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Meu nome não é Tuchinha

Por Siro Darlan desembargador

O filme de Mariza Leão que conta a história de um dos maiores


vendedores de drogas do Rio de Janeiro merece uma séria reflexão sobre
algumas graves denúncias feitas. Algumas já conhecidas por toda sociedade e
pelas autoridades, mas pouco combatidas – como a corrupção policial, o
tratamento diferenciado a autores de crimes de acordo com sua origem social,
raça ou poder econômico, que a Zona Sul “brilha”, como já havia denunciado o
experiente delegado Hélio Luz. Outras que estão a merecer investigação e
manifestação pública das autoridades mencionadas, como a acusação de ponto
de venda de drogas nas dependências do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Por um lado a história é fascinante e desmistifica a lenda segunda a qual


não há volta para aqueles que atravessam a fronteira do convencional e usam
ou vendem drogas. O personagem João Estrella se propõe a debater com
universitários e especialistas sua experiência pessoal e isso é muito bom e
enriquecerá o mundo tão discriminado dos usuários de drogas. Afirma em
entrevista que considera o tráfico apenas o comércio de uma substância
convencionalmente tida como ilícita, mas que causa tanto mal quanto tantas
outras permitidas. Defende a legalização desse comércio, mas acha que no
Brasil isso ainda irá demorar muito a acontecer.

São manifestações que devem ser colhidas com o respeito que merecem
aqueles que passaram por essa tenebrosa experiência e precisam ser debatidas
pela sociedade sem o tradicional preconceito que temas como esses costumam
ostentar.

Merece destaque o importante papel da juíza na apreciação da causa. Em


situações corriqueiras, João Guilherme estaria ainda amargando uma prisão,
sabe-se lá com que objetivos, pelo menos até 2010. Teve a sorte de ser julgado
por uma magistrada sensível que viu naquele réu não apenas o agente de um
crime de tráfico e formação de quadrilha, mas também uma vítima dos sistema
hipócrita que leva tantas pessoas a trilharem os mesmos caminhos de João
Estrella.
A juíza não só apostou na recuperação de João como foi visitá-lo na
prisão. Raridade que deveria inspirar todos os magistrados que condenam
pessoas a cumprirem pena por haverem descumprido normas legais em
estabelecimentos que fazem letra morta da Lei de Execuções Penais em vigor
desde 1984. A visita aos estabelecimentos de cumprimento de pena deveria ser
obrigatória a todos os magistrados.

Outra denúncia grave, mas que é de todos conhecida, é a péssima


condição desumana do sistema penitenciário onde se pretende a impossível
recuperação de um ser humano tratado como besta. Parabéns para a produção
que retratou o ambiente exatamente como a realidade das prisões e dos
manicômios, chamada pela lei de Casa de Custódia e Tratamento (?).

João Estrella não é um traficante e sim um comerciante de drogas.


Traficantes só são assim chamados os de origem humilde, que moram nas
favelas e comunidades. Contou com um bom advogado que garantiu uma rápida
passagem pelo coletivo do Manicômio, logo ascendendo para um trabalho
burocrático que ajudou o tempo a passar mais rápido e permitiu alguns privilégios
comprados graças a seu poder econômico, como a visita íntima, comida e
cigarros.

A mesma sociedade que indignou-se com o terror do Holocausto a ponto


de recorrer ao Judiciário para impedir que essa cena histórica e abominável
arrepiasse os foliões da Marquês da Sapucaí é conivente com as barbaridades
cometidas contra seres humanos nas celas das delegacias, penitenciárias e
manicômios. E aqui Thêmis não é apenas cega, é surda e muda.

João Estrella, segundo sinopse do filme, era de uma família de classe


média, cresceu no Jardim Botânico e freqüentou os melhores colégios, tendo
amigos entre as famílias mais influentes da cidade e tornou-se vendedor de
drogas mesmo sem jamais pisar numa favela. Em dois anos, quitou sua dívida
com a Justiça e hoje é um produtor musical que inspira livros e filmes.
Conquistou sua liberdade e o direito de ser respeitado na sociedade.
Após assistir ao filme pela segunda vez, não resisti à tentação de uma
comparação com outro comerciante de drogas – ou será traficante?

Francisco Paulo Testas Monteiro, o Tuchinha, na mesma época em que


João vendia drogas no Brasil e no exterior, exercia a mesma atividade no Morro
da Mangueira. Foi condenado a 43 anos de prisão e após cumprir mais de um
terço da pena com bom comportamento carcerário foi colocado pelo juiz da Vara
de Execuções Penais em liberdade condicional como manda a lei.

A saída da penitenciária foi amplamente acompanhada por alguns


veículos de comunicação. Afinal precisava ser lembrada sua condição
permanente de traficante, mesmo tendo cumprido grande parte da pena. A
decisão do juiz da VEP foi criticada de forma desrespeitosa pelo então chefe de
polícia e por setores da comunicação e da sociedade.

Tuchinha voltou para sua comunidade na Mangueira e tentou mudar de


vida. Dedicou-se à música e à poesia, tendo vencido dois concorridos festivais
de samba na própria Mangueira e na Lins Imperial.

Assumiu seu nome artístico de Francisco do Pagode como uma forma de


afastar-se de sua antiga personalidade ligada ao crime, assim como João
abominou seu nome de comerciante de drogas e deu título ao filme Meu nome
não é Johnny. Mas ninguém o deixou em paz um só minuto. Foi vigiado,
escutado, criticado e sua resistência sendo minada porque a ele e a tantos outros
não é dado o direito de mudar de vida. Uma vez traficante, marca-se sua vida,
seu corpo, como uma tatuagem da qual eles não se podem ver livres ainda que
queiram.

O filme é forte e rico para uma reflexão: por que João Estrella pode não
ser mais o Johnny que comercializava drogas e Francisco do Pagode tem de ser
eternamente o traficante Tuchinha?

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