Você está na página 1de 9

5 - Ficção e história em Saramago

Embora a aproximação de história e ficção pareça contraditória, essa relação possui


um longo percurso na trajetória do homem em sua busca por colocar ordem no tempo e no
espaço em que vive para melhor compreendê-lo, e assim, compreender a si mesmo. Esse
desejo é alcançado por meio da conquista do registro escrito, seja pela história, que tem como
objeto o passado, ou pela ficção, que se apoia na imaginação. O passado só pode ser acessado
por um meio indireto, ou seja, pelos indícios, por meio da linguagem, das narrativas. Ao
historiador, cabe dar coerência aos fragmentos do passado, aos seus indícios, a partir das leis
internas da historiografia. Conforme aponta José Américo Miranda no livro “Romance
Histórico: recorrências e transformações”, o mundo, a realidade e a vida podem se dar ao luxo
de ser inverossímeis; neles, tudo pode acontecer, contra todas as expectativas. Na história
elaborada pelo homem, não. A história tem de ser verossímil; tem de nos convencer; tem de
ser articulada, não é apenas uma coletânea aleatória do que aconteceu a um determinado
momento, ou a um certo intervalo de tempo passado.
Já no romance, a imaginação é elaborada sem necessidade de seguir imposições: “ele
não se sujeita às restrições que os documentos, monumentos, signos e sinais do passado
impõem ao historiador (MIRANDA, 2000, p.24). Assim, o romance é, de certa forma, livre,
ainda que limitado às contingências de sua forma (como, por exemplo, as do subgênero a que
pertence). Uma ideia que perdurou no estudo das relações entre literatura e história no século
XIX diz respeito à associação da história com a verdade, e da literatura enquanto ficção com a
mentira. Enquanto à literatura se atribuiu o aspecto performático, e, portanto, mais próximo
do inverossímil, à história, tida como compromissada com a verdade e com a escolha de um
ponto de vista único, atribuiu-se o aspecto da “documentalidade”, o que lhe conferiu um
status de seriedade, de formalidade, por registrar documentalmente os fatos.
Considerando a perspectiva adotada para construção da obra A viagem do
elefante, buscaremos desenvolver um estudo sobre o conceito de romance histórico,
bem como o de metaficção historiográfica, para assim compreender como Saramago
desenvolve esses modelos narrativos e qual o ganho estético que advém dessas opções.
Levaremos em conta alguns aspectos fundamentais para essa análise, como o discurso
metaficcional a respeito da escrita do romance, os comentários sobre os episódios
históricos e sua reescrita utilizando-se da paródia e da ironia ao tratar desses discursos
oficiais. São todos esses aspectos fundamentais para a configuração do romance
histórico pós-modernista.
Numa breve reflexão falsamente privada, escrita em 5 de janeiro de 1994, José
Saramago refaz o exercício de entendimento que o encasquetara desde a década de
1950, quando redige o romance Claraboia. Sob o pretexto de uma consulta a respeito do
caráter historiográfico do romance Memorial do convento, o escritor retoma, nos
Cadernos de Lanzarote, de 1994, alegadas contradições, encontradas por leitores
diversificados, no que concerne à caracterização formal do Memorial. Suscita em breve
trecho no referido “diário” das Canárias:

“[...] Conta-me das resistências que encontrou por parte dos professores de Literatura e
de História, uns porque se estaria reduzindo a dimensão da obra de arte que é o
romance, os outros porque se trata de uma ficção, e, como tal, não se identifica com a
Historiografia. Argumentam estes [...] que o romance, enquanto obra ficcional, não
mantém compromissos com o ‘real’, nem teria ‘credibilidade’ científica para tanto.
Finalmente, uma historiadora [...] pôs em dúvida que a sociedade portuguesa do século
XVIII esteja efetivamente retratada no livro. [...] Os professores têm razão, o autor do
Memorial não escreveu um livro de História e não tem nada a certeza de que a
sociedade portuguesa do tempo fosse, realmente, como a retratou, embora, até ao dia em
que estamos, e já onze anos completos já passados, nenhum historiador tivesse apontado
ao livro graves erros de facto ou de interpretação. Resta saber se é aí que se encontra o
problema, se não estaria antes na necessidade de averiguar que parte de ficção entra,
visível ou subterrânea, na substância já de si compósita do que chamamos História, e
também, questão não menos sedutora, que sinais profundos a História, como tal, vai
deixando, a cada passo, na Literatura em geral e na ficção em particular”.

Afora a costumeira birra com professores acadêmicos, o trecho incide sobre o


núcleo duro do debate que perpassa toda a teoria da literatura desde sua construção, à
mesma altura que o Convento de Mafra, no século XVIII: as fronteiras formais entre
literatura e história.
Para o escritor lusitano José Saramago, nascido em 16 de novembro de 1922, no
pequeno vilarejo de Azinhaga, comunista e ateu até o fim da sua existência, a História e
a Ficção eram expressões da mesma inquietação humana. Expliquemos melhor, para ele
tanto a História como a Ficção podem ser alegorizados pela figura de Janos1 bifronte
com as suas faces voltadas uma para o outra, no qual tentam adivinhar o futuro,
teimando em perscrutar na poeira do tempo, “[...] um passado que constantemente se
lhes escapa e que hoje, talvez mais do que nunca, quereriam integrar no presente que
ainda são” (SARAMAGO, 2000, p, 09). Ou seja, ele aceita a História como Ficção, o
que pode nos levar a acreditar que tudo no mundo seria fictício, que nós mesmos somos
consequências sempre em mudança de todas essas ficções. Ao mesmo tempo autores e
criaturas. Segundo Saramago (2000), a primeira tarefa do historiador seria selecionar os
fatos, trabalhando sobre o que o escritor chamou de tempo informe, que é o que pode
ser aferido pelas fontes e pesquisas feitas anteriormente. A segunda tarefa seria
organizar os fatos de forma coerente e inteligível, não obstante com intenções sub-
reptícias como se de um destino inexorável se impusesse ao sentido narrativa. E essa
escolha fatual estaria inundada de ideologia. Porém, é quase que injustamente que o
romancista afirma que o historiador é um escolhedor de fatos, que no momento de
seleção abandona e omite aquilo que não interessa ao relato. Ao mesmo tempo que ele
escreve História ele também a faz e, consciente ou não das consequências políticas da
sua escrita, sabe muito bem que esse tempo organizado em narrativa se tornará
provavelmente uma lição magistral.
Tendo decidido sobre qual quinhão do passado mereceria ser mencionado e
reconstruído acaba por se tornar criador de um universo novo e diverso. Para o escritor,
a Ficção pode muito bem equilibrar a insatisfação daqueles que percebem que a História
não pode expressar e narrar todo o passado humano. A Ficção, a imaginação e a
elaboração livre têm as suas potencialidades podendo complementar o que falta ao
tecido histórico. Pensar assim não é nenhum pecado mortal historiográfico, pois o
próprio paradigma francês dos Anais com Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel
e George Duby, passou a tomar em conta a importância da imaginação para escrita em
História, ao contrário dos historiadores positivistas que realmente achavam ser possível
narrar o que realmente aconteceu obliterando qualquer subjetividade e posicionamento
político.
É na ausências, omissões e zonas escuras da História que o romancista encontra
o seu manancial. Nunca poderemos reconstituir a totalidade do passado vivido através
História já que a própria disciplina produz um conhecimento lacunar, fragmentário,
seletivo, parcelar e sempre em mutação da experiência humana no tempo. Nesse caso
seria tarefa precípua do escritor iluminar as zonas de trevas com a sua pequena candeia
da ficção, conectando fatos isolados, levantando pontes entre acontecimentos díspares e
se atrevendo até a substituir aquilo que foi por aquilo que poderia ter sido. No entanto,
alguns argumentariam que aquilo que somos hoje não foi resultado daquilo que poderia
ter sido, mas do que realmente foi. Então qual seria a utilidade dessa insubordinação
discursiva? Para o romancista português, a recriação do passado pela ficção pode ser
orientada por uma intenção crítica, produzindo “na rede dos fatos certa instabilidade,
certa vibração, um processo de reajustamento porventura tão útil ao entendimento do
nosso presente como a demonstração efetiva, provada e comprovada do que realmente
aconteceu” (SARAMAGO, 2000).
Saramago (1998) entende o tempo de uma forma sincrônica e não diacrônica,
como uma imensa tela onde todos os acontecimentos são projetados, desde o início até o
presente. Todos os acontecimentos estão lado a lado num caos, como se o tempo fosse
comprimido e espalmado, fatos, acontecimentos e personagens numa desarrumação
confusa que seria preciso dar sentido e inteligibilidade. O presente não existe, só o que
efetivamente há é o passado, pois o contemporâneo não pode ser apreendido, captado e
intersectado. A partir dessa ideia do tempo como uma tela gigantesca onde tudo está
projetado que o escritor sentiu necessidade de compressão do todo, bem como encontrar
conexões entre fatos desconexos: Auschwitz ao lado de Homero, o homem de
Neandertal ao lado da capela Sistina. Adão e Eva inventaram a bomba atômica, eles não
viriam a saber mas nós sabemos muito bem.
Consideremos, em primeiro lugar, a História como Ficção. Trata-se de uma
proposição que comporta não poucos riscos, com a qual poder-se-ia mesmo,
imaginamos, introduzir de um modo sub-reptício a afirmação, acaso temerária, acaso
irresponsável, de ser a História, em Última análise, uma pura ficção. Acolher cegamente
tal proposição levar-nos-ia a concluir que tudo no mundo seria ficção, que nós próprios
somos os produtos sempre em mudança de todas as ficções, ao mesmo tempo autores e
personagens delas. Afirmá-lo é facílimo, demonstrá-lo não o será tanto. Mas, ainda que
neste outro jogo sejam mais do que evidentes as seduções do espírito de paradoxo, não
resisto a pôr do meu lado alguns argumentos, acaso dignos de consideração.
Desde logo, segundo este modo de entender, a primeira tarefa do historiador
seria selecionar fatos, trabalhando sobre aquilo que denominarei o tempo informe, o que
quer dizer, esse imenso passado que apeteceria chamar puro e simples, se isso não fosse
uma outra contradição de termos. De posse dos dados recolhidos, a segunda tarefa do
historiador seria organizá-los de modo coerente, não raras vezes com uma intenção
prévia, transmitindo-nos, assim, uma ideia de necessidade inelutável, como se da
expressão de um destino se tratasse. Por outro lado, essa escolha de fatos exerce-se
quase sempre sobre consensos ideológicos e culturais determinados que realmente
fazem da História o ramo de conhecimento menos capaz de surpreender.
Parece ser indiscutível que o historiador terá de ser, em qualquer caso, um
"escolhedor de fatos", mas creio ser igualmente evidente que ele, ao escolhe-los,
abandona deliberadamente um número indeterminado de dados, em nome de razões de
Estado ou de classe, ou de política conjuntural, ou ainda em função de conveniências
duma estratégia ideológica necessitada, para justificar-se, não da História, mas de uma
História. Esse historiador não limitar-se-á a escrever a História: ele fará História. Por
outras palavras: consciente ou não das consequências políticas e ideológicas do seu
trabalho, sabe em todo o caso que o tempo que assim esteve organizando se tornará em
lição magistral, porventura a mais magistral de todas, já que o historiador, tendo
decidido sobre o que do passado mereceria ou não mereceria atenção, acaba por surgir
como criador de um mundo outro.
Algumas vezes, porém, esse poder autoritário parece não ser bastante para nos
libertar daquele horror ao vazio que, sendo característica dos povo primitivos, vem
afinal a encontrar-se em não poucos espíritos cultivados. 0 historiador Max Gallo
resolveu um dia começar a escrever romances sobre temas históricos por sentir a
necessidade de equilibrar por meio da ficção a insatisfação que lhe causava a
impossibilidade de expressar na História todo o passado. Foi buscar as potencialidades
da ficção, à imaginação, à elaboração livre sobre um tecido histórico definido, o que
sentira faltar-lhe enquanto historiador, isto é, as complementaridades duma realidade.
Não estava muito longe deste sentimento, suponho eu, o grande Georges Duby, quando
escreveu na primeira linha de um dos seus livros: "Imaginemos que....". Precisamente
aquele imaginar que antes havia sido considerado o pecado mortal dos historiadores
positivistas e seus continuadores de diferentes tendências.
Foi a viagem de Almeida Garret que me conduziu à viagem de Xavier de
Maistre, uma e outra levaram-me à viagem pelo tempo, não parecerá fora de propósito
que precisamente utilize a viagem para continuar a falar de História, de Ficção e, já que
assim tem de ser, de "romance histórico". Proponho-vos, pois, um divertimento.
Sou autor de um livro que se chama Viagem a Portugal. Trata-se de uma
narrativa de viagem, como tantas que se escreveram nos séculos XVII e XVIII, em que
os viajantes descreveram as suas experiências e aventuras, produzindo de caminho
alguns preciosos inclusive para o estudo das mentalidades. Foi com um espirito afim
que fiz a viagem a Portugal, foi também com esse espirito que a Viagem a Portugal foi
escrita. 0 livro não se propõe como roteiro de viajantes, embora, necessariamente,
contenha muito do que se espera encontrar nesse tipo de obras. Fala-se de Lisboa, do
Porto, de Coimbra, fala-se doutras cidades importantes, fala-se das aldeias, das
paisagens, das artes, das pessoas, fala-se de um País, em suma.
Imaginemos agora que o autor decida fazer uma segunda viagem para escrever
um segundo livro, mas que nela terá como ponto de honra não passar por nenhum dos
lugares onde havia estado antes. Quer dizer, nessa segunda viagem não irá a Lisboa,
não irá a Porto, não irá a Coimbra, não irá aonde já tivesse ido. Contudo, parece ao
autor que, com toda legitimidade, poderia dar, outra vez, a esse livro o título de Viagem
a Portugal, pois que de Portugal continuou a tratar-se. Levemos ainda mais longe o
nosso jogo e imaginemos que o autor faz uma terceira, uma quarta, uma quinta, uma
sexta, uma centésima viagem, obedecendo sempre ao princípio de não passar por onde
passou antes, e que escreverá outros tantos livros, em que finalmente acabará por não
haver qualquer referência a lugares habitados e nomeados, nada a não ser uma pura
imagem sem pontos de identificação aparentes com essa identidade a que damos o nome
de Portugal. A pergunta derradeira será esta: poderá o centésimo livro chamar-se ainda
Viagem a Portugal? Respondo que sim: poderá e deverá chamar-se ainda mesmo que o
leitor seja incapaz de reconhecer, por mais atento que esteja à leitura, o país que no
título lhe prometeram.
Este jogo, ainda que à primeira vista o não pareça, tem muito que ver com a
relação que mantemos com a História. Tal como nos aparece escrita, ou, repetindo a
pequena provocação, tal como o historiador a fez, a História corresponde ao livro da
primeira viagem, sem esquecer, evidentemente, que esse historiador poderá sempre
fazer, ele próprio, outras viagens ao tempo por onde antes viajou, esse tempo que
graças sua intervenção começou a deixar de ser informe, passa a ser História, e que
graças a visões novas, a novos pontos de vista, a novas interpretações, irá tornando
sucessivamente mais densa, menos rarefeita, a imagem que temos do passado.
Restarão, sempre, porém, grandes zonas de sombra e é aí que o romancista tem o seu
campo de trabalho.
Creio bem que o que subjaz a esta inquietação é a nossa certeza de que não
poderemos, nem sequer de modo simplesmente satisfatório, reconstituir o passado. Não
podendo reconstitui-lo, fica-nos a viagem pelas zonas de sombra, essas por onde o
romancista avança com a sua pequena candeia, iluminando recantos, procurando
caminhos que a poeira do tempo escondeu, inventando pontes que liguem fatos isolados,
e também, supremo atrevimento, substituindo algo do que foi por aquilo que poderia ter
sido. Argumentar-se-á que se trata de um trabalho sem utilidade, uma vez que aquilo
que hoje somos não é do que poderia ter sido que resultou, mas do que efetivamente foi.
No entanto, se a revisitação ao passado, assim feita pelo romance, for orientada por uma
intenção crítica, então a nova operação introduzirá na rede dos fatos certa instabilidade,
certa vibração, um processo de reajustamento porventura tão útil ao entendimento do
nosso presente como a demonstração efetiva, provada e comprovada do que realmente
aconteceu.
Dois serão os procedimentos possíveis do romancista que escolheu para a sua
ficção as planícies do tempo passado: um, discreto e respeitoso, consistirá em reproduzir
ponto por ponto os fatos conhecidos, sendo a ficção mera servidora duma fidelidade que
se pretende inatacável; ou outro, mais ousado, levá-lo-á a entretecer dados históricos
apenas suficientes num tecido ficcional que se manterá predominante. Estes dois vastos
mundos, o mundo das verdades históricas e o mundo das verdades ficcionais, à primeira
vista inconciliáveis, poderão, no entanto, ser harmonizados na instância narradora.
A História do cerco de Lisboa (1989) é um livro em que essa problemática é
defrontada nuamente. A começar pelo enredo montado sobre a materialidade do
discurso diretamente, o protagonista da história é um revisor de livros, Raimundo
Benvindo Silva, que, confrontado com o que julga constituir uma falsidade histórica,
percebe-se imerso numa situação vivencial decisiva, no mesmo tempo tempestuoso do
surgimento do amor. Constituído no universo da indústria do livro impresso, o enredo
faz efetivamente toda uma discussão filológica em torno da questão das fontes primárias
empregadas na construção do discurso da história. Todo o livro questiona, como é de
praxe na escrita de José Saramago, os lugares convencionais dos saberes; bem como a
suposta legitimidade de suas fontes e os modos tramados de dissimulação de fatos
históricos, segundo sempre os interesses dos discursos.
Assim, o item primeiro que se menciona é a questão toda por que passa o revisor
Raimundo Silva, quando, atento às informações providas por fontes primárias, discorda
da versão dada pelo historiador do livro em que trabalha no momento narrativo: os
cruzados não teriam auxiliado Dom Afonso Henriques quando do cerco de Lisboa no
ano de 1147, segundo reafirma quem assina aquele trabalho. Algumas fontes primárias
diferem da versão recorrente na historiografia de Portugal, a qual reafirma o convênio
bélico e santo. São as “antiguidades” da “fonte limpa dos cronistas medievais” que
Saramago desencava num chamado Osberno, nome registrado historicamente como
autor de uma carta descritiva do fato e bastidores do acordo real e, mais importante,
fonte primaríssima dos cronistas, por sua vez. O historiador amador que se revela ser
Raimundo Silva percorre essa via primordial do saber pelo atalho que vai dar direto no
medievo, sem necessidade de percorrer sucessivas interpretações convenientemente
viciosas de historiadores portugueses. Por tal atalho, o que o lídimo historiador
encontra? Os cronicões humanistas, nomeadamente as crônicas do Frei António
Brandão, efetivamente um cronista de Alcobaça, que viveu entre 1584 e 1637, e outros
textos que “servem de guia”, caso de outra referida Crónica dos cinco reis de Portugal.
Evidentemente, a problemática das fontes é apenas a de um componente formal
que ferve junto no debate acalorado elaborado por extenso por pensadores da teoria da
história que, hodiernamente, já têm muito claro que todo o discurso da história, como de
resto todo discurso, é construído com doses proporcionais de dados, documentos,
interpretações, afetos, opiniões e finalidades por seus autores. Para a professora de
Literatura Portuguesa Maria do Socorro Fernandes de Carvalho, no artigo “História e
Ficção em José Saramago”, tal clareza aparece com muita propriedade no debate
proposto por Saramago, não apenas quando ele alerta para o “mal das fontes”,
componente material, de resto, mas igualmente quando toca em pontos definidores da
episteme da história, mais complexos, como o papel do testemunho, a concepção de
autoria, a condição imprescindível da pesquisa dos arquivos, a noção de documento ou a
legitimidade do relato oral. Mais do que isso: quando Saramago coloca no núcleo
dramático da narrativa a compreensão da história passível de ser apreciada de diversos
ângulos, faz incidir sobre o debate a relação intransponível entre discurso da história e
da ficção, refego teórico para onde converge o conceito de verdade.
Já em A viagem do elefante (2008), Saramago revisita um momento da história
de Portugal para reavaliá-lo. Esse momento reavaliado pelo autor é uma viagem
ocorrida na Europa do século XVI, quando D. João III e D. Catarina de Áustria
resolvem presentear seu primo, o arquiduque Maximiliano, em razão de seu casamento,
e escolhem como presente um elefante, Salomão. A narrativa gira em torno da viagem
que o elefante precisa fazer para chegar ao seu novo lar, Viena. Salomão, juntamente
com seu cornaca, Subhro, ocupam os papéis principais da narrativa, enquanto a realeza,
foco da maioria dos relatos oficiais, fica em segundo plano.
Nesse sentido, por mais que o historiador se empenhe em buscar a verdade dos
fatos que investiga, tal busca será sempre, em certa medida, frustrada, pois é mediada
pela palavra, e a palavra não é o acontecimento direto, mas a tentativa de representação
do que aconteceu. Essa representação faz parte de uma escolha subjetiva que não
acessará a totalidade do passado. Salienta Antônio Roberto Esteves, em “Ficção e
História: leitura de romances contemporâneos”, que a representação do mundo e das
relações sociais já não é medida por critérios de veracidade ou autenticidade, mas sim
pelo grau de credibilidade que oferece. Desse modo, a história e a literatura trilham
caminhos diversos, mas convergentes, em se tratando da construção de uma identidade
que, em última instância, depende do leitor, responsável pela criação dos sentidos do
texto, através da decifração. do discurso que maneja (ESTEVES, 2007, p. 13).
Consideradas por esse prisma, as relações entre literatura e história são vistas de
maneira mais flexível e consciente. O real passa a ser tomado como uma construção
narrativa, e enquanto construção, não está livre da subjetivação da escrita, o que torna
impossível a ideia de neutralidade do discurso. Por fim, não significa pensar que a
ficção terá o papel de concorrer com a história, ou de substituí-la, “mas sim de observar
de que forma e em que medida a convergência dos estudos históricos e literários pode
contribuir para revelar e desvelar mecanismos da criação artística” (WEINHARDT,
2002, p. 110). O fato em si só existe no e pelo discurso, e na busca pela ressignificação
do passado, esse é moldado sempre provisoriamente. No contexto de obras que se
voltam para o passado e amparam-se em determinadas matérias

Você também pode gostar