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RESENHA CRÍTICA
CAMPINA GRANDE/PB
A HANSENÍASE NO BRASIL E A SOCIEDADE DOS LEPROSOS
CASTRO, Manuela. A Praga: O holocausto de hanseníase. 1.ed. São Paulo: Geração Editorial,
2017.
No livro “A República” de Platão, o filósofo pauta a construção de uma sociedade a par r de dois
movimentos principais: jus ça e a educação. A jus ça agirá para que todos possam receber
sejam igualmente beneficiados pela organização daquele espaço, enquanto a educação seria o
conhecimento sobre a cultura e as leis que permeiam aquele espaço. As colônias agrícolas para
leprosos surgiram por volta dos anos 1930, com o intuito de resguardar os portadores da
hanseníase do resto da sociedade, criando um po de “sociedade” só para os doentes (ou seria
uma prisão?). Em “A Praga”, Manuela Castro descreve que alguns leprosários nham mais de 5
mil habitantes, como no caso da Colônia de Santa Isabel em Be m (MG) que foi a maior colônia
do Brasil. Ela descreve que os “funcionários da colônia eram os próprios doentes, com exceção
de poucos médicos. Os enfermeiros eram hansenianos que aprendiam a profissão na prá ca.
Aliás, os pacientes, com frequência, aprendiam um o cio diferente daquele que exerciam no
mundo exterior. [...] Os mais comuns eram pedreiros, carpinteiros, serralheiros, coveiros e
policiais” (Castro, p. 6) Além disso, a colônia disponha de um delegado no comando do sistema
puni vo, que qual estabelecia a prisão para todo aquele que infringisse as leis da colônia,
considerada um “grande exemplo da ação do Estado para erradicação das doenças contagiosas.”
(Castro, p. 236) Aos olhos do Estado e da sociedade que vivia fora daqueles muros, os leprosários
eram um meio de proteção tanto àqueles que permaneciam sadios quando aos que haviam sido
diagnos cados com a doença, tanto que a “revitalização” dos centros foi uma das prioridades
do governo de Getúlio Vargas durante a implementação do Estado Novo. Ainda assim, a
elaboração do sistema das colônias, em sua maioria, não contemplava uma estrutura hospitalar
— as colônias do Pará, Rio Grande do Norte e Paraná eram as mais precarizadas — ou seja, o
Estado estava disposto a proteger através da segregação dos portadores de hanseníase, e
considerando o sen do de sociedade segundo Platão, fica claro que as colônias não se
aproximam desse conceito, já que os doentes sobreviviam sob condições de vida precárias
naqueles espaços. Em seu livro, Manuela também equipara as colônias a uma prisão, o que
também não abrange o sen do desses lugares, uma vez que ao observamos o conceito do
sistema prisional contemporâneo às bases do movimento Iluminista (XVII – XVIII), no qual
compreende a prisão como um meio para reintegração social do indivíduo, os leprosários não
devolviam os doentes a sociedade — a cura da hanseníase surgiu na década de 1940, mas alguns
portadores da doença foram libertos das colônias apenas por volta de 1986 — também se
distanciam do conceito. Sob essas perspec vas, se não eram sociedade e nem prisão, o que
eram? Ora, ainda considerando a teoria do antropólogo Pierre Bourdieu, os leprosários
poderiam ser um instrumento de dominação — que se torna simbólico a par r da normalização
desses centros na sociedade — dos agentes — o Estado — que segundo o antropólogo,
“contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata
entre todos os seus membros e dis nguindo-os das outras classes); para a integração fic cia da
sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes
dominadas; para a legi mação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das
dis nções (hierarquias) e para a legi mação dessas dis nções.” (Bourdieu, p. 10)
O DESMONTE
Certamente, um dos mo vos para comoção por trás da hanseníase está ligada a imagem que se
construiu sobre ela, seja através da religiosidade, dos produtos culturais ou dos leprosários.
Ainda assim, a compreensão desse mecanismo se torna pra camente insignificante quando
defronta o efeito da violência e do preconceito na vida daqueles que foram afetados pela doença
e neste caso, incluo não apenas os ex-internos que foram diagnos cados com doença, mas
também as famílias dessas pessoas. Assim como Conceição foi obrigada a se afastar dos filhos
pequenos quando foi sentenciada com um “passaporte para o inferno” (Castro, p. 11) e ainda
não teve a chance de conhecer os filhos que pariu dentro dos pavilhões, Iverlândia, que nasceu
em um preventório da Colônia da Prata, no Pará, também não teve assistência quando foi
entregue para o pai nos anos 1980, quando a polí ca de confinamento começou a mudar. A
jovem, como tantos outros pacientes, teve um choque cultural ao enfrentar a sociedade fora
daqueles muros, “não conhecia caranguejo, açaí, maxixe — hortaliça da família do pepino. E não
nha jeito de se acostumar com o gosto daquilo.” (Castro, p. 2016) O regime segregacionista,
influenciou a forma como os ex-internos se expressavam sen mentalmente, como no caso de
Edmilson que cresceu na Colônia de Marituba, no Pará, e ao longo da vida sen u dificuldades
em sen r afeto e corresponder. Segunda Manuela, durante a entrevista com o ex-interno, ele
confessou que começou a gostar do próprio filho depois que o menino completou 10 anos de
idade. O movimento da lepra no Brasil acabou gerando sequelas que vão para além do sico
causado pela própria doença, uma distanciamentos tanto de forma social quanto familiar. Em
1995, o Estado iniciou um movimento de res tuição as ví mas, começando pela mudança da
nomenclatura da doença, que foi protegida pela Lei nº 9.010. Agora “lepra” deveria ser chamada
de “hanseníase” em todas as suas terminologias — em homenagem ao médico que descobriu a
doença em 1873, Gerhard Hendrick Armauer Hansen — era o primeiro movimento para tentar
dissociar a imagem pejora va elaborado sobre a doença, o que corrobora para o fato de que a
circulação das informações, impacta diretamente na forma como aquele objeto é representado.
No entanto, foi o Movimento de Reintegração das Pessoas A ngidas pela Hanseníase (Morhan),
quem buscou as mudanças sociais aos afetados pela doença, como o apoio financeiro às vi mas
das colônias, a revisão das informações disseminadas sobre doença e o reestabelecimento da
estrutura familiar dos filhos que foram separados dos pais, através de testes de DNA gratuitos.
Estes e outros movimentos, colaboraram para que o es gma por trás da doença fosse
descontruído pouco a pouco, o que Bourdieu compreende como a tomada de consciência sobre
os mecanismos da classe dominante e a par r disso, as diferentes classes que compõem a
sociedade passam a se envolver “numa luta propriamente simbólica para imporem a definição
do mundo social mais conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de
posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais”
(Bourdieu, p. 13) que sob a perspec va da luta hanseníase, busca por respeito, dignidade e
democracia no espaço social, ao qual sempre deveriam ter feito parte.
Desta forma, a obra “A Praga” da jornalista Manuela Castro, apresenta os fatos sobre a
hanseníase no Brasil, ao passo que colabora disseminação de informações que engajam a luta
do movimento no país, o que — apesar das ressalvas quanto a gramá ca erronia que deslegi ma
a luta de outros movimentos — demonstra a força do trabalho jornalís co, não apenas como um
meio de comunicar, mas de apoiar de forma correta (sem, necessariamente, ater-se as amarras
de imparcialidade) através da informação.
Por: Julia Souza Nunes, graduanda em Jornalismo — Comunicação Social pela Universidade
Estadual da Paraíba. E-mail: julia.souza.nunes@aluno.uepb.edu.br