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JANEIRO DE 1985 41
UMA DESFAÇATEZ DE CLASSE
é que civilizaria o Brasil. Diante da sur- frutável. É certo que palavras e ambi-
presa dos colegas da Câmara, o estadista güidades no caso são do defunto, a quem
completava: "Sim, a civilização brasileira caracterizam como indivíduo, se é possí-
de lá veio, porque daquele continente vel dizer assim; não obstante, a eloqüên-
veio o trabalhador robusto, o único que cia é toda montada sobre marcas de dis-
sob este céu ( . . . ) poderia ter produzi- tinção social, o que dá tensão de classe
do, como produziu, as riquezas que pro- e vivacidade ao quadro.
porcionaram a nossos pais recursos para
mandar seus filhos estudar nas academias
e universidades da Europa, ali adquiri- sátira até aqui é amena, pois
rem os conhecimentos de todos os ramos o leitor concede facilmente que
do saber, os princípios da Filosofia do o uso pernóstico da cultura ofi-
Direito, em geral, e do Direito Públi- cial e das aparências ilustra-
co Constitucional, que impulsionaram e das (hesitações, suposições, considera-
apressaram a Independência e presidiram ções, método) seja engraçado. E ela é
à organização consagrada na Constituição sem surpresa, pois a voz do além auto-
e noutras leis orgânicas, ao mesmo tempo maticamente põe paródia em tudo que
fortalecendo a liberdade"¹. Nestas cir- diz. Na frase final do parágrafo, entre-
1
Apud Oliveira Lima, O Im-
pério Brasileiro. São Paulo,
cunstâncias, os amigos do progresso po- tanto, rompendo com este humorismo Melhoramentos, 1927, p. 142.
dem ser inimigos da escravidão? Não em fim de contas morno, vem uma enor- O discurso é de 1843. Devo
a indicação do trecho a Luiz
deveriam ser amigos dela? Os inimigos midade, dita de forma cortante: Moisés, Felipe de Alencastro.
da instituição nefanda não seriam tam- que também contou a sua morte, não a
bém inimigos do Direito, da Constitui- pôs no intróito, mas no cabo: diferença
ção e da Liberdade? Se a acumulação de radical entre este livro e o Pentateuco.
capital no país e, com ela, a moderniza- Ao distinguir entre a sua obra e a Bíblia
ção são bancadas pelo trabalho escravo, num ponto preciso, como se fossem com-
norma e infração não trocam de lugar? paráveis no resto, Brás Cubas mostra que
Ou melhor, além de infração, a infração a sua disposição escarninha não vai ficar
é norma, e a norma, além de norma, é na literatice metafísica, em brincadeiras
infração. . . Em suma, a defesa progres- com a verossimilhança e as convenções
sista do tráfico negreiro colocava proble-
literárias. O seu ânimo não hesita diante
mas ideológicos difíceis de resolver, e
encarnava a parte de afetação e afronta do "mau gosto" incisivo e só se completa
que acompanha a vida das idéias nas na ofensa e na conspurcação.
sociedades escravistas modernas. A ambi- Longe de ser presunçoso, o paralelo
valência tinha fundamento real, e Ma- com as Escrituras é fruto de outro sen-
chado de Assis, conforme se verá, soube timento muito mais inconfessável: trata-
imaginar-lhe as virtualidades próximas e se da satisfação maligna de rebaixar e
remotas. vexar, de anunciar que os desplantes do
narrador não vão se deter diante de nada,
Mas voltemos à nossa análise. Como
que não ficará pedra sobre pedra, o que
as ponderações factícias de Brás, também
para ele constitui uma superioridade ou
a prosa das Memórias tem um quê de inferioridade, não se sabe bem. O con-
falsete. A entonação das primeiras linhas traste entre esta provocação e as anterio-
é empertigada: Algum tempo hesitei, su- res é sensível, pois uma coisa é fazer
posto o uso vulgar, adotar diferente mé- pouco do bom senso literário, contando
todo. Mesma coisa para as habilidades com a cumplicidade malévola do leitor,
retóricas do morto, que por assim dizer já que o próprio Brás Cubas é objeto de
estão em grifo, na sintaxe engomada e riso também, e outra é banalizar o Livro
sobretudo nas construções antitéticas: Sagrado em uma curta frase. No segundo
princípio e fim, nascimento e morte, vul- caso, a intenção é de passar da conta. É
gar e diferente, campa e berço etc. A claro que o efeito literário não está na
intenção de mostrar superioridade é pa- profanação ou nas gracinhas tomadas em
tente, ainda que inseparável da situação separado, mas na súbita intimidade que
narrativa risível. Assim, prestígio e des- se estabelece entre elas, e na sua su-
prestígio estão juntos na empostação da cessão. Passando por cima da diferença,
linguagem, convivência que é de todos os o narrador põe a nu o que nas provo-
momentos, e atrás da qual triunfa o nar- cações iniciais apenas se pressentia, o
rador, que brilha sempre duas vezes, uma desejo de afronta e liquidação, tudo des-
quando assinala os próprios méritos retó- culpado, ou agravado, pela frivolidade
ricos, outra quando ri de seu caráter des- da dicção. Esta passagem inopinada do
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permanece igual a si mesmo por mais de pelo toque insensato, aos materiais do
um curto parágrafo, ou melhor, muda de romance. Digamos então que no curso de
assunto, opinião ou estilo quase que a sua afirmação a versatilidade do narrador
cada frase. Com ritmo variável, a mobili- abusa de rigorosamente todos os conteú-
dade vai da primeira à última linha do dos e formas que aparecem no livro, o
romance. Em lugar de acompanhá-la pas- que lhe proporciona uma espécie de frui-
so a passo, o que no limite levaria a uma ção, e os subordina. Neste sentido ela é,
paráfrase completa, tratemos de enten- como propusemos no início destas pági-
der-lhe a lógica. nas, seu princípio formal.
Há um elemento de complacência nes- Qual a sua esfera? Para alargá-la ao
ta disposição mudadiça, bem como no máximo, o narrador adota envergadura
virtuosismo retórico de que ela depende enciclopédica, aliás em desproporção com
para se realizar. São viravoltas sobre vi- o âmbito acanhado das anedotas que con-
ravoltas, que invariavelmente se acom- ta e que formam o enredo. Esta disso-
panham de uma satisfação de amor-pró- nância é importante e será retomada
prio para o narrador, de cuja superiori- adiante. Por agora note-se que as páginas
dade elas por assim dizer dão prova. iniciais trazem o nome de mais de trinta
Brás, como um seu coleguinha de infân- homens ilustres, personagens literárias,
cia que só brincava de rei, ministro ou monumentos célebres, datas capitais.
general, aspira a uma supremacia, qual- Estão mencionados tempos bíblicos, ho-
quer que fosse (cap. XIII), expressão méricos e romanos, Idade Média, Renas-
que designa bem a experiência que o cimento e Reforma, século clássico fran-
andamento da narrativa persegue e trata cês, Revolução Gloriosa e a unificação
de renovar a todo instante. O instrumen- italiana e alemã3. 3
Conforme Augusto Meyer,
"De M achadinho a Brás
to são as mudanças bruscas a que nos Para que não haja dúvida quanto à Cubas", Revista do Livro.
referimos, em que por definição e caso jurisdição que a volubilidade se dá, o ca- Rio de Janeiro, Instituto Na-
cional do Livro, setembro de
a caso algo se rompe em conteúdo ou pítulo do delírio — uma outra forma de 1958, n.° 11, p. 15. As obser-
vações e deduções de Meyer,
forma, e nas quais o capricho despótico exorbitância mental — vai da origem à neste e noutros estudos, são
do narrador-personagem se impõe. A consumação dos tempos, uma vez de trás o ponto alto da crítica ma-
chadiana. Conservam força de
cada inconstância este se subtrai, dá um para diante, e outra de diante para trás. revelação notável apesar do
envelhecimento de seu quadro
quinau no público, e pela enésima vez Em diapasão mais discreto, há também o teórico, o que aliás ilustra a
se afirma espirituoso, além de vencedor. enciclopedismo tácito das referências cul- independência relativa entre
conceituações adotadas, per-
O caráter forçado deste humorismo salta turais, dissolvidas na variação dos pontos cepção literária e capacidade
de expressá-la. Meu trabalho
aos olhos e terá vexado muitos leitores. de vista. Assim, no extraordinário capí- deve muito às formulações de
Entretanto, o curso do livro não só o tulo II, que trata da invenção do Em- Meyer.
resgata, como o valoriza ao extremo: plasto Brás Cubas, este último é apresen-
trata-se da acentuação deliberada, beiran- tado sucessivamente como idéia grandiosa
do o didático, de aspectos autoritários e e útil; como idéia fixa, que se pendu-
malignos da volubilidade que tentamos ra por conta própria no trapézio cere-
caracterizar. bral; como panacéia anti-hipocondríaca,
O movimento completa-se, no plano destinada a aliviar a nossa melancólica
da forma, pela babel das modalidades humanidade; como objeto de uma peti-
literárias: trocam-se estilos, escolas, téc- ção de privilégio dirigida ao governo,
nicas, gêneros, recursos gráficos, tudo com alegações caridosas e propósitos lu-
comandado pelo mesmo afã de uma supe- crativos; e como oportunidade de ver
rioridade "qualquer". Assim, a narrativa impressos nos jornais, mostradores, fo-
passa do trivial ao metafísico, ou vice- lhetos, esquinas e enfim nas caixinhas
versa, do estrito ao digressivo, da pala- do remédio, estas três palavras: Emplas-
vra ao sinal (o capítulo shandyano, feito to Brás Cubas.
de pontinhos, exclamações e interroga- Respectivamente, as referências são o
ções), da cronologia à marcha à ré no ideário liberal-burguês; a filosofia do in-
tempo, do comercial ao bíblico, do épico consciente (em transposição cômica); o
ao intimista, do científico à charada, do contraste entre a cura antiga e a medici-
neoclássico ao naturalista e ao chavão na moderna; o patrocínio governamental;
surrado etc. etc. Os contrastes são inú- a finalidade cristã; a finalidade capitalis-
meros, entre frases, entre parágrafos, ta; e a síntese, na mania do anúncio,
entre capítulos, mas o efeito visado é entre a velha vaidade e o novo espírito
um só, a satisfação da mesma constante comercial. Pode-se imaginar um emplasto
veleidade. Mais que baixo contínuo, esta mais completamente universalizado? Para
é a mediação geral que dá pertinência, terminar, nem espaço e tempo, estes re-
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delas é interpretar a sua coexistência, o pessoal sobressai, critério que por sua vez
que exige tino e apreciação do movimen- detecta e assinala a presença do capricho
to global do livro. em toda parte, sobretudo na pretensa
De outro ângulo, mais ligado às ane- objetividade do outro, que o condena.
dotas do romance, aquele efeito simultâ- Onde a superioridade, e que partido to-
neo de domínio e desprestígio tem a ver mar? Fundadas no interesse prático de
com o refluxo da vida narrada sobre a uma mesma classe social, tão ligada à
voz que a está narrando. À medida que a regra burguesa quanto ao aspecto discri-
leitura avança, nos familiarizamos — em cionário de escravidão e clientelismo, as
ato — com o ritmo e a abrangência da duas apreciações existiam, tinham por si
imaginação de Brás. Ao mesmo tempo, a caução de experiência e necessidade, e
no plano dos assuntos que lhe compõem mais verdadeiro que o seu antagonismo
o mundo, multiplicam-se os casos de de- era a sua acomodação, incongruente e
sarranjo mental. Já nas primeiras páginas vantajosa, uma das marcas da inscrição
aparecem o delírio, a idéia fixa da fama, "teratológica" do país na cena contem-
a mania genealógica, a mentira acompa- porânea.
nhada de convicção etc., configurando
um campo de maluquices rotuladas, a
que a volubilidade insopitável do memo- forma, acompanhando neste pon-
rialista — a sua obsessão da supremacia to o cotidiano das classes do-
qualquer — se integra com naturalidade, minantes, não trata de drama-
como uma instância a mais. tizar e levar ao desfecho a opo-
Na mesma linha, existe parentesco sição entre aqueles pontos de vista. Mas
entre a soberana liberdade de espírito de vai além, na medida em que os faz coe-
Brás, com metafísica e tudo, e o univer- xistir e alternar em espaço ultra-exíguo,
so subalterno de falsificações genealógi- com ânimo sistemático, sublinhando os
cas, emplastos milagrosos e necrológios efeitos desencontrados de seu convívio.
interesseiros, que é seu e em que ele se Resulta uma condensação com muito al-
compraz, universo circunscrito e desclas- cance brasileiro e satírico, onde a incon-
sificado, de muito sabor localista, onde sistência de critério, ou melhor, a duali-
cabem perfeitamente as exibições de falsa dade das medidas figura como realidade
cultura e o gosto fácil do narrador pela permanente e inexorável, prova simultâ-
pseudofilosofia e pelo gênero apologal4 . nea de inferioridade e superioridade que 4
Antonio Cândido, no estu-
A unidade profunda do livro depende contextualiza a totalidade das matérias do citado, assinala a ligação
deste parentesco, cuja substância adiante do romance. Para complicar, note-se ain- entre o exibicionismo filosó-
fico e o estado de cultura
ficará mais clara, e que é mais uma ver- da que a estilização machadiana de pree- nacional. "Poder-se-ia dizer
que ele (Machado de Assis)
são da ambigüidade que acompanha a minência local do capricho se faz segundo lisonjeava o público mediano,
gesticulação narrativa das Memórias: ele- o modelo literário da whimsicality ingle- inclusive os críticos, dando-
lhes o sentim ento d e q ue
gância suprema, ilusão provinciana, falta sa... eram inteligentes a preço mó-
dico" (p. 19).
de compostura elementar? Noutras palavras, a volubilidade de
Assim, a volubilidade é um ponto de Brás Cubas é um mecanismo narrativo
vista universal, a que nada escapa, sem em que está implicada uma problemática
prejuízo de ser igualmente uma tolice nacional. Esta acompanha o curso do li-
bem marcada, de efeito pitoresco, localis- vro, ainda quando não é explicitada ou
ta e atrasado. Ora ela é a substância e mesmo visada. Cria-se um efeito de com-
a verdade crítica do mundo, em que tudo plexidade tácita, presente em todos os
mais é ilusão, ora é ela que é ilusão e momentos, mesmo os aparentemente sin-
objeto de sátira, quando então é vista gelos, que é um fato de composição e,
sobre fundo de norma burguesa e como naturalmente, um trunfo da prosa de fic-
elemento de caracterização. Esta instabi- ção machadiana. São propriedades por
lidade básica, longe de ser um defeito, é assim dizer automáticas de um dispositi-
um resultado artístico de primeira força, vo literário, que fala linguagem própria,
que dá a objetividade da forma a uma e pode ser estudado quase em abstrato.
ambivalência ideológica indescartável no (Continua)
Brasil de seu tempo. O critério burguês,
ilustrado e europeu, para o qual o capri-
cho é uma fraqueza, não é mais nem me- Roberto Schwarz é professor de Literatura na Unicamp.
nos real ou "nosso" que o critério ema-
nado de nossas relações sociais não-bur- Novos Estudos CEBRAP, São Paulo
n.° 11, pp. 40-48, jan. 85
guesas, em que o elemento de arbitrário