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CASA DE BONECAS, CASA DA DOR

Por Luis Claudio Moutinho Rocha

“Lamentar uma dor passada, no presente, é criar outra dor e sofrer novamente.” -
William Shakespeare

quem poderá negar a miríade de sofrimentos que nos acomete ao longo de uma vida?
nos jornais as notícias de guerras distantes, desastres naturais, catástrofes. aqui ao lado,
as entranhas das ruas onde pulsam a violência, o abandono, a solidão. ambulâncias que
chegam tarde demais, automóveis de aço frio esfacelando ossos sobre o asfalto quente.
nos lares as tragédias íntimas em suas várias formas, as doenças silenciosas tomando o
organismo palmo a palmo.

há ainda o Tempo. o Tempo é inexorável, é a força imbatível. dinheiro, sorte,


circunstâncias da vida: tudo isso pode nos livrar de muitos males. menos do tempo. a
bocarra de Cronos é larga demais, seus dentes são afiados, sulcando aos poucos a
matéria, deixando suas marcas, rugas, riscos. sua saliva umedece de pó as coisas
esquecidas, pó ao qual tudo se voltará na dissolução última. a Esperança, o mal angular
da Caixa de Pandora, é a doença do Tempo, é um pôr-se em espera, e esperar é estar
dentro do rio movediço das horas que correm, é sentir inteiramente os instantes, é ouvir
o barulho que faz o desintegrar-se e reintegrar-se intermitente das coisas minúsculas. e
isso dói. e se, para Nietzsche, esquecer é uma saúde, o mais saudável dos homens é
aquele que esquece o Tempo, que nega a sua existência, que pode ver o clarão do dia,
enxergar na luz, ao contrário de Funes , o personagem de Borges que procura os limites
do quarto escuro, para se livrar da sua relação estreitíssima com Mnemósine. somos este
corpo marcado por cicatrizes mais ou menos visíveis. todos nós carregamos chagas na
alma, feridas sobre a pele. morremos a cada segundo e, no entanto, nada para de brotar
para um novo trajeto de dor.

a vida é sofrimento e tem nele a sua natureza. diria isso Buda, Schopenhauer, diria isso
Farnese de Andrade . para os três, separados espacialmente e temporalmente, o que só
faz reafirmar a genealogia do desencanto , o drama seminal de Hamlet não suscita
nenhuma dúvida, é facilmente, sem espaço para qualquer titubeio, respondido. não
apregoo aqui qualquer pessimismo, mas sei que me servirá afirmar isso, entender essa
afirmação, como a chave para participar do mistério que exsuda os objetos de Farnese
de Andrade. e se falo entender, é porque só a compreensão desse olhar pode evitar que
se reduza suas criações a esse espírito triste. assim acredito evitar, que num primeiro
vislumbre, imaginemos a obra de Farnese como uma espécie sádica de desvalorização
plástica da vida. o ponto fulcral da série de objetos de Farnese de Andrade reside
justamente no contrário: sua criação se funda sob a égide de um olhar extremamente
compassivo .

e se falo aqui de Farnese de Andrade é porque não conheço outro conjunto de obras que
se aferre , de forma tão patética , a uma estética da tragicidade. pois que a dor, na obra
de Farnese, ganha os contornos de beleza, mas de um tipo de beleza sem paralelos na
produção de arte no Brasil. vislumbrar as caixas, gamelas, redomas, oratórios, é
desvelar uma poética que nos captura, e afunda lentamente, nas questões de nascimento
e morte... de vida enfim. ora, lembremos que dois dos irmãos de Farnese que, antes dele
mesmo nascer, foram levados pelas torrentes de uma enchente que banhou aquela idílica
Minas Gerais do início do século passado, povoaram como presenças, ainda que
fantasmáticas, sua infância através das histórias que sua família contava
constantemente. Farnese, portanto, com-viveu com seus irmãos mortos. (ali ainda, ele
não sabia que a água voltaria a desempenhar papel preponderante na sua vida) e quando
a grande bomba incinera os céus do Japão (violência absurda que marcou
profundamente Farnese), ele deve aquela época, ter tido a sua epifania: ali também
perdemos tudo. se cada vida que perece é um cosmo que se extingue, cada corpo
estraçalhado é um universo em escombros, incontáveis mistérios foram aniquilados para
sempre num simples apertar de botão.

dito isto, é pertinente conjecturar que Farnese foi rodeado, e escolheu se rodear, de
tragédias. do íntimo ao universal, da perda dos irmãos aos milhares de mortos
japoneses, rostos que ele não conheceu, mas que se alastraram, deixaram um rasto
pairando no tempo, até chegar o momento de se deixarem cair e recobrir, como um
lençol caindo sobre um móvel num cômodo desabitado, sua intensa produção objetal. e
nada, desses objetos escolhidos, recolhidos na sua flanerie melancólica, nada nos choca
mais, pode nos chocar mais, que a inserção laboriosa de bonecas cuidadosamente
calcinadas e mutiladas, que o artista insere nas suas caixas e oratórios. são objetos
prenhes de uma alma criada por um tempo perdido no próprio tempo, um tempo que
não ocorreu sob o olhar dos homens , até que Farnese as encontrasse e as transfigurasse,
um tempo ausente, mas que ainda assim existiu e escoou sobre elas, deixando os lastros
acesos e vivos típicos da coisas que se perdem e trazem em seu âmago o indizível, o
pacto de silêncio que tudo faz no tempo em que esteve só.

ainda assim as bonecas de Farnese falam. as bonecas mutiladas de Farnese falam. mas o
que falam essas bonecas? decerto não falam mais o que falavam quando as crianças,
suas antigas donas, lhes emprestavam a voz. mais certeza ainda é afirmar que elas não
falam por algum artifício mecânico que dispara frases gravadas. não. não é aí que reside
a eloquência destes objetos (caberá ainda chamá-las de objetos?). a voz que emite esses
corpos é de uma outra ordem muito mais sinistra e profunda .

elegendo as bonecas como a representação destes corpos humanos que se esfacelam


diante dos vagalhões de violência, natural ou não, do mundo, a obra de Farnese faz
emergir todo um imaginário de morbidez excruciante. as bonecas de Farnese não são
simulacros, pois se apresentam vivas, ou se apresentaram em algum momento antes da
calcificação mortuária que se impõe a elas nas caixas e oratórios. estas bonecas não são
metáfora, são metamorfose. penso que, se fossem brinquedos novos, adquiridos em
qualquer loja de departamentos, não suscitariam sequer uma fagulha da descarga
afetuosa que nos provocam. as bonecas de Farnese, caçadas pelos antiquários, ou em
suas andanças de colecionador, possuem uma história própria, uma história indecifrável,
porém extremamente palpável em seu peso acumulativo: o tempo vai somando
narrativas insondáveis e as aderindo a matéria dos objetos perdidos: se debruçar sobre
estas bonecas é comungar com um abismo, de onde se pode ouvir sussurros longínquos
emitidos das profundezas. e diante deste chamado temos duas escolhas: fechar os
ouvidos ou prestar atenção. para quem presta atenção , os sussurros adquirem cada vez
mais volume e se tornam mais nítidos. para quem presta atenção as bonecas de Farnese
de Andrade contam sua história. elas nos falam dos dias azuis e amarelos de uma
infância aquosa, vítrea. nos falam de relicários, de baús e casas cheirando a tecidos
mofados. nos falam sobre armários fechados e gavetas caladas. de risos felizes ou
diabólicos, de choros contidos e berrados, de pequeninas mãos as acariciando ou as
destruindo malevolamente. nos falam de dias e noites frias, de chuva, do barulho do
mar. nos falam das coisas dos homens, mas também de uma solidão tão profunda que
nenhum homem jamais poderá senti-la: a solidão dos objetos abandonados, perdidos,
imprestáveis. e isso grava profundamente, como numa prensa, uma escrita que é própria
do escoar: há marcas inscritas nos objetos de Farnese: grafias do tempo. escrituras
inalienáveis, ranhuras, sulcos preenchidos de afeto. o tempo ali não passa através, como
a luz na água. o tempo ali vai ficando retido , preso a uma trama de narrativas
sobrepostas, um caleidoscópios de vozes, de gestos, de lugares.

se os míticos optogramas pudessem ser utilizados também nas bonecas de Farnese, que
sorte de imagens presenciaríamos em seus olhos vidrados? há uma curiosidade logo
embaçada por um temor mórbido nesta pergunta, pois inquirí-las nos parece que
fazemos perguntas a um cadáver . e se é próprio da imobilidade o sossego, os olhos
impassíveis das bonecas de Farnese, no entanto, contrariam essa afirmação: há ali algo
que perscruta também quem a olha, um olhar lançado de volta, um olhar inquietante,
trespassador mesmo, que parece querer nos dizer de coisas que preferiríamos não
conhecer pois eles carregam em si, retinianamente, os padrões indissolúveis de algum
desastre íntimo. e é aí que reside a chave pra esta mão dupla: o desastre também nos
olha. o que não acontece uma única vez. o desastre vai se repetindo indefinidamente ao
longo de uma vida, e nessa repetição vai escavando cada vez mais fundo até se enraizar,
como veias, por toda extensão do corpo: um desastre em metástase . sim, estes olhos
testemunharam o desastre. não me estranha, portanto, alguns deles terem sido
arrancados, como um Édipo autoflagelado. estas órbitas vazias, escuras como grotas,
fossas oceânicas, não merecem mais enxergar a luz do mundo, mas se tornam, como na
parábola dos oráculos, capazes de dizer, habitadas de escuro, um futuro tão
indestrutível, que não se desmanchará. as bonecas cegas de Farnese são vates mutilados
preconizando tragédias inteiras, pois que todo vaticínio, para Farnese, é o dizer de uma
extinção . se tomamos como certo que morrer é próprio dos trágicos, para Farnese,
nascer era dar a luz a um desastre. as bonecas são seres entre estes dois momentos, pois
nós, os homens também estamos todos, enquanto estamos, equilibrados entre estes dois
pólos.

nascer dói. é melhor não por uma criança no mundo, pois é um ser destinado a ser
afligido por infinitas possibilidades de sofrimento. isso afirmava Farnese. e suas
bonecas lembram fetos, recém-nascidos destroçados, queimados, ou ainda mais
inquietantes, as redomas de poliéster com que Farnese acobertava algumas dessas
bonecas, nos fornecem a imediata relação com os frascos de formol onde repousam os
restos de um cadáver. nada pode ser mais forte que a imagem de uma criança morta:
uma boneca morta é uma criança morta . as bonecas de Farnese reafirmam que nascer já
é morrer, que viver é não conseguir, que vir a luz é a primeira dor e o desastre vitalício.
o desastre nos retira a voz, por isso nascemos balbuciantes. muitos, numa espécie de
mecanismo psíquico de defesa, esquece este desastre-primeiro, por isso não poderemos
lembrar nunca o momento de nosso próprio nascimento. o desastre, em seu anseio por
não deixar testemunhas, em exterminar seus participantes, encontra um impeditivo
nessas bonecas: elas sobrevivem pra contar. ainda que falem do lugar do silêncio, falam,
dizem. impregnadas dessa pulsão de morte que as obrigaria a se repetir, se repetir e se
repetir, pois o trauma reside fora do tempo, ela se erguem, e em sua assunção de
condenadas, afirmam a quem as contempla: isto és tu.

a inserção destas bonecas em antigos oratórios de madeira, algumas acompanhados de


santos católicos e símbolos da cristandade, anunciam uma sacralidade, que poderiam ter
motivos encontrados nas raízes católico-mineiras de Farnese. mas não há um paraíso de
paz esperando estas bonecas: sob o jugo intransigente da metempsicose, a vida que se
extingue continua em outras vidas, mantendo a incessante roda de sofrimentos e ascese
constantemente a girar: tudo continua sempre.
as bonecas de Farnese tiveram uma infância antes de serem inseridas, como corpos
conservados, em seus objetos. crianças já as possuíram, já lhe imbuíram de
personalidade e voz. mas as bonecas de Farnese se erguem para além desse
ventriloquismo: ali, encaixadas nas assemblagens enigmáticas, elas adquirem voz
própria. as bonecas já nasceram e morreram, mas triunfaram sobre as duas formas
definitivas de mudez: elas falam uma fala mais ancestral, mais profunda, sobre o que é
nascimento e morte, sobre essas duas circunstâncias cuja experiência nos é insondável,
portanto indizível. há uma linguagem de dor ali, linguagem eloquente que vai para além
da sonoridade verbal, mas que ecoa pelas concavidades ocultas da nossa corporalidade e
nos diz de raízes tão fundas e ontológicas que, decifrar uma linguagem dessa espécie,
olhar nos olhos das bonecas de Farnese e ali se perder, é comungar com a origem das
coisas, mistérios da infância do homem e do mundo, e talvez, no lampejo deste jogo,
participar da trama tecida pela natureza inteira.

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