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S
BORBA
MA C HA D O
D E A SSIS
O ESTILO MACHADIANO
Machado de Assis tem um estilo inconfundível de escrever, embasado nas correntes filosóficas e
cientificas de seu tempo, com um ar sarcástico e niilista, seguindo os ideais do Realismo/Naturalismo,
descreve com fidelidade os personagens e seus conflitos psicológicos e sociais. Através de uma
narração introspectiva profunda, com objetividade e detalhismo, disseca com sapiência e bom-humor
os acontecimentos da obra.
Ele representa a transição do Romantismo para uma nova forma de fazer literatura, onde se misturam
o Realismo, o Naturalismo, e na poesia, o Parnasianismo. Em todos, o sujeito é condicionalmente
determinado, seja pela “coisificação” realista ou pela “zoormofização” naturalista. Entretanto, é
didaticamente fundamental distinguir o Realismo do Naturalismo. Este se diferencia daquele por
conduzir a ciência para o plano da obra de arte, fazendo desta um meio de demonstração de teses
cientificas, especialmente a psicopatologia. O Naturalismo traz para obra uma visão biológica e
instintiva. Ao contrário, o Realismo, mais esteticizante, embora se apóie nas ciências, apenas fotografa
com certa isenção a realidade circundante, não traz dissertativamente às ciências para o plano do
papel.
Gustave Flaubert (séc. XIX)
Rubião fitava a enseada, — eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares
metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele
admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra
coisa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora?
Capitalista. Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis, que lhe deu recente
amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o
céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade.
(ASSIS, 2014, p. 51)
Personagem mutante:
Além das mudanças também presenciamos uma reflexão sobre as transformações ocorridas com
o personagem na passagem de uma condição para a outra. Para o autor:
Enquanto examina seu ―novo mundo, Rubião não deixa de refletir, com a
satisfação constrangida da vitória sem mérito, sobre o ―acaso que, muitas vezes,
decide o destino dos homens, dando a uns a fortuna, a outros a desgraça. Recorda
com certo desconforto que poderia estar vivendo noutra situação (provavelmente,
ainda mestre-escola em Barbacena), no caso tivesse realizado o casamento de sua
irmã Piedade com Quincas Borba, como pretendera. (OLIVEIRA, 2013, p. 69)
Personagem protagonista II:
∙ O cão Quincas Borba também é um personagem protagonista no romance, a prosopopéia utilizada pelo narrador fez do
cachorro uma projeção e um prolongamento, por metempsicose, do filósofo de mesmo nome. Logo após a morte do
filósofo, o cão passa a ter um comportamento cada vez mais humano, herdando o mesmo senso de observação do seu
antigo dono na interpretação das ações alheias:
∙ Olho para o cão, enquanto esperava que lhe abrissem a porte. O cão olhava para ele, de tal jeito que parecia estar
ali dentro do próprio defunto Quincas Borba; era o mesmo olhar meditativo do filósofo, quando examinava
negócios humanos. (cap. XLIX)
∙ Mas, no machadianismo sarcástico de sempre: “São idéias de cachorro, poeira de idéias, - menos ainda que poeira,
explicará o leitor.”
∙ Uma das possibilidades de se entender a pretensão do autor com essa alegoria do cachorro é perceber a metamorfose do
filósofo em cachorro como uma maneira de acompanhar a demonstração do Humanitismo. O cachorro tudo acompanha,
como se fosse o filósofo, só que agora condenado ao mutismo. Observe sua reação no momento em que Cristiano Palha
propõe sociedade com Rubião:
∙ Quincas Borba, que estava com ele no gabinete, deitado, levantou casualmente a cabeça e fitou-o. Rubião
estremeceu; a suposição de que naquele Quincas Borba podia estar à alma do outro nunca se lhe varreu
inteiramente do cérebro. Desta vez chegou a ver-lhe um tom de censura nos olhos; riu-se era tolice; cachorro não
podia ser homem. Insensivelmente, porém, abaixou a mão e coçou as orelhas ao animal, para captá-lo. (cap. LXIX)
A ironia machadiana:
capítulo CXVII:
A história do casamento de Maria Benedita é curta; e, posto Sofia a ache vulgar, vale a pena dizê-la. Fique,
desde já, admitido que, se não fosse à epidemia das Alagoas, talvez não chegasse a haver casamento; donde se
conclui que as catástrofes são úteis, e até necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi
em criança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona –
um triste molambo de mulher, - chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo
passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela. – É minha, sim, seu
senhor; é tudo o que eu possuía nesse mundo. – Dá-me licença que ascenda ali meu charuto? O padre que me
contou isso certamente emendou o texto original; não é preciso estar embriagado para ascender um charuto
nas misérias alheias. Bom Padre Chagas! – Chamava-se Chagas. Padre mais que bom, que assim me incutiste
por muito anos dessa idéia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mau aos outros; não
contando o respeito que aquele bêbado tinha ao principio da propriedade, a ponto de não ascender o charuto
sem pedir licença a dona das ruínas. Tudo idéias consoladoras. Bom Padre Chagas!
“O homem é o lobo do homem”. Thomas Hobbes
O Humanitismo é antropocentricamente existencialista. É o principio universal de que o homem é uma parte na sua
humanidade. Todavia, o Humanitismo se distancia do Existencialismo por condicionar o sujeito e negar o livre-
arbítrio. Metonimicamente podemos entender essa filosofia do livro, na seguinte alegoria do capítulo VI:
Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de
uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é princípio universal e
comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõem tu, um campo de batatas e duas tribos
famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a
montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as
batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a
destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da
vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não
fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o
que lhe aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que
virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas!
Capitalista proletário:
Apesar da riqueza monetária, Rubião continuava com o pensamento de professor,
desconhecendo a lei do mais forte e prevalecendo nele a visão limitada de uma sociedade
pequena em um mundo não capitalista. Almejava a riqueza, contudo, a ingenuidade
prevalecia em si.
Ideou as batatas em suas várias formas, classificou-as pelo sabor, pelo aspecto,
pelo poder nutritivo, fartou-se antemão do banquete da vida. Era tempo de
acabar com as raízes pobres e secas, que apenas enganavam o estômago, triste
comida de longos anos; agora o farto, o sólido, o perpétuo, comer até morrer, e
morrer em colchas de seda, que é melhor que trapos. (ASSIS, 2014, p.71)
O que dizem sobre Quincas Borba:
∙ A vida de Rubião depois que se torna capitalista nos permite compreender como se constituem as
relações sociais do segundo Império, durante o qual os interesses pessoais sobrepunham-se a
todos os valores e princípios, sendo constante o sistema de exploração em que os próprios
indivíduos enxergam na figura do outro a possibilidade de obter vantagens financeiras. (OLIVEIRA,
2013, p. 74)
∙ Segundo Silva (2008), além do dinheiro de Quincas Borba e do cão, Rubião também recebe a
loucura como herança. Para o autor esta loucura era semelhante a das fantasias vendidas pela
sociedade burguesa.
Loucura:
Mais do que ironicamente, Machado dentro do realismo literário se apropria do personagem Quincas Borba para
questionar em (supostamente) estado de loucura: o que é a realidade? Como diria Erasmos de Rotterdam, escritor do
Renascimento Cultural, em “Elogio da Loucura”: Só se costuma defender a verdade quando não se é atingindo por ela.
A loucura de Rubião o transformou no “Napoleão de Botafogo”, assim como a de Quincas o transformou no “Filósofo de
Barbacena”. Todavia essa loucura napoleônica também pode ser quixotesca. Ambos acreditavam doentemente na sua
ideologia, analogicamente como o personagem de Cervantes, o que poderíamos entender não como loucura patológica,
insana, mas como loucura critica e contestadora de um mundo falso. A palavra “ideologia” quando criada pelo seu
idealizador Desttut de Tracy recebeu a alcunha de “deformadora da realidade” por parte do General francês Napoleão
Bonaparte. Embasado na sua filosofia, a “deformação da realidade”, em Quincas Borba, tem um sentido positivo, um
sentido quixotesco, não napoleônico.
A loucura, tema fascinante, ela alimenta a irascível fúria de Orfeu, delírios que fizeram Van Gogh decepar a própria orelha.
A loucura de Rubião acaba, enfim, identificando com Quincas Borba, por processo análogo ao da quixotização de Sancho
Pança, uma vida despojada de ilusões. E assim, no capítulo CC:
Poucos dias depois, morreu... Não morreu súdito nem vencido. Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs a
coroa na cabeça – uma coroa que não era, ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde espectadores palpassem a
ilusão. Não, senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro,
rútila de diamantes e outras pedras preciosas.
Para encerrar...
Os delírios do protagonista aumentavam de forma que lhe restara apenas a internação. Esses delírio,
segundo Freud (APUD Bauman, 2007), tinham em decorrência a busca pela lógica dos fatos, já que o
sofrimento humano provém da fragilidade de nossos corpos e das inadequações humanas
(BAUMAN, 2007, p. 61)
Preocupado com a forma do romance, mas não menos com o legado dos homens, Machado fere a
cada um que o lê com uma crítica que reflete e pensa aquilo que fazemos sobre a terra. De modo
perspicaz abre as feridas mediante chacota, piparote e riso.
Em Quincas Borba, há uma dura exposição das relações humanas. O texto é perpassado pelo desejo
humano de lucrar. Para a satisfação de sua vontade, o homem passa por cima do outro, sem
qualquer consideração pela vontade alheia. Esse comportamento deságua em uma confluência de
interesses especular à luta darwiniana, o que desvela uma sociedade egoísta. Em vez de apresentar
as classes, Machado exibe as paixões individuais. Analogamente desconstrói todo o corpo social,
criando perfis.