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Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

Entrevista com
Otília Beatriz Fiori Arantes
Professora de Estética do Departamento de Filosofia da USP de 1973 a 1993

A entrevista foi concedida por escrito e contou com a colaboração do Prof. Dr. Jorge de Almeida,
docente do Departamento de Teoria Literária da Universidade de São Paulo, para a formulação
das perguntas.

o mestrado era uma monografia sem


Recapitulação parâmetros muito precisos que, em
geral, era escrita sob a pressão dos
Baudelaire, o poeta da cidade professores, pois éramos informalmente
moderna, foi o tema tanto de seu bolsistas – na verdade, monitores
mestrado, na USP, quanto de contratados pelo departamento – e
seu doutorado na França. Em que devíamos prestar contas em tempo
medida esses seus primeiros recorde, ou seja, mostrar o mais
trabalhos, que já pensavam rapidamente possível a que tínhamos
os encontros e desencontros entre vindo... Portanto, o que redigi na
a lírica, a pintura e a paisagem ocasião foi um trabalho de
urbana, contribuíram para seus aproveitamento apenas um pouco mais
estudos sobre a crise do longo, e que não esconde os tateios de
Modernismo e as contradições da quem se aproxima do tema pela primeira
Pós-modernidade? vez. Nada mais nada menos do que
Nos idos de 1960..., numa época em que Baudelaire crítico de arte. Tentei
os cursos de pós-graduação ainda não organizá-la em torno de três núcleos
estavam estruturados, nem eram temáticos – creio que este foi o achado
reconhecidos oficialmente, o Depar- principal da “tese”: razão (cálculo e
tamento de Filosofia oferecia aos alunos artifício contra tudo o que é natural),
uma única disciplina anual (no ano em raridade (dandismo e moda contra tudo
que ingressei na pós e no Departamento, o que era comum) e disparates (humor
foi um curso ministrado pelo Giannotti e grotesco contra a normalidade
sobre Durkheim e Weber!), e eles deviam burguesa).
complementá-la com matérias na Como todo jovem um pouco letrado,
graduação. Conseqüentemente, também conhecia apenas os poemas de

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Baudelaire, foi a Profa Gilda, minha também privilegiava em suas aulas a


orientadora, que me sugeriu analisar os reflexão teórica sobre obras
textos críticos. Tarefa nada fácil, que específicas, se considera herdeira
acabei retomando na França, quando, aí dessa tradição? Ela ainda sobrevive
sim, pude ler uma extensa bibliografia a nos cursos de estética do
respeito e dispus de tempo para um Departamento de Filosofia?
estudo mais sistemático da história da Seria muita pretensão minha considerar-
Crítica de Arte, dos Salões, tanto quanto me uma “herdeira” da Dona Gilda, ela
de outros aspectos da cultura da época. realizava esta combinação a que aludi,
Ao mesmo tempo, leituras mais com um savoir faire inimitável. Não
aprofundadas de Benjamin e Adorno apenas punha os alunos em contato com
(que estavam sendo descobertos pelos as obras, mas o fazia de uma maneira
franceses) me levaram a abordar surpreendente, a partir dos petits
Baudelaire do ângulo mais complexo da détails, daquilo que em princípio
experiência da modernidade. O título da parecia ser secundário num quadro ou
tese de doutoramento é bem sugestivo num filme. E isso com uma perícia
deste deslocamento de foco: Le lyrisme técnica invejável, de tal forma que
au seuil de la modernité. Ainda assim, acabávamos aprendendo a ver aquilo
visto à distância, não passa de um que passava despercebido ao olhar de
trabalho de aprendizado, cujo mérito superfície. Crítica impressionista como
maior foi me obrigar a avançar na minha queriam alguns? Na verdade, resultado
formação de futura professora de de uma familiaridade muito grande com
Estética. Devo reconhecer no entanto a história da arte, especialmente da
que, quando entrei no debate sobre a pintura, e a correspondente
Modernidade e sua crise, Pós- incorporação de seus mais importantes
Modernidade, etc., descobri que me fora teóricos (Wöllflin, Worringer, Venturi,
extremamente útil ter estudado um Gombrich, Francastel, etc.), sem contar
pouco sem querer os seus primórdios. que, ao fazer isso, Dona Gilda seguia de
fato a boa tradição da expertise ou
A respeito dos cursos ministrados peritagem (Ruhmor, Morelli...). E,
por sua orientadora, Dona Gilda de quando se tratava de arte brasileira,
Mello e Souza, a senhora certa vez suas análises traduziam, ainda por cima,
comentou que, neles, “as análises de um sentido aguçado da cor local. O que a
obras, combinando informação fez descobrir, por exemplo, que a
histórica e considerações teóricas “brasilidade” de um Almeida Júnior não
na exata medida das necessidades, decorria simplesmente dos temas, mas
ofereciam uma imagem notável de que estava lá, em suas telas, no corpo
meditação estética”. A senhora, que curvado, no braço caído, na perna

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dobrada, enfim, expressa nos gestos parisienses, especialmente Chastel e


entre preguiçosos e desalentados, algo Jean Cassou, quando lá estive fazendo
como o que Mário de Andrade cursos de Estética e História da Arte.
adivinhara na postura do maleiteiro. Vocês vão desculpar este recuo no
Mas não era apenas a arte brasileira que tempo, mas a pergunta sobre árvores
a inspirava. Assim, por exemplo, nas genealógicas obriga-me a uma rápida
figuras de um Ver Meer, destacando seu digressão sobre minha escolaridade.
parentesco formal com os potes de Como vocês devem saber, salvo por esse
barro, ou com os utensílios domésticos, breve intermezzo no Departamento de
Dona Gilda não só nos apresentava o Filosofia da USP, minha formação deu-
milagre holandês da transfiguração do se, primeiramente, em Porto Alegre, na
prosaico, como era de se esperar, mas URGS. Devo o essencial dela a meu pai,
sobretudo – e nisso residia a sua que era professor de Filosofia nas duas
maneira inimitável – , sabia como Universidades locais, e, mais adiante,
ninguém ir extraindo aos poucos, como aos meus estudos na França, para onde
quem tateia e hesita diante de uma fui assim que me formei, já com a
classe ainda um tanto sem rumo na sua intenção de me dedicar à Estética.
incipiente cultura visual, todo o mundo Lá chegando me inscrevi na área de
de analogias estéticas retratadas numa Esthétique et sciences de l’art, em
aula de música, num penteado, na nível de graduação, na Sorbonne, no
leitura de uma carta, no ato de bordar período letivo de 1963/64. Para obter
ou nos trabalhos de cozinha. Não o Certificat d’Études Supérieurs era
faltavam também associações obrigada a cursar várias disciplinas de
iluminadoras em suas análises dos História da Estética, História da Arte e
corpos lisos como porcelana, de Ingres. Psicologia, com, entre outros, os profs.
Pretexto obviamente para uma Étienne Souriau, Revault d’Allones e
discussão sobre as distinções entre o André Chastel. Portanto a articulação
linear e o pictórico nas artes plásticas, teoria e história da arte era a regra num
ou entre o neo-classicismo de Ingres curso que combinava aliás várias facetas
e o romantismo de Delacroix. Tudo isso de abordagem da arte e da estética.
aprendíamos com Dona Gilda, que além Na mesma época aproveitei para
do mais ofereceu, naquele ano em que acompanhar outras matérias na
fiz seu curso, uma elaboradíssima categoria de ouvinte, como Filosofia
reconstituição da pintura à época do Geral dos profs. Jean Wahl e Paul
Impressionismo. Ricoeur. Segui também alguns cursos
Pouco uspiana, como sempre fui, me livres do Museu do Louvre e aulas no
sentia em casa naquelas aulas que me Collège de France, quando mantive
permitiam reatar com as lições contato com professores como Jean

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Hyppolite e Jean Cassou. Não preciso principal (?), tinha que preparar meu
insistir no significado de uma primeira mestrado sobre a Crítica de Arte em
estadia em Paris para uma jovem brasi- Baudelaire!
leira de província precisando completar Nesse meio tempo tornei-me
(ou iniciar) sua educação estética. monitora no Departamento de Filosofia
Entre uma aula e uma visita a museu, da USP. Como não tinha escolha (talvez
não posso negar muita excursão de por não ser uma uspiana de carteirinha),
puro turismo cultural, feito porém na dava aulas para os alunos da Psicologia.
idade certa. Na medida do possível procurava trazer
De volta ao Brasil (tendo me casado e o programa para perto dos meus
passado a residir em São Paulo), interesses, daí um curso sobre as teorias
matriculei-me na pós-graduação do da Imaginação, tendo Sartre como
Departamento de Filosofia da USP – da roteiro. Voltei ao assunto em 69, quando
qual acabei de falar. Ao mesmo tempo comecei a dar aulas no Departamento
era obrigada a diversificar minhas de Filosofia da PUC, mas desta vez
atividades. No período que vai de 1966 a ficando principalmente nas filosofias
1968, compromissos escolares, carga da Idade Clássica.
didática excessiva (as aulas na PUC, Nova estadia na França (1969/73)
onde comecei a minha carreira de rendeu-me outro capítulo, agora mais
professora universitária, pareciam não amadurecido, de minha educação
ter fim), levavam inevitavelmente à estética, sobretudo clássica, pois a
dispersão. Mas como era ainda tempo de vanguarda abandonara Paris fazia
estudar o básico, acabei aproveitando. tempo. Mas coincidiu também com
Assim, tive que dar cursos de Introdução o primeiro surto do pós-estruturalismo.
à Filosofia – onde obrigava os pobres Como todo o mundo, embora estivesse
alunos de Ciências Sociais a lerem metida com o século dezenove devido
Heidegger e Merleau-Ponty – e de à tese, era difícil deixar de acompanhar
Epistemologia das Ciências Sociais – a produção em alta de Foucault, Barthes,
de Durkheim ao Estruturalismo... Sem Deleuze, Derrida, etc. Era difícil resistir,
contar que na época das famosas sobretudo sem alternativa à vista.
paritárias de 68, coordenei a de Ciências Voltando ao Brasil, caí em tentação,
Sociais da PUC e, portanto, o curso sinal de que ainda não completara meu
“piloto” que foi montado – onde dei ciclo de disponibilidade escolar. Armada
aulas sobre tudo: desde as Meditações do novo jargão “desejante”, tentei
cartesianas de Husserl aos textos de refutar em aula, num curso de pós-
Brecht ou dos Frankfurtianos. Foi uma graduação, e depois num estudo
loucura! Num certo sentido, era a minha publicado na revista Discurso n°7, a
guerrilha... E ainda, como tarefa propósito da interpretação de Klee, as

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teorias de Merleau-Ponty sobre a aparecimento do prosaico na arte


pintura, “filosofia figurada da visão”. Do moderna, e assim por diante. O material
ponto de vista da conceituação, está utilizado era o mais variado, de slides
claro que substituí um equívoco por e filmes a depoimentos de artistas –
outro (mais moderno), trocando lembro-me de um dia um professor do
percepção por libido, ontologia por departamento, muito espantado,
energética, etc. Quanto à obra de Klee perguntar-me do que tratava minha
propriamente dita, creio que a análise aula, pois ele vira uma “fauna” (segundo
proposta ainda se sustenta, se não for ele) muito especial indo para a minha
presunção demais. sala – era apenas um grupo de jovens
Continuei à procura de apoio teórico vestidos “a caráter” que vinham para um
para minhas observações sobre a seminário sobre música punk... (mas aí
pintura. Voltei então a fazer leituras já era um deslize de professora quase
sistemáticas da Teoria Crítica. Outra aposentada). Uma parte dos cursos,
dificuldade: enquanto me convencia da porém, reservava à formação básica:
necessidade de vincular internamente o história da arte, sempre através da
estudo da forma ao processo social, e análise das obras, e comentário dos
por mais que as análises de Adorno textos filosóficos clássicos sobre a arte,
sobre a música e a literatura fossem em particular Hegel. Já os cursos de
inspiradoras, não encontrava nada de pós-graduação eram em geral mono-
específico sobre as artes plásticas que gráficos e voltados de preferência para
pudesse me orientar. a pintura: Klee, Futurismo, Boccioni,
Retornando a São Paulo, em 1973, fui Questões de Estilo, Mário Pedrosa,
novamente recontratada pelo a Crítica de Arte no Brasil, etc.
Departamento de Filosofia, mas desta Só ao fim dos anos 80 me animei a
vez em função da minha especialização abordar em aula temas mais polêmicos
em Estética. Foi quando substitui Dona e de estrita atualidade: da música
Gilda, mas, como disse, apenas “independente” ao novo cinema alemão,
formalmente, embora a lembrança de por exemplo, ou do debate sobre a Pós-
suas aulas não me tivesse saído da modernidade (teoria e produção
memória. Na graduação procurei dar artística) à atual emergência do assim
cursos ligados de alguma maneira à chamado “cultural” e os problemas
produção artística recente, sobre correlatos de gestão da cultura,
o fundo de problemas mais amplos, estetização da memória, a natureza dos
históricos e teóricos, como arte e novos museus, as políticas
técnica, teorias da vanguarda, preservacionistas do patrimônio
a controvérsia sobre a morte da arte, histórico, etc. Para explicar este novo
o nascimento da Estética, o rumo, preciso referir dois

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acontecimentos que pesaram no curso discussão sobre a arte atual brasileira.


ulterior de minha vida intelectual: a O clima de revisão histórica naqueles
criação em fins de 1977 do Centro de primeiros anos de degelo da ditadura
Estudos de Arte Contemporânea (CEAC) ditou naturalmente o primeiro tema:
e o convite que me foi feito pela um levantamento documental dos
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo decisivos anos 60. Um balanço mas
da USP, em 1981, para dar aulas de também um antídoto para as tentações
Estética do Projeto na graduação e, revivalistas: capítulo crucial porém
desde 1986, na pós-graduação. Desde encerrado. Montamos um projeto de
então quase só tenho escrito sobre pesquisa abarcando o essencial do
Arquitetura e Urbanismo – mais uma teatro, literatura, música, artes plásticas
idiossincrasia que reforça o meu e cinema daquele período, e partimos
sentimento de outsider dentro do para a batalha por verbas. Era fácil
Departamento. prever as barreiras: uma idéia inédita,
tocada por alunos. Afinal contamos
Falemos do CEAC: no final da década com uma pequena ajuda da FAPESP.
de 1970, a senhora fundou, com um Achávamos que um laboratório de
grupo de orientandos e outros pesquisa e reflexão, documentação
alunos interessados em estética, e geração de recursos audio-visuais,
o Centro de Estudos de Arte pudesse interessar o Departamento de
Contemporânea, que logo depois Filosofia, que adotaria como sua
passou a contar com uma publicação extensão e meio de influência na vida
própria, a Arte em revista. Como a cultural. Mas nada disso o comoveu,
senhora avalia, hoje, a experiência e a coisa ficou mesmo caracterizada
do CEAC e da revista? Como se deu como uma atividade do “grupo da Otília”.
o relacionamento entre o centro de Convidávamos seguidamente artistas
estudos e o conjunto do Departa- e críticos; os debates eram abertos e
mento de Filosofia? Por que ele foi muito bem recebidos no meio artístico,
extinto? pouco habituado a ser procurado pela
O CEAC foi criado por iniciativa de Universidade, ignorando que se tratava
alguns orientandos meus que, tendo de um pequeno grupo de estudantes
concluído os créditos, desejavam e jovens professores. A convite de
continuar fazendo seminários sobre arte Diretórios Acadêmicos, demos cursos em
contemporânea. Imediatamente o grupo outras Faculdades; organizamos debates
se ampliou com a adesão de outros fora da Universidade. Acabamos
alunos da graduação e da pós com registrando o Centro como entidade
interesse em Estética. A idéia básica era autônoma e publicação própria, Arte
constituir um núcleo de pesquisa e em revista. Nela reuníamos parte do

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material levantado precedido de uma em revista. Creio que se pode atribuir


nota explicativa; aos poucos fomos à publicação em 1983 de um número
criando coragem e incluindo ensaios especial da revista sobre o Pós-moder-
nossos. Também esta iniciativa teve no, o início do debate sobre esta
bastante êxito, os primeiros números questão no Brasil. Pouco tempo depois
logo se esgotaram, o mesmo tendo já figurava nos suplementos culturais,
ocorrido com as reedições. Um com as confusões de praxe. Até então
conhecido crítico chegou a escrever, raramente se empregara o termo na
quando o primeiro número com acepção que lhe davam os críticos
manifestos e escritos dos anos 60 foi estrangeiros (veja-se Mário Pedrosa e
publicado, que se tratava de “uma leitura Hélio Oiticica). Quanto a nós, do CEAC,
extraordinariamente instrutiva”, e procurávamos naquele número pensar
acrescentava: “um raro exemplo de o sucedido com a arte, sobretudo nas
trabalho universitário oportuno... uma artes plásticas e na arquitetura, com o
contribuição de pesquisa em que esgotamento das neo-vanguardas dos
modéstia e utilidade fazem um anos 60. Encerrávamos aquele número
casamento notável” (Leia livros, VI, 79). pioneiro com um dossiê que abria com
Tínhamos um editor (Livraria Kairós), o manifesto de Habermas contra as
mas no fim a produção foi ficando alternativas pós-modernas, que
mesmo por nossa conta, com as dificul- chamava de vanguardas retroversas,
dades de um empreendimento seguido das respostas de Peter Bürger,
autônomo e sem recursos. Com o tempo Huyssen, Lyotard e Portoghese. Como
e o esquema precário de funcionamento, se sabe, a controvérsia dominou a
o grupo se dispersou após o oitavo disputa ideológica européia e americana
número da Revista, tendo sobrevivido durante os anos 80, deflagrada pela
até a minha aposentadoria apenas como ascensão dos neo-conservadores e a
grupo de seminários internos relativa desorientação das correntes
quinzenais, constituído então quase só progressistas diante das mutações da
de orientandos meus. ordem capitalista mundial. Ao mesmo
Devo muito a esses anos de CEAC. tempo, no plano das idéias, confron-
Pela primeira vez fui obrigada a pensar tavam-se o pós-estruturalismo francês
metodicamente, documentos na mão, os (ou americano) e a nova Teoria Crítica
problemas da arte brasileira. E na condi- alemã, encabeçada por Habermas.
ção de coordenadora – precisava acom- Eu pessoalmente passei então a
panhar todas as pesquisas e atividades estudar o assunto, como era do meu
–, como podia, continuava estudando. dever profissional, programando
Encerro este breve retrospecto com inclusive aulas e conferências em que se
um destaque para o número 7 de Arte pudesse avaliar os verdadeiros termos

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do problema. Nessas ocasiões, poder modernista de Habermas, além de


centrar o debate na arquitetura à qual mostrar objetivamente de que modo a
já me dedicava era uma garantia de crise da modernidade se mostrava
objetividade, mas ao mesmo tempo também na periferia. Publiquei uma
enfrentava a resistência dos colegas versão resumida da conferência em
arquitetos, arraigados na tradição 1990, na revista Arquitetura e urbanis-
modernista e que me viam como uma mo, e, mais tarde, em Urbanismo em
defensora da pós-modernidade (o que fim de linha, e uma versão ampliada na
evidentemente eu não era, mas não forma de livro em parceria com Paulo
posso negar a minha simpatia à época Eduardo Arantes, Um ponto cego no
com algumas formas ditas de resistência, projeto moderno de Jürgen Habermas.
atentas à memória e ao contexto local – Enfim, falo de assuntos que acabaram
ao que vim a chamar numa conferência vindo à tona nas minhas outras
de 1987 de “contextualismo crítico”). atividades graças ao CEAC. Voltando ao
Quando começou a crescer a audiência final da pergunta: o CEAC, que já tinha
entre nós de uma intervenção de perdido fôlego, acabou porque me
Habermas em defesa da Arquitetura aposentei (em 1993).
Moderna, achei que devia opinar, o que
fiz em cursos, mesas redondas, etc. Ao defender a importância do
Finalmente apresentei minhas objeções estudo das relações entre arte e
num seminário internacional promovido sociedade, Mário Pedrosa citou uma
pela UNICAMP em 1988. Os estrangeiros passagem de Baudelaire, na qual o
presentes custaram a entender o que poeta exortava o crítico a assumir
teria a ver um intelectual brasileiro com “o ponto de vista que abre mais
tudo aquilo. Lembrando-lhes que nossa horizontes”. A senhora organizou a
diferença nacional era parte do debate publicação das obras de Mário
internacional unificado pela evolução Pedrosa e também escreveu diversos
recente do próprio capitalismo, procurei estudos sobre o crítico. Quais os
defender-me em dois planos: um horizontes que ele abriu em sua
propriamente conceitual, onde formação? Comente, por favor, a
enumerava os equívocos de Habermas, sua experiência editorial como
sobretudo por ter abandonado o organizadora dos Textos escolhidos
raciocínio histórico acerca do destino do de Mário Pedrosa.
Movimento Moderno; no outro, sugeria Acredito que foi também graças ao CEAC
o ponto de vista do qual falava, a que comecei a conhecer melhor Mário
própria experiência brasileira da Arqui- Pedrosa, que aliás veio uma vez
tetura Nova, de cuja análise poderia conversar conosco. Fiquei então de
extrair novas objeções à apologia organizar e prefaciar uma edição de sua

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tese de livre-docência, datada de 1949, encerrei meu livro sobre seu itinerário
apresentada na Faculdade de crítico).
Arquitetura da Escola de Belas Artes do Após a morte de Mário Pedrosa,
Rio de Janeiro, ainda inédita – recolhi, a pedido de amigos,
Da natureza afetiva da forma na obra especialmente do amigo e ex-secretário
de arte – em que a inspiração da Gestalt Darle Lara, e com a ajuda da esposa
era muito forte. Novamente é Dona Dona Mary, um enorme material,
Gilda que está na origem deste meu disperso em jornais e revistas (muito
trabalho. Embora o Bento Prado, ao ser pouca coisa fora reunida em livro), que
publicada a coletânea organizada por organizei numa edição de 12 volumes.
Aracy do Amaral, na Perspectiva, em Logo saí, em vão, à procura de quem os
1976 – Mundo, homem, arte em crise publicasse (hoje está à disposição dos
–, tivesse me sugerido que escrevesse a pesquisadores em algumas bibliotecas
respeito, foi quando Dona Gilda, dois da USP). Finalmente, quando eu já tinha
anos mais tarde, vinda do Rio, entregou- quase desistido, Sérgio Micelli, na
me alguns textos inéditos de Mário, direção da EDUSP, chamou-me para uma
entre eles a tese, que comecei a estudar edição de Obras escolhidas – ele havia
regularmente seus escritos. Nesse meio pensado num volume, mas acabou
tempo estive com ele uma meia dúzia de aceitando que fossem quatro
vezes, em São Paulo e no Rio, participei (publicados entre 1995 a 2000). Durante
da homenagem a ele na Bienal, por o trabalho de pesquisa, na década de 80,
ocasião dos 80 anos, e estive umas três além de cursos sobre Mário Pedrosa,
vezes no seu apartamento na Visconde publiquei vários ensaios sobre ele e,
de Pirajá. O Mário já estava então muito finalmente, um livro, em 1991, Mário
doente, mas tivemos algumas conversas Pedrosa, itinerário crítico (retomado
muito instrutivas, inclusive tive a chance com algumas alterações e acréscimos
de poder avaliar ao vivo a performance nos prefácios dos quatro volumes da
do crítico quando ele fez questão, EDUSP).
embora já tivesse dificuldade de se Nesse estudo concebi o referido itine-
locomover, de que visitássemos juntos a rário nos seguintes termos: ao mesmo
exposição que o Jean Boghici organizara tempo em que procurava reconstituir
em sua homenagem. Pude então, seu projeto de modernização da arte
comovida, acompanhá-lo no passeio no Brasil, um país que a seu ver estava
entre as obras, comentando várias delas “condenado ao moderno”, tentei refazer
– lembro-me bem do destaque que deu à alguns capítulos (arte abstrata, Arqui-
Cara de cavalo do Oiticica e à tela da tetura Nova e Brasília, etc.) do processo
Mira Schendel que se achava na vitrine real de evolução da arte brasileira, uma
da Galeria (com a qual, por isso mesmo, tendência cuja realização afinal frustrou

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as expectativas utópicas do Crítico. isso foi o primeiro entre nós a pressentir


Indiretamente, portanto, um roteiro, o esgotamento histórico das vanguardas.
pelo viés estético, de nossa De minha parte, reconheço agora que
modernização conservadora, aparente foi refletindo sobre a originalidade dessa
no contraste com o ponto de vista de carreira que pude enfim organizar
Mário, centrado na recepção coletiva da minhas opiniões sobre a significação da
arte anunciada pelo projeto construtivo modernidade estética no Brasil.
moderno, sempre orientado pelo
momento utópico em que mundo vivido Desde 1987, a senhora tem escrito
e forma artística passariam um no outro. diversos artigos e livros sobre os
Daí o interesse por Brasília, imagem dilemas da arquitetura moderna,
ambivalente da utopia totalizadora e tanto a internacional quanto a
internacionalista que o animava. Relido brasileira. A arquitetura, como
o livro, achei que havia ficado devendo queriam os fundadores da Bauhaus,
um capítulo (ainda por escrever? um é realmente um objeto privilegiado
pouco disto abordei no meu último para a reflexão sobre as conquistas
ensaio, publicado na Folha de São e contradições do Modernismo?
Paulo em um número especial do De que modo ela espelha e cristali-
caderno Mais! por ocasião de seu za, em suas formas e procedimentos,
centenário e retomado na coletânea da os problemas da sociedade atual?
UNESP em sua homenagem): refiro-me a Acredito que possa responder
um estudo comparativo mais explícito afirmativamente às duas questões. Mas
sobre o lugar original de Mário Pedrosa é preciso explicar-me, visto que, de meu
na história da nossa crítica de arte, um ponto de vista, embora a Arquitetura
confronto que faria refletir sobre as Moderna esteja em linha de
limitações desta última. Não falo apenas continuidade com o modernismo ou, se
da tarimba cosmopolita do Crítico, seus se quiser, com as vanguardas artísticas,
conhecimentos teóricos de primeira mão e tenha sido tributária do impulso, ao
(o primeiro a lidar com conceitos mesmo tempo predador e construtivo
complicados sem os habituais tropeços destas, ela, na verdade, funcionou como
amadorísticos de seus pares), etc., mas uma “câmara de decantação” (utilizando
sobretudo ao fato de não ter limitado o uma expressão de Manfredo Tafuri, um
esforço de necessária atualização da arquiteto e crítico italiano, que morreu
arte brasileira à simples reivindicação da há poucos anos, e que foi para mim uma
liberdade de experimentação estética, referência teórica muito importante) das
ao contrário, sempre entendeu a arte contradições produtivas das vanguardas.
moderna como elemento de um Ou seja, dissolveu aquelas ambigüidades
processo maior de renovação social; por que lhes permitiam preservar uma certa

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distância crítica da realidade, mesmo poder absoluto do capital”; ou ainda,


quando questionavam radicalmente a ao cristalizar as células habitacionais em
arte separada. E isso, por ter realizado – complexos bem organizados numa
a arquitetura – , cabalmente, a evidente confusão entre o microcosmo
descompartimentação da experiência e o macrocosmo, demonstrando aos
estética que as vanguardas ao mesmo homens uma “falsa identidade entre
tempo propunham. No entanto, ao o universal e o particular”, e assim por
colar-se ao real, a arquitetura não fazia diante. Ou seja, se eles têm razão, a
mais do que cumprir o seu próprio arquitetura, em especial aquela
destino, realizando, como nunca antes identificada como Movimento Moderno,
na história, o seu papel de “arte de foi uma causa plenamente vitoriosa por
massa”, por natureza destinada ao realizar sua própria essência – que por
consumo coletivo, por isso mesmo emi- definição não é artística strictu sensu,
nentemente “tátil” – como a definiu pois não pode escapar de suas finali-
Benjamin, em seu ensaio famoso sobre dades utilitárias – , e isto, na medida
“A obra de arte na era de sua reprodu- mesma em que cedia ao mundo prosaico
tibilidade técnica”. E como, aliás, das necessidades materiais e às
perceberam igualmente Adorno e imposições da sociedade de consumo
Horkheimer, ao utilizar o exemplo da de massa. Na verdade, obedecendo à sua
arquitetura (no caso, da Arquitetura própria sina.
Moderna), na abertura do sempre citado Sabemos o quanto, para estes autores,
mas nem sempre bem compreendido as promessas que acompanhavam o
capítulo sobre a “Indústria Cultural”, progresso técnico na arte se desvir-
para enunciar os traços definidores, ou tuaram: se a técnica avançada poderia
mesmo os mecanismos de ter como função, ao menos até as
funcionamento, desta indústria sui vanguardas, aumentar a tensão entre
generis – dos edifícios monumentais e a obra e a vida quotidiana, esse
luminosos das novas corporações aos processo se inverteu, ele cada vez mais
prédios de concreto das periferias com passou a reduzir esta mesma tensão.
sua obsolescência programada. Tudo aí O que, no caso da arquitetura, a trazia
na devida medida do mundo dos por assim dizer à sua verdade, à verdade
negócios, acompanhado das ilusões de de objeto de uso, embora, seguindo as
praxe no mundo capitalista. Por leis do mercado em que se inscreve,
exemplo, ao perpetuar, através de seus transformado em objeto de troca. Por
apartamentos “higiênicos”, o indivíduo, isso mesmo, o “princípio construtivo”,
como se ele fosse independente, na origem das vanguardas mais
“submetendo-o ainda mais avançadas (o recurso à experimentação
profundamente ao seu adversário, o e à montagem por exemplo), tanto

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quanto da arquitetura, tornou-se vanguardas, ou o estado do mundo


ideologia (ainda de acordo com Adorno, naquele momento, tanto quanto, por sua
em sua Teoria estética), na medida em natureza mesma de “arte de massa”,
que a própria idéia de construção – que sobre o atual estágio das artes, ou seja,
é contraditória, como explica – , ao se no que redundou a recepção coletiva da
transformar em realidade, passa a ser arte pós-aurática em que ainda apos-
tributária, ao mesmo tempo, das “formas tava, apesar de tudo, Walter Benjamin
funcionais técnicas externas”. (O que nos anos 30.
ocorreu, por exemplo, com a Música
Nova). Ora, no caso da arquitetura, este A senhora debateu com Roberto
salto para a realidade é inevitável, Schwarz as conseqüências de um
portanto a sujeição às formas eventual esgotamento do projeto
aparentemente heterônomas também. moderno na arquitetura. A senhora
(Voltarei ao argumento na próxima pode nos dizer qual a discordância
resposta). básica entre ambos?
Assim, mesmo quando parecia apostar Da forma em que a questão está
no estado evolutivo dos materiais colocada, me parece, no geral, um
artísticos, Adorno não perdia de vista o pedido de confirmação de afirmações
fato de que, na ordenação lógica destes, que eu teria feito. Assim sendo, nada
a arte que se quer inteiramente melhor do que uma reprise, nos termos
autônoma acaba por refletir, no seu mesmos dos meus argumentos.
conjunto, as condições de De fato, eu e o Roberto temos algu-
desenvolvimento total da sociedade. mas divergências a respeito do
O que dizer então da arquitetura em que esgotamento do Projeto Moderno, em
este princípio construtivo comanda o especial na arquitetura. Para o Roberto,
próprio processo de produção? O que que pretendia salvar da débâcle do
fez com que a crença em seu poder Movimento Moderno alguns exemplares
emancipador, por parte dos Mestres da que poderiam ser apreciados como
Bauhaus ou outros, se visse frustrada, belos, bastaria lembrar a distinção que
por mais que possam ser agradáveis aos faz Adorno entre aspiração e realização,
olhos os seus edifícios, como as casas recordando que eu não deveria esquecer
que aprendemos a apreciar, mas que esta boa lição, segundo a qual as
nem por isto permanecem no domínio ideologias não são mentirosas pela sua
das finalidades sem fim, e estão aspiração, mas pela afirmativa de que
permanentemente sujeitas a imposições esta se tenha realizado. Assim, pergunta-
materiais. Por isso mesmo também é me ele (na argüição à minha livre-
justamente a Arquitetura Moderna que docência, depois publicada na Folha por
mais nos informa sobre os impasses das ocasião da publicação do livro O lugar

rapsódia 232
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

da arquitetura depois dos Modernos): organizado no sistema de fábricas –


qual o significado, qual o partido que a seria portanto de esperar que o Movi-
crítica de arte pode tirar deste espaço mento Moderno entrasse em colapso à
entre aspiração e realização, e sobre- medida que o próprio capitalismo pós-
tudo entre obra individual e tendência fordista se encarregava de destroçar
geral. Respondendo (o que está (para pior) a Utopia Técnica do Trabalho
publicado em Urbanismo em fim de que animava aquele ideal construtivo.
linha), questionei a possibilidade de, Lembrando a palavra de ordem de Le
sobretudo na arquitetura, dissociar uma Corbusier, me perguntava: vanguardismo
e outra coisa, na medida em que a com que se despacham de alma leve
arquitetura é um objeto inserido no inércias históricas? Sem dúvida, mas
próprio mundo da reprodução da vida, também medida higiênica disciplinar,
portanto também as aspirações, por visando o aparecimento de um “homem
mais que se traduzissem em boas novo”. Um programa que mal esconde a
intenções democráticas, nem por isso ética puritana do trabalho e a ingerência
barravam, pelo contrário, requeriam a violenta (própria das políticas de terra
convergência de princípio com a arrasada) na vida e na memória de um
estandardização industrial exigida pelo povo, em nome de uma “ordem” social
momento pós-liberal do capitalismo. cujos traços autoritários logo viriam à
De tal sorte que a ordenação do tecido tona. Aliás é bom lembrar que a política
urbano passava a obedecer sem abstrata da tabula rasa comanda tanto
nenhuma violência à lógica da linha de a assepsia do espaço modernista quanto
montagem, à qual também estavam as “destruições criativas” e altamente
ajustadas as famosas setorizações da lucrativas de um empresário
atividade, homogeneização das soluções schumpeteriano. Daí os nada
construtivas, conjuntos habitacionais surpreendentes laços de família entre
militarmente dispostos, elementarismo vanguarda estética (ao menos enquanto
das formas simples, etc. “Funcional” aspiração realizada como síntese arte/
portanto em todos os sentidos, daí o vida) e vanguarda do capital, terreno
formalismo integral para o qual sempre comum em que brota a figura histórica
tenderam as construções dos grandes (que remonta ao primeiro Iluminismo do
Mestres modernos, do purismo setecentos) do arquiteto-ideólogo.
corbusiano ao silêncio conclusivo da Assim, o desejo do Roberto de
arquitetura de vidro de Mies van der preservar as obras, e, nelas, um certo
Rohe. Não sendo assim portanto aceno utópico e transcendente que não
descabido reconhecer no formalismo se esgotaria na tendência geral do
dessas obras a imagem mesma da processo, parece-me que, de certo
alienação do trabalho abstrato modo, reproduz a posição da crítica

rapsódia 233
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

moderna da arquitetura e patina por nova arquitetura que o crítico precisa


isso mesmo nos mesmos impasses. aprender a ver: em que os requisitos de
Ou seja, nos bons tempos do ecletismo funcionalidade e honestidade cons-
burguês do século passado, a arquitetura trutiva, desentranhada das expectativas
era sobretudo assunto de historiador da utilitárias do cidadão comum, se
arte: uma unidade arquitetônica resumia desdobram, na prosa crítica, em
quando muito um estilo de época. A considerações sobre massa, linha, cor,
reviravolta na crítica de arquitetura vai espaço, etc., como na percepção estética
se dar justamente com a entrada em plenamente realizada. Resultado: a
cena da Nova Construção, quando então ideologia se transfere da obra, inevita-
começou a abandonar o reino bolorento velmente inserida no plano positivo da
das Belas Artes – não sem ambigüidade, intervenção, para o discurso sobre a
uma espécie de ambivalência congênita mesma. Não surpreende então que
que até hoje nos acompanha como se voltem a repercutir na tarefa do crítico
pode perceber de saída no duplo as aporias que viram nascer no limiar
registro que orientava a propaganda de dos tempos modernos uma esfera
Le Corbusier em favor dos novos estética específica, a de um juízo
cânones construtivos. Para vender à estético, desinteressado por definição,
burguesia, que precisava ser convertida sobre uma obra interessada também por
à sua própria modernidade, a nova definição, devolvendo-a ao domínio
“máquina de morar”, era preciso privado do recolhimento estético, onde
igualmente subverter o pendor desta é mantida à distância, exatamente o que
para os arremedos dos estilos históricos não faz o público real a quem ela se
da arquitetura áulica e monumental, destina. E assim por diante.
com os seus excessos ornamentais, em Não é difícil perceber – seja dito de
nome da eficiência técnica e funcional. passagem – o quanto as considerações
Mas como afinal se tratava de de Habermas (que num certo sentido
Arquitetura e não apenas de Engenharia, inspiraram o Roberto) acerca do viés
era preciso buscar as motivações na estético do funcionalismo a ser
própria História da Arte: a simplicidade preservado a todo o custo, mais as
virava preceito estético caucionado pela dissociações que requer, se enredam
tradição das formas puras que remonta nessas mesmas antinomias que
às pirâmides do Egito. Assim, cumprida a remontam à crítica moderna da
dieta funcional, a Nova Construção arquitetura ainda no seu estado de
poderia entregar-se à emoção artística, inocência. Que começa a perder tão logo
assinalando o ingresso da arquitetura na os críticos resolvem enfim tomar ao pé
esfera da arte autônoma, além do mais da letra o ideal construtivo em questão,
decididamente não-figurativa. Esta a pois afinal os mestres modernos foram

rapsódia 234
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

os primeiros a proclamar que a arte acha que as obras modernas ainda


autônoma vira fetiche quando cancela apontam para uma promessa de
o seu ser-para-outro. Mas esse passo emancipação futura? E a arte
adiante da crítica, o reconhecimento contemporânea, conseguirá
da heteronomia da arte autônoma, que sobreviver à “morte” prevista por
se expressa nos desdobramentos Hegel?
sistêmicos das finalidades práticas, já A pergunta é difícil e tem vários
é contemporâneo dos primeiros sinais desdobramentos, mas talvez eu a possa
de esgotamento da Ideologia do Plano, resumir numa única questão: a
etc. O que torna ainda mais persistência ou não da experiência
insustentável a persistência hoje, por estética. Vou logo dizendo que acredito
parte de arquitetos e críticos, do que, mesmo no plano das chamadas
ponto de vista de artista, que já não é “belas artes”, algo mudou. Numa socie-
mais do que a expressão do dade em que não só todos os âmbitos da
formalismo integral em que foi se cultura se encontram totalmente
convertendo a arquitetura moderna. colonizados, sua inserção no mundo dos
Trata-se de uma nova “onda” negócios parece-me não deixar mais
esteticista (pós-moderna?) que celebra brechas para o prazer desinteressado,
a diferença, a efemeridade, o espetá- essencial a essa experiência. Esta se dá
culo, a moda, etc. Recrudescimento do de tal forma mediada, que já não mais
fetichismo portanto, porém noutro pode resultar de uma “promessa de
registro. A reificação das relações felicidade” inscrita na obra, nem mesmo
sociais toma agora forma de uma como cifra de um futuro que nos teria
irrealização do mundo convertido em sido usurpado. A arte hoje submergiu no
imagens, da publicidade às artes mundo prosaico dos negócios de uma tal
eletrônicas, passando pela arquitetura maneira, que é preciso reinventá-la (até
simulada, cenarística. Voltando à posso conceder que alguns gestos
questão colocada anteriormente: a isolados ocorram aqui e ali, porém, uma
imagem tátil arquitetônica cabalmente vez descobertos, são imediatamente
realizada revelou seu fundamento incorporados – mas este tema volta
histórico – a generalização da forma- numa próxima resposta). O que será a
mercadoria e sua apoteose arte então? Não sei. Eu lhes devolvo
publicitária. Mas este já é um outro a pergunta... Aliás, costumo utilizar
problema. a expressão modernidade “esvaída” para
me referir a certas obras – de arquite-
Como pensar a idéia de tura ou não – que retomam ou
experiência estética após a “revisitam” o passado próximo, mas que
falência desse projeto? A senhora não têm mais a mesma força expressiva

rapsódia 235
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

na origem daquelas criações ou expe- mesmo processo diagnosticado por


riências (e aqui eu penso especialmente Hegel, em que isto mesmo que então
nas obras de arte propriamente ditas) surgia como arte autônoma (uma inven-
vinculadas ao momento histórico em ção da sociedade burguesa) também se
que se deram e animadas pelas esgotou. Repito-me novamente, de
expectativas que o processo real da forma um pouco livre, agora num peque-
sociedade podia ainda alimentar. Numa no trecho da minha prova de livre-
entrevista recente, o Paulo (Arantes), docência, em que resumo sumariamente
depois de resumir a minha discussão este processo.
com o Roberto, explicava: “como nos Principiava pela constatação corrente
tempos de Hegel, ninguém está dizendo de que a principal característica da arte
que a Arte acabou, mas simplesmente na idade moderna é sua autonomia,
que a alta voltagem de uma primeira entendendo por isso – com os clássicos
audição de Schönberg ou a leitura de da teoria crítica – , que a ordem
um trecho inacabado de Kafka não se burguesa não só liberou a arte de suas
repetirá mais com a intensidade e a tutelas tradicionais (da Igreja à Corte),
verdade de quem se defronta com um como a instalou num mundo à parte,
limiar histórico”. E esta experiência muito além do domínio material da
rebaixada, acredito eu, ocorre tanto ao reprodução da vida. Graças a esta trans-
nível da audição ou leitura dessas obras cendência da dimensão estética, teria
modernas, como, com muito mais razão, passado para o primeiro plano o livre
na produção mimética de certos artistas desenvolvimento da obra segundo sua
– que em geral, a meu ver, não passam legalidade interna: ciência, moral e arte,
de amaneiramentos extemporâneos. cada uma dotada de uma lógica especí-
Aqui o outro item da pergunta- fica de validação, constituiriam os
sabatina que vocês estão me fazendo, momentos independentes em que se
tipo: você tem mesmo coragem de decompôs a razão objetiva da sociedade
repetir o que disse? Pois é, sou teimosa. pré-capitalista. Um tal desmembramento
Voltando ao Hegel e à morte da arte – era garantia de progresso e penhor da
assunto recorrente nos meus cursos –, modernidade em marcha. Portanto, a
acho que só aluno de primeiro ano tem emancipação da arte autônoma se deve
dúvidas a respeito e pode imaginar que à sua emancipação e à racionalização
Hegel teria decretado o desaparecimen- capitalista da dimensão cultural. No
to da arte, embora ela tenha deixado entanto, esse mesmo processo se encar-
de ocupar para ele a centralidade que regará de neutralizar a autonomia que
teve na história da consciência e não gerou à medida em que for consolidando
coubesse mais falar em “belo ideal”. Mas a arte como uma instituição positiva.
já estamos hoje numa outra etapa desse Cumprindo seu destino moderno, a arte

rapsódia 236
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

verá sua autonomia converter-se em arte cede lugar às inovações da


princípio de dissolução. Ora, foi produção material, da qual deveria ser
justamente isto que percebeu Hegel – o outro. Assim, o diagnóstico hegeliano
ele foi o primeiro a isolar o fenômeno acerca da dissolução da arte, em virtude
quando se deu conta de que a arte de tais injunções externas que acabavam
enquanto valor de culto chegara ao fim por absolutizar os meios, antecipava no
no momento mesmo em que a recém outro extremo o choque vanguardista
conquistada autonomia anunciava sua com a instituição arte. Nesse meio
dissolução já em curso. É que a lógica tempo a autonomia que derivara o seu
iluminista da autonomia “exteriorizara impulso próprio do culto profano do
integralmente os conteúdos nas formas belo regredira até o fetichismo da forma.
artísticas”, consagrando em Acresce que onde há diferenciação
conseqüência o primado da instância também há reificação, e conseqüente
técnica, ela mesma expressão da aspiração à fluidificação das barreiras
preponderância do novo sujeito que comprimem o mundo da vida. Arte
estético. Este o caminho que na arte autônoma é arte separada, enrijecida na
romântica mais avançada estava positividade (como diria o jovem Hegel).
convertendo os meios de representação Daí o programa vanguardista de
em tema objetivo da obra de arte, superação da arte, forçando a abertura
segundo Hegel. Constatada a reviravolta, do domínio estético represado pela
acreditava ele que a arte passaria a girar compartimentação moderna, reatando
em falso. a comunicação com o mundo
Neste ponto eu cheguei a cometer a empobrecido pela racionalização
blasfêmia de sugerir que faltara a Hegel instrumental. E tudo que daí se segue.
um pouco mais de dialética na Volto ao ponto inicial: quando as
compreensão deste novo passo na vanguardas se institucionalizam elas
história da arte. Ele não teria visto que também perdem o seu poder de fogo.
esta subjetivação que estava rebaixando Eu gosto muito de citar um diagnóstico
os conteúdos estava ao mesmo tempo do Perry Anderson a respeito do
liberando as forças produtivas da arte. programa de vanguarda do alto moder-
Mas é verdade que, ingressando no nismo, segundo o qual ela correspondia
domínio da racionalidade moderna, a a um tempo em que sobre um presente
arte autônoma (como foi dito acima) técnico ainda indeterminado pairavam
pagará tributo ao mundo diante do qual as nuvens carregadas da revolução
se afirmara tomando distância máxima: social, fazendo com que insurreição
à medida que cumpre essa lei formal vai estética e tomada do poder parecessem
incorporando modelos extra-artísticos ter encontro marcado na crise da
de racionalização. É quando o novo na sociedade burguesa que se aproximava.

rapsódia 237
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

Hoje o horizonte histórico se encolheu, outros aspectos da cultura


as energias utópicas parecem esgotadas. contemporânea?
A palavra de ordem de Rimbaud: “É De fato, a minha discussão sobre a
preciso ser absolutamente moderno”, foi espetacularização do urbano se
substituída por um sucedâneo narcisista, concentra na questão da cultura, ou no
espécie de conformismo minimalista: “É que chamei de culturalização do urbano
preciso ser aquilo que já se é”. E isto – não por questões profissionais,
numa era de debilitação radical do tampouco na intenção de centrar o foco
sujeito outrora consistente dos tempos numa única dimensão de todo o
do capitalismo liberal e do romance processo, mas porque este aspecto
realista. Deu-se então a conexão particular tornou-se central. Assim
inesperada: a desestetização da arte, sendo, procuro ressaltar, desde o início,
projetada pelas vanguardas, na esteira a novidade histórica de um fenômeno
da qual dar-se-ia a reapropriação da que os Modernos praticamente
existência alienada, culminou numa desconheceram. Até bem pouco tempo,
estetização da vida. Mas aí já estou a abordagem da cidade, tanto no plano
entrando no assunto das próximas per- prático das intervenções urbanas,
guntas. De qualquer modo, para quanto no âmbito do discurso teórico
concluir: depois de tudo o que eu disse é específico, se dava prioritariamente em
desnecessário confirmar – é isto mesmo, termos de racionalidade, funcionalidade,
não há mais lugar no mundo contem- salubridade, eficiência, ordenação das
porâneo, seja para uma criação artística, funções: em suma, falava-se e agia-se
seja para uma experiência estética nos em nome da sociedade no seu conjunto,
termos em que se deu no passado, mais pelo menos era assim na imaginação a
especificamente até o alto modernismo. um tempo política e técnica das pessoas
concernidas. Nos dias atuais, tudo
parece obedecer ao princípio máximo da
flexibilização. Daí o primado do
Atualidade desenho – do traçado urbano ao design
dos micro-espaços – e do tipo de
Sua crítica à “espetacularização do representação simbólica que lhe
urbano” se concentra na análise dos corresponde. Assim, fala-se cada vez
museus e projetos de “revitalização menos em planejamento da cidade, que
de áreas degradadas” nas grandes deste modo estaria obrigada a obedecer
metrópoles. A senhora poderia resu- a um modelo estável de otimização do
mir os principais argumentos de sua seu funcionamento, e cada vez mais em
crítica? Ela pode ser aplicada a requalificação, mas em termos tais que
a ênfase deixa de ser predominan-

rapsódia 238
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

temente técnica para recair no vasto uma só, ora é vista como inteiramente
domínio passepartout do “cultural”. cultural, ora como puramente
Portanto, quem hoje em dia mexe econômica.
com a arquitetura da cidade e demais Falsa oposição, dirá Jameson ao
tópicos adjacentes, cuida menos de uma entrar no debate nos anos 80, “tudo é
especialidade nova e batizada de cultural” obviamente por razões
transdisciplinar do que possivelmente econômicas. Não há como discordar.
do capítulo central do debate contem- À atual “apoteose do dinheiro” (na
porâneo – um campo de forças técnicas, expressão de Robert Kurz, literalmente:
artísticas e políticas marcado pela “a ascensão do dinheiro aos céus”) se
ascendência inconteste do supracitado deve o ímpeto peculiar de três setores
“cultural”. Pretendi mostrar em vários (em termos de “acumulação”), o
textos e falas como as políticas urbanas financeiro, o de tecnologia de ponta
são cada vez mais políticas culturais. (informática, telecomunicações,
Identificação nada arbitrária, pois é aeroespacial, etc.) e justamente o da
um fato indiscutível que a cidade foi se cultura mercantilizada, dita multimídia:
transformando em uma instância – ou seja, o triunfo da economia de
privilegiada mas de qualquer modo mercado redundando numa brutal con-
indiscernível – do assim chamado “cul- centração e financeirização da riqueza,
tural”, quando todas as coisas parecem a “cultura” tornou-se um grande negócio
virar cultura, ou ainda, sendo mais – da indústria cultural de massa
precisa, “bem cultural”. Expressão que (clássica) ao passo mais recente da
aliás não é nova porém denuncia uma intermediação cultural e correspondente
nova convergência, a saber, de dois consumo gentrificado (estudado pelo
diagnósticos de época em princípio Featherstone, na trilha do Bourdieu,
mutuamente excludentes: a) no atual chegando por aí até ao “consumo” da
estágio da sociedade de consumo, cidade).
a cultura – antes esfera autônoma e Já em meados dos anos 60, Guy
separada – tornou-se coextensiva Debord, no parágrafo§ 193 da Sociedade
à sociedade, que por isso mesmo passa do espetáculo, dizia, de forma
a ser denominada sociedade do premonitória: “a cultura tornada
espetáculo ou da imagem; b) por seu integralmente mercadoria deve também
lado, nesta mesma sociedade em que tornar-se a mercadoria vedete da
tudo é cultural, a economia irrompe não sociedade espetacular”. Em suma, a rea-
só como instância determinante, mas lidade última é sem dúvida a do capital
como princípio de dissolução de todas que, na sua quintessência, é a inflação
as relações humanas no estritamente hiperrealista do mundo das imagens,
econômico. Em suma, a realidade, que é mas é clara a reversibilidade de um no

rapsódia 239
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

outro – o mundo do dinheiro e o da serem instrumentalizadas na corrida


cultura – , já que o capital ou a riqueza competitiva das cidades, isto é, no
financeirizada é ela mesma um inchaço processo de mercadização cada vez mais
de ficção ou uma inflação rentista de integral de um bem cultural e
ativos. De outro lado, o descontrole da civilizatório por excelência como a
economia que se independentizou face cidade.
ao Estado Social quebrado pela sua Só este aspecto mereceria um longo
própria crise fiscal, também capítulo, na verdade central, pois tudo
descontrolou o reino “autônomo” da muda de figura no momento em que um
cultura, que, tornando-se ela própria um Museu ou uma Sala de Concerto é
artigo de comércio entre outros, não só projetado como mola para a
se autonomizou uma segunda vez (como gentrificação (ou enobrecimento, como
a própria economia), como se preferem dizer outros) de uma região
generalizou a ponto de entronizar o inteira de uma cidade. Como tratei por
esquema culturalista (de base extenso desse tópico altamente
antropológica) de explicação em última problemático em várias ocasiões e não
instância da sociedade. posso me estender demais, fica apenas a
Resumindo o que venho afirmando. indicação do caráter estratégico desse
Um dos traços do urbanismo dito de polo de investimento simbólico para as
última geração é que vive-se à espreita chamadas “máquinas urbanas de
de ocasiões... para fazer negócios! Sendo crescimento”, como alguém denominou
que o que está à venda é um produto a cidade gerida empresarialmente, desde
inédito, a própria cidade, que para tanto os anos 60/70 nos Estados Unidos, mais
precisa adotar uma política agressiva de recentemente na Europa e, hoje em
marketing, cujo ingrediente dia – pelo menos é o que pretendem
indispensável tem sido um sistemático alguns – , no Brasil. Pelas mesmas
agenciamento de iniciativas culturais, razões também apenas indico o
entre as quais destacam-se os sofisti- crescente papel de tais equipamentos
cados e aparatosos equipamentos como centro irradiador da “perso-
culturais. Vemos multiplicarem-se, a nalidade” (ou, no jargão, “identidade”)
cada dia, inclusive entre nós, tais peculiar da cidade que o hospeda, que
edifícios, ditos, como todos já estamos passa então, aliás como planejado, a ser
cansados de ouvir, “motores” ou identificada pelo seu centro cultural,
“alavancas” na “requalificação” (eufemis- museu, ou coisa que o valha – tanto faz,
mos hoje correntes entre urbanistas – e desde que seja uma isca prestigiosa, e
jornalistas...) das áreas “degradadas” suficientemente chamativa, como o
(id., ibidem) da cidade. Ou seja, vê-se Guggenheim-Gehry de Bilbao. Trata-se,
com naturalidade as atividades culturais é claro, de um lance de city marketing.

rapsódia 240
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

Antes de tudo, um bom prefeito deve atmosfera de vanguarda sugerida pelos


saber vender bem a imagem da sua volumes de corte desconstrucionista;
cidade, tanto ao investidor à procura de ambiência introvertida de uma enclave
uma localização segura quanto à própria para os happy few. Um ícone, enfim, do
população, reforçando-lhe o mundo dos integrados, no caso a
“patriotismo de cidade”, como se diz, a indispensável janela dos altos serviços
propósito desse novo tipo de fidelidade culturais se abrindo para o terciário
do consumidor a uma “marca”. Ao avançado, sem o qual a mencionada
mesmo tempo, se todos procuram o seu vontade elegantemente arrivista de
Guggenheim, fica muito difícil distinguir inserção não passaria de um voto
a diferença buscada como valor piedoso.
associado ao “logo” da firma da Identificação paradoxal, para dizer o
padronização (ainda fordista) de um menos. Pois o reconhecimento externo e
McDonald’s franquiado, fazendo a tal interno buscado se daria em torno de
“identidade” mudar de sinal, sinônimo um ponto de fuga tanto mais localmente
do sempre igual gerado pelo capital, que aglutinador, como pretende, quanto
precisa se sentir em casa, e seguro, em mais se apresenta como uma verdadeira
toda e qualquer parte do mundo. marca de extraterritorialidade, indife-
Em resumo: O que uma tal imagem de rentemente implantável em qualquer
cidade anuncia? Em primeiro lugar, que outro nó da malha global. Por isso
ela, no caso Bilbao, possui um Gehry, mesmo é dita simbólica essa identidade
assim como São Francisco tem um estrategicamente planejada com os
museu assinado por Mário Botta, Los meios altamente persuasivos da cultura
Angeles, um Isosaki, mais um Richard arquitetônica da imagem, inflacionada
Meyer, etc., todos membros do star por duas décadas de pós-modernismo.
system da arquitetura mundial. Essa Quanto ao recheio do museu, ficará em
imagem estratégica está portanto grande parte por conta das coleções
informando que existe doravante no itinerantes do próprio Guggenheim –
País Basco uma real vontade de inserção outra ocorrência em rede, cuja resso-
nas redes globais, que sua capital deixou nância cultural local tampouco é
de ser uma cidade-problema e pode vir a relevante, ou melhor, se resume a filas
ser uma confiável cidade-negócio. de dobrar esquinas – , dupla imagem da
De fato, o que se dá mesmo a ver é o afluência que confirma o acerto do
próprio emblema da credibilidade, os investimento nos serviços de alta
sinais emitidos por aquele consumado visibilidade, de preferência em escala
exemplar de maneirismo arquitetônico: monumental. À vista de uma sonda
materiais ostensivamente calculados cultural como esta, uma agência
para ofuscar pelo brilho high tech; internacional de avaliação de risco

rapsódia 241
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

concluiria que no País Basco os gover- arte de mercado de consumo de massa,


nantes finalmente resolveram “pensar mais próximo do dealership do que da
global para agir local”, como manda a indústria propriamente dita, Krens só se
boa gramática gerencial. refere ao Guggenheim como museum
industry, no caso, overcapitalized, em
Como a senhora explica a atual busca de mergers and acquisitions e
multiplicação de museus? Que papel carecendo de um asset management.
eles têm, além de dar prestígio às Na mesma linha, exposições e catálogos
cidades que os abrigam? Pode-se são para ele “produtos” cujo marketing
falar numa nova arquitetura de adequado requer uma área de venda
museus? cada vez maior, de sorte a aumentar sua
Continuo com o exemplo do “fatia de mercado”. De certa maneira
Guggenheim. Não por acaso, Rosalind não se pode negar que estaria assim se
Krauss, ao refletir sobre “A lógica realizando no domínio insuspeitado da
cultural dos museus no capitalismo arte o ideal de valorização do capital,
avançado” (comunicação apresentada no encurtar ao máximo o tempo de
CIMAM de 1990, em Los Angeles), numa circulação, juntando na mesma opera-
clara alusão a Fredric Jameson, encerra ção produção e consumo. Conhecemos
o argumento sobre a “virada” ocorrida o resultado: a multiplicação de museus
tanto no campo da produção artística Guggenheim mundo afora, segundo o
quanto nas instituições que as veiculam, modelo Disney, como aliás faz questão
referindo-se à “revolução” provocada de salientar o próprio Krens, através de
por Thomas Krens (hoje, sabidamente, a franquias, permitindo assim abrigar
maior “autoridade” em matéria de tanto o acervo da coleção quanto fazer
negócios no campo das artes plásticas – circular as obras e promover exposições
instituições, circuitos, etc.). Justamente itinerantes mais facilmente patrociná-
um graduado em Ciências Empresariais veis por terem assegurada uma rede de
por Yale na direção do Guggenheim, e lugares, exponenciando a rentabilidade
que justificava seus lances ousados conforme se replicam as mostras.
dizendo estar ocorrendo com os museus Isso sem entrar nos detalhes das
algo da mesma ordem do que sucedera negociações ocorridas, desde a venda da
em todos os outros setores em que a marca – veja-se as idas e vindas nas
industrialização também acabou por se tratativas com a administração
instalar – da agricultura ao esporte. Por espanhola e, mais especificamente, de
que não na Arte? Basta reparar no modo Bilbao – em que o caráter comercial e
desabusado pelo qual se exprime Krens publicitário era nitidamente enfatizado,
para sentir o tamanho da virada em até a apresentação da maquete do
curso: embora distinguindo mercado da projeto no Prédio da Bolsa de Bilbao, e a

rapsódia 242
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

assinatura do contrato em Wall Street; projeto heróico”. Por que? “Porque nos
ou ao mediar a aquisição de algumas ajuda a definir o que serão os museus”.
obras que constituiriam o acervo (a Ou seja, é um experimento para o que
coleção Panza – de obras minimalistas serão os museus como instituição no
americanas, cuja aquisição por Krens século vinte e um.
aumentara o endividamento da Segundo Jeremy Rifkin, em Idade do
Fundação e que se destinaria ao novo acesso1, também neste setor, o das
museu, que, no limite a pagaria, via franquias, a mudança atual de
franquia e outras benesses – teve o veto “paradigma” teria se feito sentir: “se a
dos espanhóis, sobrou apenas Richard franquia de marcas e produtos existe há
Serra com sua sala especial, num mais de um século – diz ele – , a fran-
destaque que não deixava dúvidas de quia de conceitos é uma idéia inédita,
que o museu, embora financiado pelos que funciona na base de premissas
espanhóis, era na verdade americano), muito mais compatíveis com a lógica do
acervo este adquirido através de suas acesso do que aquela da propriedade”.
“ligações perigosas” com a Sotheby’s – As empresas de serviço portanto não
como todas as transações que costu- apenas vendem suas marcas, mas suas
mam ocorrer no âmbito dos grandes fórmulas de organização, funcionamen-
negócios e das quais, novamente, não to, marketing, etc. Donde o crescimento
poderia se resguardar um museu que se exponencial das franquias – agora,
paute pela ousadia. Sem contar, como se pode constatar, introduzidas no
obviamente, o chamariz arquitetônico de circuito das artes.
Frank Gehry. O que levou Andrew Desde 1998, a nova dupla Krens-
Decker a questionar, num de seus Gehry ronda o Brasil com o intuito
artigos, se o Guggenheim seria uma de “seduzir” (a expressão é do próprio
instituição cultural que necessitava levar Krens, que se auto denomina “um
em conta as leis dos negócios ou era, sedutor profissional”)2 alguns prefeitos
ao contrário, um negócio sem mais... ou curadores incautos, e, enquanto aqui
O próprio Krens ao referir-se ao que se se discute se será melhor construir o
inaugurava com Bilbao: – franquias em museu nesta ou naquela região do Rio
museus –, dizia: “Este projeto é um de Janeiro, o Guggenheim desmente que

1 Cf. L’âge de l’accés – la révolution de la nouvelle économie. Paris: La


Découverte.
2 Ver a respeito de todas essas transações que redundaram no museu de Bilbao o
livro de Joseba ZULAIKA: Guggenheim Bilbao: cronica de una seducción.
Madri: Nerea, 1997.

rapsódia 243
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

o negócio esteja sendo fechado, pois movimentam milhões de dólares e fazem


alega estar com problemas de caixa, ou mover a manivela dos altos negócios.
seja, é preciso valorizar-se ao máximo: Aliás, não por acaso o futuro dos
2.000.000 de dólares para avaliar as museus foi assunto em Davos 2001 e,
condições, 100 para construir o museu, como registra o correspondente do jor-
20 (ao menos foi a soma da franquia em nal O Estado de São Paulo, Th. Krens
Bilbao, e é o preço da sedução era um dos experts (!) mais solicitados
anunciada pelo diretor-empreiteiro- nos debates, em que foi ficando cada vez
sedutor) para vender a marca, poder de mais evidente – escreve o jornalista –
decisão sobre as mostras (afinal mostras “que o gestor do museu do futuro vai ter
de motos, roupas Armani, ou o acervo cada vez mais um perfil que se apro-
de l’Hermitage – ao qual a Fundação xime do CEO ou COO de uma empresa
acaba de se associar – são indiferentes, (principal executivo ou executivo chefe
desde que lhe garantam um bom das operações). Ele deve ser mais um
retorno), ao mesmo tempo que a cidade generalista do que um especialista”.3
que o sediará, e que terá que financiar Voltando ao nosso personagem, há
ou conseguir o financiamento para a quase dez anos Luis Fernandez-Galiano
obra, se alimentará da ilusão de estar se já observava que Krens introduzira no
beneficiando com a leva de turistas que, mundo exclusivo dos museus o estilo
no caso de Bilbao, nem mesmo visitam a agressivo (como dizem os publicitários)
cidade, mas que obrigam a adminis- dos operadores financeiros, um misto de
tração local a investir sempre mais na Mikel Milken e Donald Trump, vendo no
mesma região, dualizando de vez a museu o capital fixo e nas obras o
capital basca. O que não há de ocorrer capital circulante, aplicando à cultura,
no Brasil, onde nenhum estrangeiro virá em suma, toda a “filosofia da engenharia
para ver mais um Guggenheim-Gehry financeira”. Ou as artimanhas de um
(agora, aparentemente substituído por negociante sedutor e inventivo.
Jean Nouvel) – seremos nós mesmos Não surpreende pois que outros
a pagar esta conta, de cabo a rabo. museus estejam adotando este modelo
De qualquer modo, não há como não empresarial, inclusive trazendo
reconhecer que a empreitada é de vulto empresários de verdade para dirigi-los,
e que as exposições que se sucedem empresários que, ocupando o vazio
neste e noutros museus, cujos acervos deixado pela oportuna retirada do Esta-
são cada vez mais circulantes, do desse campo (ao menos da gestão,

3 Cf. Jornal do Dia, 25.03.2001, p. d12.

rapsódia 244
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

pois pelo menos através de incentivos, Um novo episódio, também bastante


ou contrapartidas de empréstimos de próximo: o novo MAC/USP. Uma
agências multilaterais, ele está presente, Universidade em crise, um acervo
quando não na construção de toda a excelente: por que não geri-lo sem os
infra-estrutura urbana necessária para o entraves burocráticos e dando-lhe a
empreendimento), se transformam em visibilidade que merece? Com estes
seus patrocinadores, com direito a argumentos, uma Associação de amigos
sociedade no espaço. Veja-se a esse do MAC convida alguns arquitetos de
respeito a nova Tate, onde quem renome para um concurso fechado, foge
contribuiu para bancar a reforma da das licitações, coloca o museu no lugar
usina elétrica desativada em que foi mais surpreendente, no Bairro da Água
instalada tem direito de usá-la, por Branca, pretendendo ser aí um “novo
exemplo, para recepções. (O detalhe é eixo cultural”, mas não por acaso dentro
menos desimportante do que parece, de uma Operação Urbana, beneficiando-
aliás, é crucial: em uma nova aliança de se da lei que obriga a troca de
poder e dinheiro organizada em rede, o coeficiente construtivo por área de
contato pessoal, e portanto o espaço interesse social (aliás este está sendo
estratégico no qual ele se dá torna-se um expediente recorrente em São Paulo,
indispensável). Mais próximo de nós, veja-se o shopping do Silvio Santos no
veja-se o caso do nosso (?) MASP: Bexiga, transformado em “Complexo de
“construído em terreno cedido pela entretenimento”, para driblar todas as
prefeitura, o edifício do MASP também restrições de índices construtivos; ou o
pertence à municipalidade. Já a Centro Cultural Tomie Othake, possibi-
Associação MASP, composta de membros litando ao grupo Axé a construção de
auto-indicados, é uma instituição megatorres de escritórios, por sinal com
privada, detentora do acervo do museu projeto do próprio Ruy Othake; e bem
e com licença para usar o prédio”. recentemente o projeto o Centro
E como indicam as aspas não sou eu empresarial e cultural Gold Center, ao
quem estou estranhando o fato.4 Numa lado do Parque Villa-Lobos – ele mesmo,
palavra, não se gerencia empresa- algo no gênero). No caso do MAC e da
rialmente a cultura se a estratégia não Operação Água Branca: em se tratando
for a apropriação en privé de um de um grande Centro Empresarial ainda
recurso coletivo, melhor ainda quando por ser ocupado e ativado, nada melhor
o intermediário desse processo é o do que associá-lo a um empreendimento
próprio Estado. que, além de satisfazer à demanda de

4 Cf. Caderno T da revista Bravo de agosto de 2001, p. 7.

rapsódia 245
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

seus futuros freqüentadores, antes de como um pacote de bombons, perdida


tudo serve de marca publicitária em meio aos trilhos da antiga FEPASA.
nobilitadora, um museu de arte e da USP. Aliás é bom não esquecer que Tshumi
Entusiasmado, o Secretário de Plane- é o mesmo arquiteto que projetou as
jamento da Cidade declara à imprensa: “folies” do Parque de la Villette –
“São Paulo precisa se qualificar (sic), a pequenas construções em ferro,
presença de grandes nomes pode vermelhas, sem função aparente, salvo
ajudar”. E um destes, não por acaso o pontuar a paisagem e citar Chernikov
escolhido, Bernard Tschumi, afirma (ou seja, restringir-se a uma auto-
encantado: “o lugar onde deve ser referência arquitetônica), e que, como
construído o museu é absolutamente Gehry, Eisenman, Libeskind, e outros,
contemporâneo, ao lado de uma estrada fazia parte do grupo dos assim chamados
de ferro, um viaduto e um shopping arquitetos “desconstrucionistas”, sendo
center! Não falta nada”. Em seu projeto ainda mais radical do que o mago de
aliás ele se encarregará de completar Bilbao quanto a pensar a arquitetura
o que hoje é condição sine qua non de como “disjunção”, inclusive entre forma
todo museu ou centro cultural que se e função – igualmente múltiplas e
preze: dos dez andares, três são de cambiáveis. Ora, por isso mesmo, talvez
galerias (calculadas na devida medida do sejam estes os arquitetos que melhor
acervo? ou para que tipo de exposições? compreenderam o que sejam hoje (ou
pressupõem algum programa curatorial? justamente não sejam) os “novos
mas talvez ainda seja cedo para definir museus”. Foi-se o tempo em que um
isso e hoje em dia não é bem esta a determinado acervo de objetos de valor
preocupação maior dos júris que cultural reconhecido era suficiente para
avaliam tais projetos), quatro são de definir a natureza e destino de um
estacionamento (algo que não poderia museu. Bem como sua arquitetura. Como
faltar numa cidade como São Paulo – nem mesmo esse mínimo é mais
no caso, permitindo que se vá com necessário para especificar um museu,
facilidade de um parking a outro: do fica difícil dizer ao certo do que se está
shopping Plaza, por exemplo, para o do falando quando o tema é a arquitetura
Museu. Consumo com comodidade e dos museus. Na verdade, um paradoxo
segurança), mas sem esquecer o “sky- bem conhecido: por um lado, somos
lobby”, com restaurante, loja e uma testemunhas de uma avalanche museal
pequena galeria; finalmente rampas que inédita; por outro, quanto mais a maré
propiciam uma visão ampla da cidade, se avoluma, menos sabemos dizer com
jardim e mais outro restaurante. Agora, que objeto estamos de fato lidando.
sim, podemos dizer: “Não falta nada” a Os inúmeros encontros internacionais
esta grande caixa de vidro avermelhada, promovidos pelo ICOM, Museus e outros

rapsódia 246
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

organismos do gênero, não fazem senão museu nos tempos atuais é um convite à
reforçar esse sentimento ambivalente de conversão da arquitetura numa imensa
que a instituição museu está em crise no floração de formas intransitivas se
momento mesmo de sua proliferação e desdobrando no espaço (não por acaso
diversificação numa escala mundial associa-se o museu do Gehry, em Bilbao,
nunca vista. E isto não se deve apenas a uma papoula, por vezes a um polvo ou
ao fato de não haver mais limites, tanto mesmo um barco; o de Milwake, do
temporais quanto disciplinares – pode- Calatrava, a uma libélula; o Museu
se expor de tudo ou mesmo nada, Municipal de Kushiro, no Japão, do
misturar “produtos culturais” (outra arquiteto Kiko Mozuna, a um pássaro de
novidade, inclusive na terminologia bem ouro, e assim por diante). Já dizia Tshumi
sintomática) cuja justaposição num há vinte anos atrás: deve-se olhar uma
mesmo espaço de exibição nobre seria obra de arquitetura como se fossem
noutros tempos impensável, sem falar movimentos coreográficos – “cheios e
na velha e obsoleta distinção entre o vazios, seqüências, articulações,
baixo e o elevado em termos estéticos –, colisões”. Enfim, algo que está sempre
mas sobretudo à multiplicação de no “limite” de vir a ser algo diverso.
atividades de tal modo heteróclitas Está claro que nestas circunstâncias
abrigadas sob o seu teto (dos projetar museus já não apresenta a
tradicionais ateliês de ensino e criação mesma óbvia inocência de antigamente.
aos novos serviços de informação e Superdimensionamento,
consumo oferecidos aos seus visitantes, espetacularização, etc. são sintomas que
ou melhor, usuários), que já se tentou falam por si. Quando se diz que a “caixa”
de tudo em matéria de analogia para do museu se rompeu, o que de fato se
qualificar esses novos edifícios que está constatando, para além da
ainda levam o nome de museus: centro dimensão propriamente morfológica,
cultural, shopping center, complexo de é que não se trata mais de um edifício
entretenimento (eufemismo para destinado a abrigar objetos cuja
shopping que graças a algum apêndice apreciação procura facilitar da melhor
dito cultural se beneficia de incentivos maneira. Ocorre que tal destinação
fiscais e outras leis urbanas, como elementar já comparece mediada pelas
vimos), parques temáticos, e por aí “n” funções que o museu passou a
afora. exercer. A novidade não está de modo
Indefinição que evidentemente se algum na implosão do “caixote”, mas
reflete no trabalho do arquiteto. O que nessa resultante sobredeterminada de
de fato ele estaria projetando quando exigências e pressões das mais variadas
projeta um museu nos dias de hoje? Pois procedências, da política cultural de
essa indeterminação mesma da forma- turno aos múltiplos interesses das novas

rapsódia 247
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

máquinas de crescimento urbano, sem Retomando o que eu vinha dizendo:


contar os altos negócios que aí se pouco importa se é um museu privado
agenciam. Pois é essa promiscuidade ou público, exigem-se curadores ou
que aflora já no desenho mesmo desses diretores artísticos que funcionem
edifícios que vão se reproduzindo também como managers, caso não
mundo afora com o velho nome de contratem os serviços especializados de
museu. um gerente, ou um publicitário.
Não há dúvida, trata-se de um O mesmo que eu dizia sobre os novos
verdadeiro tournant que trouxe a diretores-gerentes também se aplica aos
cultura para o coração dos negócios – o curadores, no limite são eles (quando se
encontro glamouroso entre cultura, distinguem da figura do diretor) quem
dinheiro e poder – e que se expressa no programa e, na maior parte das vezes,
que venho chamando de “culturalismo agencia as mostras estáveis e itinerantes
de mercado”, a propósito do papel que fazem funcionar esse novo circuito
desempenhado pela cultura nas novas das artes. Aliás eles próprios também
gestões urbanas, mas que serve para circulam, constituindo um verdadeiro
designar este amálgama inédito entre star system de curadores que fazem
cultura e mercado. É claro que não estou carreira indo de um museu a outro, de
me referindo à simples relação entre uma mostra internacional à outra, e
arte e mercado, sem cujo contraponto assim por diante. Fechando o círculo
de nascença, quase sempre hostil mas perceberemos que esta simbiose vale
não raro convergente, não se teria também para os artistas que se
notícia de algo como a moderna obra de apresentam no mercado do patrocínio.
arte autônoma – como já se disse, uma Em escala maior, estamos vendo o
mercadoria paradoxal. Estou sim me museu – por definição um recurso
referindo a essa inédita centralidade da civilizatório, qualquer que seja a forma
cultura na reprodução do mundo histórica na qual se apresente –
capitalista, na qual, como estou convertido, e legitimado apenas nesta
sugerindo, o papel dos equipamentos medida, em polo midiático de atração
culturais está se tornando por sua vez econômica, sem falar na referência de
igualmente decisivo. distinção que sinaliza para as classes
tradicionais, como quem diz “também
Nesse contexto dos “novos museus”, estamos na rede”.
o que a senhora pensa sobre a Não saberia precisar exatamente o
figura do curador e o trabalho de momento dessa reviravolta no campo
curadoria? E qual o papel do artístico e que vai se refletir,
artista? evidentemente, na função e natureza,

rapsódia 248
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

por exemplo, dos museus. Há quem veja ocorresse uma reprogramação


na eclosão da arte tecnicamente empresarial do espírito, agora voltado
reprodutível – na análise clássica de para si mesmo e embrulhado numa
Walter Benjamin –, responsável pelo retórica da “autenticidade”, da ação
declínio da obra de arte aurática em comunicacional, da transparência, etc. –
favor do valor de exposição, esse a nova forma da ideologia, aquilo que
momento decisivo de inflexão. Por esse alguns autores começaram a chamar de
caminho, tanto Rosalind Krauss quanto “ideologia soft” (p. ex. François Bernard
Jean-Marc Poinsot, por exemplo, apesar Huyghe e Pierre Barbès, ou Jean-Pierre
de suas divergências, concordam em Le Goff)6: a tentativa de uma homoge-
atribuir ao Minimalismo, mais neização de outro tipo da sociedade,
especificamente à produção do objeto através justamente da retomada massiva
em série, a virada em que a obra passa a do vocabulário crítico e artístico
ser produzida para ser reproduzida e, a transformado nada mais nada menos do
seu modo, consumida5. E “consumida” que numa fórmula adaptativa, de cunho
como valor de troca, de sorte que o nitidamente gerencial, ou seja, a nova
museu passa a ter algo de empório, ou fórmula do sucesso. Mais especifica-
então teatro em que a mercadoria-arte mente, citando Huyghe: “Uma das
seria encenada na sua forma funções principais da ideologia soft é
publicitária. assegurar, numa sociedade fatigada pela
Além disso, o minimalismo coincidiria algazarra da história, a concordância
com o fim do artista deificado, do sujeito sobre um modo de vida apático e
artista, da assinatura, da criatividade comum”, em que cada um se sente livre
expressiva, etc., enfim, de todos os para procurar seu “petit bonheur”
valores tradicionais da arte, que cedem privado. Esta, pode-se dizer, a extensão
lugar a um novo indivíduo – à subjeti- da lógica produtiva da “barbárie doce”,
vidade vazia de um eu mínimo, para de que fala Le Goff. Ou ainda, voltando
utilizar a expressão de Lasch. É como se a Lasch: a única “experiência” que esses

5 Os textos a que estou me referindo são: a comunicação citada há pouco,


de Rosalink KRAUSS, e, de Jean-Marc POINSOT: “Quand l’oeuvre a lieu”.
In: Parachute, no 4º 6. Montréal: 1987, p. 70-7.
6 François-Bernard HUYGUE e Pierre BARBÈS, La soft idéologie. Paris: Robert
Laffont, 1987 e Jean Pierre LE GOFF: Le mythe de l’entreprise. Paris:
La Découverte, 1995, em especial o capítulo “De l’échec de Mai 68 à la barbarie
douce du management”.

rapsódia 249
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

artistas transmitem é a da irrealidade, enfim, atores sociais que antes possuíam


em que a única coisa que sobrevive é o uma certa independência, mas que hoje
eu, mas um eu sem sujeito, reduzido ao migraram para a esfera mercantil a
grau zero da sobrevivência7. ponto de se transformarem em meros
Segundo Jeremy Rifkin (no livro citado “instrumentos da função marketing”8.
há pouco), uma das características da É quando os valores reativos da
nova economia seria justamente esta: a crítica, por natureza contestadora e
de ser uma “economia da experiência” – anti-sistêmica, se transformam, como
em que as pessoas consomem a sua alertam Boltanski e Chiapello (pensando
própria experiência fazendo a aquisição especialmente no surto neo-vanguar-
dela por segmentos comercializados. dista “68”), em cooperativos e
Por isto mesmo, diz ele, “os setores de descambam para novas formas de
ponta do futuro repousarão sobre a opressão e de mercadização que ela
mercadização de toda uma gama de mesma (a crítica, especialmente
experiências culturais antes do que artística) involuntariamente contribuiu
sobre os produtos e os serviços para tornar possível9. O que de fato
tradicionais fornecidos pela indústria”. parece ter acontecido é a migração dos
Ao mesmo tempo, constata ele, quando valores propugnados por aquela crítica
o capitalismo evolui para a produção para o mundo empresarial e vice-versa:
cultural e a mercadização da as antigas barreiras que separavam os
experiência, uma nova elite, e não mais dois mundos em princípio antagônicos –
a classe burguesa e proprietária, começa dos negócios e da vida de artista –
a definir as normas e valores da teriam se tornando de tal modo porosas,
sociedade – os “intermediários que ficou cada vez mais difícil distinguir
culturais”, cujo poder reside nos “ativos um artista digamos “empreendedor” de
imateriais” que possuem: “saber, um executivo de uma firma que funcione
criatividade, sensibilidade artística e na base de prospecção de “parcerias”
talentos de empresários culturais, para a realização de “projetos”. Notam
expertise profissional e faro comercial”. os mesmos autores, por exemplo, que o
São artistas, intelectuais, publicitários, elogio corrente da alta produtividade,

7 Cf. O mínimo eu. São Paulo: Brasiliense, 1986.


8 Cf. L’âge de l’accés – la révolution de la nouvelle économie, p. 14-5 e 235.
9 Cf. Le nouvel esprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999.

rapsódia 250
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

característica das novas tecnologias, se no campo das artes, da produção ao


dá nos termos em que se costumava consumo, marketing incluído, por
descrever a função por assim dizer suposto. São portanto os que, num certo
desbravadora da arte, como criativida- sentido, definem o rumo das artes e
de, imaginação, invenção, inovação, etc. induzem a própria “criação” dos artistas.
Por sua vez, termos recorrentes, estes “Jamais, em todo o caso – diz Gaudibert
últimos, na caracterização do novo – o bloco produtores-difusores foi tão
manager requerido pela organização homogêneo; o marchand e seus artistas
dita “em rede” da atual produção dão a imagem de uma coesão de
capitalista flexível, cada vez mais um empresa moderna, eficaz, solidária..., a
profissional que se destacará pelo anti- um tal ponto, que a noção de co-autor
convencionalismo, pela versatilidade em cúmplice, de ‘artista à sua maneira’
multiplicar projetos e estabelecer boas nunca foi tão reivindicada por este
conexões num mundo de negócios cada empresário das artes”. Fica assim difícil
vez mais relacional (a ponto de o precisar por onde tudo começa: pelo
contato pessoal em lugares privilegiados crítico, pelo marchand, pelo banqueiro
tornar-se fundamental). Enfim, deverá – de quem foi a idéia? Avançando ainda
mostrar-se criativo como um... artista – mais o sinal, este mesmo autor chega
o qual, por sua vez, foi se tornando um a sustentar que já existe algo como uma
especialista em costurar patrocínios e internacional do mercado de arte que
parcerias, e cuja “arte” foi se transfor- funciona como uma seita, com seus
mando num “produto” de equipe, ou de terroristas e integristas! Segundo ele,
um “círculo de qualidade”, como se diz o sistema já estaria tão instalado que
no jargão pós-fordista. possui “todas as síndro-mes próprias aos
Círculo a que Pierre Gaudibert chama grandes negócios especulativos: baixa
de experts-profissionais-dispondo-de- de qualidade, repetição, preços exorbi-
critérios-de-valor-na-arte-contempo- tantes, blefes quanto à originalidade,
rânea. Na opinião do autor, expressa intromissão, terrorismo intelectual,
num livro conjunto com Henri Cueco, uniformização (...) Todo produto deve
L’arène de l‘Art, a chamada “arte ser simples, claro, definível em poucas
internacional” dependeria exclusiva- frases. A obra é seu próprio logo, tão
mente de um um grupo muito restrito opaco e simplificado como uma
de decisores: conservadores de museus, embalagem”. De outro lado estas obras
marchands, alguns colecionadores e em geral “são de grandes dimensões,
críticos de arte, os promotores e realiza- com uma ampliação de sua presença
dores de exposições que, inclusive, se física: efeitos de matéria, objetos,
apresentam como “criadores”. São estes colagens, pinturas dilatadas de efeitos
os que detêm as rédeas dos negócios teatrais. (...) Trata-se antes de tudo de

rapsódia 251
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

criar para os decisores mundiais uma queiram ganhar projeção e circular


arte espetacular, passe-partout” 10. mundo afora. Veja-se o caso do
Em grande parte dos casos, aliás, são “maldito” Hans Haacke, prêmio em
obras que circulam de mostra em Veneza; ou, por exemplo, o de Damien
mostra, sem que haja a menor Hirst, um dos nomes mais conhecidos
possibilidade de serem adquiridas por da atual britart – “o rei do marketing”,
colecionadores particulares. Muitas segundo reportagem recente de uma
delas, por sinal, não passam de projetos revista brasileira11 – que vende suas
a serem realizados no local – milhares obras por altos preços, ao mesmo tempo
de latas, de cordas, de sacos, etc., nem que cultiva a imagem de artista
sempre transportáveis, mas que podem polivalente (produz quadros, esculturas,
ser refeitos cada vez, ou comportam livros, vídeos, instalações...) e
variantes, desde que o que está sendo extravagante (com o que pretende estar
exposto corresponda às expectativas questionando, à maneira das velhas
geradas pelos eventos anteriores. vanguardas, o establishment dos novos
As famosas instalações. Ou seja, o que artistas-managers, embora o que venda
circula de fato é o artista, ou melhor a seja em grande parte, justamente, esta
sua imagem, ou a “experiência” que fachada de artista romântico que
sucita – o que os obriga a um contato constrói, sem falar que seus patroci-
permanente com a mídia, pois têm que nadores são nada mais nada menos do
atuar dentro do referido circuito, que o diretor da Tate e o galerista
associando sua imagem a certas marcas Charles Saatchi – um dos promotores da
inconfundíveis: bichos empalhados, campanha que levou Margareth Tatcher
corpos mutilados, pratos quebrados, ao poder).
monumentos travestidos e assim por
diante. Por isso mesmo, o circuito O que a Senhora acha da
absorve sem problemas e até participação crescente de artistas e
encomenda obras que fizeram sucesso arquitetos no mundo da moda e
por seu caráter iconoclasta, anti- vice-versa, da invasão dos museus e
institucional, etc. e que passam a ter um dos circuito das artes pelos
alto valor, a ponto de serem estilistas?
indispensáveis em exposições-marcos, “Contaminações” me parece uma boa
como as bienais que se prezem e caracterização para esse novo mundo

10 Cf. L’arène de l’Art. Paris: Galilée, 1988, p. 10, 12, 30-5.


11 Cf. Carta Capital, ano VIII, n º168, dez. 2001, p. 64-6.

rapsódia 252
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

misturado dos museus, e suas mais em seus desfiles, e além da cadeira de


inesperadas ramificações. Por ocasião PMR também tenciona introduzir seus
do Morumbi-Fashion de 1999, o jorna- produtos no mercado fonográfico.
lista Antônio Gonçalves Filho intitulava A essa altura, inútil lembrar que a M.
sua matéria a respeito: “O arquiteto dos Officer atua igualmente na “área social”,
museus entra na passarela da moda”12. com a mesma desenvoltura com que
O arquiteto em questão era Paulo expande o núcleo cultural dos negócios
Mendes da Rocha, convidado pelo dono da moda. O novo na atualidade destas
da M. Officer para desenhar o espaço do contaminações é a tranqüila desinibi-
desfile da grife. A mesma matéria nos ção com que se anuncia seu teor de
informa que o novo parceiro do estilista estratégia a um tempo cultural e
Carlos Miele teria consentido em mercadológica, sem o que uma não vai
relançar sua cadeira Paulistano (proje- sem a outra. Tornou-se a coisa mais
tada em 1957 para o Clube do mesmo natural do mundo que quem fale em
nome) para a qual o empresário, por seu cultura também fale necessariamente em
turno, teria criado novas capas, uma management. Assim que o diretor
para cada estação do ano, como seria de executivo da Cartier afirme que é preci-
se prever em se tratando de moda, uma so aproveitar o fato de que a cultura
espécie de colete que num determinado está na moda, tornou-se uma espécie de
momento uma modelo vestiria em senso comum comercial.
performance a parte durante o desfile. Daí o caráter cada vez mais “cultural”
Também somos informados pela matéria de que precisa se revestir a esfera dos
que a cidade teria ganho um novo negócios (da imagem de “marca” à
estilista, já que sobre o manequim “atitude” empresarial), e a necessária
suspendia-se um vestido longo trazendo organização empresarial de qualquer
estampado o esboço original do MuBE. iniciativa artística que aspire à
A um tal livre trânsito justamente o indispensável “visibilidade” numa
proprietário da grife deu o nome de sociedade de redes efêmeras. Por isso,
“Contaminação” (título da “mostra”, ou hoje em dia, o estilista de moda – mais
desfile). Como disse, não sei de deno- do que o cineasta – parece ter se
minação mais apropriada para esse tornado a figura emblemática entre esta
intercâmbio de funções, para ficar ainda criação estética e o management
nos termos do artigo original. Acresce flexível. A apresentação de uma coleção
que a M. Officer também produz vídeos mobiliza uma rede considerável de
e performances de artistas de renome cenógrafos, músicos, promotores,

12 Folha de São Paulo, 11.01.1999, p. d1.

rapsódia 253
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

fornecedores de estamparia, costureiras, e da moda. Assim, vários deles, que se


publicitários, arquitetos-cenaristas, tornaram conhecidos por seus museus
designers gráficos, jornalistas ou centros culturais, passaram a
especializados, e tudo com um roteiro projetar lojas de grifes ou espaços de
“artístico” (a proposta...) como uma série desfiles. Aliás, os mesmos que também
de instalações ou um desfile de escolas são responsáveis pela ambientação das
de samba (hoje também uma indústria grandes mostras de arte. Por exemplo,
flexível). Só assim se constrói uma Jean Nouvel, que se celebrizou sobre-
“marca” que por sua vez pauta a futura tudo por seu Instituo do Mundo Árabe e
prospecção do gosto tendencialmente assina pelo menos dois outros museus –
redescoberto na sociedade, a prospec- o das Artes e Civilizações, de Paris, e o
ção dos estilos de vida e consumo. Sem Museu Rainha Sofia de Madri – , acaba
falar é claro na progressiva indistinção de pintar de preto o interior do famoso
entre a top model e a star dos outros prédio Guggenheim de NY, do Wright,
gêneros de espetáculo – cinema, TV, para receber a exposição Brazil Soul
teatro, dança. Não surpreende que a and Body, após ter projetado a sede da
produção artística hoje seja incompre- Versace, também em NY, e, não faz
ensível sem esse suporte material. muito, as Galerias Lafayette de Berlim.
Ou, por outra, todos os ramos parecem Herzog e De Meuron – conhecidos hoje
funcionar interligados numa imensa especialmente pela reabilitação da Nova
rede de conexões igualmente Tate, de Londres – , foram convidados a
“empreendedoras”, e na qual um dos conceber lojas e sedes das indústrias
ingredientes estratégicos é a circulação italianas de confecção Prada, ao lado de
permanente das pessoas concernidas um dos mais polêmicos arquitetos, Rem
num mesmo ambiente de gente que Koolhaas. Este, ao que parece, por ter
“decide” ao se encontrar – esse o núcleo interessado o empresário chefe da
duro em torno do qual gravita uma marca, Patrício Bertelli, por suas
pequena legião de modetes, culturetes ousadas teorias a respeito da imposição
e arteiros. Essa área de convergência e do modelo shopping-center às cidades
permuta requer obviamente espaços contemporâneas, de modo a programar
altamente qualificados e funcionalmente o consumo em todas as instâncias –
específicos e polivalentes... para Koolhaas, não apenas a essência do
Não por acaso, pois, os arquitetos de homem atual, mas o último reduto de
museus parecem estar atentos a estas atividade pública (!), e que, num
“contaminações”, que tanto trazem a processo de colonização da vida urbana,
moda para dentro dos museus, quanto estaria levando a um redesenho de
os transformam em arquitetos na moda todos os prédios e ruas das cidades, de

rapsódia 254
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

modo a adequá-los aos mecanismos e características da “era do vazio”, quando


espaços de compras. Como comenta a vivemos sob “o império do efêmero”,
jornalista de moda da Folha: “dos completando a citação de Lipovetsky,
aeroportos aos museus”. Afinal – conti- para quem “a alta costura museifica hoje
nuando com as nossas contaminações – a moda numa estética pura”, ao mesmo
são três dos seus assistentes que tempo que, de seu ponto de vista,
colaboram com o curador Laurent Le “reabilita o éthos econômico”!14
Bon na cenografia da mostra “Parade”, Invertendo o diagnóstico a respeito
do Beaubourg, na “Oca” do Ibirapuera. das “contradições culturais do
A mesma matéria anterior nos informa capitalismo pós-industrial” de Daniel
que Herzog justifica ter cedido à Prada Bell, Lipovetsky foi dos primeiros
por esta “representar um novo tipo de autores a demonstrar o quanto o neo-
cliente, interessado num novo tipo de hedonismo é um vetor de indeter-
arquitetura e que se envolve numa troca minação e de afirmação da
de experiências, participando de um individualidade, altamente propício num
debate cultural” (grifo meu). A colunis- contexto de economia frívola. A fun
ta comenta, de seu lado, que a novidade morality contemporânea, que trabalha
dos projetos desses arquitetos estaria justamente no sentido da afirmação
em “deslocar as funções da loja, tratan- individualista da autonomia privada, da
do-a mais como um espaço artístico”13. individualidade lábil, e assim por diante,
Afinal as distinções são de tal modo é o éthos flexível de que necessitava o
tênues, como vimos, que a moda passa a novo capitalismo. Nada mais funcional,
ser hoje a expressão por excelência de portanto, do que a moda na sua
um outro tipo de produção/consumo, exigência de reciclagem permanente; ela
que cultiva a diversidade, o novo, o é, do ponto de vista apologético de
efêmero, a criatividade (artística ou Lipovetsky, o contrário do que se
como se queira chamar), etc. – costuma dizer, é “um instrumento de

13 Folha de São Paulo, 19.10.2001, caderno Especial p.5. Aliás sobre todas estas
questões ligadas à Prada e seus arquitetos, ver, além deste caderno Especial
sobre Moda, as reportagens de Erika Palomino dos dias 27 de fevereiro e 3 de
março de 2001 e, mais recentemente, de 11 de janeiro de 2002 e, sobre a
exposição na Oca, Folha de São Paulo, 8.10.2001, p. e 1. Cf., do próprio Rem
KOOLHAAS: Mutacio-nes. Barcelona: ACTAR, 2000, especialmente capítulo sobre
“Shopping. Harvard Project on the City”.
14 Gilles LIPOVETSKY. O império do efêmero. São Paulo: Cia. da Letras, 1989,
p. 108.

rapsódia 255
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

racionalidade social: racionalidade exemplo: as empresas – diz ele – se


invisível, não-mensurável, mas insubs- tornam menos lugares de exploração e
tituível para adaptar-se rapidamente à de luta de classes do que de criação e
modernidade, para acelerar as mutações participação de todos, algo como uma
em curso, para constituir uma sociedade processo de “cooperação conflitual”.
armada em face das exigências Uma tal reviravolta evidentemente não
continuamente variáveis do futuro. O poderia deixar inalterada a esfera
sistema consumado da moda instala a subjetiva, fazendo com que o “indivi-
sociedade civil em estado de abertura dualismo psi” dos anos 60 tenha se
diante do movimento histórico, cria reciclado “integrando a nova sede de
mentalidades desentravadas, de business, de software, de mídia, de
dominante fluida, prontas em princípio publicidade”. Ganhar dinheiro e publici-
para a aventura deliberada do Novo”15. dade estariam sendo reabilitados, mas
Portanto o autor é levado a não agora com motivações psicológicas e
concordar, também ele (como Huyghe ou culturais: nesta nova sociedade “narcísi-
Le Goff, citados há pouco), com o tão ca” e de “vertigem da subjetividade
propalado fim das ideologias; segundo intimista, o business é tanto um meio
ele, estaríamos assistindo antes a uma de construir para si um lugar
reciclagem das mesmas na órbita da economicamente confortável quanto
moda. Traduzindo: a uma glamurização uma maneira de realizar-se a si próprio,
das idéias. Não que essas sejam de superar-se, de ter um objetivo
totalmente comandadas por uma lógica estimulante na existência”. Explica
de renovação gratuita, mas, segundo Lipovetsky: “Não há nenhuma ruptura
Lipovetsky, a lógica do novo acaba entre o novo culto empresarial e as
penetrando mesmo nas esferas que, a multiplicadas paixões dos indivíduos
priori, são mais refratárias aos pela escrita, música ou dança; por toda
movimentos da moda. Graças a isso, as parte são a expressão de si, a ‘criação’, a
novas idéias liberais teriam conseguido ‘participação em profundidade’ do Ego
tão rapidamente se impor. Justificando- que predominam”16.
se, passa a expor o que chama de “nova Voltando a Jeremy Rifkin: ele, por sua
cultura empresarial” – algo que começa vez nitidamente inspirado em Lasch,
a produzir transformações profundas no explica-nos que a nova identidade do Eu
comportamento dos indivíduos. Por não pode, contudo, ser pensada mais em

15 LIPOVETSKY: O império do efêmero, p. 176-7.


16 Id., ibid., p. 252-5.

rapsódia 256
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

termos do que este produz ou acumula, forma de alargar a gama de nichos de


mas no “número e intensidade das mercado cultural.
experiências às quais tem acesso”.
E acrescenta: “as novas gerações se A senhora utiliza muito o conceito
acreditam povoadas de ‘criativos’ que de sociedade do espetáculo de Guy
evoluem confortavelmente entre as Debord. Acredita que ele dê conta
cenas e as representações do mercado das modificações recentes na
cultural, adotando sucessivamente os relação entre economia, política e
diversos cenários” – ao que ele chama cultura? O conceito adorniano de
de “personalidade proteiforme”, ou, na “indústria cultural” tornou-se
terminologia de Keneth Gergen, obsoleto?
“multifrênica”, que “evolui em meio de Recorro, de fato, ao conceito de Debord,
correntes movediças, interativas e mas não na acepção banal e esvaziada
contraditórias”. Um eu fragmentado e que em geral é usada para falar da pós-
“conectado” – como diria Baudrillard: modernidade, e sim no sentido preciso
“reduzido a terminais de múltiplas de generalização da forma mercadoria.
redes”. Ao mesmo tempo, conclui Rifkin, Tanto ele quanto Adorno nos ajudam a
a surrada metáfora teatral para o pensar o que está ocorrendo hoje,
comportamento humano ganha uma desde que postos em perspectiva
outra dimensão: um número crescente histórica, visto estarmos numa outra
de pessoas passa a conceber sua vida etapa do capitalismo, apenas entrevista
como uma representação teatral, como por ambos.
uma representação artística ou uma De minha parte, venho tentando,
obra prima inacabada, enquanto as modestamente, dar um passo à frente,
indústrias culturais, de seu lado, se buscando desvendar a gênese desta
encarregam de explorar esta nova forma convergência entre o mundo da cultura
de consciência, fazendo com que uma e dos negócios, ou melhor, as
fração considerável da economia vá transformações culturais, em especial
sendo acionada justamente pelos no campo das artes – das instituições à
“gestores de imagem”. Plasticidade do produção e ao consumo –, ocorridas
psiquismo humano que paradoxalmente nesse final de século e que fizeram da
o autor vê como uma possível nova via “produção” cultural não apenas um ramo
de renovação cultural17. Eu prefiro a entre outros da indústria, e que tinha
companhia dos que, segundo ele, “mais um papel estratégico, ideológico (no
cínicos”, vêem nessa fragmentação uma tempo em que Adorno e Horkheimer a

17 Cf. op. cit., cap. 10.

rapsódia 257
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

tematizaram), mas que agora foi especialmente pelas vanguardas e que


internalizada pelo próprio processo de culmina com os movimentos da década
produção econômica. Fusão, de 60, fossem aos poucos passando para
permeabilidade, conversão de uma coisa o campo inimigo, deixando a arte e a
na outra, etc. – assim poderíamos crítica sem objeto. Êxito ou fracasso de
descrever esta ocorrência, na verdade, um projeto que pretendia dissolver as
uma revolução gerencial do capitalismo distâncias entre arte e vida? Como já se
que trouxe a cultura à condição que, em disse, a “crítica” hoje passou a ser
termos já ultrapassados por este mesmo intrínseca ao próprio processo
processo, chamaríamos de gerencial, ao mesmo tempo que o
infraestrutural, quando a ciência, por modelo gerencial de última geração está
exemplo, como principal fator de de tal forma entranhado em todas as
produção, se alargou a ponto de incluir atividades do cotidiano que, mesmo
o conhecimento e a invenção. Talvez se quando não lucrativas, se pautam pelos
possa dizer, resumindo tudo o que eu mesmos preceitos de eficiência
vinha dizendo até aqui, que na fase atual empresarial: livre iniciativa ou autono-
do capitalismo a cultura passou a mia, criatividade, autenticidade,
principal insumo da produção – da comunicação... Vemos as utopias de 68
informação à informática... Tudo isso, transformarem-se em empresas do
portanto, não mais nos termos da velha terceiro tipo e a crítica não apenas
“indústria cultural”. sendo recuperada pela indústria, cultu-
Trata-se na verdade de um fenômeno ral ou outra, mas uma vez realizada,
novo. Ou seja, chegamos à situação trazendo à tona a sua eficácia para o
paradoxal em que não só os grandes mundo da mercadoria. A verdade é que
negócios parecem necessitar de iscas ambas parecem se dar as mãos obede-
culturais, sob pena de não terem futuro, cendo ao “novo espírito do capitalismo”.
mas, mais ainda, para que ocorram, são (Lembro aqui as referências já feitas, na
obrigados a incorporar, do página 250, a Boltanski e Chiappello.)
gerenciamento à divulgação de seus Donde a atualidade de uma afirmação
produtos, valores e modelos de que há vinte anos atrás parecia tão
funcionamento da cultura, mais temerária, como a de Jameson: de que a
especificamente, das artes, deixando-as cultura é na pós-modernidade a lógica
ao mesmo tempo desarmadas enquanto do capitalismo – no fundo, repetindo o
instância crítica. Tudo se passa como se mote profético de Guy Debord, segundo
a cultura de oposição, os o qual a cultura viria a exercer a mesma
questionamentos próprios à arte, em função estratégica desempenhada nos
especial a desestabilização de todos os dois ciclos anteriores pela estrada de
valores burgueses, buscada ferro e pelo automóvel. Também

rapsódia 258
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

Jameson se deu conta de que as “ener- assim é, se é fato que há uma ou duas
gias” liberadas nos anos 60 reverteram décadas a nova new left está conven-
no seu contrário, ao observar que, uma cida de que a lógica do capitalismo
vez eclipsada a esfera autônoma da contemporâneo tornou-se cultural, seria
cultura, o resultado não foi o seu então o caso, para início de conversa,
desaparecimento, “mas a sua prodigiosa relembrar certas circunstâncias da
expansão, a ponto de a cultura tornar-se sempre relegada década de 70 (talvez
coextensiva à vida social em geral: agora mais decisiva que o estopim dos sixties),
todos os níveis tornam-se aculturados a começar pela indispensável
(...), tudo afinal tornou-se cultural”18. constatação de que foi nada mais nada
Como escrevi num de meus últimos menos do que a própria direita quem
textos, registrando esta guinada na primeiro proclamou, nos anos 70
origem da assim chamada “era da cultu- precisamente, que de fato era preciso
ra”: assistimos pois a uma metamorfose reconhecer que o capitalismo padecia de
do “cultural”, cujo pós-materialismo, contradições, mas que estas eram de
a princípio reativo, foi se tornando pró- ordem cultural. O clássico de Daniel Bell,
ativo, para não dizer cooperativo, à As contradições culturais do capita-
medida que se estetizava e se lismo (referido há pouco), é de 1976.
concentrava nos valores expressivos de Dele procede, por exemplo, a deixa para
uma ordem social que alegava a seu o diagnóstico neoconser-vador, repisado
favor haver destronado o primado das até hoje, segundo o qual o risco maior
relações de produção em nome das que o sistema corria era o da “ingover-
relações de “sedução”, como foi saudada nabilidade”, devido justamente a uma
a era do vazio (há pouco mencionada) “adversary culture” solta nas ruas.
que se iniciava (talvez ajude referir-se Por onde se vê que já estava armado
então a um segundo turno daquilo que o cenário que atribuiria à cultura um
alguns, especialmente nos campi anglo- papel central na governabilidade do
americanos, vem chamando de cultural aparato de dominação. O perigo
turn, e cuja origem datam nos anos 60). iminente de “ingovernabilidade” era
Novamente, retomo, sempre de forma atribuído a uma sobrecarga intolerável
resumida e um tanto livremente, uma de pressões, que o oficialismo de hoje
periodização que estabeleci no meu chamaria de populismo macro-
último livro sobre A cidade do econômico, mas que na época eram
pensamento único. Como observei: se postas na conta de uma inflação de

18 “Periodizando anos 60”. In: Heloisa Buarque de HOLANDA: Pós-modernismo e


Política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

rapsódia 259
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

exigências descabidas apresentadas a e reapropriado, como tal. Ou seja, o


um Estado Social que a desaceleração do mundo arranjou-se de tal modo que já
crescimento econômico começara a não é mais necessário deixar de sentir-
desacreditar – exigências que no se à esquerda, pelo contrário, tal
entanto pareciam ultrapassar o plano sentimento sai reforçado, para sustentar
esperado das compensações materiais uma opinião tão sob medida quanto a
para elevar-se ao patamar mais idéia politicamente correta de que a
inquietante da perda de confiança na Cultura finalmente desceu de seu
autoridade moral das instituições. pedestal elitista, bem como de seu
Ou seja, seu infalível sexto sentido confinamento populista, expandindo-se
ideológico ditou-lhes a inversão de e infiltrando-se por todos os domínios
praxe: a crise de governabilidade seria, relevantes nas arenas econômica, social
em última instância, uma crise cultural; e política, reconstituindo-as segundo as
eram no fundo as orientações regras de novos “formatos culturais”,
normativas de uma cultura hostil, em utilizados por sua vez como recursos de
flagrante antagonismo com o velho valorização nos respectivos âmbitos.
éthos produtivista do capitalismo, que Com o sinal trocado, era justamente isso
inflavam a enorme pressão que Guy Debord queria dizer quando
reivindicativa naquela antevéspera da profeticamente anunciou que a cultura
contra-ofensiva Reagan/Tatcher. seria a “mercadoria vedete” na próxima
Pode-se dizer que a nova esquerda rodada do capitalismo. A seu ver, a
que entrava em cena nos anos 70 foi aos alienação humana chegaria então ao seu
poucos tomando ao pé da letra este grau máximo.
diagnóstico de cabeça para baixo, porém Em resumo: a partir da desorganiza-
com sinal trocado: de fato o que contava ção da sociedade administrada do ciclo
mesmo era a cultura antagônica que se histórico anterior, cultura e economia
estava cristalizando por toda a parte na parecem estar correndo uma na direção
esteira de 68, mas sobretudo – como da outra, dando a impressão de que a
admitia a direita ainda na defensiva, nova centralidade da cultura é
diante da indisciplina que se alastrava econômica e a velha centralidade da
do Vietnã às greves selvagens na Europa economia tornou-se cultural, sendo o
Continental – seu poder mobilizador capitalismo uma forma cultural entre
estava demonstrando que algo na base outras rivais.
material do capitalismo se alterara em O que venho tentando mostrar,
profundidade, e, com isto, o conflito reforçando o que já dizia em meus
básico das sociedades capitalistas. Aqui textos, é que hoje em dia a cultura não
o primeiro turno do cultural turn, que é o outro ou mesmo a contrapartida, o
só retrospectivamente será reconhecido, instrumento neutro de práticas

rapsódia 260
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

mercadológicas, mas ela hoje é parte podem estar de tal modo combinadas à
decisiva do mundo dos negócios e o é censura – veja-se por exemplo o caso da
como grande negócio. televisão – que é por assim dizer
Nesse sentido, voltando à questão do impossível detectá-la. Ao mesmo tempo,
novo tipo de gerenciamento da cultura, devido à aparente independência do
cada vez mais reduzida ao comércio trabalho imaterial, vão se construindo
“controlado” da “experiência”, gostaria fluxos e redes com pretensão ao
de, para encerrar, recorrer às sugestões empresariamento e à valorização
de um outro grupo de autores (Corsani, daquilo que seria a sua “própria
Lazzaroto e Negri)19 sobre as relações iniciativa”, tanto quanto das condições
entre produção e consumo cultural, sociais de sua “própria reprodução”.
quando o capitalismo passou ao coman- Para entender como se dá este ciclo
do do trabalho imaterial. Na verdade, reprodutivo, os autores comparam o
segundo esses autores, os conflitos não trabalho imaterial – central na
estão eliminados, mas passam a ser organização do trabalho pós-fordista –
geridos, como no caso da produção com a fase anterior, quando a atenção
cultural, entre esta instância e a do se voltava para o ciclo produção/
empresariamento, e isto ao alto preço circulação/consumo, agora centrado na
do cerceamento da liberdade criativa, só “cooperação” que envolve produtor e
que de forma tão insidiosa e sutil que se consumidor. É desta quase simbiose que
dá de forma quase imperceptível. Não se se trata, numa economia mais voltada
trataria mais portanto da administração para a comercialização e financeirização
hard do tempo do capitalismo industrial do que para a produção: um produto,
ou organizado. Ou seja, o controle se dá antes de ser fabricado, deve ser
através de códigos tão mais rigorosos vendido, portanto mobiliza importantes
quanto menos identificáveis, na medida meios de comunicação e marketing para
em que se trata de uma reestruturação “recolher (conhecer as tendências de
da produção/consumo administrada não mercado) e fazer circular a informação
apenas por mecanismos exclusivamente (construir um mercado)”. Da produção
ideológicos, mas que estruturam standard passa-se à singularização e à
o próprio modo de produção, pois “qualidade”, como se o produto
o trabalho é organizado em função da assumisse uma qualidade diretamente
própria necessidade de controle. Dito de social... – o que faz com que o consumo
outro modo: as necessidades técnicas seja antes de tudo um consumo da

19 Cf. Le bassin du travail immatériel (BTI) dans la métropole parisienne.


Paris: l’Harmattan, 1996, especialmente cap. 5.

rapsódia 261
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

informação. “O processo de comuni- redes. Digamos que, no período


cação social (e seu principal conteúdo, taylorista e fordista, a vida era o outro
a produção da subjetividade) torna-se do trabalho, hoje, “a produção da subje-
aqui diretamente produtivo, porque, de tividade se torna diretamente produtiva.
uma certa maneira, ele ‘produz’ a A produção capitalista não visa mais
produção. O trabalho ‘produtivo’ é pois apenas o corpo: ‘a alma deve descer
o trabalho que organiza esta interação nos ateliês’, a subjetividade deve estar
entre produção e consumo, que posta no trabalho, a comunicação torna-
estabelece uma relação de criação/ se o novo mercado do consumo”.
inovação com o consumidor (ou o Ficam aí algumas sugestões a mais
usuário, o cidadão, o trabalhador, etc.)”. que, confesso, ainda não digeri
O modelo, insistem também eles, é o totalmente, mas que talvez nos
estético, de produção artística: autor/ permitam dar um passo a frente na
reprodução/recepção – momentos de decifração dos mecanismos que levam à
um processo coletivo de “cooperação e convergência de que eu vinha falando.
interação entre os homens, produzindo O que, seguramente, não pode se esgo-
tecnologias específicas de produção de tar na simples constatação da existência,
distribuição e de recepção”. na base, do mesmo modelo em
Ora, esta cooperação – continuo funcionamento.
citando – não pode ser pré-determinada Resta saber, depois de tudo isso,
pelo econômico, pois se trata da própria como, e se, uma vez ocorrida uma tal
vida da sociedade, logo, o econômico dissolução da cultura no econômico, de
pode apenas se apropriar das formas uma economia por sua vez movida a
dos produtos dessa cooperação: a criati- cultura, ainda sobram brechas para
vidade e a produtividade na economia alguma atividade do espírito em que se
pós-fordista não têm mais nada a ver exercite a crítica sem que ela seja
com a “inventividade” schumpeteriana, imediatamente recuperada. Algo que
“não resta à economia senão a ainda poderá se chamar arte, ou não,
possibilidade de gerir e de regular o mas que, evidentemente, terá que se
trabalho imaterial e de criar dispositivos pautar por outros valores e critérios,
de controle e de criação do público/ visto que o paradigma moderno que a
consumidor através do domínio das tornou possível como manifestação
tecnologias de comunicação, de autônoma do espírito há muito se
informação e de seus processos de esgotou.
organização”. As redes passam a ser a
interface tecnológica da relação Para encerrarmos essa conversa,
consumo e produção, a produtividade gostaríamos que a senhora
dependendo da política de gestão destas comentasse o interesse e o papel

rapsódia 262
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

dos estudos sobre estética para uma capítulos fundamentais da História da


formação em filosofia. Ainda há Arte e da própria Estética, ou mesmo da
lugar para a estética filosófica na Filosofia. Mas em geral isto não
universidade e na crítica de arte? ultrapassa o plano do bom e necessário
Qual a melhor maneira de se ler, estudo comparativo e da exemplificação
em um curso de filosofia, os textos histórica – o que é indispensável e
clássicos da estética e da filosofia durante um certo tempo foi suficiente
da arte? do ângulo de uma formação básica. Mas
Acho que para isto não há receita. Ao hoje não é mais o caso. Espera-se, com
mesmo tempo, como acredito que razão, mais do que isto de um curso de
qualquer tentativa de definição da arte Estética. E, no entanto, como ir além,
passe por uma discussão do que ela é sem abandonar o campo estrito da
atualmente, parece-me perfeitamente Filosofia? De outro lado, terá sentido
compreensível a dificuldade dos uma tal demanda? Até onde a exigência
professores de filosofia em identificar, de uma “estética filosófica” não acaba
ilustrar e comentar, passo a passo, dando satisfação justamente aos que
tamanha mutação histórica, muito mais não vêem salvação fora da Filosofia?
de incluí-la num curriculum acadêmico, Desconfio aliás que, sob este prisma,
em geral voltado para a exegese de tudo o que disse aqui será visto como
textos filosóficos do passado. De outro sociologia, na melhor das hipóteses. E
lado, não se deve fugir ao imperativo da no entanto o gênero existe, ou parece
leitura e comentário dos textos clássicos ter existido até muito recentemente, se
dos filósofos que se ocuparam daquilo considerarmos a Teoria Estética de
que no seu tempo se entendia por arte, Adorno – sua última manifestação e
que pode ser inclusive a porta de assim mesmo na forma de uma
entrada na arquitetônica de um sistema meditação retrospectiva. Também é
filosófico – uns mais outros menos verdade que Sartre e Merleau-Ponty
impregnados por essa referência à “filosofaram” sobre arte e literatura,
experiência estética, de resto uma bem como seus detratores da geração
experiência moderna, como vimos, e seguinte, Foucault, Lyotard, etc. Deve
que, além do mais, perdeu seu caráter haver portanto uma aspiração legítima
de evidência. Assim sendo, se o nessa busca de um ponto de inflexão em
propósito é a compreensão de um texto que a crítica do expert vire reflexão,
(primeiro passo filológico dita, faute de mieux, filosófica. A
indispensável), tanto faz se as Lições de menos que por filosofia se entenda
Estética de Hegel são comentadas num espírito crítico, o que seria um
curso de História da Filosofia ou de monopólio injustificável, ou mera
Estética, não há como não recorrer aos petição de princípio. No entanto,

rapsódia 263
Entrevista com Otília Beatriz Fiori Arantes

pensando bem, talvez seja disso mesmo


que se trate quando se alude a este
gênero duvidoso “estética filosófica”:
de crítica pura e simplesmente, ou seja,
de uma capacidade de discernir e julgar
nada mais nada menos do que porções
significativas da experiência contem-
porânea do mundo por meio da
sondagem em profundidade dessas
manifestações, que, para facilitar, ainda
chamamos de arte. Mas isso nenhum
curso pode oferecer. Mesmo assim,
que os “filósofos” se ressintam da falta
de um elo perdido, já é um bom sinal.

Guarujá, 23 de fevereiro de 2002.

rapsódia 264

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