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Entrevista com
Otília Beatriz Fiori Arantes
Professora de Estética do Departamento de Filosofia da USP de 1973 a 1993
A entrevista foi concedida por escrito e contou com a colaboração do Prof. Dr. Jorge de Almeida,
docente do Departamento de Teoria Literária da Universidade de São Paulo, para a formulação
das perguntas.
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Hyppolite e Jean Cassou. Não preciso principal (?), tinha que preparar meu
insistir no significado de uma primeira mestrado sobre a Crítica de Arte em
estadia em Paris para uma jovem brasi- Baudelaire!
leira de província precisando completar Nesse meio tempo tornei-me
(ou iniciar) sua educação estética. monitora no Departamento de Filosofia
Entre uma aula e uma visita a museu, da USP. Como não tinha escolha (talvez
não posso negar muita excursão de por não ser uma uspiana de carteirinha),
puro turismo cultural, feito porém na dava aulas para os alunos da Psicologia.
idade certa. Na medida do possível procurava trazer
De volta ao Brasil (tendo me casado e o programa para perto dos meus
passado a residir em São Paulo), interesses, daí um curso sobre as teorias
matriculei-me na pós-graduação do da Imaginação, tendo Sartre como
Departamento de Filosofia da USP – da roteiro. Voltei ao assunto em 69, quando
qual acabei de falar. Ao mesmo tempo comecei a dar aulas no Departamento
era obrigada a diversificar minhas de Filosofia da PUC, mas desta vez
atividades. No período que vai de 1966 a ficando principalmente nas filosofias
1968, compromissos escolares, carga da Idade Clássica.
didática excessiva (as aulas na PUC, Nova estadia na França (1969/73)
onde comecei a minha carreira de rendeu-me outro capítulo, agora mais
professora universitária, pareciam não amadurecido, de minha educação
ter fim), levavam inevitavelmente à estética, sobretudo clássica, pois a
dispersão. Mas como era ainda tempo de vanguarda abandonara Paris fazia
estudar o básico, acabei aproveitando. tempo. Mas coincidiu também com
Assim, tive que dar cursos de Introdução o primeiro surto do pós-estruturalismo.
à Filosofia – onde obrigava os pobres Como todo o mundo, embora estivesse
alunos de Ciências Sociais a lerem metida com o século dezenove devido
Heidegger e Merleau-Ponty – e de à tese, era difícil deixar de acompanhar
Epistemologia das Ciências Sociais – a produção em alta de Foucault, Barthes,
de Durkheim ao Estruturalismo... Sem Deleuze, Derrida, etc. Era difícil resistir,
contar que na época das famosas sobretudo sem alternativa à vista.
paritárias de 68, coordenei a de Ciências Voltando ao Brasil, caí em tentação,
Sociais da PUC e, portanto, o curso sinal de que ainda não completara meu
“piloto” que foi montado – onde dei ciclo de disponibilidade escolar. Armada
aulas sobre tudo: desde as Meditações do novo jargão “desejante”, tentei
cartesianas de Husserl aos textos de refutar em aula, num curso de pós-
Brecht ou dos Frankfurtianos. Foi uma graduação, e depois num estudo
loucura! Num certo sentido, era a minha publicado na revista Discurso n°7, a
guerrilha... E ainda, como tarefa propósito da interpretação de Klee, as
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tese de livre-docência, datada de 1949, encerrei meu livro sobre seu itinerário
apresentada na Faculdade de crítico).
Arquitetura da Escola de Belas Artes do Após a morte de Mário Pedrosa,
Rio de Janeiro, ainda inédita – recolhi, a pedido de amigos,
Da natureza afetiva da forma na obra especialmente do amigo e ex-secretário
de arte – em que a inspiração da Gestalt Darle Lara, e com a ajuda da esposa
era muito forte. Novamente é Dona Dona Mary, um enorme material,
Gilda que está na origem deste meu disperso em jornais e revistas (muito
trabalho. Embora o Bento Prado, ao ser pouca coisa fora reunida em livro), que
publicada a coletânea organizada por organizei numa edição de 12 volumes.
Aracy do Amaral, na Perspectiva, em Logo saí, em vão, à procura de quem os
1976 – Mundo, homem, arte em crise publicasse (hoje está à disposição dos
–, tivesse me sugerido que escrevesse a pesquisadores em algumas bibliotecas
respeito, foi quando Dona Gilda, dois da USP). Finalmente, quando eu já tinha
anos mais tarde, vinda do Rio, entregou- quase desistido, Sérgio Micelli, na
me alguns textos inéditos de Mário, direção da EDUSP, chamou-me para uma
entre eles a tese, que comecei a estudar edição de Obras escolhidas – ele havia
regularmente seus escritos. Nesse meio pensado num volume, mas acabou
tempo estive com ele uma meia dúzia de aceitando que fossem quatro
vezes, em São Paulo e no Rio, participei (publicados entre 1995 a 2000). Durante
da homenagem a ele na Bienal, por o trabalho de pesquisa, na década de 80,
ocasião dos 80 anos, e estive umas três além de cursos sobre Mário Pedrosa,
vezes no seu apartamento na Visconde publiquei vários ensaios sobre ele e,
de Pirajá. O Mário já estava então muito finalmente, um livro, em 1991, Mário
doente, mas tivemos algumas conversas Pedrosa, itinerário crítico (retomado
muito instrutivas, inclusive tive a chance com algumas alterações e acréscimos
de poder avaliar ao vivo a performance nos prefácios dos quatro volumes da
do crítico quando ele fez questão, EDUSP).
embora já tivesse dificuldade de se Nesse estudo concebi o referido itine-
locomover, de que visitássemos juntos a rário nos seguintes termos: ao mesmo
exposição que o Jean Boghici organizara tempo em que procurava reconstituir
em sua homenagem. Pude então, seu projeto de modernização da arte
comovida, acompanhá-lo no passeio no Brasil, um país que a seu ver estava
entre as obras, comentando várias delas “condenado ao moderno”, tentei refazer
– lembro-me bem do destaque que deu à alguns capítulos (arte abstrata, Arqui-
Cara de cavalo do Oiticica e à tela da tetura Nova e Brasília, etc.) do processo
Mira Schendel que se achava na vitrine real de evolução da arte brasileira, uma
da Galeria (com a qual, por isso mesmo, tendência cuja realização afinal frustrou
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temente técnica para recair no vasto uma só, ora é vista como inteiramente
domínio passepartout do “cultural”. cultural, ora como puramente
Portanto, quem hoje em dia mexe econômica.
com a arquitetura da cidade e demais Falsa oposição, dirá Jameson ao
tópicos adjacentes, cuida menos de uma entrar no debate nos anos 80, “tudo é
especialidade nova e batizada de cultural” obviamente por razões
transdisciplinar do que possivelmente econômicas. Não há como discordar.
do capítulo central do debate contem- À atual “apoteose do dinheiro” (na
porâneo – um campo de forças técnicas, expressão de Robert Kurz, literalmente:
artísticas e políticas marcado pela “a ascensão do dinheiro aos céus”) se
ascendência inconteste do supracitado deve o ímpeto peculiar de três setores
“cultural”. Pretendi mostrar em vários (em termos de “acumulação”), o
textos e falas como as políticas urbanas financeiro, o de tecnologia de ponta
são cada vez mais políticas culturais. (informática, telecomunicações,
Identificação nada arbitrária, pois é aeroespacial, etc.) e justamente o da
um fato indiscutível que a cidade foi se cultura mercantilizada, dita multimídia:
transformando em uma instância – ou seja, o triunfo da economia de
privilegiada mas de qualquer modo mercado redundando numa brutal con-
indiscernível – do assim chamado “cul- centração e financeirização da riqueza,
tural”, quando todas as coisas parecem a “cultura” tornou-se um grande negócio
virar cultura, ou ainda, sendo mais – da indústria cultural de massa
precisa, “bem cultural”. Expressão que (clássica) ao passo mais recente da
aliás não é nova porém denuncia uma intermediação cultural e correspondente
nova convergência, a saber, de dois consumo gentrificado (estudado pelo
diagnósticos de época em princípio Featherstone, na trilha do Bourdieu,
mutuamente excludentes: a) no atual chegando por aí até ao “consumo” da
estágio da sociedade de consumo, cidade).
a cultura – antes esfera autônoma e Já em meados dos anos 60, Guy
separada – tornou-se coextensiva Debord, no parágrafo§ 193 da Sociedade
à sociedade, que por isso mesmo passa do espetáculo, dizia, de forma
a ser denominada sociedade do premonitória: “a cultura tornada
espetáculo ou da imagem; b) por seu integralmente mercadoria deve também
lado, nesta mesma sociedade em que tornar-se a mercadoria vedete da
tudo é cultural, a economia irrompe não sociedade espetacular”. Em suma, a rea-
só como instância determinante, mas lidade última é sem dúvida a do capital
como princípio de dissolução de todas que, na sua quintessência, é a inflação
as relações humanas no estritamente hiperrealista do mundo das imagens,
econômico. Em suma, a realidade, que é mas é clara a reversibilidade de um no
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assinatura do contrato em Wall Street; projeto heróico”. Por que? “Porque nos
ou ao mediar a aquisição de algumas ajuda a definir o que serão os museus”.
obras que constituiriam o acervo (a Ou seja, é um experimento para o que
coleção Panza – de obras minimalistas serão os museus como instituição no
americanas, cuja aquisição por Krens século vinte e um.
aumentara o endividamento da Segundo Jeremy Rifkin, em Idade do
Fundação e que se destinaria ao novo acesso1, também neste setor, o das
museu, que, no limite a pagaria, via franquias, a mudança atual de
franquia e outras benesses – teve o veto “paradigma” teria se feito sentir: “se a
dos espanhóis, sobrou apenas Richard franquia de marcas e produtos existe há
Serra com sua sala especial, num mais de um século – diz ele – , a fran-
destaque que não deixava dúvidas de quia de conceitos é uma idéia inédita,
que o museu, embora financiado pelos que funciona na base de premissas
espanhóis, era na verdade americano), muito mais compatíveis com a lógica do
acervo este adquirido através de suas acesso do que aquela da propriedade”.
“ligações perigosas” com a Sotheby’s – As empresas de serviço portanto não
como todas as transações que costu- apenas vendem suas marcas, mas suas
mam ocorrer no âmbito dos grandes fórmulas de organização, funcionamen-
negócios e das quais, novamente, não to, marketing, etc. Donde o crescimento
poderia se resguardar um museu que se exponencial das franquias – agora,
paute pela ousadia. Sem contar, como se pode constatar, introduzidas no
obviamente, o chamariz arquitetônico de circuito das artes.
Frank Gehry. O que levou Andrew Desde 1998, a nova dupla Krens-
Decker a questionar, num de seus Gehry ronda o Brasil com o intuito
artigos, se o Guggenheim seria uma de “seduzir” (a expressão é do próprio
instituição cultural que necessitava levar Krens, que se auto denomina “um
em conta as leis dos negócios ou era, sedutor profissional”)2 alguns prefeitos
ao contrário, um negócio sem mais... ou curadores incautos, e, enquanto aqui
O próprio Krens ao referir-se ao que se se discute se será melhor construir o
inaugurava com Bilbao: – franquias em museu nesta ou naquela região do Rio
museus –, dizia: “Este projeto é um de Janeiro, o Guggenheim desmente que
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organismos do gênero, não fazem senão museu nos tempos atuais é um convite à
reforçar esse sentimento ambivalente de conversão da arquitetura numa imensa
que a instituição museu está em crise no floração de formas intransitivas se
momento mesmo de sua proliferação e desdobrando no espaço (não por acaso
diversificação numa escala mundial associa-se o museu do Gehry, em Bilbao,
nunca vista. E isto não se deve apenas a uma papoula, por vezes a um polvo ou
ao fato de não haver mais limites, tanto mesmo um barco; o de Milwake, do
temporais quanto disciplinares – pode- Calatrava, a uma libélula; o Museu
se expor de tudo ou mesmo nada, Municipal de Kushiro, no Japão, do
misturar “produtos culturais” (outra arquiteto Kiko Mozuna, a um pássaro de
novidade, inclusive na terminologia bem ouro, e assim por diante). Já dizia Tshumi
sintomática) cuja justaposição num há vinte anos atrás: deve-se olhar uma
mesmo espaço de exibição nobre seria obra de arquitetura como se fossem
noutros tempos impensável, sem falar movimentos coreográficos – “cheios e
na velha e obsoleta distinção entre o vazios, seqüências, articulações,
baixo e o elevado em termos estéticos –, colisões”. Enfim, algo que está sempre
mas sobretudo à multiplicação de no “limite” de vir a ser algo diverso.
atividades de tal modo heteróclitas Está claro que nestas circunstâncias
abrigadas sob o seu teto (dos projetar museus já não apresenta a
tradicionais ateliês de ensino e criação mesma óbvia inocência de antigamente.
aos novos serviços de informação e Superdimensionamento,
consumo oferecidos aos seus visitantes, espetacularização, etc. são sintomas que
ou melhor, usuários), que já se tentou falam por si. Quando se diz que a “caixa”
de tudo em matéria de analogia para do museu se rompeu, o que de fato se
qualificar esses novos edifícios que está constatando, para além da
ainda levam o nome de museus: centro dimensão propriamente morfológica,
cultural, shopping center, complexo de é que não se trata mais de um edifício
entretenimento (eufemismo para destinado a abrigar objetos cuja
shopping que graças a algum apêndice apreciação procura facilitar da melhor
dito cultural se beneficia de incentivos maneira. Ocorre que tal destinação
fiscais e outras leis urbanas, como elementar já comparece mediada pelas
vimos), parques temáticos, e por aí “n” funções que o museu passou a
afora. exercer. A novidade não está de modo
Indefinição que evidentemente se algum na implosão do “caixote”, mas
reflete no trabalho do arquiteto. O que nessa resultante sobredeterminada de
de fato ele estaria projetando quando exigências e pressões das mais variadas
projeta um museu nos dias de hoje? Pois procedências, da política cultural de
essa indeterminação mesma da forma- turno aos múltiplos interesses das novas
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13 Folha de São Paulo, 19.10.2001, caderno Especial p.5. Aliás sobre todas estas
questões ligadas à Prada e seus arquitetos, ver, além deste caderno Especial
sobre Moda, as reportagens de Erika Palomino dos dias 27 de fevereiro e 3 de
março de 2001 e, mais recentemente, de 11 de janeiro de 2002 e, sobre a
exposição na Oca, Folha de São Paulo, 8.10.2001, p. e 1. Cf., do próprio Rem
KOOLHAAS: Mutacio-nes. Barcelona: ACTAR, 2000, especialmente capítulo sobre
“Shopping. Harvard Project on the City”.
14 Gilles LIPOVETSKY. O império do efêmero. São Paulo: Cia. da Letras, 1989,
p. 108.
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Jameson se deu conta de que as “ener- assim é, se é fato que há uma ou duas
gias” liberadas nos anos 60 reverteram décadas a nova new left está conven-
no seu contrário, ao observar que, uma cida de que a lógica do capitalismo
vez eclipsada a esfera autônoma da contemporâneo tornou-se cultural, seria
cultura, o resultado não foi o seu então o caso, para início de conversa,
desaparecimento, “mas a sua prodigiosa relembrar certas circunstâncias da
expansão, a ponto de a cultura tornar-se sempre relegada década de 70 (talvez
coextensiva à vida social em geral: agora mais decisiva que o estopim dos sixties),
todos os níveis tornam-se aculturados a começar pela indispensável
(...), tudo afinal tornou-se cultural”18. constatação de que foi nada mais nada
Como escrevi num de meus últimos menos do que a própria direita quem
textos, registrando esta guinada na primeiro proclamou, nos anos 70
origem da assim chamada “era da cultu- precisamente, que de fato era preciso
ra”: assistimos pois a uma metamorfose reconhecer que o capitalismo padecia de
do “cultural”, cujo pós-materialismo, contradições, mas que estas eram de
a princípio reativo, foi se tornando pró- ordem cultural. O clássico de Daniel Bell,
ativo, para não dizer cooperativo, à As contradições culturais do capita-
medida que se estetizava e se lismo (referido há pouco), é de 1976.
concentrava nos valores expressivos de Dele procede, por exemplo, a deixa para
uma ordem social que alegava a seu o diagnóstico neoconser-vador, repisado
favor haver destronado o primado das até hoje, segundo o qual o risco maior
relações de produção em nome das que o sistema corria era o da “ingover-
relações de “sedução”, como foi saudada nabilidade”, devido justamente a uma
a era do vazio (há pouco mencionada) “adversary culture” solta nas ruas.
que se iniciava (talvez ajude referir-se Por onde se vê que já estava armado
então a um segundo turno daquilo que o cenário que atribuiria à cultura um
alguns, especialmente nos campi anglo- papel central na governabilidade do
americanos, vem chamando de cultural aparato de dominação. O perigo
turn, e cuja origem datam nos anos 60). iminente de “ingovernabilidade” era
Novamente, retomo, sempre de forma atribuído a uma sobrecarga intolerável
resumida e um tanto livremente, uma de pressões, que o oficialismo de hoje
periodização que estabeleci no meu chamaria de populismo macro-
último livro sobre A cidade do econômico, mas que na época eram
pensamento único. Como observei: se postas na conta de uma inflação de
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mercadológicas, mas ela hoje é parte podem estar de tal modo combinadas à
decisiva do mundo dos negócios e o é censura – veja-se por exemplo o caso da
como grande negócio. televisão – que é por assim dizer
Nesse sentido, voltando à questão do impossível detectá-la. Ao mesmo tempo,
novo tipo de gerenciamento da cultura, devido à aparente independência do
cada vez mais reduzida ao comércio trabalho imaterial, vão se construindo
“controlado” da “experiência”, gostaria fluxos e redes com pretensão ao
de, para encerrar, recorrer às sugestões empresariamento e à valorização
de um outro grupo de autores (Corsani, daquilo que seria a sua “própria
Lazzaroto e Negri)19 sobre as relações iniciativa”, tanto quanto das condições
entre produção e consumo cultural, sociais de sua “própria reprodução”.
quando o capitalismo passou ao coman- Para entender como se dá este ciclo
do do trabalho imaterial. Na verdade, reprodutivo, os autores comparam o
segundo esses autores, os conflitos não trabalho imaterial – central na
estão eliminados, mas passam a ser organização do trabalho pós-fordista –
geridos, como no caso da produção com a fase anterior, quando a atenção
cultural, entre esta instância e a do se voltava para o ciclo produção/
empresariamento, e isto ao alto preço circulação/consumo, agora centrado na
do cerceamento da liberdade criativa, só “cooperação” que envolve produtor e
que de forma tão insidiosa e sutil que se consumidor. É desta quase simbiose que
dá de forma quase imperceptível. Não se se trata, numa economia mais voltada
trataria mais portanto da administração para a comercialização e financeirização
hard do tempo do capitalismo industrial do que para a produção: um produto,
ou organizado. Ou seja, o controle se dá antes de ser fabricado, deve ser
através de códigos tão mais rigorosos vendido, portanto mobiliza importantes
quanto menos identificáveis, na medida meios de comunicação e marketing para
em que se trata de uma reestruturação “recolher (conhecer as tendências de
da produção/consumo administrada não mercado) e fazer circular a informação
apenas por mecanismos exclusivamente (construir um mercado)”. Da produção
ideológicos, mas que estruturam standard passa-se à singularização e à
o próprio modo de produção, pois “qualidade”, como se o produto
o trabalho é organizado em função da assumisse uma qualidade diretamente
própria necessidade de controle. Dito de social... – o que faz com que o consumo
outro modo: as necessidades técnicas seja antes de tudo um consumo da
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