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UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI – URCA

Universidade Descentralizada de Iguatu – UDI


CURSO DE DIREITO
Disciplina: PSICOLOGIA GERAL
Docente: BEATRIZ JANUÁRIO

LUCISMENIA KELLE GOMES MATOS

RESENHA CRÍTICA: HOLOCAUSTO BRASILEIRO

IGUATU
2021
O documentário Holocausto Brasileiro é baseado em um livro homônimo e
conta a história do Hospital Colônia, localizado em Barbacena, Minas Gerais.
Inaugurado em 1903, inicialmente como um ‘spa para ricos’, foi instalado na
província de Barbacena em decorrência da crença de que o clima ameno faria com
que os doentes mentais e tuberculosos ficassem mais quietos, facilitando o
tratamento. Posteriormente, foi adquirido pelo Estado e, ao longo do século XX, se
transformou em um ‘depósito’ de corpos estigmatizados que foi responsável
pela morte cerca de 60 mil pacientes, vítimas de todo tipo de maus-tratos e
descasos.
Michel Foucault, no livro História da Loucura, traz a alegoria da ‘nau dos
insensatos’ em que os indesejados eram obrigados a embarcar em um navio, sem
porto seguro onde pudessem receber ordem para atracar, sendo condenados à
deriva sobre as águas por tempo indeterminado. Transpondo essa alegoria para a
realidade, os pacientes do Hospital Colônia eram, da mesma forma, encaminhados
de trem, chamado ‘trem de doido’, sendo muitos apenas alcoólatras, crianças
indesejadas, mendigos, prostitutas, homossexuais, vítimas de estupro ou pessoas
que simplesmente não se adequavam ao padrão normativo daquela época, como
homens tímidos e mulheres com senso de liderança ou que não desejavam se
casar. Essas pessoas eram consideradas indesejadas de acordo com uma estrutura
formada pela própria sociedade que considerava loucos aqueles que não serviam,
de alguma forma, ao sistema. Assim sendo, o padrão eugenista estabelecido como
ideal classificava todos aqueles portadores de transtornos psíquicos e inaptos à
produção do sistema como degenerados. Essa classificação também incluía o
aspecto da formação moral dos indivíduos, e todos que fugissem ao padrão daquela
época eram considerados inaptos para convivência social. Esse cenário funcionava
de acordo com o que Foucault chamou de biopoder em que se faz viver a quem
interessa o sistema e se deixa morrer quem não é considerado importante. O
Estado, detentor desse biopoder, é responsável por gerir a vida da população, se
apropriando do controle da saúde e de outros aspectos para tal finalidade. No caso
do Hospital Colônia, o Estado negligenciou de todas as maneiras o papel de gerir a
vida de parte da população e o ‘deixar morrer’ imperou da forma mais bárbara
possível.
A clínica e a medicina não eram preocupações para a administração do
hospital como mostra o relata de uma funcionária ao expor o descaso médico em
relação aos eletrochoques, que eram aplicados como forma de castigo, e às
medicações que se resumiam a overdoses diárias, quando os pacientes se
encontravam muito agitados, que os deixavam dopados e fora da realidade, a fim de
manter o controle da situação. Além disso, eram, por vezes, os próprios funcionários
que lavavam comida e kits emergenciais com a intenção garantir o mínimo suporte,
não oferecido pelo Estado.
Os corpos caquéticos e o abandono físico e metal denunciados em
foto expunha a condição miserável e desumanizadora daquelas pessoas, sendo-lhes
negado comida, água, cama e roupa e lhes sendo imposto apenas o
silenciamento. A destituição da condição de pessoa dos pacientes era feita, por
vezes, antes mesmo de sua chegada ao Hospital Colônia e pelas suas próprias
famílias que, desligadas de suas consciências morais, despachavam seus próprios
filhos, esposas, pais como objetos, para um lugar do qual as chances de saída eram
mínimas. Quando esses pacientes não eram condenados a vagar sem rumo e sob
efeito de todos os danos causados diariamente por aquele espaço, eram explorados;
sendo obrigados a prestar serviços para o hospital e, muitas vezes, para os próprios
funcionários sem nenhum retorno que os beneficiasse.
No documentário, a condição de lugar de degradação do Hospital Colônia é
aprofundada ao ser exposto o esquema ilegal de comercialização de cadáveres para
faculdades que ocorreu entre 1960 e 1980. Ou seja, a objetificação desumanizadora
daqueles corpos persistia mesmo depois da morte. Em outras palavras pode-se
afirmar que:

Roubaram da morte o significado de desfecho de uma vida realizada [...]


roubaram a própria morte do indivíduo, provando que, doravante, nada -
nem a morte - lhe pertencia, e que ele não pertencia a ninguém. A morte
apenas selava o fato de que ele jamais havia existido (ARENDT, 1989, p.
501).

A visita do psiquiatra italiano Franco Basaglia, referência pela humanização


dos modelos de atendimento, em 1979, tornou-se um símbolo da luta pelas
mudanças do modelo assistencial. Porém, foi só no ano de 2001 em que houve a
aprovação da lei que garantia a substituição de leitos psiquiátricos por modelos de
atendimento mais humanizados. No fim, esse documentário mostra como um olhar
pode ser treinado a não olhar o lado humano dos outros. A autora do livro que
baseou o documentário, Daniela Arbex, evidencia essa perspectiva ao afirmar que a
culpa é coletiva, já que para que uma tragédia como a de Barbacena pudesse existir
durante oito décadas, era preciso que houvesse uma omissão coletiva. A
responsabilidade do Estado, a complacência dos funcionários, a omissão da
sociedade e a culpa das famílias que encaminharam seus próprios parentes àquele
local degradante expõe como a banalidade do mal pode produzir uma estrutura de
crueldade que normaliza a obliteração de corpos que não servem.

REFERÊNCIAS:

Arendt H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras; 2012.


HOLOCAUSTO brasileiro. Direção: Daniela Arbex e Armando Mendz. São Paulo,
SP: HBO Brasil, 2016. Canal Max (90 min).
MATOS, Rodrigo; MEDRADO, Ana Carolina. Dos corpos como objeto: uma leitura
pós-colonial do ‘Holocausto Brasileiro’. 2021. Disponível em:
<https://scielosp.org/article/sdeb/2021.v45n128/164-177/pt/>. Acesso em: 14 nov.
2021.

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