar também!
Foda foi a melhor descrição para a noite de sábado. Ou melhor, sem
foda. Ana realmente me sacaneou e me fez ter que tocar uma punheta,
porque correu e não quis me dar. Como caí naquele joguinho? Ela já estava
lá, pronta, encharcada embaixo de mim, e eu simplesmente acreditei que ia
querer me chupar bem na hora “H”.
A segunda-feira seria boa, porque tinha duas pequenas tatuagens logo
de manhã cedo, e no horário seguinte atenderia uma mulher que agendou
uma fênix enorme nas costas, e aquilo consumiria meu dia inteiro. Teria que
sair correndo para buscar a minha “Coisinha Linda” na creche, como acertei
com a desgraçada da mãe em uma chamada telefônica na noite anterior.
Era conflitante amar tanto a minha filha, sentir tanto desejo pela mãe
ao mesmo tempo em que também era inundado por mágoas, raiva e
remorso. Odiar a Ana era como trair a minha Coisinha, e essa sensação era
o que mais vinha me matando.
Minha cabeça, às vezes, era uma confusão. Eu queria que Ana
sofresse, mas não queria reconhecer que sentia saudade, que sentia o cheiro
dela quando abraçava a nossa filha, que via as covinhas no sorriso da Júlia e
me lembrava dela.
Perambulei pelo ambiente, pegando o material e preparando as coisas
para o trabalho do dia, tentando afastar a Ana dos meus pensamentos.
Estava na minha sala, e meu estúdio era dividido em cinco partes, sendo
dois cômodos grandes para tatuagem com banheiro integrado, longas
paredes pretas, leds de cor vermelha pelo alto e piso laminado escuro.
Comecei a limpar com álcool a maca de couro preto onde eu deixava a
mágica acontecer, contando histórias com cores nas peles alheias. O
segundo cômodo, idêntico ao meu, era do Bill, o brutamontes que
conseguia ser mais alto e tatuado do que eu. Um parceiro que conheci no
quartel. Foi maravilhoso descobrir que também desenhava e poderia me
ensinar a tatuar. Foi meu mentor e idealizador do Ravina. Adorava zoar
aquele homem, que tinha uma cabeça careca repleta de tatuagens e uma
barba densa de cor castanha. Era uma pessoa muito fechada, perambulava
pelo mundo com uma carranca entediada, mas tinha um coração bom.
A pequena saleta, que ficava em uma das portas vermelhas, mas no
fim do corredor, era a de Harry. O lugar era destinado à colocação de
piercings. Harry foi um cara que achei excêntrico desde a primeira vez que
bati o olho, tinha milhares de furos pelo rosto, denunciando os piercings
que havia tirado por conta do código de vestimenta do exército. Ele era um
cara muito divertido e, assim como eu, sentia-se inadequado na corporação.
Harry costumava dizer que fez uma escolha errada ao fazer a prova, e vivia
querendo ter a coragem necessária de jogar tudo para o ar. Meu amigo
gostava de dizer que dei um pontapé para ele finalmente ter a coragem de
fazer algo que gostava.
Também tinha uma recepção na entrada, onde Isabela costumava
atender os clientes, sempre mal-humorada atrás daquela mesa de tampo
preto e lustroso. Era engraçado ver a ruiva forçar um sorriso ao receber as
pessoas que chegavam, ou tentar fingir simpatia ao telefone ao tirar dúvidas
e agendar os serviços.
Ouvi o barulho do interfone e caminhei de maneira despreocupada,
passeando para fora da sala, que possuía uma parede preta à direita
contendo quadros psicodélicos em molduras vermelhas do chão ao topo,
com tamanhos e larguras variadas. Na esquerda, uma parede com tijolinhos
em cinza, além de uma ampla janela de vidro, com a visão perfeita da
lateral da casa da Ana. Instalei uma persiana romana em tons escuros, que
eu só fecharia caso algo mais “reservado” fosse acontecer, embora eu não
negasse que seria uma delícia ver novamente a minha ex com ciúmes de me
flagrar com outra mulher.
Adentrei a recepção e atendi o interfone.
— Abre aí, Jow! — Isa disse, animadinha.
— Fala aê, meu porra louca! — Harry gritou, ao fundo.
— Esqueceram a chave, para variar, né?
Apertei o botão para destravar o portão, voltando na sequência para a
minha tarefa de limpar a minha área de trabalho. Nem precisava da grana
que ganhava no estúdio, afinal, tinha toda a renda das ações que o meu pai
fez a Marta dar a mim e ao Lucah. Na verdade, eu usava a renda do estúdio
para pagar os meus parceiros, que perderam o emprego por minha causa.
Harry ainda conseguiu entrar no esquema que meu pai fez, mas Bill foi
realmente expulso. Me sentia super em dívida com os caras. Por mais que
tenha sido a coisa mais louca que fiz na vida, sempre senti que tinha valido
a pena, finalmente o meu pai largou do meu pé, parando de ameaçar
descontar na minha mãe. A Ana já havia sido deixada em paz há anos,
desde que a puta me traiu com o meu irmão.
Cristian detestava a Ana pelo fato de que era problemática. Ele
descobriu muitas coisas sobre ela, como a sua ficha hospitalar, o obituário
dos pais, até mesmo a renda da tia, fora o fato de que Ana era bolsista na
minha escola quando nos conhecemos. Mas o pior, o que ele amava gritar
por aí, era “Ana, aquela transtornada! Ela vai acabar contigo, moleque!
Vai querer mesmo uma mulher que vive na borda, como eu li naquele
prontuário do hospício, que não consegue controlar as emoções, o
corpo?”. Ele amava falar sobre o laudo que o médico fez sobre a Ana,
sobre seu tempo internada na clínica psiquiátrica, sobre as tentativas de
morrer... Como se o meu pai não fosse um narcisista, que não se importava
com nada além de aparência, dinheiro e poder. Seu sonho era me enfiar na
política, por isso queria que eu seguisse todos os passos dele, para vender
uma “linhagem perfeita” aos seus eleitores. Ele dizia que não via em Lucah
a mesma determinação que havia em mim, por isso nunca o perseguiu como
fez comigo.
Durante os meus anos como namorado da Ana, fui aprendendo a lidar
com aquele jeito, com as mudanças de humor que ocorriam de maneira
súbita na mínima menção de abandono. Eu senti muita empatia pelo
sofrimento dela, principalmente depois do nosso primeiro Natal juntos,
quando ela novamente recebeu um grande baque da vida. Mas foi
impossível não criar ódio e rancor pelas coisas que ela fez mais à frente. Era
injustificável, e, por mais que eu soubesse que minhas decisões me
tornavam tão vilão em minha vida quanto ela, ainda sentia que o peso das
coisas que Ana fez eram maiores. Não sentia mais empatia ou justificava
seus comportamentos... Eu estava cansado. No fim, ficava a sensação de
que o meu pai tinha razão. Cristian sempre esteve certo quanto a mulher
com quem eu tive uma filha, quanto a mulher que me traiu com o meu
irmão, que quebrou a promessa que me fez aos dezesseis anos, que tentou
mentir que minha filha era fruto de uma relação com Lucah.
Tantas coisas aconteceram... Tanta coisa mudou. A melhor amiga da
Ana agora era uma das minhas pessoas mais próximas, trabalhava e gostava
de apreciar a vida comigo e Harry. Isabela era formada em Marketing, e eu
não fazia ideia de por que ela gostava do Ravina. Mas era inegável que
apreciava a nossa companhia. Era uma “mina” maneira, nem parecia que
me odiava na escola. Ela trocou de lado completamente depois que tudo
virou de cabeça para baixo, deixando a amiga e me dando razão no que
tinha acontecido e separado todos nós.
Ana e Isa eram unha e carne, quase como almas-gêmeas, inseparáveis.
Agora, se detestavam, e não vou negar que adorava quando a ruiva
começava a entrar no meu jogo e fingir que tínhamos algo, só para provocar
a mãe da minha filha.
Minha amiga tinha uma aura misteriosa. Harry já tentou chegar nela,
mas Isabela não deu entrada. Nunca a vi com ninguém depois que
terminamos a escola, e, se me dissessem que ela era virgem, sequer
duvidaria.
— Bom dia, Jow!
— Bom dia, Isa! E aí, tudo tranquilo?
— Sim! Vou fazer café.
— E aê, meu mano! — Harry disse, caminhando até mim, erguendo a
mão para cumprimentar.
Bati minha palma contra a dele. Harry olhou por cima do ombro,
verificando se Isa, envolta em um minúsculo short jeans e a camiseta preta
com logo do Ravina, já havia saído.
— Aí, arrumei umas gatinhas para nós dois! — avisou, como se
estivesse confessando um crime. — Irmãs, tá ligado? A que estou
desenrolando para você tem uns peitões assim, ó...
E gesticulou, mostrando como deveriam ser avantajados.
— Para quando?
— Hoje à noite, cara. Marquei lá em casa e...
— Só dá se for amanhã. Hoje vou pegar a minha filha na creche e
cuidar dela à noite. Quero aproveitar e recuperar o tempo perdido, o tempo
que passei longe dela — cortei, rindo da cara de decepção do meu amigo.
— Porra, mas eu estou realmente precisando transar. Ana está fodendo
minha paciência, e não a minha pica.
— Caralho, mano. Sério? — Gargalhou, me olhando com descrença.
— Pelo menos a Surtada agora está deixando você conviver com a
“menor”, né?
— Graças a Deus! Viu como ela é linda? Agora está me chamando de
“papai” só de me ver — contei, aceitando a xícara preta que Isabela trouxe,
em uma bandeja espelhada, com um pote de biscoitos amanteigados em um
vidro preto o acompanhando. — Ontem de manhã, eu a deixei com a mãe
aqui do lado, aí a Júlia chorou e o caralho quando saiu do carro. Ficou me
chamando com as mãozinhas. Ana até deixou ela ficar a manhã aqui em
casa, mas chorou de novo quando teve que ir embora na hora do almoço.
Só de lembrar da minha Coisinha, o meu coração já se enchia de
alívio. Era realmente uma sensação de paz, de amor, de estar em uma área
serena da vida. Como eu podia amar tanto outro ser humano? Era muito
louco, mano...
— Você é um pai babão, sabia? — a ruiva debochou, enfiando dois
biscoitos de uma vez dentro da boca, rindo da minha carranca, fazendo
farelos escaparem.
— E você? — Harry gargalhou. — Isa, você comprou até um
conjuntinho preto para a Julinha.
— Ah, comprei. Vou pegar! — Isa disse, correndo para fora. Quando
voltou, retirou algo de uma sacola de loja infantil. Era um vestidinho preto,
repleto de babados na parte da saia, com alças presas em um pequeno
cabide branco. Havia dois laços da mesma cor presos a um cordão de nylon
atado ao cabide. — E esses lacinhos são para a “Maria Chiquinha”, e tem
esses sapatinhos aqui...
— Ana vai atear fogo! — Harry zombou.
— Vai nada... — neguei, sorvendo o café e encarando a preocupação
no rosto da minha amiga. — Ao menos eu acho que não irá se importar.
— Como você sabe? — Isabela inquiriu, recolocando a roupa na bolsa,
fazendo um pequeno bico nos lábios pintados de vermelho. — Ela é
imprevisível...
— Ana ainda gosta de você! — consolei. — Por isso eu acho que ela
não vai jogar fora. Além de que o presente é da Júlia, e não dela.
— Ok!
●●●
A primeira cliente da manhã era bem sinistra. A mulher entrou muda e
saiu calada, me observando enquanto eu tatuava o “ponto e vírgula” no
pulso esquerdo dela. Tinha uns olhos verdes bem peculiares, com rajadas
amarelas ao redor das pupilas, sob sobrancelhas arqueadas e escuras. O
resto do corpo estava todo tapado em um vestido longo e preto que cobria
tudo, deixando à mostra apenas do pescoço para cima. Fiquei meio
desconcertado quando comecei a tatuar o pequeno coração vermelho na
falange média do anelar esquerdo. Mulher do caralho... Nem esboçou dor, e
olha que aquela região do dedo doía para cacete. Nem me deu tchau ou
agradeceu quando terminei, saiu mexendo no telefone com o cabelo escuro
balançando em ondas pelas costas. Tinha a impressão de conhecer aquela
mulher misteriosa de algum lugar... Alguns minutos depois, já comecei a
atender a cliente seguinte.
Absorto em meu trabalho, enquanto deslizava a máquina de tatuagem
sobre as costas da morena à minha frente, pintando as asas da fênix com
tons de vermelho, notei um vulto na sala. Pelo cheiro doce de chiclete de
uva, sabia que era Isa. Ela era viciada em doces, principalmente em
chicletes.
— Josiah, pode dar um pulinho aqui na recepção?
Não olhei em sua direção, ignorando a entonação preocupada.
Balancei a cabeça, negando, demorando até finalmente fazer soar a minha
voz.
— Estou no meio do trabalho, cara! — avisei.
Ficava puto quando me interrompiam assim, e ela já sabia. Quebrava a
minha concentração. Continuei ignorando os grunhidos de dor da cliente,
que se agarrava à maca, apertando o encosto contra o seu peito. A maioria
das tatuagens doíam, era o preço para a beleza que ficaria para sempre
gravada na pele.
— É a Ana! — confessou, com o tom de voz alarmado, tentando não
chamar a atenção da mulher em que eu trabalhava.
Encarei Isabela, notando o olhar de medo que dançava em seu rosto
pálido. Havia muito nervosismo em seu corpo, enquanto ela estalava os
dedos das mãos ao contar, parada embaixo do arco da porta, que tinha o tom
do seu cabelo.
— Alguma coisa com a minha filha? — perguntei, largando os
utensílios sobre o carrinho preto com rodinhas, que jazia à frente do meu
banquinho e caminhando para fora da sala, deixando Isabela para trás.
— Calma! — pediu, correndo e se colocando na minha frente e
empurrando o meu peito, ansiando que eu parasse. — A Ana está socando o
portão e xingando horrores pelo interfone. Eu perguntei se era algo sobre a
Júlia, e ela disse que ia te matar e que, se eu não abrir o portão, vai pular a
grade e quebrar a minha cara.
— Puta que pariu! — xinguei, colocando a língua entre os lábios e
alisando o cabelo, acalmando o meu coração, que batia descontroladamente,
só pelo pensamento de que algo pudesse ter acontecido a minha Coisinha.
— Deixa eu ver a câmera!
Caminhei até a mesa de recepção e encarei o monitor de segurança do
portão. Lá estava o Docinho, gritando enquanto apertava mil vezes o
interfone, xingando, esbravejando para a câmera. O que queria? Retirei as
luvas e as joguei dentro da lixeira vermelha abaixo da mesa, observando em
meu relógio de pulso que ela provavelmente já havia deixado a Júlia na
creche, como me disse que faria.
Atendi o interfone, que berrava por Ana ficar toda hora apertando o
botão lá no portão social.
— O que caralho você quer? — grunhi. — É alguma coisa com a
minha filha?
— Seu desgraçado! Você colocou a porra daquele... — ela gritava,
entre os soluços, parecendo fora de si.
Desliguei o interfone na cara dela. Que porra estava acontecendo?
Fiquei na dúvida sobre o que fazer, mas ainda com uma estaca cravada no
peito, morrendo de medo de ser algo com a minha pequena, decidi deixá-la
entrar. Apertei o botão para destravar o portão, e vi pela câmera que Ana
corria para dentro.
— Isabela, vai lá e distrai a cliente! Liga o som, fala qualquer coisa,
mas nem deixa a Ana ver você — avisei, ouvindo os passos pesados da mãe
da minha filha sobre as escadas lá fora.
— Vai dar ruim! — a ruiva constatou, fechando a porta da minha sala
atrás de si.
Quando olhei para a entrada da recepção, uma Ana enfurecida surgiu.
O rosto estava completamente rubro e inchado, os olhos, esbugalhados e
fora de si, de um jeito que só vi uma vez na vida. E foi a vez em que ela
fodeu com tudo.
— Filho da puta! — berrou, avançando em mim e socando o meu
peito.
A pressão dos punhos dela foi tanta, que cheguei a me desequilibrar,
quase caindo de costas sobre a mesa da recepção. Segurei os seus pulsos,
enquanto minha ex grunhiu, me ameaçando de morte, se debatendo
enquanto eu a virava de costas para mim, imobilizando-a.
— Porra, Ana! — gritei. — Você está louca?
— Estou louca! Você conseguiu, Josiah — gritou, chutando o ar. —
Conseguiu me ferrar, seu canalha! Mas foi sujo...
E repetiu o “foi sujo” como um mantra, por muitas e muitas vezes.
Droga! Ana estava muito surtada, literalmente em um surto de raiva.
Continuei segurando, enquanto a mulher se debatia, tremendo, chorando e
gritando milhares de palavrões.
Demorou até ela se conter, até parar de se debater, até o peito sob os
meus braços diminuir a frequência. Aqueles minutos de terror quase
pareciam horas, de tão nervoso e assustado que eu estava ao tentar
estabilizar a crise dela.
Eu me lembrei daquela noite, daquela Ana em transe, violenta, que...
— Por que fez isso comigo? — sussurrou.
— O que eu fiz Ana? Do que está falando?
— Você... — sussurrou, amolecendo o corpo. Se eu não a estivesse
segurando, ela cairia no chão.
— Ana, me fala, é algo com a Júlia? — repeti, com a sensação de que
o solo abaixo de mim poderia rachar se a resposta que saísse daqueles
lábios inchados fosse positiva.
Então eu subitamente entendi os pais da Ana. Entendi que, se perdesse
a minha filha, a vida não teria sentido. Era um amor tão forte, que chegava
a doer. Pensar em qualquer coisa ruim acontecendo a Júlia me fazia
enlouquecer.
Eu tinha ido aos céus ao interagir com ela pela primeira vez, ao dar os
beijos que tanto desejei, ao vê-la me chamar de “papai”, ao brincar, ao
observar as gargalhadas. Não! Eu poderia aguentar perder tudo, mas não
aguentaria perder a Júlia.
— Não! Você sabe que não, porra! Você colocou a merda de um
boneco de cabeça para baixo, dentro de um balde repleto de água na porta
da minha casa enquanto eu fui à creche, seu desgraçado! — gritou, ficando
sem ar e vermelha. — Eu nunca vou te perdoar! Eu te odeio, odeio, odeio!
— Ana, eu não coloquei nada na sua porta! — disse, girando-a em
meus braços, posicionando-a de frente para mim, envolvendo o seu rosto
entre as minhas mãos. — Nem mandei o fazerem. Não tenho nada a ver
com isso, Docinho.
Os olhos dela giravam, como se não visse um palmo à sua frente,
como se sua cabeça estivesse distante, enquanto o corpo raivoso reagia aos
estímulos. Parecia que eu estava vivendo um filme de terror, como se
aquela noite desgraçada estivesse se repetindo, como se eu novamente
tirasse essa mulher irada de um transe.
Eu odiava a Ana debochada e irônica, a que me despedaçou, mas essa
Ana dava pena. Essa era a que eu sentia vontade de cuidar, mesmo que o
sofrimento que claramente tinha naquele corpo não justificasse as coisas
que ela era capaz de fazer.
— Olhe para mim! — supliquei, sentindo o peso da situação, vendo o
gatilho em que Ana estava presa. — Olhe, porra! Eu já menti para você?
Apertei o rosto dela, com medo, morrendo de medo de que ela não
voltasse daquele maldito transe. Meu coração estava em frangalhos, porque
achei que aquilo não voltaria a acontecer, que eu nunca mais veria aquela
Ana.
— Docinho! — gritei, chacoalhando-a entre os meus dedos, enquanto
ela girava o olho e finalmente parecia me ver. — Não fiz isso! Eu jamais
brincaria com isso.
— O boneco... com a frase “Ana afoga crianças” presa no balde... Eu...
Meu Deus!
— Eu já menti para você? — repeti a pergunta, encarando-a
profundamente, sentindo dor por ela. E odiava sentir tanto, eu odiava gostar
tanto assim. Odiava que eu jamais deixasse de amar aquela mulher perdida,
quebrada. Encostei a testa na dela, enquanto Ana erguia as mãos e segurava
os meus pulsos. — Responda!
— Não! — sussurrou. — Cadê a Isabela?
Então tentou soltar as minhas mãos do seu rosto, ficando novamente
vermelha de ódio, se perdendo, se distanciando de mim e da minha tentativa
de acalmá-la, de fazê-la ganhar uma “perspectiva” maior da situação.
Começou a se remexer com mais força, com mais fúria.
— Não foi ela! — Harry disse, pousado sobre o umbral do arco que
dava no corredor. — Eu a trouxe de moto hoje, a busquei em seu
apartamento. Pode olhar a câmera de segurança do condomínio, se quiser!
Não chegamos com nada, além da roupa que Isabela comprou para a filha
de vocês!
Ana olhou para o meu amigo, perdida, atordoada, prestes a desmaiar.
Harry foi até a cadeira de Isabela e a arrastou, posicionando-a
estrategicamente abaixo da minha ex-namorada, então eu a deixei cair sobre
o assento.
— Eu... Eu olhei e minha câmera está quebrada... de novo —
sussurrou. — Achei que só podia ser o Josiah — Ana falava, sem sequer
olhar para mim ou Harry, com a visão presa em um ponto da parede de
tijolos cinza a sua frente. — Ele não costuma mentir. Jow sempre fala a
verdade, mesmo que faça todo mundo sofrer com as suas palavras cruéis.
— A minha câmera não ia pegar quem passou pela rua, ela só foca no
rosto de quem está na frente do portão — falei, com a voz baixa enquanto
encarava o Harry, ao pensar que nem isso poderia ajudar a descobrir o autor
daquele trote pesado.
— A velha fofoqueira aí da frente pode ter visto quem foi — meu
amigo comentou.
— A gente vai descobrir quem fez isso, mas, agora, é melhor eu levar
a Ana para casa.
— Não! — Ana murmurou. — Eu quero ver a Isabela. Chame-a agora!
— Não vai bater na Isa de novo, eu não vou deixar! — Harry rosnou.
— Leva ela embora, Josiah!
— Não vou fazer isso! — ela grunhiu, encarando o rapaz de maneira
raivosa. — Quero ver nos olhos de Isabela se não foi ela quem fez isso
comigo. Quero ter certeza de que ela não faria isso.
A porta da minha sala se abriu, e Isabela surgiu. Provavelmente não
fez o que eu mandei sobre distrair a cliente. Deve ter ficado com medo da
Ana entrar na sala, e ficado atrás da porta ouvindo a confusão. Isabela
amava pagar de fodona, mas, no fim, morava uma menina frágil dentro
dela. Isa, a quem Harry apelidara de Ruivinha, encarou a Ana com um olhar
jocoso, mas, quando percebeu o estado emocional dela, seu semblante se
suavizou bruscamente.
— Eu não fiz isso, Ana! — expressou, cruzando os braços, como se
quisesse se proteger. — Jamais faria isso com você!
Minha ex-namorada se curvou, apoiou os cotovelos sobre os joelhos e
chorou copiosamente. Harry, Isabela e eu nos encaramos, sem saber o que
fazer. Ana começou a sussurrar e repetir a mesma frase, “foi culpa minha
mesmo”. Sabia que ela estava se resignando diante da frase que leu,
acreditando ser a responsável por Benício ter se afogado. Fiz um gesto para
meus amigos, afastando-os.
— Assim que o Bill chegar, pede a ele para explicar à menina sobre os
cuidados com a tatuagem até que eu possa terminar, em uma segunda
sessão. E pede desculpas pela confusão — instruí a Ruivinha, depois me
virei para o Harry. — Vai na casa da Ana e traz o balde para cá, por favor!
Quando finalmente ficamos sozinhos, me ajoelhei diante dela.
Delicadamente eu retirei as suas mãos do rosto, e, segurando o queixo dela,
a fiz me encarar. Eu a odiava, odiava a sensação de que novamente tinha
que colar os pedaços do vaso quebrado que era a Ana. Aí vinha o meu
remorso, lembrando que ela era a mãe da minha filha, e todas as outras
coisas, os outros sentimentos que eu não queria nomear, me dizendo que vê-
la assim me fazia sofrer.
— Vem! Vamos descer.
— Não! Eu não quero ver aquilo de novo — sussurrou, tentando se
afastar de mim e se encolher sobre a cadeira.
— Vamos descer para a minha casa!
Muito trêmula, ela aceitou a minha mão erguida diante de seu corpo, e
eu a conduzi até o primeiro andar. Quando a guiei até o sofá, meu coração
doeu, vendo-a tão perdida, tendo certeza de que estava absorta em
pensamentos pesados.
Quem faria aquela merda com ela? Se não foi Isabela, quem mais
poderia querer ferir a Ana daquele jeito?
Eu queria me vingar dela, mas não daquela maneira. Minhas vinganças
envolviam a fazer sentir ciúmes de mim, lamentar o que perdeu, ser
obrigada a me ter em sua vida. Não dar gatilho sobre o irmão dela que
morreu, ou os pais, ou qualquer merda que seria digna de um psicopata.
Pensando em psicopatas... Será que foi o desgraçado do Cristian que
mandou colocarem aquela merda de trote? Depois de tanto tempo? Por quê?
Será que a culpava pelo acidente do Lucah? Pela morte do filho? Ela
claramente não tinha como ter feito nada... Estava dando à luz quando ele
bateu o automóvel. Tanto que Marta continua amando a mulher que ainda
apelida de nora, como se fosse sua própria mãe.
Ou ele teria feito porque minha ex nunca o deixou ver a neta? Por que
disse que ele jamais poderia chegar perto da criança? Ou foi por todas as
merdas que Ana jogou na cara dele, bem na frente do delegado, quando ela
quase foi presa?
Sim, só podia ter sido o Cristian. Ninguém mais tinha problemas com
a minha ex-namorada, que tremia, debulhada em lágrimas enquanto se
deitava no sofá. Coloquei água para ferver e preparei um sachê com chá de
camomila e folhas de maracujá. Não tinha calmante em casa. E não gostaria
de vê-la sedada, de qualquer maneira.
— Beba isso aqui! — ordenei, me sentando sobre a mesinha de centro.
Ana se ergueu e envolveu a mão deformada sobre a caneca. Ela tremia,
e a prova de que estava tão mal, era não se importar de me deixar ver a mão
que tanto escondia. Notei a maneira como ela fazia uma força anormal para
segurar o objeto. Então a ajudei a segurar com a mão oposta.
Ela sorveu o líquido, com o rosto inchado enquanto soluçava ao fazê-
lo. Estava tão linda com aquele macaquinho preto e repleto de girassóis
estampando-o...
Talvez eu fosse um tipo de babaca com coração. Com mais
sentimentos do que gostaria, com mais amor por Ana do que deveria ou que
ela merecia, mas vê-la sofrer por aquelas perdas me fazia muito mal. Vinha
uma sensação de impotência. Eu sabia que não deveria ter me colocado no
papel de cuidar dela, mas lá estava eu, de novo, sentindo que tinha que
segurar as pontas para ela não desabar, exatamente como no nosso primeiro
Natal juntos.
Não era mais uma questão de escolher ou não ser uma âncora para
Ana. Agora era uma questão de não deixar a mãe da minha filha se perder
de vez. Afinal, eu já tinha visto um momento muito parecido com aquele no
Natal do ano de 2016.
— Se quiser, posso ligar para Luana ou a Marta...
— Você também acha, não é? — perguntou, entre soluços que quase
não a deixavam respirar. — Acha que foi culpa minha.
— Claro que eu não acho isso!
— Eu nunca te contei os detalhes... Você não sabe o que acha ou não!
— debochou, voltando o olhar para mim, parecendo voltar a me ver, voltar
a focar na vida além dos pensamentos em sua mente.
— Então conte... — sussurrei, apoiando os cotovelos sobre as coxas e
o queixo sobre as mãos.
Não sabia se a melhor coisa seria pedir que ela falasse sobre o trauma,
mas talvez pudesse ajudar. Ela nunca falava, pelo menos não comigo. Em
todos os nossos anos como casal, Ana jamais me detalhou o que aconteceu,
como foi que o acidente aconteceu, ou o que sentiu:
— Meus pais tinham ido trabalhar, e eu costumava estudar no turno da
tarde, então a tarefa de cuidar do Ben durante a manhã era minha... —
Apertou os lábios superiores entre os dentes, tentando conter o soluço.
Bebericou o chá, depois respirou fundo. — E ele sempre brincava na sala de
casa, sobre o imenso tapete colorido. Era a casa dos sonhos dos meus pais,
uma casa envidraçada, nada muito chique, mas tinha a churrasqueira que
meu pai amava, e a piscina que minha mãe desejou por anos. Lembro que
olhei para o tapete e Ben estava sentadinho, enfileirando bonecos e perdido
em sua imaginação. Tinha uma cascata cacheada tão perfeita ao redor da
cabecinha, olhinhos tão escuros, bochechas que ficavam rosadas à toa...
Meu pobre Ben... — soluçou — Eu nunca deixava a porta da sala aberta,
mas, naquele dia, o ar-condicionado da sala tinha quebrado, então eu abri a
maldita porta de vidro, sem prestar atenção direito no que estava fazendo,
porque estava ansiosa para terminar o maldito exemplar de Orgulho e
Preconceito. E... — Então Ana olhou para mim, e tinha tanta, mas tanta dor
ali, que eu quase desisti de odiá-la naquele momento. Meu peito estava
apertado, e parecia que tinha a porra de um nó atado dentro da minha
garganta, me fazendo engolir em seco, prendendo o ar — quando dei por
mim, Ben não estava mais sentadinho no tapete. Eu olhei o relógio redondo
sobre o rack da sala e já tinha passado da hora da minha mãe chegar do
trabalho, ela era dona de uma loja de roupas, e geralmente chegava na hora
do almoço, quando eu me arrumava para ir à escola. Eu lembro que senti
uma coisa estranha e larguei o livro, eu o ouvi cair no chão e comecei a
chamar o nome do meu irmão, enquanto olhava na cozinha, nos quartos, e,
quando vistoriei a casa inteira, voltei para a sala... Foi como se uma fenda
se abrisse abaixo de mim, Josiah. Eu encarei a maldita porta da sala, e, tinha
um corpinho pequeno boiando, envolto em uma jardineira jeans, com os
cachinhos flutuando. Eu me joguei na piscina, gritando, chorando, e nadei
até ele. Agarrei aquele corpinho, que jazia inerte sobre os meus dedos. Eu
lembro de o arrastar pela borda, mas, antes de conseguir tentar reanimá-lo,
ouvi os gritos da minha mãe.
Ana respirou fundo com o semblante distante, ela apertou os lábios e
balançou a cabeça, chorando. Eu nem sei quando foi que meus olhos
começaram a lacrimejar também, mas nem liguei, apenas retirei a caneca
dos dedos dela, com delicadeza. Agarrei os ombros dela, puxando-a junto a
mim para sentar-se no tapete. Ana ficou de lado, com o rosto apoiado em
um dos meus braços, enquanto eu beijei a sua cabeça.
— Não precisa mais falar se não quiser.
— Eu nem sei quanto tempo se passou, não faço a menor ideia. Mas eu
lembro de ver a minha mãe tentando reanimar o meu irmão, gritando para
eu buscar socorro, mas eu não conseguia me mexer. Lembro de ver o meu
pai pegando Ben no colo e correndo para longe. E eu fiquei deitada sobre o
piso ao redor da piscina, sentindo que tinha matado o meu irmão. — Ana se
virou de frente para mim, buscando um abraço. O peito dela batia de
maneira forte, a respiração estava muito pesada, e eu a envolvi em meus
braços, deixando que ela se sentasse sobre as minhas pernas. — Minha tia
Marina surgiu muito tempo depois, me levantou, me deu um banho e me
levou até o responsável pela investigação. Ao invés de só ouvir que o Ben
tinha morrido, ele me encheu de perguntas, tantas, com um tom tão pesado,
que meu subconsciente repetia para mim que todo mundo pensava como
ele, que a Ana afogava criancinhas, que a Ana não tomou conta do irmão,
que a Ana foi incapaz de salvar o bebê por quem ela rogou por anos para
ter.
— Chega! — pedi, em um sussurro, sentindo a mente pesada com toda
aquela confissão. Sempre quis que ela me contasse o que tinha acontecido,
e agora sentia que era melhor não saber. Eu não queria imaginar a cena de
Ben morto, porque era impossível não pensar no que aconteceria comigo se
perdesse a minha filha. Eu não a escolhi, não escolhi ter a Júlia, mas ela
existia, e isso bastava para me fazer amá-la, para sentir que daria todo o
sangue do meu corpo a ela, se precisasse, que morreria com fome, só para
alimentá-la... — Você já está mal o suficiente, Ana. Eu já entendi o que
aconteceu, e não acho que você foi culpada. Foi um acidente.
— Depois do interrogatório, minha tia me levou para a minha casa,
mas meu pai avançou sobre mim assim que dei o primeiro passo. Ele
gritava, com o rosto de feições longas e finas transtornado, os olhos verdes
marejados, enquanto perguntava por que eu não cuidei do Ben. Ele
perguntava por que eu o deixei morrer... Eu pedi perdão, mas ele saiu.
Tentei ir até a minha mãe, mas ela estava no sofá da sala, sentada sobre o
estofado bege, e só me deu um olhar apático e comunicou que eu não
morava mais naquela casa. E foi a última vez que eu vi os dois. — Ana se
afastou do meu abraço, limpando o rosto. Ela envolveu os dedos entre o
meu rosto e encarou os meus olhos. — Quantas perdas são necessárias para
fazer uma pessoa ruir?
— Eu... Eu não sei, Ana.
— Para os meus pais, o Ben foi o suficiente para que não pensassem
em mais ninguém. Para esquecerem a Docinho que amavam, que o
motorista do caminhão cargueiro não merecia e não queria morrer, que pais
chorariam por aquele homem, que filhos ficariam órfãos, que a própria filha
ficaria órfã. É uma merda lidar com a sensação de que eles não enxergaram
nada além da própria dor, e eu os julguei. Mas, agora, eu já perdi tanto, que
se não tivesse a Júlia, talvez o meu destino fosse o mesmo...
— Não fala isso!
— A morte me roubou quatro pessoas que eu amei: os meus pais, o
Lucah, o Ben... — falou, com tanta tristeza, que eu sequer consegui sentir
raiva por falar dele, o irmão que não havia deixado de ser um traidor por ter
morrido. — E eu fui abandonada três vezes: pelos meus pais, pela minha tia
e por você! E eu já consegui superar os outros, eu só não consigo superar
você, a sua vontade de me machucar, de me obrigar a olhar para tudo o que
perdemos, para tudo o que poderíamos ter sido. Porque esse balde
desgraçado só me faz lembrar da culpa, e, quando ela surge, ela me lembra
de todas as escolhas erradas que já fiz na vida.
— Ana... — sussurrei, deixando que ela se esgueirasse sobre o meu
colo, sabendo o que ela queria, como estava seguindo a rotina do que
procurava para fugir do sofrimento. — Não tenta me fazer sentir culpa, o
lugar para onde nossa relação foi também é mérito seu.
— Sim! Somos os vilões da nossa vida, os responsáveis por nossas
ruínas. Agora... Me faz sentir alguma coisa que doa mais do que a porra do
meu coração, que cale esses pensamentos desgraçados na minha cabeça!
E eu sabia que aquilo era errado, que o caminho que traçaríamos com
os momentos seguintes me traria arrependimento, mas era algo que eu
queria, que precisava, e que não negaria só porque não conseguiria.
Capítulo 15

“É como se as paredes estivessem desmoronando. Às vezes sinto


vontade de desistir. Nenhum medicamento é forte o suficiente. Alguém me
ajude! Estou rastejando na minha pele. Às vezes, sinto vontade de desistir”.
In My Blood - Shawn Mendes

Ana Oliveira
Há seis anos...

A primeira semana com meu namorado foi incrível, mas eu não fazia
ideia de que as semanas virariam meses e logo chegaríamos a primeira
virada do ano como um casal. Eu poderia resumir 2016 como o ano em que
“ressurgi”. Josiah era como o meu herói, como alguém que me tirou do
poço em que meus pais me jogaram.
Ele tinha tudo na medida perfeita para mim, com sua boca que se
encaixava bem na minha, a visão romântica e revoltada da vida, com seus
desenhos lindos que descobri logo na primeira semana de namoro, o amor
pelas tatuagens que volta e meia iam surgindo pelo corpo, seu toque
perfeito e forte sobre mim...
Josiah foi como um presente. Como se Deus soubesse que eu precisava
daquilo, que precisava de uma maneira de voltar à vida. E nossa, como era
bom viver com ele. Eu acordei por meses com aquele cheiro gostoso ao
meu redor, com beijos delicados sobre a minha orelha, com sorrisinhos
sonolentos e de canto enquanto alisava locais sugestivos do meu corpo,
sempre provocando-me na intenção de que eu me abrisse para o que ele
morria de vontade de ter, para os locais onde queria explorar.
E eu estava quase cedendo, quase indo além das carícias bobas que
fazíamos com a mão um no outro... Mas tinha muito medo. Medo do
tamanho dele, medo de descobrir que não era a hora certa, medo de não
saber me cuidar e acabar tendo um bebê. Eram tantos temores... Meu
namorado nunca verbalizava que queria transar, apenas... me tocava. E eram
toques tão bons, com a mão, com os lábios... Mesmo que nunca tenha
chegado às minhas partes íntimas, todos os locais onde ele provocava
sugeriam malícia.
Eu quase não parava em casa. Ia à escola, e o beijava muito lá,
inclusive chamaram nossos responsáveis porque não conseguíamos não nos
agarrar na sala de aula. E a conversa que Marta teve conosco orientando-
nos a não fazer mais sequer adiantou, porque simplesmente não conseguia
querer ficar longe dele, daquele poço de perfeição. Eu queria ficar grudada
em Josiah a todo momento, e acho que no fim os professores se resignaram,
parando de se importar com o tempo em que eu ficava no colo dele durante
a aula.
Isabela e Bernardo se tornaram tão amigos, que passei a me sentar com
Josiah com nossas mesas em dupla, e eles ficavam a nossa frente,
tagarelando como se fossem ligados desde a infância. Na hora do intervalo,
ficávamos os quatro como um grupo inabalável, e aqueles momentos eram
tão bonitos, tão... felizes.
As perdas que tive foram horríveis, quase... insuportáveis, mas aquelas
pessoas estavam me salvando. Eles me mostravam um lado bom na vida,
eles me deram motivos para querer ficar, para desejar viver. E teve um dia
em que fiquei tão emotiva enquanto os via gargalhando, que comecei a
chorar e ganhei um abraço grupal, verbalizei tudo o que sentia, o quanto os
amava, os quatro, por serem tão importantes para mim.
E quando eu ia para casa, Josiah estava sempre lá, comendo o
macarrão delicioso da minha tia, deitado no sofá da sala vendo filmes com
ela enquanto eu terminava os meus afazeres. E depois eu sempre ia dormir
com aquele garoto perfeito, naquela caverna escura e quente que era o
quarto de Josiah.
Minha tia não era mais a mesma pessoa, ela ria muito pouco, quase
nunca estava em casa. Marina sempre tratava o meu namorado com carinho,
assim como a mim, mas existia um vazio tão grande em seus olhos, uma
ausência de vida. Tinha medo de ela me deixar. Era um medo irracional,
mas, às vezes, eu percebia o quanto ela parecia aliviada quando eu dizia que
sairia ou que dormiria fora. Como se ficasse feliz por eu ir. Às vezes,
achava que era coisa da minha cabeça, que era o medo de rejeição
sussurrando na minha cabeça, contando histórias horríveis sobre eu não
merecer ser amada.
Marina tinha recebido uma promoção no trabalho, uma oferta para
morar fora do país, afinal, minha tia era secretária de um gerente comercial
em uma multinacional. Ela disse que negou, avisando que tinha a mim para
cuidar, e ficou até com medo de perder o emprego. Não gostava da ideia de
como eu parecia um empecilho. Sei que me amava, mas também sei que ela
nunca quis ter filhos e acabou sendo obrigada a agir como se tivesse.
Finalmente nos formamos no ensino médio, e tomamos um porre para
comemorar. Foi naquele dia de novembro em que me tornei amiga da
Luana. Ela já estava na faculdade, cursava Economia. A mulher era a
pessoa mais doida que já conheci na vida, me apresentou os shots de
tequila, algo que decididamente era maravilhoso, mas me deixava super
bêbada.
Lembro que fomos expulsos do bar, porque Isa, Bernardo e eu ficamos
tão doidos com nosso primeiro porre, que subimos no balcão do bar dizendo
que éramos Coyotes, como no filme Show Bar, começamos a dançar. Josiah
ficou bem preocupado, tomando sua cerveja e nos observando, depois tendo
que subornar os policiais que foram chamados para nos levar para casa,
quando os outros clientes fizeram a denúncia de ter um monte de
adolescentes bêbados em um bar na Lapa, causando tumulto. “Eu tenho
dezoito anos, querido!”, Bernardo ficou dizendo ao policial, panfletando
sua carteira de identidade, mas Isa, Jow e eu não podíamos dizer o mesmo,
né? Sei que a noite terminou com um sermão da Marta em todos nós,
Isabela vomitando no banheiro do corredor da casa de Josiah, Bernardo
dizendo a minha sogra que também iria para o exército, e eu rindo, sem
entender nadinha. “Imagina só, eu, o Ber, gato e fardado!”. Não fazia ideia
de onde tinha vindo aquele delírio, afinal, ele nunca comentou nada sobre
entrar para o exército, e o “também”? Quem iria com ele?
Desde aquela noite, Luana passou a integrar mais o nosso grupo.
Sempre puxava assunto comigo sobre sexualidade, tentando me dar dicas e
conselhos. Eu adorava a visão dela desprendida da vida, seu senso de
liberdade, a maneira como via beleza nas coisas. Às vezes, passávamos a
noite conversando, eu contava sobre os medos em relação ao sexo, ela
contava suas aventuras e me fazia corar, dava dicas sobre como deveria me
prevenir, e ainda marcou uma consulta para que eu fosse ao ginecologista
pela primeira vez.
Sei que ela era pouca coisa mais velha que eu, apenas dois anos, mas
criei tanta confiança em Luana. Era tão gentil... Foi ela também quem
intermediou a minha relação com a Marta. A mãe de Josiah me tratava bem,
mas era um pouco distante de mim. Tinha uma certa cautela em seu olhar,
mas a maneira como Luana foi inserindo-a em nossas conversas, foi me
dando espaço para ir quebrando os escudos da Marta. Passamos a conversar
sobre diversas coisas, enquanto eu a ajudava a preparar a comida no dia a
dia, ela me contava coisas de seu antigo casamento, sobre seus filhos, o ex-
marido, as expectativas em conhecer um novo parceiro amoroso.
Naquela manhã, eu estava enrolando bolinhos de bacalhau para a ceia
natalina. Marta tinha uma empregada que limpava a casa, mas fazia questão
de cozinhar, e nunca deixava a funcionária mexer em sua cozinha. Volta e
meia, chamava a mim e Luana para ajudá-la com coisas simples, como
cortar ou descascar legumes, mas não deixava ninguém tocar nas panelas.
Sabia que a minha sogra nos chamava para ficar mais perto de nós, e eu
estava adorando a proximidade que fui ganhado com as duas. Era como se
eu tivesse uma família, como se Josiah tivesse me dado isso, o que me fazia
amá-lo ainda mais.
Lembro-me claramente do nosso primeiro “eu te amo”. Bem no
comecinho do namoro, quando ele cismou de me desenhar, dizendo que eu
era sua Rose, e que me desenharia como “uma francesa”. Lembro que
estava tocando uma música que repetia a frase “Coisa Linda” várias vezes
no rádio, e foi a primeira vez que ele me viu de calcinha e sutiã, um
conjunto rendado preto. Eu o deixei fazer, muito tímida sob seu olhar de
fascínio, e, quando terminou, disse que faria um quadro da arte. Josiah
avançou em mim sobre a cama, me encheu de beijos, e, entre eles,
sussurrou que me amava. Trocamos diversos “te amo”, e ele disse que eu
era a Coisa mais linda que já viu na vida, que um dia faria milhares de
Coisinhas Lindas em mim, e que rezaria para que tivessem as covinhas que
ele tanto amava no meu rosto. Deus! Eu estava apaixonada por aquele
garoto...
— Acho que Lucah virá para a ceia — Marta avisou, fazendo minha
postura dar uma enrijecida. — Depois daquela briga entre os dois, lá no
começo do ano, ele nunca mais veio aqui...
Senti o tom de tristeza dela, enquanto abria o forno de inox e usava
uma colher de silicone para apanhar o azeite com ervas do fundo do peru,
regando mais a ave. O cheiro que subia pela cozinha era maravilhoso. Mas
não bom o suficiente para dispersar os pensamentos. Josiah sempre se
recusou a me contar o que o irmão fez para que houvesse aquela
necessidade de uma promessa, uma promessa para que eu ficasse longe.
— Lucah é um ótimo rapaz, Ana! Não acredito nessas teorias doidas
do Josiah sobre o meu menino... — lamentou, sentando-se na mesa de
tampo branco e redonda da cozinha, onde eu jazia apoiada em meu serviço.
— Amo tanto o meu pequeno e revoltado Jow, mas a maneira como ele
afastou o irmão de casa com suas implicâncias me deixou profundamente
triste.
— O que aconteceu entre eles? — perguntei, me sentando sobre uma
das cadeiras brancas, onde antes só apoiava um joelho.
— Não conte isso a ninguém, ok? — pediu, me encarando com o rosto
inundado em sofrimento, escorrendo lágrimas. — Não sei bem como o meu
filho tirou essas conclusões sobre o irmão, mas ele disse que viu fotos de
crianças nuas no computador dele. Josiah tinha treze anos e começou a
ofender o Lucah, mas desde pequeno já acusava o mais velho de pregar
trotes nele.
— Então Josiah acha que Lucah é um pedófilo? — inquiri, com um nó
na garganta.
— Sim! Ele mostrou um pendrive com as tais fotos que supostamente
copiara do notebook do irmão. Não acreditei naquilo, muito menos Cristian.
Meu filho mais velho é um homem bom, sensível, sequer aceitou o dinheiro
do pai, acusando-o de ser ilícito. Ele pega seu dinheirinho do trabalho e
ainda ajuda muitas pessoas, transferiu as ações que dei a ele para o meu
nome, porque sempre se recusou a viver bem com o dinheiro dos esquemas
do pai. — Minha sogra respirou fundo. — Josiah diz também que Lucah se
vestiu com a fantasia de bate-bola e o enforcou quando ele tinha seis anos.
Sempre teve imaginação demais e, quando cresceu, começou a agredir o
mais velho.
— Por isso Lucah saiu de casa? — indaguei, tentando me controlar e
não confrontar sobre de onde Josiah tiraria foto de crianças só para
incriminá-lo. Não fazia sentido, e eu conhecia meu namorado o suficiente
para saber que ele não era de mentir.
— Sim! Pode entrar no Instagram dele, tem todas as entidades em que
ele trabalha, a Ong que fundou para viciados em drogas. Lucah ama o
irmão, e me deixa muito triste ver a maneira como essa “rixa” com meu
caçula o afastou de mim.
— Por que você acha que essas coisas do Josiah são fruto de
imaginação? Josiah não me parece alguém dado a isso...
— Ele sempre teve raiva da maneira como o pai pegava em seu pé. E
não o julgo, foi essa a maior razão do meu divórcio. Cristian tinha uma
obsessão com o Jow, dizia que via nele uma pessoa destemida, e que
poderia continuar o seu legado. Ele era narcisista, batia no meu menino com
o cinto, era impaciente com o Josiah, dizendo que ele quebrava tudo o que
tocava. Se o menino deixasse um copo cair, era motivo de surra — Marta
contou, pegando um copo de água com a mão trêmula ao bebericar. — E eu
poderia suportar as amantes se ele fosse um pai digno, só que não, ele
maltratava o meu filho, e isso era demais. Pedi o divórcio, e, como ele já
estava com a amante, a que hoje é sua atual esposa, nem ligou. Mas ainda
tentou me impedir de morar com Josiah, só que meu pequeno rebelde
sempre foi indomável, fugiu tantas vezes que o meu ex acabou se
resignando e o deixando morar comigo.
— Você disse que Cristian só tratava o Jow assim... porque Lucah
sempre ficou longe dessa hostilidade? — Me senti culpada por estimular
que ela continuasse me contando as coisas, mas estava tão curiosa, que não
conseguia evitar. — Não faz sentido.
— Lucah sempre foi calmo demais! O pai dizia que ele tinha alma de
“marica” e que faria vergonha tanto no exército quanto na política. Josiah
nunca entendeu que a hostilidade de Cristian com o filho mais velho era
diferente. Não era violenta, envolvia desprezo.
Fiquei pensando em tudo o que Marta contou enquanto terminava de
ajudar com a ceia, com a montagem da mesa e depois enquanto me
arrumava com Luana. Vesti um macacão vermelho longo, que tinha um
decote aberto na frente, valorizando os seios só para aguçar o meu
namorado. Deixei os cabelos soltos como Josiah amava, permiti a minha
amiga me maquiar, mas estava morrendo de medo do que poderia acontecer
entre os irmãos durante o jantar.
Marta e eu enfeitamos a imensa mesa retangular de madeira que ficava
na parte traseira do quintal da casa, colocando uma toalha de tecido branco,
com milhares de renas brilhantes vermelhas estampando-o. Organizamos
tudo, com cada lugar tendo um sousplat vermelho, prato branco de
cerâmica, guardanapos de tecido dourado e taças de cristal com as bordas
com pinturas de arabescos vermelhos. Havia uma enorme árvore de Natal
sob o pergolado amadeirado do quintal, toda enfeitada em tons de
vermelho, branco e dourado.
Eu nunca tinha participado de uma confraternização chique como
aquela. Estava animada com a quantidade de comida que preparamos, além
de que Marta prometeu nos deixar beber um pouco de vinho durante a ceia.
A única coisa que estragava o momento era o medo de haver alguma
confusão com Lucah e Josiah. Fora minha tia, que se recusou a participar e
me disse que queria ficar sozinha. Eu nem quis argumentar, ela andava
muito esquisita comigo...
Terminei de colocar uma tábua de frios no centro da mesa, ao lado do
jarro de flores vermelhas. Senti uma pegada em meu quadril, enquanto
ainda posicionava a tábua de petiscos, tentando deixar o mais alinhada
possível com a decoração. Os dedos grossos deram um leve apertão,
enquanto eu podia sentir o tecido da calça dele roçando a minha bunda. Dei
um leve sorriso, erguendo o corpo e sentindo a minha nuca ir de encontro
ao peito dele.
— Docinho... — sussurrou em meu ouvido, envolvendo por completo
o meu corpo em seus braços, enquanto eu podia sentir algo duro roçando a
minha lombar. — Essa roupa está muito... muito excitante.
— Para com isso! — ralhei, sentindo meu corpo fervendo enquanto ele
mexia o corpo, me provocando no meio do quintal, roçando a ereção para
cima e para baixo na minha bunda.
— É hoje, amor? — Mordeu o lóbulo da minha orelha, enquanto
deslizava as mãos pela minha barriga. Eu amava aquele perfume atrelado
aquele cheiro de cigarro mentolado que escapava daqueles lábios e fazia
minha boca umedecer, repleta de vontade de provar. — Me diz? É hoje que
vai finalmente me deixar comer você?
Paralisei com a pergunta sussurrada, me fazendo arder, fazendo eu
roçar as pernas para tentar conter o jato úmido que se amontoava lá. Ele
nunca tinha perguntado aquilo, muito menos com aquelas palavras. Josiah
me tocava, roçava a mão pelo meu peitoral, provocando, fingindo que
desceria e agarraria os meus seios, ou deslizava as mãos pelas minhas
coxas, dava apertões na minha bunda ou se encostava em mim quando eu
passava por ele. E já era sugestivo o suficiente, já me enlouquecia o
bastante...
— Ainda não! — respondi, tentando afastar as suas mãos, mas uma
delas subiu até o meu pescoço e o segurou, fazendo a coisa que me deixava
doida... Envolvendo-o entre os dedos e dando uma leve apertada enquanto
respirava sobre o meu ouvindo, roçando o nariz.
— Estou enlouquecendo... e com muitos calos na mão! — reclamou,
me fazendo dar uma pequena risadinha. — E brincar? Sabe que também
podemos fazer algumas coisas com a boca, né?
— Ana! — Bernardo chamou, ao longe, me fazendo ter uma desculpa
de fugir daquele momento.
— Vou pensar, Jow — avisei, tentando me livrar das mãos dele.
Josiah me virou de frente, agarrando um punhado dos meus cabelos e
os puxando para trás, enquanto me trazia mais ainda para perto de si e
forçava o meu rosto a encarar o seu. Tinha muito desejo em seus olhos
semicerrados. Josiah envolveu os meus lábios em um beijo quente,
deslizando a língua sobre a minha, apertando tanto a minha bunda com uma
mão e puxando os fios de cabelo com a outra, que gemi contra a sua boca.
— Meu Deus! — Bernardo gritou, fazendo-me abrir os olhos entre o
beijo e encarar a porta da cozinha, onde ele jazia parado, envolto em uma
calça jeans vermelha e uma blusa polo verde. — Tia Martaaaa! Olha ali o
Josiah e a Ana quase transando no quintal!
Dei uma gargalhada entre os lábios do Josiah, que sorriu, virando o
meu rosto para ignorar o Ber, me fazendo encarar os seus olhos. Céus, eu
estava molhada demais.
— Já estou há quase um ano inteiro sem transar, Docinho. Não
aguento mais... — sussurrou.
— Eu vou pensar no que fazer, mas não vamos transar. Ainda não me
sinto segura.
— Pensa, amor... Meu pau vai explodir!
Gargalhando, me soltei de seus braços, dei a volta em seu corpo e fui
até Isabela e Bernardo, que nos encaravam, parados diante da porta branca
nos fundos da casa. Abracei a minha amiga. Estava, como sempre, enfiada
em calças jeans, casacos largos, mas pelo menos o moletom tinha estampa
de Natal. Eu sabia a razão de ela esconder tanto o corpo...
— Oi, Bostinha! — cumprimentei, beijando sua bochecha repleta de
blush. — Você veio!
— Eca! — Isa disse, fingindo sentir nojo do meu beijo. — Está me
beijando com essa boca de Josiah!
— É, e do jeito que eles andam se agarrando, talvez essa boca da Ana
ande pairando por locais mais “sombrios” — Bernardo zombou, causando
risadinhas em todos nós.
— Ah, você está com ciúmes, né? — perguntei, envolvendo a cintura
dele com os braços e enchendo seu rosto de beijinhos.
— Sai daqui! Cê nem tem o que eu gosto! — Bernardo zombou,
fingindo que me expulsaria, mas depois me abraçando e dando um beijinho
no topo da minha cabeça.
— Pare de agarrar a minha mulher, hein! — Josiah ameaçou, puxando-
me dos braços de seu amigo, unindo novamente as minhas costas ao seu
peito. — E, aí, boneca assassina? Tudo bem?
— Vai se foder! — Isa respondeu, fingindo uma carranca e cruzando
os braços. — Eu gostei da mulher em que você nos levou para fazer a
tatuagem, Jow. Estou com vontade de fazer outra, além da “bostinha” que
Ana e eu fizemos semana passada.
— Depois me lembra de mandar o número dela para você, Isabela.
Caminhamos em conjunto para a mesa. Josiah, sentado ao meu lado,
tentava beliscar as coisas, mas eu segurava os seus dedos, enquanto o
lembrava de esperar o restante das pessoas. Ele estava tão lindo, aceitou
colocar a camisa polo vermelha que a mãe comprou. Marta me pediu para
convencê-lo a usar, e finalmente tirar um pouco as roupas pretas que ele
amava... Funcionou, eu só pedi entre alguns beijos na noite anterior e meu
namorado aceitou. Foi mais fácil do que eu imaginei.
Começamos a falar sobre nossos planos para o próximo ano. Contei
sobre o sonho de estudar Letras, beliscando Josiah quando começou a
recitar um dos meus poemas sobre ele, zombando dos “cabelos negros que
me faziam sentir que beijava o próprio Hades”.
Enquanto Isabela tagarelava sobre a sua mãe não a deixar estudar
Música como ela queria, notei que Josiah e Bernardo estavam trocando
olhares estranhos. Perguntei a ambos o que estavam escondendo, mas meu
telefone vibrou na hora, e, quando olhei para a tela, tinha uma mensagem da
minha tia:
“Venha aqui!”
Dei um selinho no Jow, avisando-o que minha tia havia me chamado.
Meu namorado quis ir junto, mas o dispensei. Talvez ela não estivesse bem,
e ainda levar Josiah poderia deixá-la pior. Eu não sabia o que estava
acontecendo com a tia Marina. Até pensei em sugerir que fosse a uma
psicóloga, mas acabei desistindo de falar.
Avisei a Marta que iria em casa, e minha sogra insistiu que levasse um
pote com rabanadas para minha tia. Queria colocar um pouco de tudo da
ceia, mas eu não aceitei. Minha tia não comia quase nada, mas jamais
recusava os doces.
Fui caminhando pelas ruas do condomínio, com o pote nas mãos e
pensando no motivo pelo qual minha tia não disse o que queria na
mensagem. Ela não era de enviar mensagens, gostava de falar por ligação.
Só que Marina estava tão diferente, que nada surpreenderia mais.
Quando eu estava virando na nossa rua, vi um caminhão de mudança
enorme passando pela esquina, fazendo barulho com seu peso sobre o
calçamento. Que estranho... Quem se mudava em uma noite de Natal?
Quando abri o portão de casa, notei que algo estava anormal. Por que
estava tudo apagado? Ela sempre deixava a luz da varanda frontal acesa.
Senti vontade de recuar, mas, com medo de que algo errado tivesse
acontecido, entrei em casa correndo, acendendo a luz da sala e... Deixei o
pote com as rabanadas cair no chão.
Meu Deus!
Não!
Senti o mundo despencando... de novo!
— Não! — choraminguei, alisando o cabelo para trás com as duas
mãos, sentindo muitas coisas pesadas ao mesmo tempo.
A sala estava completamente vazia. Não havia mais nada dentro de
casa, nenhum móvel, nenhuma piedade, nenhuma consideração. Perambulei
pelos cômodos com o coração em frangalhos, chorando e sentindo que eu
realmente não merecia ser amada, que as pessoas não faziam questão de
mim.
Aquele caminhão de mudança era da minha tia. Como ela pôde ir
embora assim? Me segurando nas paredes, evitando que a pressão baixa me
fizesse cair, cheguei à cozinha e notei um envelope pardo em cima da pia.
Tentei ter forças para não desmaiar, enquanto pegava os documentos de
dentro do envelope.
Eram muitas coisas... Todos os meus documentos, a escritura da casa,
os dados da conta com a pensão por morte dos meus pais, os dados de uma
poupança com muito dinheiro, um documento que dizia que eu era
emancipada, onde minha tia havia me dado o direito de me cuidar como
uma adulta, de ser completamente responsável por mim mesma.
— Desgraçada! — gritei, atirando os papéis o mais longe possível.
Um envelope branco voou do emaranho de documentos, flutuando no
ar antes de cair no chão. Com ódio, caminhei até ele, o peguei nas mãos,
retirando a maldita carta com a letra dela e me desfazendo em lágrimas ao
ler.

Ana...
Me desculpe por fazer isso sem falar com você, mas está impossível
continuar vivendo dessa maneira. Eu não escolhi ter filhos, e cuidar de
você tem me matado. Eu olho para o seu rosto e vejo a minha irmã, e, antes
que eu cometa uma besteira com a minha vida, estou indo embora. Tem
uma poupança em seu nome no banco, com o dinheiro da venda da antiga
residência dos seus pais. Você pode usar esse dinheiro para remobiliar essa
casa. Estou deixando-a como um presente para você. Levo os móveis
porque era a herança da minha mãe, não conseguiria ir e deixá-los. Me
perdoe, Ana! Agora você tem ao Josiah, e sei que é forte o suficiente para
continuar vivendo sem mim.
Me perdoe,
Marina!

Não poderia ir e deixar os móveis, mas eu era algo que poderia ficar
para trás?
Peguei o telefone no seio, do lado esquerdo, e liguei para ela,
deslizando em prantos para o chão. Liguei por quase uma hora, sem que ela
se desse o trabalho de atender. Deitada sobre o chão da cozinha, chorando,
me senti um lixo, senti que no fim das contas eu deveria ter algo de errado.
Por que ninguém fazia questão de ficar comigo?
Como ela podia achar que ir embora sem me avisar, me largar como
um saco de lixo para trás, levar tudo da casa poderia ser desculpado com a
porra de uma carta? Com a porra de uma casa vazia?
“Como você pôde fazer isso comigo?”, gritei em sua caixa postal,
deixando uma mensagem atrás da outra.
Então era por isso que ela estava estranha.
Há quanto tempo minha tia planejava me abandonar e de um jeito tão
covarde? Ela levou todos os móveis da casa... Todos. Meu Deus! Quando
aquilo teria fim? Eu não ia aguentar! Eu não ia! Que ódiooooo! Comecei a
arranhar os meus próprios braços, tentando sentir algo pior do que a dor
dentro do meu peito, chorando, gritando, querendo morrer.
Quanto eu ainda poderia aguentar?
Por que a vida estava me destruindo?
Por que as pessoas que eu amava me deixavam?
Iam embora sem se despedir?
Gritei tanto, que minha garganta doeu. Quando a porta da casa se
abriu, achei que fosse ela, que fosse a minha tia, que tinha se arrependido.
Levantei a cabeça do chão, tonta, amassando a carta enquanto apertava a
vista embaçada pelas lágrimas.
— Você está bem? — Lucah perguntou, se abaixando vagarosamente a
minha frente, tentando segurar os meus ombros. Meu Deus! Morrendo de
medo, me afastei de seus dedos com cheiro amadeirado, rastejando para
trás. — Estava deixando uma entrega da minha mãe com a vizinha, e
ouvimos os seus gritos.
— Está tudo bem, minha filha? — Dona Helena perguntou, com sua
voz rouca, me encarando sob os óculos em meia lua, trajando uma camisola
florida. Me senti mais calma ao ver que não estava sozinha com aquele
homem perigoso. — Quer que eu chame o seu namorado?
— A minha tia... — sussurrei. — Ela... Ela...
— Achei que você soubesse que Marina estava indo embora. Vocês
brigaram? — a vizinha indagou, com o semblante piedoso me percorrendo.
— Ajude a menina a levantar, meu filho...
— Não! Ela me abandonou... Ela me abandonou, como os meus pais!
— gritei, me deixando cair sobre os braços daquele homem, enquanto ele
tentava me erguer.
— Calma! — Lucah disse, com a voz serena e calma ao me erguer do
chão. — Vou levar você para a casa da minha mãe!
— Não! O Jow vai brigar comigo. Não posso ficar perto, eu prometi, e
você é tarado... — falei rápido demais, tentando me afastar dele.
Eu estava surtando. Precisava respirar... Estava enlouquecendo.
— Tudo bem! Eu não sou tarado, mas ok, posso ligar para minha mãe
vir aqui te buscar, mas não posso deixar você sozinha, ainda mais nesse
estado.
Demorei muito tempo até finalmente conseguir me concentrar em algo
que não fosse os pensamentos gritando na minha cabeça. A sensação de ter
sido abandonada era exatamente a mesma que eu estava sentindo naquele
momento, a mesma de quando descobri que meus pais haviam morrido. Era
idêntica, a mesma sensação de ser quebrada, de ser ruim, de não merecer
ser amada. Era a certeza de que, no fim das contas, talvez tudo fosse culpa
minha.
Fiquei encarando aqueles olhos de um verde quase azul, com as
palavras embaralhadas na minha cabeça, com os olhos pesados, doendo, e
observei aquele rosto. Ele era tão bonito, com o rosto levemente mais fino
que o de Josiah, era tão loiro, quase tão alto quanto o irmão mais novo,
tinha uma barba bem leve sobre o maxilar e trajava roupas num estilo mais
social. Estava vestindo uma camisa de botões azul escura, solta sobre calças
jeans.
— Por que Josiah não é loiro? — pensei alto, encarando os fios
arrepiados do filho mais velho de Marta.
— Porque ele pinta o cabelo de preto. Josiah é um garoto revoltado...
— falou, parecendo conter carinho no tom de voz.
Fiquei olhando Lucah, obcecada em como ele tinha um jeito diferente
do que eu imaginei. Não parecia um monstro, pelo contrário, a voz dele era
tão calma, tão serena, que estava conseguindo me distrair.
— Chama o Jow, por favor! — pedi. — Dona Helena...
Me virei para a idosa, agarrando suas mãos ressecadas e enrugadas.
Ela cheirava a talco, e me dei conta de que estava preparada para dormir...
Sozinha, na noite de Natal... Ela realmente não tinha ninguém, nunca vi
filhos ou familiares em sua casa, e subitamente senti medo de ser sozinha
no futuro. Voltei a chorar, sentindo pena dela e de mim.
— Não quero ficar nessa casa! Preciso... Preciso sair daqui! —
murmurei, segurando os cabelos com as duas mãos.
— Venha, querida! Vamos até a minha casa, vou te dar algo para beber
enquanto esperamos.
Dona Helena pareceu triste ao encarar a casa vazia, me segurando pelo
ombro enquanto seguia junto a mim e Lucah para a sua casa. Quando me
sentei na varanda dela, sobre uma cadeira de madeira densa e escura, fiquei
encarando Lucah ao telefone. Ele parecia irritado, brigando com alguém do
outro lado. Pareceu estar falando com o meu namorado.
Eu estava apavorada. O que seria de mim? Eu não podia simplesmente
morar na casa do Josiah, obrigá-lo a ficar comigo de uma maneira tão séria.
Que desgraça! Que merda! Ainda estava com medo do meu namorado
brigar comigo porque falei com o Lucah.
Não sei quanto tempo demorou até ele chegar, mas fiquei tomando o
leite quente que Dona Helena me deu, pensando no que fazer, em como
seria destruidor tentar refazer a vida mais uma vez.
Eu só soube que era Josiah porque a BMW X4 branca parou cantando
pneu na frente da casa, enquanto ele descia do banco do motorista, com a
Marta o puxando pela gola da camisa e gritando para ele ficar calmo. Não
sabia que Jow dirigia...
— Que porra aconteceu, hein? — Josiah gritou, chutando o portão de
madeira ao entrar. — Por que você está perto dela? Eu não mandei você
ficar longe?
Chorei copiosamente ao ver a maneira como ele estava nervoso, a ira
no rosto dele ao encarar o irmão, a veia saltada no pescoço. Lucah estava
muito calmo, encarando o meu namorado com um olhar tranquilo. Eram
extremos, opostos em todos os sentidos...
— Calma, Jow! — pedi.
— Eu disse para você não fazer gracinhas, Josiah! O momento já está
grave demais! — Marta gritou, beliscando-o no braço, antes de vir até mim.
— Minha filha, eu não entendi nada... Sua tia foi embora?
Contei tudo a eles, como as coisas aconteceram, como cheguei e não
tinha mais nada dentro de casa, sobre a carta, os documentos e sobre a
vontade enorme que estava me dando de morrer. De acabar com tudo, de,
finalmente fazer a porra da dor dentro do meu peito ir embora.
— E, Jow, o seu irmão, ele nem fez nada... Não fez... Eu...eu que fiz.
Eu sempre faço, faço tudo errado. Eu só sei acabar com as pessoas, e então
elas fogem, se matam, somem e eu acabo sozinha.
— Shhh! — Josiah sussurrou, agachando na minha frente e
envolvendo as mãos no meu rosto, forçando-me a encará-lo. — Não é nada
disso. Não foi culpa sua. Você é uma garota de dezesseis anos, não tem a
menor responsabilidade sobre o que a Marina fez. — Ele sussurrou,
deixando beijos pelo meu rosto, depois me envolvendo em um abraço.
— Sim... Eu tenho, claro que tenho — falei, rápido demais, puxando a
camisa dele das costas, tentando afastá-lo. — Tudo começou com o Ben, e
terminou aqui, minha tia foi embora porque eu vim morar com ela, e ela...
Ela...
— Para, meu amor... Olha para mim! — ele implorou, novamente
segurando o meu rosto e posicionando-o para encará-lo. Fixei o meu olhar
em seu rosto, sentindo que o ar começava a escapar dos meus pulmões. —
Presta atenção, você é a pessoa mais doce e maravilhosa que já conheci. Eu
sou apaixonado por você e todo mundo que te conhece se apaixona pelo seu
jeito... Então, a sua tia foi embora de uma maneira muito, muito errada, mas
isso não teve a ver com você. Isso diz mais sobre ela. Fica calma!
Deixei minha cabeça cair no ombro dele, sentindo o seu cheiro,
tentando realmente focar em suas palavras. Mas...
— Dói tanto, Jow... Meu coração está doendo. Eu quero que essa dor
acabe.
— Eu sei que dói, mas eu estou aqui e vou fazer de tudo para que seu
coração não doa mais.
Ficamos muitos minutos abraçados, com ele agachado na minha frente,
e a minha cabeça pousada de lado em seu ombro. Ele tinha tanto, tanto
cheiro de segurança. A voz era tão serena, tão perfeita. Eu não o merecia...
Quando nos afastamos, notei o Josiah fixando o olhar em Lucah, trincando
o maxilar. Quando ia abrir a boca, Dona Helena entrou na frente do meu
cunhado:
— Seu irmão trouxe algumas comidas da ceia de vocês para mim,
como sua mãe pediu. Ele estava me contando do projeto da igreja em que
está envolvido, quando ouvimos Ana gritando. Pedi a Lucah que fosse ver...
— Dona Helena explicou, fazendo um pouco da ira do meu namorado ir
embora. Marta aproximou-se, puxando-me pelos pulsos para que eu ficasse
de pé, e me deu um abraço que demorou muito tempo, beijou a minha
cabeça e me fez uma promessa.
— Eu sempre estarei aqui para você! Sempre! Você é uma boa
menina... Não merece passar por isso.
Quando cheguei à casa de Josiah, consegui um tempo sozinha para ir
ao banheiro e ingeri cinco comprimidos de remédio para dormir que eu
tinha na gaveta do quarto do Josiah. Eu queria só apagar, só não sentir.
Estava doendo tanto, tanto... Por que ela me deixou? Por que não conversou
comigo? Por que não me disse que estava cansada? Por que não me
preparou para aquele momento?
Eu jamais a perdoaria por ter me abandonado, por ter escolhido me
deixar daquela maneira. Por fazer aquilo mesmo sabendo tudo o que eu
passei. Foi tão covarde, tão... cruel.
Eu me lembro do Josiah desesperado ao me ver embolando as palavras
ao arrombar a porta do banheiro, me erguendo do box do chuveiro, de
vários rostos ao meu redor, do Lucah tentando me forçar o vômito com os
dedos na minha garganta. Lembro-me dos braços do Josiah ao meu redor,
do Lucah dirigindo, e de só ver escuridão...
Acordei no dia seguinte, com dor de cabeça e em um quarto azulado
de hospital. Foi horrível ver meu namorado chorando, vê-lo me abraçar com
tanto medo no olhar. Ficou me pedindo para prometer que nunca mais faria
aquilo. Josiah estava com um olhar tão triste, repleto de olheiras, com o
rosto inchado.
“Você foi abandonada pela sua tia, mas eu estou aqui! Eu, a minha
mãe, a Isabela, o Bernardo, a Luana... Nós te amamos e não merecemos
perder você! Se você morrer, eu não vou aguentar! Não é justo me fazer
amá-la tanto, só para partir assim...”.
Foi horrível vê-lo sofrendo, e foi horrível a sensação de que não tinha
sido um sonho.
Eu fui abandonada... de novo!
E quantos abandonos eram necessários para uma pessoa não confiar
mais em ninguém?
Quantos abandonos eram necessários para alguém enlouquecer?
Capítulo 16

Porque nós éramos apenas crianças quando nos apaixonamos


Não sabíamos o que era. Eu não vou desistir de você dessa vez
Mas querida, apenas me beije devagar, seu coração é tudo o que eu tenho
E em seus olhos você está segurando o meu
Perfect - Ed Sheeran

Josiah Marquez
Dias atuais...

Deixei quando ela se encaixou bem acima das minhas pernas, de frente
para mim, envolvendo os braços ao redor do meu pescoço, com a bunda
sobre o meu pau. Percorri as mãos por seu quadril, sentindo aquele cheiro
que me fazia enlouquecer, querendo me afundar naquele pescoço que era
sempre um convite, subindo as mãos e alisando suas costas por cima do
tecido macio que envolvia sua pele suave, em uma carícia lenta, ainda
tentando pensar no que fazer. Aquele cheiro doce, aquele cabelo caindo
sobre os seios dela, roçando no meu rosto...
— Ana... — sussurrei, enquanto ela se mexia, arfando, começando sua
dança sedutora sobre mim.
Minha espinha se arrepiou, quando ela deslizou a ponta das unhas pela
minha nuca, e uma reação instantânea se acendeu no meu pau, fazendo-o
enrijecer.
— Shhhh! — pediu. — Eu só quero alívio... — disse, aproximando o
rosto e roçando os lábios nos meus.
Aquele cheiro de bala de maçã verde estava lá, escapando por sua
respiração quente sobre o meu rosto. Ana era uma mulher muito sedutora,
que ainda iria me enlouquecer, mas quem era eu para julgar a maneira como
ela buscava fugir da dor? De quantas formas diferentes tentei escapar dos
sentimentos conflituosos que tinha por ela? Um baseado aqui, bebidas e
festas ali, músicas altas, maços inteiros de cigarro, vozes perdidas em um
bar, peles desconhecias sobre a minha. Foram tantas as maneiras que eu
busquei de fugir do que sentia por aquela mulher na minha frente, e falhei
miseravelmente em todas. Afinal, nada me afastou dos braços onde eu jazia
perdido naquele exato momento. E, então, apenas me permiti afundar
naqueles lábios, os mesmos que eu jurei foder, morder, lamber, mas nunca
mais beijar. Tolo... Nenhum dos esforços que eu fazia para ser o cara mau
funcionavam quando se tratava daquela desgraçada.
Aqueles lábios macios, molhados e ávidos envolveram os meus, e era
como se eu estivesse sedento. Senti vontade de recuar, mas já estava
molhado demais para procurar abrigo da tempestade que era aquela mulher,
louca, intensa e apaixonante sobre mim. Eu a beijei, de leve, segurando a
raiva que me fazia ser bruto com ela, deixando nossas línguas se
encontrarem, percorrerem um caminho doce juntas, com o pau latejando
sobre a boceta que roçava sob o tecido, acima da minha calça jeans. Com
uma das mãos, cravei os dedos ao redor de um punhado de cabelo sedoso, e
com a outra, desci por suas costas, lentamente, até chegar ao seu quadril,
apertando-a com a força necessária para a fazer gemer sob os meus lábios.
Me permiti beber daquele gosto, daquele Docinho viciante e tão quebrado
sobre mim, sentindo que ela tinha o gosto da coisa mais perfeita do mundo.
Nosso beijo se tornou tão intenso, tão cheio de necessidade, tão cheio de...
saudade.
— Jow... — Ana sussurrou, entre os meus lábios. — Por que você tem
gosto de segurança?
Ignorei suas palavras, aquela voz repleta de tristeza. Senti raiva da
maneira como eu gostava dela, da maneira como poderia beijá-la por horas
a fio, do modo como eu a achava a mulher mais linda que já vi na vida. Eu
a calei com a boca, apertando-a entre os meus dedos, descendo a mão para
sua bunda redonda e cravando os dedos, sentindo a sua carne sob o tecido,
ouvindo-a arfar entre a minha língua, fechando os olhos e sentindo o
momento.
— Coloca a música com a qual você me pintou... — pediu, segurando
o meu rosto entre as duas mãos e beijando uma lágrima que eu sequer tinha
noção de ter deixado cair.
Porque, mesmo que eu a quisesse, aquilo doía tanto... Doía tocar
aquilo que perdi, com tanto carinho, relembrando a parte boa dos meus
sentimentos, de que eu era um homem fraco, o homem que tentei esconder
com todas as cores mais escuras que eu encontrei, o cara sensível que eu
nunca quis deixar ninguém ver, exceto ela, a mãe da minha filha. Ela estava
conseguindo quebrar as minhas defesas e me derrotar...
— Alexa, toque Coisa Linda!
Então fui inundado pelas lembranças da primeira vez em que a vi
seminua, de como foi lindo traçar cada pedacinho daquele corpo, de como
eu escondia aquele desenho até hoje e era um verdadeiro tesouro, de como
dormi chorando muitas e muitas vezes agarrado a ele.
E aquela música? Foi ela que deu o apelido a nossa filha... Antes
mesmo de ela nascer.
E sob aquela melodia, reconheci que estava vencido, que estava
deixando os sentimentos escondidos emergirem.
— Eu sempre amei você! — Ana sussurrou, enquanto eu podia sentir
que as lágrimas dela se misturavam as minhas. Não, Ana! Não diga isso...
— Me perdoa, por favor!
— Cale a boca! — supliquei.
Ana silenciou, com a testa pousada sobre a minha, soltando um
pequeno soluço. Ainda tinha tanta raiva morando sob a minha pele, me
machucando, querendo afastá-la, lembrando que nem milhões de pedidos
como aquele me fariam perdoar o que ela me tirou. Quando dei por mim,
ela gemia, porque não percebi a força com que puxava os seus cabelos
acima da nuca. Balancei a cabeça, dispersando os pensamentos ruins
enquanto suavizava a pegada.
— Vamos viver esse momento... — pedi, sofrendo. — Sem falar do
passado.
— Sim!
Desci as alças finas de sua roupa, deixando aquele ombro perfeito
desnudo. Depositei beijos por eles, enquanto deslizava mais a peça de roupa
para baixo. Havia um cheiro de flores tão suave sobre aquela pele. Meu pau
latejava, com o desejo ardendo e me fazendo ter vontade de apressar as
coisas. Mas respirei, enquanto soltava os ferros do sutiã preto e sem alças
que ela usava, encarando com desejo aqueles seios lindos, transformados
pela maternidade, com auréolas marrons tão convidativas, com trilhas
azuladas de veias os desenhando.
Percorri o caminho até aqueles olhos de um verde quase amarelado,
repletos de ansiedade, aflitos, necessitados... Envolvi os seus seios entre as
mãos, com uma pegada firme, juntando-os, enquanto voltava os lábios em
um beijo forte sobre os seus, mordendo, enquanto apertava aqueles
monumentos com as mãos, sentindo-os espirrando líquido sobre a minha
camiseta.
— Vou ficar triste quando esse leite acabar... — avisei, descendo a
boca e sugando o seu seio direito, sentindo o líquido branco que em breve
sumiria daqueles peitos inundando a minha língua. Ana tremeu sob o meu
toque, enquanto eu enlouquecia com o sabor daquilo.
Belisquei seu mamilo esquerdo entre o meu indicador e o polegar,
fazendo-a soltar um palavrão, quase gozando com a sensação gostosa que
era ter aquela mulher a minha mercê. A mulher que já foi minha, que
poderia voltar a ser...
Ouvia a música tocando ao fundo, bem baixinha, com a letra perfeita
para descrevê-la, com o corpo que a maternidade só deixou ainda mais
maravilhoso. Deslizei o traje para fora do seu corpo, com ela se movendo
para facilitar o movimento, enquanto não perdia tempo ao me ajudar a
soltar a minha camiseta preta.
Ana se afastou o suficiente para me permitir ficar nu, exatamente
como ela estava, mas grudando a boca à minha, deixando-me doido para
enterrar-me naquela boceta rosada. Mas seria do meu jeito, e ela pediu para
fazer doer, e, por mais que não quisesse deixar tão doloroso, ainda era o
cara cujo pau endurecia ao vê-la chorando.
Segurei-a pelos pulsos, afastando-a de leve, apenas para poder
observar sem pressa aquele corpo inteiramente nu. Não havia qualquer
sombra de timidez nela, e isso me fascinava. Ana se entregou e confiou em
mim completamente, desde a primeira vez em que a deflorei. Quando eu a
comi pela primeira vez, ainda havia muito receio, afinal, ela tinha apenas
dezesseis anos. Mas, da segunda em diante, já havia outro comportamento,
uma entrega por inteiro, ousadia, e ela curtia o meu jeito de foder: fazer o
mais forte possível, o mais pesado, o mais hard que conseguíssemos.
Observei seu rosto, bem mais fino do que quando a conheci, afinal,
após a Coisinha, Ana emagreceu muito. Os seios estavam ainda maiores do
que antes de terminarmos o namoro, a barriga estava diferente, com estrias,
e havia uma cicatriz acima da vagina, uma linha arroxeada, que imagino
que tenha sido por onde nossa filha saiu.
— Você continua a coisa mais linda, Ana! — elogiei, abaixando-me
em sua frente e beijando toda a extensão da cicatriz na barriga.
Subi depositando beijos por todo o seu peito, chegando por fim a um
beijo apaixonado em sua boca, fazendo Ana arfar de desejo e algo mais...
Deixei nossas línguas em uma valsa por um bom tempo, alisando e
apertando todas as partes do seu corpo em que meus dedos alcançavam, e,
quando terminei de beijá-la, fiquei muito animado em ver o quanto de
paixão havia naquele olhar submisso que a minha ex me dedicou.
— Ajoelhe-se, Docinho! — mandei, enquanto alisava sua bochecha
direita com o dorso do indicador.
Observei aquele olhar assustado e ao mesmo tempo fascinado que
minha ex-namorada dedicou ao meu pau. Aquela deusa lentamente se
ajoelhou, apoiando a palma das duas mãos no chão a minha frente,
deixando o cabelo cair em cascata sobre o lado direito do corpo, sem
desviar o olhar do meu. Não havia vergonha ali, nenhuma tentativa de
esconder a mão, e senti vontade de beijá-la só por vê-la tão entregue.
— Agora, Ana... — disse, enrolando o punho direito em seu cabelo,
dando uma volta com eles em meu pulso e posicionando a cabeça dela para
trás, para olhar bem para mim. Alisei meu pau com a mão contrária,
sentindo que ele iria explodir de tanto tesão, posicionando-o na frente dos
lábios dela. — Chupa, e já relaxe bem a garganta!
Ana era uma cachorra, deliciosa, e que sabia o que fazer para me
enlouquecer. Ela molhou os lábios, sem desviar um segundo sequer dos
meus olhos, e, antes que pudesse abocanhar o meu pau, soltei o pênis e
deixei um tapa forte em uma de suas bochechas. Ela quase caiu, mas o
puxão firme em seu cabelo a segurou. Com os olhos cheios de lágrimas e a
pele avermelhada no local onde bati, Ana sorriu de maneira desafiadora e
lambeu a cabeça do meu pau. Dei um leve sorriso, sentindo a língua macia
dela me fazendo tremer de desejo.
Minha ex-namorada sugou a cabeça do meu pau, me encarando a cada
movimento, enlouquecendo-me. Ana deslizou a boca quente por meu
membro, indo até a metade e recuando, sugando enquanto deslizava os
lábios macios pela minha extensão. Eu estava fissurado de desejo com
aquela cena, com a sensação daquela boca gostosa me engolindo, enquanto
retirava o meu pênis da boca e cuspia sobre ele, para depois engolir
novamente. Ana mamava como se estivesse com fome, fazendo barulho
quando os lábios escorregavam por minha extensão. Tentei me segurar,
tentei deixar que ela chegasse até o fim sozinha, mas eu era um cretino e
tinha consciência disso. Ainda com o cabelo dela enrolado ao redor da mão,
envolvi a outra na cabeça daquele Docinho, vendo como ela se retesou,
percebendo as minhas intenções.
Vê-la com os olhos arregalados, toda dura, assustada e com minha pica
dentro da boca fez o meu lado sádico acordar por inteiro. Empurrei a sua
cabeça, forçando-a a engasgar com o meu pau, vendo a maneira como ela
ficava vermelha, ouvindo aquele barulho dela sufocando com minha pica
batendo no fundo da garganta, que era quase uma música para os meus
ouvidos.
Deixei que ela finalmente respirasse quando Ana deu um tranco para
trás com a cabeça. Gemi enquanto via a quantidade de baba que escorria
dos lábios inchados para o queixo, enlouquecendo com uma teia pegajosa
que dançava pelo ar, indo do meu pau até a sua boca.
— Puta que pariu, Ana! — grunhi.
Estremeci quando ela colocou a língua inteira para fora, me desafiando
com um sorriso. Que visão! Bati com o pênis na língua dela, ficando na
ponta do pé de tanto tesão, com o pau queimando, sentido a pressão do
gozo começar a dar as caras. Antes que eu jorrasse porra naquela boca, a
puxei pelos cabelos, para que se levantasse.
Ana ficou de pé, e abaixei até seus lábios, beijando-a, sentindo meu
gosto, com o pau latejando e quase gozando só com aquela junção de
línguas, com aquele beijo frenético e babado.
Deslizei a mão direita pelo corpo daquela deusa, enquanto soltava os
seus lábios e descia, beijando, lascando chupões pesados por aquele
pescoço, por aquela pele que nunca deveria ter deixado de ser minha.
Queria marcá-la, deixá-la cheia de destroços desse momento, cheia de
lembretes de que foi minha, de que a possuí e do quanto foi bom.
Ana gemia sob o meu toque possessivo por seu corpo pequeno,
enquanto meus dedos pousavam no poço úmido que era aquele grelinho
delicado...
— Eu sabia que você já estava encharcada esperando o meu pau... —
sussurrei, percorrendo bem lentamente a ponta do indicador esquerdo por
toda aquela boceta pequena quase chegando até o cu, então voltei até seu
clitóris, enlouquecendo com a maneira como ela estava completamente
molhada. — Agora, me diz, Docinho... Posso te comer sem camisinha? Não
teremos surpresas, não é?
— Estou preparada para você jogar tudo dentro de mim. Pode fazer o
que quiser, e não teremos surpresas novamente!
Nem foi preciso dizer mais nada! Eu a virei, deixando-a despencar de
quatro sobre o sofá. E a cena daquela boceta aberta, exposta, pronta para
mim, me deixou doido. Fiquei encarando aquela bunda redonda,
completamente empinada, aquele brilho molhado desfilando naquela vagina
rosada.
Soltei um enorme tapa naquele traseiro, antes de me abaixar e encaixar
o pau na entrada dela, sentindo a maneira como estava louca. Ouvia a
respiração ofegante da Ana, enquanto deslizava a cabeça do pau pela parte
de fora daquela boceta, para cima e para baixo, roçando, friccionando.
Minha boca salivava, repleta de vontade de provar o gosto doce dela, mas,
como fugiu da última vez, não perderia a chance de fodê-la daquela vez.
Lentamente fui entrando, forçando espaço por sua bocetinha. Porra!
Era tão apertada e quente quanto eu me lembrava. Gemi, mordendo o lábio,
enquanto apertava tanto a bunda dela, que sentia a unha se enterrando em
sua pele.
— Que porra de boceta apertada! — grunhi, rouco, sofrendo com a
maneira como meu pau estava sendo esfolado naquele buraquinho quente.
Ana soluçou, com uma mistura de dor e alívio. Continuei deslizando o
pau para dentro dela, até sentir encostar bem no fundo, vendo como Ana se
mexeu, desconfortável.
Eu ainda iria para o inferno, porque sentir que estava doendo nela me
fazia ter vontade de ir mais fundo... Mas me contive. Deslizei para fora e
lentamente coloquei só a metade do pau para dentro, sentindo-a me
apertando, me fazendo ter um ímpeto de gozo, que, com esforço, consegui
segurar. Tinha esquecido o dom especial da Ana, a maneira como aquela
bocetinha minúscula enforcava o meu pau.
Continuei o vai e vem lento, pegando novamente aquele cabelo sedoso
entre uma das mãos, enquanto alisava aquela bunda perfeita. A visão
daquele rabo redondo exposto, marcado pelas minhas mãos, fazia a minha
piroca latejar, envolta por aquela boceta quente.
— Que bundinha deliciosa, Docinho! — elogiei, acariciando com o
dedão o seu cuzinho pequeno. — Ainda vou realizar o desejo de comer esse
cu.
— Não! — Ana gemeu, agarrando o sofá, me fazendo surtar de tesão
com a maneira em que ela enfiava aquelas unhas enormes no estofado.
— Me dá esses bracinhos aqui! — ordenei, puxando-os para as costas,
unindo os dois pulsos acima do rabo bonito, deixando a mais ereta,
enquanto estocava segurando o seu quadril com uma mão, e os seus pulsos
com a outra.
Comecei a meter rápido, sentindo a ponta do meu pau batendo no
fundo da sua bocetinha, fazendo a Ana soltar um gemido intenso com a
primeira estocada mais forte em sua boceta. Cravei a unha em seu quadril,
sentindo o pau começar a latejar com os movimentos, pulsando enquanto
ela gemia cada vez mais forte, conforme eu a comia.
Deixei tapas sobre sua bunda, enquanto Ana começava a tremer sob o
meu corpo, com a boceta envolvendo cada vez mais forte o meu pau. E
quando gozou, fiz uma força absurda para não derramar o meu sêmen
naquele momento, cerrando os dentes. Ana gritava, enlouquecida, tentando
fugir da minha piroca, fechando as pernas, completamente suada, enquanto
eu continuava estocando fundo dentro dela, sem pena, até que amolecesse
completamente embaixo de mim.
— Jow... — murmurou, enquanto eu lentamente saía de dentro dela. —
Que... delícia...
Dei um sorrisinho, com o coração batendo forte enquanto eu abaixava
e, faminto, bebia todo o gozo que escorria de sua vagina. Aquele gosto era a
coisa mais maravilhosa do mundo, e eu poderia ficar ali, chupando aquela
boceta por muito tempo, mas ainda tinha que gozar, e queria que fosse na
minha cama.
Virei a Ana de frente, enlouquecido com a maneira como estava mole
nos meus braços, enquanto eu a puxava, encaixando-a no meu colo, de
frente, enfiando novamente o pau nela. Ela gemia baixinho, no mundo da
lua, enquanto eu a levava para o quarto. Ana envolveu os braços ao meu
redor, completamente entregue ao que eu quisesse fazer com ela.
Pousei de costas sobre a cama, com a minha ex encaixada na minha
piroca, na posição exata que eu idealizei, em que me masturbei várias vezes
imaginando a comer.
— Agora, você fode o meu pau, e eu vou gozar olhando esse rostinho
lindo!
Ana estava completamente anestesiada, lenta, ainda acordando do
orgasmo, enquanto se mexia devagar sobre o meu membro. Olhar para ela
ali, montada sobre mim, nua e com o corpo repleto de marcas... Marcas
minhas naquela pele, isso me fez latejar. Ela rebolando sobre o meu pau,
acordando cada vez mais, se mexendo cada vez mais rápido enquanto
cravava as unhas no meu peito, me fez começar a pulsar. Minhas pernas
tremiam, e eu começava a ficar cada vez mais acelerado. Meu coração
estava na boca, enquanto eu sentia o gozo chegando cada vez mais perto.
Deslizei a mão para cima, envolvendo-a no pescoço daquela mulher
deliciosa, daquele pedaço de perdição montado sobre mim, enquanto Ana
apertava a boceta ao redor da minha piroca, quicando. E quando eu urrei,
me derramando inteiro dentro dela, despejando tudo naquela boceta
deliciosa, Ana gemeu de uma maneira arrastada, deslizando para fora da
minha pica e me molhando completamente ao dar um daqueles gozos para
fora que só ela me dava, me presenteando com aquele jorro que molhava a
porra toda.
Foi de outro mundo vê-la tombando o corpo sobre o meu peito, e
fechei os olhos para tentar controlar as sensações, a respiração, o coração
que parecia que explodiria. Quando encarei aquela cena, era o paraíso, com
minha ex-namorada montada sobre a minha barriga, amolecida, com meu
corpo e a cama repletos do jato de gozo daquela boceta...
●●●
Ficamos muito tempo deitados naquela posição, com a boceta da Ana
molhada sobre a minha barriga, a cama abaixo de nós completamente
inundada pelo gozo dela, aquele cheiro delicioso dela em todos os cantos.
Puta que pariu!
— Você foi maravilhosa, Docinho — elogiei, pousando o lábio no topo
de sua cabeça, envolvendo-a em meus braços, puxando-a para deitar a
cabeça no meu peito.
— Isso... quase... me... matou... — ela soluçou, com a respiração
entrecortada, completamente ofegante.
Quando por fim controlei a respiração, arrastei a Ana para um banho
quente, muito animado em poder ensaboar cada pedacinho dela. Foi tão
excitante passar sabão naqueles peitos perfeitos, que acabei me animando e
a comendo de novo... e de novo... e de novo.
Passei a manhã fodendo e metendo naquela boceta, beijando-a,
deixando-a gemer o meu nome por muito tempo. E quando Ana por fim
adormeceu, deitada de conchinha comigo, após eu trocar os lençóis, fiquei
beijando cada um de seus dedinhos deformados e pensando em como eu
deixaria um monstro sair quando descobrisse quem foi o desgraçado que fez
aquela brincadeira de mau gosto com ela.
Se fosse o meu pai, eu daria um soco nele, mas, agora, do outro lado
do rosto. Se Cristian não havia aprendido a não se meter com a minha
Ana... Ele aprenderia de uma vez por todas.
Capítulo 17

Sinto muito que você tenha me visto quebrar


Mas fique comigo, não se afaste
Deus, eu gostaria que você me segurasse perto
Não pense que eu não sinto o mesmo
Fragile - Gnash (feat. Wrenn)

Ana Oliveira
Há seis anos...

O tempo realmente podia ser um bom remédio, porque quase um mês


se passou desde que minha tia havia partido, e aos poucos eu ficava bem.
Ainda existia um buraco dentro do meu peito, sempre existiria, o espaço
arrancado onde ficava a minha família. Mas as novas pessoas que ganhei
foram preenchendo a lacuna, se empenhando em me mostrar que eu era
amada.
Marta estava cada vez mais próxima a mim. Desde que eu havia
deixado o hospital, ela se empenhava em tentar me deixar feliz, preparando
minhas sobremesas favoritas, abraçando-me às vezes do nada, e apelidara-
me carinhosamente de “norinha”. Era nítida a sua preocupação comigo.
Algumas sombras persistentes na minha cabeça sussurravam que seu
sentimento por mim não passava de pena, mas minha mente consciente
passou a pensar que eu podia, sim, ser amada, passou a acreditar que dava
para seguir em frente.
Assim que saí do hospital, dois dias após minha tia ter ido embora,
Marta me levou junto a Josiah para a casa deles. Eu havia ficado sem jeito
naquela residência pela primeira vez. Estava me sentindo um estorvo, e pedi
ao meu namorado para ir comigo a uma loja de móveis, para voltar a morar
na casa que tinha passado a ser inteiramente minha, mobilhando-a. Fiquei
muito brava por ele ter contado a mãe sobre o meu pedido, contando com a
ajuda dela para me persuadir a ficar na casa deles até completar dezoito
anos. Minha sogra segurou o meu rosto e me lembrou da promessa que
havia feito, enquanto eu chorava sobre a cama do Josiah, ainda abatida
porque não conseguia comer. Ela dizia que jamais me deixaria sozinha,
independentemente de qualquer coisa, de quaisquer circunstâncias. Então
eu decidi ficar...
Isabela não foi me visitar durante a internação, mas havia me dito que
passaria para me ver depois que eu estivesse em casa, por mensagens via
WhatsApp. Bernardo foi ao hospital, me encheu de beijos na cabeça e disse
para eu nunca mais fazer aquilo. Ele também me contou que nossa amiga
teve gatilho com a noite do Natal, afinal, ela já tinha feito a mesma coisa
quando tinha quinze anos, após ser acusada de bullying na escola e ter sido
agredida em casa, algo que somente Ber e eu sabíamos.
Mesmo que meu namorado me surpreendesse com flores e incontáveis
gestos românticos, eu ainda tinha um rastro de tristeza dentro do meu corpo,
rastejando lentamente sob a minha pele. Passei a conversar com uma
psicóloga frequentemente, uma mulher chamada Rita. A profissional foi
indicada por minha psiquiatra, que havia me diagnosticado com Estresse
pós-traumático. Jow me levou à consulta com a médica logo após o Natal, e
a médica resolveu me prescrever um antidepressivo novo para uso diário.
Ver a maneira como os olhos dele se encheram de lágrimas durante o
atendimento me fez desabar.
Queria ficar melhor, eu queria ser mais feliz, dar alegria a ele. Mas
depois de ter perdido a minha tia, tudo estava mais cinza, mais pesado,
como se sustentar um sorriso pesasse uma tonelada.
Eu estava sentada na escrivaninha de Josiah, com um caderno de vinte
matérias repleto de poemas a minha frente. Havia o escrito inteiro somente
no último mês, com linhas e mais linhas de sentimentos densos, palavras
repletas de significado. Fugas Perfeitas da Dor era o meu favorito:

A dor é um sentimento complexo.


Ela pode ser orgânica ou emocional.
A dor pode ser passional.
Pode ser um retrato do mal.

Tudo no meu corpo dói.


O meu estômago que eu mesma machuquei.
O meu coração...
Os pulsos que sequer toquei.

E, às vezes, eu olhava para o escuro.


Costumava encarar o limbo,
Encarar o rei perfeito do meu submundo
Perguntando se poderia ser a fuga de meus sentimentos obscuros.

Seriam ideações perfeitas de fugir da dor?


Seriam pensamentos estranhos da minha mente insana?
Ou realmente eu poderia escapar se o tivesse na cama?
Era amor... e era a fuga perfeita da dor.

Fiquei encarando o poema, pensando que eu acordava todos os dias


com Josiah excitado de conchinha comigo. Ficava divagando se já não
estaria na hora de finalmente me abrir, de provar a teoria de que o sexo de
verdade poderia me fazer realmente não sentir nenhuma dor emocional...
Tê-lo sobre a minha boca, como passei a ter no último mês, costumava
me fazer não pensar em nada. Eu só sentia o gosto do líquido que ele
jorrava na minha garganta, que no começo estranhei, mas que aprendi a
adorar. E quando era o contrário, com os lábios dele deixando carícias nas
partes baixas do meu corpo, me devorando, eu costumava ir a um lugar
muito, muito repleto de fogo e alívio, e então minha mente ficava
completamente silenciada, e os pensamentos horríveis não me perseguiam.
Quando ele beijava os meus seios, ou mordia, ou me estapeava no rosto
comigo de joelhos diante de seu tamanho, aquilo era muito, muito bom.
Marta ficou chocada a primeira vez que me viu repleta de chupões no
pescoço e marcas no rosto que sequer deixavam dúvidas de serem dos
dedos do filho. Minha sogra não gostou, disse que era feio ficar marcada
daquela maneira, mas que não nos impediria de fazer o que quiséssemos.
Lembro que ri quando a mãe do meu namorado disse que os pais não
conseguiram segurar sua virgindade, e que não seria ela a me impedir de
perder a minha. Me orientou sobre camisinha e remédio. Fiquei com muita
vergonha de falar sobre o assunto com ela, dizendo que já tinha ido ao
ginecologista com a Luana e havia começado a tomar pílula.
Eu havia tomado uma decisão: seria naquela noite que finalmente nós
daríamos um passo além. E eu descobriria se poderia ficar ainda mais
tempo sem sucumbir ao caos que eram meus sentimentos depressivos.
Jow era tão perfeito e sensível... Ele tinha um lado muito safado e
animalesco, mas quando não envolvia sexo, Josiah era um cara muito
amoroso. Meu namorado ficava triste quando percebia que eu estava
perdida em pensamentos, e foi muito marcante o dia que me ajudou a
folhear finalmente as páginas do livro que Isabela me emprestara na escola,
muitos meses antes, que eu sequer havia conseguido abrir.
Josiah me encontrou encarando o objeto, com os olhos repletos de
lágrimas, e perdida nos pensamentos da morte do meu irmão. Eu nunca
mais havia conseguido ler nada. Adquiri aversão a livros, mesmo que ainda
conseguisse criar poemas, e às vezes até mesmo contos românticos.
Eu tinha uma estante repleta de livros na casa dos meus pais, mas pedi
para Marina doar depois do incidente.
Josiah teve uma delicadeza tão perfeita ao perceber aquele momento
de dor, se esgueirando atrás de mim, apoiando seus dedos unidos aos meus
ao redor do livro. Quando viu que eu não conseguiria folhear, porque me
tremia inteira e soluçava, me puxou para deitar de costas sobre o seu peito e
leu em voz alta para mim.
Meu namorado passou a ler um trecho de Trono de Vidro toda noite, e
fiquei encantada com a história, enquanto via aquela boca vermelha
sussurrando as palavras para mim sob a luz amarelada de seu abajur,
envolta naqueles braços imensos, ouvindo aquela voz cálida, acolhedora,
sentindo que ali era o meu lugar seguro no mundo.
O que Deus queria? Me cravava estacas com dor e perdas, e depois
presenteava-me com um príncipe em um castelo preto, que assustava e
apaixonava à primeira vista? Me dando uma verdadeira alma-gêmea? Ou
ele estava brincando comigo, me permitindo ter algo precioso novamente,
para depois arrancar?
Eu morria de medo de perder o Jow. Era um medo avassalador, porque,
no fundo do meu coração, tinha um presságio de que algo ruim aconteceria
e arrancaria o amor da minha vida dos meus braços.
Porque a maior verdade que eu tinha na vida, a maior certeza, era de
que nada bom demais vinha sem um preço. Eu poderia ler o romance mais
lindo da vida inteira, me apaixonar por um casal que amava e odiava com a
mesma força de um vendaval, mas o preço eram cachinhos marrons
boiando na piscina. Eu poderia ter ganhado um garoto lindo, apaixonante e
apaixonado, mas temia que o preço daquilo fosse um coração partido
depois.
Eu costumava ficar agarrada a ele quando tinha aqueles pensamentos.
Jow sempre entendia que havia uma tempestade com raios dentro de mim, e
se aproximava para me dar carinho... e outras coisas.
“São suas sombras em sua cabeça, Ana”, Rita costumava dizer, me
lembrando que, diante de todas as minhas perdas, era normal morrer de
medo de perder mais pessoas.
Era uma segunda-feira, e Jow tinha ido à casa do Bernardo. Disse que
tinha algo para conversar com o amigo, e aproveitei que estava perto da
hora em que ele havia dito que voltaria, para me arrumar, com a ideia fixa
do que fazer. Tomei um banho demorado, me depilei, deixando apenas a
trilha de pelinhos claros que ele gostava lá embaixo, a trilha que Josiah
amava mordiscar. Me envolvi em uma camisola escura, escovei os cabelos e
fiz um babyliss para deixar as ondas mais marcantes e sexy, me maquiei,
besuntei o corpo com hidrante com cheiro floral e fiquei esperando-o
chegar.
Quando o amor da minha vida adentrou o quarto, impregnando o
ambiente com sua presença marcante, ficou surpreso ao me ver de pernas
cruzadas em sua cadeira, de costas para a escrivaninha. Notei que o
semblante dele estava diferente, muito sério, até... preocupado. Havia uma
leve tensão em seu maxilar, que ostentava uma barba muito leve. Jow
estava tenso, estacado abaixo do batente da porta, todo vestido de preto,
como de costume. Ele era o deus do meu submundo... E eu comeria quantos
frutos proibidos fossem necessários para ser sua.
— Oi, Docinho! — cumprimentou, encarando o meu corpo envolto em
uma camisola preta, com a parte dos seios em renda, e o restante em tule,
cobrindo apenas o começo das coxas, com uma fenda na frente que deixava
a barriga a mostra. — Não está usando nada embaixo desse fiapinho de
roupa!
— Oi, amor! — disse, ficando de pé e indo até ele. — Não, eu não
estou...
Fiquei na ponta dos pés e toquei os seus lábios com os meus,
envolvendo os braços ao redor de seu pescoço, sentindo seu perfume
delicioso, deslizando minha língua calmamente sobre a maciez aveludada
da sua. Ele arfava durante o beijo, apertando as mãos ao redor do meu
corpo, e eu não precisei dizer nada para fazê-lo entender o que eu estava
oferecendo.
As preliminares foram maravilhosas, e, quando ele finalmente deslizou
para dentro de mim e uniu os nossos corpos, a dor foi muito forte, me
fazendo morder o ombro dele para sufocar o grito que certamente assustaria
a casa inteira.
— Shhhh! Vai melhorar... — Josiah sussurrou, beijando minha orelha
enquanto continuava me corrompendo, tomando por inteiro a parte do meu
corpo que eu ainda não o havia dado.
E, com calma, ele foi fazendo ficar melhor, me provocando, me
fazendo gostar de recebê-lo. Meu namorado se empurrava para dentro de
mim e me provava com a boca, pelo pescoço, pelos seios, falando
besteirinhas em meu ouvido, me apalpando, e aquilo foi ficando tão
perfeito, que cheguei ao ápice com ele dentro do meu corpo.
— Agora, sim... — ele murmurou, quando se derramou dentro de mim,
arfando e tremendo sobre o meu corpo. — Agora você é inteiramente
minha! A minha Ana...
●●●
Depois de Josiah ter me devorado por mais duas vezes na manhã
seguinte, fazendo-me ficar cada vez mais confortável, ousada e insaciável
sobre seu corpo enorme, eu fui ajudar a Marta nas tarefas de casa.
A teoria estava muito correta. O sexo era uma bela maneira de me
fazer não pensar em nada, de... só calar o mundo, de focar apenas na única
coisa boa que ainda me restava. Sem falar que a maneira de chegar ao ápice
com Josiah por inteiro era bem mais intenso do que apenas com dedos ou
língua.
A verdade é que conheci compulsoriamente as partes mais imperfeitas
da vida, e, então, quando olhei finalmente para algo que não doía, eu
consegui ver todas as nuances de beleza, todos os tons mais lindos da
perfeição que era o meu namorado, mesmo que fosse completamente
sombrio.
A faxineira estava de folga naquela semana, e minha sogra não gostava
de mais ninguém pela casa. Estava varrendo a cozinha, quando cheguei e
comecei a me servir com uma caneca de café. Céus! Marta fazia o melhor
café coado do mundo, com a dose perfeita para não ficar ralo, e nem de
longe era forte demais.
— Isso, sim, faz um dia começar bem! — disse, sorrindo para ela ao
exibir a caneca de café em um brinde imaginário.
Ela me olhou, com aquele rosto ostentando uma maquiagem leve,
parecendo pesarosa. Era engraçado vê-la toda arrumada com um
conjuntinho monocromático rosa pálido evolvendo-lhe corpo, ao mesmo
tempo que um avental preto estava amarrado em seu pescoço e quadril.
— Isso e o meu filho, né? — zombou, gargalhando ao me ver corar. —
Bom dia, querida! Josiah conversou com você?
Queimei a língua com o café, imaginando a que “tipo” de conversa
estava se referindo. Ela sorriu para mim, balançando a cabeça enquanto
colocava a vassoura de pelos encostada na mesa.
— Não “essa conversa”, porque eu ouvi vocês, assim como Luana...
— ela disse, gargalhando, me fazendo virar quase um tomate. — Pela sua
reação, vocês não conversaram ainda. Então, preciso te pedir que ouça o
meu filho com atenção e que entenda que essa decisão não foi dele, porque
eu o conheço como cada linha da minha mão.
— Do que está falando? — indaguei, pousando a caneca sobre a
bancada da pia, com o coração começando a bater muito forte. O que tinha
acontecido para que Marta estivesse usando aquele tom tão cauteloso? O
que o Jow não estava me contando? — Eu não entendo...
— Eu só estou dizendo que meu filho vai contar uma coisa bem séria,
e estou te preparando, porque sei que você é tão “difícil” quanto o meu
pequeno Josiah. Então, tente entender o que ele vai dizer, porque eu sei que
não foi ele quem decidiu isso...
Só podia ser uma grande merda, porque Marta não era de se meter no
nosso relacionamento. O que caralho estava acontecendo? Dei as costas a
ela, irritada, com milhares de possibilidades pairando na minha cabeça,
enquanto pisava duro até o quarto. Jow estava saindo do banho, com uma
toalha envolta do quadril e com outra secava o cabelo.
Será que vai terminar comigo?
Será que não me quer mais?
Não! Ele me ama...
— O que você não está me contando? — perguntei, cruzando os
braços, com um barulho agudo em meus ouvidos, o coração quase
escapulindo pela boca e um nó preso a garganta.
Eu estava com um baby-doll de cetim vermelho, com o cabelo
despenteado em um coque ao redor da cabeça, mas Josiah, mesmo que
parecendo assustado, ainda me encarava como se eu fosse linda.
— Minha mãe já abriu a boca? — desdenhou, passando por mim e
fechando a porta. — Planejei chamá-la para conversar, só não sabia como
fazer isso...
— Fala logo, Josiah! — ordenei. — Que merda, estou... assustada!
O que era tão sério que o fazia ter medo de dizer? Por que eu sentia
que, quando ele abrisse a boca, reduziria meu coração a pedaços? Notei
meus olhos enchendo de lágrimas, enquanto ele ficava muito sério e se
recostava na cadeira de couro, em frente à escrivaninha. A janela de vidro à
frente estava com as cortinas abertas, fazendo a luz iluminar os seus
cabelos. Havia pequenos pontos loiros dando as caras na raiz, criando um
pequeno contraste com a escuridão do restante dos fios.
— Fiz uma prova com o Bernardo...
O quê? Todo aquele mistério por uma prova?
— Prova? Tipo... um exame? — indaguei, confusa, me sentando na
cama e sentindo que minha pressão estava despencando.
— Sim... — Ele respirou fundo e sacou um cigarro da gaveta de seu
gabinete. Acendeu o fumo e depois tragou, enquanto balançava a perna
direita para cima e para baixo. — Eu te amo, Ana!
“Fiz uma prova com Bernardo...”.
A compreensão foi como um buraco negro, me sugando, me
destroçando, fazendo-me despencar. “Amiga, eu passei na prova para a
Escola de Sargentos!”, Bernardo gritou dias atrás. Eu estava tão na minha
ajudando minha sogra a colocar a mesa de jantar, que nem dei trela ao olhar
de repreensão do Josiah a ele. “Vou pegar um monte de mineiro naquele
lugar...”, ele continuou, fazendo uma reboladinha em comemoração.
— Então você fez a prova para Sargento e vai junto com o Ber para
aquela Escola? — questionei, com um sussurro, sentindo uma lágrima
escorrendo pela bochecha.
— Sim, Docinho... Fui aprovado, e em dois dias tenho que estar em
Três Corações, em Minas Gerais — contou, sem ter coragem de me encarar
nos olhos.
— Estamos há quase um ano juntos, e não achou que deveria
compartilhar isso comigo? Podemos dividir a cama, mas não os planos?
Você sempre me disse que queria estudar Desenho, Josiah! — acusei,
sentindo o rosto ser tomado pelas lágrimas. — Isso era um sonho seu para o
futuro? Ser um Sargento, ou só está seguindo o Ber?
Eu estava muito triste, a tal ponto de que falar era difícil, era pesado, e
minhas palavras saíam arrastadas, lentas, trêmulas pelas lágrimas. Fiquei
pensando em tantas consequências daquela confissão... Mas, mesmo que
meu coração estivesse esmagado, eu ainda estava fazendo força para não
ser uma pessoa tóxica, que minava um sonho do homem que eu amava.
Se era aquele o desejo dele, se era sua decisão, eu seria forte.
— Eu não contei antes porque esperava não precisar ir. E o Bernardo é
quem está me seguindo, Ana. Eu precisei fazer uma escolha... — ele disse,
caminhando até mim, me puxando pelos pulsos para ficar de pé,
envolvendo o meu rosto entre as mãos imensas, beijando cada trilha de
lágrima das minhas bochechas. — Eu escolhi você!
— Não estou entendendo, amor... — choraminguei, encarando os
olhos verdes repletos de dor e lágrimas do meu namorado. — Como pode
dizer que escolheu a mim?
— Eu só estou indo, porque, quando eu finalmente me formar naquela
merda, quando eu finalmente cumprir as exigências que estão me fazendo,
eu vou voltar e me casar com você!
Balancei a cabeça, assentindo, chorando com força, enquanto ele
apoiava a testa na minha. Exigências? Lembrei-me das palavras da Marta
na cozinha, e fui envolvida em lembranças de diálogos com o Jow,
conversas nossas nas quais meu namorado deixou claro que o pai era
extremamente controlador com ele, que gostava de espelhar as próprias
ambições no Josiah.
Ele não havia escolhido aquilo... De alguma maneira, o pai corrupto
dele o estava forçando a fazer aquilo, a seguir o caminho que eu nunca ouvi
uma menção sequer de ser o sonho do Jow. Não tinha nada a ver com ele,
com Bernardo... Era quase um universo paralelo.
— Eu vou apoiar você sempre, meu amor! — avisei, beijando-o na
boca com diversos selinhos, ficando na ponta dos pés e envolvendo o rosto
dele com as mãos. — E estarei aqui todas as vezes em que você voltar para
a casa. E, enquanto você me quiser, serei sua...
Capítulo 18

Durante meses a fio eu tive minhas dúvidas


Negando cada lágrima
Eu queria que isso estivesse acabado agora
I'm Not The Only One - Sam Smith

Ana Oliveira
Dias atuais...

Eu ainda estava com uma moleza absurda, como se meu corpo fosse
uma geleia. Enquanto Josiah dormia, comecei a preparar a comida. Fiquei
com um certo receio de meu ex-namorado não gostar de me ver em sua
cozinha, mas estava com fome. Assumi os riscos de tomar uma represália.
Achei interessante a maneira como a cozinha dele estava
completamente equipada, além de ter os suprimentos necessários para
preparar diversos pratos. A geladeira estava repleta de coisas gostosas,
como o sorvete favorito dele, potes de doce de leite, refrigerantes... Como
ele continuava tão definido, se tinha tantas coisas gostosas pela casa? Sorri
ao ver o Cheetos laranja em grande quantidade dentro do armário. Ele
adorava aqueles salgadinhos...
Escolhi fazer o que ele amava, macarrão com frango ao molho branco.
Almocei sozinha, na bancada da cozinha, tentando evitar as lembranças, e
sendo ineficaz, ao ficar relembrando a maneira como esguichei em tudo...
Sentada ali, tive uma visão privilegiada da cama dele, visto que a casa
não tinha quase nenhuma parede interna, encarando a maneira
despreocupada com que ele dormia. Josiah era tão lindo... Estava com
apenas uma parte do edredom preto cobrindo a bunda, abraçado ao
travesseiro enorme e macio, com aqueles músculos delineados espalhados
despreocupadamente sobre a cama.
Ainda podia sentir o gosto dos seus lábios sobre os meus, e foi tão
incrível ver que ele finalmente me beijou... Em todos os nossos contatos
recentes, em nenhum momento Josiah o havia feito. Eu realmente bloqueei
os sentimentos sobre aquela percepção, ignorando o fato de que meu ex
tinha tanta raiva, que lambeu a minha boca bem sobre essa bancada da
cozinha, mas se recusou a beijá-la.
Hoje foi diferente, e senti tantas coisas sob o seu toque. Queria que
Josiah pudesse me perdoar, que existisse um botão mágico que apagasse
todos os destroços de nossos erros, do que ele fez comigo. E eu tinha mágoa
porque nunca mais consegui escrever após aquilo, do que fiz com todos nós
e nos separou. Eu realmente queria voltar a ser dele, e que Jow voltasse a
ser meu. Porque eu o amava, muito, e jamais deixei de amar. E eu sabia,
humilhada, que, se ele me quisesse, enquanto quisesse, a hora que quisesse,
eu seria sua. Que faria qualquer coisa para receber o seu perdão...
A gente transou enlouquecidamente e, por muito tempo, minha vagina
estava ardida e sensível. Tive um pouco de medo quando vi que ele iria me
penetrar comigo de quatro, porque, desde que tive bebê, nunca mais havia
feito sexo. Mas acabou que foi muito bom e não tive desconforto como
imaginei que teria enquanto ele deslizava para dentro de mim.
Acabei adormecendo quando transamos pela última vez, e, quando eu
acordei, com ele feito uma rocha com os braços ao meu redor, Josiah
despertou também, me encarando com um semblante sonolento. Depois
apertou o meu queixo, enquanto eu tentava deslizar para fora, e ordenou
que eu não saísse da casa dele. Literalmente ordenou.
Ele estava preocupado comigo... E me conhecendo, quem não ficaria?
Fiquei pensando se não seria obra do Cristian. Aquele velho miserável me
detestava, porque, depois que ferrei com tudo, que cravei de vez uma estaca
no meu relacionamento com o Josiah, eu joguei milhares de podres do
prefeito no ventilador, bem na frente do delegado que estava louco para me
encarcerar. Meu ex-sogro me esbofeteou, e Josiah deu um murro no rosto
do pai... Foram dias de caos após eu ter tido a Júlia.
Cristian me odiava, e nem negava aquilo. Ele nunca me quis na vida
do filho, e acabou me tendo não só na vida do Jow e no caminho do Lucah,
mas também como mãe de sua neta. Lembro-me perfeitamente daquele
sorrisinho com a frase “fazemos tudo pela família”, foi quase uma ameaça.
Se eu pudesse, enfiaria aquela porcaria de balde na garganta daquele
corrupto desgraçado.
— Cheiro gostoso...
Mal o vi despertando, mas fiquei vermelha ao observá-lo desfilando
pelado, com o membro que, mesmo flácido, ainda era grande. Ele
caminhava em direção às panelas, mas parou ao meu lado, me fazendo
arfar.
— Acho que ainda não acabei com você... — avisou, sorrindo ao notar
o quão rápido conseguia mexer comigo.
Meu corpo inteiro arrepiou com a proximidade, e minha respiração
tornou-se acelerada. Eu estava literalmente apaixonada novamente... Ou
nunca deixei de estar? Quando voltei a me encantar, depois do bar, quando
ele me fez gozar aqui? Ou quando o vi com a nossa filha, quando notei a
maneira como ele a amava? Quando foi que meu coração começou a entrar
na frente da minha razão?
O amor e o ódio caminhavam juntos, é o que Marta sempre dizia.
Costumava falar que Jow me amava, e que toda aquela revolta e insistência
em me obrigar a conviver com ele era sinal de que tinha sentimentos. Ela
gostava de contar sobre o Cristian, sobre quando deixou de amá-lo, e que
tudo o que sentia por ele era gélido e indiferente.
— Acho que acabou, sim! — sussurrei, engolindo em seco. — Estou
toda dolorida.
Josiah agarrou o meu pescoço, me fazendo olhar para cima, para o seu
rosto, com os dedos imensos ao redor da minha garganta. Meu coração
bateu forte. Ele estava me encarando de um jeito bem mais suave, com a
ausência de todo o ódio que costumava me cortar inteira. Amoleci sob o seu
toque possessivo.
— É assim que eu acho mais gostoso, Docinho... — sussurrou,
deixando um beijo casto sobre os meus lábios. — Quando você urra de dor
feito uma cadela.
E, da mesma maneira que me segurou, e que eu jurei ter menos raiva
em seu olhar, ele me dedicou um semblante cruel e passou por mim. Senti
meus olhos marejando, mas me virei de frente para a ilha, apenas girando o
corpo sobre a banqueta, e apoiando o queixo na mão esquerda. Fiquei
observando Josiah enchendo um prato cinza e fosco com macarrão,
enquanto comia de pé, me encarando ao fazê-lo.
— Não tem veneno, né? — perguntou, de boca cheia, dando um leve
sorriso e depois fechando os olhos, como se comesse a coisa mais gostosa
do mundo.
Neguei, apenas com um gesto de cabeça, sentindo o coração doendo.
Eu era uma boba... Achei que aquela manhã inteira com ele dentro de mim
realmente o faria lembrar que sentia algo, que já me amou um dia.
— Estou brincando, Docinho. Por que está chorando?
— Não estou! — menti, limpando o rosto com as duas mãos.
Quando o vi encarando minha mão direita, a escondi abaixo da
bancada e desviei o olhar. Que merda! Eu não estava conseguido controlar
as lágrimas, mas me recusei a soltar qualquer barulho. Podia senti-lo me
encarando, enquanto tentava usar o decote da roupa para secar o rosto.
Depois ouvi quando Josiah deixou o prato dentro da pia e caminhou para o
banheiro.
Deslizei da bancada e lavei o prato, olhando ao redor da casa enquanto
sentia a porra do meu coração completamente quebrado. Só lavei aquela
merda porque realmente queria controlar a minha cabeça com alguma
distração. Eu o vi com a visão periférica, saindo do banheiro e caminhando
para o quarto. Ele se vestiu, e eu coloquei o prato sobre o escorredor de
metal ao lado da pia. Josiah caminhou até mim, enquanto eu voltava a me
sentar na mesma banqueta, agora de costas para a cozinha e de frente para o
Jow. Ele colocou apenas uma calça de moletom preta, deixando o abdômen
definido a mostra.
— Vou descobrir quem fez aquilo com você! Só não fui à casa do meu
pai porque soube que ele está nas Maldivas, certamente com uma de suas
amantes, já que foi a esposa dele quem me contou isso ao telefone — ele
disse, cruzando os braços diante de mim.
— E precisa descobrir? Só pode ter sido ele... — murmurei, ignorando
o rosto perfeito parado diante de mim.
— É apenas pelo balde que você continua chorando? — insistiu,
caminhando até mim e segurando o meu rosto entre os dedos, encurtando a
distância entre o nosso rosto ao encurvar o corpo. — Ou está chorando
porque está arrependida de ter transado comigo?
Olhei para cima, para o seu rosto a centímetros do meu, sentindo
aquele cheiro, e solucei. Neguei, balançando a cabeça, movendo a mão dele
junto comigo.
— Estou chorando porque tenho a certeza de que você me odeia por
todo esse tempo, me odeia de verdade, e eu nunca senti ódio por você! Eu
sempre senti amor, tristeza, saudade, e muitas coisas, mas nunca te odiei de
verdade, mesmo que o contrário tenha saído da minha boca! — confessei,
fazendo-o levar um susto com o peso das minhas palavras.
Josiah soltou o meu rosto, ficando vermelho de raiva, balançando a
cabeça enquanto dava voltas na minha frente. Ele estava ficando bravo.
— E mesmo que me faça gemer como uma “cadela”, não foi isso que
acabou de dizer? Mesmo que faça isso... Eu sei que nada que eu lhe der vai
fazer você me perdoar — avisei, secando as lágrimas.
— Ana... Eu... — gaguejou, parecendo se segurar para não pular em
cima de mim, como adorava fazer quando estava nervoso. — Eu vivo
sonhando com momentos que nunca vão acontecer. Eu costumo imaginar
cenários onde acordo com você de um lado do meu peito, e a Coisinha do
outro. Mundos onde você carrega outro bebê nosso na barriga, onde
viajamos, onde você me diz sim na igreja diante de Deus. Eu não consigo
me apaixonar por ninguém, porque você é a única mulher que inunda o meu
coração, que não deixa espaço para mais nada. — Ele estava chorando,
com os braços abertos diante de mim, como se estivesse completamente
exposto, como se revelasse algo muito profundo dele, me encarando com
tanto sofrimento, que eu me odiava, me odiava por tudo de errado que já
fiz. — Eu imagino universos paralelos onde tudo o que sonhei para nós dois
acontece, mas sabe quem também está nesse cenário?
Então ele me golpeou, de um jeito que não imaginei que faria, logo
depois de dizer coisas tão lindas, de expor que sentia exatamente a mesma
coisa que eu, que tinha os mesmos desejos que jamais poderiam ser
realizados. Mas ele começou aquela maldita frase, e eu sabia o que viria a
seguir. Sabia o que Josiah estava pensando, e eu estava frágil com os
acontecimentos do dia. O que ele estava prestes a dizer acabaria comigo.
Meu coração palpitou, doendo literalmente, me fazendo quase perder o ar.
— Cala a boca! — supliquei, tapando os ouvidos, sabendo exatamente
o que Josiah atiraria na minha cara. — Não fala sobre isso, por favor!
Josiah avançou, me forçando a soltar as mãos dos ouvidos, e tombei a
cabeça em sua barriga chorando, me preparando para a porrada que seria
ouvir aquilo:
— Eu sonho com mundos onde você não matou o meu melhor amigo.
Com mundos onde o Bernardo não foi parar na porra de uma cama de
hospital, sem vida, sendo apenas um corpo vegetando, porque você foi uma
descontrolada! — ele gritou, apertando-me em um abraço. — E, sim, eu te
odeio com toda a força que eu consigo, porque morro de vergonha de ainda
amar a mulher que prometeu ser minha, que prometeu me esperar, a mulher
por quem eu assumi a carreira que odiava, a mulher por quem abandonei os
meus sonhos, e que ainda teve a coragem de ficar com a única pessoa que
eu pedi que não ficasse. A pessoa com quem doeria, a mulher que fodeu
com o meu irmão.
— Para, por favor! — supliquei, sentindo que desmaiaria com todas
aquelas lembranças fodidas na minha cabeça. — Eu não vou aguentar.
— Você vai aguentar, porque eu acordo todos os dias e aguento saber
que não vi minha filha dar os primeiros passos, que não sei a primeira
palavra que a Júlia disse, que não vi o seu rostinho ao nascer... — ele gritou,
chorando, puxando o meu cabelo com fúria para trás, me fazendo encará-lo.
Eu estava tremendo sob o seu toque raivoso, ficando sem ar. — Eu construí
essa merda de casa para poder ver migalhas da minha filha, para ver
migalhas suas. E quando eu não consigo controlar o ódio, como no dia em
que atirei ovos na sua casa, eu vou para lá, para o hospital, onde o meu
melhor amigo está vegetando, e fico desejando que ele acorde, que ele volte
a viver, por um milagre, para que eu possa perdoá-la. Para que eu possa ser
feliz de novo...
Eu simplesmente fui invadida pelas lembranças do que fiz. Lembrei-
me da noite em que eu havia dado à luz e descoberto que o meu melhor
amigo, que o homem que amava a minha filha, que me amava, que amava o
ingrato do irmão por quem faria tudo, tinha morrido. O homem com a alma
mais linda do mundo morreu em um acidente de automóvel, por minha
culpa, porque estava indo ver o parto da minha filha. E dois dias depois, eu
surtei... Surtei quando cheguei em casa e Josiah estava lá. Surtei por estar
sozinha com uma bebê, porque Marta não havia conseguido chegar a tempo
da viagem pela Europa em que estava com seu namorado, e eu mal sabia
como segurar a minha filha... Surtei porque o pai da Júlia achava que ela era
fruto de uma infidelidade que jamais existiu. Surtei porque eu era uma filha
da puta que destruía tudo. E estava tudo tão barulhento, que eu realmente
queria fazer o barulho parar.
E eu só lembro de quando estava tentando fazer o barulho acabar. Eu
sequer lembro de ver o Ber. Mas o Josiah diz que eu fiz isso. Que me viu
com o Bernardo, enquanto ele estava desacordado. Eu só lembro de quebrar
o carro com a maldita caixa de som e do que Jow fez comigo e destruiu a
minha carreira, me deixando deformada.
— Eu não me lembro de ter feito isso... — sussurrei, muito baixo,
sentindo que iria desmaiar.
— Você não se lembra — ele repetiu. — Do que não se lembra, Ana?
— De ter feito aquilo com o Bernardo.
— Mas eu a vi, você estava lá.
— Eu só lembro de você me deixando e me quebrando, me deixando
cair por cima da mão com que eu fazia tudo... De me deixar cair, enquanto
eu estava de resguardo, abrindo os pontos da minha cesárea. Da maldita
festa que você estava dando, e que me enlouqueceu de raiva. Você me
soltou, me deixou cair, e sequer olhou para trás. Harry que apareceu com a
Isa, e foram eles que me ajudaram — acusei, vendo-o me soltar e cambalear
para trás, como se estivesse surpreso, atordoado. — Eu sei que não foi sua
intenção. Sei que foi sem querer, mas eu o culpei por isso por muito tempo,
em cada momento em que não conseguia segurar a minha bebê, em que
tinha que reaprender a fazer tudo com a mão esquerda, sendo destra. E
imagino mundos onde nada disso aconteceu, mas eu não preciso deles para
perdoar você...
Capítulo 19

Eu tenho te amado por muitos anos. Talvez eu não seja suficiente. Você
me fez perceber o meu maior medo. Mentindo e nos destruindo
I'm Not The Only One - Sam Smith

Josiah Marquez
Há quatro anos...

Um ano, doze meses... Em um maldito internato em uma escola


militar. Eu odiava cada segundo naquele lugar. Detestava aquele maldito
corte de cabelo. Fora o fato de ser obrigado a deixar o meu cabelo no tom
natural. Cara, eu odiava aquela porra toda.
Eu era chamado de Marquez, o mesmo nome que Cristian era chamado
no meio militar. Vai se foder... Era realmente uma merda!
Quando comecei o internato, soube que meu pai adorou explorar a
notícia de um filho seu abraçando a carreira militar, do filho que seguia os
seus passos, o caminho do dever e servidão ao país. Havia começado o seu
plano de bosta, o da linhagem perfeita. Eu não duvidava de que o próximo
passo daquele canalha seria tentar me enfiar na política.
Já eram doze meses daquela rotina, acordando às cinco da manhã, indo
dormir rigorosamente às 23:00, dividindo o alojamento com mais 29 caras.
Meus dias eram sistematicamente divididos entre aulas, treinamentos físicos
como natação, pista de obstáculos, tiro... E ainda tinha que estudar após a
janta. As luzes eram apagadas sempre no mesmo horário, e acesas também.
A gente era encarregado de cuidar da limpeza de todo o alojamento.
Ainda bem que eu tinha três caras super maneiros para que aquela
merda toda não me enlouquecesse, porque, durante a vida toda, jamais
consegui cumprir regras sem lutar. Eu odiava ser subordinado, e, ali,
naquela escola, eu respondia a muitos instrutores e superiores.
Conheci homens completamente apaixonados por aquela carreira.
Pessoas que carregavam sonhos familiares com orgulho, honrando o desejo
dos pais de seguir a carreira militar, de servir ao país. Mas, junto com
Bernardo, me tornei amigo logo de mais dois homens que detestavam estar
ali.
Bill era dois anos mais velho que eu. Estudou feito um condenado para
entrar na escola, porque sempre ouviu que a carreira militar o daria uma
vida estável. Vinha de uma família humilde, e, além de ter sido tatuador,
também era barbeiro. Ele falava muito pouco, mas deixou claro que sentia
que aquele lugar não era para ele, que somente ao chegar ali é que percebeu
que não se encaixava. Para começar, era muito fã de fumar um baseado, e,
naquela escola, era terminantemente proibido. O cara também era
apaixonado por tatuagem, e dizia que aquilo era uma coisa muito relaxante,
que o acalmava. Achei super maneiro as coisas que me contou, e até tive o
sonho de um dia montar um estúdio de tatuagem. Nesse momento, o Bill
sorriu largamente, e me disse que um dia poderíamos fundar um local
chamado Ravina. Eu perguntei o porquê daquele nome, e ele riu, disse que
apenas gostava daquela palavra. Bernardo, super discreto, para não dizer o
contrário, perguntou por que ele simplesmente não largava a porra toda e ia
embora, voltando a ser tatuador. Bill respondeu que ainda não tinha tido
coragem, e estava esperando ver se a titulação de Sargento o faria ter
vontade de seguir na carreira.
E tinha o Harry... Porra, ele era um cara muito legal. Tivemos uma
afinidade “à primeira vista”. Primeiro, porque o rapaz tinha uma aparência
excêntrica. A porra do rosto dele era repleto de furos, ou seja, tinha
piercings para um caralho no rosto, que foi obrigado a retirar para entrar ali.
Segundo, a história dele era parecida com a minha. O avô o obrigou a se
tornar militar sob a promessa de que, se não seguisse o que lhe fora
ordenado, acabaria sendo deserdado. Vinha de uma família abastada e disse
que entrou ali só para esfregar na cara do avô que, mesmo sendo um militar,
continuaria sendo a “ovelha negra”, porque nada mudaria o jeito dele. E, no
fim, acho que estava certo. Harry claramente não se enquadrava naquele
lugar, porque soltava gírias o tempo todo, e às vezes enfurecia nossos
superiores com seu desdém. Eu via a hora em que meu amigo acabaria se
fodendo com seu olhar desdenhoso para os superiores, sempre que lhe
davam as costas.
Bernardo começou muito animado, mas, tinham uns caras bem
babacas que volta e meia faziam chacota por ele ter a voz anasalada, além
das piadinhas homofóbicas. E Deus sabia... Eu só não arrebentava a cara
daqueles desgraçados porque acabaria expulso, e isso poderia enfurecer o
Cristian, que descontaria nas duas mulheres que eu amava.
Tinha uma coisa que me fascinava naquela escolha: exercícios
militares. A gente, às vezes, tinha que atravessar rios a nado, carregando
nossos equipamentos com bravura, e houve momentos em que fiquei tão
cansado, que pensei em desistir. Sabe quem não deixou? Meu trio de
camaradas, me motivando. “Bora cara! Você consegue. Não quer contar a
Ana que tu atravessou a porra de um rio durante a madrugada e a
braçadas?”, Bill dizia. “Não desiste, Jow, estou logo atrás de você”,
Bernardo complementava. Eu estava adorando ver a garra do Ber, que tinha
muita energia e determinação.
A Leda, mãe dele, ficara chocada quando lhe revelamos sobre o filho
ter passado na prova. E, em sua família, ninguém acreditava que Bernardo
fosse dar conta, o julgavam um fracote. Dava um orgulho do caralho ver o
quanto aquele cara, o irmão que ganhei de presente da vida, era incansável.
Teve um exercício em que ficamos no meio do mato, com um frio de
três graus e sem comida. A compreensão de que teríamos que caçar foi do
Harry, e, quando finalmente encontramos um coelho, ninguém teve
coragem de matar. Cara, a fome e a sede estavam acabando com a gente, e
foi Bernardo quem teve a destreza necessária de entender que precisaríamos
mesmo dar cabo do animal para nos alimentarmos. Ele foi parabenizado por
nossos superiores, por ter provido alimento na hora do sufoco e tido a
atitude condizente com a situação, focando na sobrevivência dele e de sua
equipe.
Era essa parte pesada do nosso treinamento que nos fazia bem, por
mais contraditório que pudesse parecer. Por mais assustador que fosse,
andar horas a fio, conduzindo o armamento, me trazia uma sensação
absurda de estar vivo. E sempre que eu pensava em desistir, lembrava que
aquelas noites em campo, molhado, ao relento, sendo levado ao meu limite,
eram pelas duas mulheres que eu mais amava no mundo. Era para minha
mãe poder viver bem, para salvar a vida do meu Docinho. E quando eu
fosse nomeado Sargento, me casaria com ela. Eu me casaria com a minha
alma-gêmea. E tudo aquilo teria valido a pena.
Nos finais de semana em que eu conseguia, pegava um voo para o Rio
e passava muito tempo dentro da Ana, beijando-a, deixando claro que ela
era o amor da minha vida, que era o único alvo do meu desejo.
Sempre que chegava em casa, minha mãe chorava ao me ver. Às vezes,
a emoção da minha rainha ao me encher de beijos quase me fazia ceder às
lágrimas.
Já estávamos em fevereiro, estava com meus dezenove anos, e meu
Docinho havia finalmente feito sua maioridade. Além de ter lançado seu
primeiro livro, um Thriller psicológico chamado Dark Dress, ela finalmente
havia começado a estudar o que tanto amava, havia começado a faculdade
de Letras.
Consegui ir ao lançamento de seu primeiro livro, e tinha várias leitoras
que ela havia conhecido em um aplicativo na internet. Elas ficaram me
encarando enquanto Ana dizia que eu era o bonitão de quem tinha falado, e
vi vários sorrisinhos tímidos nos olhares das meninas.
Ela estava tão linda, em um macacão preto, com os cabelos escovados,
uma maquiagem bonita. Estava tão elegante e parecendo tão madura. Me
senti o cara mais sortudo do mundo.
Era curioso ver que Ana escreveu um Thriller, afinal, ela sempre se
dedicou a poemas e pequenos livros de Romance. Cheguei a inquerir de
onde havia vindo a inspiração daquele livro, daquela história sombria, que
sequer parecia ter algum tipo de amor. Docinho apenas sorriu, e contou não
só a mim, mas a todos os presentes em sua sessão de autógrafos, que Dark
Dress havia surgido de um sonho doido que teve.
Fosse um sonho doido ou não, uma legião de leitoras de aplicativo
tinha se apaixonado por sua escrita, e o nome Ana Oliveira começava a ser
conhecido na literatura nacional.
Eu fiquei tão orgulhoso, tão feliz vendo a mulher que eu amava
realizando o sonho de lançar um livro. Foi tão lindo observar que, mesmo
com seus traumas relacionados à leitura, Ana ainda era capaz de escrever,
de contar histórias, de seguir o seu sonho.
Costumava mostrar as fotos da Ana aos meus amigos, e eles sempre
diziam que minha mulher era gata, e eu fazia questão de contar que iria me
casar com ela, que teria filhos, que não conseguia imaginar um destino sem
ela. Harry comentava que Ana deveria servir um “chá” dos bons, causando
risadas em todos. Eu ficava puto, afinal, o sexo era uma fração pequena de
tudo o que me conquistara naquela deusa.
Finalmente estava indo para casa, após ter passado quinze dias sem
pisar lá. Nem avisei que iria nesse fim de semana, porque queria fazer uma
surpresa. Bernardo estava junto a mim, encarregado de filmar o momento
marcante que se seguiria.
No bolso do meu casaco, eu carregava o estojo preto com a joia
perfeita que comprei, um anel de ouro branco, que ostentava um diamante
solitário. O anel que eu mostraria ao ajoelhar e pedir a minha deusa em
casamento.
Cheguei no meio da noite, e nuvens densas desaguavam de maneira
sutil sobre a cidade do Rio de Janeiro. Desci do Uber na frente do
condomínio, e Bernardo reclamava ao meu lado por eu não ter aceitado
colocar sua camisa social para fazer o pedido.
— Vai ficar esquisito, parecendo um vampiro, todo de preto em um
pedido de casamento. Se colocasse a blusa que eu disse...
— Para de gritar! — grunhi, com ele andando apressado ao meu lado,
carregando o buquê de flores vermelhas que comprei para Ana. — O quarto
da minha mãe é logo aqui na entrada, e ela vai acabar nos ouvindo.
— Eu só acho... — sussurrou, sacando o celular — que teria ficado
mais bonito com a camisa social, ao invés dessa sua roupa que te faz
parecer uma caricatura.
— Fica quieto! — resmunguei, girando minha chave na fechadura,
cauteloso.
Deslizamos para dentro da casa, que estava quase completamente
entregue à penumbra. Certamente minha mãe já estaria dormindo, afinal, já
passava da meia noite. Soltei a mochila pesada sobre o chão da sala, em
frente à entrada da casa, com calma para não fazer barulho.
Bernardo ligou o celular, com o flash acendendo o ambiente ao redor.
Peguei o buquê de flores da mão dele, que sorria ao me filmar retirando o
estojo com a aliança do bolso da jaqueta de couro preta. Caminhei na frente
dele até o corredor.
A porta do meu quarto e da Ana estava aberta, com um fio de luz
amarelada escapando para o corredor. Ouvi uma leve risadinha da Ana, e
imaginei que Luana ou Isabela estivessem lá também. Quando finalmente
parei em frente ao quarto, com o coração na porra da boca, respirei fundo.
Abri a porta... E o que vi foi o começo do fim.
Ana estava deitada na minha cama, de calcinha e camiseta, ambos na
cor branca, recostada na cabeceira, com Lucah agachado na frente dela e
apoiando os antebraços na porra do meu colchão, enquanto ela gargalhava
de algo que ele mostrava a ela em seu telefone.
— Porra, Ana! — gritei, atirando a merda do buquê de flores na
direção dos dois.
Eu senti o meu coração se despedaçar, a porra da minha vida em
câmera lenta, enquanto sentia que ninguém conseguiria me impedir de socar
a cara do Lucah. Soltei o estojo com a aliança sobre o chão e avancei em
cima dele, que, assim que me viu, se levantou e cambaleou para trás.
Agarrei o meu irmão pela camisa, depositando um soco em sua bochecha.
Quando me preparei para dar outro, senti o Bernardo me imobilizando pelas
costas, prendendo os meus braços, enganchando as mãos no meu peito.
— Para com isso, caralho! Cê vai perder a razão! — meu amigo
gritava em meu ouvido, enquanto a sua voz parecia distante, e eu via o
Lucah atordoado, com a boca sangrando enquanto saía do meu campo de
visão.
— Ana! Sua desgraçada! — gritei, com a voz trêmula das lágrimas.
Ela me traiu... Eu... era um otário.
— Calma, Josiah! Você entendeu tudo errado! — Ana gritou, quando
me soltei dos braços do Bernardo, empurrando-o longe, e pulei em cima
dela, apertando o seu maxilar entre os meus dedos.
Eu sentia a veia do meu pescoço saltando, o sangue percorrendo com
fúria as minhas veias, e eu poderia perder a cabeça naquele momento. Era
uma coisa além da tristeza, da sensação de traição que me percorria naquele
momento. Era um sentimento denso, escuro, cruel, era ódio...
— Está me tirando de otário, sua filha da puta? — berrei, aproximando
o meu rosto da desgraçada traidora a minha frente. — Quanto tempo?
— Me solta! — ela gritou, socando o meu braço. Parecia enfurecer, se
revoltar. — Você me xingou? Está louco? Sequer está me deixando falar...
— Há quanto tempo está transando com o meu irmão? — grunhi,
apertado muito o seu rosto. E Ana negou, balançando a cabeça, chorando e
completamente vermelha. Os olhos dela estavam saltados, assustados.
— Solta ela, cara! — Bernardo gritava, puxando o meu casaco. —
Solte-a e converse como um adulto, porra!
— Some daqui, caralho! — Virei o rosto de maneira cruel em direção
ao meu amigo. — Fala, sua cachorra, há quanto tempo está me traindo bem
na minha cama?
— Eu não estou te traindo, seu cretino! — Ana gritou, tentando
morder a minha mão. — Me solta, porra! — gritou, socando o meu braço.
Ana estava sedenta de raiva ao me encarar, ficando vermelha. Como
ela ainda podia demonstrar revolta, sendo que acabara de ser pega me
traindo?
— Desgraçada mentirosa! — grunhi, soltando-a e cambaleando para
fora da cama.
Olhei a mulher encolhida contra a parede do quarto, com as costas
sobre a cabeceira preta. Marta surgiu sobre a soleira da porta, com os óculos
tortos sobre o rosto, uma touca preta sobre os cabelos e uma longa camisola
de seda vermelha, tapando a boca com a mão ao ver a cena.
— O que é isso? — perguntou.
— Você sabia, mãe? Sabia que essa desgraçada estava me traindo bem
na minha cama? — gritei.
— Eles são amigos, Josiah! Apenas amigos! — Marta sussurrou, com
medo do ódio que escapava do meu corpo.
— Então você sabia? Puta que pariu! — gritei, alisando a cabeça, puto,
revoltado, gritando de dor. — Merda! — esbravejei. — Vocês são duas
falsas! Duas traidoras!
— Gente, que porra está acontecendo aqui? — Luana murmurou,
segurando o coração ao entrar no meu quarto, com uma camisola super
curta com uma estampa de onça.
— E você, Luana? Também sabia da “amizade” da Ana com o
pedófilo do Lucah? — perguntei, apontando o dedo para ela.
— Cara, qual o problema de eles serem amigos? — ela debochou,
cruzando os braços ao me encarar. — Vai se tratar, cê tá descontrolado!
— Vai tomar no seu cu! — gritei. — Todas vocês têm que ir para o
quinto dos infernos, e nunca mais quero ver a cara de nenhuma das três.
Todas me fazendo de palhaço, porra! — Apontei o dedo, deslizando-o no ar
em direção às mulheres ao meu redor. — E você, Ana, eu tinha comprado a
porra de um anel para te pedir em casamento. — Abaixei e peguei o estojo,
que jazia pousado de qualquer jeito sobre o tapete do quarto. Ignorei o olhar
preocupado do Bernardo, enquanto retirava o anel do compartimento e o
atirava em cima dela. — Agora, sua cretina, você vai sair dessa casa!
— O quê? A casa é minha! — Marta gritou, atônita, tentando me
segurar pelo braço. — Ela também é uma filha para mim, e tenho certeza de
que ela e Lucah não tem nada, porque ele...
— Some do meu quarto, Ana! — gritei. E, desviando do aperto da
minha mãe, segurando Ana pelo braço, a arrastei para fora de casa.
Luana avançou em cima de mim, me estapeando pelo corredor da casa,
tentando me fazer soltar a sua amiga.
— Solta ela, seu arrombado! — minha prima gritava, me puxando pela
camisa, me enfiando a unha.
— Vai, cadela, some daqui! Vai atrás do teu amante! — gritei, jogando
a Ana na rua.
Ela pousou sobre a calçada, desequilibrando-se e quase caindo. Ana
me encarou, com mágoa no rosto. Ela olhou em volta da rua, vendo os
vizinhos surgindo nas janelas para encarar a confusão. Tinha começado um
temporal, e a chuva deslizava por seu corpo, ensopando-a, marcando os
seios atrás da camiseta, enquanto o olhar que me dedicava era de decepção.
— Acabou tudo. Tá me ouvindo? — gritei, batendo o portão na cara
dela. — Vai atrás do desgraçado que estava te comendo...
Voltei até a sala e peguei a minha mochila, tomando mais uma unhada
da Luana. Quando saí da casa, chutando o portão, passei por ela, que
continuava parada na chuva, seminua. Eu sabia que não tinha mais volta...
Era o começo do fim para nós dois.
Capítulo 20

Estranho mesmo é te ver distante. Botar o nosso amor numa estante


Eu tive que desaprender a gostar tanto de você. Porque 'cê faz assim?
Não fala assim de mim
Luísa Sonza - Penhasco

Ana Oliveira
Há quatro anos...

Já são doze longos meses desde que Josiah começou a carreira militar.
Tantas coisas aconteceram ao longo do último ano... E meu coração se
quebrava a cada vez em que eu tinha que me despedir do meu namorado,
quando ele tinha que voltar para Minas.
Nas primeiras semanas, mal sabia se vivia ou apenas existia, esperando
Jow voltar. Eu sentia saudade o tempo inteiro, porque estava acostumada a
dormir e acordar todos os dias nos braços do homem que eu amava. De
repente, fui obrigada a me adaptar a uma existência onde ele estava ausente
na maior parte do tempo.
Josiah fazia um esforço danado para estar comigo e a mãe, vindo em
finais de semana bem corridos, para passar o tempo de seu descanso
conosco. Esses eram os dias mais felizes, porque ele estava lá,
preenchendo-os, colorindo.
No comecinho do ano passado, após Josiah partir, eu passei no
vestibular para estudar Letras. Aquilo me deu uma rotina, uma fuga da
saudade absurda que sentia do Jow. Isabela, minha melhor amiga, estava
estudando na mesma faculdade, mas cursava Marketing.
Outra coisa mágica foi finalmente ter escrito um livro inteiro. Comecei
a escrever de maneira despreocupada em um aplicativo de leitura,
colocando para fora uma história muito sombria. Me assustei quando
acordei durante a madrugada com meu telefone apitando, eram notificações
de comentários no meu livro, cujo nome era Dark Dress. De uma hora para
outra, o livro viralizou, antes mesmo de ser terminado. E ver a maneira
como tinham pessoas gostando daquilo, trouxe-me a percepção de que
escrever era o que precisava para a minha vida.
Recebi a proposta de uma agente literária, que me telefonou
completamente entusiasmada, oferecendo-me um contrato para ser
agenciada. E aceitar aquilo foi a coisa mais certa que fiz na vida. Ela
encontrou uma editora e lancei o meu livro, lotando uma sessão de
autógrafos, com a presença de Marta, Isa, Bernardo, meu namorado e várias
pessoas da minha faculdade, bem como muitas leitoras que já me
acompanhavam.
Lembro que fiquei morrendo de medo de não ir ninguém ao
lançamento, além das minhas pessoas próximas, e aquele dia foi tão ao
contrário das expectativas, tão perfeito, que entendi que não existia outra
carreira em minha vida. O meu coração e a minha alma gritavam que nasci
para ser escritora.
Estava muito feliz com o início da minha jornada como escritora, mas,
ainda assim, meu coração doía de saudade do Jow. Me sentia um pouco
solitária, porque, mesmo que Marta e Luana estivessem sempre presentes, a
ausência dele me deixava um pouco deslocada. Costumava me surpreender
com a maneira como meu cérebro jogava lembranças dele a todo momento.
Em um desses dias em que me via com o pensamento longe, me surpreendi
com um filhotinho vira-lata abanando o rabo para mim na cozinha da casa
de Marta. Eu ainda morava com ela, e sequer tinha coragem de entrar na
casa que minha tia deixou para mim. Lembro que estava colocando a louça
para lavar, na máquina de inox abaixo da pia da cozinha, quando o cãozinho
deu uma pequena latida. Foi quase um ressonar, fino, e muito fofo. Lembro
que me abaixei, e o cachorrinho correu, quase pulando, até mim. Peguei
aquela coisinha minúscula e barriguda em meus dedos, sorrindo enquanto
ele tentava lamber o meu rosto.
— Como foi que entrou aqui, “bafinho de leite”? — perguntei,
sorrindo com a animação do vira-lata de pelagem marrom.
— Me desculpe... — Lucah disse, parado na entrada da cozinha.
Encarei-o, imediatamente travando o sorriso. — Estava tentando convencer
a minha mãe a deixar o “Senhor Barriga” ficar aqui, até ele conseguir um
lar. Esse pequeno travesso cruzou a rua bem na frente do meu carro...
Encarei aquele homem elegante, trajado com uma camisa social branca
solta sobre as calças jeans justas. Por que ele parecia um homem bom? Não
fazia sentido...
— Tentei que meu namorado ficasse com esse neném, mas como
minha sogra detesta animais, ficou impossível — contou, respirando fundo
e segurando o quadril com as mãos, bufando ao encarar o cachorrinho, que
começava a aninhar-se em meu peito.
Demorei alguns segundos para a compreensão do que disse me atingir,
enquanto aninhava mais o filhotinho contra o peito. Ele disse... disse a
palavra “namorado”. Cada vez ficava mais confusa sobre aquele homem. A
voz do Josiah invadiu minha mente, me causando um arrepio: “Fique longe
do meu irmão!”.
— Meu filho, eu não sei se quero esse filhote por aqui... Vai fazer xixi
em tudo! — Marta disse, sorrindo ao apertar a bochecha dele, ficando na
ponta dos pés, e depois pousando um beijo em sua bochecha. — Mas como
vou dizer não para o meu filhinho, hein?
— Por que você mesmo não fica com ele? — inquiri, ainda
desconfiada daquela carapuça de bondade.
— Eu moro em uma república para rapazes, e uma regra explícita da
proprietária, uma ranzinza, é “Nada de animais”! — ele contou, imitando
uma voz rouca e jocosa.
Tentei ficar séria, mas a careta que fez, atrelado ao gesto de estar sendo
enforcado, causou-me uma risada.
— Há quanto tempo está namorando? — perguntei, com minha sogra
chegando perto e alisando a cabeça do pequeno cachorrinho. Ele se animou
todo, começando a se chacoalhar em meu colo, fazendo gracinha para
Marta, tentando acertar o seu rosto com uma lambida.
— Há sete anos! — contou, sacando o telefone e se aproximando. —
Esse é o Jonas, o meu príncipe.
Ignorando aquela voz conhecida em minha cabeça, dizendo-me para
ficar longe, inclinei o rosto e encarei a foto, que exibia Lucah e outro
homem. O rapaz era bem baixinho, e estava sorrindo, na frente do Lucah,
que o segurava pela cintura em um abraço. O fundo da foto mostrava que
estavam no Cristo Redentor.
— Caramba, que legal! — disse, chocada. — Sua mãe não me contou
sobre você ser gay, nem sobre Jonas.
— Quando confidenciei a ela sobre minha sexualidade, a fiz prometer
nunca contar ao meu pai ou ao Jow. Não quero o Cristian me atacando mais
ainda... — ele disse, guardando o celular no bolso frontal da calça e se
inclinando para capturar o Senhor Barriga do meu colo. — Meu pai é
homofóbico.
— Entendo... — sussurrei.
Então... Sete anos de namoro com Jonas. Marta era realmente um cofre
de segredos. Mas, talvez aquela pequena informação pudesse fazer o Josiah
entender que... talvez... tenha se enganado.
Caramba! Estava me sentindo péssima por duvidar do julgamento do
Josiah, mas, ver aquele homem, tão... ao contrário do que imaginei,
realmente plantava um questionamento pesado em minha cabeça.
— Já postei as fotos desse pequeno barrigudo em meu Instagram. Ele
deve ficar aqui por poucos dias, porque já tem gente interessada em adotá-
lo. Porém, sabe como é... Precisamos investigar esses pretendentes, não é,
menininho? — ele contou, segurando o cachorrinho entre os dedos e o
chacoalhando de leve diante do rosto. Lucah era uma pessoa com uma aura
tão serena... — Então, vou indo... Cuidem bem desse garotão, hein!
Meu cunhado deixou o cãozinho no meu colo, depois deixou sobre a
mesa da cozinha uma bolsa com os alimentos para o animal, bem como
uma caminha estofada de cor amarela e um saco imenso de tapetes
higiênicos. Minha cabeça estava confusa, e, dentro do meu peito, uma
dúvida cruel estava plantada.
Eu amava e confiava no meu namorado, mas, ao mesmo tempo, Lucah
não parecia a pessoa descrita pelo Jow. Seria o irmão do Josiah um tipo de
psicopata? Parecia doce, cativante e escondia um lobo espreitando sob a
pele? Ou seria realmente um bom homem, e, de alguma maneira muito
louca, meu namorado se equivocou sobre ele?
Somente o fato de ter ficado na dúvida sobre a índole do irmão mais
velho do Josiah já me trazia uma sensação de culpa absurda.
●●●
Os dias passaram e Senhor Barriga foi me deixando completamente
apaixonada por sua doçura e companhia. Ele era a coisa mais doce, fofa e
inocente do mundo. Enlouquecia a mim, a Marta e Luana, fazendo xixi no
lugar errado, mordendo os sapatos, as quinas dos móveis. Contudo, também
trazia muitas risadas e suspiros de fofura.
Marta dizia que o cãozinho era seu neto, enquanto Luana não
conseguia gostar do animal. Enxotava sempre que podia, franzindo o nariz.
Ela dizia que não gostava de cachorros porque eles lambiam as partes
íntimas e depois tentavam nos beijar. O que não deixava de ser verdade,
mas Senhor Barriga era a coisa mais linda. Eu enchia sua barriguinha roliça
de beijos, e, se não fosse o fato de já ter uma família o esperando, tendo
Lucah ficado de o buscar naquele dia, eu ficaria tentada a ser sua mamãe.
Tomei um banho demorado, e, enquanto escovava o cabelo no
banheiro de Josiah, Marta se enfiou no pequeno cômodo, com os olhos
marejados. Encarei seu reflexo no espelho, vestida elegantemente com um
conjunto em tons de vinho, em seda refinada, com o cabelo recém-cortado
em um Chanel com pontas repicadas e escovadas.
— Lucah já levou o Senhor Barriga — contou, secando uma lágrima.
— Meu netinho foi embora...
— Ah, não fica assim... — consolei, desligando o secador, que fazia
um barulho absurdo. Senti uma pontada de tristeza no peito ao pensar que
não teria mais aquela bolinha quentinha dormindo comigo. — Ele
certamente está indo para uma família maravilhosa.
— Sim, está mesmo. Lucah investigou tudinho, disse que se chama
“adoção consciente” — contou, começando a se afastar.
— Ele vai ficar bem!
— Vai, sim. Agora vou deixar você se embelezar... — avisou.
Marta era sem dúvida um ser humano excepcional. Continuei a tarefa
de escovar os fios, afinal, estava quase na hora marcada com Luana.
Iríamos a um barzinho na Lapa. Jow disse-me que não poderia vir nesse fim
de semana, e fiquei tão xoxa, que Lu me chamou para sair.
Terminei de me aprontar, colocando um macaquinho jeans que ia até o
meio das pernas e ostentava um babado sutil sobre o decote. Arrematei o
look com um tênis Iate e fui até o quarto da Luana.
— Já estou prontinha! — disse, terminando de passar o batom
vermelho sobre os lábios, depois os esfregando para espalhá-lo. — Vamos...
E, antes que eu pudesse piscar, ela jogou a bolsa transversal sobre o
ombro e foi me puxando para fora com a mão ao redor de meu pulso,
animada.
— Tequila... Aí vamos nós! — comemorou.
E assim seguimos a noite, animadas, bebendo sob o som de uma banda
tocando MPB ao vivo, contando histórias enquanto virávamos shots do
líquido claro e amargo, intercalando com bolinhos de bacalhau.
— Aí, eu finalmente resolvi que vou me inscrever no processo para o
mestrado naquela federal que te contei. Já comecei a preparar o meu projeto
de pesquisa e... — contava, empolgada, até que paralisou, encarando a porta
do bar, atrás de mim. Depois, começou a acenar, chamando alguém. —
Venham, sentem conosco!
Olhei por cima do ombro, curiosa, e ao mesmo tempo temerosa de
minha amiga estar convidando pessoas que eu não conhecia para a nossa
mesa. Sempre ficava mais tímida, e ainda não estava bêbada o suficiente
para socializar sem cautela.
— Oi, Lu! — alguém disse, passando por mim e indo até minha
amiga, que ficara de pé, dando pulinhos de animação.
Luana abraçou o rapaz, bem mais baixinho que ela, envolto em uma
camisa florida e uma bermuda de sarja bege. Quando, após dar dois
beijinhos em suas bochechas, o homem voltou-se para mim, imediatamente
o reconheci. O rosto redondo, bronzeado, a barba densa e os cálidos olhos
escuros... Era Jonas, o homem que Lucah mostrou-me na foto. Então girei
na cadeira, intuindo olhar para trás, e notei o namorado dele me dando um
sorriso simpático, parado atrás de mim.
— Não queremos atrapalhar — meu cunhado avisou, timidamente
erguendo as mãos, como se estivesse rendido.
— A gente quer atrapalhar, sim — Jonas contradisse, já puxando uma
cadeira e se sentando. — Prazer, me chamo Jonas!
— Prazer, Ana! — Sorri, aceitando o seu aperto de mão.
Lucah, tímido, sentou-se ao meu lado direito, enquanto o namorado
ficava a sua frente sob a mesa de madeira avermelhada. Meu coração deu
uma leve tamborilada. Céus, eu já tinha traído a confiança do Josiah tantas
vezes nos últimos dias, interagindo com a única pessoa que ele me fizera
prometer que não teria contato...
Será que, caso Jow soubesse mais sobre o irmão, visse esse lado
apaixonado, comprometido em um relacionamento duradouro, engajado em
causas sociais, teria suavizado suas percepções da infância? Será que, aos
olhos de uma criança, uma sombra na parede pareceria um lobo mau?
Droga! Eu estava fazendo a mesma coisa que a Marta, duvidando da
palavra do meu namorado... Mas precisava tomar uma decisão, e a mais
correta era observar. Era ir pensando com a minha cabeça, enxergando com
meus próprios olhos, porque, até aquele momento, Lucah apenas me
mostrara gentileza e respeito.
— Ah, você é a namorada do Josiah! — falou, parecendo surpreso. —
Mulher do céu, esse seu boy é muito nervosinho...
— Ele tem um jeitinho especial — disse, causando risadinhas no
grupo. — Acho que muita coisa seria suavizada se Josiah soubesse da sua
existência... — contei, apontando em sua direção.
— Ah, ele acha que sou amigo do Lucah, e inclusive já bateu a porta
do quarto na minha cara ao me ver pela casa.
— Nossa... — Corei, sentindo-me subitamente envergonhada.
— Tem nada não, mulher! — Fez carinho no meu ombro, fazendo-me
imediatamente sentir que já gostava dele. — Irmãos que se entendam, né,
mas esse rolê de pedofilia é que foi sinistro.
Lucah se mexeu, e Luana imediatamente pareceu assustada. Nunca
tinha visto aquele semblante nela, mas imaginei que, assim como eu, minha
amiga ficara assustada ao ver a maneira despreocupada com que Jonas
falara aquilo em voz alta. Mas eu precisava aproveitar o momento, afinal,
havia uma abertura para abordar o assunto:
— Sobre esse lance da acusação de pedofilia... Como isso aconteceu?
— Então... — Lucah disse, raspando a garganta — É simples, um dia
cheguei do trabalho e Josiah começou a me xingar. Acho que ficou atrás da
porta o dia inteiro, me esperando chegar para fazer aquilo. Estava com o
meu computador na mão, e disse que eu era um tarado, que tinham fotos de
meninas jovens em meu computador.
— E tinha? — questionei, erguendo uma sobrancelha, apoiando os
cotovelos na mesa, interessada.
— Sim! Tinha uma pasta criada naquele mesmo dia, e eu não faço
ideia de onde foi que vieram aquelas fotos. Amo o meu irmão, faria tudo
por ele, como sempre fiz, mas não entendo de onde surgiu aquilo. Não fui
eu. Eram fotos de crianças! Não sou um pedófilo.
— Pode ter sido coisa do Cristian para fazer vocês brigarem... —
Luana disse, com o olhar distante. — Essa sempre foi a minha teoria.
— Faz sentido... — murmurei. — Você disse que a pasta foi criada
naquele dia?
— Sim, e eu sequer tinha dormido em casa. Mas nada do que eu fale
vai mudar a opinião do Jow sobre mim. Ele cisma que preguei trotes nele a
infância inteira, acusando-me de o enforcar, de colocar um rato morto em
sua cama, de destruir suas coisas. Não faço ideia de como ele cria essas
histórias, mas acho que a infância violenta com o meu pai o fez ficar
assim...
— Josiah não é de fantasiar situações! — defendi, virando um shot de
tequila. — Mas acho que podemos juntar vocês dois em algum momento,
você contar sobre o Jonas e sua versão dos fatos.
— Bom... Eu não sei! — Lucah murmurou, bebendo sua água com
gelo e limão, enquanto seu namorado entornava dois shots de tequila de
uma vez. — Queria que isso fosse possível, mas sequer tenho esperanças de
um dia conseguir conviver bem com o meu irmão.
Fiquei em silêncio. Se Lucah nem dormira em casa e a pasta com fotos
tinha sido criada naquele dia, como Josiah ainda achara que podia ter sido o
irmão? Algo na história não se encaixava. Jow era doce, carinhoso e
bondoso. Por que acusaria o meu cunhado de coisas que não tinham
fundamento?
Estava confusa, mas talvez fosse o álcool, talvez a empatia que sentia
por Lucah, mas decidi que me permitiria conhecê-lo, dar um voto de
confiança a minha intuição, que sussurrava que não tinha perigo.
No dia seguinte, acordei sobre o tapete da sala, deitada ao lado de
Jonas, que dormia com a boca aberta, pousado de barriga para cima, com
saliva escorrendo por um canto da boca. Luana estava largada desacordada
sobre o sofá da sala, deitada com o rosto no encosto do sofá e roncando
feito o motor de um carro.
Merda! Uma dor de cabeça chata percorria-me, enquanto tentava
lembrar de como chegamos em casa. Minha última lembrança era a de
Lucah contando sobre seus problemas com Jow, e não consigo me recordar
de mais nada.
Sentando-me sobre o tapete, prendi os fios embaraçados de meu cabelo
em um coque. Franzi a sobrancelha com a claridade que entrava pelas
janelas, fazendo meus olhos doerem para se adaptarem. Notei que um de
meus pés jazia desnudo, sequer de meia, enquanto o outro ostentava o tênis.
Retirei o calçado, depois caminhei ainda cambaleante, seguindo o cheiro do
café até a cozinha.
— Acordou, “Margarida”? — Marta brincou, pousando uma xícara
branca fumegante de café a Lucah, que estava mordiscando uma fatia de
bolo, que, à primeira vista, parecia ser de milho.
— Nossa... — murmurei, caminhando ainda tonta até uma cadeira do
outro lado da mesa, pousando de maneira desastrada sobre ela. — Lucah...
Como a gente chegou em casa?
— Eu trouxe vocês — contou, de boca cheia. Estreitei os olhos,
notando que, pela primeira vez, ele estava vestido sem as roupas sociais.
Trajava uma bermuda florida vermelha e uma camiseta branca. — Eu não
bebi, né, Ana!
— Ah, é verdade! — reconheci, aceitando a caneca de café quentinho
que Marta me entregou.
— Come, minha filha. Tem bolinho de milho, o favorito do meu
bebezinho aqui! — contou, beijando a cabeça do filho. — Está fresquinho.
— Ai, Marta, estou enjoada. E não consigo me lembrar de nada após o
quarto shot de tequila... — contei, bebericando o café. — Acho que preciso
é de uma dipirona, um banho, e um sono de doze horas...
— Boa ideia... — Lucah disse, gargalhando. — Acho melhor começar
pelo banho, que cê vomitou meu carro todo ontem!
— Quê? — indaguei, realmente notando o cheiro azedo escapando do
meu macaquinho.
— Querida, você não lembra de nadinha? — ele indagou, parecendo
confuso.
— Estou te dizendo... A última coisa que me recordo é de virar a
quarta dose de tequila.
— Bom, basicamente o Jonas ficou louco primeiro, começou a cantar
na frente dos cantores, já você e Luana resolveram que seria interessante
pegar o microfone. Nem preciso continuar, né? — contou, fazendo Marta
gargalhar, enquanto balançava a cabeça. — Aí a gente foi gentilmente
convidado a se retirar do barzinho...
— Não?! — perguntei, chocada, encarando o semblante de animação
dele, parecendo narrar uma aventura.
— Sim, querida! Vocês estavam doidos! E, para piorar a noite, tu veio
vomitando meu carro inteiro...
— Eu só vi a parte em que você e Luana estavam competindo quem
conseguia chegar no tapete primeiro... engatinhando! — Marta contou,
ficando vermelha ao rir.
— Céus! Eu não posso beber... — murmurei.
Após descobrir a humilhação da noite anterior, tomei banho e passei o
dia inteiro dormindo. Quando finalmente recuperei um pouco de minha
dignidade, resolvendo ir caçar uma janta, e a cena que vi deixou meu
coração quentinho: Marta, Jonas, Lucah e Luana estavam sentados ao redor
da sala, comendo pipoca, tomando refrigerante e sorrindo. O olhar da minha
sogra para o filho mais velho era de tanto amor, que chegava a brilhar.
Jonas estava com as costas pousadas no peito do namorado, enrolado
em uma manta felpuda, afinal, uma frente fria chegara à cidade e prometia
ficar por mais uma semana. Me larguei ao lado de Luana, em uma das
poltronas cinza.
— Ana, ainda bem que chegou, estou contando aos meninos que criei
um perfil no Tinder — Marta disse, sorrindo ao exibir o telefone. — Agora
vai, finalmente encontrarei uma paquera.
— Dona Marta, vou ficar preocupado... — Lucah disse, coçando a
cabeça, lembrando-me imediatamente de Josiah, que costumava fazer a
mesma coisa quando estava nervoso. — Tem que tomar cuidado com essas
coisas de Internet, mãe...
— Ai, mô, deixa ela! — Jonas ralhou.
Ficamos horas vendo os pretendentes que surgiam para Marta no
aplicativo, enquanto ríamos. Não sei nem como terminamos a noite ouvindo
Katy Perry e dançando no tapete da sala, com a playlist tocando na TV. Foi
divertido ver Lucah dançando, descontraído, encostando as costas no peito
do namorado e fazendo de conta que o controle da televisão era um
microfone. Ele sabia todas as músicas e parecia tão feliz... Até Marta ficou
com a gente, rindo e fingindo conhecer as músicas.
Quando acordei na manhã seguinte, recebi um telefonema do Jow
dizendo que me amava, e que novamente não poderia vir na próxima
semana. Fiquei triste, porque estava morrendo de saudades e queria beijá-lo,
sentir seu cheiro, dormir agarrada a ele... Mas entendia que às vezes era
difícil Josiah conseguir vir, porque sua rotina naquela escola era exaustiva.
Lembro de inquirir Marta sobre o que o pai de Josiah usara para o
obrigar a assumir aquela carreira. Nem ela sabia, e meu namorado, turrão
que só, sempre se recusava a responder nossos interrogatórios.
A semana passou voando, enquanto eu organizava minha rotina, entre
os estudos da faculdade, a carreira de escritora, meus afazeres domésticos,
saídas com Isabela... Minha amiga estava sendo bem cabeça dura, pois,
quando contei a ela sobre as coisas do Lucah, Isabela emburrou e disse que
não era porque ele era gay que mudaria o fato do que Josiah viu sobre ele
em seu computador. Repeti duas vezes a Isa sobre os argumentos do meu
cunhado, e mesmo assim a minha amiga disse que preferia a versão do Jow,
até que se provasse o contrário.
Estava ajudando minha sogra no preparo da janta, cortando tomates
para a salada, quanto me veio a convicção de que eu precisava conversar
com o Josiah sobre tudo o que aconteceu. Eu contaria tudo ao meu
namorado, como foi o fim de semana, e ele precisaria entender que Lucah
era um cara legal comigo, respeitoso, que ele precisaria separar as coisas.
Era impossível para mim ter a mesma visão que meu namorado sobre seu
irmão. E ainda tinha o Jonas, que era muito divertido e aprendi a gostar da
companhia.
Minha sogra sentia falta do Josiah, mas estava aproveitando os
momentos para poder ter o Lucah por perto, afinal, naquela noite, ele viria
com o namorado para o jantar. E por isso preparamos uma mesa posta linda
em tons de amarelo, além de Marta ter feito um bobó de camarão delicioso.
A surpresa da noite foi Jonas ter faltado a confraternização, porque teve que
trocar o turno no trabalho, pois era enfermeiro.
A noite estava fria, com o céu parecendo carrancudo ao desaguar
impiedosamente sobre a cidade. Luana, eu, minha sogra e o filho ficamos
conversando nos fundos do quintal, tomando chocolate quente e falando
sobre a vida.
— Eu amava tomar banho de chuva! — Marta disse, em dado
momento. — Josiah, então, quando era menino, eu tinha que lhe dar umas
palmadas, pois corria para fora durante a chuva, e volta e meia terminava
resfriado.
— Era mesmo... — Lucah concordou, sorrindo, fazendo pequenas
rugas surgirem nos cantos dos olhos. — Jow perambulava pela chuva, com
os pezinhos descalços, sujando-os e depois espalhando lama pela casa. Eu
tinha que pegá-lo no colo, para evitar que meu pai o visse e lhe punisse...
E todos os sorrisos cessaram quando Lucah disse aquilo. Notei seus
olhos marejando, e Marta imediatamente respirou fundo. Olhei para a
caneca branca fumegante em meu colo, pensando no meu namorado, que
fora tão maltratado por aquele pai cruel, desgraçado!
— Podíamos tomar um banho de chuva agora... — Marta sugeriu,
fazendo com que trocássemos olhares.
— Nesse frio? — Luana indagou, mas, vendo que Lucah e eu
estávamos considerando a hipótese, deu de ombros. — Ok, vou colocar um
biquíni, porque não vou molhar minha roupinha, né...
E, dando-nos as costas, minha amiga entrou saltitando na casa. Marta e
eu decidimos seguir a ideia da Lu, e, depois, corremos em grupo para a
chuva. Me senti literalmente uma criança, rodando enquanto a água
percorria o meu corpo. Era incrível o quanto a chuva podia ser revigorante.
Estava frio, e a água gelada escorria, ensopando o meu biquíni branco,
além do resto do meu corpo. Eu sentia as gotículas pousando em meu rosto
e sorria. Encarei a Marta, enquanto a via anestesiada, de braços abertos com
um maiô vermelho, com a maquiagem borrada, enquanto sorria e olhava
para o céu. Lucah a sacudiu, abraçando-a pelas costas.
— Você é a mãe mais maneira que alguém poderia ter! — ele disse,
girando-a em uma volta, como se estivessem dançando.
E aquele momento, com Lu, Marta e meu cunhado, enquanto
dançávamos na chuva, fez me sentir feliz. Feliz de verdade, como quando
era criança, antes de tudo desabar em minhas costas.
Entramos correndo na casa, molhando a varanda ao buscarmos toalhas
para enrolar no corpo. Me joguei sobre o estofado de quintal, com o coração
batendo forte de animação enquanto minha sogra pousava delicadamente ao
meu lado, e depois envolvia minha mão direita na sua, dando-me um sorriso
de satisfação.
Terminamos a noite tomando vinho, sem termos preocupação com
trocar a roupa molhada. Nem contei quantas garrafas foram viradas naquele
momento. Mas estava tudo tão perfeito, tão... silencioso na minha cabeça.
Não havia vozes intrusas, sentimentos depressivos, não havia nada além da
sensação de plenitude. Observei Luana contando sobre o seu primeiro
namorado, sobre suas primeiras aventuras sexuais, nos causando
gargalhadas absurdas pela maneira como tinha sido um desastre.
Quando finalmente fui para o quarto, resolvi tomar um banho, depois
coloquei uma camiseta e uma calcinha, jogando-me sobre a cama do Jow.
Fiquei deitada um bom tempo, encarando um porta-retrato ao lado da
cabeceira. Era um mosaico em preto e branco de nós dois em poses bobas,
com a língua para fora, fazendo caretas...
— Ana... — Lucah chamou, batendo na porta.
— Entra... — disse, procurando a coberta porque estava de calcinha,
mas ela estava bem em cima da escrivaninha, porque eu tinha trocado os
lençóis antes de me deitar.
Lucah notou meu embaraço e revirou os olhos:
— Querida, eu sou gay! Não tem nada aí que me interesse... — disse,
fazendo-me dar um leve sorriso. — Mas posso esperar lá fora até você se
vestir.
— Não, pode falar...
— Ah, só queria te mostrar um áudio do Jonas... Ele mandou um
recado para você.
Lucah se agachou ao lado da cama, soltando uma gravação do
WhatsApp:
“Ana, sua traidora... Quer dizer que vocês curtiram à beça a noite
sem mim, né? Vai ter que me compensar me colocando em um dos seus
livros e me tornando um cara riquíssimo, ou, quando eu morrer, vou
assombrar você!”.

Dei uma gargalhada. Era a segunda vez que Jonas dizia que era para eu
criar uma história onde ele era rico. Quando abri a boca para comentar com
Lucah, Josiah surgiu na soleira da porta, atirando um buquê de flores em
cima de mim e do irmão. Pisquei, assustada, ouvindo-o me xingar, antes de
avançar sobre o irmão.
Foram momentos terríveis, nos quais meu namorado entendeu tudo
completamente errado, acreditando que eu o havia traído com o irmão. Se
Bernardo não tivesse imobilizado o Josiah, provavelmente teria acontecido
uma tragédia. Afinal, Lucah estava sob efeitos do álcool, sequer conseguiu
se defender, cambaleando para fora, sangrando...
Me senti tão vulnerável diante da grosseria e do descontrole do Jow.
Enquanto pedia para que ficasse calmo, tentando esclarecer a situação,
explicar que havia entendido as coisas de uma maneira errada, tudo o que
eu sentia era que o meu namoro estava indo por água abaixo, que o meu
relacionamento estava chegando em um ponto que seria impossível
retornar. Não tinha como controlar aquela situação, porque o meu namorado
estava completamente convicto do que achava ter visto. Eu me senti
quebrando ao ver o homem que eu amava gritando que me pediria em
casamento, atirando a aliança com fúria sobre o meu corpo, depois me
segurando pelo rosto, me atingindo com xingamentos. Senti medo dele, tive
medo do homem a quem entreguei tudo o que restava de bom em mim. A
decepção gritava, revoltada dentro do meu corpo, e fiquei tão ultrajada que
o agredi com socos, tentando o fazer me soltar. Naquele momento, eu
desabei em lágrimas de fúria, decepção, raiva...
Bernardo estava lá, chocado ao encarar a cena, e cheguei a me
perguntar se meu amigo também achava que eu era uma traidora, se
acreditava que eu era uma puta que seria capaz de ter um caso com o meu
cunhado. Senti tanta vergonha por ver que Marta e Luana também estavam
presenciando a minha humilhação.
Meu coração estava doendo, enquanto o apertão dele ao redor do meu
braço fazia com que me sentisse vulnerável. Estava tão triste e chocada, que
demorei a entender que ele gritava que eu iria sair da casa deles, que meu
namorado estava me expulsando de casa. Eu quis fincar os pés no chão e o
impedir, enquanto Luana se atirava contra o Jow, ansiando me defender.
Mas estava doendo tanto, eu estava tão dilacerada, que sequer consegui
reagir. Dentro de mim, a vontade de gritar contra aquela injustiça era
enorme, mas, ao mesmo tempo, me sentia tão humilhada com o fato de ele
sequer me conhecer como imaginei. Fazia com que eu me sentisse tão
ultrajada, que vi que Josiah não merecia o esforço de uma explicação.
Era tão estranho ver tanta raiva escapando dos poros dele, tanta fúria
destinada a mim vindo do homem que sempre me dedicou amor e cuidado...
Eu não tive chance, nem vontade de explicar as coisas, porque Josiah
estava transtornado e terminou o nosso relacionamento comigo de calcinha
e no meio da rua, onde ele me atirou, me desequilibrando e quase me
derrubando. Meu coração se fragmentou em milhares de pedaços, e senti o
mundo me engolindo, mas me obriguei a ser forte quando Marta me
abraçou, murmurando algo que, por estar nervosa e assustada, não ouvi,
enquanto me guiava para dentro da casa. Eu percebia os vizinhos me
olhando através das janelas ao redor da rua, e as lágrimas escorriam por
minha face, misturando-se à chuva.
E, nada, nada poderia me fazer ter vontade de ir atrás dele para
esclarecer as coisas. Josiah agiu de um jeito cruel comigo, e de maneira
injusta. O homem que eu amava disse que estava tudo acabado... E estava
mesmo!
Capítulo 21

Se eu agisse como você age, você não gostaria.


Eu mandei a real, mas você não iria acreditar nessa merda.
I Hate U, I Love U - Gnash feat Olivia O'Brien

Ana Oliveira
Dias atuais...

Josiah ficou me encarando, chocado e pálido, como se todo o sangue


do seu corpo tivesse sumido. Ele abriu a boca, prestes a dizer algo, então
desistiu, alisando o cabelo naquele gesto que sempre repetia ao ficar
ansioso, puxando os fios entre os dedos para trás. Seus olhos verdes
estavam marejados, e permaneci em silêncio, encarando-o, sentindo calor,
mesmo com o ar-condicionado da casa na temperatura mais baixa possível.
— Eu achei que tivesse caído sozinha... — disse, finalmente, limpando
as lágrimas que escorriam inutilmente, porque outras acabavam surgindo e
inundando o seu rosto. — Me... perdoe por... por ter machucado você!
Deus sabia o quanto eu desejei ouvir aquela última frase saindo de
seus lábios vermelhos. Eu quis, com toda a força do meu ser, que ele
soubesse o que o acidente em minha mão fez comigo. Que ter os ossos
estilhaçados, ter fraturado, quebrado os ossos em diversos pontos me
destruíram. Mas, no fim, aquela frase me deixou muito triste, afinal, dentro
do meu coração, compreendia que a situação havia sido um acidente. Eu
tinha certeza de que Jow não pretendia me machucar, que sequer tinha
percebido que eu cairia...
E como também fiz com muitas coisas sobre nós dois, eu não quis
contar a ninguém que foi enquanto Josiah tentava me tirar do surto que caí
da caçamba da picape. Não quis que Marta ficasse ainda mais decepcionada
com Josiah, não queria que Luana o odiasse ainda mais. E, principalmente,
não queria ouvir opiniões que me fizessem culpar com mais força o pai da
minha filha. Eu estava literalmente quebrada, em todos os sentidos
imagináveis, e não queria mais olhares ou comentários lamentosos sobre a
minha mão.
Percebi que Josiah não fazia ideia de que eu tinha quebrado a mão
porque me soltou e acabei caindo. Não quis que ele soubesse que também o
culpava por minha desgraça, assim como costumava fazer comigo ao me
acusar de ter agredido o nosso amigo.
Pelo que todos acreditavam, eu havia me machucado daquele jeito ao
fazer esforço para quebrar o som, e, em algum momento do surto, acabei
caindo enquanto estava sozinha.
— Foi um acidente, Josiah! — avisei, deixando-o me abraçar, louca
para retribuir. Mas havia uma coisa diferente em mim, uma compreensão
pesada e difícil sobre nós dois. Meu corpo começou a pesar, enquanto eu
sentia que meu coração estava se partindo mais uma vez. — Eu não preciso
perdoar algo que sequer foi sua intenção...
Estava tão irada durante a manhã, tão triste e revoltada com aquele
balde horrível que deixaram em minha porta. Só que tudo mudou
drasticamente quando busquei fugir da dor provocada por aquela pegadinha
perversa me atirando nos braços do homem que me odiava, mesmo que
soubesse que ele também sentia outras coisas. Eu sabia que o corpo dele
pedia por mim, assim como o meu ardia e gritava pelo seu, mas também
compreendia que existia mágoa, raiva, e eu via que ainda havia amor... Não
era ingênua. Só que, como Josiah havia acabado de me dizer, o amor que
sentia não conseguia suplantar a mágoa.
Já não era mais sobre quem havia tentado me sacanear usando a morte
do meu irmão. Tudo naquele momento girava em torno do que Josiah e eu
éramos, de nossos desencontros, das coisas que sentíamos e das coisas que
não falamos um ao outro.
Me aninhei em seus braços, sentindo tanta dor, que meus músculos
estavam tensos. Ele tinha um cheiro que eu venerava, que me fez chorar
muitas vezes ao lembrar o quanto sentia falta. Deitei a lateral da cabeça em
seu peito e deixei que lágrimas escorressem.
Acho que a Rita, minha psicóloga, se orgulharia das coisas que aqueles
momentos me fizeram compreender. Da decisão que tomei, das coisas que
seriam acertadas naquele dia, porque estava na hora daquilo tudo acabar.
— Meu Deus! — ele urrou, como se sentisse dor, me apertando entre
os seus braços. — Por que tudo isso tinha que acontecer? Por quê?
— Eu aprendi... — comecei, afastando-o com dificuldade, me
apoiando na ponta dos pés e segurando o rosto dele entre as minhas mãos,
enquanto olhava para cima, fitando-o — depois de tudo o que aconteceu
comigo, que não existem verdadeiros “porquês”, existem pequenos
fragmentos por trás de tudo o que acontece em nossa vida. E muitos desses
fragmentos são indomáveis, fruto do destino, do acaso, da ironia da vida. Já
outros poderiam ser controlados, foram resultados de nossas escolhas ruins.
Agora, não é possível nomear todos os fragmentos com exatidão, o que foi
culpa nossa ou o que não foi. Mas algumas coisas são claras na balança do
nosso relacionamento, pequenos pesos que a fizeram não só pender para um
lado de maneira desigual, mas arrebentá-la completamente...
— Filosofando, Docinho? — Ele sorriu, deixando uma lágrima
escapulir no local onde eu havia acabado de limpar com a ponta do
indicador direito, o indicador deformado, que era tão torto, que quase fazia
um arco para o lado. Josiah me surpreendeu, deixando um beijo leve sobre a
ponta do dedo. Meu ímpeto foi o de escondê-lo, mas consegui respirar e
somente o retirar dali lentamente. — Diga, Ana... Diga quais foram as
coisas que arrebentaram a balança para você, embora eu provavelmente já
saiba cada uma...
— Para mim, você me tratar como uma vadia ao terminar comigo foi o
primeiro peso — contei, vendo que ele realmente já esperava ouvir aquilo.
— Depois, eu ter omitido a verdade sobre a gravidez da Júlia também pesou
muito, porque eu não o tive por perto em nenhum momento, e, por mais que
sempre tenha negado isso dentro de mim, ter segurado a maternidade
sozinha acabou comigo. Eu criava ilusões de vê-lo segurando a minha
barriga, de vê-lo sorrindo ao sentir os chutes ansiosos que ela dava lá
dentro. Quando ouvi pela primeira vez o coração da nossa filha em seu
primeiro ultrassom, tudo o que consegui foi chorar, porque era você quem
eu queria lá, comigo, sorrindo ao ver aquela centelha de vida crescendo em
mim. Quando descobri que era uma menina, mesmo te odiando, escolhi o
nome Júlia só para combinar com o seu. Quando a vi pela primeira vez, em
uma ultra 3D, eram os seus traços naquele rostinho, e isso me despedaçou.
Sei que a culpa de não tê-lo ali também foi minha, mas aquilo minou a
magia da minha gestação. — Ele assentiu, fechando os olhos e sussurrou
um “sinto muito”. — O acidente com o Ber, minha mão deformada, você e
Isa, tantos pesos...
— Nunca fiquei com a nossa amiga — ele murmurou, fazendo-me
sentir os pelos do corpo eriçando, chocada, enquanto abria a boca em um
suave “O”, enquanto Jow abria os olhos e encarava os meus. — Isabela é
apenas minha amiga, jamais foi algo além disso. E acredito que você tenha
razão sobre terem fragmentos que temos certeza serem culpa nossa, e que
também existem os que não controlamos. Acho que posso dizer três pesos
que foram os piores para mim: você e Lucah; você não me contar que a
Júlia era minha, me privando de todos os momentos que você acaba de
citar, além de me deixar um ano e quatro meses longe dela, sendo um
completo estranho para a nossa filha; e tem o Ber...
— Josiah... — sussurrei, me preparando para finalmente ter a coragem
de me defender, de falar a minha versão dos fatos. Respirei fundo,
tremendo, sentindo o rosto queimando. O ar quase me deixava por inteiro, e
sabia que minha voz soaria trêmula e fraca. — Nunca existiu algo além da
mais profunda amizade entre o seu irmão e eu. Nunca!
— Ana... Não... Sem mentiras! — ele suplicou, segurando as minhas
mãos, tentando afastá-las.
Me obriguei a me manter firme, a não desabar mais uma vez. Me
obriguei a dizer tudo o que tanto quis, a atirar a verdade em seus braços,
mesmo sabendo que ele quebraria quando finalmente compreendesse o
quanto foi injusto com o Lucah, o quanto foram terríveis os julgamentos
que fizera do irmão.
— Em nenhum momento, nesses últimos três anos, você se questionou
sobre não ter me deixado contar a minha versão acerca da noite em que me
deixou? Que sequer me viu tocando o seu irmão? — indaguei, segurando o
seu rosto de maneira mais forte, impedindo-o de se afastar. Ele estava triste,
com o rosto vermelho, e seus olhos caídos e pesados me desconcertavam.
Eu seguia destruída, porque, dentro do meu coração, já sabia como tudo iria
acabar. — Porque o seu irmão era gay! Nos tornamos amigos de uma
maneira muito espontânea. Ele era namorado do Jonas e foram um casal por
muitos anos. Sua mãe, Luana, e até a Isa sabiam disso...
— O quê? — sussurrou, revirando os olhos de um lado a outro, como
se entrasse em pane. — Explica isso... Eu...
— Sim, Jow... Seu irmão estava me mostrando um áudio do Jonas
naquele dia, quando você entrou no quarto e entendeu tudo errado. Não
escolhi trair a sua confiança ao me tornar amiga do Lucah, as coisas
fluíram, porque ele aproveitava o seu tempo no exército para ver a mãe. É
muito fácil comprovar tudo o que estou dizendo, porque tenho uma
infinidade de fotos do Jonas e Lucah juntos...
— Shhhh! — ele murmurou, segurando a minha nuca, deitando a testa
na minha. — Então todo esse tempo você me deixou acreditar que tinha um
caso com o meu irmão? Não sei se isso consegue aliviar alguma coisa, Ana.
— Eu não o deixei acreditar em nada, Josiah. Você escolheu isso
sozinho, resolveu colocar esse peso na nossa balança, acabar com tudo sem
sequer me ouvir. Eu... fiquei arrasada. Você era o único homem em minha
vida. Sempre foi. Foi o primeiro e único que já beijei, o primeiro e único
homem com quem fiz sexo. E, mesmo sabendo o tanto que me entreguei a
você, o quanto eu era sozinha, escolheu achar que acabaria com a nossa
relação em uma traição absurda, descabida. Você era a minha lanterna em
meio a um mundo que só me mostrava escuridão, uma boia para uma garota
afogada. Mesmo assim, você conseguiu acreditar que eu renunciaria toda a
magia que me trouxe em um momento, que eu seria capaz de o trair.
— Você estava em nosso quarto, Ana, de calcinha, rindo com ele... —
Josiah acusou, soltando a minha nuca, dando um passo para trás. — E agora
está me dizendo que Lucah era gay?
— Sim! Vai dizer que Isabela não comentou nada esse tempo inteiro?
— perguntei, fungando e secando as lágrimas intrusas.
— É, não contou. Pelo visto, você não é a única a esconder
informações.
— Era sobre a sexualidade dele, sequer te dizia respeito!
— Tem razão. E, agora me diz, ser gay muda tudo o que meu irmão
fez? Muda a pessoa que ele era, as fotos que encontrei, a porra do terror
psicológico que fez comigo quando eu era um menino? Muda o fato de ele
nunca ter me defendido do nosso pai? — atirou as perguntas, impaciente. —
Sabia que eu morria de medo de ficar sozinho? Que pegava no sono
somente por exaustão, porque ficava paralisado embaixo das cobertas,
apavorado, temendo o que ele aprontaria caso eu dormisse? Que, além de
lidar com as agressões do Cristian, também tive que ser uma criança com
terror de dormir no escuro? Lucah tornou a minha infância um inferno com
suas maquinações, ainda colocava a Marta contra mim o tempo inteiro.
— Essas coisas eu não sei, meu amo... — tossi — Josiah. — corrigi,
ruborizando ao ver que quase o chamei da maneira que costumava fazer
durante o namoro. Até ele se assustou, me encarando com atenção,
parecendo ter gostado de ouvir aquilo. Jow caminhou até a geladeira,
sacando uma garrafa de água mineral, me fazendo notar o quanto as suas
mãos estavam trêmulas. — Nunca consegui ver o Lucah do jeito que você o
descrevia. Tudo o que conheci foi um homem gentil, honrado, que me
respeitava, que era apaixonado pelo namorado, pela mãe, e até por você...
— Deixa de mentira, porra! — ele gritou, apertando a garrafa com
força, a amassando e fazendo a água espirrar para fora. — Lucah sempre foi
sonso. Ele me enforcou quando eu tinha seis anos vestido com um traje
carnavalesco, fiquei com as marcas da mão dele em meu pescoço por uma
semana. Passei a morrer de medo de dormir sozinho, e minha mãe sequer
me deu crédito disso, acreditando ter sido o Cristian ou um de seus
capangas. Acordei com insetos sobre mim diversas vezes, encontrava todos
os meus brinquedos quebrados, meus trabalhos da escola eram destruídos, e
ele sempre negava ter sido o autor. Só que, quando eu vasculhei as suas
coisas, encontrei a fantasia de bate-bola que usara para quase me matar.
— Como você sabe que não foi o Cristian, Josiah? — inquiri. — Seu
irmão morreu enquanto estava indo ao hospital ver o nascimento da sua
filha...
— E você acha que isso foi pela Júlia? — ele gritou, atirando a garrafa
na porta do banheiro, causando um enorme estrondo e molhando tudo ao
redor. Fechei os olhos, tentando não me atingir com a sua agressividade. —
Não, Ana! Não era para nossa filha, tampouco para você. Era para me ferir.
Olha a mensagem que o seu “amigo” me enviou no dia em que Júlia nasceu.
Meu ex-namorado pisou duro até o quarto. Ele estava furioso, sacando
o telefone de sua mesa de cabeceira, caminhando de maneira nervosa até
pousar a minha frente, depois esfregando o dedo freneticamente sobre a
tela, finalizando enquanto exibia o aparelho para mim. Um nó pesado se
amontoava em minha garganta, e, mesmo com medo do que encontraria ali,
com medo de Josiah ter razão, aceitei ver o que o homem que eu amava me
exibia:
Cara, sua mulher está indo dar à luz a sua filha. Sua filha! E quem
está indo lá? Eu!
Senti as lágrimas escorrendo no rosto, com os lábios tremendo. Ergui o
olhar para o rosto do Jow, que me encarava de maneira necessitada. Sabia o
que Josiah esperava ouvir, o quanto acreditava que aquela mensagem do
irmão era para ferir, para dizer que Lucah estava se vangloriando por ter
roubado algo dele, porque, ele tinha uma imagem fixa do irmão como um
psicopata.
— Não posso dizer algo diferente disso — avisei, me levantando da
banqueta — A única coisa que entendo dessa mensagem, é que seu irmão
achava um absurdo ter que estar lá em seu lugar. Sei que você, Jow, espera
que eu diga que Lucah o estava humilhando, mas acho que você deveria
olhar as últimas palavras dele a você como um presente. Lucah te deu a
informação que eu neguei. Contou a você que sua filha estava nascendo,
que aquela bebê era sua. E ele fez isso enquanto você dava a porra de uma
festa desgraçada, que durou dias inteiros, não sendo interrompida nem ao
saber que ele morreu.
— Eu estava chapado, porra! Só vi a mensagem do Lucah no dia em
que você quebrou o som e atacou o Bernardo — ele gritou, me dando as
costas, segurando a cabeça com as duas mãos. — Eu... estava fumando
maconha e bebendo há dias, e quando soube que o meu irmão morreu,
continuei tentando fugir de tudo, do jeito que eu conseguia. O barulho, a
música, as bebidas me faziam esquecer.
— Seu irmão tinha morrido, eu estava com uma bebê recém-nascida,
sozinha, e você com uma maldita caixa de som altíssima tremendo a porra
das paredes da minha casa. Josiah, você é incapaz de admitir a porra de um
erro?
— Eu nem sabia que cê estava em casa, Ana — ele choramingou,
virando em minha direção. — Achei que estava na Marta. Não sabia que ela
estava viajando... Eu não sabia de nada. Quando Bernardo me contou do
Lucah, a única reação que eu tive foi beber...
— Nem quando Lucah morreu você deixou de odiá-lo?
— Você acha que eu queria odiar o meu irmão? — argumentou,
amargo. — Eu achava que, além de todo o inferno que me causou na
infância, que Lucah ainda tinha me roubado você! Como acha que eu
poderia ter sentimentos bons por alguém assim? Não sou a porra de um
santo... Mas também não sou um demônio. Eu não fiquei feliz por meu
irmão ter morrido, não o desejava mal. Apenas queria que ele ficasse longe
de mim, apenas isso.
Caminhei até o sofá da sala, sentando-me e bufando. Tantos
desencontros. Sentia que aquela conversa deveria ter acontecido antes...
Não havia satisfação em descobrir aquelas coisas. Causava frustração, fazia
eu me sentir imatura, por ainda ter alimentado o ressentimento do pai da
minha filha pelo irmão mais velho, deixando que acreditasse que tínhamos
um caso, apenas por ter rancor pela maneira como terminou comigo. Eu
enxergava os meus erros sambando sobre os meus olhos, assim como via os
dele.
Acreditei por muito tempo que ele havia dado aquela festa para me
irritar, e a continuou, mesmo sabendo que o irmão havia morrido. Acreditei
que Jow havia colocado o som naquela altura por pensar que a Júlia era
filha do Lucah, e que por isso não teve a consideração de não fazer
algazarra ao lado da nossa casa. Estava completamente errada... Josiah
sequer sabia que eu estava em casa.
Uma culpa horrível caminhou sob a minha pele, me fazendo voltar a
chorar. Céus! Eu estava despedaçava, destruída, de todas as formas
possíveis. Sim! A maneira como alimentei a crença de um relacionamento
com Lucah dentro do Josiah só piorou as coisas entre os dois. Eu fui
egoísta...
— Ana... — Josiah chamou, sentando-se sobre a mesa de centro. — Eu
ainda te amo!
Encarei o homem completamente exposto diante de mim. Sempre quis
ouvir aquela frase, aquela confissão. Em meus sonhos infantis, pedia a Deus
para que Josiah me dissesse aquilo. Costumava imaginar que voltaríamos,
que seríamos felizes, que todas as mágoas ficariam de lado e haveria um
futuro para nós. Mas, naquele momento, eu sentia muita dor. Sentia dor por
entender que todos aqueles desencontros, a maneira como exploramos a
insegurança e o ódio um do outro cavavam um caminho incontornável em
nossa história.
— Eu te perdoo por ter me tratado como uma qualquer no dia em que
terminou nosso namoro. Te perdoo por tudo, e peço que me perdoe também.
— pedi, segurando as mãos dele entre as minhas.
— Não consigo perdoar o que você fez ao Bernardo, Ana. Posso
perdoar tudo, mas isso...
— Não pedi perdão pelo Bernardo, Josiah — interrompi, puxando as
mãos. — Eu pedi perdão por não ter contado sobre a nossa filha, por... ter
mentido em relação ao Lucah. Mas não posso pedir perdão pelo Ber,
porque... não me lembro de ter feito isso.
— Você estava lá, Docinho — ele disse, de maneira suave e calma,
encarando-me nos olhos. Comecei a chorar copiosamente, porque doía ver
o modo como o meu amor acreditava que eu seria capaz de fazer algo
assim. — E, quando o acudi, quando encontrei o Bernardo no chão, ele
murmurou o seu nome.
— Eu não quero acreditar nisso... — choraminguei.
— Nem eu, Ana... Nem eu.
Desabei, chorando alto enquanto pensava sobre tudo aquilo. Eu
carregava tantos pesos na vida, tantas coisas erradas que fiz, mas nunca
conseguia me imaginar agredindo o Ber. Eu quebrei o som, me lembro
disso nitidamente. Mas sequer conseguia recordar-me de ter visto o
Bernardo naquela noite.
Eu não tinha bebido, costumava esquecer as coisas se bebesse demais
e usasse antidepressivos, e somente isso poderia explicar um apagão na
memória. Porém, estava sóbria, estava de resguardo e amamentando, mal
tinha recebido alta após dar à luz. Era um fato que eu havia surtado, que
estava no limite, revoltada, enlutada, com todos os meus traumas com
mortes voltando, com uma bebê recém-nascida chorando sem parar por
conta do barulho... Mas ainda não queria crer que eu era capaz de agredir
alguém daquela maneira, muito menos alguém que eu amava.
Fiquei horas em posição fetal, chorando sobre o sofá, enquanto Josiah
ficava me encarando, com o rosto inundado de lágrimas.
— Tenho que ir buscar a Júlia na creche — quebrou o silêncio. —
Você tem três opções: eu te levar à casa da Marta, ir comigo buscar a nossa
filha ou ficar com um dos meus amigos aqui.
Céus! Esqueci completamente da minha filha...
Fiquei pensando em minhas opções. Não queria ir para a Marta e
conhecia o meu ex-namorado. Ele não me deixaria sozinha por ficar
preocupado com a possibilidade de alguém me fazer mal. Queria uma
amiga para desabafar, para falar sobre o que estava pensado em fazer...
Luana estava trabalhando, então nem era uma opção. Não queria conversar
com a Marta sobre os meus planos, porque minha sogra tentaria me
desencorajar.
Algo surgiu em minha mente. Já que estava colocando as coisas às
claras com Josiah, achei que estava na hora de finalmente conversar com
outra pessoa que esteve em minha vida quando deu tudo errado e nos
separamos...
— Chame a Isabela, por favor! — pedi, me sentando. — Só quero
conversar com ela.
Josiah me encarou, franzindo as sobrancelhas, antes de arregalar os
olhos e ficar vermelho. Ele estava preocupado, e ficou previsível o que
estava se passando em sua cabeça.
— Por quê? Não está pensando em fazer alguma besteira, né? Lembre-
se que você tem a Júlia, que ninguém vai poder ser uma mãe para ela.
— Não vou me matar, Josiah. Pode ir tranquilo! — avisei. — Não vou
fazer minha filha ser órfã, como meus pais fizeram comigo.
Ele me encarou por alguns minutos, antes de pegar a chave do carro
sobre o rack da sala. Respirei fundo, sentindo um peso nos ombros. Estava
exausta, sentindo que um caminhão havia me atropelado. Josiah estacou
diante da porta, parecendo que ia abrir. Então girou a cabeça, encarando-me
por cima do ombro.
— Eu te amo, Docinho. Eu a amei por todos esses anos, por todos os
dias desde que a conheci... — avisou, partindo.
Fiquei parada por muitos minutos sentindo o coração partido. Deus!
Por quê? Por que fizemos tudo errado? Por que criamos essa muralha entre
nós dois? Eu o amava tanto... Faria tudo que pudesse para tê-lo de volta.
Mesmo que tivesse terminado comigo daquela maneira, o perdoava. Eu o
queria, mas sabia que não o teria mais. Não do jeito que precisava.
Capítulo 22

Meu Deus, eu pedi tanto pra não ir embora


Mas tenho que seguir meu caminho agora
Luísa Sonza – Penhasco

Ana Oliveira
Dias atuais...

Quando a imensa porta de madeira preta rangeu e uma minúscula ruiva


envolta em um short jeans e uma camiseta preta se esgueirou para dentro,
meu coração começou a bater de maneira frenética. Engoli em seco, vendo
mais uma pessoa com a qual eu fiz tudo completamente errado, mais uma
pessoa que machuquei e que também fez questão de revidar.
Havia medo no olhar dela, mesmo que tentasse ostentar uma postura
intimidante. Ela ergueu as sobrancelhas e cruzou os braços, pousando as
costas sobre a porta:
— Queria falar comigo? — perguntou, abrindo um chiclete e atirando-
o dentro da boca. Guardou a embalagem dentro do bolso frontal do short
jeans, depois grudou o olhar no meu. — Fala, Ana, estou aqui...
— Eu... — comecei, mas minha voz soou terrivelmente fina. Raspei a
garganta, limpando uma lágrima. — Quero pedir desculpa pelas coisas que
disse quando brigamos, pela maneira como “atirei” algo que doía tanto em
você...
Isabela ficou piscando e me encarando por muito tempo, boquiaberta.
Foram minutos constrangedores, nos quais permaneci na expectativa total
do que ela diria a seguir.
— Eu... — murmurou, e a maneira como seus olhos se encheram de
lágrimas me fez sentir uma pontada no peito. — Peço desculpas por ter dito
coisas horríveis a você nos últimos anos, e por ter tirado uma casquinha do
Josiah para te irritar.
Sequei uma lágrima assentindo para ela, enquanto a via
completamente vermelha e exposta diante de mim. Eu a vi chorar muitas
vezes durante os anos em que fomos amigas. Às vezes, enquanto Josiah
estava no exército, ela dormia comigo na casa da Marta e só chorava. Isso
sempre acontecia quando minha amiga tentava ficar com algum garoto,
porque revivia os traumas dos abusos que sofrera de seu padrasto. Ela não
conseguia deixar os homens a tocarem e, sempre que se apaixonava e
entrava em um relacionamento, acabava terminando nos momentos em que
surtava após ser tocada. Eu a abraçava e Isa dormia chorando, dizendo que
as únicas pessoas que ela deixava que a tocassem eram Bernardo, sua avó e
eu. Nem mesmo ter saído da casa da mãe ao completar dezoito anos a livrou
de suas sombras.
— Acho que pegamos muito pesado uma com a outra. E ver você com
a vaca da Luana ainda passou a me deixar mais enciumada — confessou,
respirando fundo, com um tom muito diferente do que costumava usar
comigo.
Ela morria de ciúmes da Luana, desde que começamos a andar juntas.
Tanto Bernardo quanto Isabela não a aceitavam bem, acho que não curtiam
a atenção dividida. Tudo começou a ficar mais evidente sobre o
ressentimento da ruiva pela prima do Josiah quando ele entrou para o
exército. Luana e eu morávamos na mesma casa, e isso inevitavelmente nos
deixava muito próximas. Mesmo que eu visse Isabela muitas vezes na
faculdade, em casa ou em nossas saídas, ela não respondia bem ao me ver
com a Lu.
Os momentos em nosso grupo quando estávamos todos juntos eram
ótimos para mim, mas era sempre constrangedor ver a Luana sendo
simpática com a Isa, dando o melhor de si, enquanto minha amiga não fazia
o menor esforço para retribuir.
Fiquei pensando em todas as coisas que fizeram nossa amizade ruir.
Será que o Bernardo também era uma das razões?
— Você também acha que fui eu quem agrediu o Ber?
Isabela engoliu em seco, e o que fez a seguir me chocou. Ela caminhou
até mim, meio vacilante, como se... estivesse incerta do que estava fazendo,
e então se sentou ao meu lado. Fiquei paralisada, enquanto ela soltava o
corpo lentamente sobre o sofá, deixando a lateral de sua perna encostada na
minha.
— Cê não está pensando em fazer uma besteira, né, Ana? —
perguntou, sem olhar para mim.
Só o gesto de se sentar ao meu lado e encostar no meu corpo, me fez
sentir uma centelha de felicidade. Eu passei a guardar muita raiva dela ao
ver a maneira como se encostava no Josiah, e, às vezes, enfurecida,
duvidava do seu trauma com homens. Afinal, ela se sentava no colo do meu
ex-namorado. Mas, mesmo em minha espiral de mágoas, entendia que Isa
agia sempre da maneira como me contava que era com os meninos. Ela
controlava, ficava em cima deles, nunca abaixo, nunca sob um abraço... E
seus toques em Josiah, ansiando me atingir, eram sempre assim, uma suave
alisada no braço, um beijo na bochecha, sentar em seu colo.
— Eu sou mãe agora — murmurei. — Não nego que a vontade às
vezes surge quando estou sofrendo, mas é só me lembrar da minha pequena
princesa e todos esses pensamentos vão embora — contei, sentindo a
maneira como ela pareceu retirar um peso dos ombros. — Não foge da
pergunta. Ainda tenho muitas...
— Não sei, Bostinha... — disse, balançando a cabeça. Eu a encarava o
tempo inteiro e vi que, ao dizer aquilo, ela fechou os olhos. Limpei uma
lágrima ao notar que fiquei feliz ao ouvi-la me chamar daquele nome. —
Tenho dúvidas sobre isso. Porque você foi a pessoa que eu mais amei nos
últimos seis anos. E mesmo que em muitos momentos sentisse vontade de
socar a sua cara, ainda a amava e odiava admitir aquilo a mim mesma.
Quando Jow me disse que você bateu no Bernardo, o interroguei por muito
tempo, incrédula. Até hoje não tenho uma convicção sobre isso, porque,
quando a levantei do chão, enquanto você estava caída diante do carro, seus
olhos estavam distantes, você parecia fora da realidade.
— Eu não consigo me lembrar de ter batido nele, Isabela... — contei, e
finalmente ela virou o rosto em minha direção, dando uma leve mastigada
em seu chiclete, com sua respiração exalando aquele cheiro doce que
sempre tinha.
Isa estava com o olhar cabisbaixo, e o rímel, como sempre borrado,
mais dessa vez um pouco mais, afinal, havia chorado. Ela me deu um
sorriso muito triste e, sutilmente, parecendo um gato, se aninhou no meu
colo, me surpreendendo, então a envolvi em um abraço. Meu Deus! Eu
comecei a soluçar, porque eu amava aquela porra de garota revoltada. Eu
amava aquela mulher, mesmo com tudo o que fizemos para nos magoar.
— Cê é uma vaca, Ana. Uma vaca com o dom de fazer com que
ninguém consiga realmente te odiar.
Sorri levemente, puxando suas costas contra o meu peito e beijando
aquele cabelo fedorentinho e vermelho. Eu a apertei, deixando extravasar a
saudade que senti.
— Continua lavando o cabelo apenas uma vez na semana? — zombei,
e Isa me ergueu um dedo do meio com unhas vermelhas e afiadas, sem me
encarar.
— Odeio lavar o cabelo... — admitiu, sorrindo levemente. — Acredita
que ainda não consegui perder a virgindade? — contou, do nada, me
fazendo levar um susto. Bom, quase um meio susto. Afinal, era meio
esperado que seus traumas não tivessem sumido de uma hora para a outra.
— E olha que o Bill é o maior gostoso...
— O Bill? — gritei, chocada.
— O quê? Ele é o maior gato... — disse, animada. — Harry sempre
tenta me pegar, jogando chaveco, me buscando em casa... Mas eu gosto
mesmo é do Bill. A gente meio que se pega no sigilo, sabe? Nem o Jow
sabe disso...
Comecei a relaxar, me sentindo mais leve com aquela mulher em meus
braços, e a apertei, vendo que ainda confiava em me deixar tocá-la. E
aquilo, vindo dela, era um gesto de confiança.
— E tem funcionado com ele? Tipo, cê consegue deixar o Bill te
tocar?
— Bom... — respirou fundo — Eu gosto dele, mas não consigo deixá-
lo fazer isso com liberdade.
— Ainda sou a única mulher que pode abraçar você? — perguntei,
beijando a cabeça dela inúmeras vezes, fazendo-a gargalhar como uma
criança.
— Agora você voltou a ser, né? Fazer o quê? Sou uma vadia que não
tem vergonha na cara... — disse, rindo, se virando e me dando um beijo na
bochecha.
Dei um leve sorriso, encarando o rosto redondo e perfeito dela com
carinho. No fim, minha raiva era pela rejeição que Isabela demonstrava, por
achar que era falsa ao ficar ao lado do Josiah após o nosso término e acabar
nossa amizade sem me dar chance de tentar contornar.
— Que bom! — sussurrei.
— E você e o Jow?
— Sigo apaixonada por ele e queria que a gente pudesse voltar.
— Que você é apaixonada eu nunca duvidei, assim como sempre
soube que a Júlia era filha dele.
— Por que não contou a ele então? — perguntei, curiosa.
— Porque não sou fofoqueira. Não contei sobre a Júlia, nem sobre a
sexualidade do Lucah, porque, por mais que ele fosse meu amigo, você era
minha irmã. Não achei justo falar coisas que você não queria que fossem
ditas.
— Ele vai ficar magoado contigo — falei, vendo ela dar de ombros. —
Contei ao Josiah ainda há pouco sobre Lucah e Jonas.
— E finalmente teve a coragem de dizer que nunca teve nada com o
cuzã... — E, ao perceber que soltaria uma ofensa, corou e me encarou. —
Me desculpe! Com o Lucah? — questionou, erguendo uma sobrancelha e
estourando uma bola de chiclete.
— Sim, mas ele, assim como você, não acredita que Lucah pudesse ser
um bom homem. Segue odiando e questionando tudo sobre o irmão...
— Eu não vou emitir minha opinião, porque é a mesma. Não mudou
após a noite em que brigamos por você ter usado os segredos que te contei
contra mim.
— Enfim... — continuei, tentando mudar o assunto, afinal, a visão de
Isabela sobre o meu amigo me deixava triste. — Acabei transando com o
Josiah... Hoje transamos para valer, mas já nos pegamos outras duas vezes
antes disso.
— O quarteirão inteiro deve ter ouvido a transa de agora, né? Seu
gemido é super escandaloso! — zombou, me fazendo corar feito um tomate.
— Aposto que os meninos estão tocando uma punheta lá em cima...
— Sério? — perguntei, chocada.
— Sim! E...
Antes que ela pudesse dizer algo, a porta da casa se abriu, com Josiah
entrando no recinto, carregando Júlia em seu colo. Foi lindo vê-lo com a
mochilinha dela sobre um ombro, enquanto colocava a filha no chão. Minha
pequena princesa veio correndo até mim, enquanto Josiah olhava confuso
para minha amiga e eu. Seus olhos corriam, desconfiados, de uma à outra.
— Mamãe! — gritou, correndo de maneira desajeitada, com seu
uniforme verde a deixando ainda mais graciosa. — Xaudade...
— Também senti saudade, meu amor! — disse, pegando-a em meu
colo e enchendo de beijos pela cabeça. — Você está linda com essa
roupinha...
Foi o primeiro dia em que a mandei de uniforme. Era uma camiseta
sem mangas de algodão, de cor branca e com viés verde oliva atrelada a um
short de helanca completamente verde. Sorri vendo Josiah pegando fralda
na bolsinha dela, pronto para trocá-la, afinal, estava realmente cheirando a
xixi. Ele ficou esperando, me olhando nos olhos, e pareceu desistir da
fralda. Notei que Jow havia percebido que era melhor um banho...
— Está linda mesmo! — Isabela elogiou, fazendo minha filha
finalmente a notar.
— Tia... — Júlia gritou, começando a pular em meu colo tentando ir
até ela. — Bincar?
— Ah, eu quero brincar, sim. Mas antes vai trocar essa fralda, está, oh,
fedendo... — Isabela disse, abanando a palma da mão aberta diante do
nariz, sorrindo.
Júlia deu uma enorme gargalhada, fazendo o meu coração se aquietar.
Minha filha era um enorme alívio em minha vida, me trazia muita
felicidade. Durante tudo o que aconteceu, em nenhum momento sequer me
arrependi de tê-la, de dar à luz a ela.
— Vem, filha! Papai vai tirar essa fralda e te dar um banho... Você quer
tomar banho? — Jow indagou, a pegando de meus braços.
— Não! — ela sussurrou, parecendo chateada. — Bincar... Tia... —
disse, apontando o dedinho para Isabela.
— Sim, você pode brincar com a sua tia, Coisinha. Mas antes vamos
fazer o que o papai falou — Josiah avisou, levando-a em direção ao
banheiro, com a filha dando uma bufada.
Disse a minha amiga que o ajudaria a cuidar da Júlia, e que depois a
levaria lá em cima, para que pudesse ficar um pouco com a criança até eu
conversar com o Josiah.
Demos banho nela em conjunto na enorme banheira preta. Júlia adorou
a água morna e, se começou o banho choramingando para não se lavar,
terminou brigando conosco em sua própria língua porque não queria sair da
água.
Peguei Josiah me encarando por vários momentos enquanto eu ajudava
a secar nossa pequena e linda Coisinha, sentada sobre a cama dele.
Desviava o olhar, mas ele começava a me devorar com os olhos. E enquanto
eu vestia a Júlia com o conjunto presenteado pela Isabela, deixando-a ainda
mais parecida com o pai por estar envolta em trajes pretos, Jow me roubou
um beijo casto.
Senti que olhei para ele como uma boba apaixonada, enquanto Júlia
batia palmas, afinal, nunca nos viu juntos assim. Sei que em sua cabecinha
ela não entendia nada, e que comemorava como se aquilo fosse uma festa.
Josiah sorriu para nós duas, e depois foi para a cozinha, enquanto me pus a
amamentar a nossa filha.
Tinha introduzido mais a mamadeira a ela nos últimos dias, além de
espaçar bem o intervalo entre as mamadas, para tentar começar a tirá-la dos
seios. Também fiz uma consulta com a médica para trocar o SOS que
aumentava meus níveis de prolactina, além de ela ter me passado um
medicamento para ajudar a secar a produção do leite. Minha filha ainda
pedia pelo “tetê”, mas com menos frequência.
Fiquei deitada de lado na cama do Josiah, com Júlia bem quietinha
enquanto mamava e mexia em meus cabelos. Ele estava preparando algo na
cozinha, parecendo com o semblante um pouco mais leve. Acho que era
bem nítido o quanto nossa filha trazia alívio para nossas tempestades. Jow
saiu para a buscar completamente abalado, agora jazia tranquilo.
— Vamos lá na titia? — perguntei, guardando o seio, enquanto Júlia se
sentava em meu colo.
A pequena estava sonolenta, mas se animou imediatamente ao ouvir a
palavra “titia”. Quando já estava indo até a porta, Josiah surgiu com um
prato. Olhei o sanduiche de atum com maionese e salivei.
— Deixa que eu a levo, pois quero dar uma palavra com o Harry, e aí
já aproveito logo.
Aceitei o alimento que me ofertou e o devorei sobre o sofá, enquanto o
ouvia subindo as escadas com a filha tagarelando em uma língua que só ela
falava. Josiah se lembrou que eu amava comer aquele sanduiche ao invés de
jantar, caso estivesse triste. Era um detalhe sensível que ele não esqueceu.
Exalei profundamente e me pus a organizar a louça que ele deixara
sobre a pia. Depois, resolvi que finalmente estava na hora de tomar um
banho. Estava com o corpo todo tensionado, e o jato potente de água quente
daquele chuveiro quadrado aliviou boa parte dos nós em meus músculos.
Fiquei um bom tempo de olhos fechados, com a testa pousada na parede
escura.
Assim que Josiah voltasse do estúdio, terminaria definitivamente as
coisas entre nós dois.
Quando senti o movimento atrás de mim, abri os olhos, assustada, mas
sentir aquela mão grossa deslizando pelos meus seios, aquele membro duro
roçando sobre a minha bunda, o cheiro que escapulia de cada poro dele, me
fez compreender claramente que Josiah se convidou para o banho.
— Você me ensinou a querer fugir da dor dessa maneira... — ele
sussurrou em meu ouvido. — Aprendi direitinho. Então, Docinho, me faz
esquecer tudo o que está quebrando o meu coração — implorou,
envolvendo os meus seios em suas mãos imensas, apertando-os com força,
me arrancando um gemido.
Deslizei os dedos dele para longe, girando-me sobre os calcanhares,
olhando para cima, caçando os seus olhos. Meu ventre estava quente, o
sangue fervendo e correndo enlouquecidamente pelas minhas veias. Meu
coração? Estava prestes a explodir, enquanto eu encarava a súplica
intrínseca em seu olhar. Fiquei na ponta dos pés e segurei o rosto de Josiah
entre as mãos, deixando o beijo mais cheio de carinho que consegui,
sentindo nossa saliva se misturar, nossas línguas se roçando, nossos lábios
sincronizados.
— Eu te amo... muito! — disse, entre o beijo.
— Também te amo, Ana! — Josiah revidou, respirando entre os meus
lábios.
Nos beijamos de uma maneira primal, com instintos animais vindo à
tona. Os lábios daquele homem trucidavam os meus, famintos. Josiah
cravou os dedos na minha bunda, apertando como se quisesse atravessar a
pele, me arrancando um gemido de dor. Quando soltou o meu traseiro, foi
apenas para agarrar com uma mão o meu cabelo, enquanto a outra se
enfiava entre as minhas pernas.
Seu toque não era gentil, era bruto, possessivo e necessitado. Josiah
me devorava com a boca, suas mãos grossas e imensas se dedicavam a me
fazer sentir o couro cabeludo arder, bem como a boceta incendiar com seus
dedos a percorrendo.
Desci a mão esquerda, envolvendo o seu membro gigante nela,
deslizando-a sobre a extensão daquele monumento. Minha boca encheu
d’água, sentindo o quanto estava duro para mim.
— Quero você na minha boca! — pedi.
Josiah rosnou, soltando um tapa muito forte em meu rosto. Minha
bochecha incendiou, mas sequer consegui chorar, porque o que realmente
encharcou com o golpe foi o meio das minhas pernas. Puta que pariu, eu o
queria... Eu queria Josiah acabando com cada pedaço do meu corpo.
Deslizei para baixo, agachando diante do meu ex-namorado. Respirei
profundamente, depois olhei para cima, vendo o olhar baixo que Josiah me
dedicava, notando a maneira como mordia o lábio inferior, enquanto o
masturbava. O cheiro do membro dele era divino e convidativo, e sentir
aquilo fazia o meu ventre arder, me pedindo para senti-lo em cada
pedacinho de mim. Depois, impaciente, agarrou o meu cabelo e puxou
minha cabeça para perto de seu pau, depois bateu com ele em minha
bochecha, que estava ardida por sua bofetada. Choraminguei de dor...
— Vai, Docinho... Lambuza meu pau e depois engole com essa
boquinha gostosa! — ordenou, me deixando louca com a maneira como sua
voz estava rouca.
Cuspi em seu pênis, depois espalhei a saliva pela extensão de seu
membro com a língua. Delicadamente o envolvi em meus lábios, sugando a
cabeça roliça e rosada, fazendo barulhos de estalos enquanto meus lábios a
soltavam, para depois voltar a sugar.
— Isso, porra! Mama, Ana! Mama o meu pau como só você sabe fazer
— Josiah pediu, flexionando os joelhos e apertando o meu queixo com uma
mão, enquanto a outra se enrolava em meu cabelo. — Masturba esse
grelinho enquanto me chupa, vai!
Me ajoelhei no chão com as pernas abertas, para facilitar o movimento
de envolver o meu clitóris com a ponta dos dedos, circulando-o, enquanto
engolia o membro do Josiah com vontade. Gemi, deslizando a boca para
frente e para trás em seu pau, sugando e sentindo o líquido salgado que
jorrava feito água dele, pousando em minha língua. Engoli o seu membro
cada vez mais fundo até o sentir tocando a minha garganta.
O tesão me inundava, ouvindo Josiah soltar gemidos enquanto eu o
chupava, enquanto me masturbava enlouquecidamente. Estava preparada
para aquele momento, porque conhecia o único homem a possuir o meu
corpo e meu coração. Sabia que ele faria aquilo, que me sufocaria com seu
pau, sem pena, socando-o forte na minha garganta.
Montes de saliva se amontavam em minha boca, enquanto o aperto
dele nos fios do meu cabelo era muito forte, com uma mão empurrando
minha cabeça para ir mais fundo, e a outra se dedicando a beliscar o bico do
meu seio direito.
Eu urrava de prazer e dor, sufocada com o pau imenso e inchado
estocando forte na minha boca. Comecei a ficar tonta, sem conseguir
respirar, enquanto sentia um orgasmo muito forte se aproximando, quando o
prazer tomou conta do meu corpo e eu explodi em um dos gozos mais fortes
que já senti na vida.
— Aaaah! — Gemi com o pau dele entre os lábios, enlouquecida, sem
conseguir desgrudar os dedos do meu clitóris, prolongando o prazer. Quase
desmaiei ao finalmente ter aquele pau fora da minha boca.
— Isso, Docinho... — Josiah elogiou. — Goza e enxarca bem essa
boceta, porque vou espalhar essa umidade no seu cuzinho antes de bombar
a minha pica nele.
Amolecida, quase tombando para frente, notei Josiah soltando o meu
cabelo. Ele alisou o meu rosto, fazendo carinho na minha bochecha
inchada, a que havia golpeado.
— Vem, meu amor! — Josiah chamou, desligando o chuveiro com a
mão direita, e com a esquerda me puxou para cima.
— Jow... — murmurei.
— Sim, Ana. Me peça o que você quer! — ordenou, descendo a boca e
sugando com força meu seio direito.
Gemi, morta de desejo. Josiah bebia o leite do meu peito e parecia
amar aquilo, eu podia sentir o pau dele ainda mais duro enquanto tinha o
meu seio em sua boca.
— Me fode, Josiah! Me fode, por favor! — implorei, olhando para
baixo, para aquela boca devorando a porra do meu peito.
Josiah arrastou os olhos para cima, enquanto soltava o meu mamilo.
Havia um fio de leite escorrendo dos lábios dele, que limpou com as costas
da mão, enquanto me encarava com fúria. Desci a mão por seu peitoral
musculoso enquanto o desejo me devastava e minha boceta parecia
implorar para ser preenchida.
— Por favor, coloca o seu pau em mim! — supliquei.
— Nem precisa pedir mais...
Josiah me virou de costas com brutalidade, soltando um tapa estalado
em minha bunda. Grunhi, enquanto ele apertava o meu rosto contra o
ladrilho do banheiro e puxava o meu traseiro para si, me fazendo ficar
inclinada. Jow se posicionou atrás de mim, roçando o pau em minha
entrada, enquanto eu gemia na expectativa. Quando ele finalmente deslizou
a cabeça do pênis para dentro da minha vagina, inclinei a cabeça para trás,
encostando os meus cabelos em seu ombro ao gemer alto. Josiah começou a
deslizar mais para dentro, me incendiando, enquanto começava um vai e
vem lento e torturante.
— Merda, Jow! Fode com força! — rugi, enfiando minhas unhas nas
coxas dele.
— Assim? — perguntou com um tom predatório, estocando fundo e
tão forte em mim, que soltei um urro de dor. — Responde, sua putinha
safada! É assim que você quer?
Josiah começou a me massacrar com seu pau, socando rápido dentro
de mim. Eu mal conseguia respirar com o pênis dele batendo no ponto mais
fundo onde conseguia chegar, por minutos incontáveis. Estava muito perto
do gozo, enquanto ele bombava sem pena alguma dentro da minha boceta.
— RES-PON-DE! — Josiah ordenou, parando os movimentos e
cravando os dentes no meu ombro, com muita força.
— Sim! — gritei. — Soca o pau com força, amor... — implorei. —
Estou quase gozando...
Senti o sorriso que me deu ao soltar o meu ombro, deixando-o sensível
e dolorido com as marcas de sua mordida. Josiah voltou a bombar forte
dentro da minha vagina, me deixando muito mole. Quando senti que estava
quase explodindo, ele saiu completamente de dentro de mim.
Meus olhos encheram-se de água e senti uma enorme frustração,
enquanto Josiah me puxava pelo braço para fora do box.
— Isso não se faz! — choraminguei. — Estava quase lá...
— Calada! Você vai gozar, mas com a minha pica dentro do seu cu! —
ele rosnou, me puxando ao deitar de barriga para cima no piso frio do
banheiro, trazendo minhas costas contra o peito, me abrindo em cima dele.
Apoiei os pés no piso frio como deu. — Já passou da hora de eu finalmente
sentir esse rabo, Ana!
Meu coração acelerou, o medo começou a se apossar do meu corpo.
Nunca o tive naquele lugar... Josiah nunca penetrou a minha bunda. Eu
estava excitada e querendo apenas dar para ele, e gozar com Jow dentro de
mim, mas não ali.
— Eu não sei se quero... — avisei. — Não acho que vou chegar lá com
seu pau na minha bunda.
— Shhh! Você vai gozar, Docinho! Te garanto — avisou, posicionando
o pau na entrada da minha vagina e deslizando sem aviso para dentro.
Gemi, relaxando o peso das costas contra ele, voltando a ser penetrada
com força enquanto Josiah puxava um dos meus braços para ficar atrás do
seu pescoço, acabei deslizando ainda mais para baixo em seu pau, tendo
que inclinar um pouco a postura na direção de seu rosto. Jow abocanhou um
dos meus seios e sugou para fora de mim o líquido que parecia venerar.
— Que coisa deliciosa! — Gemeu de boca cheia, literalmente com
meu peito dentro da boca, enquanto estocava dentro de mim com crueldade.
Cada vez que aquele pau entrava e saía, minha vagina se apertava e
uma pressão absurda começava a massacrar a pica dele dentro de mim. Eu
podia sentir o que ele estava buscando, o lugar certo que o pau dele
explorava para chegar exatamente no resultado que queria. Josiah bombou
sem pena o mais fundo que podia em mim, fazendo um barulho absurdo
com o choque dos nossos corpos. Minha boceta começou a explodir em um
gozo forte, empurrando o seu membro para fora de mim com um jato de
ejaculação, Josiah foi rápido, soltou a boca do meu seio e deslizou o pau
molhado para dentro da minha bunda.
— Porra! — gritei.
Eu estava em um orgasmo tão poderoso, que a explosão de dor e
ardência em meu ânus foi atenuada com a maneira que minha boceta
pulsava e jorrava. Eu estava louca de prazer, com meu corpo amolecendo
em cima dele, com minhas costas deitada sobre seu abdômen trincado.
Minha boceta latejava de prazer, mas meu ânus doía com a maneira como
havia sido invadido de uma vez só.
Josiah ficou um tempo parado, com boa parte do pau preenchendo o
meu traseiro. Quando ele começou a se mexer, aos poucos, cheguei a
lacrimejar com o sofrimento.
— Jow... — implorei, gemendo de dor. — Isso dói.
— Não estou sentindo nada além de prazer, Docinho — debochou,
lambendo uma lágrima que escorria por minha bochecha. Girei o rosto
ainda mais para perto dele, buscando algum conforto em seus lábios, aquela
posição estava desconfortável em diversos sentidos e era algo que eu não
estava acostumada, então Jow desceu a língua mesmo com a posição
desajeitada de nossos corpos, passeando por meu rosto até encontrar minha
boca, me dando um beijo como consolo enquanto deslizava mais fundo, me
fazendo gritar entre sua língua. — Ai!
— Shhh! Vou melhorar isso para você, ok? — consolou.
Como atenuar aquilo? Estava me rasgando, ardendo, e nem mesmo
quando perdi a virgindade senti tanta dor. Tombei a cabeça em seu pescoço,
respirando rápido e com dificuldade. Josiah deslizou dois dedos pelo meu
clitóris e foi fazendo movimentos por ele, enquanto deixava o pênis parado
dentro de mim. Aquilo foi lentamente me trazendo um alívio da dor que
explodia da minha parte traseira. Virei o rosto, procurando aqueles lábios
gostosos e macios. Josiah recepcionou minha boca com sua língua
aveludada, em um beijo tão gostoso, com uma tortura tão gostosa e precisa
pelo meu grelinho, enquanto deslizava três dedos para dentro da minha
boceta passando a massageá-lo apenas com o dedão, que comecei a pulsar.
Vendo que meu corpo começava a relaxar com suas carícias, Josiah
lentamente ia movendo o pênis. Enquanto ia me fodendo com os dedos, me
masturbando e se arremetia para dentro, comecei a gostar mais da sensação
que o orgasmo latente começava a me trazer. A maneira como o meu
clitóris começava a responder com espasmos fortes e se tornando cada vez
mais constantes fez o meu corpo inteiro ferver. Eu estava muito perto de
gozar e já não reclamava da maneira como Josiah começava a acelerar as
investidas em mim. Enquanto ele ia cada vez mais rápido e fundo, tanto
com os dedos quanto com a pica, meu clitóris pulsou de uma maneira tão
intensa, que gritei um gemido enquanto gozava.
Josiah acelerou os movimentos, esmagando a minha bunda enquanto a
comia sem pena, até finalmente jorrar toda a sua porra dentro dela.
Gememos, sincronizados, enlouquecidos.
— Meu Deus! — falei, respirando com dificuldade, enquanto sentia
seu membro grosso e duro pulsando e expulsando todo o seu esperma no
meu cu.
— Que delícia de rabo, Ana! — Jow sussurrou, puxando minha cabeça
contra o seu peito.
Ficamos deitados ali, no chão do banheiro por muito tempo, até
finalmente Josiah me guiar novamente para o banho. Meu corpo inteiro
estava mole e fraco, além de estar muito dolorido. Sequer precisava de um
espelho para ter certeza de que estava repleta de marcas que seriam
lembretes do toque dele.
Meus joelhos começaram a fraquejar ainda no banho, porque aquela
experiência de gozar vezes seguidas foi forte demais. Jow me ajudou a ir
para a cama, me colocando uma de suas camisetas pretas. Murmurei para
que ele trouxesse a Júlia para dormir e depois apaguei, com os destroços
daquela relação intensa, louca, forte, arrasando com o meu corpo.
Quando abri os olhos, raios de sol fracos entravam pelas frestas da
cortina na sala. Estava de bruços, ainda tomando coragem de me mover,
sentindo tudo doendo. Soltei um gemido baixo, me sentando lentamente.
Ao olhar para o lado, meu coração se apertou ao ver Josiah de barriga para
cima, com Júlia deitada em seus braços, com a cabecinha pousando abaixo
de sua axila e o bracinho minúsculo sobre o peito do pai.
Por quê, meu Deus? Não entendo por que tudo teve que dar tão errado.
Quase desisti do que estava prestes a fazer. Deslizei para fora da cama,
reunindo a força que ainda restava em meu corpo. Procurei a minha roupa,
que já estava suja, mas era o que tinha... Me vesti, depois catei todas as
coisas da Júlia pela casa, colocando em sua mochilinha.
Parei diante da cama, secando uma lágrima solitária enquanto
observava a maneira despreocupada com que os dois dormiam. Eram tão
lindos juntos. Júlia era a cara do pai, até o contorno do corpo era dele... Só
tinha as minhas covinhas e os cabelos que começavam a ficar castanhos.
Me sobressaltei ao ver Josiah abrindo os olhos ainda com o rosto
amassado. Percebi que ele notou o que estava explícito em mim, reparando
em cada detalhe do meu rosto. Delicadamente retirou a filha de seus braços,
colocando-a deitada de lado. Meu ex-namorado deslizou para fora da cama
imensa e baixa, caminhando até mim. Seu corpo imenso estava envolto em
uma samba-canção escura. Ele parou a minha frente, muito perto, com sua
altura intimidante sobre o meu corpo. Olhei para cima, inclinando muito a
cabeça para isso.
Respirei fundo enquanto tomava coragem e me preparava para falar,
mas fui impedida com ele agarrando um punhado de cabelo acima da minha
nuca, me encarando bem sério.
— O que foi? — inquiriu, me observando atentamente, depois
pousando um beijo delicado na minha testa enquanto exalava o meu cheiro.
Merda! Que... merda! Amoleci com aquele gesto, esquecendo a dor no
corpo, a dor no coração e fechando os olhos sob o seu beijo. Deixei
algumas lágrimas escorrerem por meu rosto, então balancei a cabeça e
tomei coragem:
— Isso precisa acabar! — avisei, segurando o pulso que ele usava ao
redor da minha cabeça. Tentei afastar sua mão, mas ele enrijeceu sobre o
meu corpo, tenso, respirando com fúria. — Precisamos parar com isso,
porque não vai levar a nenhum destino diferente da dor.
— Não!
— Não? — perguntei. — Vamos lá para a cozinha. Não quero a Júlia
acordando e vendo a gente se desentender.
Encarei aquele olhar raivoso dele, mas, no fundo daquele semblante, o
que flutuava era sofrimento. Josiah aceitou o que eu disse, soltando o meu
cabelo e caminhando para longe de mim, indo até a cozinha. Ele se sentou
lentamente sobre uma das banquetas. Caminhei até sua frente, hesitante,
tentando não vacilar diante da tensão que aquele momento provocava em
meu corpo.
Minha garganta ardia, reclamando da maneira como fora massacrada
pelo homem a minha frente, e minha voz jazia um pouco rouca. Meu pulso
estava acelerado, e o medo era um sentimento morando sob a minha pele
naquele momento.
— Eu quero você! — avisei, vendo-o se surpreender com a frase. —
Eu o quero mais do que qualquer coisa nesse mundo. Você não faz ideia do
quanto de amor existe em cada poro do meu corpo, um amor que grita o seu
nome. Mas não te quero pela metade. Não desejo um homem que me ama
em um segundo e no seguinte grita que me odeia. Eu o quero por inteiro, e
sei que não pode me dar isso — despejei as palavras, falando rápido,
ficando sem ar. Ele abriu a boca para dizer alguma coisa com os olhos
marejados, o nariz bonito e másculo avermelhando. Ergui a palma da mão
esquerda aberta no ar, em um sinal que suplicava que não interrompesse. —
Vou sair por aquela porta e você não vai atrás de mim. Josiah, você não irá
impedir que eu parta, você não vai tentar me trazer de volta se não
pretender me tratar com o amor que eu espero. E vou vender a minha casa.
— Não! — vociferou, me fazendo tomar um susto. Olhamos em
sincronia para a cama. Morri de medo da Júlia acordar assustada, mas,
graças aos céus, ela não despertou. — Não pode afastar minha filha de
mim. Por favor, não faça isso!
Josiah sussurrou, levantando-se e caminhando até mim. Dei um passo
para trás, tentando aumentar a distância, mas ele não deixou. Josiah me
agarrou pela cintura e deu um apertão forte em minha nuca.
— Para! — ordenei, baixo, sentindo-o respirar próximo a minha boca.
— Não vou aguentar, Ana! Não afaste a minha filha...
— Josiah, eu não disse que farei isso — expliquei, envolvendo o rosto
dele entre as mãos, sentindo muita pena da maneira como estava chorando.
— Eu disse que vou me mudar do condomínio, porque ficar ao lado da sua
casa não vai atenuar a dor que está me destruindo. Eu vou vender a casa,
procurarei um apartamento em um prédio seguro, aqui na Tijuca. Você vai
continuar convivendo com a sua filha, só não nos veremos mais.
— Eu mal a tive de volta. Não vai embora, Ana. Não vai... Por favor!
— implorou, roçando os lábios na minha boca, deixando diversos beijos
castos sobre ela.
— Jow... — choraminguei. — Eu posso ficar. Preciso de uma resposta,
uma única resposta, e assim eu fico.
— Qual? Me diz, Ana?
Seu tom era de súplica, seu rosto diante do meu estava perdido e
demonstrando um sofrimento tão grande, que meu coração parecia
esmagado. Merda!
— Você acha que consegue abandonar esse ódio e me dedicar os
outros sentimentos? Que consegue me retribuir apenas o amor que sinto por
você? — perguntei, fitando profundamente os seus olhos. Ele ficou em
silêncio, apertando os lábios ao soluçar. Eu podia ver através de seus olhos
verdes... Eu enxergava em sua alma que a resposta era apenas uma: não.
Engoli em seco, afastando com força os braços dele de mim. — Então, pode
buscar sua filha na creche às quintas-feiras, deixando-a na Marta na sexta à
noite. Pode fazer isso toda semana. Agora ela está aceitando melhor a
mamadeira, é só dizer que a Masha não mama peito... Também poderá ficar
com ela em finais de semana alternados, mas sempre a buscando e deixando
em sua mãe. Eu não quero te ver lá, não quero contato.
— Onde você pretende ir agora? — perguntou, engolindo em seco
enquanto secava o rosto com as mãos. Ele alisava o cabelo freneticamente
e, às vezes, pousava o olhar sobre mim, como se implorasse algo ao esperar
minha resposta.
— Vou para a sua mãe, até conseguir vender a casa e comprar um
apartamento.
— Ok! Fico mais tranquilo de vocês não ficarem sozinhas...
— Fica bem! — pedi, tentando passar por ele, em vão. Josiah me
travou com o ombro, virando o rosto para o lado e me encarando. — Para
com isso, por favor! Não quero uma relação assim... Sei que não somos um
casal, mas a maneira como estamos ficando juntos está me dando
esperanças que você não será capaz de cumprir.
— Eu quero você aqui, Docinho. Eu te amo!
— Eu sei que ama... Mas existem outras coisas também. E essas outras
coisas, eu não quero — expliquei, virando o rosto em sua direção. Meu
ombro mordido encostava no peito dele. — Ainda sou a Sua Ana... Você só
precisa me chamar, e agora sabe que, se chamar, eu volto... Mas só vou
entender que me chamou quando estiver disposto a se entregar por inteiro...
Sem esses traços tóxicos que acabam com a gente. Vou te esperar por três
meses. Se não me procurar nesse prazo, entenderei que posso seguir a
minha vida.
Não esperei que dissesse nada. Ignorei a maneira como ele chorava,
como urrava de raiva, tristeza e frustração, capturando a mochila da Júlia e
jogando com rapidez em cima do ombro, depois a buscando na cama,
enquanto a criança resmungava sem despertar do sono.
— Ana...
Deixei que ele chamasse o meu nome, mas fui implacável ao ir embora
sem olhar para trás.
Capítulo 23

Você grita alto, mas não consigo ouvir uma palavra que você diz
Eu estou falando alto, sem dizer muito
Sou criticada, mas as suas balas ricocheteiam
Você me derruba, mas eu me levanto
Titanium - David Guetta feat. Sia

Ana Oliveira
Há quatro anos...

Na noite em que Josiah me deixou, Marta não me permitiu ficar


sozinha. Ela se deitou ao meu lado e ficou abraçada comigo, chorando,
pedindo perdão por algo que sequer tinha sido ela. Eu estava tão triste, tão...
chocada com a maneira como as coisas aconteceram, que sequer consegui
pregar os olhos. Fiquei a noite inteira repassando cada maldito detalhe.
Como ele pôde fazer aquilo comigo? Eu me entreguei, confiei em
Josiah, acreditei que era o homem mais perfeito do mundo, o meu porto
seguro. Como pôde? Sequer me deixou falar. Acreditava que tinha uma
alma-gêmea, alguém com quem casaria, que teria uma família...
A indignação rastejava sobre a minha pele, mas a raiva volta e meia
era substituída pela sensação de tristeza. Flashbacks dos nossos momentos
dançavam em minha cabeça, momentos em que juramos amor eterno, em
que sonhamos com nosso futuro, com os nossos filhos...
A todo momento, o rosto dele sorrindo aparecia em minha cabeça com
o maldito lembrete em tarja preta de que eu jamais o veria sorrir para mim
novamente. Então essa imagem era substituída pela dele gritando e me
desferindo xingamentos, e meu coração era esmagado.
Josiah iria me pedir em casamento... Eu apertava a mão com força ao
redor do anel solitário que havia encontrado entre os lençóis, a joia que
atirara em cima do meu corpo. Chorei copiosamente enquanto deslizava
para fora da cama, fazendo esforço para não acordar minha sogra, que
finalmente havia conseguido cochilar.
Sequer me dei ao trabalho de vestir uma roupa decente, sequer me
importei de trocar o pijama longo de algodão cinza ao colocar a bolsa preta
por cima do ombro, enquanto apertava com força o anel contra a palma da
minha mão.
Peguei um táxi na porta do condomínio, enquanto raios de sol
começavam a surgir por trás das nuvens e a chuva finalmente parecia que
daria uma trégua. Fiquei em silêncio durante o percurso do carro até
Ipanema.
Meu rosto estava inchado, os olhos ardiam, o corpo inteiro parecia
doer. O braço que Josiah apertou tinha marcas por baixo do casaco fino do
meu pijama. Bufei, sentindo que até meus lábios jaziam inchados.
— Deus sabe de todas as coisas, moça... — o motorista do táxi disse.
Olhei para o retrovisor, onde ele me encarava por trás de óculos
quadrados. Era um senhor provavelmente mais velho que Marta. Seu olhar
era de pena. Sequer me dei o trabalho de responder. Jazia sem energia e sem
paciência para ouvir coisas em que, naquele momento, era incapaz de
acreditar.
Após pagar a corrida, desci em um prédio residencial de nove andares
em frente à praia. Apertei o interfone da portaria e me identifiquei, disse
que queria ir à cobertura. Enquanto esperava que liberassem minha entrada,
olhei ao redor. Um vento frio cortava o ambiente e balançava-me os
cabelos. O mar estava de ressaca, com ondas imensas e revoltadas
quebrando na areia, e uma espiral de pássaros escuros faziam uma dança no
trecho do céu acima daquela quadra da praia. As ondas impiedosas
lembravam o Jow. Lembravam a maneira como jogou toda a sua ira com a
força necessária para quebrar o meu coração e o reduzir a farelos.
— Pode entrar! — o porteiro avisou pelo interfone.
Ouvi quando o homem apertou o botão para destrancar o portão.
Enquanto subia até o apartamento linear que tomava conta do último andar
inteiro do prédio, fiquei pensando em como a vida era indomável. Eu não
tive controle sobre a maneira como o meu relacionamento foi para o buraco.
Quando cheguei à porta branca a minha frente, não precisei tocar a
campainha. Isabela a escancarou e ficou me encarando por um bom tempo.
Não havia maquiagem em seu rosto branco. Estava muito angelical e doce,
envolta em um pijama de pelúcia vermelho.
Isa finalmente tinha saído da casa de sua mãe. Sua família inteira era
muito abastada, rica de verdade, a avó paterna era uma das mulheres
figurando na lista dos grandes milionários brasileiros, e fora quem dera a
ela a cobertura de presente.
Isabela tinha uma grande conexão com a avó, mas jamais foi capaz de
contar a verdade sobre o que seu padrasto fazia com ela, afinal, o homem
era um juiz em uma posição importante, e sempre ameaçava usar o seu
poder para destruir as pessoas ao redor. Isa morria de medo de ele fazer algo
à mãe de seu falecido pai...
Era horrível como Diana, a mãe da minha amiga, jamais conseguiu
largar o homem que tanto maltratou sua filha. A mulher era uma médica,
pesquisadora renomada na área de células-tronco. A dependência emocional
era fortíssima, pois, por algumas confidências horríveis que fiquei sabendo,
ela já presenciara coisas às quais minha amiga fora submetida, e sequer a
defendeu.
— Vem, Bostinha... — Isa chamou, me puxando para um abraço.
Assim que meu corpo foi envolvido sob o seu, comecei a chorar
copiosamente. Isa me levou para dentro de sua residência, guiando-me a um
sofá sofisticado em uma sala dividida em três ambientes, com paredes altas
em tons claros e uma vista espetacular do mar à frente. Havia um enorme
piano de cauda vermelho ao lado do sofá. Eu já vi Isabela ali, muitas vezes,
pousada sobre aquele banquinho e tocando melodias tristes de maneira
perdida. Minha amiga tinha um talento nato para o piano, além de ter a voz
mais linda que já ouvi na vida.
Isabela sempre teve o sonho de poder estudar Música, mas a mãe a
humilhou tanto, dizendo que a voz dela era feia, que sua aparência era
deplorável para ser uma cantora, que minha “garotinha quebrada” acabou
desistindo. Ber e eu tentamos fazê-la entender que Diana era cruel, que
nada daquilo era verdade, mas as críticas a fizeram realmente negar a ideia.
e ela acabou se enfiando em uma faculdade de Marketing, da qual sequer
gostava.
Já conhecia o local onde estávamos, afinal, assim que ela foi morar ali,
passamos a ficar muito tempo juntas. Eram sempre mágicos os momentos
com ela, conversando sobre nossa vida, rindo, fazendo maratonas de séries.
Tinha vezes em que saíamos da faculdade e passávamos o restante do dia na
praia, tomando “mimosas” e zombando dos carinhas abusados que
chegavam para nos dar cantadas.
— Bernardo me ligou... — contou, trazendo-me de volta à realidade,
sentando-se ao meu lado e me puxando para deitar a cabeça em suas pernas.
— Jow é um burro mesmo!
— Bernardo também acha que eu traí o amigo dele? — indaguei.
— Sim... — sussurrou após uma enorme pausa. — O que Lucah estava
fazendo no seu quarto?
Ouvir aquela pergunta foi como sentir uma estaca de gelo ser cravada
bem no meio do peito.
— Você também acha que eu trairia o Jow? — gritei, me sentando,
sentindo o ar escapando do meu corpo.
Isabela me encarou, assustada, balançando a cabeça e negando, como
se fosse chorar. Seu rosto infantil e redondo começou a corar.
— Não grita comigo! — tentou ordenar, mas pareceu uma súplica, e
meu corpo inteiro se desarmou. — Claro que não! Eu sei o quanto você ama
aquele “pau no cu”. E fiquei decepcionada com o Ber por ele cogitar a ideia
de que você seria capaz de trair o Josiah.
Respirei fundo, aliviada por acreditar em mim. Por ver o quanto ela me
conhecia e tinha confiança no meu caráter. Contei todos os detalhes da noite
a Isabela, enquanto ela caminhava até um aparador em laca branca no canto
direito da sala, em frente a uma parede com painel ripado em uma madeira
muito clara. Ela pegou uma jarra de água em cristal e encheu um copo,
depois me entregou. Minha garganta realmente ardia, porque eu falava
freneticamente.
Bebia a água, o tempo todo apertando a maldita joia em meus dedos,
sentindo-a quase perfurar a pele da minha mão. Quando terminei de contar,
Isabela estava parada diante da porta de correr envidraçada que dava para a
varanda, de braços cruzados e encarando a paisagem à frente. Eu pousei o
copo em uma mesinha redonda e de tampo espelhado ao lado do sofá.
— Josiah é um burro mesmo, né? Já desconfiava que ele era meio
idiota... Agora, o Ber? Como ele não percebeu que Lucah é gay, cara? Ele é
super sagaz e observador, ainda deixou esse detalhe passar...
— Você ainda não contou nada a ele? — perguntei, chocada por ela
não ter falado para o Bernardo.
— Não, né? Você me pediu para não contar! — avisou. — Por que
você não procura o Josiah e esclarece as coisas? Se for mesmo para
terminar, deixe claro que você jamais o traiu e que ele é quem foi o babaca!
— Não tenho que procurá-lo, Isabela! Jow foi um canalha comigo, me
humilhou diante da rua inteira, atirou essa porra desse anel na minha cara!
— grunhi, mostrando a joia a ela. Isabela apertou os lábios, parecendo triste
com tudo o que eu contava. — Se depender de mim, ele que pense a vida
inteira o que quiser, pois podia ter feito tudo de maneira diferente.
— Acho que não é só o Josiah quem poderia ter mudado as coisas.
Você também poderia ter feito isso, se tivesse se afastado daquele cuzão.
Incrível que você passa maior pano para o cara, mesmo ele sendo um tarado
só porque é namorado do Jonas!
Apertei as sobrancelhas, notando o tom ácido e irritado em sua voz.
Ah, merda! Eu estava no meu limite, e aquele assunto acabava me tirando
do sério. Eu já tinha explicado a ela outro dia sobre a questão das fotos,
sobre o quanto Lucah era um homem de bem.
— O quê? — gritei, fazendo os olhos dela se arregalarem e encherem
de lágrimas. — Ele não é um pedófilo, e eu já te disse isso! Lucah é um
homem bom!
— É um pedófilo, caralho! — ela revidou, ficando vermelha e
cerrando os punhos ao lado do corpo. — Josiah filmou com o telefone as
coisas que encontrou naquela pasta, além de copiar para o pendrive, Ber me
contou que ele queria ter uma prova. Eram fotos podres, sujas, perversas,
que envolviam crianças! Eu odeio pedófilos, odeio esses desgraçados,
porque foi um deles que acabou com a minha vida, que me destruiu, e você
sabe disso, porraaa! — Isabela estava diante do meu rosto, vermelha,
parecendo ter duplicado de tamanho enquanto berrava ao ponto de ficar sem
ar. Os olhos dela estavam saltados e com lágrimas escorrendo sem parar. —
Se você visse o que o Bernardo me mostrou, não estaria defendendo esse
monstro! — cuspiu as palavras, com nojo.
— Eu já disse para você parar de chamá-lo assim! — berrei,
empurrando os ombros dela. — Você gosta de xingar as pessoas. Afinal, o
que esperar de alguém que faz bullying, né? — gritei, mas, quando a
compreensão do que eu disse me atingiu, já era tarde.
Senti um enorme estalo em minha bochecha direita e meus olhos
começaram a lacrimejar. Foi como se tivessem atirado fogo no local onde
Isabela bateu. Ela chegou muito perto do meu rosto, agarrou os meus
ombros e chacoalhou, gritando, urrando, parecendo estar fora de si:
— Eu confiei em você! — choramingou, quando finalmente parou de
gritar, ainda me sacudindo. — Te contei sobre algo que me destruiu, pedi
para que nunca mais voltássemos nesse assunto, e aqui está você, jogando
essa porra na minha cara.
— Eu... — tentei sussurrar.
— Foda-se! — ela gritou, agarrando o meu braço direito, cravando as
unhas cumpridas e vermelhas nele. — Você preferiu defender aquele
escroto, preferiu atirar meus segredos na minha cara por causa dele. Você
escolhe fechar os olhos para o que todos viram a respeito dos crimes do
Lucah, prefere ficar contra mim e contra o Josiah, tudo por alguém que
acabou de conhecer. Então some da minha casa e esquece que eu existo!
Nunca mais quero ver você, sua vaca! Nunca mais!
E soube que o que eu disse tinha cruzado um limiar, tinha tocado em
uma ferida da minha amiga que não teria volta. Usei o trauma dela da
escola para a atingir, atirei nela o rótulo injusto do qual a acusaram no seu
segundo ano do Ensino Médio. O rótulo que a fez tomar uma surra do
padrasto e a deixar de cama por semanas, o rótulo que a fez perder o garoto
que amava, o único que deixava que a tocasse...
Eu tinha sido uma megera. E quando Isa me arrastou para fora de sua
casa e bateu a porta em meu rosto, soube que ela nunca mais iria me
perdoar. Eu tinha destruído a relação com mais alguém que eu amava.
Acabava de perder mais uma pessoa.
Eu estava tão dilacerada e envergonhada, que fiquei horas sentada no
quiosque de madeira branca em frente à casa da Isabela. Estava jogada
sobre uma cadeira de madeira clara, e, provavelmente, quem passava pelo
calçadão pensava em como era visível que eu estava arruinada. Uma mulher
de pijama, descabelada, com a marca de um tapa na bochecha, se
embriagando, solitária e chorando...
Vi no espelho do banheiro que tinha um hematoma ficando arroxeado
em minha bochecha. Isa tinha uma força danada na mão...
Fiquei bebendo uma cerveja atrás da outra, encarando as ondas e me
sentindo suja, inadequada, tóxica... Estava tudo desmoronando. Como pude
ser tão impulsiva? Eu sequer senti as palavras saindo da minha boca, mas
escapuliram e atingiram a mulher que eu considerava uma irmã.
Peguei meu telefone dentro da bolsa com os olhos embaçados por
conta da bebida, e, ainda virando a garrafa de Corona sobre a boca, vi dez
ligações perdidas da Marta, cinco da Luana e duas do Lucah. Abri o meu
WhatsApp, que exibia um monte de mensagens não lidas:

Marta: Querida, estou preocupada! Volte para casa, por favor!


Marta: Isabela bateu o telefone na minha cara, mas não antes de a
xingar de diversos nomes. O que houve?
Marta: Ana, pelo amor de Deus! Minha pressão está subindo! Onde
você foi????
Luana: Ana, minha tia e eu estamos aflitas sem notícias suas. Onde
você está, amiga? Quer que eu vá te buscar?
Lucah: Ana, querida, aconteceu algo entre Isabela e você? Luana me
ligou e minha mãe está desesperada, porque você está o dia inteiro fora e
sem dar notícias. Ela me disse que Isabela deu a entender que vocês
brigaram e você saiu de manhã cedo da casa dela. Me avisa onde você
está, assim posso te buscar.
Meu amor: Como pôde? Eu te amava...

A mensagem do Josiah havia acabado de ser enviada. Meu coração


disparou, afinal, eu notei que sua foto de perfil, uma selfie com um cigarro
preto pendurado nos lábios, havia sumido. De repente, a imagem estava lá
novamente, mas, quando me preparei para digitar algo, fui novamente
bloqueada. Balancei a cabeça em decepção. Respirei fundo. Podia ligar para
ele e contar a minha versão em sua caixa postal, mas tudo o que consegui
foi apagar o seu contato. Não bloqueei, porque eu era uma boba e gostaria
de viver na esperança de que novamente dissesse algo, qualquer coisa,
mesmo que fosse apenas para quebrar meu coração.
Exalei profundamente, gesticulando para o garçom trazer outra
cerveja. E agora? Para onde eu vou? O que fazer dessa existência miserável
que ainda me resta? Olhei para a sacada do prédio da Isabela, tendo a
impressão de ver um vulto vermelho passando próximo à sacada
envidraçada. Mas eu estava longe, bêbada e com a vista embaçando por
conta do álcool e lágrimas.
Como eu fui fazer isso? Por que estraguei tudo com a Isabela? Saquei
meu telefone e liguei para o número dela, ansiosa, querendo poder ter a
merda de um botão que pudesse me dar a chance de voltar e corrigir tudo.
Mas a chamada foi direto para a caixa postal.
Decidi esperar... porque ela era uma pessoa geniosa e eu errei. Talvez...
talvez se ela esfriasse a cabeça, pudesse me perdoar.
O garçom mal deixou a nova garrafa e eu já devorei o conteúdo. Meu
corpo já começava a mostrar os sinais da intoxicação alcóolica, comecei a
ter soluços. Me assustei com o telefone vibrando entre os meus dedos. Tive
uma sombra de esperança de que pudesse ser Josiah ou Isabela, mas
murchei ao vislumbrar o nome do Lucah sambando na tela. Bufando,
resolvi atender:
— Oi...
— Oi! Onde você está?
— Estou indo para casa... — avisei, acenando para o garçom.
— Ok! Quer que eu vá para a minha mãe então? Quer conversar? —
perguntou com um tom preocupado.
Fiquei um bom tempo pensando no que fazer, e, pacientemente, Lucah
ficou em silêncio do outro lado da chamada. Não estava preparada para
desabafar com ele sobre as coisas que estava sentindo.
— Não! Estou indo para a minha casa — expliquei, deixando bem
enfatizado que a casa era a minha, não a de Marta. — Preciso ficar um
pouco sozinha. Diz para sua mãe que estou bem e que depois falarei com
ela. Até mais, Lucah!
Desliguei o telefone sem esperar uma resposta. Depois de errar a senha
do cartão duas vezes e conseguir pagar a conta exorbitante, peguei um táxi
que me deixou na porta do condomínio. Quando passei pela guarita da
portaria, ouvi uma piadinha sendo sussurrada entre o segurança do
condomínio e o porteiro, algo sobre “chifrou o filho do prefeito”. Eu estava
tão triste, sentindo-me tão pesada, que sequer tive forças de retrucar. Já
sabia que seria aquele tipo de fofoca que fariam a meu respeito. No fim das
contas, eu ficaria marcada como a “puta” que foi pega dando para o
cunhado.
Talvez fosse a bebida, talvez a dor, mas eu só queria ficar em um lugar
que sentisse que era meu. Algo que ainda não me seria tirado. Então,
quando entrei na casa amarela e observei a grama malcuidada, a densa
camada de poeira sobre o corrimão da varanda, as teias de aranha no alto da
porta, tudo o que consegui pensar era que aquela casa era minha, e pelo
menos aquilo eu não perderia.
Caminhei pela residência cheirando a mofo e poeira, espirrando,
deprimida com a maneira como os meus passos faziam eco pela casa. Tentei
não reviver as cenas do abandono da minha tia, mas era impossível. Eu
quase ouvia os meus gritos sendo sussurrados pelas paredes, o meu
desespero ao ser abandonada rastejando sob a minha pele.
Passei pelo corredor, caminhando até o meu antigo quarto que ficava
no térreo, antes de chegar à cozinha. Com o coração pesado abri a porta e
observei o ambiente, minha cama ainda estava lá. A única coisa que a
desgraçada da Marina não levou. Quando me joguei sobre o colchão da
cama de solteiro esbranquiçada, uma camada imensa de poeira se levantou,
mas não liguei para os espirros que me arrancou.
Fiquei horas ali, chorando e pensando em como seria a minha vida
daquele momento em diante. Eu fitava as teias que dançavam pelos cantos
das paredes, o piso de madeira laminado estufado, provavelmente pela
chuva que entrara pela janela azarada que tinha sido deixada aberta, e
pensava em como a casa estava acabada e malcuidada. Ri ao notar que era
exatamente daquela maneira que eu estava...
Fiquei horas relembrando momentos com o Josiah, olhando nossas
fotos no meu telefone, sentindo o rosto doer de tanto chorar. Fiquei rodando
diversos áudios dele em nossas mensagens de telefone. Ele tinha uma voz
tão linda... Será que um dia ainda o ouviria me chamando de Docinho?
Tinha uma compreensão em meu peito, a certeza de que seria muito difícil
esquecer o Jow, esquecer tudo o que vivemos, arrancar do meu corpo aquele
sentimento forte e dilacerante que sentia por ele. Seria uma caminhada
sofrida... E eu tinha que tentar, porque não havia outro caminho, senão
esquecê-lo.
A escuridão da noite já serpenteava pelo quarto, meus olhos sequer
enxergavam algo em meio à penumbra. Sentia a cabeça doendo e os olhos
pesados de tanto chorar. Os resquícios do álcool já tinham começado a
partir, então liguei para Marta. Disse a ela sobre a briga com Isabela, depois
contei que finalmente estava na hora de voltar para a minha casa. Minha
sogra resistiu à ideia no primeiro momento, adquirindo um tom de voz
choroso ao dizer que entendia, mas que sempre estaria lá para mim, que sua
casa também era minha, que eu era a filha mulher que não teve, e muitas
outras coisas que só me fizeram chorar mais intensamente. Foi difícil fazê-
la aceitar que eu iria continuar dormindo na minha cama empoeirada, mas,
no fim, entendeu que eu estava irredutível.
Assim que o dia amanheceu, levantei da cama batendo a poeira do
corpo. Bom, eu não nasci grudada ao Josiah. Eu perdi os meus pais, o meu
irmão, e fui abandonada pela minha tia. Eu consegui sobreviver a todas
aquelas perdas, eu era forte para um caralho e nunca mais tentaria morrer
por ninguém! Conseguiria, superaria as dificuldades e esfregaria na cara
daquele desgraçado que era capaz de seguir sozinha.
Com o pensamento fixo de seguir em frente, aceitei a ajuda da Luana e
fomos ao mercado no carro da Marta. Compramos tudo para dar uma faxina
na casa. Depois, passei em uma loja de móveis e comprei uma cômoda,
uma geladeira, fogão e utensílios para poder usar na cozinha. Fiquei com
medo de gastar dinheiro demais, então comprei apenas o necessário. Foi um
dia bem corrido, porque ainda contratei um faz-tudo para instalar as coisas,
pois paguei uma taxa a mais para eles entregarem os móveis no mesmo dia.
Eu estava sozinha, então combinei comigo mesma de economizar o
dinheiro que tinha na poupança da venda da casa dos meus pais. Usaria a
pensão por morte para poder pagar os meus gastos, junto com a renda que
tinha do livro. Mas meu salário como escritora oscilava bastante, então eu
nem contava tanto com aquilo.
Meu condomínio custava mais de um salário, tinha a luz, a água e
agora as compras, a mensalidade da faculdade... Céus! Eu tinha que dar
conta de tudo, mas, dentro de mim, tinha uma vontade de fazer dar certo tão
grande, que sentia que conseguiria.
Quando Luana foi embora, após ter terminado de limpar os vidros das
janelas e portas, continuei a faxina na casa. Era tanta coisa suja,
empoeirada, que fiquei completamente morta no fim do dia, com meu short
jeans encardido, e ninguém conseguiria ver o branco por trás da camada de
poeira em minha regata. Estava ajoelhada embaixo da pia da cozinha,
limpando as prateleiras embaixo do encanamento, quando ouvi o saltinho
quadrado de Marta sobre o piso. Me levantei, secando as mãos no short, e a
vi carregando dois potes. Sorrindo em um vestido solto e fino em tons de
rosa, disse que trouxe nhoque ao molho sugo e bolo de laranja. Depois,
Lucah surgiu atrás dela, trazendo sacolas com roupas de cama e banho,
enfiado em sua habitual roupa social. Fiquei tão emocionada, que, mesmo
suada e suja, eu agarrei Marta pelo pescoço e chorei. Sussurrei que a
amava. Marta devolveu a frase, concluindo ao desejar que desse tudo certo
em minha nova fase.
Quando finalmente consegui tomar um banho e me deitar, a casa já
cheirava melhor. E quando dormi naquela noite, tinha um leve sorriso em
meu rosto. A única lágrima a rolar por minha bochecha foi ao ver, pela
cortina entreaberta da janela do quarto, que a árvore de jamelão do quintal
começava a dar frutos. Eu pude ver o rosto fino do meu pai e, quando
estava quase adormecendo, quase pude ouvi-lo me chamar de Docinho...
Capítulo 24

Você me tem nas mãos. Nem sabe o tamanho do seu poder


Eu me posto como um gigante mas caio quando estou perto de você
Mercy - Shawn Mendes

Josiah Marquez
Dias atuais...

Eu aprendi, há pouco mais de um ano, o que significava o estado do


coma. Era um estado de inconsciência onde o cérebro não reagia a
estímulos, era quase assim que Bernardo se encontrava. Seu cérebro não
morreu, tinha estímulos o suficiente para que ele respirasse sozinho, para
que seu coração continuasse batendo, mas não para que conseguisse
responder.
Sempre que brigava com a Ana, sempre que eu me descontrolava,
passava dias longe de casa e era exatamente aquele o refúgio que eu
buscava. Quando olhava para o Bernardo, para todos aqueles fios
conectados ao seu corpo, tudo o que sentia era impotência. Não podia
ajudá-lo. Não havia qualquer coisa que eu pudesse fazer para diminuir o seu
sofrimento, para trazê-lo de volta à vida.
A mulher de cabelos negros e cacheados era uma presença constante
ao seu lado, com roupas simples, quase sempre enfiada em uma legging
escura e uma regata qualquer. Leda nunca saía do lado de seu filho,
afastava-se apenas quando eu chegava, e somente quando Isabela ou eu
dormíamos com Bernardo, é que a mulher se permitia ir embora. Ber não
teve um pai presente, e Leda não tinha familiares responsáveis o suficiente
para revezar o trabalho de ficar com o filho para que pudesse descansar.
Desconfio que a mãe de meu amigo não confiasse em mais ninguém perto
dele.
Eu não entendia como é que ela acreditava em um milagre. Leda vivia
com um terço para baixo e para cima, rezando e rogando a Deus que, em
um dia qualquer, seu filho melhorasse.
Ele não teve morte cerebral, meu amigo estava em um estado chamado
de “Vegetativo”. Seguia com sinais vitais, e até mesmo abria os olhos às
vezes, mas não conseguia interagir com o mundo ao redor.
Entendia que olhar para o Bernardo podia ser assustador, afinal, às
vezes ele contraía os músculos quando levava uma espetada na veia para
colher sangue. Lágrimas escorriam de seus olhos do nada, ele mastigava a
própria boca em movimentos involuntários ou abria os olhos e os deixava
assim por muitos momentos... Tinha vida em seu corpo, mas nada disso era
de maneira voluntária ou consciente.
Bernardo estava muito magro e franzino, embora o rosto estivesse
inchado, fazendo-o parecer bochechudo. Eu cortava suas unhas, fazia a sua
barba, ajudava em tudo o que podia. Mas meu coração sangrava sempre que
o via, e tudo o que mais desejava era acordar um dia com a notícia de que
Ber melhorou, de que ele despertou, de que meu amigo voltou a viver.
Aquele quarto de hospital era sufocante, mesmo que fosse muito
parecido com um hotel de tão requintado e bem-preparado. Ainda eram as
paredes azuis da cor do céu, mas que não remetiam a nada diferente do
inferno. Era uma cela em um purgatório, onde meu amigo estava
sentenciado a viver preso em um corpo inerte.
Sempre conversava com Bernardo, mas, às vezes, era incapaz de
conter o choro, principalmente em momentos em que contava algo sobre
como a vida tinha ficado bem pior sem ele. Em alguns desses momentos,
seus olhos escorriam lágrimas e me faziam crer que ele estava ouvindo.
Era mais um dia em que aproveitei para lhe contar as coisas, e, mesmo
que não pudesse responder, falar com ele fazia com que me sentisse melhor.
— Ana disse que nunca me traiu... — contei, segurando a sua mão. —
Entendi tudo errado, Ber. Eu estraguei as coisas com a mulher da minha
vida porque me deixei levar pelos ciúmes e por minha raiva do Lucah.
Senti uma lágrima escorrer, percorrendo lentamente o caminho por
minha bochecha até despencar sobre a cama, molhando o lençol. Estava
sentado em uma poltrona ao lado de sua cama, segurando sua mão ossuda
por conta da drástica perda de peso. Queria tanto que Ber estivesse comigo,
que... nada daquilo tivesse acontecido. Era fácil atirar coisas da boca para
fora quando eu estava puto e responsabilizar outras pessoas, mas a verdade
é que sentia muita culpa por meu amigo estar naquela cama.
Há duas semanas, quando Ana jogou na minha cara que jamais me
traiu, que o cretino do Lucah era gay, o mundo caiu sobre mim feito uma
avalanche. Eu quis desabar, mas me mantive forte. Um vendaval de
palavras gritava dentro de mim que todos os desencontros que me
separaram da minha mulher eram responsabilidade minha. Culpa do meu
fodido descontrole.
Contei ao Bernardo sobre o balde que usaram para sacanear a Ana.
Sobre como Harry o levou para o estúdio e me entregou, e como fiz questão
de atirar sobre a mesa de madeira lustrosa e cara do gabinete do Cristian,
assim que ele voltou de viagem. Narrei cada detalhe de como acusei o
desgraçado do meu pai por estar infernizando a minha mulher, mas ele era
tão cretino, que se fingiu de desentendido e grunhiu que provavelmente fora
um amante enciumado da Ana. Gritei ameaças contra o meu pai, avisando-o
para se manter longe dela caso não quisesse os seus podres vazados na
imprensa. Só não o fiz engolir o balde, porque um de seus seguranças
engravatados me conteve, me jogando do lado de fora e batendo a porta do
gabinete em minha cara.
Continuei narrando os acontecimentos ao meu amigo, soluçando ao
lembrar da minha “lavagem de roupa suja” com a Ana, sobre ela dizer que
não se lembrava de ter feito nada a ele. Chorei como o homem fraco que
era, pedindo perdão ao Bernardo por ter feito tudo de maneira equivocada e
ele ter acabado na hora errada diante do meu carro e das caixas de som.
Ana dizia que não o agrediu. Notei em seus olhos o quanto ela
realmente não acreditava que tivesse batido no Bernardo.
E será que bateu?
Minha percepção já tinha falhado uma vez...
Acreditei que a vi me traindo, mas, no fim das contas, não houve
infidelidade de sua parte. Ana ainda não me detalhara tudo o que havia
acontecido naquela noite, somente me disse que Lucah mostrava a ela um
áudio do namorado. Mas fazia sentido tudo o que ela me contou. Jonas
vivia enfurnado em minha casa, e eu sabia que aquele “baixinho” e metido
a engraçadinho era gay. Como nunca desconfiei? Também, né... Sempre vi
meu irmão arrastando mulheres escondido para a casa do meu pai, até as
empregadas ele comia... Já o vi fodendo várias delas pela mansão do
Cristian na Barra da Tijuca, e, pelo tempo que Ana me contou que ele
namorava o Jonas, chifrou o namorado com essas mulheres. Ou será que ele
só fazia aquilo para impressionar o nosso pai? E aí depois fazia outro
joguinho para a Marta, o do cara bonzinho que mantinha um
relacionamento sólido por anos e se engajava em causas sociais?
Minha cabeça estava um mar de confusão. Tava puto pra caralho...
comigo mesmo. Não reagi bem ao ouvir as verdades que a Docinho
esfregou no meu rosto. Não tive a atitude certa de reconhecer os meus erros,
pelo contrário, fui um otário e só tentei justificá-los. Tudo o que ela disse se
encaixava, sua reação revoltada ao me ver xingá-la na noite do término,
minha mãe e Luana se transformando em leoas para defendê-la. Como me
mantive tão cego a esses detalhes? Como fui tão idiota?
E o pior, o que doeu ainda mais, foi ouvir que Ana só caiu e machucou
a mão porque eu a soltei na caçamba do meu carro. Como pude esquecer
dela, que a estava segurando? Caralho! Meu peito ardia de dor ao pensar
que eu causei tanto sofrimento a ela, que a machuquei fisicamente. Não
importava quantas vezes ela dissesse que sabia que foi sem querer, eu ainda
me culparia. Eu a vi com a mão imobilizada por muito tempo, e sempre
ficava triste por ela e desejando confortá-la, mas acatava o que tinham me
dito, de que ela me “mataria” se eu ousasse chegar perto. Me sentia um
bosta, cara! Um merda! E ela era tão doce, como a primavera em pessoa,
como uma flor de tão delicada... Ana era tão bondosa que disse que me
perdoava. Como pude deixar aquela mulher escapar? Como pude ser tão
otário?
E se nada daquilo tivesse acontecido? Se eu tivesse pensado mais, se
tivesse tentado conversar com ela e não me entregado ao ódio? Estaríamos
casados, teria sentido cada chute da minha filha naquela barriga linda que a
Ana ostentava. Teria visto o nascimento da nossa filha, cada primeira
conquista dela no mundo, como andar, falar, a primeira vez que comeu...
Limpei uma lágrima, mas eram tantas descendo em cascata, que decidi
deixá-las livres. Talvez Ana já estaria carregando outra criança em seu
ventre. Eu teria mostrado a ela os locais lindos que vi pelo Rio de Janeiro,
trilhas com vistas tão lindas, que certamente aqueles olhinhos cor de mel
iriam brilhar.
Por que fiz tudo errado?
Ana era tão entregue a mim...
Como fui tão tolo?
E ainda tinha o Lucah. Estava evitando deixar a minha cabeça cravar
aquela sentença em meu peito. Estava evitando aceitar o fardo de que talvez
tenha sido injusto... Mas ainda tinha dúvida em meu peito. Mano, ele me
jogou milhares de coisas na cara quando questionei do porquê ele morava
com a Ana e não se importava das bebedeiras dela. Ele foi bem imbecil
comigo, me jogando piadinhas ou rindo quando Marta ficava ao lado dele
após eu acusá-lo. Me irritava a maneira como ninguém via isso nele... Meu
irmão só exibia esse lado imbecil quando estava sozinho comigo.
Era por isso que eu ainda estava reticente em aceitar a ideia de que ele
fosse um santinho como Ana o via... Como enxergar um santo naquele
sonso?
— Ana... Ana! Você está me enlouquecendo! — sussurrei, encarando a
minha mão que envolvia a do meu amigo.
Foram duas semanas difíceis. A dor me massacrava, porque a Ana me
deu um ultimato e parecia muito decidida a me deixar de lado caso não
voltasse da maneira que ela precisava. E sei que minha mulher tinha razão.
Sim! Minha mulher... porque Ana era. Ela apenas não sabia disso!
Só não me embriaguei ou procurei um baseado de tanto que doía,
porque ainda era pai. Eu ainda tinha obrigações com a minha Coisinha. Na
semana seguinte a Ana ter “chutado a minha bunda”, busquei a Júlia na
creche como foi acordado com ela. Isabela me ajudou com a criança, mas
me xingou de tudo que era nome quando a questionei por não ter me
contado sobre a história da traição, não contar que o Lucah nunca pegou a
Ana. Isa me chamou de otário e lembrou que cansou de dar dicas de que
nunca houve traição, de que Júlia tinha sobrancelhas idênticas às minhas, e
que eu era burro para cacete e nunca pescava suas indiretas.
Isabela me xingou tanto na semana passada... De trouxa, de idiota,
disse que era para eu ir de joelhos até a Ana, antes que a perdesse de vez.
Mesmo brava, ela passou o fim da noite de quinta na minha casa junto
ao Bill, me ajudando com a Júlia antes de ir embora. Isa estava na minha
casa porque teve uma luta muito esperada de UFC na noite da quinta-feira
passada, e por aquela razão é que Bill tinha ficado lá junto com a gente.
Senti uma parada esquisita entre os dois... Sei lá. Isabela nunca foi de
dar muitos sorrisos, mas volta e meia eu a via arreganhando os dentes para
o meu amigo. Será que estava rolando algo e não percebi? Caralho... Harry
ia ficar puto quando soubesse que o Bill pegava a Isabela. Eu é que não ia
contar, depois o grupo ia rachar e a culpa seria minha por fazer intriga.
A ideia era assistir juntos a luta, mas Júlia abriu o berreiro porque
queria ver um tal de “Mundo Bita”. Porra, ninguém conseguia fazer a
Coisinha parar de chorar, o único jeito foi deixar a criança tomar conta da
televisão e assistir a luta na telinha do meu telefone ao lado do meu amigo.
Sinistro, a criança já mandava na porra toda. No dia seguinte, eu cumpri as
duas sugestões que Isabela havia feito: um tablet para a pequena fera e uma
televisão no Ravina. Assim teríamos saída quando a pequena “rainha”
resolvesse bater o pé e dominar a televisão.
Quando me despedi do Bernardo e sua mãe, fui direto para minha casa.
Assim que cheguei, uma chuva chata e fina começou a desaguar, deixando
o ambiente ainda mais deprimente e aumentando minha sensação de ser um
fodido. Parei meu carro na garagem de casa e acendi um cigarro,
caminhando até a varanda, vislumbrando as gotas de água tomando conta
do solo. Traguei o fumo, me sentindo aliviar um pouco da tensão enquanto
soltava a fumaça pelo nariz. Desviei o olhar para a residência ao lado e senti
um aperto se cravando em meu coração. Estava acostumado a ver vida
naquela casa amarela, a ver um Docinho pairando por ali.
Estava esfriando, mas não podia fumar dentro de casa, afinal, minha
filha agora frequentava o meu “pedaço”. Aliás, já parecia mais a casa da
Júlia do que minha. Tinha brinquedo dela pela casa inteira, em cima do
rack, pelo tapete, além da caminha pequena que montei ao lado da minha.
Era engraçado ver o móvel rosa destoando de tudo ao redor, com lençóis
mais rosas ainda e pelúcias de todos os tamanhos em cima dela. Só que
minha filha detestava a cama, só queria dormir abraçada comigo. Ana me
disse que ela não curtia dormir sozinha, e fiquei horas tomando uma surra
para montar a caminha à toa... Bom, Isabela falou que, quando estivesse
maior, ela iria gostar de ter sua cama. Só que pensei em construir uma
parada maneira para minha Coisinha, um quarto planejado para ela... Mas
não fiz, porque... dentro do meu coração preto e estragado, ainda tinha uma
esperança de que eu voltasse com a mãe dela, e, se isso acontecesse,
daquela vez eu a pediria em casamento e ela não escaparia entre os meus
dedos.
Eu só precisava entender que não podia culpá-la pelo que aconteceu
com o Bernardo, afinal, eu não tinha visto Ana o agredir. Queria enfiar
aquela porra de certeza na minha cabeça, para ter a mulher que amava de
volta. Queria que nossa família ficasse junta, porque éramos uma família.
Ana e eu construímos algo em nossa união... Ainda éramos os pais da Júlia.
Cara, eu amava tanto a minha filha, tanto, que meu peito doía. Mano,
era doido demais esse amor de pai. Tudo o que ela fazia me arrancava
sorrisos. Eu podia ficar enchendo aquela bochecha gorda dela de beijos por
muito tempo, mas a Coisinha cansava e queria sair correndo para brincar.
Ontem, assim que Júlia chegou da creche, eu fui arrumando as coisas na
minha casa e Isabela levou a criança no parquinho do condomínio. Algum
pirralho empurrou a Coisinha e ela voltou com o joelhinho ralado, os olhos
e nariz vermelhos de tanto chorar. Me subiu um ódio do cacete, mas tive
que me controlar e lembrar que tinha sido outra criança.
Minha mãe me ligou hoje de manhã e pediu para a Júlia ficar um
pouco com ela. Uma sexta-feira se findava, e desde a noite anterior era para
minha pequena estar comigo. A avó estava com tanta saudade da criança,
que sequer a mandou para creche. Entendi que a Marta vinha sentindo falta
da minha filha, afinal, vivia grudada a ela, e agora Júlia passava a maior
parte do tempo comigo ou com a mãe.
Tudo poderia ser diferente... Eu poderia ter a mulher que eu amava de
volta em meus braços, poderia dormir e acordar com aquele cabelo cheiroso
ao meu redor, mas sabia que em todas as vezes que eu voltasse para visitar
o Bernardo, meu coração iria se partir com a dúvida de se foi ela quem fez
aquilo com meu amigo. Se fora a responsável por tirar sua vida, sua
comunicação com o mundo, o domínio sobre seu corpo.
Se eu estivesse errado, seria mais um pecado para minha conta.
Mais um peso na balança.
Mais uma estaca cravada no peito da mulher que eu amava.
Já era o primeiro passo entender que precisava pedir perdão por ter
duvidado da fidelidade dela, era o primeiro passo ficar horas pensando em
como me redimir pelo sofrimento que a causei sobre sua mão. Era o
primeiro passo entender que eu era o errado diante da maior parte dos
acontecimentos. Ainda queria ter a chance de conversar sobre cada detalhe
de tudo o que entendemos errado sobre o outro, e, na hora certa, aquilo iria
acontecer. Precisávamos falar sobre cada pequeno sentimento em algum
momento, para entender exatamente onde poderíamos tentar redimir a dor
que cravamos um no outro.
Eu estava muito fodido. Estava apaixonado por ela como na primeira
vez em que a vi, sentindo falta do seu cheiro de coco o tempo inteiro, me
tocando e pensando na Ana todas as vezes em que precisava aliviar o peso
na porra do meu saco, não conseguindo pensar ou sentir vontade de ter
qualquer outra mulher. Nenhum par de seios teria o peso gostoso dos dela
sobre as minhas mãos, nenhuma boca teria a temperatura ou a doçura dos
lábios daquela deusa, e nenhuma mulher jamais chegaria os pés do que Ana
era. Nenhuma mulher seria capaz de ter meu coração nas mãos, para pisar,
esmagar, fazer o que quisesse, como a mãe da minha filha tinha.
Eu a queria, queria a minha mulher, a mulher com quem sonhei dividir
todos os dias da minha vida. Só que tinha uma exigência dela que eu tinha
que respeitar: eu só podia ir até ela quando só pudesse amá-la, quando só
desse a ela os sentimentos bons.
Como curar o meu coração?
Eu amava a Ana.
Eu queria a Ana.
Ela também me amava. E, principalmente, a Docinho me perdoava.
Por que eu não conseguia simplesmente entender que não tinha certeza da
culpa da Ana diante do acontecido com o Bernardo?
Eu não a vi tocar nele.
Sentindo as lágrimas começarem a acumular em meus olhos, decidi
que poderia tomar ao menos algumas cervejas, já que a Júlia dormiria na
minha mãe. Caminhei até a minha mesa de cabeceira e peguei o porta-
retrato em moldura de madeira fosca e preta que sempre escondia dentro da
gaveta, o desenho sob a camada de vidro ficava escondido abaixo de uma
pilha de papéis. Fiquei encarando o meu Docinho, tão nova e tímida
naqueles traços feitos a lápis. De calcinha e sutiã, com um sorrisinho
singelo, os cabelos perfeitos e ondulados, a boca bonita e levemente
carnuda, os seios fartos quase escapulindo do sutiã, a barriga levemente
saliente e com a curva perfeita abaixo do umbigo para uma mordida.
— “Minha Rose”... — sussurrei, deixando uma lágrima escapar e se
espatifar sobre o vidro do porta-retrato.
Revivi cada momento desde o nosso término, lembrando a primeira
vez em que pousei meus dedos sobre aquela barriguinha e soube que aquele
bebê ali dentro era meu. Pensei na decepção que era ver Ana mentindo e
gritando que a criança que carregava não era fruto de nossa relação. Lembro
o desespero que invadiu o meu corpo quando percebi que Ana não
pretendia me deixar conviver com a Júlia. Eu ficava muito revoltado, a
odiava naqueles momentos, mas sequer tinha coragem de entrar na justiça
contra ela.
Ana se quebrou inteira muitas vezes, e a única menção à família que
ela tinha era aquela criança. Como eu poderia tirar aquilo dela? Eu a
odiava... Mas nem por um dia sequer deixei de amá-la. Eu não queria
aquele sofrimento nela, o de não ter a filha, o sentimento que eu
experimentava e sabia que poderia ser destruidor. E só por isso eu aceitei a
sacanagem que fez ao me afastar da Júlia. Apenas por isso eu me mantive
nas sombras recebendo migalhas da filha que tivemos, encarando de longe
aquela criança por um ano e quatro meses...
Eram muitos pesos na balança, como ela mesma dissera, mas eu os
perdoava. Eu a queria, como nunca quis tanto outra mulher em minha vida.
E entre mais e mais latas de cerveja, peguei o telefone e passei por cima do
meu senso crítico, humilhado, derrotado, sentindo saudade, liguei para ela.
Ela atendeu tão rápido, que cheguei a me assustar:
— Jow? — sussurrou, sonolenta, afinal, já era madrugada.
— Docinho...
— Está bêbado? — perguntou em um sussurro. Eu a ouvi batendo uma
porta, por que estava sussurrando? — Eu pedi para você não vir atrás de
mim se não puder me dar o que eu quero.
— Você está na Marta? — perguntei, sentindo meu coração dançando
feito o de um adolescente. — A sua voz é tão perfeita, sabia?
— Não importa onde estou, Josiah — grunhiu, parecendo brava. —
Não me ligue, por favor! Já está difícil o suficiente sem você fazer isso.
— O que está difícil, meu amor? — questionei, sorrindo ao ouvi-la
bufar. Até o meu pau se animou e endureceu com aquele som irritadinho
que saiu da garganta do meu Docinho.
— Esquecer você...
Fiquei em silêncio, apenas dando goles na minha bebida. E Ana fez o
que eu sabia que ela era a única que poderia fazer: Docinho pegou o meu
coração entre os dedos e apertou. Mas eu sabia que merecia...
— Você me disse para eu não te procurar enquanto não pudesse lhe dar
apenas os sentimentos bons, mas posso te procurar como amigo?
— Não! Não existe amizade por enquanto. Só ouvir a sua voz acaba
comigo — confessou, parecendo conter o choro. — Não venha atrás de
mim se não for me querer de verdade, Josiah.
— Eu sinto sua falta... Acordo e olho para a sua casa, como fiz nos
últimos anos, mas você não está mais lá, cuidando do lugar, chacoalhando
nossa filha ou irritada fechando as cortinas na minha cara — murmurei,
sentindo meu peito apertando e a garganta embargando. — Quero ser o que
você espera. Me perdoe, Ana! Por ter duvidado do seu amor, da sua
fidelidade, por ter machucado você, por ter feito tantas coisas erradas. Eu
sei que a culpa do nosso término foi minha, foi inteiramente minha.
E lágrimas e mais lágrimas inundam minha face. Meu peito doía de
tanta tristeza, porque eu não queria perder a minha mulher de novo. Eu não
queria deixá-la escapar entre os meus dedos mais uma vez.
— Eu já o perdoei, Jow — falou, enquanto eu podia ouvi-la abrindo
uma torneira. — Estou de braços abertos para você, mas somente do jeito
que eu disse... — Uma vozinha doce e inconfundível soou do outro lado,
sussurrando sonolenta a palavra “mamãe” e impedindo a Ana de terminar a
frase. — Preciso desligar. Vê se para de beber e dorme para cuidar da nossa
filha amanhã. E não fique me ligando, a menos que seja algo sério com a
nossa bebê.
— Eu te amo, Docinho.
— Também amo você, meu amor! — disse, com a voz cortada pelo
choro, fazendo um sorriso leve surgir em meu rosto com o jeito como me
chamou. — Agora você tem dois meses e duas semanas!
Capítulo 25

Agora, o dia sangra ao anoitecer e você não está aqui para me ajudar
nisso tudo. Eu abaixei minha guarda e você puxou o tapete
Eu estava me acostumando a ser alguém que você amava
Someone You Loved - Lewis Capaldi

Ana Oliveira
Há três anos...

Um ano se passou e Lucah, Luana, Jonas e Marta, meu “quarteto


fantástico”, mostravam-se sempre presentes ao meu redor. No começo, eu
sequer tinha sofá, mas eles vinham até minha casa e traziam presentes,
como copos, utensílios, ou se convidavam para ficar sentados no chão
comigo. Depois passou a ter um tapete que Jonas me presenteou. Era um
mosaico colorido, onde amávamos ficar sentados até as costas doerem.
Quando Marta tinha que levantar do tapete, dois de nós a ajudávamos, e
Lucah sempre zombava, dizendo que ela estava sendo “rebocada”. Com os
meses, a casa foi ficando mais bem mobiliada. Lucah me deu uma televisão,
comprei um sofá e duas poltronas, Luana me deu um micro-ondas... Tudo
estava se ajustando.
Após alguns meses em que estava em minha casa, Lucah veio morar
comigo. A mãe sugeriu que eu alugasse o quarto que eu dormia para ele e
me mudasse para o superior. Ela tentou que Lucah voltasse a morar em sua
casa, mas, como ele achava que Josiah em algum momento fosse voltar
para casa, recusou. Pensei muito sobre a ideia e resolvi deixá-lo morar
comigo, só dividindo as contas meio a meio. Aquilo me desafogou muito
financeiramente. Além de que, como morávamos juntos, meu cunhado
conseguiu me colocar como sua dependente em seu plano médico no
trabalho.
A verdade é que passei a amar ter Jonas e ele pela casa, afinal, o
namorado do Lucah quase morava conosco, e volta e meia eu era obrigada a
ouvir alguma DR dos dois, ou coisas quentes que me faziam correr para
colocar os fones de ouvido, ou mesmo cair fora, inventando qualquer coisa
para fazer na rua.
A verdade era que eu amava não me sentir sozinha, adorava a ideia de
me sentir segura e acompanhada.
Sempre fugi de conversar com Lucah sobre o dia em que Josiah me
deixou. Eu não queria que meu amigo visse em meu olhar o quanto eu
culpava nossa amizade. Porque, se pudesse voltar atrás, não teria o deixado
se aproximar. Eu... teria escolhido o Jow. E não me orgulhava de reconhecer
a maneira como eu era dependente do amor do Josiah, mas era um fato. Não
deixei de sentir saudades dele por um segundo sequer nos últimos meses. E
por mais que tivesse aprendido a amar aquele cunhado que acolhia animais
desabrigados e lhes buscava um lar, aquele homem que mobiliara toda a
nossa casa, deixando cada espacinho com a nossa cara, que pregava quadros
bonitos pela casa, que pintava as paredes com cores bonitas ou que
cozinhava a melhor almôndega do mundo, eu escolheria de olhos fechados
não ter perdido o meu relacionamento com seu irmão e com minha melhor
amiga.
Eu tinha agora um sentimento muito dual pelo Josiah... Era como se o
amor se misturasse à raiva, e eu o xingava em minha cabeça, o xingava por
tudo o que me fez passar. Xingava por ter me deixado, mas ainda... Ainda o
amava e sentia que meus sentimentos não iriam embora tão cedo.
As noites pareciam me devorar, faziam meu coração sangrar, com o
tamanho da cama zombando da presença que faltava ao meu lado. Meu
corpo sentia falta do toque dele, minha mente parecia que enlouqueceria de
tanta saudade... Mas, mesmo com tanta dor, me obriguei a continuar
vivendo, a voltar a minha rotina na faculdade, a escrever um novo livro, a
publicar uma coletânea de poemas chamada “Costumava ser alguém que
você amava”.
A tarefa mais árdua era sentir vontade de comer. Minhas roupas
começaram a ficar largas, e Marta volta e meia puxava a minha orelha, mas
eu quase não sentia fome. Perdi oito quilos, meu rosto ficou muito fino e
tive que me desfazer de quase todo o meu guarda-roupas.
Logo após o término com Josiah, minha psiquiatra me disse que
orientou a minha sogra, que me acompanhara na última consulta, a ficar de
olho em mim, porque aquele momento era de mais perdas significativas.
Mas a médica me elogiou, disse ter ficado orgulhosa por eu não ter buscado
a fuga que tentei outras vezes. Eu realmente percebi que todos ao meu redor
estavam com medo de mais uma tentativa de suicídio, mas logo entenderam
que aquilo sequer tinha passado por minha cabeça. Eu me sentia tão
injustiçada pelo Jow, tão... revoltada, que seguir em frente era uma questão
de honra.
Às vezes, eu fuxicava o Instagram do Bernardo só para poder ver as
fotos do Josiah, porque ele havia me bloqueado e privado o conteúdo
apenas para amigos. Ele estava sempre sério nas fotos, o olhar jazia triste e
o rosto estava muito abatido. O amigo do Jow colocava fotos dos dois em
locais estranhos, como se viajassem nas folgas. Tinham fotos nos Lençóis
Maranhenses, em trilhas, em bares e restaurantes. A foto mais recente
deixava claro que eles tinham recebido a titulação de Sargento. Era uma
foto linda do Jow, com os olhos brilhando, ao lado de um rapaz moreno e
outro careca, além do Ber. Todos em uma selfie, com a legenda
“Finalmente Sargentos, porraaaa”. Eles trajavam um uniforme de gala,
parecia um conjunto de terno em verde militar. O careca era o mais
carrancudo da foto, embora fosse bem bonito, enquanto o moreno ostentava
um largo sorriso. O rosto dele era cheio de furos...
Bernardo nunca mais falou comigo, tampouco Isabela. Certa vez,
esbarrei com ela na faculdade, tentei dizer algo, mas ela só me xingou de
“puta” e saiu andando. Acho que me conformei de que não teria mais volta
com nenhum dos três. Ber acreditava que eu tinha traído o seu melhor
amigo, Jow me odiava pela mesma razão. Mas a Isabela? Conseguiu me
fazer querer a ruptura de nossa amizade tanto quanto ela. Isa... escolheu me
magoar de volta.
Sabe o que mais doeu nesses últimos doze meses? A foto que vi no
Instagram dela, uma fotografia em que estava com Josiah. A primeira
imagem na qual ele estava sorrindo plenamente, afinal, parecia triste em
todas as outras, mas nessa... Com Isabela sentada em seu colo, havia um
sorriso largo em seu rosto, um brilho em seu olhar. Vi essa foto durante um
jantar com Luana e Marta. Eu chorei tanto com aquela imagem, tanto, que
Marta ficou com pena e me abraçou.
Quanta dor uma pessoa era capaz de aguentar sem ruir? Porque eu
estava começando a ficar cansada de tanto sofrimento. Não tinha mais um
local para cavar dentro do meu peito, um lugar de onde ainda arrancar
força.
Eu sabia que ele seguiria em frente, que encontraria alguém para amar,
que não seria como eu... Uma tola... Não tinha esperança no coração dele,
não como a que inundava o meu coração. Mas com a Isabela?
Comecei a perceber que o mar de esperança em meu peito, aquelas
águas estranhas que me faziam acreditar que o teria de volta em algum
momento, que ele talvez reconhecesse que errou e me pedisse perdão, que
aquela esperança já se afogava em si mesma.
Eu fiquei tão brava e revoltada, que mandei uma mensagem no privado
da Isabela, chamando-a de vadia, que revidou com vários emojis de
gargalhada, me bloqueando na sequência. Depois, percebi que Bernardo
também me privou de ver suas fotos.
Jow estava há um ano sem falar com a mãe. Soube pela Marta que ele
ligou no dia seguinte após ter terminado comigo, pedindo desculpas pela
maneira como falara com ela. Depois desse telefonema, o meu ex-
namorado não foi mais em casa, e sequer atendeu as chamadas da mãe.
Tadinha! Marta ficava tão triste com aquela situação. Acho que Josiah
sentia raiva por ela ainda ter ficado do meu lado após o término.
Aquela maldita foto dele com Isabela me fez ficar semanas em uma
rotina depressiva, até cheguei a faltar a faculdade por dias seguidos. Se não
fosse Luana ter me retirado da cama no fim de uma tarde, teria ficado mais
um dia lá, enquanto pensava em atear fogo no mundo, mas sem ter energia
até para tomar um maldito banho. Mas, com minha amiga, não tinha muita
discussão. Chegou arreganhando as cortinas, trazendo uma claridade
absurda para a minha “caverna” e me arrastando pelo antebraço para fora da
cama. Mal tive como discutir, porque me jogou de roupa e tudo no box do
banheiro, ligando a água quente em cima de mim. Lucah ainda mandou que
ela fosse mais gentil, preocupado sobre a soleira da porta do banheiro em
meu quarto. Já estava tão acostumada com a presença dele e Jonas, que
sequer tinha vergonha que me vissem seminua pela casa. Mesmo que Lu
estivesse sendo dura ao me obrigar a tomar banho, no fim das contas, se eu
continuasse na cama por mais tempo, acabaria afundando de vez na
depressão.
Eu só tomei banho, coloquei a roupa que ela me entregou e deixei que
me maquiasse, arrumasse o meu cabelo, e forcei o meu corpo a acompanhá-
los. Mas minha mente estava lenta, bem como os meus movimentos. Eu
ficaria bem, tinha certeza... mas demoraria um pouco. Aquela foto acabou
comigo, me fez entender que tudo entre meu namorado e eu tinha acabado,
que era passado... Só em pensar naquilo, lágrimas já se acumulavam em
meus olhos.
Meu pensamento estava um pouco distante, enquanto eu apenas seguia
o trio a passos lentos, com os braços ao redor de mim mesma, quase me
abraçando. Luana me enfiou em um vestido vermelho muito curto, uma
peça bonita em um tecido canelado, que pertencia a ela. Eu estava tão
magra, que o traje de mangas ficou um pouco largo ao redor do meu corpo.
Jonas contava alguma coisa inusitada que ocorrera em seu trabalho
enquanto seguimos a pé por dois quarteirões, com a noite quente do Rio de
Janeiro nos envolvendo, até chegarmos ao destino, um bar de fachada
amarela e com uma varanda imensa e amadeirada, ostentando mesas ao ar
livre. Era uma esquina movimentada, conhecida como a rota dos bares no
nosso bairro.
Finalmente havíamos chegado, porque a maldita rasteirinha que calcei
estava machucando o meu calcanhar. Estava há tantos dias na cama, que
aquela breve caminhada já me deixara ofegante.
Estranhei quando notei que o grupo parou de falar no momento em que
chegamos. Preocupada, girei meu olhar atento, passeando entre os três. Eles
estacaram, sem se mover, encarando em sincronia o mesmo ponto a nossa
frente.
— O que foi? — sussurrei, me assustando ao ouvir minha voz, que
sequer tinha deixado escapar ao longo do dia.
Lucah soltou a mão do Jonas, que seguia entrelaçando a sua, e
caminhou até o meu lado. Parou feito uma muralha ao meu lado, e senti a
maneira como ele estava tenso.
— Melhor a gente ir em outro lugar... — ele sussurrou, apoiando os
dedos magros e delicados em meus ombros, tentando me virar. — Não olhe
para lá, Ana.
Então meu coração saltou e meu corpo respondeu de maneira ansiosa,
meus ouvidos sequer escutaram mais alguma coisa. Porque, independente
do que eu veria, meu coração gritava de saudade, e tudo o que eu queria era
poder olhar para o Jow. Virei os olhos avidamente na direção do bar e corei
ao vislumbrar a picape do Josiah estacionada diante do local. Um vento
abafado percorreu o ambiente, fazendo o meu corpo arrepiar. Segui o olhar
do Lucah, com as mãos trêmulas e os olhos repletos de água. Então eu o vi.
E sabia que era uma tola, mas dei um leve sorriso ao finalmente poder
encarar aquele rosto. Josiah jazia pousado sob uma mesa do bar, com baldes
de cerveja diante de si. Ele sorria, animado, concentrado nas pessoas ao seu
redor, tomando uma bebida. Estava vestido como sempre, inteiramente de
preto. Isabela estava sentada entre Josiah e o rapaz que tinha tatuagens na
cabeça, onde deveria ter cabelo. Um homem moreno estava de pé, diante
deles, enquanto gargalhava e contava uma história que parecia animada.
Bernardo estava junto a eles, sorrindo. Eram os mesmos caras da foto que
Ber postou, os caras do Exército.
— É, galera... A gente queria tirar a Ana da fossa, mas a trouxemos
direto para o fundo do poço — Luana sussurrou. — Vamos embora!
Lu tentou segurar a minha mão e me puxar. E, embora eu estivesse
completamente despedaçada, muito triste ao ver a maneira como ele estava
sorrindo e feliz, ao lado... dela, isso me fez sentir vontade de ir àquela
merda de bar. Podia sentir a raiva tomando conta de mim, se apossando do
meu corpo como um demônio, e eu não sentia orgulho daquela Ana, a Ana
que era capaz de tudo...
— Não! Deixe que eles nos vejam, que sejam obrigados a nos aturar,
ou que vão para o quinto dos infernos! — rosnei, indo em direção ao bar de
maneira decidida.
Quando cheguei bem na entrada do recinto, minhas pernas quase
fraquejaram, mas me obriguei a entrar de cabeça erguida. Estava brava por
vê-lo feliz. Por vê-lo repleto de novas pessoas, seguindo sua vida enquanto
eu estava completamente devastada, enquanto cada novo dia era como
atravessar o inferno. Quase podia ver os movimentos em câmera lenta. O
primeiro a nos notar foi o Josiah, que sequer esboçou reação. Meu corpo
inteiro estava tremendo, mas fiz uma força absurda para não deixar meus
joelhos fraquejarem, enquanto meu ex me percorria dos pés à cabeça.
Depois deu uma golada em sua cerveja, rolando os olhos para longe de
mim. Em seguida, foi Isabela quem nos viu. A ruiva estava gargalhando,
mas ficou estática ao nos encarar. Enquanto eu passava pela mesa deles,
sendo seguida por meu trio de amigos, o rapaz moreno e que tinha
incontáveis piercings no rosto me olhou de um jeito safado, medindo-me
dos pés à cabeça enquanto mordia o lábio carnudo. Ele abriu a boca para
dizer algo, e, então, quando passei bem em frente ao seu corpo, indo para a
mesa em frente à que Josiah estava, o rapaz ergueu as sobrancelhas,
assustado:
— Aí, essa aqui não é a tua mina? A que te galhou? — o cara gritou,
encarando Josiah ao arregalar os olhos.
— Vai se foder, imbecil! — rosnei, parando minha caminhada e
virando o rosto bem na direção dele. — Estou a um passo de sentar a mão
na cara de alguém, então não se mete comigo!
Lucah me puxou pelo braço em direção à cadeira, sussurrando para
que eu ficasse calma, enquanto o amigo do Josiah começava a rir. Sabia que
meu amigo não estava confortável naquela situação, porque ele destetava
brigas.
— Prazer, Harry! Mas pode me chamar de imbecil... — debochou,
fazendo seu grupinho de merda soltar umas gargalhadas.
Fiz questão de sentar na cadeira que ficava bem próxima à parede, a
que ficava bem virada para a mesa deles. Trucidei Isabela com o olhar,
pronta para partir a cara dela ao meio na mínima provocação, mas ela
ignorou minha existência, bebendo sua Ice e encarando Bernardo, que, por
sua vez, parecia bem sério e não riu da piada do Harry.
O bar estava um pouco vazio, afinal, era bem caro em relação aos
vizinhos, que estavam até com as varandas lotadas. O ambiente em que
estávamos era sofisticado, com parapeito de madeira vazada ao redor das
mesas, tudo em uma madeira amarelada. Luzes pendiam do teto, eram
pequenas lâmpadas amarelas que davam um ar de requinte. Tinha um
balcão enorme de madeira mais ao fundo, onde um Barman trajando preto
preparava drinks. Vendo que Isabela se chegou para perto do Josiah,
alisando o braço dele ao sussurrar algo, me levantei e fui pisando duro até o
balcão. Pousei o corpo sobre um banco alto e com assento de couro.
O barman era muito bonito. Um homem alto, de cabelos escuros e
ondulados, olhos negros como a noite, uma linda boca carnuda, rosto fino...
Era gato! E eu poderia usá-lo para revidar a provocação dos dois imbecis.
Pedi um mojito e fiquei esperando, batendo as unhas com um esmalte
branco descascado sobre a madeira, vendo o barman realmente me dando
sorrisinhos. Desviei o olhar até a mesa dos meus amigos e notei Jonas
tenso, ao lado do namorado. Luana sutilmente direcionou um dedo do meio
à minha ex-amiga, sussurrando um “talarica”. Vi Isabela revirando os olhos,
não devolvendo a provocação ao cruzar os braços. Céus! Era melhor ter
ficado na porra da cama...
Encarei Isabela com o coração ardendo, observando-a trajada com uma
saia preta de cintura alta, com pregas e solta no quadril estreito. Trajava um
cropped da mesma cor, com um zíper passando no meio dos seios, aberto
para dar uma visão perfeita do contorno dos peitos, bem como o sutiã de
renda vermelha. A maquiagem era a mesma de sempre, com aquela bosta
de rímel escorrendo e um batom bem da cor de seu cabelo enfeitando os
lábios. Xinguei ao vê-la pousando um beijo na bochecha do Jow, que
encarou a boca dela, sussurrando alguma merda.
Nem era mais tristeza o que morava em mim naquele momento, era
raiva o que rastejava abaixo da minha pele tal qual uma serpente.
— Cretinos! — murmurei, pegando o mojito que o homem arrastou
pelo balcão em minha direção.
Apontei minha mesa para que colocasse a bebida na conta e engoli a
merda do drink em poucos goles, sentindo o gosto do limão com hortelã
deixar um sabor refrescante em minha garganta.
— Outro, por favor! — rosnei, sem deixar de encarar a provocação dos
dois.
Me sobressaltei ao notar Bernardo surgindo em meu campo de visão,
erguendo uma sobrancelha ao me encarar como se eu fosse uma coisa
asquerosa. Franzi os lábios, tentando não demonstrar que seu semblante me
causara dor. Ele se sentou ao meu lado.
— Um Cosmopolitan, gato! — pediu ao homem responsável pelos
drinks, virando o olhar para mim de maneira debochada, por cima do
ombro. — E, aí... Parou de fuxicar meu insta ou fez um fake, mulher?
Senti o rosto queimar de frustração e raiva. Por que me submeti àquela
merda? Começava a me arrepender de ter deixado a Ana impulsiva tomar
conta e ter entrado naquele lugar, porque sabia que, quando tudo acabasse,
quando acordasse no dia seguinte, estaria mais despedaçada e sem forças.
Mas me obriguei a erguer o olhar, bem como os ombros:
— Tá querendo que eu te mande tomar no rabo, ou quer que eu dê na
sua cara, Bernardo? — ameacei, fazendo-o arregalar os olhos, assustado. Eu
estava segurando o choro, mas ainda tentando montar uma armadura o meu
redor. — Eu gosto de você, então sai fora! — rosnei.
— Por que você não pega o arrombadinho do Lucah e vai embora? —
perguntou, parecendo irritado. — Nunca vou perdoar o que você fez ao
Jow. Ele te deu tudo, entrou no Exército para salvar o seu pescoço, e você
sentou naquele boy sem graça.
Quando Bernardo pegou o seu drink e me deu as costas, deixei uma
lágrima rolar. Quase o segui para gritar que eu estava sendo injustiçada, que
era tudo um enorme engano. Mas, vendo a maneira como Isabela seguia no
meio do grupo, a forma como ela nem se importou em desfazer os maus
entendidos, visto que estava próxima a eles, apenas me virei para o homem
que preparava os drinks. Notei uma plaquinha laminada em seu peito direito
ostentando o seu nome, enquanto ele me servia o próximo drink.
— Obrigada, Dante! — disse, dando um sorriso triste. — Agora me dá
duas doses de tequila!
Mal engoli o mojito, quase engasgando com a rapidez com que ingeri a
bebida, agarrei as doses de tequila, uma em cada mão, engolindo-as em dois
goles. Minha cabeça já mostrava o efeito do álcool, quando voltei a encarar
aquele grupo desgraçado. Achei que os veria rindo, esfregando a felicidade
e sincronia deles em minha cara, mas o que notei foi que todos me
encaravam. Havia notas claras de preocupação naquelas testas franzidas e
olhares arregalados. Engoli em seco, brava, quando percebi Josiah falando
alguma coisa em direção à mesa do Lucah. Luana o xingou de “cretino” em
alto e bom tom, levantando-se e pisando duro ao chegar até mim.
— Mais uma? — Dante indagou.
Ergui dois dedos, então ele já serviu os dois shots de uma vez, que
novamente engoli bem rápido, ignorando o sal e o limão. Minha cabeça já
começava a dar voltas, e minhas vistas começavam a embaçar.
Minha amiga finalmente me alcançou, e envolvi os braços ao redor do
quadril dela, abraçando-a. Quase comecei a chorar, agarrada ao seu short
jeans de cintura alta, com um body branco e de paetês arranhando minha
testa. Uma choker suave de corações em prata envolvia o seu pescoço.
— Miga, o arrombado mandou você parar de beber. Disse que não
somos seus amigos só porque você está sendo livre e bebendo... —
debochou, bufando. — Traz mais uma para ela e outra para mim.
Sorri, olhando para Josiah por cima do ombro, debochada, amando a
maneira que me encarava, trincando o maxilar. Que desgraçado bonito... Já
não estava mais abatido, pelo contrário, os músculos gritavam ao redor da
blusa de mangas. Tatuagens serpenteavam por seus braços, me deixando
chocada. Ele tinha se tatuado inteiro...
Josiah balançou a cabeça, como se estivesse deixando claro que estava
decepcionado. Por que estava tomando conta da minha vida? Estava ali
atracado com a vaca da minha amiga, bem na frente de todo mundo. Virei a
cara para ele, me apoiando com os cotovelos no bar, sorrindo e jogando o
cabelo para as costas, sentindo os fios descendo em cascatas onduladas até
o meu quadril.
— Cê mora onde, Dante? — perguntei, decidindo que pagar na mesma
moeda era bom. Por que eu tinha que ser a certinha, quando o desgraçado
estava pegando minha amiga?
— Qual deles? — o bartender perguntou, erguendo uma sobrancelha e
dando um sorrisinho presunçoso. Estreitei as sobrancelhas, mas depois
entendi que ele tinha me sacado. Juntando os ombros, vencida, apontei para
o meu ex-namorado. — Se eu tomar uma surra, vou te processar — disse,
rindo, mas entrando no jogo, se inclinando e piscando um olho para mim,
apoiando os braços no balcão ao me entregar o shot, depois alisando minhas
mãos e mordendo o lábio inferior.
Sorri e sussurrei um “obrigada”. Girei os olhos de soslaio para a mesa
daquele grupinho de merda, mas fiquei chateada ao notar que Josiah não
estava mais lá. Fiquei triste, decepcionada por minha “ceninha” ter passado
despercebida. Quando peguei o shot e ia virar na boca, uma mão pesada
apertou o meu pulso com força, me fazendo gemer e soltar a bebida em
cima do balcão, fazendo o copo se partir ao entrar em contato de maneira
abrupta com a bancada.
Me virei para dizer alguma coisa, mas Josiah me agarrou pelas pernas
e me puxou, jogando-me atravessada em cima de seu ombro direito.
Esperneei, e Luana avançou contra ele, mas o rapaz de cabeça tatuada
surgiu do nada e a segurou, imobilizando-a contra o seu peitoral imenso.
— Me solta, seu imbecil! — berrei, socando as costas dele.
— Se não sabe beber, fica em casa, porra! — ele grunhiu, me fazendo
estremecer ao finalmente ter contato com sua voz.
— Lucah! Jonas! — gritei por ajuda, mas vi Harry parado diante deles,
tentando intimidá-los ao cruzar os braços, enquanto meus amigos tentavam
se erguer da cadeira. — Eu vou chamar a polícia, Josiah! — ameacei.
Por que estava fazendo aquilo? Não fazia o menor sentido. Se ele
estava com a Isabela, por que estava dando um show na frente dela para
tentar me impedir de beber?
— Ô, cuzão... — Meu ex parou diante do Lucah, a mão direita dele
segurava a minha bunda para me equilibrar, e meus seios roçavam o seu
peito, comigo me descabelando, vendo todo mundo ao redor encarando a
cena. Alguns pedestres até paravam para nos filmar. — Se você gostasse
dela, não a teria deixado beber assim e flertar com um qualquer. Você a
tirou de mim para isso? O que esperar de um canalha, né?
— O único canalha é você! Vou te partir na porrada! — Lucah gritou,
me fazendo levar um susto ao vê-lo nervoso. — Solte-a agora!
Josiah me deixou no chão de maneira abrupta, tentando partir para
cima do irmão mais velho. Mas seu outro amigo, que havia soltado a Luana,
o que parecia uma muralha revestido em uma calça jeans e blusa polo azul
marinho, o puxou pelo cotovelo.
— Sem briga, porra! — orientou, sem erguer a voz. — Leva a mina
para casa! — disse, depois apontou o dedo para meus amigos. — Vocês
dois nem ousem se meter!
— Sai da frente, brutamontes! — Jonas ordenou, apontando o dedo na
cara do rapaz.
— Meu nome é Bill! — ele grunhiu, fazendo um paredão com Harry
diante dos dois.
Lu tentou passar pelo Bernardo, que tentava ser intimidador em sua
bermuda jeans e uma polo cinza. Ele a empurrou pelos ombros com leveza,
distanciando-a.
— Por que quer me levar para casa, Josiah? — indaguei aos berros,
deixando um tapa em seu rosto. — Está se fazendo de desentendido?
Esqueceu que não temos mais nada? Que você decidiu que eu não sou nada
sua?
Josiah rosnou, agarrando o meu antebraço, me assustando ao me
arrastar pela rua. Me senti uma tola, sem sequer conseguir fincar os pés no
chão. Comecei a chorar quando fui jogada no banco do carona da sua
picape. Estava chocada com a reação dele a minha provocação, mas
também percebi que era um bom momento para atirar algumas coisas na
cara daquele cretino. Sequei as lágrimas com fúria. Estava brava por ele
estar achando que mandava em mim, que podia me obrigar a ir para casa
quando bem entendesse. Foi aquele cretino quem me deixou, quem colocou
um muro entre nós, quem estava se esfregando com a Isabela na minha
frente, e ainda se achava no direito de me podar.
Meu ex-namorado se sentou no banco do motorista, ligando o carro
com fúria. Abri a boca para jogar para fora as coisas que apertavam o meu
peito, mas me sobressaltei ao ver Bernardo surgir ao lado da porta do
carona, deixando batidas sobre a janela. Josiah abaixou o vidro, então o
amigo pousou a bolsa sobre o meu colo.
— Também gosto de você! É por isso que fizemos esse esforço para
evitar que você tivesse um coma alcoólico — contou, piscando o olho para
mim. — Mas não te perdoo.
— Não tem o que perdoar, Bernardo! — gritei, brava, sentindo que
minha armadura estava sendo quebrada e eu quase estava exibindo minha
fragilidade. — Eu não fiz nada!
Josiah fechou o vidro assim que o amigo se afastou, bufando de raiva,
me fazendo girar o pescoço para encará-lo. Aquele maldito cheiro dele
tomava conta do automóvel.
— Se esses idiotas fossem seus amigos, não a deixariam beber assim,
sabendo que você fica mal — grunhiu, partindo com o automóvel.
— E você se importa com alguma merda, Josiah? Se importa comigo
ficando mal? Já esqueceu tudo o que fez? A maneira como me largou é que
me deixou mal!
— Não vou deixar você beber ao ponto de dar para um qualquer! —
ele gritou, dirigindo feito um louco e acelerando sem parar pelas ruas da
Tijuca. — Diferente desse arrombado por quem você resolveu estragar o
nosso relacionamento, eu me importo se você vai entrar em coma alcoólico,
se vai pegar uma doença dando para um estranho. E que porra de namorado
é esse, que fica de longe te vendo dar mole para um qualquer? É fetiche
essa porra?
— Se importa um caralho! Você tá fodendo a minha amiga, Josiah! —
acusei, dando um soco no braço dele assim que entrou pela catraca do
condomínio. — Se você se importasse, não me jogaria de calcinha na rua,
não me trataria como uma puta, não terminaria comigo sem me deixar falar!
— Cala essa boca, sua dramática! Você está dando para o meu irmão...
— ordenou, amargo, cantando pneu e parando o carro com força em frente
à minha casa. — Agora “mete o pé” do meu carro, bora! Some daqui!
— Vai se foder! — gritei, puxando a maçaneta do carro e abrindo a
porta com um chute. Capturei minha bolsa de couro preto e a joguei sobre o
ombro. — Eu vou voltar para o bar e dar para quem eu quiser, porque não
tenho mais nada contigo. E sugiro que vá comer a sua puta e me deixe em
paz!
Saltei de seu carro, pisando duro, ansiando voltar para o local onde
estavam os meus amigos e fazer exatamente o que ameacei. Gritei ao sentir
o braço dele enlaçar a minha cintura e me erguer no ar. Me debati, vendo
diversas casas acendendo as luzes com o nosso escândalo. Alguns cachorros
começavam a latir ao longe, e eu já podia esperar a multa do condômino na
minha porta no dia seguinte.
— ME SOLTA! — berrei, esperneando, enquanto ele enfiava a mão
imensa na minha bolsa e pegava a chave da casa.
O maldito corpo dele em contato com a minha pele mexia comigo, e
não era apenas raiva que morava em meu corpo naquele momento. Eu
sentia muitas outras coisas, e inclusive ardia de saudade e desejo...
Por que ele se importava tanto com o que eu estava fazendo? Se estava
bebendo ou se daria para alguém? Ele achava que eu ia me guardar para
ele? Era tão previsível assim que eu o estava esperando feito uma otária?
— Vai para casa, sim! Se aquele arrombado não está fazendo o serviço
direito de cuidar de você, eu faço — disse, com sua voz grossa e raivosa
mexendo comigo.
— Ah, tá com ciúmes, é? — debochei, enquanto Josiah abria com
dificuldade a porta da minha casa, por eu tentar a todo custo sair de sua
dominância. — Assim que você sair, vou voltar para o bar e transar bastante
com quem eu quiser, entendeu?
Eu podia ouvir os vizinhos murmurando de suas janelas. Seríamos a
fofoca da semana. Já podia prever os cochichos: “a putinha da casa
amarela fez um escândalo com o filho do prefeito”...
Meu ex-namorado me empurrava com o quadril para dentro da casa,
acendendo a luz após passar pelo limiar da porta. Ele correu o olhar pela
casa, notando a mudança que ia desde os tons das paredes até os novos
móveis.
— Ana, toma a porra de um banho e vai dormir! Não estou brincando.
Minha paciência com você está por um fio.
— E vai fazer o quê? — provoquei, parando a um palmo do corpo dele
e cruzando os braços. Olhei bem para cima, encarando os seus olhos que
pareciam duas esmeraldas. — Vai me bater?
— Só se eu te comer, aí eu posso dar vários tapas nessa sua cara de
puta. E a vontade é de fazer isso mesmo, te foder até você finalmente
acabar com esse fogo no rabo! — ele grunhiu, saindo do sério e envolvendo
os dedos ao redor da minha garganta, exalando o ar como um animal
nervoso.
— Está podre de bêbado e tendo a coragem de me julgar! — acusei,
sentindo o cheiro da cerveja escapando até por sua respiração. Fingi que
não estava adorando a maneira como ele estava me segurando. — Me solta,
canalha!
— Ué, não ia dar para um qualquer no bar? — debochou, lambendo os
lábios ao encarar o bico dos meus seios, que já estavam endurecidos sob o
vestido. — Afinal, me diz, o que você tem com o Lucah? Ele está morando
aqui?
— Eu não tenho nada... — confessei. Josiah exalou o ar, como se um
peso saísse de seus ombros. Vi a maneira como pareceu aliviado, mas eu
seguia péssima ao ter certeza de seu caso com Isabela, então resolvi o
machucar. — A única coisa que eu faço é dar para o seu irmão em todos os
cantos dessa casa. No sofá, no chuveiro, sobre a pia da cozinha... Inclusive
bem aqui, em frente à porta.
— É, vadia? — perguntou, gritando, me apertando pelo pescoço e
quase ficando roxo de raiva. Sorri, mas de maneira superficial. O que eu
disse não me trouxe satisfação, era apenas consequência da mais profunda
vontade de feri-lo, como ele estava fazendo comigo. Fiquei surpresa ao
notar que o cabelo dele estava novamente preto e crescendo... Ele tinha
saído do Exército? Por que estava com o cabelo longo e pintado? — Então,
já que não tem nada, ele não vai se importar se eu te comer, né?
Perguntou, puxando o meu cabelo e me agarrando, colando o corpo ao
meu, esfregando sua ereção que gritava sobre a calça preta em minha
barriga. Josiah apertou minha bunda com tanta força, que me desarmou
inteira. Meu corpo incendiou, de raiva e vontade de ter aquela porra de pau
dentro de mim. Tudo o que aconteceu depois foi só ladeira abaixo.
Nem sei quem foi que tirou a roupa de quem, mas, em segundos, ele já
estava dentro de mim sobre o sofá, estapeando o meu rosto com fúria
seguidas vezes, deixando-me tonta. Aquele desgraçado me fez chorar sob o
seu corpo, sendo esfolada com seu pau imenso, me comendo sem gentileza
ou cautela. Enquanto Josiah tentava me fazer sentir dor com seus tapas e
mordidas, arranhei as costas dele até sentir o sangue em minhas unhas,
mordendo-o no peito só para depois lamber a região, enquanto ele me
penetrava.
— Eu te odeio, filho da puta! — Gemi quando ele estocou tão fundo,
que ergui a cabeça, dando um grito mudo.
Josiah cravou os dentes no meu seio direito, me fazendo gritar com a
maneira que ele ansiava arrancá-lo fora. Quando ele o soltou, estava
ardendo e quase ao ponto de sangrar. Tinha tanta raiva naquilo, na maneira
como estávamos transando... A raiva escapava tanto de mim quanto dele, e
era bom que doesse mesmo, para que eu tomasse vergonha na cara e nunca
mais o deixasse me tocar. Sequer dei atenção à maneira como meu coração
se quebrava, apenas focando na maneira como eu fugia da dor emocional...
— Deixa a Marta saber que a está chamando assim... — debochou, me
virando de costas. — Mas fica tranquila, Ana, agora eu te odeio também.
A sequência de estocadas dele, enquanto agredia minha bunda, era
muito dolorosa, mas eu era tão sem vergonha, que gozei sem me importar
com a maneira como se derramou inteiro dentro de mim, urrando enquanto
me enchia com seu gozo quente, puxando meu cabelo e quase arrancando
os fios. Nossos gemidos eram altos e animalescos, pareciam grunhidos.
Quando Josiah finalmente saiu de dentro do meu corpo, me afastei
dele, rastejando para longe no sofá. Josiah ficou em pé, alisando o cabelo e
respirando descompassado, enquanto o pau amolecia. Olhei para o seu
rosto, percebendo a maneira como senti saudade daquele desgraçado,
mesmo que tenha me deixado completamente machucada com aquele sexo
por onde a mágoa gritara e se libertara.
— Agora, sim, cheia de marquinhas minhas. Quando Lucah for te
foder por essa casa de merda, vai ver que mandei lembranças — grunhiu,
avançando e me agarrando pelo cabelo, lambendo a minha boca com seu
hálito de hortelã, cigarro e cerveja, me fazendo acreditar que me beijaria, e
ele quase o fez. Ficamos nos encarando nos olhos, bem de perto. E quando
tentei tomar a iniciativa de grudar os nossos lábios, Josiah se afastou,
parecendo assustado.
Ele se vestiu com raiva e, antes de partir da minha casa, me encarou
sobre a soleira da porta:
— Vê se toma cuidado com essa merda de beber tomando
antidepressivo, cacete! Estou sabendo que você anda esquecendo a porra
toda depois de tomar esses porres com a Luana — avisou, saindo da casa.
Então ele sabia que eu andava dando PT. Quem era o fofoqueiro?
Quem estava contando a ele sobre a minha vida, hein? Me joguei com raiva
embaixo do chuveiro, sentindo o corpo todo cheio de machucados e
ardendo em contato com a água.
Assim que acabei o banho, me joguei sobre a cama, sentindo dor por
todos os lados em que o lençol tocava o meu corpo. E, por mais que
soubesse que me arrependeria de tudo aquilo, por mais que meus
sentimentos por ele fossem controversos, aquele contato entre nós
preencheu um pouco da saudade que eu sentia. Mas, mesmo que eu tivesse
gostado da maneira como nos libertamos da dor emocional transando, meu
rosto jazia inundado, com lágrimas trilhando minhas bochechas ardidas e
pingando no colchão, porque aquele homem dentro de mim não era o meu
Josiah. Não havia a sombra do homem carinhoso por quem me apaixonei.
Aquele era um novo Jow, transformado pelo rancor.
Adormeci chorando e acordei com as cortinas sendo arrastadas pelos
trilhos acima da janela, rangendo, e abri os olhos com ódio:
— Fecha isso! — grunhi para Luana, me sentando.
— Já são três da tarde, Ana! — avisou. — E o que é isso? Você deu
para ele?
Ainda com meus olhos se ajustando à claridade, vi minha amiga
notando todas as marcas de mordidas pelo meu corpo. Quando olhei para a
porta, Jonas me encarava, vestindo apenas uma cueca boxer vermelha, ao
lado de Lucah.
Me lembrei de todos os detalhes da noite anterior, praguejando contra
o universo, que tinha a coragem de me deixar lembrar de cada maldito
segundo das burradas que fiz na noite passada. Eu sempre esquecia das
coisas ao beber demais, porém, lá estava eu, com cada maldito momento
pesando em minha cabeça.
— Mulher, não creio... — Jonas disse, me observando inteira. — Ele te
pegou à força?
— Claro que não! — neguei, chocada enquanto chacoalhava a cabeça.
— Meu irmão bateu em você? — Lucah indagou, fechando os punhos
com força. Estava com uma samba-canção ao redor do quadril, com o
peitoral peludo e loiro à mostra.
— Não, gente... Muitas vezes em que ela dá para o Josiah, fica assim,
parecendo que tomou uma coça. Não sei que sexo é esse...
— Mulher, que pegada! Viu, mô, quero ficar assim depois que a gente
brigar e fazer as pazes na cama... — Jonas brincou, fazendo a situação ficar
leve e nos fazendo rir.
— Perdi minha dignidade — grunhi, me deitando e gemendo ao tentar
me sufocar com o travesseiro. Por que me deixei levar pela impulsividade e
me enfiei naquele bar? Cada maldito detalhe da noite anterior me fazia
sentir o coração estilhaçando. Me sentei em um sobressalto, lembrando uma
coisa que me fez gelar. — Não usamos camisinha!
— Ixi... Pílula do dia seguinte, urgente! Vai comprar, Lucah! — Luana
ordenou diante da janela, trajando um baby-doll rosa claro, fazendo-o bufar,
mas parecendo acatar a ideia.
Como eu pude ser tão inconsequente? Não usava anticoncepcional há
meses, afinal, não fazia sexo com ninguém. Estávamos tão sedentos por
aquele momento, que sequer pensamos em nos proteger.
— É só eu chegar na farmácia e pedir isso? — Lucah indagou,
coçando a cabeça, embaraçado. — Proteja-se da próxima vez, Ana. Você
não sabe se meu irmão tem transado com outras mulheres sem camisinha.
— Não vai haver próxima vez. Mas deixe que eu vou comprar o
remédio! — avisei, me levantando, notando que trajava apenas um conjunto
em renda branca de calcinha e sutiã. Gemi de dor e voltei a me sentar.
Nossa... Josiah se superou na violência com que transou comigo, me
deixando completamente machucada. — Daqui a pouco...
— Vamos, mô, a gente se vira e traz o remédio direitinho para essa
lindeza não nos dar sobrinhos antes da hora...
Sussurrei um “te amo” ao Jonas, enquanto eles saíam porta afora.
Luana me encarou, me julgando com o olhar de cima, enquanto ia até
minha escrivaninha e se sentava sobre a cadeira.
Me assustei ao olhar para a janela diante dela, observando uma
movimentação de homens com uniforme de obra passeando pelo local ao
lado da minha casa.
— Ah, compraram esse terreno aí — Luana apontou para suas costas.
— Quem? — perguntei, sentindo uma leve dor nas têmporas, com a
ressaca começando a dar as caras.
— Sei lá... Mas já estão construindo, está cheio de gente entregando
material, e eu vi um cara coordenando tudo, parecia um engenheiro —
contou, olhando por cima do ombro para o quintal vizinho.
— Tomara que não seja alguém para dar trabalho... — Murmurei para
mim mesma. — Vocês demoraram a vir para casa, por quê?
— Lucah não queria briga com aqueles trogloditas, então tentou
dialogar um tempão para nos deixarem passar. O dono do bar apareceu e
tudo, ameaçando chamar a polícia. Quando enfim a “gangue” resolveu nos
deixar passar, Josiah surgiu aos prantos. Eu fiquei chocada por ele não
xingar o Lucah... — contou, com a maior cara de chocada, cruzando os
braços diante do corpo esbelto e andando até a minha cama. — Ele estava
cheio de arranhões no pescoço e pelos braços.
— Josiah disse alguma coisa a vocês? — questionei, aproximando
levemente o corpo até minha amiga, interessada por ela dizer que ele estava
chorando.
— Não, amiga, ele nem ligou para a gente. Pegou uma cerveja do
balde de gelo e começou a beber. Ele estava chorando real...
As palavras que usei para atingi-lo na noite anterior voltaram uma a
uma em minha cabeça. Me perguntei se seria aquele o motivo de suas
lágrimas, mas não senti pena dele. Recordei-me da maneira como estava
com aquela cretina da Isabela.
— Eu disse a ele que dei para o Lucah na casa inteira — contei,
mordendo o lábio, vendo Luana perplexa, com a boca aberta. — E foi assim
que a gente acabou transando, ele literalmente soltou uma fera e me marcou
assim.
— Então você não contou ao Jow que não o traiu? — interrogou,
cobrindo a boca em choque. — Por que atirou essa lenha na fogueira, Ana?
Ele já odeia o irmão, agora vai só validar a ideia de que o traiu.
— Josiah não está nem aí para os meus argumentos. E ele está ficando
com a Isabela. Viu como eles ficaram ontem? — perguntei, sentindo uma
lágrima escapar. — Eu nunca esperei isso dela, cara. Isa sabe que amo
aquele desgraçado.
— Achei uma sacanagem mesmo, porque, por mais que você tenha
dito algo pesado a ela, não justifica essa “talaricagem” — disse, revoltada.
— Quase dei uns sopapos nela ontem, porque ficou debochando de mim
enquanto a gente tentava se livrar dos capangas do Jow.
— É uma ridícula mesmo! Se quis voltar a ser amiga dela, agora já não
quero. Acho imperdoável essa traição.
— Tomara que você não acabe grávida... — comentou, unindo as mãos
e fingindo uma oração.
— Mas dizem que essa pílula funciona — revidei, roendo as unhas de
nervoso.
— Eu já tomei e funcionou — deu de ombros.
Capítulo 26

Me disseram para tirar você da minha mente,


mas espero nunca perder os machucados que você deixou
Bruises - Lewis Capaldi

Ana Oliveira
Há dois anos e meio...

Meus enjoos começaram três meses após minha relação desprotegida


com Josiah. Era o meio de uma aula de Literatura Brasileira e tive que
correr para o banheiro da faculdade. Alguém abriu um saco de Doritos e o
cheiro veio com força até minhas narinas. Só deu tempo de me debruçar
sobre o vaso. Vomitei tanto, que cheguei a ficar tonta, de joelhos sobre o
chão sujo.
Quando finalmente conseguir me levantar, apoiando-me nas paredes
após ter dado descarga, o reflexo que vi no espelho me fez tomar um susto.
Lá estava aquela falsa me encarando com um sorrisinho presunçoso sobre
os lábios.
— Melhor fazer um teste de gravidez! — aconselhou, lavando as
mãos. — Estou achando que vou ser promovida a madrasta... — cantarolou,
trajada com uma esvoaçante e longa saia negra atrelada a uma regata
branca, enquanto saía do banheiro.
Caminhei lentamente até a enorme bancada de granito, abrindo a
torneira de metal e lavando a boca. Sequer tive forças de responder aquela
piranha, mas senti o golpe das palavras dela em cada pedaço quebrado do
meu coração. Então eles eram um casal?
Me encarei no espelho rachado e sujo da faculdade, segurando a
barriga. Estava grávida há três meses, e descobri duas semanas depois. Nem
esperei a menstruação atrasar, porque fiquei com tanto medo da história da
pílula do dia seguinte, que preferi fazer o teste.
Fiquei encarado aquelas duas listrinhas em choque, com Luana me
apoiando para não cair diante da porta do banheiro. Após o positivo no teste
de farmácia, Lucah nos levou a uma clínica, onde fiz o exame de sangue.
Desabei quando a enfermeira me parabenizou com um largo sorriso. Foram
dias cinzas, nos quais demorei a aceitar a ideia de ter um filho do Josiah. Eu
não me arrependia do meu bebezinho, pelo contrário, aprendi a amá-lo
desde que compreendi que estava crescendo dentro de mim. Mas estava
triste com o momento, com a ideia de que meu filho era o fruto de um
relacionamento falido.
Marta ficou tão feliz com a notícia, que me irritou. O “quarteto
fantástico” fez uma reunião por minhas costas, depois me colocaram contra
a parede, com todos achando melhor que eu contasse ao Josiah sobre a
gravidez, mas os deixei falando sozinhos na sala da minha sogra e voltei
pisando duro para minha casa. Odiei a maneira como queriam se meter em
minhas decisões, porque, por mais que eu gostasse deles e soubesse que me
amavam, aquilo só cabia a mim. Disse aos quatro que contaria ao pai do
bebê apenas quando me sentisse segura, porque estava brava ao ter
descoberto por um dos pedreiros da obra que era Josiah quem estava
construindo uma maldita casa ao meu lado. Que teria que olhar para a cara
dele todos os dias, encarando de perto o futuro que eu perdi.
Levantei a bata verde e me encarei no espelho. Minha barriga já estava
apontando, em breve ficaria bem difícil disfarçar que estava grávida. Fora
os meus seios, que duplicaram de tamanho e ostentavam veias
serpenteando-os. Eu estava muito magra quando engravidei, e acho que isso
fez a barriga começar a aparecer mais rápido, mas, pela maneira como o
peso começava a subir na balança, eu engordaria bastante com aquela
gestação. Alisei o volume em meu ventre, dando um leve sorriso para o
bebezinho que crescia ali.
Eram três meses sem ver o rosto do Josiah, mas, assim que abaixei a
blusa sobre a legging preta, tomei coragem para contar a ele, antes que
Isabela o fizesse. Meu coração estava em um ritmo frenético quando peguei
meu telefone na mochila preta e tomei coragem de discar o número dele.
Chamou incontáveis vezes, e, a cada novo toque, meu coração quase
saltava da boca. Minhas mãos estavam trêmulas e suando enquanto olhava
para as paredes de um cinza apático e manchado ao meu redor.
— O que você quer? — atendeu de maneira rude, quando eu quase
estava desistindo.
— Eu... — Respirei fundo, sentindo algumas lágrimas rolando por
meu rosto. Reuni toda a coragem do meu corpo e soltei as palavras. —
Estou grávida, Josiah.
Ele ficou mudo por muito tempo. Foram minutos de silêncio, e cheguei
a imaginar que havia desmaiado do outro lado. Eu podia sentir o sangue
correndo por minhas veias, enquanto o enjoo ainda me percorria.
— Parabéns! — disse, com a voz falhando, parecendo embargada por
lágrimas. — Quer um presente no chá de bebê?
Meu Deus! Quando Josiah bateu o telefone na minha cara, percebi que
eu achava que ele tinha partido meu coração ao terminar comigo, mas
estava enganada. Ele partiu o meu coração ao literalmente se lixar para a
notícia que acabara de lhe dar. Humilhada e tentando engolir o choro,
sequer consegui voltar para a aula. Peguei um Uber e voltei para casa.
Ignorei o porteiro quando ele tentou entregar a minha correspondência,
ignorei os barulhos ao redor, tudo, enquanto caminhava como uma sombra,
vagando em direção à minha casa. Meu rosto era uma cascata desenfreada,
e senti mais tristeza ainda ao perceber que aquelas emoções quebradas
estavam sendo compartilhadas com o bebê que crescia em meu ventre.
Céus! Como eu estava decepcionada com o Josiah... Eu esperava tudo,
menos que ele debochasse da notícia e batesse o telefone na minha cara.
Quando cheguei à porta da minha casa, quase caí ao vê-lo parado diante
dela. Estava com as costas apoiadas em sua caminhonete, com a roupa preta
de sempre, enquanto fumava e alisava o cabelo de maneira frenética. Ele
caminhou até mim e apagou o cigarro com a sola do coturno, mas, mesmo
lenta pela tristeza, consegui girar nos calcanhares e tentar dar as costas a
ele. Eu preferia dar meia volta, sem rumo, ao olhar para a cara daquele
canalha. Mas Josiah me agarrou pelo cotovelo e me girou, me obrigando a
encará-lo.
Tinha dor no rosto dele, lágrimas acumuladas em seus olhos, enquanto
me segurava pelos ombros e investigava o meu corpo inteiro. Olhava para o
decote da bata que deixava o topo dos seios à mostra, para cada trilha do
meu rosto, para os braços que estavam mais gordos, e pousou o olhar sobre
a minha barriga. Josiah soltou os meus ombros, assustado. E o gesto que fez
a seguir me desarmou, desarmou meu olhar de fúria que o trucidava. Jow
ergueu as mãos e levantou a minha bata, tomou um susto ao notar o volume
na minha barriga e engoli um soluço. Fiquei observando-o levantar a mão
esquerda, que jazia trêmula, enquanto a guiava até pousar sobre a minha
barriga. O calor daquela pele sobre a minha barriga me fez amolecer.
— Me desculpe pela maneira que reagi no telefone. Pensei que estava
me sacaneando... Por isso desliguei a chamada — sussurrou, sem desviar os
olhos de seu interesse.
Desgraçado! Encarei o rosto dele com ódio contido, pensando na
maneira como despedaçou ainda mais o meu coração. Mas sequer consegui
afastar seu toque do meu ventre, porque na ultrassonografia que fiz duas
semanas antes, tudo o que sonhei foi aquilo. Que ele pousasse a mão sobre
a barriga que abrigava o seu filho. Fechei os olhos e absorvi o toque.
— Está grávida de quando tempo? — perguntou, com uma lágrima
rolando pela bochecha.
O dia estava ensolarado, e os raios do sol pousavam em seus cabelos
negros e contrastavam com sua imagem revoltada de Bad Boy. Seu rosto
iluminado pela claridade o deixava tão lindo...
— Três meses — contei, vendo o semblante do meu ex-namorado se
assustar, mas esboçando um leve sorriso, como se ficasse feliz e aliviado
com o que eu disse.
Segurei a sua mão sobre minha, enquanto ele acariciava minha pele
com o polegar. O gesto fez o meu coração apertar. Por que eu ainda amava
tanto aquele homem? Por que meu coração se recusava a deixar de o
querer? Eu era uma burra...
— Você está tão bonita! — elogiou, fitando o meu rosto e me fazendo
dar um leve sorriso. Não esperava o elogio — Sempre sonhei em vê-la
grávida, Ana. Mas você está mais bela do que imaginei. Só que nunca, nem
nos piores pesadelos, acreditei que seria do meu irmão — O golpe daquelas
palavras era como uma facada bem no meio do meu peito, e afastei com
fúria sua mão da minha barriga. Ele soltou um soluço, com os ombros
baixos. Cerrei os lábios, encarando-o com muita tristeza. — Ou esse bebê é
meu? — perguntou, secando o rosto e fitando os meus olhos, com tanta
vontade, que parecia tentar enxergar a minha alma.
— Não é seu! — menti, sentindo meu peito apertar.
— Quero um exame de DNA, Ana! — avisou, cruzando os braços
diante de mim — Eu transei com você sem camisinha, e a data bate
perfeitamente...Quero a certeza de que essa criança não é minha. Porque
tem a porra de uma intuição...
Eu não queria aquele cretino perto de mim, e senti raiva, ódio por suas
palavras, rancor pela maneira que ele realmente me via como uma puta e
queria me exigir um DNA.
— Vai se foder! Faz um filho na puta da Isabela e aí depois você pede
um DNA, seu imbecil! — gritei, tentando correr e entrar na minha casa.
Josiah apenas me segurou pelo braço, em seguida apertando os meus
ombros.
— Fala a verdade! Eu sei que está mentindo — grunhiu, chegando
perto do meu rosto — Acabei de ir à casa da Marta e a questionei, conheço
a minha mãe como a palma da minha mão. Ela ficou nervosa e fugiu do
questionamento sobre o seu bebê ser meu. E você, essa sua reação com a
provocação sobre o Lucah deixou claro que você ficou ultrajada. Fala,
porra! Esse bebê é meu, não é? Ou vamos mesmo ter que ir à justiça para
você admitir?
— Me solta! — ordenei aos berros, quicando no chão de raiva e
frustração — Não é seu filho! Eu já disse, me deixa em paz!
Josiah me soltou ao ver que tive uma vertigem, quase amolecendo em
seus braços. Corri para a minha casa, e, assim que vi Lucah saindo do
banho, corri até ele e o abracei. Chorei, com raiva até mesmo dele, mas era
quem eu poderia abraçar naquele momento.
Lucah tinha ficado tão feliz ao saber do bebê, e tão ansioso, que
comprou um berço sem me consultar. Passou dias tentando montar o móvel
ao lado da minha cama, mas se deu por vencido e contratou um montador.
Ele era um homem tão bom, mas, às vezes eu sentia raiva dele, porque
preferia que fosse o que Josiah imaginava, que não prestasse. Assim não
teria virado meu amigo e as coisas não teriam dado tão errado.
Quando me deitei na cama, finalmente desejando ficar sozinha, me
perguntei se não teria sido uma besteira negar na hora da raiva que o bebê
era do Jow. Sonhei tanto em tê-lo por perto, e, às vezes de uma maneira
triste, acreditava que iríamos voltar após ele saber do filho. Mas a verdade é
que já duvidava se, mesmo que voltássemos, seríamos capazes de ser
felizes.
Capítulo 27

“Mesmo sabendo que um dia a vida acaba,


nós nunca estamos preparados para perder alguém”.
Nicholas Sparks

Ana Oliveira
Dias atuais...

Um mês inteiro após sua ligação. No total, um mês e duas semanas do


ultimato que dei ao homem que eu amava. Um mês em que parecia que eu
estava mais uma vez vivendo a dor do término.
Embora estivesse doendo tanto viver na expectativa das coisas que
poderiam acontecer, se ele seria capaz ou não de se entregar por inteiro, eu
estava firme em minha decisão. Não queria mais migalhas, não queria mais
tanto sofrimento. Aquele joguinho de ódio e amor finalmente tinha
acabado. Seríamos do jeito que eu queria, amando de maneira limpa, ou não
seríamos nada.
Gemi, mexendo um pouco a mão direita, abrindo e fechando os dedos.
Eu tinha que fazer a maldita fisioterapia, mas era tão frustrante. A
profissional que auxiliava nos cuidados com os movimentos da minha mão
era paciente, dizia que era necessário persistência para alcançar melhores
resultados, mas a verdade é que uma lesão no Nervo Periférico deixava
sequelas e perda dos movimentos, que poderia ser atenuada. Mas, no meu
caso, a sensibilidade da mão ficou afetada, às vezes sentia formigamento na
pele desse membro.
Aquela súbita dor na mão me fez lembrar das razões que me fizeram
chegar até a caçamba do carro. Marta estava na Europa ao lado do
namorado que conhecera na Internet, Luana estava em aula no seu
Mestrado, que era do outro lado da cidade, e sequer me atendera. Ninguém
atendia minhas ligações. E como o pai da Júlia estava dando uma festa, eu
saí de casa irritada, querendo ir para qualquer lugar que fosse longe da
minha casa. Acabei com a bolsa rompendo bem diante da entrada do
condomínio. Foram os porteiros que me acudiram e levaram-me à
maternidade.
Senti tanto medo ao descobrir que teria que ser uma cesárea, pois não
havia dilatação o suficiente para um parto normal. Me vi abandonada, pois
Lucah havia dito que estava indo, mas nunca chegava. E tinha o Jow...
Óbvio que eu sabia que não ter Josiah ali era em grande parte culpa minha,
mas eu estava tão assustada, tendo contrações mesmo sem ter como
expulsar a criança, sendo preparada para uma cirurgia, que praguejava.
Xingava o meu ex-namorado, gritando vezes seguida a palavra
“desgraçado” e assustando a obstetra.
Abri e fechei a mão direita, encarando o movimento estranho que o
dedo indicador fazia. Ergui a mão aberta diante do corpo, observando cada
pedaço e pensando em como eu me sentia quebrada, defeituosa. Respirei
fundo, tentando afastar as lembranças, mas sendo dominada e engolida por
elas, mesmo contra a minha vontade. Fiquei divagando sobre o momento
em que vi minha bebê pela primeira vez.
Era para ser o momento mais mágico da minha vida, e ver aquele
rostinho inchado da minha filhinha realmente foi especial, mas o medo pela
sensação que eu tinha de que algo estava errado atrapalhou tudo. Tinha uma
pressão em meu peito sussurrando que algo ruim estava para acontecer, que
não era normal estar sozinha naquele momento. Passei um dia solitário no
hospital, lutando contra o medo e o orgulho, mas não tive coragem de ligar
para Josiah ou Isabela. No dia seguinte ao dar à luz, Jonas apareceu
transtornado e contou sobre o acidente de carro do Lucah, sobre como ele
derrapara na pista e fora atingido em cheio por outro veículo. Meu amigo
ficou um dia inteiro no CTI, mas não resistiu aos ferimentos e morreu. Foi
tão horrível ouvir aquilo, que o tio da minha filha faleceu enquanto estava
indo assistir ao seu nascimento... que fiquei em choque. Sequer esbocei
reação, demorei a dizer algo. Eu só... falei que queria ir ao enterro. Que
precisava me despedir. E foi desesperador sair do hospital na manhã após a
notícia, receber a alta do parto só para ir direto a um velório, deixando
minha bebê recém-nascida com Dona Helena, uma idosa que mal se
aguentava em pé e mesmo assim se dispusera a cuidar da bebê para eu ir ao
velório.
Deixei uma lágrima escapar, lutando contra aquelas malditas
memórias. Cocei os braços em um movimento vicioso que fazia ao ficar
inquieta. Era tão doloroso relembrar aqueles momentos, mas as memórias
voltavam como uma bola de demolição em minha cabeça, me obrigando a
retirar as barreiras do meu cérebro e libertá-las.
Me lembrei de Luana chorando copiosamente sobre o corpo do primo,
mas a recordação ainda mais pesada era a de que Marta não conseguiu
chegar a tempo e ficou desolada... Seu filho foi enterrado sem a sua
presença, mas o maldito Cristian estava lá. Não derrubou uma lágrima
sequer, fitando o filho com um maxilar trincado. Foi demais para mim, e,
tentando me privar de sofrer de uma maneira pior, fui embora sem esperar o
momento do sepultamento, após dizer um adeus definitivo ao Lucah, que
parecia estar dormindo. Preferia me recordar dele daquele jeito, sem ter que
ver algumas pás de terra me lembrando de que seu corpo estava sem vida
alguma.
Assim que cheguei em casa, amparada por Jonas, que parecia estar a
base de remédios para conseguir me deixar lá, fui direto buscar minha bebê
com Dona Helena. Meu coração tinha sido partido ao perder mais uma
pessoa que eu amava, e, quando entrei na minha casa, tentando ignorar o
fato de que a festa que Josiah dava ainda continuava a todo vapor, e que ele
sequer foi ao enterro do irmão, tentei cuidar da minha recém-nascida da
maneira que dava, chorando de dor nos seios ao amamentar, chorando de
tristeza por não ter mais o Lucah, por Marta estar na Europa e só conseguir
previsão de chegada para o dia seguinte... Foi um inferno na minha cabeça,
e quando Josiah ligou as malditas e enormes caixas de som em seu carro,
surtei. Júlia começou a chorar por se assustar com o volume da música, um
rock pesado que tremia as paredes da minha casa. Com a bebê berrando,
voltei até a residência de Dona Helena, deixando-a com ela e pedindo para
me ajudar a fazer a recém-nascida parar de chorar.
Eu via sangue atrás dos meus olhos, deixando de repousar pela cirurgia
por conta da algazarra e da falta de empatia dele. Ao menos era o que eu
achava naquela época, que Jow sabia que eu estava em casa com a nossa
filha e tinha seguido a festa para me infernizar. Eu lembro bem a sequência
de acontecimentos, recordo-me de alguns momentos como lapsos, como ter
pegado um pé de cabra em casa, caminhar com pressa ignorando o fato de
estar quebrando o meu resguardo e subir na caçamba do carro dele, depois
erguer o braço no ar e despencar, intuindo quebrar as caixas imensas de
som. Meu abdômen doía, mas eu estava com tanta raiva que descontava a
frustração ali. Depois de um tempo, percebi as mãos do Josiah me forçando
a largar o pé de cabra, a voz dele alcoolizada pedindo para que eu parasse,
enquanto o sentia me envolvendo em seu peito, puxando minhas costas
contra si. Eu gemia, de dor, de tristeza... E então tudo despencou. Eu o senti
me soltando ao gritar pelo Bernardo, mas meus pés estavam tão próximos à
beirada da caçamba da picape, que, quando ele correu, perdi o equilíbrio e
caí. Acabei me virando de maneira instintiva, caindo de lado sobre um
caixote de madeira no calçamento da rua. Tentei apoiar a mão com o intuito
de atenuar a queda, mas só serviu para quebrá-la inteira, para a madeira se
partir e entrar no meu antebraço, atingindo o nervo. A força da queda fez os
ossos fraturarem, e, pela maneira como o osso se quebrou em pontos muito
delicados, até mesmo a capacidade segurar coisas sobre a mão fora
prejudicada. Até aguentar o peso de um copo com água era uma tarefa
árdua. Tive que passar por uma cirurgia para consertar a fratura, além de ter
ficado com a mão imobilizada por meses, mas a deformidade no dedo
indicador, no médio e anelar foi impossível de corrigir, porque quebrei a
região do metacarpo, onde os ossos da palma da mão chegaram a estilhaçar,
e das falanges, onde as fraturas foram piores. O erro médico na execução da
primeira cirurgia condenou completamente a chance de consertar o
indicador e o anelar, e o segundo procedimento serviu apenas como
controle de danos. Além da dor e do desconforto, quando aquilo aconteceu,
eu estava de luto por meu amigo, e aquela morte sussurrava lembretes de
todas as outras pessoas que perdi em minha cabeça. Eu só não desabei
completamente porque tinha um serzinho que precisava de mim, uma bebê
que eu amava e não a abandonaria da maneira que fizeram comigo.
Ainda tinham os pontos da cesárea, que abriram com a queda e me
fizeram ter que refazer o procedimento para fechar a cicatriz. Eu gostava de
evitar lembrar daqueles momentos, dos dias após o nascimento da minha
bebê, porque me trazia muito sofrimento. E ter falado sobre aquilo com o
Josiah no dia em que jogamos as verdades na cara um do outro após o
maldito balde, e com aquelas memórias fervilhando em minha mente, me
deixou mal. Ainda precisava descobrir quem foi o autor do incidente com o
balde... Mas tinha uma coisa me ajudando a atenuar meu sofrimento. A
presença de Isabela novamente em minha vida aliviava um pouco o buraco
em meu coração.
Ela pediu perdão assim que veio dormir comigo após a nossa
reconciliação. Foi tão chocante... Literalmente me segurou pelas bochechas
e pediu perdão por não ter dito sobre a traição ao Josiah, sobre saber que eu
não o traí e apenas jogar indiretas para o Josiah se tocar, ao invés de abrir o
jogo de vez. Eu a consolei, porque como poderia culpar a Isabela por não
desfazer um mal-entendido que eu mesma poderia ter desfeito com uma
ligação, mas meu orgulho me impediu? Minha imaturidade, meu senso
frágil de vingança, tudo isso estava na balança das minhas atitudes que
prolongaram o sofrimento. Então como culpá-la?
Isabela estava visitando comigo alguns apartamentos nos finais de
semana, afinal, decidiu comprar a minha casa. Transferiu o dinheiro, mas
ainda faltava ir comigo assinar os papéis da venda. Perguntei o que ela faria
com a residência, e minha amiga deu de ombros e disse que era um
investimento. No fim das contas, eu sabia que ela apenas queria me ajudar,
afinal, Isa não deixaria sua cobertura em Ipanema para morar em uma casa
antiga como aquela.
Visitamos alguns apês próximo à praça Saenz Peña, um ótimo ponto
do bairro, próximo ao metrô, de boas escolas e ainda perto para Josiah e
Marta conviverem bem com a Júlia. Não havia gostado de nenhum, porque
ainda tinha uma esperança pequena em minha cabeça. Uma... crença de
que, talvez, Josiah e eu conseguíssemos ficar juntos.
Eu estava deitada de bruços sobre a cama do meu quarto na casa da
Marta, divagando sobre todas aquelas memórias ensurdecedoras. Era um
quarto de hóspedes que ela me cedeu enquanto eu precisasse ficar lá. Júlia
estava com o pai, e Isabela jazia deitada ao meu lado. Isa encarava o teto
com sanca branca, com uma mão pousada sobre sua barriga.
— Tô só esperando essa palhaçada sua e do Josiah acabar, vocês se
casarem para eu poder “meter o pé” e finalmente entrar na faculdade para
estudar Música! — disse, quebrando o silêncio e me fazendo encará-la.
Sorri para a mulher ao meu lado, me sentando na cama de maneira animada.
— Estou cansada de ser demitida por Bill ou pelo Jow.
— Calma, informações demais de uma única vez... — falei, chocada.
— Já estava na hora de você finalmente pensar em abraçar o seu sonho, mas
não coloque isso atrelado ao sucesso da minha relação com o Jow.
— Grrr! — grunhiu, revirando os olhos e se sentando, vestindo um
pijama de fundo preto repleto de caveiras brancas, com o cabelo preso em
dois coques bagunçados, um em cada lado no alto da cabeça. — Amiga,
vocês se amam. Aceite-o de volta! O cara tá até magricela, nem come, só
vive chorando, igual a quando vocês terminaram no passado.
— Eu já disse! — avisei, e ela percebeu que o assunto estava
encerrado. — Agora me conta sobre essas demissões, por que eles a
mandam embora?
— Eles querem que eu vá estudar Música, dizem que passou da hora
de eu parar de desperdiçar minha vida atrás daquela mesa de recepção —
contou, fazendo um enorme bico e tirando um papel do meio dos seios. —
Bill me entregou isso hoje, após me demitir pela décima vez na semana.
Peguei o panfleto de fundo preto em meus dedos:

Atenção! Uma nova faculdade surgiu no pedaço. Isso mesmo, uma


nova faculdade acaba de ser aberta na Zona Sul, pertinho da praia. O
Bairro Santa Úrsula comporta agora a maior faculdade dedicada as Artes
no Brasil. Se você conhece um espírito revoltado, indomável, que costuma
colocar para fora os sentimentos em forma de arte, esse lugar é perfeito
para ele.
Venha para a faculdade Revolta, onde a fúria dá lugar a coisas lindas!

— Amiga, tem certeza de que a sua avó não mandou construir esse
lugar só para você finalmente ir correr atrás do seu sonho de ser cantora? —
questionei, com a boca aberta de tão assustada. Pelo anúncio, a faculdade
parecia desenhada para ela. — Esse lugar é a sua cara!
— É, confesso que fiquei tentada.
— Então...
Antes que eu pudesse concluir o meu raciocínio, uma chamada do
Josiah me fez começar a tremer. Céus! Fiquei encarando o telefone que
chacoalhava entre os meus dedos. Afastei uma mecha do cabelo que
escapara do rabo de cavalo e pousara na frente do meu olho. Acertei meus
seios sobre o sutiã, visto que um quase escapava pelo decote rendado da
blusa de cetim rosa claro. Após o leite dos meus seios secar, eles ficaram
parecendo geleias.
— Atende, mulher — Isabela aconselhou, abrindo a palma da mão
para cima, apontando o telefone.
— Oi, Jow! — sussurrei, sentindo que meu coração explodiria de tanto
que batia forte. Será que ele finalmente diria o que eu estava esperando?
Mas o que ouvi em seguida fez meu coração se espatifar, quebrar em tantos
pedaços, que seria impossível contar.
— Ele se foi, Docinho! — Josiah choramingou, fazendo eu me sentir a
Alice, caindo por um buraco fundo e sombrio. — Ele se foi... Por favor, me
ajuda, eu... não estou aguentando — Soluçou, me deixando ainda mais
destroçada.
Senti as lágrimas se acumulando e formando bolsas sobre os meus
olhos. Meu coração apertou tanto, que parecia que a dor queria esmagá-lo.
Meu olhar correu até Isabela, e imaginando a maneira como ela também
sofreria, que também sairia quebrada, desabei em lágrimas. Ber! Deus, por
quê? Por que tanto sofrimento?
O quanto de perda um ser humano podia aguentar?
Caralho!
Eu sentia cada célula do meu corpo carregando uma única coisa: dor.
Dor. Dor. Dor. Dor. Doooor... Mas eu precisava ser uma porra de mulher
forte, feita de titânio para não quebrar, porque agora tinha pessoas que eu
amava e que quebrariam. Eu já tinha sido refeita muitas vezes, já conhecia a
sensação de despedaçar. Agora eu tinha que segurar as pontas...
— Jow, você está em casa? Quem está aí com você e a Júlia? —
indaguei, vendo Isabela me encarando com os olhos arregalados, sentindo
que algo de errado tinha acontecido. Me levantei, deslizando o elástico para
fora dos fios, soltando-o do cabelo e alisando-os com as mãos tremendo e a
pressão começando a cair.
Josiah soluçava de maneira incessante do outro lado da linha, mas
tentava a todo custo conseguir falar, puxando a respiração, começando a
verbalizar as palavras, só para voltar a chorar na sequência. Por fim, após
um último soluço longo, respondeu:
— Harry e Bill... Mas eu preciso de você. Por favor, ele se foi, eu não
vou aguentar. Eu o perdi. Foi culpa minha! Ele estava indo embora porque
tinha brigado comigo, Ana. Ele mandou que eu parasse de beber, que fosse
ver algo com ele, então ficou bravo e foi embora. Ele morreu. E estava com
raiva e decepcionado comigo. Ana, por favor!
— Jow, vai ficar tudo bem. Pede ao Harry para trazer você e nossa
filha aqui, por favor — supliquei, mesmo sabendo que ele poderia jogar a
culpa daquilo em mim, que poderia pisotear os cacos do meu coração.
Mesmo assim eu ainda queria tentar confortá-lo de alguma maneira. Da
mesma forma que fizera por mim em diversos momentos. Pois éramos duas
pessoas destroçadas, arruinadas e quebradas, mas também éramos tudo o
que o outro precisava.
— Tá bem... Eu... Tá bem!
Josiah desligou o telefone. Queria desabar, queria me encher de
remédios e dormir para não sentir a avalanche que estava a caminho e me
soterraria. Mas não tinha opção que não fosse ser forte, porque, além de ser
mãe, eu tinha que segurar a garota quebrada à minha frente. A garota
machucada que só confiara cegamente em mim e no Bernardo. Agora, o
menino por quem ela passava noites no hospital rezando para que ficasse
bem tinha morrido.
Ele tinha partido.
— Isa... Vem cá! — chamei, abrindo os braços, me aproximando dela
para um abraço.
Deus, se está aí, me ajuda! Me ajuda a aguentar! Me segura! Me faz
ainda mais forte!
Confusa, a ruiva aceitou se aconchegar em meus braços, mas foi bem
rápido, porque ela percebeu o que eu ainda não estava tendo coragem de
verbalizar. Respirei fundo, segurando o meu próprio corpo, ordenando-o a
ficar firme. Ordenando que meus joelhos não cedessem. Isabela afastou
levemente a cabeça do meu ombro, inclinando-a para trás, tentando capturar
meus olhos em seu olhar, mas a apertei com mais força, e foi impossível
que minha amiga não entendesse os sinais. Foi aí que ela verbalizou sua
percepção:
— Não... Por favor, Ana. Me diz que não é o que estou pensando —
Isabela começou a gritar, apertando minha blusa em minhas costas e
puxando o tecido para longe da pele, se apoiando para não cair, chorando,
sentindo dor. — O Ber, é ele, não é? Ele morreu? — perguntou. Não
consegui dizer, porque falar aquilo em voz alta acabaria comigo. —
Responde, porra! — Me agarrou pelos ombros e me chacoalhou, com o
rosto escorrendo lágrimas incessantes, completamente vermelha. — Por
favor, amiga, por favor...
— Sim, Isa... Sim.
— Como... Ah, não! Meu Deus! — choramingou, deslizando pelo
tapete felpudo e rosa no chão, se apoiando ao pé da cama imensa e gritando.
Eu precisava dizer algo... Mas o medo de que aquilo tudo fosse culpa
minha estava rastejando pelo meu corpo feito uma cobra peçonhenta pronta
para dar o bote e destruir minha sanidade. Engoli o nó em minha garganta,
com os olhos muito abertos e o corpo inteiro arrepiado.
— Ana! — Isabela me encarou, depois arregalou os olhos. — Amiga,
não foi você. Não se culpa, por favor! — Isabela se levantou e se jogou
contra mim, me apertando entre os braços, me fazendo despencar sobre o
seu corpo e desabar. — Não pensa isso, porque eu sei que, se você aceitar
uma culpa assim, não vai aguentar. Olha para mim, olha, porra! — ela
ordenou, agarrando o meu rosto entre as mãos pequenas e chorando. — Eu
não posso perder você também, está ouvindo?
— Sim... Fica tranquila, Isabela. Lembra que eu sou mãe! Nunca vou
deixar a minha filha. Se acalma! — pedi, como se eu não estivesse quase
gritando de tão desesperada. Nossos olhos pairavam sobre o rosto uma da
outra, vidrados, encharcados com as lágrimas que eram resultado da dor
compartilhada pela pessoa em comum que acabávamos de perder. E a dor
em meu peito era pesada, sólida, e ver aquele sofrimento no olhar desolado
que Isabela dava a mim, me fez ter certeza de que o peso em seu peito era
exatamente igual.
— Cadê ela, mãe? — Josiah gritou, do lado de fora do quarto.
— Não se descontrole assim na frente da Júlia, filho... Fica calmo! Vai
ficar tudo bem. — Marta aconselhou, ao longe. Sua voz era um fiapo triste
e derrotado.
— Ana! — Josiah berrou.
Isabela saiu correndo do quarto, e, em um ímpeto natural, fui atrás dela
por me preocupar com o que minha amiga poderia fazer. Quando chegamos
à sala da casa, o recinto em tons tão claros parecia preso em escuridão,
porque os tons da dor eram assim, sombrios, tiravam o brilho das coisas.
Harry balançava Júlia em seu colo, caminhando para a cozinha,
provavelmente para tirá-la daquele ambiente caótico. Minha amiga saiu
correndo e parou diante do Bill, como se pensasse em se jogar em seus
braços, mas brigando consigo mesma antes disso. Não vi o que aconteceu a
seguir, porque Josiah veio rápido até mim. Eu o vi, com medo de que fosse
chegar como um rolo compressor fazendo com que me sentisse pior. Achei
que fosse gritar, que fosse me acusar, mas ele apenas se deixou cair de
joelhos diante do meu corpo, chorando, agarrando o meu quadril.
Girei os olhos até a Marta, que chorava, desolada. Ela encarava o filho
com tanto sofrimento no rosto. Sabia que minha sogra chorava por tudo,
pelo Ber, por ver o seu caçula sofrendo tanto, pela maneira como ele estava
mal.
Me abaixei diante do Josiah, ainda temendo suas palavras. Meu
coração estava sangrando, como se permanecer inteiro fosse uma luta. E eu
tinha muita dor morando em meu corpo naquele momento, mas eu a
segurava e a domava, me impedindo de fraquejar, de sofrer da maneira que
eu gostaria. Olhar para o homem que eu amava, ali, de joelhos, daquele
jeito, me fez sentir que eu conhecia exatamente aquela sensação. A
sensação de perder um irmão, de ser incapaz de salvar alguém que amamos.
Alisei o rosto dele, abraçando-o, beijando suas lágrimas, tentando não
chorar ainda mais. Rezando que meu coração fosse blindado, para que
estivesse preparado caso aquelas pessoas que eu tanto amava resolvessem
me culpar por aquela tragédia.
— Shhhh! — consolei, brigando com o lado do meu corpo que queria
sofrer em paz, que queria ser livre para viver a dor. — Vai ficar tudo bem,
meu amor. Eu sei que está doendo, acredite. Sei exatamente como está o seu
coração agora...
— Eu nem sei como ele ainda bate, Docinho... Como? —
choramingou, pousando a testa em meu ombro e soltando um longo soluço.
Josiah estava descalço, como se tivesse saído sem pensar em nada ao
vir para cá. Estava apenas com sua habitual blusa de mangas escuras e sua
calça preta, com o rosto muito vermelho e abatido. Estava um pouquinho
mais magro, com olheiras...
— Como aconteceu? — perguntei, segurando o rosto dele.
— Um trombo se desprendeu da perna e entupiu a veia do coração
dele. Não conseguiram conter a tempo... Eu o amava tanto, Ana. Tanto... —
choramingou — Coitado, ele não merecia isso.
— Ele também amava você, Josiah! — confortei, beijando as
bochechas dele. — Sinto muito!
Meu coração doía pelo Bernardo. Era doce, mesmo que após o meu
término com Josiah ele tivesse ficado bravo comigo e me afastado de sua
vida. Eu fiquei, sim, com mágoa, mas jamais seria capaz de fazer algo
contra o Ber. Eu não podia acreditar naquilo, porque, por mais que estivesse
descontrolada, eu não esqueci nenhum detalhe importante daquela noite.
Por que esqueceria o fato de ter batido em alguém? Se eu o tivesse feito,
teria lembrado, como lembrava dos outros acontecimentos daquele
momento.
— Fica tranquila, pois eu não vou culpar você. Depois... Quando... E
se... eu ficar bem, vamos conversar sobre isso. Agora, eu só quero os seus
braços, só me ajuda. Não quero te perder também — implorou. Aquelas
palavras foram no fundo da minha alma, e eu o abracei com tanta força,
unindo nossas lágrimas ao encostar sua bochecha na minha, que sentia que
precisava daquela pressão para que ele não escapasse de mim. — Me
perdoa... Só me faz ficar bem.
Fiquei abraçada a ele, de joelhos, por um bom tempo no tapete da sala,
sentindo o seu coração batendo freneticamente acima do meu próprio peito.
Assim que consegui que ele tomasse um banho e aceitasse um chá de
camomila, Marta pediu para conversar com o filho. Deixei os dois no
quarto dele e corri para fora. Eu corri chorando, porque precisava de ar, eu
precisava desabar. Eu me mantive de pé por todos aqueles momentos após a
descoberta da morte do nosso amigo, só porque eles precisavam de mim. Eu
sabia da minha inocência, mas uma insegurança horrível sussurrava em meu
ouvido que eles me culpavam, que achavam que tinha sido eu a responsável
pela perda do homem que todos nós amávamos. Sabia que eles acreditavam
que fui eu quem comecei todo aquele vendaval que nos roubara o Bernardo.
Caí de joelhos no quintal, gritando, deixando a dor sair a ponto de
minha garganta arder. Gritei por minutos a fio, deixando a dor que tentei
esconder rastejar por minhas cordas vocais.
Merda!
O Ber! Por quê, caralho?
Por que isso tinha que acontecer com ele? Por que a vida foi tão cruel
com alguém que tinha um coração de ouro? Ele amava tanto o Josiah, era
tão fiel a ele, que ficou magoado comigo por pensar que havia quebrado o
coração do seu irmão. Porque era isso que os dois eram: irmãos. Ele era
doce e... brilhava. E agora, tinha uma nova estrela no céu. Uma estrela que
certamente estaria mais acessa do que qualquer outra.
— Cuida do Ben por mim, Bernardo! — sussurrei, olhando para o céu.
— Ana... — Ouvi a voz do Harry atrás de mim, enxuguei as lágrimas
ao notar como a entonação da voz dele jazia distante do que costumava ser,
não havia o tom alegre e inabalável que me irritava. — Não sei se é o
momento mais tranquilo para falar isso, mas eu sempre soube que não foi
você que bateu no Bernardo.
Aceitei a mão que ele me ofertou para me erguer do chão, engolindo
em seco ao encarar o homem diante de mim. Ele tinha as mesmas cores da
roupa do Josiah em seus trajes, usando uma calça jogger com correntes na
lateral do quadril e uma regata simples.
— Aí, você não parecia bem, mas estava distante de onde Bernardo
caiu. Ele estava na esquina da rua e tinha vidro ao redor dele, cara. Eu falei
isso com o Josiah. Até perguntei para a sua amiga se não viu quem foi,
porque ela estava correndo para longe, assustada.
Meu coração saltou do peito, fazendo minha pressão cair tanto, que
Harry teve que me segurar. Meu Deus! Porraaaaa! Como eu não vi?! Como
deixei todos os sinais passarem bem embaixo do meu nariz? Como eu não
percebi?
Capítulo 28

Estou preso no escuro, mas você é minha lanterna


Você me guia, você me guia pela noite
Flashlight - Jessie J

Josiah Marquez
Dias atuais...

Eu percebi que nunca tinha de fato ido a um enterro, até ver meu
amigo dentro de um caixão. Nem precisei mudar as cores que sempre
estavam ao redor do meu corpo para aquele momento, preto era minha
tonalidade favorita. Mas nunca imaginei que ver tantas pessoas com aquela
cor pudesse me deixar triste. Eu estava derrotado, perdido em um mar de
sofrimento e dor. Estar ali, no cemitério, o mesmo onde Lucah fora
sepultado, me lembrava do dia em que soube que ele seria velado ali.
Quando o meu irmão morreu, até tentei ir ao seu enterro. Mesmo
detestando e tendo passado boa parte da vida brigado com o Lucah, eu...
fiquei triste ao descobrir que tinha morrido enquanto ia ao hospital assistir
ao parto da Júlia.
Eu estava bebendo, porque perguntei a Luana sobre quando seria a
previsão do parto da Júlia, e a desgraçada disse que não podia contar.
Estava revoltado por não poder sequer chegar perto da Ana naquela fase
final da gravidez, porque minha prima me disse que minha ex passava mal
só de me ver ao longe. Eu soube que Ana havia dado à luz e aquela
desgraçada da Lu me impediu de sequer entrar na maternidade, disse que
estava autorizada a chamar a polícia e o caralho.
Então veio a notícia da morte do Lucah. Mas, mesmo alcoolizado,
quando Harry, Bernardo e Bill se propuseram a ir comigo me despedir do
meu irmão, encontramos Luana na entrada do cemitério. Lembro como se
fosse hoje da imagem dela. Estava apática, sem emoção em um vestido
longo e escuro, os cabelos soltos... Seu semblante mudou ao nos ver,
parecendo se assombrar. Veio correndo até nós e disse que não era para
entrar, pois Ana estava de resguardo e debilitada, e que não queria minha
presença lá. Minha prima me contou até mesmo que Ana iria ficar com a
recém-nascida aqueles primeiros dias na casa da minha mãe, e que eu não
deveria ir lá importuná-la.
Respirei fundo, roendo as unhas enquanto estava ali na maldita capela
que cravava minha despedida do Bernardo. Roí o canto do indicador direito
até machucar e sentir a pele sangrar, percebendo o rosto quente das lágrimas
que rastejavam feito feras indomadas. Estava tão fraco, que meu corpo
parecia travar uma guerra para se manter de pé, enquanto as memórias
passadas recheavam a minha cabeça, doidas para se libertarem em minha
mente consciente...
Lembrei que fiquei muito puto quando minha prima me barrou logo na
entrada do cemitério quando eu tentava entrar para me despedir do meu
irmão, então voltei para casa e retomei a rotina destrutiva de beber e fumar
maconha. Nunca consegui entender por que Luana mentiu sobre minha ex,
me dizendo que ela ficaria na casa da Marta, sendo que minha mãe estava
com seu namorado, Henrique, viajando pela França. Não sabia se aquela
mentira havia sido a pedido da Ana, mas culminou em toda aquela merda
das caixas de som. Eu nunca teria feito aquilo se soubesse que minha filha e
Ana estavam lá. E, sem poder me despedir do meu irmão, continuei a fazer
as merdas que já conhecia para aliviar a cabeça: fumar e beber, respeitando
o que “supostamente” era um desejo da Ana. Meu coração sangrava por
sequer ter conseguido ver o rostinho da bebê que também era minha.
Eu sentia bem no fundo da minha alma que eu era o pai daquela
criança, que era o meu DNA que corria no corpo daquele bebê. Era uma
intuição inexplicável, e ninguém conseguia colocar o contrário em minha
cabeça, nem mesmo os gritos enfurecidos de Ana de que a neném não era
minha filha.
Voltando ao presente, me aproximei e fiquei parado diante do caixão,
ora afastando as memórias intrusas, ora observando o meu amigo em uma
“mortalha”, com seus cabelos negros e lustrosos perfeitamente alinhados,
seu semblante sereno. Por mais que eu não quisesse perdê-lo, que meu
coração estivesse despedaçado, que parecesse que tinham arrancado um
membro do meu próprio corpo, entendia que aquilo era um descanso para o
Bernardo. Meu amigo finalmente estava partindo daquela existência onde
não conseguia interagir com o mundo, e eu tinha certeza de que, se
houvesse um local destinado às pessoas que eram genuinamente lindas de
coração, a alma do Ber estava lá... Brilhando, como a estrela que ele era.
Ber esteve comigo em todas as horas. Lembro que, quando me separei
da Ana, fiquei muito mal e acabei entrando em depressão. Ficava horas
chorando e reparando em cada pedacinho lindo do sorriso dela retratado em
suas fotos, relendo as cartinhas apaixonadas que me enviava quando eu
estava longe de casa. Para tentar me fazer melhorar, meu amigo propôs que
usássemos nossas folgas para viajar. E, assim, eu fui tentando esquecer a
Ana. Com mulheres, bebidas e baseados, saindo com nossos novos amigos,
e até Isabela, que era muito amiga do Ber e se convidava para o nosso meio.
Eu tentava blindar o meu coração para não pensar em desistir. Porque,
mesmo quando terminei com a mulher da minha vida, continuei minha
rotina exaustiva naquele purgatório que era a carreira militar. Eu segui em
frente para salvá-la das mãos do meu pai. Mesmo com o coração partido, eu
ainda a amava. Nunca consegui deixar de sentir tanto...De querer tanto...E
meu amigo via aquilo. Bernardo ficava muito preocupado com a maneira
como eu estava fraco e abalado, e sempre tentava fazer com que me sentisse
melhor.
Desviando das memórias insistentes e intrusas, me afastei um pouco,
olhando ao redor e buscando a minha deusa de cabelos castanhos, a mulher
maravilhosa que mesmo que tivesse me dado um ultimato e “terminado”
comigo, ainda tinha gemido embaixo de mim a noite passada inteira para
que nos sentíssemos melhor, me dando a fuga perfeita para os pensamentos
que gritavam e arranhavam a minha mente. Era a deusa que tinha me
beijado na boca em meio às nossas lágrimas, até que pegássemos no sono
por exaustão. A mulher empática e que esfregava em meu rosto a
compaixão que era capaz de me dar, mesmo que eu houvesse negado aquilo
a ela. Seus olhos, molhados e vermelhos, encontraram os meus. Mesmo
devastada, Docinho ainda exibia sua força. Ana estava do outro lado da
capela de paredes azuladas, sentada em um banquinho e amparando Isabela
em seus braços, beijando a cabeça da nossa amiga, que chorava de maneira
desolada com as costas contra o peito da minha mulher. Isa tinha se
apegado muito ao Ber, afinal, quem não se apegaria a um homem tão
divertido e inteligente como ele?
Apertei os lábios, choramingando ao lembrar que foi Bernardo quem
planejou nossa expulsão do exército, ao perceber que já não estávamos
aguentando seguir em frente após sermos diplomados. Ele sabia que eu
tinha um pendrive onde copiei todas os dados do computador do Lucah, e
nele havia um verdadeiro dossiê com informações sobre o superfaturamento
de obras públicas praticado por Cristian e uma série de empresas de
construção. Ou seja, seríamos os mais insubordinados possíveis para sermos
expulsos, depois eu chantagearia o meu pai para que me deixasse
finalmente em paz. Só pedir para sair da corporação não adiantaria, porque
não me mancharia o suficiente para que o meu pai largasse do meu pé. E eu
queria sujar os planos do meu amado paizinho. Por isso, passamos a não
bater continência, a andar sem a vestimenta obrigatória, e, quando tomamos
uma surra dos nossos superiores e fomos para a prisão do exército por conta
daquilo, Bill deu um soco no olho de um deles e foi imediatamente expulso.
Passamos a ser vistos com maus olhos. Planejaram nos expulsar também,
mas Cristian resolveu molhar a mão de algumas pessoas, assim Harry,
Bernardo e eu fomos reformados por “insanidade”. Meu pai literalmente
ficou azul ao ver tudo que eu tinha contra ele, eu possuía até os contatos dos
jornalistas que dedicavam a carreira a denunciar políticos corruptos. E deu
certo, Cristian ficou mansinho por um bom tempo. Bernardo era um
gênio...
Só que a maneira como conduzi as coisas após termos nos reformado
chateou o meu amigo. A suposta traição ferrou com a minha cabeça,
disparou os gatilhos das memórias da infidelidade que minha mãe
experimentou vinda do Cristian. Eu odiava pessoas infiéis, e ter acreditado
por tanto tempo que Ana tivesse ficado com o meu irmão me enlouqueceu.
Eu soube pela Luana que Lucah estava morando na casa da Ana.
Enfurecido e enciumado, comprei o terreno ao lado da casa dela para
construir o meu estúdio de tatuagem, porém acabei comendo a Ana
enquanto estávamos os dois podres de bêbados, e Docinho acabou grávida.
Todos os meus planos mudaram quando eu a vi com aquela barriguinha... E
decidi construir também a minha casa. Eu queria migalhas dela, migalhas
da filha que nasceria e a mãe havia deixado claro que não pretendia me
deixar chegar perto. Bernardo ficou enfurecido com minhas atitudes. Queria
que eu seguisse em frente longe da Ana e brigasse na justiça para conviver
com a minha filha... Mas ele não entendia. Como eu faria aquilo com a
mulher que amava? Brigar com ela pela criança poderia a fazer surtar. Ela
já não tinha ninguém... Não podia.
Eu não pretendia tocar o terror para cima da Ana, ia viver minha vida e
apenas me manter nas sombras, inclusive uma vez parei o Lucah no
condomínio. Falei com ele numa boa após saber da gravidez da Ana,
perguntei o que ele tinha com ela, se eram ou não um casal. Lucah me
chamou de otário. Como foi mesmo que disse? “Não tenho culpa se você
não soube ser o suficiente, se sua mulher preferiu correr para mim”.
Depois Ana não entendia a razão de eu ter tanta mágoa daquele... do meu
irmão. Por que ele disse aquilo se não tinha nada com ela? Se era namorado
do Jonas? Lucah sentia prazer em me ferir, aquilo era um fato.
Me aproximei do caixão, dando um longo soluço que fez meu peito
inteiro tremer e o corpo chacoalhar. Ergui meu braço direito de maneira
trêmula e insegura e o guiei até segurar sua mão gelada por baixo da
camada de flores brancas que o envolvia inteiro, e que deixava apenas a sua
face à mostra, sentindo meu rosto quente, minha respiração pesada e a
maneira como era difícil sustentar o peso do meu corpo. Aquela seria a
última vez que o tocaria, que sentiria sua mão. Aquela seria a última
memória de sua imagem em minha mente.
Por quê?
Por que isso foi acontecer com ele?
O meu sangue estava quente em meu corpo, enquanto o sofrimento
dilacerante de estacas cravadas em meu peito quase me fazia ficar sem ar,
saindo em forma de soluços descontrolados de um choro desesperador. Era
uma sensação tão grande de impotência diante da vida, tanta... dor.
A maneira como eu me culpava era muito pesada. Vozes sussurravam
em minha cabeça sobre eu ter sido um amigo de merda, sobre como fui
idiota e dei mais vazão a minha dor do que as outras pessoas ao meu redor.
Bernardo tinha invadido a minha casa, porque ele queria conversar sobre
alguma coisa. Eu estava bebendo desde que chegara em casa... Ber queria
que eu parasse e fosse com ele resolver alguma coisa, mas eu não consegui
entender o que meu amigo estava dizendo, porque ele falava alto sobre
alguma foto, algo que tinha visto sobre alguém.
Eu estava chateado naquele dia, com o coração dilacerado, porque meu
irmão havia morrido e eu deixei as mágoas de lado para ir me despedir, mas
não pude dar o último adeus. Queria só ficar com o barulho das melodias,
porque Ana supostamente estava na Marta, e eu podia ficar com o som alto.
A música nas alturas diminuía o barulho dos pensamentos de culpa que
agrediam a minha cabeça, que cravavam as garras da agonia em meu corpo.
Se eu tivesse ido até ele, teria impedido que quem quer que fosse tivesse o
agredido.
Acabei ficando realmente instável após o acidente do Bernardo. Eu
sentia que tinha perdido tudo, e o que Luana me disse sobre a Ana estar em
cima do corpo desfalecido do Ber piorava o barulho em minha cabeça.
Cheguei a achar por um tempo que foi a Luana, afinal, Harry a viu
correndo por lá após o acidente com o Bernardo. Eu quase dei uns tapas
nela, quase mesmo, quando a coloquei contra a parede para explicar melhor
aquilo tudo. Luana disse que sequer tinha encontrado com o Bernardo antes
de o ver caído. Que só estava indo ver se Ana estava bem porque acabara de
descobrir que Marta estava viajando e a minha ex-namorada tinha mentido
para ela para poder ficar sozinha. Luana contou que, ao chegar à esquina da
minha casa, viu Bernardo caído e a Ana parada diante dele, segurando um
pé de cabra, e que depois subiu na caçamba da picape para destruir o som.
Luana contou que havia saído correndo para pegar o carro da Marta com o
intuito de levá-lo ao hospital, quando esbarrou com Harry. Ela pediu minha
palavra de homem de que não contaria a Ana sobre aquelas coisas, então
me mantive em silêncio. Mas eu teria que contar a minha mulher sobre
todos os nossos desencontros, e, na hora certa em que decidíssemos tocar
em nossas dores para realmente perdoar cada uma delas, expostos diante
um do outro, eu falaria tudo a ela, inclusive sobre a acusação da minha
prima. Sempre achei que, se contasse a Ana sobre a certeza de que Luana
me deu de tê-la visto com o Ber, minha Docinho se partiria inteira. E
mesmo na hora da raiva, em que queria gritar a ela sobre aquele
testemunho, eu ainda desistia pelo medo do que aquilo causaria nela. Às
vezes, durante meus picos de raiva, acusações escapuliam da minha boca,
mas a maneira como o rosto dela se partia em dor sempre me travava de
falar da certeza que Luana dera sobre o que viu. Eu não teria desconfiado da
Ana, não se Luana não tivesse dito aquelas coisas... Foi minha prima quem
girou aquela chave em minha mente, lembrando-me de que Ana estava com
um pé de cabra na mão... Mas aquilo não explicava os estilhaços de vidro
sobre o ferimento na cabeça do Bernardo.
Foda! Ninguém viu nada naquela merda de condomínio. Dona Helena
sabia fofocas da rua inteira, mas, como ela estava com a Júlia em sua casa
enquanto Ana chegava ao limite e destruía o som, ela não estava vigiando a
rua... As casas da esquina não tinham câmeras, não havia nada que pudesse
nos dar uma pista do que aconteceu de fato ao Bernardo. Somente dois
elementos estavam lá... Luana e Ana.
Isabela estava na minha casa, me julgando com uma carranca enquanto
eu me embriagava. Não tinha como ter sido ela, porque só foi para fora da
casa depois de mim.
Encarei novamente o Bernardo, pensando em como ele morrera e
levara consigo a verdade sobre tudo aquilo...
Ele morreu...
E estava levando com ele um pedaço meu. Eu estava sofrendo, porque,
dentro do meu coração sombrio, ainda havia uma pequena chama de
esperança que gostava de acreditar que... talvez... um dia ele acordasse.
Me aproximei do seu ouvido, sentindo uma dor tão forte em meu peito,
que me fazia duvidar de que eu fosse capaz de conseguir continuar vivo. Eu
o amava tanto... Então, sentindo que estava na hora, sussurrei minha
despedida:
“O dia mais feliz da minha infância foi quando um menino tagarela
sentou ao meu lado na sala de aula, me encarando sob os olhos mais azuis
que já vi na vida. Quando um garoto que eu julguei um intrometido não
teve medo da minha armadura de criança revoltada e quebrou os meus
escudos com sua simpatia. O dia mais feliz do Josiah criança foi quando
uma estrela resolveu iluminar o meu caos. Você foi minha lanterna, Ber. E
vou te amar para sempre, meu amigo. Agora descanse. Quem sabe, daqui a
muitos anos, a gente se reencontre”.
Soltei sua mão e deixei um beijo em sua testa, sentindo os meus lábios
gelarem pelo contato com sua pele inanimada, tendo certeza de que ele já
não estava mais ali. Era a última vez que o veria, a última imagem dele que
ficaria congelada em cada célula do meu corpo.
Puta que pariu!
Como doía...
Era dilacerante perder alguém que tanto amava.
Alguém bom.
Alguém que não merecia sofrer, que não merecia aquele destino, uma
pessoa que só trazia luz e sorrisos...
Alguém com quem dividi todas as partes boas que ainda existiam em
mim, que me entendia e que me amava de volta.
Um amigo de verdade, que virava um leão para me defender, que
tomava minhas dores para si.
Alguém que estava partindo antes da hora, que viveu a vida
intensamente ao meu lado, sendo o homem mais forte que poderia ser,
destemido, corajoso, decidido... Ainda assim, tinha muitas coisas mais que
merecia ver, que merecia viver, que merecia ter conquistado. Ele sequer
chegou a ter um amor em sua vida, a sentir seu coração bater fora do peito
por outra pessoa.
Ah... Ber! Por que isso foi acontecer com você, meu amigo? Por quê?
Segurei o meu coração, a dor, a maneira como aquela despedida o
despedaçava em milhares de partes.
Milhares de fragmentos de momentos com ele rodopiavam em minha
cabeça. Imagem dos olhos azuis dançando e brilhando quando foi elogiado
por ter tido a destreza de prover o alimento em nosso primeiro
acampamento no treinamento do exército, a maneira como fazia piadas e
arrancava sorrisos de todos ao redor, suas dancinhas, seus apelidos
melosos...
Meu melhor amigo partiu e arrancou um pedaço do meu coração que
seria para sempre soterrado junto ao seu corpo, um pedaço que nunca mais
seria refeito.
Subitamente entendi a Ana, seu desespero e ânsia de acabar com a dor
que às vezes varria seu interior. Perder alguém para a morte era como ter
um membro amputado, a porra de um pedaço do corpo arrancado de
maneira compulsória. Era um sentimento que me enfraquecia, que fazia
uma dor dilacerante se apoderar, que me fazia sentir que seria impossível
continuar vivendo, que trazia a dúvida de se era possível sorrir depois
daquilo. Era como se todas as cores da vida desbotassem, como se as
estações do ano sumissem, e um mar de cinzas dançasse e me soterrasse...
Era como se o sangue do meu corpo esfriasse tanto, a ponto de doer.
E como ser feliz depois de tudo? Existe felicidade possível?
“Deus, pode me dar algo que amenize a dor?
Pode me... amortecer da queda?
Deus, pode me... tornar um homem mais forte do que o pedaço de
vidro pronto para quebrar que me sinto?”, sussurrei.
A verdade é que o luto era uma dor horrível, e invejava a força da
minha mulher. Como alguém podia aguentar todas aquelas mortes e
continuar de pé?
Eu não ficaria para ver o sepultamento, porque seria doloroso demais.
Meu peito sangrava ao olhar ao redor, procurando a minha Ana, mas acabei
vendo Isabela correndo aos prantos para fora, deixando seu esvoaçante
vestido preto balançar ao vento enquanto partia, soluçando. Eu sabia o que
ela estava sentindo, tinha noção da dor esmagadora que a percorria, que a
fazia sentir que viver sem uma parte sua poderia ser impossível.
Busquei a minha mulher novamente, mas ela já não estava dentro da
capela.
Só queria ir para casa e ver minha filha, aquele pequeno serzinho que
me trazia a enorme sensação de ser completo, que poderia amenizar o
buraco imenso em meu coração, a criança que era capaz de pisar em um
terreno cinza e o transformar inteiro, inundando tudo com as cores mais
lindas e vibrantes possíveis.
Caminhei para fora da pequena capela com teto colonial de madeira,
passeando entre as pessoas chorosas ao redor do corpo sendo velado, e vi
Leda sentada sobre um banco de alvenaria próximo à entrada. Ela
lamentava, entregue as lágrimas, com um terço de madeira em uma mão e
um lenço branco sobre o nariz ossudo e longo. Pousei a mão sobre o seu
ombro esquálido, deixando uma lágrima percorrer o meu nariz e cair ao
murmurar um “fica bem”.
Quando cheguei ao lado de fora, Ana falava com Harry, e meu amigo
contava algo a ela, fazendo-a chorar sem parar. Imaginei que ele a estivesse
reconfortando sobre sua sensação de culpa, ou o medo de que a culpassem
por aquilo.
Eu tive um mês e duas semanas para pensar sobre tudo, e meu pedido
de perdão a Ana seria também por ter sido injusto em minha acusação.
Ninguém acreditava que ela tinha feito aquilo ao Ber, nem Leda, nem meus
amigos ou minha mãe... Talvez apenas a Lu, que sempre alimentara aquela
incerteza em minha cabeça. Ela foi quem disse para que eu jamais
questionasse a Ana sobre o que contou, porque dizia amar tanto minha
Docinho, que sofreria pelo remorso que corroeria a mãe da minha filha.
Mesmo com aquela informação que Luana dera, divaguei muito sobre
todas aquelas coisas, e entendi que eu não vi Ana fazer nada, então como a
condenar por minha incerteza? Por que condenar a minha mulher e
inocentar a Lu, que também estava na cena do crime?
Ninguém viu o que aconteceu com o Ber, nem mesmo podia acusar
minha prima, porque também não vi. Eu não testemunhei a agressão ao meu
amigo que culminara em sua morte. Decidi que não acusaria mais ninguém.
Eu fui um precipitado... Percebi minha injustiça em todos os dias desse
último mês, planejando como implorar que a Ana me perdoasse por aquilo,
mas aí o Bernardo morreu.
Na hora certa, eu conversaria com ela, me humilharia se fosse
necessário... O que precisasse fazer para que Ana me perdoasse, eu faria. E,
se decidisse que não me queria mais, não me restaria nada diferente de
aceitação. Faria o que a mulher que eu amava quisesse e me esforçaria para
não a perder. Mas se a mãe da minha filha dissesse que o caminho para nós
dois seria realmente um término, eu a deixaria seguir em frente de maneira
definitiva.
Estava torcendo que, quando estivesse bem o suficiente para conversar
com ela, Ana ainda estivesse de abraços abertos para mim, pois me jogaria
neles e não os soltaria mais.
Capítulo 29

“Quanto melhor é uma pessoa,


mais difícil se torna suspeitar da maldade dos outros”.
Cícero

Ana Oliveira
Dias atuais...

Achei que meu coração já tivesse se partido tantas vezes, que seria
impossível que alguma coisa ainda o pudesse quebrar, mas tinha pedaços
intactos para suportar mais pancadas. E foi o que aconteceu. Bernardo
morreu e despedaçou um pouco a cada um de nós.
Eu tive tanto medo de vir ao enterro, que quase desisti. Mas Josiah
agarrou minha mão como se estivesse se sustentando com o meu corpo,
como se não fosse uma opção eu não ir à despedida. Um pavor absurdo
varreu o meu corpo ao encarar Leda, sentada sobre um banco a poucos
metros de Isabela e eu. Sequer tive coragem de me aproximar da mãe do
Bernardo, de... dizer algo, uma mínima palavra de conforto. Tinha um
fantasma cruel chamado Culpa me infernizando, me fazendo temer a reação
das pessoas, o julgamento. Eu sabia da minha inocência e já até nomeava o
verdadeiro assassino, mas quantas pessoas realmente acreditavam nela?
Eu juro que implorei muito a Deus que não tivesse mais que entrar em
um cemitério, que não tivesse mais que encarar uma pessoa que eu amava
partindo. Mas sabia que era um desejo tolo, pessoas morriam, e era um
efeito colateral, um ato indomável da vida. Fiquei observando Josiah
debruçado sobre o corpo do amigo. Era tanto sofrimento ver o meu amor
ali, soluçando, desolado. O rosto dele exibia tanta dor.
Eu conhecia a perda como ninguém. Era a sensação de que um vento
absurdamente forte percorreu a vida, bagunçando, tirando tudo do lugar,
arrancando pessoas que amávamos sem qualquer aviso, sem qualquer
chance de despedida. Você se sente injustiçado, com saudade, revoltado
com a impotência diante da morte. Porque a morte é uma força
incontrolável... Não tem como remediar, não tem como prever.
Eu poderia definir o luto como uma devastação. Como uma força
pesada que chega e acaba com o brilho, com a luz, com a esperança. E não
existe nada, absolutamente nada que possa trazer qualquer conforto quando
se trata de perder alguém. As coisas podem atenuar, mas nada jamais
poderá confortar a perda de uma pessoa. Porque pessoas são singulares, e
Bernardo era alguém muito singular e insubstituível.
Meu coração estava apertado, e me sustentei em toda a força que
restava em mim para travar os pensamentos automáticos de culpa que
insistiam em surgir, dizendo que causei meu afastamento do Ber quando
não desfiz os maus entendidos. Quando deixei meu orgulho reinar, quando
não o procurei para gritar que fora injustiçada. Eu mantive a barreira entre
nós dois erguida, e sequer consegui me lembrar de quando foi a última vez
que o vi.
Me senti despedaçada ao perceber o quanto de coisas poderiam ter sido
evitadas com uma simples conversa. Quantos vilões teriam sido
desmascarados com o simples ato de reunir todo mundo e “lavar a roupa
suja”? Quanta dor teria sido evitada se o orgulho fosse abandonado e eu
apenas procurasse as pessoas e contasse a minha versão?
Deixei uma lágrima rolar, contendo os pensamentos, enquanto vi
Isabela correr para fora da capela. Ela estava nervosa demais, se tremendo
inteira, e estava comendo doces desenfreadamente desde ontem, a ponto de
ficar com uma enorme enxaqueca. Nem as aspirinas que dei a ela estavam
ajudando com a dor. Sabia que Bill a conteria lá fora. Ele estava o tempo
todo de olho na Isa sobre a soleira da porta, e havia combinado comigo de
levá-la para casa e não deixá-la sozinha de jeito algum. E quando ele
acenou com a cabeça para mim, retirando o boné preto para tal, entendi que
estava confirmando que levaria Isa embora naquele momento.
Era bom mesmo que ela não visse o que iria acontecer. Que não
presenciasse o caos que estava prestes a tomar conta de tudo.
Eu sabia do fogaréu que estava o meu peito. Ele brigava com a dor do
luto, querendo se soltar e incendiar a porra toda, querendo ir atrás da
maldita da Luana e colocar aquela vadia contra a parede. Eu era a porra de
uma bruxa brincando com o fogo, domando aquela chama até a hora certa
de deixar o demônio se soltar.
Dei uma última olhada para o Jow, e ele estava debruçado sobre o
caixão, sussurrando algo ao Bernardo. Não queria chegar lá perto, e podia
parecer egoísta não querer ver aquele corpo sem vida de perto, mas, se eu
fizesse aquilo, se fosse perto para me despedir, seria incapaz de manter
meus escudos e desabaria. E eu tinha que ser como uma muralha revestida
em titânio, afinal, ainda tinha uma cobra para desmascarar.
Fechei os olhos e murmurei uma despedida. Sabia que, onde quer que
Bernardo estivesse, seu espírito ouviria. Pedi perdão por nossos
desencontros, por não me lembrar da última vez em que o vi, por não ter
sido madura. Desejei luz ao seu espírito, que descansasse e causasse alegria
no céu. Me desculpei por não desejar ver seu sepultamento, mas sabia que
ele entenderia. Meus traumas eram grandes demais para ficar ali me
machucando.
Me levantei do banco, sentindo uma tonelada ser retirada do meu
ombro ao finalmente pisar do lado de fora da capela, deixando a luz do dia
ensolarado beijar o meu rosto. Abracei o meu corpo, sentindo o vento fraco
levantar de maneira suave a barra do meu vestido preto, na altura dos
joelhos. Quando abri os olhos, exalando profundamente, notei Harry ao
longe. Estava parado diante de uma fileira de jazigos perpétuos feitos de
mármore preto.
Fui caminhando até ele, lentamente, observando-o limpando algumas
lágrimas que escorriam por baixo dos óculos escuros que usava para manter
sua pose de inquebrável. Trajava uma calça jeans e uma regata preta,
sustentando seu corpo de pé sobre coturnos pesados. Parei diante dele,
quase espirrando com o cheiro forte e cítrico de seu perfume.
Harry estava na subida da rampa cimentada que era a entrada do
cemitério. Me pus a conversar com ele. Repassamos as informações sobre
as coisas que envolviam a Luana, e sobre os planos do que aconteceria a
seguir. Deixei algumas lágrimas escaparem enquanto conversávamos, me
assustando ao sentir os braços do Josiah surgirem de forma inesperada ao
meu redor. A maneira como me puxou, grudou minhas costas em seu peito
e chorou sobre o meu ombro me despedaçou. Tentei não soluçar, mas Harry
o fez antes de mim, desarmando a pose e deixando a dor escapar por seu
corpo esguio.
— Moleque era maneiro, porra... — Harry soluçou.
— Era, sim... — sussurrei.
●●●
Fiquei por algumas dezenas de minutos na entrada do cemitério com
Josiah, enquanto esperávamos Harry, que fez questão de assistir ao
sepultamento. Jow optou por não ver aquele momento, e eu o entendia
perfeitamente. Era a parte mais traumática. Aquelas pás de terra sobre o
caixão era a certeza do fim, de que a pessoa jamais voltaria. Ainda bem que
Josiah não quis assistir.
Eu nunca dirigia, mas a maneira como todos estavam abalados me fez
colocar a mão na massa e guiar aquela picape pesada do Josiah até a casa de
Marta. Fui tão no automático, com os pensamentos gritando em minha
mente, enquanto dentro do carro o silêncio era mortal entre Jow e Harry,
que mal senti ao estacionar diante da casa.
Havia um Porsche prateado parado na calçada do lado oposto à casa
da minha sogra, e uma fileira de carros pretos à frente dele. A trupe de
seguranças trajando preto do lado de fora da casa fez meu coração saltar.
Estava na hora...
— Que porra o Cristian está fazendo aqui? — Josiah gritou, girando os
olhos sobre todos os detalhes que denunciavam a presença de seu pai,
tentando abrir a porta do carro, exaltado.
Eu não queria aquele velho desgraçado perto da minha filha, mas, com
tudo o que descobri pela manhã, queria alguém para deixar Marta e Júlia
mais seguras naquela casa... Além de que aquele político de merda também
fazia parte do plano que elaborei.
— Calma! — eu disse, travando as portas e o puxando pela gola da
blusa preta. — Olha dentro dos meus olhos e presta bastante atenção! —
Josiah me encarou e, vendo a seriedade com que eu o fitava, tensionou o
corpo inteiro e arregalou os olhos. — Sei que não é o melhor momento, mas
temos algumas roupas sujas para lavar, algumas cobras para retirar da toca e
acabar de vez com o poder que demos para que nos destruíssem. E
provavelmente desmascarar a pessoa que matou o Bernardo.
Contraindo o maxilar, Josiah se soltou da minha mão, abrindo a porta
com força e pisando duro para dentro da casa, sendo seguido por Harry.
Desci do carro, lembrando a razão que me fez chamar o cretino do
meu sogro para aquele momento. Muitas coisas aconteceram essa manhã.
Foi quando eu descobri quem era de fato a Luana e toda a podridão que era
escondida sob um piso solto em seu quarto.
Há duas semanas, eu entrei no quarto dela para conversar sobre
Isabela, para pedir a Luana que parasse de ficar emburrada comigo por ter
voltado a ser amiga da Isa. Luana estava de joelhos sobre o piso castanho
em régua. Colocara algo escondido abaixo dele, depois recolocou-o para
tapar. Bati na porta e fingi que não havia presenciado a cena para não a
constranger. Eu era tão cega e idiota, que sequer fiquei desconfiada do que
poderia estar escondido ali. Mas, ontem, quando Harry me contou cada
detalhe das coisas que Luana disse ao Josiah, desde a maternidade até o
enterro do irmão dele, eu soube que aquela cretina tinha feito coisas para
me manter afastada do meu namorado. Tinha mentido para ele sobre vários
detalhes, inclusive o impedindo de entrar na maternidade enquanto eu dava
à luz. Desgraçada!
E eu queria cada maldito detalhe, cada maldita coisa que passou
batida. Então, quando Luana saiu hoje cedo para trabalhar, sob a desculpa
de ter traumas de enterro após a morte do primo, me esgueirei para o seu
quarto e fui direto ao seu esconderijo. Meu coração sangrava em revolta,
tristeza e uma enorme sensação de ter sido feita de boba. Quando peguei o
plástico transparente com o pequeno pendrive, meu coração quase escapulia
pela boca, gotas de suor escorriam por minhas têmporas. Enquanto Júlia,
vestindo um macacão rosa, dormia agarrada ao pai sobre a cama imensa no
quarto que era dele, me esgueirei para o computador sobre a escrivaninha,
pluguei o pendrive e me permiti abrir aquele cofre de segredos sujos.
E eu quase vomitei.
Quando vi aquela infinidade de pastas, peguei o notebook do Josiah e
fui para a sala, para poder abrir aqueles vídeos infames sem que ambos
acordassem ou vissem. E a primeira filmagem tinha a data de muitos anos
atrás.
Luana e Lucah... Muito jovens, se filmando enquanto transavam sobre
uma pedra robusta em uma cachoeira.
Entre todas as coisas que imaginei encontrar ali, nunca teria passado
pela minha cabeça que os primos tivessem um caso. Eu podia sentir a bile
subindo pela minha garganta, enquanto uma lágrima de choque rolava
solitária por minha bochecha. Meu coração estava muito apertado e um nó
pesado se prendia em minha garganta. Eu queria gritar, queria urrar de
frustração, de vergonha por ter duvidado da palavra do Jow.
“Então, aí eu o enforquei até ele começar a espumar. Um fracote... Só
não o matei porque ouvi minha mãe saindo do quarto dela, pois o medroso
deu um grito ao me ver fantasiado diante dele”.
Uma versão jovem do Lucah contava, enquanto Luana girava a
câmera, movendo a filmagem para si mesma. Estava nua e com o cabelo
enorme escorrendo até o quadril.
“Por que a gente tem que odiar o Jow mesmo?”, Luana perguntava,
sorrindo e voltando a filmagem para o primo, que agora nadava pela
cachoeira, imerso em uma água esverdeada. Seus cabelos loiros estavam
um pouco longos e flutuando sobre a água. O olhar dele... Não havia
sombra do homem bondoso que conheci. Era um olhar sem emoção,
escurecido, um sorriso completamente forçado. Será que sempre fora assim
e não percebi?
“Porque ele é um merdinha. Meu pai puxa o saco dele, diz que Josiah
tem um belo futuro. E quando meu irmão não existia, o cretino do Cristian
me tratava bem, ele... não me xingava como faz hoje”.
“Mas o tio Cris também bate no Jow...”
“Vai defender ele agora, sua puta?”
Foi só um dos inúmeros vídeos dos dois, alguns eram planejando
sacanagens contra o Josiah, vídeos e mais vídeos de sexo dos dois, às vezes
juntos a outros homens...
Outra coisa presente naquele pendrive era uma pasta chamada Dossiê.
Dentro dela, estavam várias coisas... sobre o Lucah, dando a impressão de
que Luana estava se calçando contra ele. Tinha a tal pasta das crianças,
mensagens trocadas em um site esquisito onde ele parecia vender aquelas
fotos para outros criminosos. Fotos da Luana completamente machucada,
inclusive um vídeo deles transando e ela o questionara sobre por que ele
insistia em ficar com o Jonas. A câmera estava posicionada para filmar a
cama, e tive a impressão de que Lucah não sabia que estava sendo filmado,
em um cômodo que eu não conhecia, provavelmente era um motel por
conta da cama de couro vermelha e circular. Ele a agrediu após a pergunta,
deixando-a completamente inconsciente.
Deus! Como Lucah conseguia vestir tão bem a carapuça de bom
moço? Eu fiquei muito apavorada ao ver aquelas coisas. Chorei de medo,
de culpa, de raiva... Porque morei sob o mesmo teto que dois psicopatas.
Porque os chamei de amigos. Porque deixei que estivessem muito perto a
ponto de destruir completamente a coisa mais bonita que já tive na vida. A
ponto de acabarem com o meu relacionamento com o homem da minha
vida.
No dossiê contra o Lucah, havia muitas coisas sobre o Cristian.
Deixava claro que o meu cunhado via o pai como um inimigo a quem
queria derrotar. Tinha inúmeras provas de desvio de dinheiro público,
superfaturamento de obras públicas, fotos do meu sogro com amantes e
mais amantes... Ou seja... Cristian não era um aliado do Lucah ou Luana,
parecia ser visto como um inimigo...
E doeu, doeu demais ter que mostrar aquilo a Marta. Me quebrou ver
ela quase desmaiar, a maneira como segurou a boca para não gritar entre o
choro, como mordeu a mão ao cair sobre a cama. Eu me senti tão mal por
precisar fazer aquilo, mas não existia uma forma de contar a minha sogra
sem exibir as provas. Ela acreditava cegamente no Lucah, assim como eu...
Demorou muito tempo até Marta parar de chorar, tive que medir a sua
pressão, que tinha caído, também lhe dei um copo com água e açúcar para
ajudar a acalmá-la. Depois de um tempo, Marta pediu para tomar café. E
quando fomos até a cozinha, lhe entreguei a bebida. Um pouco depois,
Josiah surgiu na cozinha e se assustou ao ver a mãe sem maquiagem,
descabelada, de camisola e tremendo. Mas ele não fez perguntas. Acho que
acreditou que a desordem emocional dela era em decorrência da morte de
seu amigo.
Contei o plano a Marta enquanto Josiah dava banho na Júlia, antes de
sair para a despedida do Bernardo. Ela precisava entender que Luana era
perigosa, que não podia ficar sozinha com ela, e muito menos deixar minha
filha perto daquela cobra. Afinal, Júlia ficaria em casa para que pudéssemos
ir ao enterro. E então minha sogra me surpreendeu, sugerindo que
chamássemos o Cristian, dizendo que ele saberia tirar as informações da
Luana, porque, do jeito que era fingida, não saciaria nossas dúvidas sem
certo esforço.
Tive medo de aceitar chamar o prefeito, mas minha sogra me lembrou
que, nas coisas que vimos ali naquele pendrive, Luana conspirava com
Lucah contra o Cristian a todo tempo. Não havia nada contra o pai do
Josiah. Era sobre ela e o meu cunhado.
Respirei fundo e me permiti entrar na casa, para finalmente procurar
sanar as dúvidas que ficaram. Assim que adentrei a sala, Luana já estava lá.
Jazia sentada sobre uma cadeira no meio do tapete. Não estava amarrada,
mas havia dois seguranças pousados acima dela, um de cada lado. Eram
homens engravatados, enormes e mal-encarados.
Luana me deu um sorriso debochado que me fez gelar. Tive que
segurar a vontade de avançar naquela cretina, que trajava um vestido que já
vi nela outras vezes, uma peça longa com a estampa da pele de uma onça. E
fazia bastante jus a ela, amiga da onça!
Um pequeno fio de sangue saía do canto direito de seu lábio inferior.
Ela percorria as pessoas na sala com o olhar, parecendo uma cobra. Como
me enganei tanto? Como não percebi nada? Agora era nítida a ausência de
emoção em seu olhar, o cinismo na forma como encarava as pessoas de
cima, como se fossem inferiores a ela.
Josiah estava ao lado do pai, o que me deixou surpresa. Ele jazia
inclinado sobre a mesa de jantar, rolando algo na tela do notebook escuro.
Cristian se virou abruptamente, desviando o olhar do computador com
repulsa, parecendo conter o vômito.
O prefeito, que estava quase no fim de seu segundo mandato, estava
vestido de maneira menos formal, com uma calça justa em tons de verde
musgo, e uma camisa branca sofisticada estava solta sobre a peça de baixo.
As mangas de sua camisa jaziam dobradas, deixando os músculos do braço
marcados. Seu rosto quadrado estava completamente esticadinho... As
plásticas seguiam em dia. Era um homem bonito, e Josiah parecia muito
com ele. O cretino me fitou, erguendo a sobrancelha e dando um pequeno
sorrisinho. Revirei os olhos, encarando o ambiente e procurando a minha
sogra.
— Cadê a Júlia? — perguntei, vendo que a mãe do Jow estava parada
em frente a Luana, com os punhos fechados diante do corpo.
Marta ainda estava de camisola e descabelada. A mulher parecia ter
envelhecido dez anos em apenas algumas horas. Ela me olhou por cima do
ombro, com uma ira que jamais vi em seu rosto, mas suavizou o semblante
ao me encarar.
— Está na casa da Dona Helena — avisou. — Achei adequado que ela
não ficasse aqui.
— Não é melhor chamar a polícia? — Josiah sugeriu, caminhando até
mim e parando ao meu lado, me dando um leve conforto ao sentir sua
presença eletrizante próxima ao meu corpo.
— Não! — Marta e Cristian disseram em uníssono.
— Quem bateu nela? — perguntei, erguendo a sobrancelha para o
Cristian.
— Eu! — Marta avisou, avançando novamente contra a mulher diante
de si, mas Cristian a conteve, agarrando-lhe pelo braço.
Ela se afastou com rapidez do corpo do ex-marido, como se o toque
dele fosse repulsivo. Luana sequer se encolheu sob a ameaça de ser
agredida. Na verdade, ela sorriu largamente para a tia, em um deboche com
ar de desafio. Cruzou as pernas, segurando o joelho com as mãos ossudas.
— Bati nessa filha da puta porque se recusa a responder nossos
questionamentos — Marta avisou, com o tom de voz mais apático que já
ouvira nela. Fiquei muito chocada por vê-la xingar. Em seis anos, eu nunca
a ouvi proferir um palavrão sequer.
Girei o olhar até o pai da minha filha, e Josiah segurou minha
encarada. Havia dor em seu olhar, mas outra coisa também: curiosidade.
— Pensei que fosse ver você em cima do seu pai ao entrar — sussurrei
para ele.
— Ah, eu ia mesmo. Mas, quando vi minha mãe esbofeteando a
Luana, entendi tudo — murmurou, cruzando os braços e balançando a
cabeça. Então Jow guiou o olhar até sua prima. — Por que você agrediu o
Bernardo, Luana?
Ela imitou o gesto do Josiah, encarando-o com desdém e fechando o
semblante.
— Não vou falar nada se eu não sentir vontade — avisou. — Podem
me bater, me torturar... Eu aguento.
— Vou trazer sua mãe então — Cristian ameaçou, com sua voz serena
e sua postura que lembrava perfeitamente uma raposa. Meu corpo inteiro
gelou ao vê-lo ameaçar torturar a mãe da Luana, afinal, a mulher era sua
irmã. Isso só deixava claro a frieza dele. Aquele velho era perigoso... —
Vamos fazer tudo o que disse com ela, bem na sua frente, até você começar
a cantar as informações.
— Tô nem aí... Pode até esquartejar a minha mãe bem aqui. Não vou
sentir nada. Só vou falar se for interessante para mim — deu de ombros,
chocando a todos no ambiente. — Eu não tenho fraquezas. Isso me
diferencia de vocês, passionais, emocionais demais.
Meu coração estava acelerado, meus punhos cerrados ao lado do meu
corpo, e eu trincava tanto os dentes, que poderia quebrá-los.
— Fala, sua cretina! Por que você agrediu o Bernardo? — berrei,
saindo de mim e pronta para partir para cima dela, sendo contida pelos
braços imensos e fortes do Josiah enlaçados em minha cintura.
— Olha... A surtadinha está colocando as asinhas de fora — Luana
cantarolou, encarando as unhas em desdém. — Ana, você é uma fraca! Não
me assusta.
— Eu confiei em você! — gritei, quicando de raiva sobre a contenção
do corpo do meu ex-namorado. — Acreditei que fosse minha amiga.
Luana bufou, me dando um sorriso irônico. Ergueu uma sobrancelha e
lambeu os lábios, como se saboreasse me ver descontrolada. Marta alisava o
cabelo, dando voltas pelo tapete da sala. Lembrou-me completamente do
gesto que ambos os filhos dela faziam ao ficar nervosos. Os olhos dela eram
como cascatas vermelhas, escorrendo lágrimas de ira e tristeza.
— Aninha... A putinha depressiva, suicida, a assassina que afogou o
pequeno Benício — Luana cantarolou, soltando uma gargalhada com a boca
larga ao perceber a maneira como tapei os ouvidos. Flashbacks do meu
irmão na piscina invadiram a minha cabeça, e todos os sentimentos do meu
trauma vieram à tona. — A Ana afoga criancinhas...
— Cala a boca! Cala a boca! Cala a bocaaaaaaa! — ordenei, chorando
sem parar. Josiah me apertou em seus braços, com o calor do seu corpo me
impedindo de sair completamente da realidade e me perder nas lembranças.
— Calma, Docinho! — Josiah pediu, com o tom de voz assustado,
beijando minha cabeça. — Faz ela calar a boca, pai!
Meu peito doía. O medo, a dor, a saudade, a impotência, a culpa...
Aqueles sentimentos pesados gritavam na minha cabeça, e me senti a Ana
pequena, a Ana adolescente que ficou paralisada enquanto a sua mãe
tentava reanimar o Ben.
— Seus pais se mataram por sua culpa! — Luana gritou entre
gargalhadas, fazendo milhares de estacas fervendo furarem o meu peito.
Ela estava entrando na minha cabeça. Que mulher horrível!
Girei o olhar até ela, vendo que finalmente um dos seguranças havia a
agarrado sobre a cadeira, grudando as costas dela ao encosto do acento e
tapado a sua boca. Mas a maneira como os olhos de Luana dançavam,
divertidos ao me encarar, me fez perceber que estava caindo no joguinho
dela. Me afetava, usava palavras para me ferir, intuindo fugir das respostas.
— Foi você que colocou a porra do balde na minha porta! — acusei,
me soltando dos braços do Josiah e me lançando sobre ela.
Quando a agarrei pelos cabelos e a joguei sobre o tapete, montando
nela e desferindo milhares de tapas naquele rosto magro, ninguém me
impediu. Descontei minha frustração nela, minha ira, deixei escapar por
meus golpes toda a revolta, até que senti aquele perfume caro ao meu redor.
Aqueles braços fortes do pai do Josiah me ergueram de cima da Luana, que
gritava parecendo estar endemoniada, enquanto era arrastada por Harry de
volta para a cadeira.
— Sua órfã desgraçada! — Luana berrou, limpando o sangue da boca
e arfando com a respiração descompassada.
Seus cabelos desgrenhados por meus puxões estavam fazendo
companhia para as bochechas vermelhas e inchadas.
— Pelo menos eu não sou uma incestuosa! — acusei. — Uma
assassina cruel! O que aconteceu com o meu irmão foi um acidente, mas
você assassinou o Bernardo.
— Por isso que fiz questão de acabar com o seu namoro, sua puta! —
Luana debochou, alisando os cabelos, tentando colocá-los no lugar. — Foi
delicioso avisar ao Lucah que Josiah estava chegando, então ele correu para
o seu quarto e armamos o flagrante da “traição”. Nossa... Foi ótimo ver seu
relacionamento perfeitinho ir por água abaixo.
— Filha da puta! — Josiah xingou, contraindo o maxilar e parecendo
fazer força para não avançar em cima dela.
— E você? O queridinho do papai, o que sempre teve o mundo aos
seus pés e ainda assim reclamava do dinheiro que tinha. Reclamava que o
papai traía a mamãe, mas sempre teve tudo. Você nunca teve que trabalhar
de verdade, seu mauricinho de merda! — a cobra cuspiu as palavras para
Josiah.
Eu sequer o via, meu olhar estava vidrado e ensandecido sobre aquela
mulher. Eu queria acabar com ela. Aquela cobra destruiu o meu
relacionamento. Então foram eles que planejaram aquilo tudo, para que
Josiah me visse com Lucah. Mas e o...
— O Jonas fazia parte disso? — perguntei, preparando meu coração
para se partir mais ainda.
— Jonas? Aquele merda? Ele era um asno, não via nada. Te adorava..
E ainda acreditava que o namorado fosse um cordeirinho... — bufou ao
revirar os olhos e cruzar os braços — Lucah era obcecado por ele. Meu
primo era possessivo, tomava as coisas que queria para si. Foi assim
comigo. Lucah decidiu que eu seria dele quando eu tinha doze anos. E
assim foi... Depois ficou obcecado pelo Jonas, o seduziu e ficou com ele. Se
fingia de bonzinho, de engajado em causas benevolentes, mas era apenas o
personagem que usou para conquistar o idiota do namorado. Pena não ter
dado tempo de matar o Jonas...
Falar sobre matar alguém daquela forma, de maneira tão torpe, só
deixava claro o quanto Luana era fria e narcisista.
— Você não se envergonha de falar essas coisas? — Marta perguntou,
alisando o peito, perplexa.
— Ah, velha... Vai se foder! — xingou, cuspindo na direção da Marta.
Como aquela mulher horrível nos enganou por tanto tempo? — Vergonha é
para os fracos. Por isso é tão fácil jogar com vocês. Sentem vergonha,
empatia, remorso. Eu não sinto nada.
— E mesmo assim é uma fodida! — debochei. — Mesmo se achando
essa supermulher que brinca com pessoas como se fossem peças de
tabuleiro, aqui está você. Desmascarada e a um passo da prisão.
— Foda-se! — deu de ombros. — Eu não sinto medo. Nada me
assusta. Eu nasci assim... Esse é meu superpoder.
Girei o olhar para Josiah. Ele contraía o maxilar e franzia o lábio
inferior, como se sentisse nojo. Certamente aquelas palavras perturbadas da
psicopata diante de nós causavam o mesmo em todos, o mais puro asco.
Exceto em Cristian, que provavelmente entendia aquela forma doentia de
ser.
— Sabe o que amávamos fazer, Aninha? — perguntou, com os olhos
brilhando de excitação. — A gente adorava fazer você ficar bem bêbada.
Assim, quando Jonas não estava perto, Lucah e eu te contávamos tudinho,
que fizemos você e Josiah se separarem, que íamos fazer de tudo para
nunca voltarem. Na manhã seguinte, você acordava e, feito uma imbecil,
esquecia a porra toda...
— Cretina! — Josiah berrou, se segurando para não avançar nela.
— Ah, não me odeiem! — debochou, mandando um beijo no ar para o
Josiah. — A filhinha de vocês só existe porque dei um antialérgico a Ana
no lugar de uma pílula do dia seguinte — contou, fazendo um choque
percorrer o ambiente.
Meu coração acelerou ainda mais enquanto eu varria minha memória
em busca do dia em que Luana me entregou o comprimido e um copo de
água. Merda!
— Por quê? — perguntei, afinal, não fazia o menor sentido. — Por que
me dar um elo eterno com o Josiah se nos queria separados, Luana?
— Porque o desgraçado do Lucah estava obcecado por você! Só me
comia chamando o seu nome! Ele achava que vocês dois brigariam mais,
talvez de uma maneira definitiva caso Josiah acreditasse que o filho não
fosse dele, deixando espaço para que Lucah ficasse de vez eu seu lugar.
Senti a bile subindo a minha garganta e segurei a barriga ao prender o
choro. Luana estava nos observando, procurando as fraquezas para atirar
palavras que pudessem ferir. Como podiam existir pessoas tão ruins no
mundo?
— Ana, eu não a suporto. Tenho ódio pelo fato de o Lucah ter morrido
por sua culpa, enquanto ia ver o parto da sua filha, sua puta de merda! Eu a
detesto, porque desde que você surgiu em nossas vidas, ele não me via mais
da mesma forma. Então, mesmo quando Lucah se foi, decidi continuar o
plano de acabar com o seu namoro, de me manter perto para que vocês não
ficassem bem.
Como me deixei enganar pelo monstro do Lucah? Ele era tão
asqueroso e perigoso quanto a Luana. Marta soluçava, enquanto deslizava
para se sentar no sofá. Eu não queria estar na pele dela. Porque, por mais
que o remorso me percorresse por ter duvidado dos relatos do Josiah, eu
sabia que o peso daquilo deveria estar triplicado sobre os ombros da minha
sogra.
— Viu, tio? Lucah puxou a você... — Luana debochou, dando um
sorrisinho vitorioso para o prefeito. — Você via fraqueza no filho errado.
— Não! Está enganada, menina... Eu nunca desrespeitaria os meus
laços de sangue, nunca seria tão depravado. Também não faria joguinhos
assim com pessoas a esmo. Meu interesse é poder. Jamais gastaria minha
energia de maneira burra como você ou meu filho mais velho fizeram.
Ainda bem que ele morreu, ou eu mesmo o mataria! — cuspiu as palavras
com desprezo. — E você é uma completa idiota, Luana. Ainda guardava as
provas contra si mesma dentro do seu quarto...
Um peso absurdo varreu o ambiente após ele dizer que mataria o filho,
mas, por mais que aquelas palavras fossem horríveis vindas de um pai, nem
Marta o contradisse. Acho que era um alívio para todos que Lucah estivesse
morto. Era terrível admitir, mas ele teve um fim merecido!
— É libertador poder falar isso tudo. Me sinto leve... — Luana disse,
suspirando de maneira dramática e encenada. — Ah, sabe o que era muito
divertido? Botar pilha para os barracos desse casalzinho. Afinal, separamos
vocês, mas o show ficou bem por conta dessa personalidade esquentadinha
de ambos. Ah, a maneira como a Ana cimentou os cacos das garrafas de
cerveja sobre o muro entre a casa de vocês foi divina.
Minha mente viajou até o dia posterior ao que Josiah se mudou para a
casa dele. Eu estava quase chegando aos seis meses de gestação. Lucah
tinha contratado um pedreiro para trocar os pisos da varanda naquela
manhã. Jow havia dado uma festa e, para debochar de mim, havia colocado
várias garrafas de cerveja sobre o muro entre as nossas casas. Irada, peguei
uma vassoura e derrubei todas elas. Algumas caíram no quintal dele, outras
no meu. Elas espatifaram, se dividindo em incontáveis cacos de vidro. Eu
pirei de fúria, peguei uma escada, um punhado de cimento com uma colher
de pedreiro e coloquei vários cacos cimentados acima do muro, bem na
direção de nossas janelas, chegando a cortar os dedos ao movimentar os
pedaços afiados do que sobrara das garrafas. Aqueles destroços do vidro me
lembravam os cacos que eram o meu coração, quebrado por ele e de
maneira tão injusta. Queria compartilhar com Josiah todos os pedaços de
vidro que eu sentia dilacerando minha alma. Eu estava no meu limite, e
aquele ato deixava isso bem claro.
Aquilo foi o marco da nossa guerra. Os cacos de vidro eram um
recado. Aquilo era o que havíamos nos tornado, dois objetos cortantes
prontos para nos dilacerar. Toda vez que olhávamos para a casa um do
outro, víamos os cacos sobre o muro. Encarávamos o lembrete.
Balanço a cabeça, como se o movimento pudesse dispersar os
pensamentos.
— Foi como a cena de um belo filme, Aninha. — Luana brindou com
uma taça imaginária. Que vontade de socar a cara daquela piranha... —
Separar vocês foi muito fácil.
— Chega, puta dos infernos! — Josiah grunhiu. — Por que fez aquilo
com o Bernardo?
— Ah, Jow, só vou te contar porque todas essas revelações
melhoraram o meu humor — avisou, apontando o indicador para ele de
maneira divertida. — Seu amiguinho intrometido me parou na rua e pediu
para eu contar a Ana sobre você ter ido à maternidade e ao enterro do
Lucah, mesmo que eu tivesse dito que não o queria lá. Esse otário chegou
logo quando eu estava vendo fotos minhas e do Lucah no telefone, e parece
até que foi obra do destino, mas o meu celular caiu no chão com a tela
voltada para cima. E quando Bernardo viu o nude do meu primo e eu, se
abaixou antes que eu pudesse reagir e agarrou meu telefone. Tentei segurá-
lo, mas ele saiu correndo. Então o segui, esperei o veadinho sair da sua casa
e chegar à esquina, depois bati com uma garrafa de vinho na cabeça dele.
Aninha estava irada sobre a caçamba do seu carro e sequer viu algo... E
olha que foi bem na frente dela. Limpei minhas digitais e joguei o que
sobrou da garrafa na lixeira da rua, além de recuperar o meu telefone das
mãos imundas daquele intrometido. Foda foi esse Harry ter me visto... Até
planejei dar um jeito nele, mas não deu tempo e ele já abriu a boca e te
contou tudo. Quando você me colocou contra a parede, achei que tivesse
visto o meu telefone, afinal, Bernardo havia entrado em sua casa, mas não...
Você não sabia de nada. Brindei com o destino e usei a deixa para culpar a
única pessoa que também estava na cena do crime.
— Meu santo é forte! — Harry avisou, apontando o indicador para ela.
— Se tentasse a sorte, tu ia ver com quantos paus se faz uma canoa!
— Ah, eu ia gostar de ver o seu pau... — Luana debochou, soltando
uma gargalhada forçada.
— Então resolveu fazer uma denúncia anônima para incriminar a Ana?
— Cristian indagou, passeando pelo tapete da sala sobre seu sapato caro e
lustroso, enquanto alisava o lábio inferior.
— Ah, com certeza, titio. Só não esperava que você fosse um coração
mole e limpasse a barra da putinha. E por que o fez?
— Fazemos tudo pela família... — Cristian respondeu, fazendo um
arrepio subir na minha espinha. — Excluindo estercos como você, é claro.
Uma súbita lembrança percorreu o meu corpo. Um carro da polícia me
pegou em casa, comigo com a mão engessada e recém-operada, ainda de
resguardo. Passei horas sob o interrogatório de um delegado. Josiah estava
lá quando eu cheguei, tinha um olhar de tristeza, mas não saiu do meu lado
um segundo sequer. Até achei que havia sido ele por trás da denúncia. Júlia
estava com a avó na entrada da delegacia, e tudo o que eu sentia era medo
de ser presa, de ser taxada de assassina e criminosa, de ficar longe da minha
bebê. Então o velho, o maldito a minha frente, surgiu e subornou o
delegado, conseguindo que tudo fosse para baixo do tapete e fosse
declarado que não havia um suspeito na cena do crime. Após os acertos,
Cristian disse a frase que acabara de repetir, na sequência declarando que
queria conhecer a neta. Então eu surtei e revidei que minha filha jamais
chegaria perto dele, soltando todos os seus podres diante do delegado para
justificar minha decisão. Fui silenciada com uma bofetada, e a noite foi
encerrada ao Josiah acertar um soco na bochecha do pai.
— Bom, já ouvimos o suficiente — encerrei o show de horrores,
sentindo um peso horrível em meu corpo, enquanto um gosto amargo
percorria minha boca. — Agora vamos chamar a polícia.
Luana sequer esboçou medo ou qualquer reação. Seguiu com seu olhar
viperino para todos os presentes. Josiah acenou para mim com a cabeça,
concordando.
— Espero que você apodreça na cadeia — Jow disse, apontando o
dedo em direção à prima.
— Já deixei tudo acertado com as pessoas que interessam, conforme
Marta e Ana solicitaram na ligação hoje cedo. Um delegado já está à espera,
e já tenho as pessoas necessárias para garantir um laudo descrevendo o
perigo que ela oferece para a sociedade, que faça Luana ficar o maior tempo
possível atrás das grades — Cristian contou, digitando algo em seu telefone.
— Pronto, agora a viatura está a caminho.
— Sabe que tenho um dossiê completo contra você, não é, Cristian?
Vai mesmo se meter comigo? — Luana ameaçou, e, mesmo que tenha
tentado manter a pose de destemida, uma sombra de dúvida atravessou o
seu semblante.
— Sobrinha... — Cristian respondeu, caminhando feito uma raposa até
bem perto dela. — Se ao menos mencionar qualquer coisa a meu respeito, o
mesmo delegado que está esperando o seu depoimento é o que vai cortar a
sua garganta. Fique esperta... Eu, sim, sou alguém que não sente medo de
nada.
Assim que a viatura chegou, Luana foi levada para fora, gritando
xingamentos a todos os presentes, além de proferir ameaças, sendo
silenciada apenas quando a porta da viatura se fechou.
Um peso enorme deixou o meu corpo quando aquela psicopata
finalmente partiu. Sabia que todos nós teríamos que depor contra ela, mas,
por enquanto, eu iria descansar, até que os advogados do Cristian nos
ligassem para irmos deixar o testemunho na delegacia.
— Pequena Ana Oliveira... — Cristian sussurrou, surgindo ao meu
lado feito uma rocha e fazendo o meu coração dar um tranco. Droga! Ainda
tinha que lidar com aquele cretino... Útil... Mas ainda um cretino. — Você é
uma mulher intrigante.
— Vamos deixar as coisas claras, querido sogro... — grunhi, virando o
meu rosto lateralmente, encarando-o nos olhos. — Fique bem longe da
minha família!
— Sabe, eu achava que Josiah era perfeito para assumir o meu legado,
mas estava errado. Ele não teve a força necessária para resistir a uma
mulher... Jamais conseguiria me substituir. Então, fique tranquila, querida!
Sua única preocupação deve ser cuidar da minha neta e fazer meu filho
feliz.
Paralisei diante do choque que aquelas palavras me causaram. Quando
me preparei para dizer algo, o homem caminhou para longe, acenando com
a mão para que seus seguranças o seguissem.
Aquilo era uma trégua?
Quando Cristian partiu em seu carro, senti que finalmente uma nuvem
escura se dissipava de nossas vidas. E tinha outras coisas pelas quais valia a
pena lutar agora que as tempestades haviam partido.
Capítulo 30

Foi você nas luzes da cidade. Foi você quando eu quase perdi o
controle. Foi você nos momentos mais sombrios. Foi você que me faria
brilhar. Foi você que eu segurei firme. Sempre foi você.
It's Always Been You - Caleb Hearn

Ana Oliveira
Dias atuais...

Duas semanas se passaram desde que todos descobrimos a verdade


sobre os desencontros do passado. No dia em que Luana foi presa, Josiah
estava arrasado após sua mãe praticamente se jogar de joelhos diante dele,
pedindo desculpa entre soluços. Ele a abraçou por muitos momentos, depois
a guiou para conversarem a sós. Quando voltou, me disse que queria ir para
sua casa. Assenti, com o coração apertado e inexplicavelmente segurando o
choro, achando que ele iria sozinho. Mas Jow pegou a Júlia em seu colo e
atou sua mão a minha, me puxando para ir com eles.
Josiah dormiu o restante daquele dia inteiro e fiquei completamente
sem saber o que fazer ali, estava sem sono e meio perdida. Me surpreendi
ao notar a mudança no local, ao ver que tinha muitos brinquedos e coisas da
Júlia pela casa, além de uma cama pequena e rosa para ela no quarto do
Jow, ao lado da sua.
Nossa filha estava à vontade no ambiente, afinal, passava dias ali com
o pai. Ao contrário de mim, que jazia triste, chateada, chocada com as
coisas que haviam acontecido. E para dispersar os pensamentos, me pus a
arrumar a casa. Eu adorava limpar as coisas quando queria distrair a cabeça,
então deixei Júlia assistindo a seus desenhos e fiz uma faxina nos cômodos
até sentir que estava tudo cheiroso e brilhando. Preparei uma refeição,
depois fiquei vendo televisão com minha pequena.
Quando Jow acordou, já era tarde da noite. Eu já havia tomado uma
ducha e envolvido meu corpo com uma das suas camisetas, dado banho em
nossa bebê, e depois a coloquei deitada ao seu lado na cama, enquanto
nossa filha já estava no décimo sono. Ele se levantou e não disse nada,
apenas estendeu a mão para mim, como se fizesse um convite que sequer
cogitei negar. Segui com meu ex-namorado para o banheiro... Entendi que
Josiah me convidara a trilhar o caminho para fugir da dor. E a maneira
como escapávamos do sofrimento juntos era muito libertadora.
Fiquei por todos aqueles quinze dias com Josiah e Júlia na casa dele.
Nunca o beijei tanto na vida e jazia dolorida em todas as partes possíveis
pela maneira como estávamos insaciáveis de desejo. Dormir e acordar todos
os dias com ele era a coisa mais perfeita, porque Jow deitava de conchinha
comigo, e nossa filha ficava aninhada a minha frente. Aquela era a forma
mais gostosa de adormecer. Dormia com o calor dos corpos das duas
pessoas que eu mais amava no mundo inteiro. Às vezes, gostava de me
deitar em um dos lados do peito dele, enquanto Júlia dormia do outro, só
para ficar observando o Josiah pegar no sono, tão sereno e perfeito.
E a rotina como uma família fazia o meu coração parecer refeito.
Mas ainda não havíamos conversado. Eu tinha deixado de lado a
história de término, de prazos, de o deixar. Eu o queria, queria todos os
sentimentos bons que tínhamos um pelo outro e tinha certeza de que agora
Josiah poderia me dar o que eu precisava, e eu entregaria ao Jow tudo o que
quisesse de mim.
Mas ainda precisávamos ter uma conversa, definir o que éramos.
Voltamos a ser um casal? Éramos namorados? Companheiros? E nosso
futuro? Seria juntos?
Ficar com Jow era o que eu queria, o que o meu coração gritava em
todos os momentos em que fugíamos para o banheiro para transar durante a
madrugada, também quando brincávamos com nossa filha e a levávamos ao
parquinho, quando cozinhávamos juntos ou víamos os desenhos repetidos
de Júlia até enjoar... Cada sorriso, cada beijo, cada carinho do Josiah me
derretia e apaixonava ainda mais.
Foi fofo irmos ao mercado juntos pela primeira vez. Júlia queria pegar
tudo o que via pele frente, e Josiah ficava me agarrando a cada passo,
causando olhares curiosos ou recriminatórios dos outros clientes ou
funcionários.
Eu queria aquela vida ao lado dele, do homem que eu amava, e me
mantive ansiosa durante toda a semana. Acordei disposta a chamá-lo para
conversar. Afinal, havia esperado os dias passarem para que desse tempo de
digerir as revelações sobre Luana e Lucah, atenuar a perda do Bernardo...
Mas sentia que estava na hora.
Josiah tinha subido para o Ravina quando fui deixar Júlia na creche.
Pensei em Isabela, que finalmente havia partido para seguir o seu sonho de
estudar Música. Queria ligar para ela, mas já tinha enchido o seu saco por
uma hora inteira ao telefone na noite passada. Voltei para casa com o
coração dando batimentos nervosos enquanto eu guiava os pensamentos
novamente ao meu ex-namorado, com a respiração ofegante, e aquele calor
escaldante que varria a cidade e me deixava suada, mesmo que trajasse um
short jeans curto e um cropped branco de alças finas. O cabelo solto não
ajudava, mas tinha que confessar que eu o vinha deixando assim porque
Jow sempre me elogiava quando os fios jaziam livres. Ele parecia amar o
meu cabelo, gostava de alisar entre os dedos, inspirar o cheiro...
Fiquei surpresa ao ver Josiah diante da casa, recostado sobre sua
picape, fumando um cigarro e me encarando. O que mais me deixou
chocada foi vê-lo vestindo uma calça jeans e uma regata solta abaixo das
axilas... na cor branca! Dei um largo sorriso, apressando o passo até ele.
Deus! Jow ficava tão perfeito e diferente com roupas claras... Eu
amava o contraste da cor de seu cabelo com a roupa branca. Sua feição
estava mais saudável pois ele voltara a se alimentar bem. Desde o nosso
“término”, Isa me disse que Josiah quase não comia. Mas, comigo em casa,
as coisas vinham mudando, porque ele amava tudo o que eu cozinhava e
acabava repetindo as refeições. Também estávamos malhando na academia
do condomínio... Sempre íamos uma hora antes da nossa filha sair da
creche, então depois caminhávamos juntos para buscá-la.
Assim que fiquei diante de seu corpo, me apoiei na ponta dos pés e lhe
dei um selinho, sentindo o gosto do cigarro misturado a menta sobre
aqueles lábios avermelhados que eu tanto amava, enquanto segurava a
lateral de sua camisa. Jow envolveu meu corpo com suas mãos enormes, me
dando um abraço apertado com mãos gostosas deslizando por minhas
costas.
— Por que está vestindo branco, amor? — perguntei, com um largo
sorriso ao inclinar a cabeça para trás para encarar seu rosto perfeito, sem
sair de seus braços.
Voltamos a nos tratar com os apelidos da adolescência, e isso foi muito
espontâneo. O mais fofo foi ver Júlia nos imitar, passando a chamar todo
mundo de “mô”: a avó, Harry e Bill, a professora da creche e até seus
coleguinhas.
— É para uma ocasião especial, não se acostume! — Sorriu, beijando
o topo do meu nariz e me encarando como se eu fosse a coisa mais linda do
mundo. Meu coração apertou. — Vem, entra no carro, Docinho. Vou te
levar a um lugar.
Obedeci, caminhando até o assento do carona e me sentando. Josiah
apagou o cigarro do lado de fora do carro, depois o depositou na lixeira da
calçada, jogando-se em seguida no banco do motorista. Fiquei encarando o
rosto dele enquanto dirigia. Para onde estávamos indo? Pensei em abordar o
assunto sobre nosso relacionamento, mas algo em sua postura me disse que
não era o momento.
Josiah ligou o som do carro com um semblante sereno, colocando para
rolar uma playlist com músicas do Metallica. Fiquei surpresa ao ver que
Jow dirigia para o fim do condomínio, entrando na rua mais afastada, a Rua
Vinte. Não entendi quando o carro parou diante de uma residência
contemporânea, inteiramente branca e com o pé direito tão grande quanto o
da casa do Jow. A fachada da residência dava a vista de uma garagem para
muitos carros, um quintal com grama aparada na frente, além de uma porta
de madeira clara enorme. E não estava exagerando ao dizer enorme.
Ele não disse nada ao descer do automóvel, dar a volta e abrir a minha
porta. Meu coração começou a bater um pouco descompassado enquanto o
seguia e o via abrindo a residência com uma chave.
Eu entendi o que aquilo queria dizer assim que adentramos a sala vazia
e inteiramente branca, pois uma lembrança linda floriu meus pensamentos.
Josiah estava deitado sobre a sua cama, logo na primeira vez em que voltou
para casa após entrar para o exército. Ficou me encarando deitada em seu
peito, e, enquanto alisava o meu cabelo, disse que um dia teríamos uma
casa linda, enorme e inteiramente branca para que deixássemos a nossa
cara. Me voltei para Josiah e meus olhos encheram-se de lágrimas, afinal,
ele havia aberto a porta e ficado parado diante dela, me esperando entrar.
Quando girei sobre os calcanhares e o encarei, ele estava retirando a
camisa.
Senti meu corpo todo esquentar ao vê-lo ficando inteiramente nu
diante de mim. Pisquei algumas vezes, chocada com o fato de que Jow
sequer estava duro, e algumas lágrimas se acumulavam em seus olhos
enquanto se ajoelhava diante de mim.
— Estou nu para que entenda, Docinho, que não existe nada entre nós
dois nesse momento. Nem mesmo uma fina camada de tecido. Sou
inteiramente seu e vou expor tudo para você nesse momento. Espero que
consiga enxergar a minha alma, porque até mesmo ela é sua para fazer o
que quiser. Venha aqui! — chamou enquanto erguia o braço com a mão
aberta diante do corpo. — Vamos passar a limpo cada sentimento que
causamos um ao outro, antes de eu dizer algo que pode mudar nosso futuro.
Aquelas palavras tão profundas, sensíveis e belas envolveram o meu
coração, aquecendo-o. Sequer pensei duas vezes e, tremendo, caminhei até
ele, mas, antes que pudesse me abaixar diante do seu corpo, retirei minha
roupa vagarosamente, peça por peça, sentindo o frio do ambiente
arrepiando o meu corpo, encarando fixamente os seus olhos vívidos e
necessitados. Quando me posicionei de joelhos diante do seu corpo, me
propus a mostrar ao Jow tudo o que quisesse ver, a não esconder mais nada.
Aquela conversa definiria o nosso futuro, e precisava ser perfeita porque eu
não aguentaria mais uma vida que não o envolvesse, uma existência onde
aquela pele quente não estivesse presente. Eu provei do fruto proibido, me
embebedei dele, depois vivi anos de abstinência e agora sabia que não
queria ficar sem aquilo... Sem a droga viciante que era Josiah.
— Me diga todas as coisas que fiz de errado, cada palavra ruim que
lancei em você, cada sentimento difícil que a despedaçou, Docinho. Se abra
por inteiro, e depois direi a você todos os estilhaços que dilaceraram o meu
peito.
Não pensei muito, me deixando levar pelo momento, permitindo a
primeira lembrança que me estilhaçou escapar por meus lábios:
— Eu odiei quando você entrou naquele quarto e atirou o buquê de
flores em cima de mim. Me senti despedaçar quando acreditou que eu o
trairia...
Então, narrei por quase uma hora todas as coisas que acabaram
comigo, cada estaca cravada em meu peito. No final, minha voz já quase
não saía por causa dos soluços. Nem me senti deslizar para o colo dele, e
quando dei por mim eu já estava sentada de frente, montada sobre as suas
pernas, buscando o conforto de sua pele, daquele pedaço de perdição.
Era tanta dor que percorria as minhas palavras, respondidas com
pequenas acenadas de cabeça do homem diante de mim. E por mais surreal
que parecesse, me senti leve após colocar para fora as coisas que jamais
havia dito a ele, enquanto nossa pele se encostava e se misturava uma à
outra. Era como retirar a tonelada de chumbo que esmagava o meu peito.
E, pacientemente, ouvi Josiah me dizer tudo o que sentiu, cada
pequena palavra que eu disse e que o feriu, cada fragmento de sentimento
ou pensamento que o atormentara. Uma das coisas que Jow disse e mais me
atingiu foi que ele sentiu muita tristeza ao me ver dizer que nossa filha não
era sua, porque, só de tocar a minha barriga, ele sentia uma intuição forte de
que o bebê ali também era dele. Josiah quis a filha, ele a amou desde aquele
momento, e vê-lo chorar admitindo a sua dor fez com que meu coração
doesse com a mesma intensidade que fiz o sofrer. Finalizamos com um
pedido de perdão mútuo entre beijos e lágrimas, que tinha todos os
contornos de um verdadeiro arrependimento e uma profunda vontade de
mudar.
Quando findamos nossos beijos e separamos nossas bocas, cerca de
duas horas após termos entrado naquela casa, nossas lágrimas se
misturavam na mesma proporção que nossas salivas. Não havia ardência ou
necessidade sexual no toque dele sobre o meu corpo, era... leve, doce e
muito gentil. As pontas dos dedos dele deslizavam por minhas costas, e
ficaram assim por um bom tempo, enquanto o único barulho no ambiente
era o de nossas respirações.
Quando Josiah enlaçou uma mão ao redor do meu quadril, girando um
pouco o seu corpo para o lado e arrastando sua calça jeans para perto, ele
deslizou algo para fora do bolso dela. Desabei de tanto chorar. Jow soltou o
meu quadril e eu inclinei o corpo um pouco para trás. Vê-lo abrir aquela
caixinha de veludo vermelha fez tantos sentimentos me percorrerem.
Eu vi um filme se passar diante dos meus olhos, que ia desde o meu
primeiro dia de aula com aquele garoto bonito que jogara uma mochila com
estampa militar sobre a mesa e prendera minha atenção de imediato. Me
recordei da maneira como ele lambeu a trilha de refrigerante sobre o meu
rosto e depois trilhou a boca até a minha em meu primeiro beijo, ou como
deslizou com gentileza para dentro de mim e me deflorou, ou... em todas as
vezes em que acordamos juntos e juramos amor eterno. Visualizei nossos
desencontros diante dos meus olhos e tive a certeza de que não havia
destino mais justo depois de tanto sofrimento que não fosse ficarmos
juntos...
— Ana, eu não consigo imaginar uma vida sem você. Agora eu creio
que os mundos perfeitos que imaginei para nós dois são possíveis. Não tem
como apagar o passado, as coisas que fizemos de errado, mas nos amamos,
e quero muito, muito ficar com você. Quero acordar todos os dias ao seu
lado com seu cheiro de bala de maçã verde, flores e coco ao meu redor.
Quero ver sua barriga crescer novamente e abrigar mais filhos nossos, mais
coisinhas lindas como a Júlia. Quero causar sorrisos em seu rosto perfeito e
ver essas covinhas enterradas que são como tocar o paraíso. Você é a coisa
mais linda que já vi na vida. Ana, aceita ser minha esposa? — Josiah
perguntou, com a voz como um fio, quase soluçando ao se emocionar com
o momento.
Céus! Eu... estava tão feliz e emocionada. Meu coração parecia
remendado, não completamente curado, assim como sabia que o dele
também não estava. Mas aquele era o recomeço.
— Eu quero que minha barriga cresça com mais bebês nossos, ver
sorrisos nessa boca vermelha e sentir o seu cheiro todos os dias da minha
vida. E não tem como apagar o passado, mas temos a chance de fazer tudo
de maneira diferente a partir de agora, meu amor — sussurrei, segurando o
rosto dele entre os meus dedos. — Nada de lágrimas, nada de mentiras,
nada de ódio, somente amor e as outras coisas... as coisas boas. Claro que
sim, meu amor! Eu aceito ser a sua esposa.
Josiah me beijou de um jeito delicado e apaixonado, soltando um
gemido enquanto deslizava a língua sobre a minha. Sorri entre o nosso
beijo, largamente, deixando claro o quanto estava feliz.
— Eu te amo tanto... — declarei, fitando aqueles olhos do verde mais
perfeito que já vi na vida. — E sinto tantas outras coisas, como um carinho
que chega a doer, uma paixão que queima meu corpo inteiro e um desejo
que me deixa inteiramente derretida...
— Eu também te amo, coisa linda. Quero mais coisinhas lindas. E
assim que colocar essa aliança no seu dedo, vou deitá-la nesse piso e fodê-
la para inaugurar a nossa casa — ele confessou, me deixando derretida por
deixar claro que aquela residência seria o nosso lar. — Preciso aproveitar
esse derretimento que está escorrendo de você para as minhas pernas —
disse, fazendo-me corar imediatamente, segurando a minha mão, que jazia
trêmula ao deslizar por meu anelar a joia de ouro branco com um diamante
solitário brilhando em seu topo. Fiquei envergonhada por ser um dedo
deformado, que não ficava tão bonito com o anel. Ele trincou as
sobrancelhas e, me encarando ao notar minha insegurança, disse algo para
atenuar. — Não fique assim! Sua mão continua linda.
— Quero uma promessa, Josiah — avisei, retirando o foco da minha
mão. Uma sombra de dúvida percorreu o seu semblante. — Nunca vamos
dormir brigados, vamos falar sobre nossos sentimentos e confiar na palavra
um do outro.
— Eu prometo, meu amor. Se um dia eu demonstrar desconfiança de
seu caráter, pode me deixar, e merecerei.
— E digo o mesmo a você, pode me deixar caso eu falte com o
respeito ao seu caráter. Mas sei que não teremos esse problema.
Josiah inclinou o meu corpo contra o piso, fazendo um arrepio me
percorrer pela frieza do contato com minhas costas. Mas, quando o Jow se
abaixou para provar a maneira como eu estava literalmente “derretendo”, o
incêndio de altas proporções que tomava conta da minha pele aqueceu tudo.
A maneira como a língua dele estava ávida e rápida sobre o meu clitóris,
provocando com a velocidade necessária para me causar pulsações breves,
constantes e intensas, mostrava que ele estava louco para me ver gozar.
Arqueei as costas, jogando o quadril para cima, como se houvesse mais
alguma maneira possível de aproximar minha boceta dos lábios dele, e
quando um calor absurdo percorreu o meu ventre, e o prazer me tomou por
inteira, gozei sussurrando o nome dele de uma forma muito arrastada.
Havia urgência na maneira como me penetrava, lembrando-me que,
por mais romântico que meu noivo fosse, ele ainda era selvagem demais
para me comer com delicadeza. Seu pênis entrara em mim com uma
investida apenas, ardendo, tocando de imediato o ponto mais fundo que
conseguia, fazendo-me gritar com o prazer atrelado às pitadas de dor que
aquilo me causara.
— Eu quero essa boceta molhada todos os dias da minha vida, porra
— grunhiu, puxando meus tornozelos para os seus ombros, posicionando-
me de uma maneira em que seu pênis se tornava quase um instrumento de
tortura. Soltei um gemido longo de dor quando ele se arremeteu, esticando
completamente o corpo e apoiando o peso de seu corpo nos antebraços e
pernas. — Por inteira... Fundo... Ouvindo esses gemidos gostosos. Então,
porra, Ana! Geme para mim!
E quando a sequência de estocadas urgentes dele dentro do meu corpo
se tornou o mais forte que conseguia, passei a gritar, sentindo um orgasmo
violento se aproximando enquanto enfiava as unhas nas laterais da sua
barriga, arqueando a cabeça para frente ao tentar lidar com a pressão do
corpo do meu noivo sobre o meu. Meu rosto pegava fogo, à medida que eu
mordia o peito dele para conter aquele prazer ardente. Eu sentia as minhas
paredes internas apertando o pênis do Jow, que inchava dentro da minha
boceta. Foi impossível conter aquele orgasmo abrasador que me fizera
tremer inteira, perder o ar à medida que afundava os dentes com força no
peito dele. Sequer pude me recompor, pois, quando meu torpor passou,
Josiah deslizou para fora da minha intimidade e sem retirar meus tornozelos
de seu ombro, deu um jeito de enfiar o pau na minha boca. Eu tentei acertar
a postura para recebê-lo melhor sobre os meus lábios, mas ele estava
possesso, puxando minha cabeça com força para frente, me sufocando com
seu pênis tocando o fundo da minha garganta de maneira urgente. Josiah só
precisou se arremeter para dentro da minha boca algumas poucas vezes
antes depositar seu gozo inteiro sobre a minha língua. Cheguei a engasgar,
tossindo com a quantidade do líquido descendo pela minha garganta,
prologando a sensação de estar sufocada. Josiah saiu da minha boca, mas
não me retirou da posição, agarrando o meu queixo e me encarando, com
necessidade.
— Não espere menos do que isso, futura esposa! — Josiah grunhiu,
apertando o meu queixo babado e vermelho.
— Não ouse me oferecer menos! — revidei em um rosnado, recebendo
um beijo molhado e delicioso como resposta.
Quando o sexo acabou e consegui me recompor, fiquei nua sobre o
peito dele por um bom tempo, alisando-o e encarando as paredes ao nosso
redor.
— Foi ótimo inaugurar nosso futuro lar comendo você. Mas a pergunta
que me interessa agora é: vamos fazer outro filho? — Josiah disse,
quebrando o silêncio. — Essa casa tem quatro quartos, quero encher todos
eles.
— Já? — indaguei, chocada, mas de uma maneira boa. — Não quer se
casar primeiro?
— Não importa a ordem, minha noiva linda. Eu quero viver tudo o que
sonhei para nós... Uma família grande com você, viagens com nossa
família, comer muito a sua boceta pequena, comer você inteira até ficar
velhinho e meu pau não subir mais.
— Jow... Não estrague o momento — pedi, tendo uma pequena crise
de risos. Me recompus para responder sua pergunta. — Vou parar com o
anticoncepcional e começar a preparar o meu corpo para uma nova
gestação. Quer se casar no religioso ou apenas no civil?
— Quero você de branco, com esses cabelos lindos soltos. E quando
você sorrir ao entrar na igreja para me dizer sim diante de Deus, saberei que
finalmente o nosso final feliz chegou.
— Você é lindo, Josiah — elogiei, sentindo uma lágrima correr por
minha bochecha corada por suas palavras perfeitas.
— Escolhi essa casa inteiramente branca porque vamos decorá-la
juntos. Tem que ser a nossa cara, como eu disse a você anos atrás.
— Eu me lembro, amor. Achei incrível você se recordar disso, de fazer
questão de tornar o sonho possível. Vou amar deixar tudo perfeito ao seu
lado, meu noivo — avisei, sorrindo de maneira triunfante. — E o que fará
com sua casa?
— Vou dar de presente ao Bill. Ele não tem casa própria.
— Amei a ideia. Ele vai ficar feliz. Talvez eu finalmente o veja
sorrindo. Nem sei como são os dentes do seu amigo.
Josiah soltou uma gargalhada gostosa.
— Também penso em mudar o Ravina de lugar, talvez para um
shopping, ou uma galeria movimentada em uma rua ampla — contou.
E ficamos por horas deitados sobre o chão de nossa nova casa, falando
sobre os planos para o futuro.
●●●
Três meses depois, quando estava na limusine preta sentada ao lado de
Isabela, que parecia mais nervosa que eu, fiquei observando o sorrisinho de
Marta para mim. Era um sorriso tão significativo. Ela estava linda, com dois
pentes prateados com pérolas puxando a lateral dos cabelos escovados para
trás. Aquele sorriso era de satisfação, de vitória, como se não precisasse
usar palavras para definir que estava orgulhosa.
Isa entraria com Bill, afinal, eram um dos casais de padrinhos. Harry
entraria com a Dona Helena, porque não tinha outra pessoa para convidar,
mas, por mais que fosse fofoqueira, ela me ajudou em vários momentos
difíceis. E o instruí a ser paciente na marcha com ela até o altar, pois era
muito idosa e já andava de maneira lenta.
Eu estava nervosa. Queria que o momento fosse perfeito, pois passei
três meses planejando aquele dia, o dia em que me tornaria esposa do
homem que eu amava.
Júlia estava impossível dentro do carro, toda hora tentando pular de
colo em colo, achando incrível o espaço interno da limusine.
Quando desci do carro diante da igreja, meu coração passou a dar
solavancos, minhas mãos suavam enquanto seguravam o buquê de robustas
rosas vermelhas. Isabela acertava a calda do meu vestido, enquanto a
cerimonialista, uma mulher baixinha de feições doces e que me ajudara com
todos os detalhes do casamento, posicionava a Júlia para entrar na minha
frente.
Harry e Bill estavam diante da igreja, ao lado da Dona Helena. Era
engraçado ver a maneira como eles estavam vestidos de maneira elegante e
social. Bill até mesmo havia aparado mais a barba, e Harry tinha retirado
todos os piercings, deixando apenas o da sobrancelha. Como foi mesmo que
ele disse? “Esse não tiro pois é o meu charme”.
Céus! Estava acontecendo! O momento com que tanto sonhei estava
diante dos meus olhos, acontecendo... Não era mais um desejo, era
palpável. Estava prestes a me casar com o homem da minha vida. Meu
coração estava uma confusão de emoções. A felicidade e o nervosismo
dançavam uma valsa dentro do meu peito.
Isabela segurou os meus ombros, me fazendo quase chorar ao ver que
estava com uma maquiagem linda e doce, em tons esfumados nos olhos que
combinavam com a cor suave do vermelho que agora inundava seus
cabelos. Seus fios estavam soltos e escovados de maneira perfeita, enquanto
um cheiro inconfundivelmente doce saía por cada poro de seu corpo. Seus
olhos brilhavam enquanto ela me encarava. Sabia que minha amiga estava
um pouco triste, era algo que estava acontecendo em sua faculdade, mas a
maneira como deu um sorriso largo para mim fez meu corpo aquecer.
Encarei o seu vestido em um tom de vermelho escuro com um decote em V
profundo, mangas longas e uma fenda lateral que deixava parte de sua coxa
direita à mostra. Estava linda.
— Seja feliz! — Isabela desejou, deixando uma lágrima escorrer por
sua bochecha, ao se aproximar e beijar a minha testa.
— Obrigada! Eu te amo! — sussurrei, deixando uma lágrima intrusa
rolar, me fazendo ter uma pequena preocupação com a maquiagem, mas me
recordei que estava usando uma à prova d’água.
— Também te amo, Bostinha!
Absorvi aquelas palavras com emoção, deixando claro no olhar sincero
que mostrava a Isa a minha alma, o quanto aquelas quatro palavras
aqueceram o meu coração.
Assim que os casais de padrinhos entraram, Ava, a cerimonialista,
posicionou Júlia para a entrada. Minha filha estava linda, trajando um
vestidinho rodado com uma saia solta em tule branco, o colo rendado, uma
réplica de meu buquê de rosas em suas mãozinhas. Seus cabelinhos estavam
soltos, com uma pequena coroa de flores rodeando a sua cabeça.
Eu havia dito a ela que aquilo era um jogo, que deveria passar pelo
tapete vermelho e chegar ao papai. Treinamos tantas vezes, que minha
princesa não decepcionou. Ela entrou na igreja e, quando segurei o braço de
Marta, tentei não chorar ao pensar que queria Davi ali, queria o meu pai.
Faltavam pessoas para que aquele momento fosse apenas feliz. Para que
não doesse. Mas não seria possível, então apenas lembrei de todas as razões
que tornavam minha sogra digna de me guiar ao altar, e o quanto eu era
sortuda por ter as pessoas que estavam ali conosco. O quanto aquele
momento era mágico e cada detalhe precisava ser saboreado e guardado em
minha memória.
Aquele era o momento pelo qual a Ana e o Josiah adolescentes
sonharam, planejaram. E aquelas duas versões de nós dois jamais
imaginaram o quanto o destino brincaria conosco, a quantidade de voltas
sofridas necessárias até finalmente chegarmos ali.
Mas existia um fato inegável, estávamos vivendo o sonho. Eu entraria
na porra de uma igreja e casaria com o pai da minha filha, com o homem
mais lindo que já vi na vida. E ninguém foi capaz de realmente impedir
aquilo. Porque nos amávamos. E era aquele sentimento que ficara no fim
das contas.
Quando entrei na igreja enorme e com detalhes em talha dourada por
toda a construção interna, um longo tapete vermelho se estendia diante de
mim, percorrendo o caminho entre os bancos de madeira, com filas enormes
de flores ao lado dele chegando até o altar. Ali, de braços dados a minha
sogra, senti que aquele era um dos momentos mais mágicos da minha vida.
A música It's Always Been You estava sendo tocada em um violino, e
cada acorde perfeito fazia meu corpo arrepiar, envolto em um vestido
branco em modelo semi-sereia, com uma calda capela escorrendo atrás dos
meus pés. Marta, em seu longo vestido vermelho, foi me guiando até o altar
para entregar ao seu filho.
Tinha poucas pessoas em nosso casamento, as nossas poucas pessoas,
toda a turma de roqueiros do Jow, alguns amigos da faculdade de Isabela...
Mas quem prendeu minha atenção foi aquele perfeito deus de cabelos
escuros sobre o altar. Aqueles olhos verdes estavam tão claros sob os
reflexos da luz do ambiente, que, mesmo sob uma camada de lágrimas,
percebi que toda a nossa vida jazia límpida como eles. Aquele homem me
encarando era quem eu amava... e quem eu queria para sempre.
Ele estava lindo em seu terno preto. Com os cabelos alinhados, a
postura confiante, porém ansiosa, enquanto me aguardava. Parecia segurar
o tique para não mexer nos cabelos.
Enquanto obrigava meus pés a caminharem até o meu noivo, meu
coração batia de maneira frenética. Minhas mãos suavam, tremiam e eu
estava tão nervosa, que temia acabar desmaiando. Viver o momento que
tanto sonhei era surreal. Estava acontecendo! Estava entrando na igreja e
caminhando até o meu futuro marido, ao garoto por quem me apaixonei aos
dezesseis anos.
Quando eu olhava para o homem me aguardando sobre o altar,
flashbacks do menino que me encarava de maneira destemida e sedutora no
ônibus da escola me percorriam. E aquele olhar maduro se misturava ao
jovial diante dos meus olhos. As duas versões do meu noivo, e consegui me
apaixonar por ambas.
Sorri largamente para o homem apaixonante diante de mim, sentindo a
emoção batendo à porta. Eu tentava conter a emoção enquanto sua mãe me
entregava a ele. Josiah beijou a testa da Marta, que dera um pequeno soluço
ao capturar o meu buquê e sussurrar um “cuide dela” para o filho. Apoiei
meu antebraço sobre o dele, sendo inundada por aquele cheiro que me
remetia a segurança. Jow cheirava a lar.
Assim que nos viramos para o padre, Josiah se inclinou para o meu
ouvido:
— Você deixou o cabelo solto, Docinho — constatou em um
murmúrio.
— Sim, do jeito que me pediu, futuro marido — sussurrei, virando o
olhar até ele e dando um sorriso feliz, deixando uma lágrima escapar por
ver a maneira como meu noivo se deliciava ao encarar as covinhas das
minhas bochechas.
O padre, um senhor careca e carrancudo, começou sua cerimônia,
falando sobre as tempestades da vida que costumavam testar o amor dos
casais. Ele falou muitas coisas, sobre os planos de Deus, sobre como essas
tempestades preparavam os casais para valorizar os momentos de sol.
Quando chegou a hora dos votos, meu coração deu um salto forte. Marta se
inclinou para a frente e me entrou o envelopinho de onde tirei o cartão com
meus votos.
Engoli em seco, tremendo com o papel entre os dedos. Dei uma olhada
insegura para meu futuro marido, que ergueu as sobrancelhas escuras em
um semblante encorajador e curioso.
— Às vezes, a vida nos testa... — comecei, sentindo a emoção tomar
conta da minha voz e fazendo força para não cair em lágrimas. Aquelas
palavras não eram apenas os votos do meu casamento. Elas eram uma cura.
Era a primeira vez que eu escrevia algo em anos — Ela nos dá um pedaço
do paraíso e depois nos rouba, apenas para que, quando tivermos de volta,
valorizemos cada nuance das cores, da temperatura, do toque... Para que,
quando tivermos de volta, tenhamos certeza de que não deixaremos escapar
jamais. Você, Josiah, não é um pedaço do paraíso. Você é o lugar mais lindo
do mundo inteiro, um refúgio, você é o meu lar. E todas as vezes em que,
enfurecida, disse que te odiava, a única coisa que eu queria gritar era que o
quanto eu nunca, jamais deixei de amá-lo. Quero sorrir ao seu lado durante
a felicidade, espero não ter que enxugar suas lágrimas durante a tristeza,
mas, se você estiver triste, estarei lá com você. Pretendo aproveitar a saúde
contigo, vivendo o mundo e realizando os nossos sonhos, mas será o meu
colo que irei te dar durante a doença. Espero passar todos os dias da nossa
vida ao seu lado, até que somente a morte possa nos separar.
Quando terminei minhas palavras, Josiah dava pequenos trancos com o
corpo, apertando as mãos diante de si, encarando o meu rosto enquanto
chorava. Mordi o lábio inferior, esperando que ele pegasse algo para ler.
— Só um minuto — Josiah pediu, tentando controlar os soluços,
posicionando a mão fechada diante da boca.
— Eu disse que ele ia chorar... — Harry sussurrou.
— Até você está chorando! — Bill murmurou de volta.
Dei um leve sorriso e girei os olhos ao redor. Não havia uma pessoa
sequer do nosso círculo que não estivesse entregue à emoção. Aquilo me
fez sentir que as pessoas que estavam ali sabiam da nossa jornada. Elas
entendiam o que aquilo tudo significava para nós dois. Isabela estava
entregue completamente ao choro, sorrindo de uma maneira tão linda para
mim, que cerrei os lábios e assenti para ela.
Voltei meu olhar ao meu amor, enquanto Josiah retirava um papelzinho
do bolso de seu paletó. Ele respirou fundo, dando uma leve sacudida no
corpo.
— Quando eu tinha dezessete anos, em meu primeiro dia de aula... —
Josiah disse, mas sua voz soava muito embargada pela emoção. Apenas
suas primeiras palavras já me fizeram ceder aos soluços. — Uma menina
linda ficou me encarando o tempo inteiro. E quando a vi entrando no
mesmo ônibus que eu, com aqueles cabelos lindos e cacheados, aquelas
bochechas redondas que ficavam vermelhas à toa, soube que ela era a
mulher da minha vida. Eu mal consegui dormir após me despedir dela, e foi
a primeira vez que a vi. Eu me apaixonei à primeira vista e decidi que teria
aquela deusa perfeita como minha namorada. Mas fiz coisas erradas e a
perdi, eu perdi a mulher mais doce que já conheci. E isso foi necessário
para que eu entendesse que nunca mais quero perdê-la novamente. Aquela
garota deu à luz a nossa filha, e está hoje diante de mim e de Deus. Ela é a
única mulher que consegue iluminar o caos em mim, a única capaz de me
fazer feliz. Ana, você é como um jardim florido e calmo, como uma deusa
perfeita capaz de florescer até mesmo uma terra escura e sem vida, como
fez com meu coração. Eu te amo, Ana. E quero ficar ao seu lado por todos
os dias da minha vida.
Aquelas palavras tocaram o fundo da minha alma. E encarei o Josiah
com uma felicidade tão grande percorrendo o meu ser, que soube que
aquele era o caminho certo. E quando finalizamos os nossos votos diante de
Deus, soube que, no final de tudo, o amor que sentíamos tinha prevalecido.
Foi o amor que ficara após a tempestade. Amor e todas as outras
coisas boas que sentíamos.
Epílogo

Josiah Marquez
Uma linda galeria era o lugar onde eu jazia parado. Júlia, que havia
completado seus cinco anos há dois dias, corria entre as pessoas com seu
vestido rodado e preto, exibindo a medalha de bronze que ganhara em um
campeonato de natação para todos os presentes. Qualquer um que lhe desse
uma mínima olhada, já veria aquele objeto. Ela costumava capturar mais a
atenção de Bill e Harry, os dois tios babões que ela tinha. Ambos estavam
parados cochichando algo no canto oposto do local.
Júlia era uma coisa linda, simpática e exibida. Seus braços estavam
repletos de tatuagens de chiclete, e os cabelos cacheados e de um castanho
claro como os da mãe flutuavam ao redor de seus ombros roliços.
Pelas paredes brancas e altas do amplo local, dezenas de quadros com
armadura branca e uma camada de vidro contendo desenhos meus estavam
em exposição na galeria, local que eu havia alugado para aquele evento, a
exposição dos meus desenhos. A galeria ficava bem perto do Ravina, agora
que tínhamos mudado o estúdio para o asfalto.
Os desenhos eram pequenos fragmentos da nossa vida. Covinhas da
Ana e Júlia aqui, traços do cabelo da minha mãe ali, máquinas de tatuagens
acolá, a bela curva da barriga da minha esposa, e tantas outras coisas
retratadas sob os traços de um lápis. Eu retomei os desenhos assim que
casei, pois minha mulher voltou para a faculdade de Letras e resolvi me
aventurar no hobby que amava.
Uma linda mulher estava parada diante de um dos desenhos. A
ilustração retratava uma deusa com cabelos cacheados e uma coroa de
flores sobre eles, com uma lanterna sobre a mão pequena e delicada
iluminando uma nuvem escura.
Cheguei por trás dela, daquela rainha que trajava um vestido plissado
longo em tons de rosa queimado. “Plissado”. Fora o tipo de tecido que ela
me ensinara durante a manhã. Quando parei atrás dela, aproximando as
mãos sobre a curva daquela barriga perfeita, Ana deu um sorriso.
— Ansiosa para o lançamento do seu novo livro amanhã? — sussurrei
em sua orelha perfeita, beijando a pele bela e exposta de seu ombro direito,
que agora ostentava a tatuagem de uma delicada rosa.
— Mais ansiosa para finalmente saber o sexo desses bebezinhos aqui
dentro — confessou, virando de frente para mim e exibindo a barriga de
quatro meses, a barriga que abrigava gêmeos.
Quase desmaiamos ao descobrir que eram dois, pois foi uma surpresa.
Mas eu queria muito mais coisinhas, e duas de uma vez me deixou animado
mesmo com o choque inicial...
— Está na hora! — minha mãe chamou ao longe, caminhando para
frente de um dos quadros do lado oposto a nós, o que jazia com um pano
preto escondendo sua superfície.
Ela estava de braços dados a Henrique, agora seu marido. O homem
alto, de cabelos escuros e feições gentis acenou para mim, e me forcei a
revidar. Dava um leve ciúme da minha mãe, mas gostava de vê-la feliz.
Lembro-me da depressão que ela entrou ao descobrir as coisas sobre o
meu irmão, da maneira como tentou se ajoelhar para pedir meu perdão por
ter duvidado das minhas palavras, mas a segurei e a abracei tão forte em
meus braços, que minha mãe entendeu que eu a amava. Eu sussurrei no
ouvido dela que era passado, que só importava a maneira como
reconstruiríamos nossa relação. Então me mantive presente na vida daquela
rainha elegante e que fazia o melhor bolo do mundo por todos os dias desde
então, e nunca mais a vi chorar como naquele dia. Ainda bem que Ana não
ouvia pensamentos, ou se chatearia ao saber que o bolo da minha mãe era
melhor, mesmo que toda a comida de minha esposa fosse como uma
ambrosia dos deuses.
Caminhei com ela até o objeto que continha a informação sobre o sexo
dos nossos filhos.
— Eu! Eu vou revelar, né, vovó? — Júlia gritou, correndo para a frente
da Marta.
— Sim, querida. Foi o que combinamos.
E quando minha mãe ergueu Júlia em seu colo, quando minha filha
puxou o tecido escuro da frente do quadro, meu corpo inteiro jazia gelado, e
meu coração dera um leve tranco com os pulinhos animados da Ana. Os
peitões balançavam com a alegria dela, fazendo com que meu lado safado
acordasse, mas me concentrei no momento.
Meninos.
Era o que estava escrito em azul no quadro de armadura quadrada.
Ana se voltou para mim, sorrindo com aquelas covinhas perfeitas.
Minha esposa procurou minhas mãos, e entrelacei-as nas suas diante de
nossos corpos.
— E então? Vai me contar os nomes agora? — perguntou, ansiosa,
pois como havíamos combinado, eu os escolheria.
Olhei para Ana com carinho, fazendo uma pausa para aumentar o
suspense. Ela arregalava os olhos, repleta de expectativa enquanto soltava
uma das mãos e alisava a barriga:
— Bernardo e Benício — tomei a força necessária e disse os nomes
em voz alta, vendo a emoção percorrer o rosto perfeito e corado dela.
Ana se jogou sobre o meu pescoço, chorando, com a ponta de sua
barriga separando levemente o nosso corpo.
— Ber e Ben... Que perfeito, amor.
— Sim... Esses serão os nomes dos nossos meninos.

Fim...
Agradecimentos

Vou começar agradecendo ao amor da minha vida, ao homem mais


forte e ao mesmo tempo sensível que já conheci. Você literalmente me
salvou, acreditou no meu trabalho e me motivou a seguir o meu sonho, a
enxergar que nasci para isso e que desistir não deveria ser uma opção.
Obrigada, marido! E só mais uma vez para você nunca esquecer: eu te
amo!!!
Em segundo lugar, quero agradecer a Adriana Mantovanelli, que com
sua Leitura Crítica me ajudou a deixar esse livro perfeito. Você é uma
profissional completa e comprometida. Minha mais profunda gratidão!
Em terceiro, vou agradecer a autora Dresa Guerra. Obrigada pela
paciência, pelos conselhos, por seu profissionalismo com o Marketing com
a Dresa e o serviço da AB Serviços Editoriais. Você e Bruno arrasaram em
todos os banners, calendário para o Instagram, revisão e diagramação.
Em quarto, quero agradecer a cada leitor que comentou no Wattpad
durante a postagem do livro, em especial a cada Coisinha da Red que faz
parte do grupo no WhatsApp. A Fran Autora, do Livros, Café e Música, por
cada figurinha divertida que roubei, pelos comentários e surtos no Wattpad.
Você é uma fofa e não esqueço sua risadinha contagiante! A Elany, que
surgiu bem quietinha e depois dominou o grupo com seus áudios e
indicações maravilhosas dos livros que lê. A Cah Silva, uma autora e leitora
que também me divertiu com seus comentários e figurinhas. Obrigada
também a Simone Mendes, uma das primeiras leitoras do Wattpad e que
jamais vou esquecer, comentou em literalmente cada parágrafo e sempre
deixando seus feedbacks no grupo das Coisinhas. Obrigada também a
Anna, que me fez morrer de rir com sua irreverência e comentários
originais e divertidos. Não posso esquecer da Luana, a gravidinha que
também tá no grupo sempre comentando e deixou um comentário que
aqueceu meu coração no final do livro. Quero agradecer também a Alê
Autora, dei uma enchida no saco em seu privado perguntando sobre o que
estava achando do livro; a Evelyn, super fofa e que me mandou uma
mensagem linda sobre como estava gostando da leitura, além de ter topado
se tornar uma Coisinha da Red. Não posso deixar de citar a Estela, que,
mesmo tendo um gatilho nos últimos capítulos, fez questão de terminar a
leitura. Muito obrigada, lindona! Quero agradecer também as leitoras mais
quietinhas do grupo, mas que fizeram questão de deixar um comentário fofo
no fim das postagens do livro no Wattpad: Andressa, Ritinha, Pri, Andreia,
Cristiane, Camila, Rosana e Vitória. Vocês não fazem ideia do quanto foi
importante ouvir cada opinião, cada áudio animado e ansioso. Vocês me
trouxeram paz e muita vontade de fazer o melhor trabalho possível.
Gratidão, Coisinhas! Vocês foram luz nessa trajetória e espero que fiquem
comigo para os próximos lançamentos.
Em quinto, vou agradecer a Andressa, minha neném que topou ler um
estilo de livro que não costuma gostar, que chorou horrores em alguns
momentos e meu deu o primeiro feedback sobre a história. Você é uma das
pessoas que mais amo no mundo. Obrigada por me aceitar em sua vida, por
acreditar no meu amor, principalmente!
Em último, vou expressar minha profunda gratidão à Maiara, que
topou ser ADM do meu grupo mesmo tendo uma vida corrida, que ouviu
meus áudios longos falando do livro e enchendo o seu saco, por te dar a
tarefa de fazer meus pix hahaha. Você sabe que é uma das minhas pessoas,
que nossa ligação é de almas, né? Dizer que te amo é redundância!
Obrigada por tudo! Por me aguentar e aconselhar nos momentos em que
estive emocionalmente esgotada, por me entender, por ter amado mesmo a
minha versão de adolescente problemática. Você é uma das pessoas mais
doces do mundo, e espero ainda dividir muitas cervejas contigo!
Há sete anos...
“A Isa é Má”, disse uma menina da escola.
“É ruim”, concordou outra.
“Ela é suja”, acusou o garoto que eu amava.
“Uma puta”, sua irmã completou.
Termino de misturar a coloração, observando como a cor vermelha
intensa é idêntica ao sangue que mancha meu vestido branco de renda.
Quando deslizo a tintura sobre meus fios de um loiro escuro, os gritos da
minha mãe ao longe mostram que começou. Estou matando a minha antiga
versão para que outra possa nascer.
Me envolvo em uma casca vermelha.
Eu ergo os escudos.
Me torno uma muralha.
E nunca mais alguém colocará as mãos em mim para me machucar!

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