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Com certeza algo mudou. Quem sabe até eu, que nasci ca-
reta como todo o marxismo ocidental uspiano, no qual me
1
formei. Está aí um bom começo de conversa. Se é verdade,
como vocês mesmos dizem, que a minha "compreen ão do
antiproibicionismo se deu aos poucos e à distância': e po-
nha distância nisso, talvez não seja demais remontar àquele
marco zero. Como se há de recordar, um marxi mo cujo
foco estava mais nos impasses da industrialização bra ileira
do que na ruptura propriamente anticapitali ta, orno ob-
servou Roberto Schwarz ao dar um balanço no eminário
Marx, na esteira da eleição presidencial de um de eu mem-
bros. Sim aquele mesn10 que 1nuito ano depoi e trelaria
um filme de coloração antiproibicionista, mais exatamente
em sua variante terapêutica, já que não se pode em sã con -
ciência criminalizar quem precisa ser tratado, não é mesmo?
Lembram-se dos "inimpregáveis"? Pois é, quem acha que
. . · d beça Verde
pode viver de bnsa deve ser mesmo ruim a ca ·
por verde, também noutro filme para quebrar tabu ' eu
· r1 mo de -
coleguinha Al Gore advogaria a causa do capita
1Q · · rem etia ma ·
ue infelizmente ficou por aí mes mo. O roteiro P '
. 113?
Drogas e autonomia
carbonizado, por assim dizer desintoxicado R t
. . . . es a sabe
esse ligeiro sopro de esclarecimento resistirá à d r e
on a te
brosa da atual maioria conservadora quando cheg ne~
ar a hor
de fechar o pacote do impeachment. Logo saberemo s. ª
Voltemos à minha formação, quer dizer, à formaç~ d
. . . ao os
meus maiores, revista agora por esse pnsma inusitado Es
· pero
não estar armando um falso problema, mas pensando bem
nada mais "caretà' do que a obrigação, herdada de uma long;
tradição construtiva, de encontrar uma "saídà' para O Brasil,
tirar nosso "atraso" relativo, mesmo quando repensado em
termos de forças produtivas e relações sociais de produção,
afinal era preciso <'dar certo" como dera certo o capitalismo
nos países "avançados". Sei que além de esdrúxula e abusiva,
tal desqualificação pode soar anacrônica, pois as objeções
da contracultura à paranoia militante são bem posteriores,
mesmo assim uma espécie de caretice avant la lettre parecia
aflorar em todo aquele empenho em se integrar no universo
da alienação bem sucedida, pelo menos no núcleo orgânico
do sistema. Digamos que para efeito de argumentação estou
acrescentando um ingrediente extemporâneo ao paradoxo
básico de nossa Tradição Crítica, o extenso arco de reflexão e
providências práticas em torno das incongruências colossais
de uma sociedade periférica: convivendo numa espécie de
plataforma viva de objeções à barbárie capitalista, a começar
pela invenção moderna da mercadoria-escravo, uma dimen-
são afirmativa de acatamento do processo de modernização
no seu conjunto, exprimindo-se antes de tudo na instituição
de dispositivos de governo destinados em princípio a extir-
par as raízes coloniais de nosso capitalismo torto e tosco.
E assim sendo, por mais críticos e subversivos que fossem
nossos surtos de inconformismo, estávamos condenados
ao espírito encasacado da construção nacional a qualquer
preço, que poderia bifurcar tanto à esquerda quanto à di-
. reita, sem perder por isso seu congênito esprit de sérieux .
uma ética do trabalho, em suma, e como tal, expressão de
uma vocação tácita para a responsabilidade. Essa a caretice
originária. Da qual não escapariam nossos virtuais «camara-
das caretas" do marxismo ocidental uspiano. Nem haveria
nada que pudessem fazer a respeito. Era esse o preço a pagar
,
por um marxismo que só poderia ser de cátedra numa Fa-
culdade "sérià' como era a nossa e tanto mais séria quanto só
assim seria levado cientificamente a sério seu modesto radi-
calismo de classe média, como Antonio Candido descreveria
0 impulso anti-oligárquico que presidira sua fundação por
dissidentes daquele mesmo establishment que se oferecera o
luxo do transplante de uma escola europeia. Nem em sonho
um chatoboy, como escarnecia dos rapazes muito estudio-
• sos da revista Clima Oswald de Andrade, abriria as portas
da percepção à maneira do contemporâneo Aldous Huxley,
salvo com intuitos etnográficos, isto é, sérios. Seria bom
ressaltar que tampouco Oswald era antropófago em tempo
integral mas também pai de família fora do expediente, as-
sim como Mário de Andrade não era só desvairio futurista
mas igualmente o cidadão esclarecido à frente de iniciativas
de utilidade pública como um Departamento de Cultura, só
para lembrar a abrangência, e o caráter entranhado como
um destino, da dualidade básica da referida Tradição Crí-
tica, um _pé do contra, outro a favor, como assinalou certa
vez o mesmo Antonio Candido. Um sociólogo Presidente da
República não é assim um desvio de conduta, nem conver-
são libertária aliviar a barra dos usuários criminalizados por
motivo de um "vício" outrora elegante.
O revertério de 64, que apanhou toda a esquerda no con-
trapé, por assim dizer trancafiou-nos a sete chaves em nossa
caretice estudiosa. Quem não levava jeito para luta clandes-
tina aliviava a consciência estudando em dobro, contribuição
□rogas e autonomia 1 15 7
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corrupçao caos gcopo11tico generalizado. Sua crise não , d'
ontc1n (2008), mas se arrasta por várias décadas desd e e
e que em
meados dos anos 1970 se declarou uma incurável cri· fi
se 1scal
do Estado, graças a qual converteu o Estado dos Impostos
num Estado da Dívida e este enfim, num Estado da Au teri-
dade sem fim. O sistema não passará assim desta para melhor
por morte súbita, embora seu estado seja crítico e a doença,
sem dúvida mortal. O quadro clínico é assim o de uma ine-
quívoca degradação imunológica. Um a um seu mecanismos
de resistência vão sendo destruídos, a começar pelo lastro ma-
terial das três mercadorias fictícias segundo Karl Polanyi, 0
anticorpos fundamentais, trabalho, natureza e dinheiro, que
carecem de instituições inibidoras do dano para obre,iver
enquanto valores de uso. Com a agravante de que as de or-
dens nessas três áreas, trabalho, terra e dinheiro, convertida
em zonas de crise permanente, são imultâneas, sintoma
concomitantes reforçando-se mutuamente.
O diagnóstico de morbidez avançada comporta ainda
a constatação mais sombria de que a progre são da doença
foi se encarregando de agravar os danos atra és do instinto
adaptativo dos futuros afogados: trabalhadores que conside-
ram um desafio competitivo estimulante um regime que lhe
consome cada vez mais tempo e mais vid a; cidadãos que ree-
legem governos cada vez mais "austeros" no corte do gasto
sociais e privatizações de serviços públicos; cada , ez mai