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Cota zero
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
A Máquina do Mundo
toda uma realidade que transcende e tudo que define o ser terrestre
a própria imagem sua debuxada ou se prolonga até nos animais
no rosto do mistério, nos abismos. e chega às plantas para se embeber
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.
135, p. 105).
Para que se pudesse dizer que este conflito não foi em vão e veio beneficiar a humanidade, seria
preciso que esse amanhã de que estamos num sombrio princípio de aurora, trouxesse melhores
condições de vida, habitação, cultura, subsistência para todos os homens, sem distinções nem
discriminações, quaisquer que elas fossem. Que às bibliotecas fosse permitido o acesso aos que
têm os pés descalços. (BRYNER, Sônia. (Org). Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978, p. 32)
Visão 1944
Meus olhos são pequenos para ver Meus olhos são pequenos para ver
a massa de silêncio concentrada o transporte de caixas de comida,
por sobre a onda severa, piso oceânico de roupas, de remédios, de bandagens
esperando a passagem dos soldados. para um porto da Itália onde se morre.
Meus olhos são pequenos para ver Meus olhos são pequenos para ver
luzir na sombra a foice da invasão o corpo pegajento das mulheres
e os olhos no relógio, fascinados, que foram lindas, beijo cancelado
ou as unhas brotando em dedos frios. na produção de tanques e granadas.
Meus olhos são pequenos para ver Meus olhos são pequenos para ver
o general com seu capote cinza a distância da casa na Alemanha
escolhendo no mapa uma cidade a uma ponte na Rússia,onde retratos,
que amanhã será pó e pus no arame. cartas, dedos de pé boiam em sangue.
Meus olhos são pequenos para ver Meus olhos são pequenos para ver
a bateria de rádio prevenindo uma casa sem fogo e sem janela
vultos a rastejar na praia obscura sem meninos em roda, sem talher,
aonde chegam pedaços de navios. sem cadeira, lampião, catre, assoalho.
Meus olhos são pequenos para ver e este sinal no queixo de uma velha
os milhares de casas invisíveis que não pôde esperar a voz dos sinos.
na planície de neve onde se erguia
uma cidade, o amor e uma canção. Meus olhos são pequenos para ver
países mutilados como troncos,
proibidos de viver, mas em que a vida
Meus olhos são pequenos para ver lateja subterrânea e vingadora.
as fábricas tiradas do lugar,
levadas para longe, num tapete, Meus olhos são pequenos para ver
funcionando com fúria e com carinho. as mãos que se hão de erguer, os gritos
roucos,
Meus olhos são pequenos para ver os rios desatados, e os poderes
na blusa do aviador esse botão ilimitados mais que todo exército.
que balança no corpo, fita o espelho
e se desfolhará no céu de outono. Meus olhos são pequenos para ver
toda essa força aguda e martelante,
Meus olhos são pequenos para ver a rebentar do chão e das vidraças,
o deslizar do peixe sob as minas, ou do ar, das ruas cheias e dos becos.
e sua convivência silenciosa
com os que afundam, corpos repartidos. Meus olhos são pequenos para ver
tudo que uma hora tem, quando madura,
Meus olhos são pequenos para ver tudo que cabe em ti, na tua palma,
os coqueiros rasgados e tombados ó povo! que no mundo te dispersas.
entre latas, na areia, entre formigas
incompreensivas, feias e vorazes. Meus olhos são pequenos para ver
atrás da guerra, atrás de outras derrotas,
Meus olhos são pequenos para ver esta imagem calada, que se aviva,
a fila de judeus de roupa negra, que ganha em cor, em forma e profusão.
de barba negra, prontos a seguir
para perto do muro - e o muro é branco. Meus olhos são pequenos para ver
tuas sonhadas ruas, teus objetos,
Meus olhos são pequenos para ver e uma ordem consentida (puro canto,
essa fila de carne em qualquer parte, vai pastoreando sonos e trabalhos).
de querosene, sal ou de esperança
que fugiu dos mercados deste tempo. Meus olhos são pequenos para ver
esta mensagem franca pelos mares,
Meus olhos são pequenos para ver entre coisas outrora envilecidas
a gente do Pará e de Quebec e agora a todos, todas ofertadas.
sem notícias dos seus e perguntando
ao sonho, aos passarinhos, às ciganas. Meus olhos são pequenos para ver
o mundo que se esvai em sujo e sangue,
Meus olhos são pequenos para ver outro mundo que brota, qual nelumbo
todos os mortos, todos os feridos, - mas veem, pasmam, baixam
[deslumbrados.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012,
p. 135).
Boitempo
Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite
morno esguicho das tetas
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2002)