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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902 – 1987)

• Mineiro de Itabira, oriundo de família ligada à tradição da região, ou seja, fazendeiros e


mineradores.
• Formou-se em Farmácia, mas nunca exerceu a profissão. Dedicou-se ao jornalismo e
ingressou no funcionalismo público.
• Em 1925, foi um dos fundadores de A Revista, publicação modernista de Belo Horizonte.
Em 1928, causou estranhamento quando publicou o famoso “No meio do caminho” na
Revista de Antropofagia.
• Na década de 1940, foi simpatizante do socialismo e até chegou a colaborar com jornal
comunista, todavia, rompe com o jornal e com o Partido Comunista logo em seguida. Da
década de 1950 em diante, o ceticismo político passou a ser sua marca.
• Apesar de ser bastante conhecido como poeta, também escreveu grande obra em prosa
(contos e crônicas).
• Sua obra poética costuma ser dividida em quatro fases:
• A Gauche (década de 30), onde se destacam traços como o pessimismo, o
individualismo, o isolamento, a reflexão existencial, além de certas atitudes permanentes,
que se estenderão por toda a obra de Drummond, como a ironia e a metalinguagem.
Obras: Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934).
• A social (década de 40), na qual há uma preocupação clara com os rumos da humanidade
(- a ascensão do nazi-fascismo , - a guerra civil espanhola , - a Segunda Guerra Mundial
, a Guerra Fria (EUA X URSS), - a Intentona Comunista (Brasil - 1935), - a ditadura de
Getúlio Vargas (Brasil - 1937/45). Obras: Sentimento do mundo (1940), Poesias (1942),
A rosa do povo (1945).
• O signo do não (anos 50 e 60), período em que a poesia de Drummond segue duas
orientações: de um lado, a poesia reflexiva , filosófica e metafísica - em que, com
frequência, aparecem os temas universais de caráter existencial, como vida, morte,
velhice, tempo, amor e os temas sempre presentes, como a família, a infância e a própria
poesia, todos eles seguindo uma linha de pensamento extremamente pessimista.
De outro lado, a poesia nominal, com tendências ao Concretismo, em que o poeta ressalta
a preocupação com recursos fônicos, visuais e gráficos do texto. Obras: Claro enigma
(1951), Fazendeiro do ar (1955) , Vida passada a limpo (1959) e Lição de coisas
(1962).
• Tempo de memória (anos 70 e 80): Nessa fase, a obra de Drummond dá um amplo
destaque ao universo da memória, em que, ao lado de temas universais, são retomados e
aprofundados certos temas que nortearam toda a sua obra, tais como a infância, a terra
natal (Itabira), o pai, a família etc. Obras: Série Boitempo, As impurezas do branco,
Amor amores, Discurso de primavera, A paixão medida, Corpo, Amor, Sinal
estranho.

ANTOLOGIA PARA COMPREENSÃO

Cota zero

Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
A Máquina do Mundo

E como eu palmilhasse vagamente teu ser restrito e nunca se mostrou,


uma estrada de Minas, pedregosa, mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e no fecho da tarde um sino rouco e a cada instante mais se retraindo,

se misturasse ao som de meus sapatos olha, repara, ausculta: essa riqueza


que era pausado e seco; e aves pairassem sobrante a toda pérola, essa ciência
no céu de chumbo, e suas formas pretas sublime e formidável, mas hermética,

lentamente se fossem diluindo essa total explicação da vida,


na escuridão maior, vinda dos montes esse nexo primeiro e singular,
e de meu próprio ser desenganado, que nem concebes mais, pois tão esquivo

a máquina do mundo se entreabriu se revelou ante a pesquisa ardente


para quem de a romper já se esquivava em que te consumiste... vê, contempla,
e só de o ter pensado se carpia. abre teu peito para agasalhá-lo.”

Abriu-se majestosa e circunspecta, As mais soberbas pontes e edifícios,


sem emitir um som que fosse impuro o que nas oficinas se elabora,
nem um clarão maior que o tolerável o que pensado foi e logo atinge

pelas pupilas gastas na inspeção distância superior ao pensamento,


contínua e dolorosa do deserto, os recursos da terra dominados,
e pela mente exausta de mentar e as paixões e os impulsos e os tormentos

toda uma realidade que transcende e tudo que define o ser terrestre
a própria imagem sua debuxada ou se prolonga até nos animais
no rosto do mistério, nos abismos. e chega às plantas para se embeber

Abriu-se em calma pura, e convidando no sono rancoroso dos minérios,


quantos sentidos e intuições restavam dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
a quem de os ter usado os já perdera na estranha ordem geométrica de tudo,

e nem desejaria recobrá-los, e o absurdo original e seus enigmas,


se em vão e para sempre repetimos suas verdades altas mais que todos
os mesmos sem roteiro tristes périplos, monumentos erguidos à verdade:

convidando-os a todos, em coorte, e a memória dos deuses, e o solene


a se aplicarem sobre o pasto inédito sentimento de morte, que floresce
da natureza mítica das coisas, no caule da existência mais gloriosa,

assim me disse, embora voz alguma tudo se apresentou nesse relance


ou sopro ou eco ou simples percussão e me chamou para seu reino augusto,
atestasse que alguém, sobre a montanha, afinal submetido à vista humana.

a outro alguém, noturno e miserável, Mas, como eu relutasse em responder


em colóquio se estava dirigindo: a tal apelo assim maravilhoso,
"O que procuraste em ti ou fora de pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo em si mesmas abertas e fechadas;
de ver desvanecida a treva espessa como se um dom tardio já não fora
que entre os raios do sol inda se filtra; apetecível, antes despiciendo,

como defuntas crenças convocadas baixei os olhos, incurioso, lasso,


presto e fremente não se produzissem desdenhando colher a coisa oferta
a de novo tingir a neutra face que se abria gratuita a meu engenho.

que vou pelos caminhos demonstrando, A treva mais estrita já pousara


e como se outro ser, não mais aquele sobre a estrada de Minas, pedregosa,
habitante de mim há tantos anos, e a máquina do mundo, repelida,

passasse a comandar minha vontade se foi miudamente recompondo,


que, já de si volúvel, se cerrava enquanto eu, avaliando o que perdera,
semelhante a essas flores reticentes seguia vagaroso, de mãos pensas.

(ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.
135, p. 105).

Em fevereiro de 1945, o itabirano concede uma entrevista e, perguntado sobre a guerra,


responde:

Para que se pudesse dizer que este conflito não foi em vão e veio beneficiar a humanidade, seria
preciso que esse amanhã de que estamos num sombrio princípio de aurora, trouxesse melhores
condições de vida, habitação, cultura, subsistência para todos os homens, sem distinções nem
discriminações, quaisquer que elas fossem. Que às bibliotecas fosse permitido o acesso aos que
têm os pés descalços. (BRYNER, Sônia. (Org). Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978, p. 32)

Visão 1944

Meus olhos são pequenos para ver Meus olhos são pequenos para ver
a massa de silêncio concentrada o transporte de caixas de comida,
por sobre a onda severa, piso oceânico de roupas, de remédios, de bandagens
esperando a passagem dos soldados. para um porto da Itália onde se morre.

Meus olhos são pequenos para ver Meus olhos são pequenos para ver
luzir na sombra a foice da invasão o corpo pegajento das mulheres
e os olhos no relógio, fascinados, que foram lindas, beijo cancelado
ou as unhas brotando em dedos frios. na produção de tanques e granadas.

Meus olhos são pequenos para ver Meus olhos são pequenos para ver
o general com seu capote cinza a distância da casa na Alemanha
escolhendo no mapa uma cidade a uma ponte na Rússia,onde retratos,
que amanhã será pó e pus no arame. cartas, dedos de pé boiam em sangue.

Meus olhos são pequenos para ver Meus olhos são pequenos para ver
a bateria de rádio prevenindo uma casa sem fogo e sem janela
vultos a rastejar na praia obscura sem meninos em roda, sem talher,
aonde chegam pedaços de navios. sem cadeira, lampião, catre, assoalho.
Meus olhos são pequenos para ver e este sinal no queixo de uma velha
os milhares de casas invisíveis que não pôde esperar a voz dos sinos.
na planície de neve onde se erguia
uma cidade, o amor e uma canção. Meus olhos são pequenos para ver
países mutilados como troncos,
proibidos de viver, mas em que a vida
Meus olhos são pequenos para ver lateja subterrânea e vingadora.
as fábricas tiradas do lugar,
levadas para longe, num tapete, Meus olhos são pequenos para ver
funcionando com fúria e com carinho. as mãos que se hão de erguer, os gritos
roucos,
Meus olhos são pequenos para ver os rios desatados, e os poderes
na blusa do aviador esse botão ilimitados mais que todo exército.
que balança no corpo, fita o espelho
e se desfolhará no céu de outono. Meus olhos são pequenos para ver
toda essa força aguda e martelante,
Meus olhos são pequenos para ver a rebentar do chão e das vidraças,
o deslizar do peixe sob as minas, ou do ar, das ruas cheias e dos becos.
e sua convivência silenciosa
com os que afundam, corpos repartidos. Meus olhos são pequenos para ver
tudo que uma hora tem, quando madura,
Meus olhos são pequenos para ver tudo que cabe em ti, na tua palma,
os coqueiros rasgados e tombados ó povo! que no mundo te dispersas.
entre latas, na areia, entre formigas
incompreensivas, feias e vorazes. Meus olhos são pequenos para ver
atrás da guerra, atrás de outras derrotas,
Meus olhos são pequenos para ver esta imagem calada, que se aviva,
a fila de judeus de roupa negra, que ganha em cor, em forma e profusão.
de barba negra, prontos a seguir
para perto do muro - e o muro é branco. Meus olhos são pequenos para ver
tuas sonhadas ruas, teus objetos,
Meus olhos são pequenos para ver e uma ordem consentida (puro canto,
essa fila de carne em qualquer parte, vai pastoreando sonos e trabalhos).
de querosene, sal ou de esperança
que fugiu dos mercados deste tempo. Meus olhos são pequenos para ver
esta mensagem franca pelos mares,
Meus olhos são pequenos para ver entre coisas outrora envilecidas
a gente do Pará e de Quebec e agora a todos, todas ofertadas.
sem notícias dos seus e perguntando
ao sonho, aos passarinhos, às ciganas. Meus olhos são pequenos para ver
o mundo que se esvai em sujo e sangue,
Meus olhos são pequenos para ver outro mundo que brota, qual nelumbo
todos os mortos, todos os feridos, - mas veem, pasmam, baixam
[deslumbrados.

(ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012,
p. 135).

Também já fui brasileiro

Eu também já fui brasileiro [fecham


Moreno como vocês. e todas as virtudes se negam.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares Eu também já fui poeta.
que o nacionalismo é uma virtude Bastava olhar para mulher,
Mas há uma hora em que os bares se pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes. satisfeito de ter meu ritmo.
Mas eram tantas, o céu tamanho, Mas acabei confundindo tudo.
minha poesia perturbou-se. Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
Eu também já tive meu ritmo. não tenho ritmo mais não.
Fazia isto, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam. De Alguma poesia (1930)
Eu irônico deslizava

Boitempo

Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite
morno esguicho das tetas
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.

(ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2002)

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