Resumo dos documentários “A Casa dos Mortos” e “Saúde Mental de Dignidade Humana”
O documentário “Saúde mental e Dignidade Humana”, produzido pelo Centro de
Memória da OAB, traça o histórico da loucura. Desde os primórdios, a loucura é uma questão social que desempenha a posição de perseguida pelos que se consideram não loucos e dentro de uma moralidade social ou religiosa. Principalmente na época da reforma e contrarreforma protestante, a religião tinha força coercitiva e atuava ativamente no imaginário social da loucura, associando-a a um “endemoniamento”. A história remonta casos de pessoas que cometem crimes mínimos e são condenadas por pecados morais que só dizem respeito a uma lógica conservadora e fazem referência a uma inadequação tida como inaceitável. Roubo de frutas, adultério, sinais de bruxaria, não conformidade com a lei e/ou com os dogmas religiosos que estruturaram por séculos a nossa sociedade sempre foram insistentemente vítimas. Há algumas décadas eram permitidas por lei internações compulsórias sem exigência de justificativa diagnóstica de comprometimento mental, o que lotava os hospitais psiquiátricos. Os direitos humanos serviram como subsídio para combater tais internações, que feriam gravemente a liberdade e pluralidade humana. O médico Pinel, na França, foi um dos primeiros profissionais que de fato se empenhou na criação de lugares fechados para a proteção dos chamados loucos. Hospício, partindo dele, remonta à noção de hospitalidade. E enfim, a degradação dessa hospitalidade que produziu o manicômio. O que se discute não é a utilidade ou inutilidade do manicômio, mas sim o que ainda sustenta o suposto saber que se utiliza de diagnósticos e juízos de valor equivocados para isolar e conter pessoas que são consideradas anormais. É importante destacar que o termo “manicômio” por si só já carrega um peso cruel que designa o louco como um irresponsável, violento e incapaz de viver em sociedade e de ser produtivo aos olhos do capital, o que lhe negava uma utilidade econômica e assim este desaparecia da comunidade. Os manicômios judiciários, os quais serão expostos com mais profundidade no segundo documentário sob o qual se refere este resumo, surgiram com o casamento do direito positivo criminal e a psiquiatria médica. Com eles, ocorria a tipologia do louco como prevenção da violência e criminalidade. Também chamados de hospitais de custódia, no Brasil, nunca cumpriram com sua finalidade assistencial. Muitas vezes utilizavam-se de “prisões perpétuas”, pena que não existe na penitenciária tradicional brasileira, para manter eternamente pacientes em isolamento. A sociedade se pauta em exceções extremas de crimes hediondos cometidos por doentes mentais para internar todos os loucos e acalmar medo iminente dos riscos que estes poderiam trazer à sociedade. A questão jurídica que permeia os hospitais de custódia não nega e nem suspende a responsabilização do doente mental frente ao seu delito, mas ao mesmo tempo preza pelo tratamento psicológico e psiquiátrico e pela ressocialização. A reforma dos hospitais psiquiátricos se difunde politicamente a partir do século XVII com os ideais da Revolução Francesa, mas somente se estabelece fundamentalmente na Itália com Franco Basaglia à frente da “Reforma Psiquiátrica”. Esta reforma democrática italiana discutia a necessidade da conversa entre diversos fatores como o internamento, direitos humanos, assistencialismo, ação terapêutica, democracia, valorização da vida, não exclusão e se difunde por todo o globo. A experiência se desenrolou de modo extremamente exitoso ao propor a mistura da clínica médica com o fortalecimento de uma rede de apoio e uma comunicação aberta e respeitosa, que contemple os loucos no adoecer e no restabelecer. A cultura da exclusão manicomial tem bases culturais e a mudança deve infiltrar-se no imaginário social. Infelizmente, a mídia, a religião, a política e a arte ainda se convém de muitos estereótipos e estigmas que perpetuam as noções distorcidas acerca da loucura. Assim, o judiciário firmou o dia 18 de maio como Dia Nacional da Luta Antimanicomial pelo direito à dignidade humana na loucura e nos convida a refletir sobre o abandono e a exclusão que são imputados aos doentes mentais. E a própria Organização Mundial da Saúde (OMS), sediada em Genebra, reconhece a data como legítima. O documentário “Saúde Mental e Dignidade Humana” tem seu fechamento com a música “Balada do Louco” dos Mutantes, interpretada por Ney Matogrosso, que traduz excelentemente a mensagem da Luta Antimanicomial da perspectiva do louco: “Dizem que sou louco por pensar assim. Se eu sou muito louco por eu ser feliz? Mas louco é quem me diz e não é feliz, não é feliz”. O conformismo e a normalização são alienantes e não são garantia de felicidade. Segundo a canção, a felicidade vem da liberdade de poder ser quem se é. O documentário “A Casa dos Mortos”, produzido em 2009 pela antropóloga e professora da UNB Débora Diniz, retrata a vida no Hospital de Custódia e Tratamento (HCT) em Salvador, na Bahia. O documentário se desenrola a partir de um poema escrito por Babu, um dos residentes e reincidente, com 12 passagens em manicômios judiciários. O poema de Bubu é composto por 3 cenas, 10 versos e 96 estrofes e desvela as mortes esquecidas destas instituições. O poema “A Casa dos Mortos” foi escrito por Bubu durante as filmagens do documentário e desvelou as “mortes” esquecidas dos manicômios judiciários. São três histórias em três cenas de morte que discorrem os castigos de Jaime, Antônio e Almerindo são os internos cujo castigo é tragédia do suicídio, o ciclo interminável de internações, ou a sobrevivência em prisão perpétua nas casas dos mortos. Bubu é o narrador de sua própria vida, mas também de seu destino de morte.’’ A cena 1, intitulada “Suicídio de Jaime”, fala abertamente sobre os suicídios no hospital-presídio. Jaime era um detento condenado por matar 20 pessoas e alegava que mataria 21. Seu suicídio aconteceu dentro de sua cela e foi encenado por outros detentos posteriormente com a gravação do documentário. De início, percebe-se uma dessensibilização no encenação, o que provavelmente se justifica devido à frequência de casos “suicidários” dentro da casa. A situação no HCT é deplorável e as condições são precárias. A justiça se faz ausente todos os dias. Alguns dos internos, que já receberam alta e cumpriram sua pena, seguem por lá. Em sequência, a cena 2, “O retorno de Antônio”, discorre a respeito das overdoses usuais e ditas legais, como define Bubu. O documentário, então, acompanha o retorno do interno Antônio e seu processo de entrada no HCT. A passagem recidiva pela casa de custódia começa com a internação e o dito “tratamento medicamentoso”, que é contínuo. Antônio é questionado a respeito de qual medicação usava da última vez que esteve ali. “Diazepam”, ele responde. Diazepam é um ansiolítico extremamente popular que tem efeito sedativo, anticonvulsivantes e amnésicos. A chama da esperança pela liberdade tem sua faísca com a possibilidade de absolvição da pena pelo juiz encarregado da sentença, mas após tantos regressos à casa dos mortos, como é possível manter essa chama acesa? Dificilmente é, mas com duas doses diárias de diazepam a “espera” parece um pouco mais suportável. A Cena 3 escreve e documenta a passagem de Almerindo, diagnosticado com doença mental, que um dia atirou uma pedra num menino que andava de bicicleta na rua e logo jogou a bicicleta sob o corpo já morto. Quando um transeunte ameaçou chamar a polícia, Almerindo fugiu, mas isso não o livrou de ser detido. Sem justificativa real para tal ato e com indício de comprometimento mental, foi internado no HCT. A cena é denominada “Almerindo já morreu” e o título se torna ainda mais impactante sendo que Almerindo continua vivo. Numa entrevista com duas funcionárias do hospital de custódia, Almerindo se esquiva das perguntas, alegando que morou em vida em outro país e que já está morto. Após a insistência frustrada das funcionárias, uma delas se põe a ler sua ficha, Almerindo, que está internado desde 1981, perdeu todos os vínculos familiares e de amigos. Segue internado num hospital, que mesmo que compartilhe com outros internos de uma alegria episódica, deteriora sua saúde mental. Como confirma o documentário anterior, o hospital de custódia não cumpre com o papel assistencialista e ressocializador ao qual deveria cumprir. A conclusão dessa cena é curta e direta, ainda que profunda e dolorida, Almerindo já morreu em vida. Segundo Bubu, a cena 3 reflete sobre as vidas sem câmbio do lado de fora, em que o “câmbio” seria uma resposta do outro lado do walkie-talkie. O fechamento do documentário passa pela cena de Almerindo e alguns outros internos cantando o sucesso “Chicleteiro Eu, Chicleteiro Ela” do Chiclete com Banana. Cantam: “É com ela que eu vou. Vou com ela. Vou amar esse amor. Chicleteiro do meu carnaval.”. Bubu, escritor do poema “Casa dos Mortos”, que dá o nome ao documentário de Débora Diniz, finaliza: "Que se reescrevam então os infernos de Dante Alighieri, mas aqui é a realidade manicomial. Isto é um veredicto. Tomara que fosse um ultimato, a casa dos mortos”. Compreendemos então que a realidade manicomial por muitas vezes é cruel e desumana. Quem nos dera a reforma psiquiátrica realmente atingisse todas as instituições que tanto se beneficiariam dela. Esta reforma é principalmente de base e a luta antimanicomial continua até que o imaginário coletivo e social não se utilize de poderes e supostos saberes para controlar, isolar, dizimar, desumanizar corpos e mentes de pessoas que também são merecedoras de uma assistência pautada em prol da saúde mental e da dignidade humana. Bubu expôs três histórias em três cenas de morte. Jaime, Antônio e Almerindo são os homens negligenciados cujo castigo é tragédia do suicídio, o ciclo interminável de internações e a sobrevivência em prisão perpétua, que se desenham quase como um destino certo a todos que passam pelas casas dos mortos do país. Bubu, ao mesmo tempo que é o narrador dessa realidade e de sua própria vida, uma vez que tem seu espelhamento nas histórias contadas, pela mesma razão também é o narrador do destino de sua própria morte.