Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
4
“E agora, josé?”
5
Carlos Drummond de andrade
• A estreia: “No meio do caminho”.
• Poeta do finito e da matéria: “Poema
de sete faces”.
• Viagem na memória: “Infância”.
• O engajamento social: “Mãos dadas”;
“Os inocentes do Leblon”.
• O exercício incansável da reflexão:
“Um boi vê os homens”.
• Fazer poético como ação e
transformação: “Consideração do
poema”.
• A concha vazia do amor: “Amar”.
6
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
7
O bonde passa cheio de
pernas:
Quando nasci, um anjo pernas brancas pretas Mundo mundo vasto
torto amarelas. mundo,
desses que vivem na Para que tanta perna, meu se eu me chamasse
sombra Deus, Raimundo
disse: Vai, Carlos! ser pergunta meu coração. seria uma rima, não seria
gauche na vida. Porém meus olhos uma solução.
não perguntam nada. Mundo mundo vasto
As casas espiam os mundo,
homens O homem atrás do bigode mais vasto é meu
que correm atrás de é sério, simples e forte. coração.
mulheres. Quase não conversa.
A tarde talvez fosse Tem poucos, raros amigos Eu não devia te dizer
azul, o homem atrás dos óculos e mas essa lua
não houvesse tantos do bigode, mas esse conhaque
desejos. Meu Deus, por que me botam a gente comovido
abandonaste como o diabo.
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
8
Meu pai montava a cavalo,
ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada
cosendo. Minha mãe ficava sentada
Meu irmão pequeno dormia. cosendo
Eu sozinho menino entre olhando para mim:
mangueiras — Psiu... Não acorde o menino.
lia a história de Robinson Para o berço onde pousou um
Crusoé, mosquito.
comprida história que não E dava um suspiro... que
acaba mais. fundo!
No meio-dia branco de luz Lá longe meu pai campeava
uma voz que aprendeu no mato sem fim da fazenda.
a ninar nos longes da E eu não sabia que minha
senzala – e nunca se história
esqueceu era mais bonita que a de
chamava para o café. Robinson Crusoé.
Café preto que nem a preta
velha
café gostoso
café bom.
9
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
10
Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo
ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.
11
e comum a cada um de nós, Têm, talvez,
Tão delicados (mais que no espaço. E ficam tristes certa graça melancólica
um arbusto) e correm e no rasto da tristeza (um minuto) e com isto se
e correm de um para chegam à crueldade. fazem
outro lado, sempre Toda a expressão deles perdoar a agitação
esquecidos mora nos olhos — e perde- incômoda e o translúcido
de alguma coisa. se vazio interior que os
Certamente, falta-lhes a um simples baixar de torna tão pobres e
não sei que atributo cílios, a uma sombra. carecidos
essencial, posto se de emitir sons absurdos e
Nada nos pelos, nos
agônicos: desejo, amor,
apresentem nobres extremos de inconcebível
ciúme
e graves, por vezes. Ah, fragilidade, (que sabemos nós?), sons
espantosamente graves, e como neles há pouca que se despedaçam e
até sinistros. Coitados, montanha, tombam no campo
dir-se-ia não escutam e que secura e que como pedras aflitas e
nem o canto do ar nem os reentrâncias e que queimam a erva e a água,
segredos do feno, impossibilidade de se e difícil, depois disto, é
como também parecem organizarem em formas ruminarmos nossa
não enxergar o que é calmas, verdade.
visível permanentes12e necessárias.
Estes poemas são meus. É minha terra
e é ainda mais do que ela. É qualquer homem
ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.
- Há mortos? há mercados? há doenças?
É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
por que falsa mesquinhez me rasgaria?
13
Amar solenemente as
Que pode uma criatura palmas do deserto,
senão, o que é entrega ou
entre criaturas, amar? adoração expectante,
amar e esquecer, e amar o inóspito, o áspero,
amar e malamar, um vaso sem flor, um chão
amar, desamar, amar? de ferro, Amar a nossa falta
sempre, e até de olhos e o peito inerte, e a rua mesma de amor, e na
vidrados, amar? vista em sonho, e uma ave secura nossa
de rapina. amar a água implícita, e
Que pode, pergunto, o ser o beijo tácito, e a sede
amoroso, Este o nosso destino: amor infinita.
sozinho, em rotação sem conta,
universal, senão distribuído pelas coisas
rodar também, e amar? pérfidas ou nulas,
amar o que o mar traz à doação ilimitada a uma
praia, completa ingratidão,
e o que ele sepulta, e o e na concha vazia do amor
que, na brisa marinha, a procura medrosa,
é sal, ou precisão de paciente, de mais e mais
amor, ou simples ânsia? amor. 14