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Roberto Schwarz

estridência, os artifícios nume- de um show de impudência, em que as


rosos e a vontade de chamar provocações se sucedem, numa gama que
atenção dominam o começo das vai da gracinha à profanação.
Memórias Póstumas de Brás A persistência no abuso, sem a qual as
Cubas (1881). O tom é de abuso delibe- Memórias ficariam privadas de seu ritmo
rado: o título do livro é um contra-senso, próprio, do ponto de vista técnico realiza-
pois não é possível escrever depois de se através de intromissões do narrador,
morto; a dedicatória saudosa ao verme que a todo momento invade a cena e
que primeiro roeu as frias carnes de meu "perturba" o curso de seu romance. Estas
cadáver, arranjada em forma de epitá- intervenções, que são o recurso macha-
fio, é outro desrespeito; mesma coisa diano mais saliente e famoso, são elas
para a intimidade forçada com que se também expressão de arbitrariedade. A
prometem "piparotes" ao leitor, caso a crítica as tratou como traço psicológico
obra não lhe agrade; por fim, a idéia do autor, deficiência narrativa, superiori-
que vem a Brás Cubas de comparar a sua dade de espírito, empréstimo inglês, me-
literatura à de Moisés, no Pentateuco, talinguagem, nada disso estando errado.
para gabar a originalidade da primeira, Neste ensaio, serão vistas enquanto for-
dispensa comentários. Em suma, trata-se ma, tomado o termo em dois sentidos:

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a) como regra de composição da narra- to, sendo uma agudeza intencionalmente
tiva; e b) como estilização de uma condu- barata, aqui não desmancha a verossimi-
ta própria à classe dominante brasileira. lhança realista, embora a desrespeite.
No romance machadiano praticamente Antes a confirma, pois sem ela não seria
não há frase que não tenha segunda in- originalidade nem teria graça. Menos
tenção ou propósito espirituoso. A prosa que afirmar outro mundo, Brás quer des-
é detalhista ao extremo, sempre à cata tratar o nosso, que é dele também, isso
de efeitos imediatos, o que amarra a lei- para infligir-nos a sua impertinência.
tura ao pormenor e dificulta a imaginação Humor "infame" e metódico, da família
do panorama. Em conseqüência, e por dos absurdos de sala, que à primeira vista
causa também da campanha do narrador é cansativo, e não obstante é um achado
para chamar atenção sobre si mesmo, a capital, conforme veremos.
composição do conjunto pouco aparece. Noutras palavras, um narrador abusa-
Entretanto ela existe, e se tomarmos dis- do e sem credibilidade. Que pensar então
tância enxergaremos no seu traçado as
das dúvidas literárias, considerações ló-
grandes linhas de uma dinâmica social.
São estas que dão a terceira dimensão, ou gicas e opções de método ostentadas pelo
integridade romanesca, ao brilho algo fá- morto? Em abstrato, pelo assunto e pelo
cil dos gracejos de primeiro plano. Difícil tom, são inquietações de um cavalheiro
de precisar, esta consistência é um segre- ilustrado. No contexto, não são menos
do da obra machadiana. Depois de fixá- postiças que a condição de defunto, a
la, tentaremos uma interpretação, que vai qual lhes empresta insolência. São apa-
nos levar a circunstâncias brasileiras. rências que não se destinam a enganar,
nem ocultam nada. Não se trata portanto
de crer nelas, de buscar-lhes a verdade ou
Capítulo primeiro coerência, mas de admirar o descaramen-
to e o virtuosismo de Brás em seu mane-
Óbito do autor jo. A todo momento ele exibe o figuri-
no do cavalheiro moderno, para desmere-
Algum tempo hesitei se devia abrir es- cê-lo em seguida, e voltar a adotá-lo, con-
tas memórias pelo princípio ou pelo fim, figurando uma incongruência que o curso
isto é, se poria em primeiro lugar o meu do romance vai normalizar. É como se a
nascimento ou a minha morte. Suposto conduta ilustrada fosse objeto de escár-
o uso vulgar seja começar pelo nascimen- nio, tanto quanto de consideração — a
to, duas considerações me levaram a ado- norma prestigiosa e indispensável —, o
tar diferente método: a primeira é que que não deixa de ser um modo de fun-
não sou propriamente um autor defunto, cionamento, além de um enigma.
mas um defunto autor, para quem a cam- Antecipando a nossa tese, fique indi-
pa foi outro berço; a segunda é que o cado o parentesco entre esta ambivalên-
escrito ficaria assim mais galante e mais cia e o embaraço ideológico das elites
novo. Moisés, que também contou a sua brasileiras oitocentistas, muito cônscias
morte, não a pôs no intróito, mas no de pertencerem ao Ocidente progressista
cabo: diferença radical entre este livro e e culto, nesta altura já francamente bur-
guês (a norma), sem prejuízo de serem,
o Pentateuco.
na prática, membros beneficiários do últi-
Dito isto, expirei às duas horas da tar-
mo ou penúltimo grande sistema escravo-
de de uma sexta-feira do mês de agosto
de 1869, na minha bela chácara de Ca- crata do mesmo Ocidente (a infração).
tumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, Sustentada por interesses efetivos, a con-
rijos e prósperos, era solteiro, possuía ciliação cotidiana e rotinizada entre posi-
cerca de trezentos contos e fui acompa- ções que segundo a ideologia européia
nhado ao cemitério por onze amigos. então dominante se diriam contraditórias
Onze amigos! Verdade é que não houve engendrava e difundia pelo corpo social
cartas nem anúncios. Acresce que cho- a oscilação de critério que estamos tra-
via (. . .). tando de captar. É fato que a vida bra-
sileira impunha à consciência burguesa
uma série de acrobacias, incongruências
espevitamento desta abertura, e confissões, que escandalizam e irritam
em que o impossível está dito o senso crítico. Sirva de exemplo um dis-
em primeira pessoa, é grande. curso parlamentar famoso, de Bernardo
Parece claro que a situação de Pereira de Vasconcelos, segundo o qual,
defunto autor, diferente de autor defun- ao contrário do que se pensava, a África

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é que civilizaria o Brasil. Diante da sur- frutável. É certo que palavras e ambi-
presa dos colegas da Câmara, o estadista güidades no caso são do defunto, a quem
completava: "Sim, a civilização brasileira caracterizam como indivíduo, se é possí-
de lá veio, porque daquele continente vel dizer assim; não obstante, a eloqüên-
veio o trabalhador robusto, o único que cia é toda montada sobre marcas de dis-
sob este céu ( . . . ) poderia ter produzi- tinção social, o que dá tensão de classe
do, como produziu, as riquezas que pro- e vivacidade ao quadro.
porcionaram a nossos pais recursos para
mandar seus filhos estudar nas academias
e universidades da Europa, ali adquiri- sátira até aqui é amena, pois
rem os conhecimentos de todos os ramos o leitor concede facilmente que
do saber, os princípios da Filosofia do o uso pernóstico da cultura ofi-
Direito, em geral, e do Direito Públi- cial e das aparências ilustra-
co Constitucional, que impulsionaram e das (hesitações, suposições, considera-
apressaram a Independência e presidiram ções, método) seja engraçado. E ela é
à organização consagrada na Constituição sem surpresa, pois a voz do além auto-
e noutras leis orgânicas, ao mesmo tempo maticamente põe paródia em tudo que
fortalecendo a liberdade"¹. Nestas cir- diz. Na frase final do parágrafo, entre-
1
Apud Oliveira Lima, O Im-
pério Brasileiro. São Paulo,
cunstâncias, os amigos do progresso po- tanto, rompendo com este humorismo Melhoramentos, 1927, p. 142.
dem ser inimigos da escravidão? Não em fim de contas morno, vem uma enor- O discurso é de 1843. Devo
a indicação do trecho a Luiz
deveriam ser amigos dela? Os inimigos midade, dita de forma cortante: Moisés, Felipe de Alencastro.
da instituição nefanda não seriam tam- que também contou a sua morte, não a
bém inimigos do Direito, da Constitui- pôs no intróito, mas no cabo: diferença
ção e da Liberdade? Se a acumulação de radical entre este livro e o Pentateuco.
capital no país e, com ela, a moderniza- Ao distinguir entre a sua obra e a Bíblia
ção são bancadas pelo trabalho escravo, num ponto preciso, como se fossem com-
norma e infração não trocam de lugar? paráveis no resto, Brás Cubas mostra que
Ou melhor, além de infração, a infração a sua disposição escarninha não vai ficar
é norma, e a norma, além de norma, é na literatice metafísica, em brincadeiras
infração. . . Em suma, a defesa progres- com a verossimilhança e as convenções
sista do tráfico negreiro colocava proble-
literárias. O seu ânimo não hesita diante
mas ideológicos difíceis de resolver, e
encarnava a parte de afetação e afronta do "mau gosto" incisivo e só se completa
que acompanha a vida das idéias nas na ofensa e na conspurcação.
sociedades escravistas modernas. A ambi- Longe de ser presunçoso, o paralelo
valência tinha fundamento real, e Ma- com as Escrituras é fruto de outro sen-
chado de Assis, conforme se verá, soube timento muito mais inconfessável: trata-
imaginar-lhe as virtualidades próximas e se da satisfação maligna de rebaixar e
remotas. vexar, de anunciar que os desplantes do
narrador não vão se deter diante de nada,
Mas voltemos à nossa análise. Como
que não ficará pedra sobre pedra, o que
as ponderações factícias de Brás, também
para ele constitui uma superioridade ou
a prosa das Memórias tem um quê de inferioridade, não se sabe bem. O con-
falsete. A entonação das primeiras linhas traste entre esta provocação e as anterio-
é empertigada: Algum tempo hesitei, su- res é sensível, pois uma coisa é fazer
posto o uso vulgar, adotar diferente mé- pouco do bom senso literário, contando
todo. Mesma coisa para as habilidades com a cumplicidade malévola do leitor,
retóricas do morto, que por assim dizer já que o próprio Brás Cubas é objeto de
estão em grifo, na sintaxe engomada e riso também, e outra é banalizar o Livro
sobretudo nas construções antitéticas: Sagrado em uma curta frase. No segundo
princípio e fim, nascimento e morte, vul- caso, a intenção é de passar da conta. É
gar e diferente, campa e berço etc. A claro que o efeito literário não está na
intenção de mostrar superioridade é pa- profanação ou nas gracinhas tomadas em
tente, ainda que inseparável da situação separado, mas na súbita intimidade que
narrativa risível. Assim, prestígio e des- se estabelece entre elas, e na sua su-
prestígio estão juntos na empostação da cessão. Passando por cima da diferença,
linguagem, convivência que é de todos os o narrador põe a nu o que nas provo-
momentos, e atrás da qual triunfa o nar- cações iniciais apenas se pressentia, o
rador, que brilha sempre duas vezes, uma desejo de afronta e liquidação, tudo des-
quando assinala os próprios méritos retó- culpado, ou agravado, pela frivolidade
ricos, outra quando ri de seu caráter des- da dicção. Esta passagem inopinada do

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humorismo às vias de fato, primeira de rimente na própria pele o relacionamento
uma longa série, é um movimento-chave que o livro estuda.
nas Memórias, onde aparece em todos
os planos, como assunto, ritmo narrati-
vo, cacoete de dicção etc. Iremos reen- ual das fisionomias de Brás é a
contrá-la em formas também mais desen- verdadeira? Está claro que ne-
volvidas, quando então a trataremos de nhuma em particular. Tanto
interpretar. Por agora repitamos que é mais que a situação narrativa
ela a explicitação e culminação do que é troça notória ela também (o defunto
está latente nas liberdades que a todo autor), o que baralha as coordenadas da
momento o narrador está tomando com realidade ficcional. Noutras palavras, fal-
a norma, literária ou não. A relação de tando credibilidade ao narrador, as fei-
abuso — a definir — que organiza o ter- ções que constantemente ele veste e des-
ritório explorado neste livro tem nela, no veste têm verdade incerta, e tornam-se
lance do agravamento súbito, quando o elemento de provocação, que esta sim é
desmando subjetivo do narrador se exer- indiscutível. Idem para a indefinição, ou
ce em sua plenitude, um momento de para a troça, que desestabilizam o esta-
verdade. tuto literário: deixam planar, com a dú-
vida sobre o gênero, o risco de uma esto-
O leitor terá sentido que a cada pro-
cada não-regulamentar. O terreno é mo-
posição de nosso parágrafo o tipo de Brás
vediço, e cabe ao leitor orientar-se como
é outro. A fisionomia que na primeira
pode, desamparado de referências con-
linha hesita quanto à melhor maneira de sentidas, e tendo como únicos indícios as
compor memórias não é a mesma que palavras do narrador, ditas em sua cara,
promete, como se nada fosse, esclareci- com indisfarçada intenção de confundir.
mentos sobre a própria morte, que não é Uma espécie de vale-tudo, que confere
a mesma que em seguida providencia exposição absoluta à voz narrativa e que
para se distanciar do vulgo, que não é a é grande literatura: como diante de um
mesma que se compraz no paradoxo do desconhecido, cujo tipo é familiar e duvi-
defunto autor, que não é a mesma da doso, toda atenção, perspicácia e liber-
preocupação com o galante e o novo, e dade de juízo são poucas para bem ava-
portanto com a moda, que não é a mes- liar a natureza do encontro — intensi-
ma da piada sobre o Pentateuco. O re- dade intelectual que é por sua vez um
vezamento das poses é sem transição, um resultado extraordinário.
exercício de volubilidade, e o resultado A parafernália retórica e a insincerida-
literário depende da vivacidade e fre- de ostensiva fazem paradoxalmente efei-
qüência dos contrastes. Para completar, to de nudez, a mais indiscreta, pelo dese-
a prosa culta — que é pose ela também jo que revelam de manipular as aparên-
— empresta um verniz de respeitabili- cias. Por uma inversão que está na base
dade a pulos, manobras e transforma- da literatura moderna, a desconfiança
ções do narrador, o que lhe disfarça o diante da figuração — cuja inocência está
lado gritante da desfaçatez, ao mesmo posta em dúvida — não abole a reali-
tempo que aprofunda o seu tipo social, dade, mas a desloca para o próprio ato
além naturalmente de causar uma des- de representar, que se torna seu funda-
proporção cômica. Seja como for, é um mento último, sempre interessado. Nestas
andamento que supõe efeitos calculados circunstâncias, a questão não é saber
a cada passo, e uma prosa como que es- se Brás é um memorialista consciencioso
crita diante do espelho. As personifica- mais que um piadista cara-de-pau ou um
ções têm que se erguer e completar no esnobe ou um amigo de sacrilégios, mas
espaço de uma frase, ficando um olho acompanhar o movimento de vontade
na que veio antes, outro na que vem que se realiza, naturalmente que um pou-
depois, e um terceiro no leitor, sem o co à nossa custa, através deste desfile de
que não se assegura o imprevisto indis- encarnações. Em lugar da convenção de
pensável à vida deste ritmo. É fato que veracidade, que as infrações do narrador
a sua dimensão exibicionista e manipu- a todo momento impedem de se formar,
lativa constrange, induzindo a uma leitura cria-se entre autor e leitor uma relação
animada de reservas e má vontade. Estas de facto, uma luta pela fixação do sen-
serão resgatadas e manipuladas por sua tido e também pela rotulação recíproca
vez (não esteja daí a torcer-me o nariz, — que espécie de manhoso é este nar-
cap. IV), fazendo que o leitor expe- rador ? Que espécie de infeliz é este lei-

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tor? — em que um procura rebaixar o tranqüilidade que acompanha este passo,


outro. Assim, a representação flui fran- em que por um momento o leitor escapa,
camente no elemento da vontade, ou me- ou parece escapar, aos manejos do per-
lhor, do arbítrio, e a objetividade é no sonagem-autor. O contraste não podia
máximo uma aparência de que Brás oca- ser mais vivo, mas o cessar-fogo não
sionalmente gosta de se valer. dura. Digamos que os onze amigos que
Na mesma linha, observe-se que a vi- levam Brás ao cemitério são um fato e
vacidade das frases depende sem exceção nada mais, quando aparecem pela pri-
da presença de algum pecadilho, que lhes meira vez. Na frase seguinte, contudo,
dá o picante. Contar absurdos como se transformam-se em despeito, pois onze
fossem verdades, desconsiderar o homem num enterro é pouco, despeito destina-
comum, sacrificar o eterno à novidade, do, aliás, a divertir a galeria. Onze ami-
desacatar a religião etc. São condutas gos!: o acento é amargo, a intenção é
ditas erradas, de que Brás faz praça en- cômica, e estamos de volta às escaramu-
quanto tais. Como não julgar, ainda que ças com o público, onde a realidade e o
para desculpá-lo? Mesmo o leitor atra- pretérito não valem simplesmente, mas
biliário, que no íntimo simpatize com os são pretexto para satisfações atuais e de
abusos da personagem, tem presente a amor-próprio, cuja natureza resta preci-
norma que está sendo desrespeitada. sar. Como tudo mais, o estilo realista
Assim, é o próprio Brás quem obriga ao havia sido um recurso, um registro lite-
juízo moral, ao mesmo tempo que não rário entre muitos, servindo à incon-
faz caso dele, armando uma situação des- sistência discricionária do narrador. De
moralizada e normativa, de inviabilidade outro ângulo, é um primeiro exemplo da
moral em permanência, ou também de constante respiração do texto, da alter-
prepotência impune. Acresce que o re- nância de crispação e distensão.
trato até aqui é puro espírito ou interio- Depois do corpo a corpo com o leitor,
ridade pura, feito a traço exclusivamente das fintas e dos golpes baixos, vem a
de provocações e exercícios de estilo. O indiferença, a que aliás corresponde um
único dado de realidade externo ocorre gozo específico. Ao longo do romance ela
ser um paradoxo — a condição de de- irá se apresentar em várias formas além
funto —, o que lhe retira a índole fatual da imparcialidade realista: pode ser o
e faz também dele uma intenção, algo ponto de vista de Sirius, infinitamente
de interior. Ora, na falta de matéria irre- distante, pode ser a saciedade sexual,
vogável, que configure a ilusão da obje- pode ser o incomensurável desdém dos
tividade e comprometa o narrador a não finados, pode ser a distância na recorda-
se desdizer, o leitor não tem por onde ção, corrido o tempo e cessado o espas-
segurá-lo e lhe fica entregue de mãos e mo (cap. VI), pode ser o sono. Estes
pés atados. A relação narrativa é desleal e absolutos no entanto são muito relati-
a última palavra, privada embora de auto- vos, e longe de serem pontos finais, são
ridade, quem tem é sempre o narrador. sempre pontos de passagem para a reto-
Com o segundo parágrafo passamos a mada da anterior inquietação, que com
outro clima. Em duas frases sabemos de eles compõe um ritmo essencial às Me-
hora, dia e local da morte de Brás, além mórias. Voltaremos ao assunto.
de sua idade, fortuna, estado civil e de
saúde. O alívio trazido por uns poucos
fatos é notável. Em lugar da voz desen- música do primeiro parágrafo,
carnada e inquietante do parágrafo ante- elegante e humorística, está
rior, uma personagem de contornos vi- na sintaxe, em tensão com o
síveis, situada e rotulável; em lugar da que é dito. O leitor interessa-
exposição de motivos do pseudomemo- do consinta em reler a passagem, aten-
rialista, cujo espírito é sardônico, a nar- tando no movimento, e verá o quanto
rativa direta, sem adversário e sem pro- ela é encadeada. O ritmo é estritamente
pósito evidente além da evocação; e em binário, marcado por alternativas, para-
lugar da dicção cheia de segundas inten- lelismos, antíteses, simetrias, disparida-
ções, a presumível boa fé da enumeração des. Assim, de início o narrador hesita
de dados. Estamos no espaço estilístico entre dois modos de abrir as suas me-
do Realismo, cuja postulação de objeti- mórias, se pelo princípio, se pelo fim,
vidade, partilhada por autor e leitor, é disjunção formulada na mesma frase uma
incompatível com o narrador abusado segunda vez, em forma paralela (se pelo
que viemos descrevendo. Daí a pausa de nascimento, se pela morte), só que agora

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em termos de despropósito, realçado pela páveis e remotas, ou por serem tópico
repetição. Mesmo os termos que apare- sério, reservado à filosofia, estas faculda-
cem isolados têm um par implícito, que des não se pareciam prestar como assun-
os faz membros de uma ordem dual: se to de ficção. Machado contudo percebeu
algum tempo Brás hesitou, é que agora nelas uma base estratégica para o estudo
ele não hesita mais; e a dúvida quanto e o exercício da arbitrariedade, tanto que
ao primeiro lugar acarreta outra, quanto a comédia dos interesses implicados na
ao segundo. Brás, que na primeira frase atividade de classificar, esquematizar e
hesitara, decide na seguinte. A opção se abstrair será um dos aspectos originais
faz contra o uso vulgar, e a favor de de sua obra.
outro método, sendo comandada por con- É evidente que esta ordem de proble-
siderações (também duas), o que acentua mas era tabu para o objetivismo e ilusio-
a pretensão ilustrada do narrador. nismo do romance realista, o que colo-
A primeira das "considerações" retoma cava a literatura machadiana em posição
o disparate da frase inicial, para ampli- avançada no século XIX. Por outro lado,
ficá-lo numa adversativa conceituosa (não os desníveis entre o esqueleto sintático
sou propriamente um autor defunto, mas muito armado e as irregularidades do
um defunto autor), duplicada por sua real são humor de filiação inglesa sete-
vez na antítese entre a campa e o berço. centista, o que fez um crítico notar que
Sob pena de quebrar o paralelismo, a se- Machado usava recursos arcaizantes para
gunda consideração devia ela também obter efeitos modernos 2 . Por fim, a 2
Antonio Candido, "Esque-
comportar figuras de linguagem e pensa- mistura da frase mais ou menos clássica ma de Machado de Assis",
Vários Escritos. São Paulo,
mento, e sobretudo manifestar andamen- do primeiro parágrafo à frase realista do Duas Cidades, 1970, p. 22.
to binário. Mas não: sem retórica e sin- segundo, à qual adiante se acrescentarão Pata a prosa inglesa setecen-
tista ver o estudo de Watt,
gelamente ela anuncia a vontade de agra- outras dicções, é parte do bazar estilísti- "The ironic voice", in Ian
co criado pelo historicismo na segunda Watt, o rg., T h e A u g u sta n
dar. Continua a adjetivação em pares (o Age, Nova York, Fawcett
galante e o novo), cuja pouca articulação metade do século XIX. Publications, 1968.

entretanto — não há simetria com a ora-


ção anterior, não há antítese ou contras-
te marcado entre os adjetivos — só acen- ue concluir das observações que
tua o anticlímax, de intenção engraçada. fizemos até aqui? Indicam —
É como se a condução da frase dissesse espero — a profusão e o vulto
que no frigir dos ovos o método e as das conexões implicadas no an-
considerações do autor não se comple- damento da prosa machadiana, e o ex-
tam e são moda pura. Aqui entra Moisés, traordinário contraste das vozes orques-
o da Bíblia, que "também" (quer dizer, tradas em sua música, verdadeiramente
como o seu par brasileiro) contou a pró- complexa. De outro lado, a despeito da
pria morte: entra a título de coisa antiga, diversidade, são observações que conver-
por oposição ao novo, que já se sabe gem para dois temas ligados: a volubili-
quem é. dade do narrador, que é extrema, e o
Noutro plano, ao dividir e subdividir constante desrespeito de alguma norma.
o seu assunto, ao enumerar os termos Vimos que em poucas linhas Brás fin-
que o constituem, ao marcar-lhes a oposi- ge de morto, de metódico, de paradoxal
ção e o contraste, tudo abarcado numa só e de elegante, entre outras coisas. A se-
frase ou num só movimento, esta manei- guir, em sucessão igualmente veloz, ele
ra de expor logiciza o real: apresenta-o será cínico, ligando a seu testamento o
como campo dominado pelo espírito, e elogio que lhe proferem ao pé da cova;
dispõe ou pseudodispõe dele nada menos indiscreto, insinuando que uma das se-
que no conjunto, enquanto totalidade nhoras presentes ao enterro, ainda que
articulada e reduzida ao essencial, sobre não parenta, padeceu mais do que as pa-
a qual triunfou a inteligência. É um pro- rentas; charlatão, explicando um plano
cedimento que supõe a abrangência de para ganhar dinheiro e fama por meio da
vistas, domínio da matéria, capacidade invenção do Emplasto Brás Cubas. Mes-
analítica, de ordenação, de formulação ma coisa se voltarmos atrás, ao prólogo,
precisa e breve etc., sem prejuízo de que onde se alternam negaças, insultos e ape-
estas aptidões estejam em versão apalha- los ao esnobismo do leitor, tudo gover-
çada, o que estende a ação do abuso a nado pelo intuito de angariar público, e
territórios inesperados: à esfera das fa- configurando uma ligeira barretada à ci-
culdades de conhecimento enquanto tais. vilização de mercado. Enfim, buscando
De fato, por envolverem questões impal- generalizar, digamos que o narrador não

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permanece igual a si mesmo por mais de pelo toque insensato, aos materiais do
um curto parágrafo, ou melhor, muda de romance. Digamos então que no curso de
assunto, opinião ou estilo quase que a sua afirmação a versatilidade do narrador
cada frase. Com ritmo variável, a mobili- abusa de rigorosamente todos os conteú-
dade vai da primeira à última linha do dos e formas que aparecem no livro, o
romance. Em lugar de acompanhá-la pas- que lhe proporciona uma espécie de frui-
so a passo, o que no limite levaria a uma ção, e os subordina. Neste sentido ela é,
paráfrase completa, tratemos de enten- como propusemos no início destas pági-
der-lhe a lógica. nas, seu princípio formal.
Há um elemento de complacência nes- Qual a sua esfera? Para alargá-la ao
ta disposição mudadiça, bem como no máximo, o narrador adota envergadura
virtuosismo retórico de que ela depende enciclopédica, aliás em desproporção com
para se realizar. São viravoltas sobre vi- o âmbito acanhado das anedotas que con-
ravoltas, que invariavelmente se acom- ta e que formam o enredo. Esta disso-
panham de uma satisfação de amor-pró- nância é importante e será retomada
prio para o narrador, de cuja superiori- adiante. Por agora note-se que as páginas
dade elas por assim dizer dão prova. iniciais trazem o nome de mais de trinta
Brás, como um seu coleguinha de infân- homens ilustres, personagens literárias,
cia que só brincava de rei, ministro ou monumentos célebres, datas capitais.
general, aspira a uma supremacia, qual- Estão mencionados tempos bíblicos, ho-
quer que fosse (cap. XIII), expressão méricos e romanos, Idade Média, Renas-
que designa bem a experiência que o cimento e Reforma, século clássico fran-
andamento da narrativa persegue e trata cês, Revolução Gloriosa e a unificação
de renovar a todo instante. O instrumen- italiana e alemã3. 3
Conforme Augusto Meyer,
"De M achadinho a Brás
to são as mudanças bruscas a que nos Para que não haja dúvida quanto à Cubas", Revista do Livro.
referimos, em que por definição e caso jurisdição que a volubilidade se dá, o ca- Rio de Janeiro, Instituto Na-
cional do Livro, setembro de
a caso algo se rompe em conteúdo ou pítulo do delírio — uma outra forma de 1958, n.° 11, p. 15. As obser-
vações e deduções de Meyer,
forma, e nas quais o capricho despótico exorbitância mental — vai da origem à neste e noutros estudos, são
do narrador-personagem se impõe. A consumação dos tempos, uma vez de trás o ponto alto da crítica ma-
chadiana. Conservam força de
cada inconstância este se subtrai, dá um para diante, e outra de diante para trás. revelação notável apesar do
envelhecimento de seu quadro
quinau no público, e pela enésima vez Em diapasão mais discreto, há também o teórico, o que aliás ilustra a
se afirma espirituoso, além de vencedor. enciclopedismo tácito das referências cul- independência relativa entre
conceituações adotadas, per-
O caráter forçado deste humorismo salta turais, dissolvidas na variação dos pontos cepção literária e capacidade
de expressá-la. Meu trabalho
aos olhos e terá vexado muitos leitores. de vista. Assim, no extraordinário capí- deve muito às formulações de
Entretanto, o curso do livro não só o tulo II, que trata da invenção do Em- Meyer.
resgata, como o valoriza ao extremo: plasto Brás Cubas, este último é apresen-
trata-se da acentuação deliberada, beiran- tado sucessivamente como idéia grandiosa
do o didático, de aspectos autoritários e e útil; como idéia fixa, que se pendu-
malignos da volubilidade que tentamos ra por conta própria no trapézio cere-
caracterizar. bral; como panacéia anti-hipocondríaca,
O movimento completa-se, no plano destinada a aliviar a nossa melancólica
da forma, pela babel das modalidades humanidade; como objeto de uma peti-
literárias: trocam-se estilos, escolas, téc- ção de privilégio dirigida ao governo,
nicas, gêneros, recursos gráficos, tudo com alegações caridosas e propósitos lu-
comandado pelo mesmo afã de uma supe- crativos; e como oportunidade de ver
rioridade "qualquer". Assim, a narrativa impressos nos jornais, mostradores, fo-
passa do trivial ao metafísico, ou vice- lhetos, esquinas e enfim nas caixinhas
versa, do estrito ao digressivo, da pala- do remédio, estas três palavras: Emplas-
vra ao sinal (o capítulo shandyano, feito to Brás Cubas.
de pontinhos, exclamações e interroga- Respectivamente, as referências são o
ções), da cronologia à marcha à ré no ideário liberal-burguês; a filosofia do in-
tempo, do comercial ao bíblico, do épico consciente (em transposição cômica); o
ao intimista, do científico à charada, do contraste entre a cura antiga e a medici-
neoclássico ao naturalista e ao chavão na moderna; o patrocínio governamental;
surrado etc. etc. Os contrastes são inú- a finalidade cristã; a finalidade capitalis-
meros, entre frases, entre parágrafos, ta; e a síntese, na mania do anúncio,
entre capítulos, mas o efeito visado é entre a velha vaidade e o novo espírito
um só, a satisfação da mesma constante comercial. Pode-se imaginar um emplasto
veleidade. Mais que baixo contínuo, esta mais completamente universalizado? Para
é a mediação geral que dá pertinência, terminar, nem espaço e tempo, estes re-

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dutos do senso comum, estão a salvo: a se em licença: resta o estoque das coisas
volubilidade os comprime, dilata e per- humanas, esvaziadas de normatividade,
corre em todas as direções, conforme lhe equivalentes na sua mecânica risível, ba-
dá na veneta. Noutras palavras, um show nalizadas e oferecidas ao bel-prazer de
de cultura geral desabusada, uma espé- um homem culto, cuja fisionomia de clas-
cie de universalidade de pacotilha, na se peculiarmente nacional — especiali-
melhor tradição pátria, em que o capri- dade literária de Machado de Assis —
cho de Brás Cubas toma como província examinaremos depois. É uma combinação
a experiência global da humanidade e se entre outras possíveis de visão moderni-
absolutiza. Já não se trata de uma dispo- zada e arbítrio — com multiplicação de
sição passageira, psicológica ou estilísti- forças para este último —, um tema cujo
ca, mas de um princípio rigoroso, que se peso histórico não parou de crescer, e
sobrepõe a tudo, e que portanto se expõe ao qual a obra machadiana deve algo de
e se pode apreciar em toda linha. Esta sua relevância.
universalização forma o eixo que dá po- Para quem duvida da clareza que o
tência ideológica às Memórias. escritor tinha a respeito desta mistura,
basta lembrar o "Conto Alexandrino"
(Histórias sem Data, 1884), onde expe-
ssim, desde a abertura o ro- rimentação científica, sadismo e poder
mance apresenta um narrador- estão explicitamente articulados, ou tam-
personagem que dispõe do todo bém "O Alienista" (Papéis Avulsos,
da radição ocidental com espe- 1882), que liga pseudociência com terror
tacular desenvoltura. A sua superiorida- político, e ainda os muitos exemplos de
de consiste em não se dar jamais por maldade "ilustrada" que já vimos na fi-
achado, a olhos alheios ou aos próprios, gura de Brás Cubas. Por fim, na mesma
e se afirma através da desidentificação linha, anote-se o paralelo com a já men-
sistemática de si mesmo, cuja contrapar- cionada ambivalência das classes domi-
tida é a constante adoção de novos pa- nantes brasileiras, que são e que se que-
péis, logo postos de lado por sua vez. rem parte das Luzes e da burguesia mun-
Ao longo deste movimento são deixadas dial em constituição, mas isto através
umas pelas outras, tendencialmente, to- da operação — esclarecida — de um sis-
das as idéias e formas à disposição de tema de relações escravistas e cliente-
um homem culto do tempo, que ficam listas.
relativizadas, e também estereotipadas.
Estas substituições, com os contrastes su-
mários e a dose de indiferença que su- expansão do capricho nas Me-
põem, não são certamente um processo mórias Póstumas é por assim
crítico, de que no entanto elas têm a irre- dizer grandiosa. Virtualmente
verência e o gosto pela demolição. Brás lhe submete a totalidade
Analogamente, a sem-cerimônia com dos assuntos e das formas, nada menos,
que Brás circula entre espaços tradicio- o que, seja dito de passagem, requer in-
nalmente distantes e inconciliáveis, igua- venção literária variada e em grande esca-
lando-os enquanto apoios de uma mesma la, sem a qual aquela sujeição não se
verve, depende de pressupostos que não concretizaria. Mas é certo também que, a
são propriamente seus. Ela é impensável despeito da superioridade de todos os
sem o — anterior — trabalho enciclo- momentos, o narrador faz figura sempre
pédico de secularização e unificação do de inferior. Como explicar a inversão,
domínio humano, trabalho de cujo esfor- ou por outra, o efeito de superioridade e
ço não participa, mas cujos resultados re- diminuição concomitantes? No essencial
colhe, e aos quais imprime uma nota de ele se deve à sombra lançada pela defi-
irrisão. A universalização da volubilidade nição burguesa e pejorativa da volubili-
no caso significa a incorporação dos re- dade, que faz que o primado desta apa-
sultados da Aufklaerung, sem o processo reça como deficiência notória, além de
correspondente, tudo a bem de um seu ubíqua, deficiência aliás que se pode en-
oposto, configurado no movimento da tender em registro metafísico (a preca-
obra. Uma forma, assim, a que não fal- riedade do espírito humano "em geral"),
tam alcance nem implicações. Separada e em termos de história contemporânea
do ímpeto crítico e reformador, e redu- (como particularidade e sinal de atraso
zida ao conjunto de seus produtos, a da sociedade brasileira). As duas leituras
Ilustração troca de sinal, transformando- se impõem, e melhor que preferir uma

JANEIRO DE 1985 47
UMA DESFAÇATEZ DE CLASSE

delas é interpretar a sua coexistência, o pessoal sobressai, critério que por sua vez
que exige tino e apreciação do movimen- detecta e assinala a presença do capricho
to global do livro. em toda parte, sobretudo na pretensa
De outro ângulo, mais ligado às ane- objetividade do outro, que o condena.
dotas do romance, aquele efeito simultâ- Onde a superioridade, e que partido to-
neo de domínio e desprestígio tem a ver mar? Fundadas no interesse prático de
com o refluxo da vida narrada sobre a uma mesma classe social, tão ligada à
voz que a está narrando. À medida que a regra burguesa quanto ao aspecto discri-
leitura avança, nos familiarizamos — em cionário de escravidão e clientelismo, as
ato — com o ritmo e a abrangência da duas apreciações existiam, tinham por si
imaginação de Brás. Ao mesmo tempo, a caução de experiência e necessidade, e
no plano dos assuntos que lhe compõem mais verdadeiro que o seu antagonismo
o mundo, multiplicam-se os casos de de- era a sua acomodação, incongruente e
sarranjo mental. Já nas primeiras páginas vantajosa, uma das marcas da inscrição
aparecem o delírio, a idéia fixa da fama, "teratológica" do país na cena contem-
a mania genealógica, a mentira acompa- porânea.
nhada de convicção etc., configurando
um campo de maluquices rotuladas, a
que a volubilidade insopitável do memo- forma, acompanhando neste pon-
rialista — a sua obsessão da supremacia to o cotidiano das classes do-
qualquer — se integra com naturalidade, minantes, não trata de drama-
como uma instância a mais. tizar e levar ao desfecho a opo-
Na mesma linha, existe parentesco sição entre aqueles pontos de vista. Mas
entre a soberana liberdade de espírito de vai além, na medida em que os faz coe-
Brás, com metafísica e tudo, e o univer- xistir e alternar em espaço ultra-exíguo,
so subalterno de falsificações genealógi- com ânimo sistemático, sublinhando os
cas, emplastos milagrosos e necrológios efeitos desencontrados de seu convívio.
interesseiros, que é seu e em que ele se Resulta uma condensação com muito al-
compraz, universo circunscrito e desclas- cance brasileiro e satírico, onde a incon-
sificado, de muito sabor localista, onde sistência de critério, ou melhor, a duali-
cabem perfeitamente as exibições de falsa dade das medidas figura como realidade
cultura e o gosto fácil do narrador pela permanente e inexorável, prova simultâ-
pseudofilosofia e pelo gênero apologal4 . nea de inferioridade e superioridade que 4
Antonio Cândido, no estu-
A unidade profunda do livro depende contextualiza a totalidade das matérias do citado, assinala a ligação
deste parentesco, cuja substância adiante do romance. Para complicar, note-se ain- entre o exibicionismo filosó-
fico e o estado de cultura
ficará mais clara, e que é mais uma ver- da que a estilização machadiana de pree- nacional. "Poder-se-ia dizer
que ele (Machado de Assis)
são da ambigüidade que acompanha a minência local do capricho se faz segundo lisonjeava o público mediano,
gesticulação narrativa das Memórias: ele- o modelo literário da whimsicality ingle- inclusive os críticos, dando-
lhes o sentim ento d e q ue
gância suprema, ilusão provinciana, falta sa... eram inteligentes a preço mó-
dico" (p. 19).
de compostura elementar? Noutras palavras, a volubilidade de
Assim, a volubilidade é um ponto de Brás Cubas é um mecanismo narrativo
vista universal, a que nada escapa, sem em que está implicada uma problemática
prejuízo de ser igualmente uma tolice nacional. Esta acompanha o curso do li-
bem marcada, de efeito pitoresco, localis- vro, ainda quando não é explicitada ou
ta e atrasado. Ora ela é a substância e mesmo visada. Cria-se um efeito de com-
a verdade crítica do mundo, em que tudo plexidade tácita, presente em todos os
mais é ilusão, ora é ela que é ilusão e momentos, mesmo os aparentemente sin-
objeto de sátira, quando então é vista gelos, que é um fato de composição e,
sobre fundo de norma burguesa e como naturalmente, um trunfo da prosa de fic-
elemento de caracterização. Esta instabi- ção machadiana. São propriedades por
lidade básica, longe de ser um defeito, é assim dizer automáticas de um dispositi-
um resultado artístico de primeira força, vo literário, que fala linguagem própria,
que dá a objetividade da forma a uma e pode ser estudado quase em abstrato.
ambivalência ideológica indescartável no (Continua)
Brasil de seu tempo. O critério burguês,
ilustrado e europeu, para o qual o capri-
cho é uma fraqueza, não é mais nem me- Roberto Schwarz é professor de Literatura na Unicamp.
nos real ou "nosso" que o critério ema-
nado de nossas relações sociais não-bur- Novos Estudos CEBRAP, São Paulo
n.° 11, pp. 40-48, jan. 85
guesas, em que o elemento de arbitrário

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