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UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA (UEPB)

RESENHA CRÍTICA

A HANSENÍASE NO BRASIL E A SOCIEDADE DOS LEPROSOS

Nome: Rafael de Araújo Melo

Turma: 4º semestre (Noturno)

CAMPINA GRANDE/PB
A HANSENÍASE NO BRASIL E A SOCIEDADE DOS LEPROSOS

CASTRO, Manuela. A Praga: O holocausto de hanseníase. 1.ed. São Paulo: Geração Editorial,
2017.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1989.

OS DEZ MANDAMENTOS. Produção de Vivian de Oliveira. Rio de Janeiro: RecordTV, 2015. 1


vídeo online (1min42seg). Disponível em: <
h ps://www.facebook.com/watch/?v=1130514290363579 >. Acesso em: 27 jun. 23.

O livro-reportagem “A Praga: O holocausto de hanseníase” (2017) escrito pela jornalista Manuela


Castro apresenta um histórico completo sobre a hanseníase — que era chamada de lepra — a
fim esclarecer o que é, como ficou mundialmente conhecida, qual a comoção por trás da doença
e de que forma se movimentou no Brasil. Ao longo da obra, a autora traz o relato de pessoas que
foram afligidas pela doença e viveram em colônias para leproso — comuns nas regiões do
nordeste, norte e sudeste entre os anos 1950 e 1980 — nas quais eram man das,
compulsoriamente, sob um regime opressor, violento e sem a menor qualidade de vida. Além
dos relatos dos ex-pacientes, Manuela também conversou com os filhos dos portadores da
doença, que foram obrigados a se separarem de suas famílias durante o período das colônias, o
que acabou causando uma série de problemas relacionados, principalmente, a afe vidade no
futuro dessas crianças. O livro, que surgiu a par r de uma série de reportagens para emissora TV
Brasil, ao passo que levanta os relatos somado aos dados sobre a doença, também provoca
momentos de reflexão no leitor, relacionados as questões polí cas e sociais que permeiam nossa
sociedade, o que podemos raciocinar diretamente a algumas teorias, como o iluminismo — que
defendia a reclusão da sociedade como uma forma de reabilitação para ela — ou a construção
da imagem através da comunicação — que ocorreu a par r da desinformação sobre a doença e
impactou a forma como a sociedade passou a enxergar o portador de hanseníase.

A FAMA DOS LEPROSOS

Provavelmente, se você perguntar a uma pessoa o que é “hanseníase”, há grandes chances de


não ter uma resposta precisa, mas quando levantar o nome “lepra”, certamente haverá um
retorno. Há uma grande comoção por trás da doença quando conhecida “lepra”, principalmente,
devido à sua presença em diversos relatos bíblicos — que têm forte influência no cris anismo —
como quando Jesus curou dez leprosos durante sua viagem à Jerusalém (Lucas 17: 11-19) ou
quando Miriam, irmã do profeta Moisés, é cas gada por Deus com lepra (Números 12 - 14). Essa
úl ma passagem também foi encenada na telenovela Os Dez Mandamentos (2015) e a cena do
momento em que Miriam, interpretada pela atriz Larissa Maciel, é afligida pela lepra foi
divulgada no Facebook pela emissora Record TV através de um vídeo que, atualmente, conta
com 281 mil visualizações. A questão da visibilidade que é trazida para doença — e até a forma
como é trazida — foi um dos pontos levantados por Manuela Castro no livro-reportagem “A
Praga”, de forma ainda mais aprofundada. A jornalista remontou todo histórico da doença
quando correlacionada aos meios de comunicação da sociedade, seja através da arte, literatura
ou filmes, que apresentam a figura do leproso como um vilão ou alguém fadado a algo muito
ruim. Um dos exemplos apresentados pela autora é o livro “Romance de Lobos”, escrito no
século XX pelo espanhol Ramón de Valle-Inclán que descreve “a figura assustadora de um leproso
com os olhos feridos e pés aleijados.” (Castro, p. 212) A maioria das obras, quando não fazem
uma construção de medo sobre a imagem do leproso, buscam prestar homenagem a pessoas da
nobreza que, de fato, foram afligidas pela doença, como no caso do filme “Cruzada” (2005)
dirigido por Ridley Sco , que apresentou a figura do rei Balduíno IV, interpretado por Edward
Norton. A forma como esses conteúdos disseminam informações sobre a lepra acaba
estabelecendo uma ilustração do que é lepra e o que seus portadores representam, incen vando
a formação de um carácter — que pode ser bom ou ruim — no imagé co da sociedade. No livro
“O Poder Simbólico” de Pierre Bourdieu (1930-2002), o antropólogo explica que os produtos que
circulam no meio social colaboram para a formação de um sistema simbólico — ou de
significação das coisas — e “enquanto instrumentos do conhecimento e de comunicação, eles
tornam possível o consensus acerca do sen do mundo social que contribui fundamentalmente
para a reprodução da ordem social: a integração lógica é a condição da integração social.”
(Bourdieu, p. 11) Desta forma, o acessos a produtos que propagam informações sobre a lepra
em um cunho pejora vo, enquanto meios de conhecimento significam a lepra como algo ligado
ao cas go, a feiura e a maldade, o que acaba disseminando informações erronias ou falsas sobre
doença.

A SOCIEDADE DOS LEPROSOS

No livro “A República” de Platão, o filósofo pauta a construção de uma sociedade a par r de dois
movimentos principais: jus ça e a educação. A jus ça agirá para que todos possam receber
sejam igualmente beneficiados pela organização daquele espaço, enquanto a educação seria o
conhecimento sobre a cultura e as leis que permeiam aquele espaço. As colônias agrícolas para
leprosos surgiram por volta dos anos 1930, com o intuito de resguardar os portadores da
hanseníase do resto da sociedade, criando um po de “sociedade” só para os doentes (ou seria
uma prisão?). Em “A Praga”, Manuela Castro descreve que alguns leprosários nham mais de 5
mil habitantes, como no caso da Colônia de Santa Isabel em Be m (MG) que foi a maior colônia
do Brasil. Ela descreve que os “funcionários da colônia eram os próprios doentes, com exceção
de poucos médicos. Os enfermeiros eram hansenianos que aprendiam a profissão na prá ca.
Aliás, os pacientes, com frequência, aprendiam um o cio diferente daquele que exerciam no
mundo exterior. [...] Os mais comuns eram pedreiros, carpinteiros, serralheiros, coveiros e
policiais” (Castro, p. 6) Além disso, a colônia disponha de um delegado no comando do sistema
puni vo, que qual estabelecia a prisão para todo aquele que infringisse as leis da colônia,
considerada um “grande exemplo da ação do Estado para erradicação das doenças contagiosas.”
(Castro, p. 236) Aos olhos do Estado e da sociedade que vivia fora daqueles muros, os leprosários
eram um meio de proteção tanto àqueles que permaneciam sadios quando aos que haviam sido
diagnos cados com a doença, tanto que a “revitalização” dos centros foi uma das prioridades
do governo de Getúlio Vargas durante a implementação do Estado Novo. Ainda assim, a
elaboração do sistema das colônias, em sua maioria, não contemplava uma estrutura hospitalar
— as colônias do Pará, Rio Grande do Norte e Paraná eram as mais precarizadas — ou seja, o
Estado estava disposto a proteger através da segregação dos portadores de hanseníase, e
considerando o sen do de sociedade segundo Platão, fica claro que as colônias não se
aproximam desse conceito, já que os doentes sobreviviam sob condições de vida precárias
naqueles espaços. Em seu livro, Manuela também equipara as colônias a uma prisão, o que
também não abrange o sen do desses lugares, uma vez que ao observamos o conceito do
sistema prisional contemporâneo às bases do movimento Iluminista (XVII – XVIII), no qual
compreende a prisão como um meio para reintegração social do indivíduo, os leprosários não
devolviam os doentes a sociedade — a cura da hanseníase surgiu na década de 1940, mas alguns
portadores da doença foram libertos das colônias apenas por volta de 1986 — também se
distanciam do conceito. Sob essas perspec vas, se não eram sociedade e nem prisão, o que
eram? Ora, ainda considerando a teoria do antropólogo Pierre Bourdieu, os leprosários
poderiam ser um instrumento de dominação — que se torna simbólico a par r da normalização
desses centros na sociedade — dos agentes — o Estado — que segundo o antropólogo,
“contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata
entre todos os seus membros e dis nguindo-os das outras classes); para a integração fic cia da
sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes
dominadas; para a legi mação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das
dis nções (hierarquias) e para a legi mação dessas dis nções.” (Bourdieu, p. 10)

O DESMONTE

Certamente, um dos mo vos para comoção por trás da hanseníase está ligada a imagem que se
construiu sobre ela, seja através da religiosidade, dos produtos culturais ou dos leprosários.
Ainda assim, a compreensão desse mecanismo se torna pra camente insignificante quando
defronta o efeito da violência e do preconceito na vida daqueles que foram afetados pela doença
e neste caso, incluo não apenas os ex-internos que foram diagnos cados com doença, mas
também as famílias dessas pessoas. Assim como Conceição foi obrigada a se afastar dos filhos
pequenos quando foi sentenciada com um “passaporte para o inferno” (Castro, p. 11) e ainda
não teve a chance de conhecer os filhos que pariu dentro dos pavilhões, Iverlândia, que nasceu
em um preventório da Colônia da Prata, no Pará, também não teve assistência quando foi
entregue para o pai nos anos 1980, quando a polí ca de confinamento começou a mudar. A
jovem, como tantos outros pacientes, teve um choque cultural ao enfrentar a sociedade fora
daqueles muros, “não conhecia caranguejo, açaí, maxixe — hortaliça da família do pepino. E não
nha jeito de se acostumar com o gosto daquilo.” (Castro, p. 2016) O regime segregacionista,
influenciou a forma como os ex-internos se expressavam sen mentalmente, como no caso de
Edmilson que cresceu na Colônia de Marituba, no Pará, e ao longo da vida sen u dificuldades
em sen r afeto e corresponder. Segunda Manuela, durante a entrevista com o ex-interno, ele
confessou que começou a gostar do próprio filho depois que o menino completou 10 anos de
idade. O movimento da lepra no Brasil acabou gerando sequelas que vão para além do sico
causado pela própria doença, uma distanciamentos tanto de forma social quanto familiar. Em
1995, o Estado iniciou um movimento de res tuição as ví mas, começando pela mudança da
nomenclatura da doença, que foi protegida pela Lei nº 9.010. Agora “lepra” deveria ser chamada
de “hanseníase” em todas as suas terminologias — em homenagem ao médico que descobriu a
doença em 1873, Gerhard Hendrick Armauer Hansen — era o primeiro movimento para tentar
dissociar a imagem pejora va elaborado sobre a doença, o que corrobora para o fato de que a
circulação das informações, impacta diretamente na forma como aquele objeto é representado.
No entanto, foi o Movimento de Reintegração das Pessoas A ngidas pela Hanseníase (Morhan),
quem buscou as mudanças sociais aos afetados pela doença, como o apoio financeiro às vi mas
das colônias, a revisão das informações disseminadas sobre doença e o reestabelecimento da
estrutura familiar dos filhos que foram separados dos pais, através de testes de DNA gratuitos.
Estes e outros movimentos, colaboraram para que o es gma por trás da doença fosse
descontruído pouco a pouco, o que Bourdieu compreende como a tomada de consciência sobre
os mecanismos da classe dominante e a par r disso, as diferentes classes que compõem a
sociedade passam a se envolver “numa luta propriamente simbólica para imporem a definição
do mundo social mais conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de
posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais”
(Bourdieu, p. 13) que sob a perspec va da luta hanseníase, busca por respeito, dignidade e
democracia no espaço social, ao qual sempre deveriam ter feito parte.

Desta forma, a obra “A Praga” da jornalista Manuela Castro, apresenta os fatos sobre a
hanseníase no Brasil, ao passo que colabora disseminação de informações que engajam a luta
do movimento no país, o que — apesar das ressalvas quanto a gramá ca erronia que deslegi ma
a luta de outros movimentos — demonstra a força do trabalho jornalís co, não apenas como um
meio de comunicar, mas de apoiar de forma correta (sem, necessariamente, ater-se as amarras
de imparcialidade) através da informação.
Por: Julia Souza Nunes, graduanda em Jornalismo — Comunicação Social pela Universidade
Estadual da Paraíba. E-mail: julia.souza.nunes@aluno.uepb.edu.br

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