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APINTURA

COMOMODELO
Yve-Alain Bois

Tradução: fernando Santos


Revisão da tradução; Jefferson Luiz Camargo
Revisão técnica: Tais Ribeiro

$
w/71/}nartinsfontes
SAOFKUL0 2009
Esta obra i pttbycnaacriei lnimente em inglês cota o títitio
iqiNTiNG AS MOTEL
\. por .l\,4ff Press
Copyright-Q 1990 1ClassachilsetfsInsfífHle a#Zechrology
Flgiiras ]-z] e 8âtwzdüí 2990 Sliccesslon H. Matasse/HRSNY.
licenciado por AUTVIS, Brasi1,2009
Fijguras 12-]4, 17, 19-21, 23-24 e 26 copW8h1 1990 Sz4ccessfon
Pab/o Pícasso,
' /íce?zcfadopor ÁUTVIS, Brasa/, 2009 Para Jean Ctay, Dominique jajfrennou e Rosalind Krauss,
Figuras 29-30, 34 e 63-64 copyri8}tt 2009 Mondrialt/Holtzl iate
Trizsf c/o HCR lllterllatfona/ Warrelítolz, ya US,4
meus primeiros leitores
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Coptyri8ht© 2009.Editora WMF Marfins FotttesLida
São Palito, para a presettte edição

1?edição 2009

Tradução
FERRANDOSANTOS

Revisão da tradução
!e#erson Luiz Camarão
Revisão técnica
Zab Ribeiro
Acompanhamento editorial
Márcfa Leilze
Revisões gráficas
Alta À4arfa Á/Dares
M.aria Lltiza Faoret
Produção gráfica
Gera/do.A/ues
Paginação
Moacir Katstt ni Matsttsaki

Dados Intemacionais de Catalogação na Publicação(CIP)


(CâmaraBrasileira do Livro, Se Brasil)

Bois.Yve-Alain
A pintura como modelo / Yve-Alain Bois ; tradução Fer-
nando Santos ; revisão da tradução Jefferson Luiz Camargo
revisão técnica Tais Ribeiro. -- São Paulo : Editora WMF Mar
uns Fontes, 2009.- (Coleçãomundo da arte)

Título original: Painting as model


Bibliografia.
ISBN 978-85-7827-099-5

1. Pintura - Filosofia 1.Título. 11.Série

09-01181 CDD-750.1

Índices para catálogo sistemático:


1. Pintura : Arte : Filosofia 750.1

Todos os direitos desta edição reseroados à


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TeJ. (11) 324].3677 Fax (l.Z) 31Z01Z.1042

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A LIÇÃO DE KAHNWEILER

Seas hipóteses nos induzem ao erro, tentemos simples


mente nos ocupar da história sem elas.Não podemos
porém, dizer que algo existe sem dizer em que consiste
tal coisa.A despeito do modo como podemos convide
rar os fatos, ao fazê lo já os teremos relacionado a con
celtas cuja seleção está longe de ser imparcial. Se nos
dermos conta disso, poderemos decidir e escolher. entre
os conceitos, aqueles que são necessários para ligar os
fatos entre si. Se não quisermos proceder assim, entre-
garemos a escolha ao instinto, ao acaso ou ao capricho
alimentamos a ilusão de possuir um empirismo puro,
completamente a posfeHort,quando o que temos, na ver -
dade, é uma visão apriorística totalmente parcial, dog
mítica e transcendente
Fragmento 226 de .4fherzaeum,vol. 1, n' 2 (1798)

Quando Daniel-Henry Kahnweiler declarou a Francis Cré


mieux: "Penso que meu caso é bastante incomum e não se re
pedirácom muita frequência"l, estavabem ciente de que sua ex-
periência era única na história da cultura moderna. Ele não era
apenasum importante marca znd;não era apenasum editor co-
rqoso e pioneiro (o primeiro a editar Apollinaire, Artaud, Leiris,
Max Jacobe muitos outros); nem foi apenas o dono de um
'olho" fantástico durante os anos heroicos do cubismo; mais do
que isso, foi, desde o começo, o paladino da pintura que ele
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B2A PINTURA
COMO MODELO
mercantilismo. Por esse motivo, mantenho-me calado."8 Esse
amava e vendia, um crítico apaixonado cuja abrangência mal escrúpulo admirável explica por que Kahnweiler não se dedicou
a escrever até a deflagração da Primeira Guerra Mundial. E es
clarecetambém por que sua obra teórica foi(hvidida em três par-
tes: os textos de 1915-20; a monografia sobre Gris, escrita du
unte a SegundaGuerra Mundial; e a grande quantidade de
artigos publicados após a guena, quando oficialmente ele já dei-
xara de ser marchíz7zd dos artistas que defendia. Esse escrúpulo
ajuda a explicar a pouco extensa evolução de sua teoria e a con-
sequente cegueira diante dos novos avanços; é impossível ficar
sem escreverpor mais de vinte anos sem adquirir uma certa ri
gidez de raciocínio. O comportamento escrupuloso de Kahn-
weiler, contudo, revelou-se sua verdadeira sorte, bem como a
nossa.Por ter esperado até o emüiode 1915-20 para escrever,ele
pede apresentar o primeiro balanço teórico do cubismo de algum
interesse,um balanço que, sob vários aspectos,permanece ini
gualado até hoje. Kahnweiler fez uma análise tão perspicaz exa
tamente por não ter tido pressa.
Trágicopara ele, seu emüioproporcionou-lhe a oportunidade
de progredir como crítico, em espetae historiador da artes.Em
Berna, ele tomou conhecimento das diversas correntes da filoso-
fia neokantísta (a sociologia de Georg Simmel, por exemplo, da
qual Kahnweiler extraiu o artigo extraordinário sobre a questão
do tempo histórico)to. Sua descoberta simultânea de toda a tra-
dição estética alemã posterior a Kant e dos novos progressos da
história e da crítica da arte introduzidos por essatradição teve
uma importância decisiva. Ele entrou em contato com os artigos
do crítico formalista Konrad Fiedler, tão próximo dele em tantos
aspectos,bem como com os de Adolf von Hildebrand, amigo de
Fiedler,a quem Kahnweiler atacoula.Através de Wilhelm Wor-
ringer ele familiarizou-se com a obra de Alols Riegl e Heinrich
Wõlfnin, que Ihe apresentaram conceitos que o habilitaram a teo-
rizar sobre a historicidade de toda produção artística. Tendo como
mediadora a obra de Carl Einstein, ele pede analisar seu interes-
se pela arte "negra" e, dessa forma, elaborar uma teoria geral da
escultura.Resumindo, ele familiarizou-se com ferramentas críti-
cas desconhecidas na França, e estas o ajudaram a cristalizar o

.1
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COMO MODELO

e identificar aquilo que eles "libertam" ao longo da argumenta-


ção.Portanto, é desnecessárionos estendermos aqui sobre o kan-
tismo de Kahnweiler; quero apenas observar que, diferentemente
de seus pares, ele não se contentava com a simples menção do
nome do filósofo alemão (ele o faz apenas uma vez em A ascen-
sãodo czzbíslFzo):'.
Kahnweiler leu Kant por intermédio das obras
de seus seguidores - sobre a percepção, a história, a arte e a his-
tória da arte -, textos estesque o abasteceramde conceitos.Ele
põs em ação esses conceitos sem precisar alardear, a cada vez,
suafonte de origem como um troféu. O kantismo de Kahnwei-
ler não teria muita importância se não tivesse sido o trampolim
que Ihe permitiu conceituar o cubismo, do mesmo modo que o
levou a cometer, ocasionalmente, alguns erros de avaliação. Eis
aqui alguns exemplos de seus juízos equivocados: sua interpre-
tação de .As senhontas de .Aoí8zzoncomo uma pintura inacabada,
devido a sua concepção da obra de arte como um todo coerente
- uma posição que o levou, com referência a Gris, a um verda-
deiro neoclassicismo já em 1929t7;sua interpretação racionalista
e espacialdo estranho comentário de Picasso:"Num quadro de
Rafael não é possível determinar a distância da ponta do nariz
até a boca. Gostaria de pintar quadros em que isso fosse possí-
vel"t8; sua concepçãode que a obra de arte se completa na
mente dos observadores assim que eles decodificam seus sig
nos e recebemo que ele chamava de "mensagem" -- posição que
Ihe causou um profundo mal-estar, conforme ele conta no livro
sobre Gris, diante das ambiguidades do cubismo "hermético" em
191119;sua oposição dogmática entre o belo e o agradável, que o
levou a rejeitar categoricamente, desde os primeiros textos, não
apenasMaüsse, mas a arte abstrata como ornamento hedonista,
e assimpor diante. Há muitos outros aspectosda estéticade
Kahnweiler que hoje estão ultrapassados, e não são poucos os
que decorrem de uma aplicação normativa de Kant (isto é, de
uma releitura neokantista de Kant) .
Isso tudo significa que Kant não é, necessariamente,o abre-
te sésamo indispensável do cubismo, embora possa tê-lo sido
paraKahnweiler. O mais importante é que Kahnweiler tinha uma

iil::lilHlli Ullllil g:'à::i::;!.'i : =!H,n::"; teoria, diferentemente de seus colegas franceses, e que ele pagou
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COMO MODELO

também o primeiro a compreender que ocorrera uma ruptura na


obra de Picasse durante sua estada em Cadaqués no verão de
1910.Acima de tudo, só ele reconheceu,embora em obras pos
tenores a .A ízscerzsão
do cubismo,que a estrutura intitulada Wo/ão
(fig. 12), concluída por Picasse em 1912, representa, ao mesmo
tempo, a origem do cubismo "sintético" e de uma nova era na
história da escultura ocidental.

Gostaria, neste ponto, de fazer uma pausa e examinar uma


questão que, parece-me, somente Kahnweiler compreende de
fato: a relação entre o cubismo e a arte africana. Ao reler Á asce7z

sãodo czlbísmo, podemos ficar surpresospor não encontrar. em


relaçãoa Ás serzhorífasde Auíg7zon,nenhuma menção à arte a6'i-
cana, e, com relação à fase "negra" em que Picasso entrou a se
guu, apenas uma vaga alusão a essa arte - embora Kahnweiler ti-
vessediscutido exaustivamente,no final do texto, a máscarada
Costado Marfim (fig. 13), à qual voltarei em breve:;. ParaKahn-
weiler, usando a declaraçãode Pierre Daix, "não existe arte'negra'
emÁs senhoHfasde.Auig7zon",ou melhor, se há qualquer emprés-
timo, ele é apenas superficial; remete apenas à aparência da arte
africana, não a sua substância24. Kahnweiler é absolutamente ex-
plícito a respeito desse ponto em seu livro sobre Gris, em seu ar-
tigo de 1948"Negro Art and Cubism" falte negra e cubismo] e,
em especial,no prefácio que escreve,no mesmo ano, para o livro
de fotografias de Brassal, Z.essczlipfzlresde Pícasso.Como se fizes-
se uma crítica antecipada à recente exposição do Museu de Arte
Moderna intitulada "'Pümitivismo' na arte do século XX: Aâni-
dade entre o tribal e o moderno", Kahnweiler afirma que, apesar
das aparências, as aânidades formais entre a arte allricana e a pin
lura de Picasso de 1907-08 são ilusórias2s.Resumindo, para que
eu possa, por minha vez, apresentar uma formulação diferente,
Kahnweilerpropõe dois tipos de influência formal: uma morfo-
lógica, a outra estrutural. Percebemosa influência morfológica
da arte "negra" no "aspecto bárbaro" das pinturas de Vlaminck
(sua arte "revela seguramente a influência da aparência das es-
culturas africanas, mas não tem a mais leve compreensão de seu
espírito"):'. Observamos,por outro lado, uma influência estrutu-
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DA MODERNIDADE
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88 A PINTURACOMO MODELO

i;;iã;ip;;rli: 1::xin:ã::uu;BER3Jã::;'
foto do museu
n$
Hâãi'U=hil;l,IÊH©U']y.:E:: :U ]! ã:H.!i:
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90 A piNTURACOMO MODELO

ral na importância da máscaragrebo,adquirida durante uma das


muitas "classes aux negres" de Picasso, para a elaboração de Vío-

14. Pablo Picasso,Cabeçade


mu/her. 1907-08. Óleo sobre tela
73.3 x 60, 3 cm (28% x 23% pol.>
Coleção particular, Nova York.

15. Máscarafang, Gabão. Madeira


pintada. 50 cm de altura(1 8% pol.)
ColeçãoVérité, Paras
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COMO MODELO

mundo exterior, não espelhos que refletem esse mundo de maneira


mais ou menos distorcida. Uma vez admitido isso, as artes plásticas
estavamlivres da escravidão inerente aos estilos ilusionistas. Em toda
a sua pureza, as máscaras [grebos] eram a demonstração da ideia de
que o objetivo da arte é criar signos. O rosto humano "visto", ou me-
lhor, "lido", não coincide absolutamente com os detalhesdo signo,
detalhes essesque, além do mais, não teriam nenhum significado se
estivessemisolados. Em especial, o volume do rosto que é "visto
não é para ser encontrado na máscara "verdadeira", a qual só apre
senta o contorno desse rosto. Essevolume é visto, num momento
indeterminado qualquer, antes da máscarareal. A epidem\e do rosto
que é visto só existe na consciência do espectador, que "imagina" e
cria o volume desse rosto dla/lfe da superfície plana da máscara e das
extremidades dos olhos-cilindros, os quais se tomam, assim, olhos
vistos como cavidades.3S

Kahnweiler chamou de "transparência" a capacidadede re


presentar o volume virtual no espaço-O termo é particularmen
te mal escolhido e confuso. Nenhuma transparência de superfí
cie dá acessoà essência das máscaras grebos ou do Vio/ão (nem
ao célebre Copo de absírzfo,ao qual Kahnweiler recorreu para ser-
vir de suporte a sua terminologia). "Transparência", igualmente,
pareceindicar uma comunicabilidade imediata; um sonho idea

lllX E :{ t
lista de uma arte sem códigos e sem opacidade semântica;um

::;=i:::='" estado de percepção em que a arte se comunicada diretamente


com a mente do espectador. Não foi, de maneira nenhuma, esse
sonho que Kahnweiler propâs3ó.
A inovaçãoinesistível que essesrelevosrepresentampara a
escultura europeia", escreveu Kahnweiler a propósito das estru-
turas de Picasso, "baseou-se no fato de que elas romperam com
os volumes 'opacos', por assim dizer. As formas dos copos e dos
instrumentos musicais não estão descãfas,em nenhuma medida,
na sua continuidade; a continuidade surge apenas na imaginação
Da arte grebo, Picassorecebeu, simultaneamente, o princípio criativa do espectador."37 Para ler corretamente essa frase e com-
da arbitrariedade semiológica e, por conseguinte, o caráter ima- preender o que Kahnweiler entendia por "transparência", creio
terial do signo. que devemos recorrer ao célebre texto de Carl Einstein, Neger-
plasfík,publicado em 1915, que Kahnweiler lera durante sua
estadaem perna e citara em 'farte negra e cubismo". Devemos

* 31 nw:i:TIE:l t retomartambém o artigo admirável que Kahnweiler escreveu


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COMO MODELO

de Michelangelo.

.
16. Antonio Canova, 7ümu/o de /\4a/ü Ch/fst/na. 1798-1905. Mármore

]
574 cm de altura (225% pol.) Augustinerkirche. Viena. Foto de Eric '
Berberson.As imagens esculpidastêm o tamanho natural. como deixa
claro a presençade.um espectador.A grade provavelmente não é original
(os vários bozzettf de Canovapara este e outros monumentos semell;ntes
não trazem nenhuma indicação dela). O fato de se ter considerado
necessáriopõr a grade é apenasmais um sinal da confusão hetedoroxa de
Canova entre espaço público e espaço da arte

res de pedras;'
toria[ismo escu]tura]em seu apogeuyo. De muitos pontos de vista,
essaposição ainda se ma ntém, levando a maioria dos críticos a um
equívoco fundamental em relação às estruturas cubistas de Pi-
casso41.
Essaproposição, enunciada de maneira extremamente
convincente por Greenberg e desde então adorada --, afirma
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COMO MODELO

que o Violão de L912tem origem em "colagens", signi6cando pa-


píers collés:

da superfície da pintura."

17. Natureza-moda com carte/rade pa/hhha, primavera de 191 2. Colagem de óleo, oleado e
papel sobre tela. cercados por corda, 27 x 35 cm (1 0% x 1 3% pol.). Museu Picasso, Paris. Foto
Réunion des Musées Natíonaux

Minha hipótese é simples: Picasso confundiu "primeira colagem


com "primeiro papíer co/Jé",uma confusão de memória comum e
bastante explicável quase cinquenta anos após a ocorrência do
fato's. Enquanto a colagem da primavera de 1912 originou-se da
dialética descrita por Greenberg com referência ao cubismo "ana-
lítico" a introdução de um elemento real numa superfície plana
servindo de contraste, como as letras impressas de 1911-12 ou o
prego no "trompa J'oeí/"de craque em 1909 10 --, o primeiro píz-
píerco//édo final do outono de 1912derivou do Vío/ão,o qual,
como sugereEdward de modo convincente, deve ter sido con-
cluídodurante o início do outono4ó
Será que isso tudo não significa apenas uma perda de tempo
com datas sem importância? Pelo contrário, trata se de articular
aevoluçãode uma determinada lógica formal (a do "sistema Pi-
casse"),e não de rememorara biografia do indivíduo Picasso.
Gostaria de assinalar, de maneira indelével, o nascimento de um
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DA MODERNIDADE
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COMO MODELO

18. Imagem bambara ou dogon,


Mail. Madeira e metal. 69 cm de
altura(27%pol.). Coleçãoparticular.

arte africana tem pouca ou nenhuma modelagem (e, embora não


empregue o termo mzontage,
sua descrição da arte allricana baseia-
se nesse conceito, explorado pelos papíers co//ése pelas estrutu
rasde Picasso)49.Se,como o fez Kahnweiler. concordarmos com
a leitura formal proposta por Einstein, estaremosem condições de
entender por que a arte de Picasso só podia manter uma relação
morfológica com a arte africana durante sua fase "negra". Como
Kahnweiler e, depois dele, muitos outros críticos observaram. a
arte inaugurada por Ás selzhorítízsde Aalg7zo/zesforçou-se em
transpor as características volumétricas da escultura para uma
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DA MODERNIDADE
IOI
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COMO MODELO

fura, somente após compreender essafunção como um código


pictórico entre outros, estava Picasse em condição de valorizar a
arte africana não apenas como um reservatório de formas - e,
então, de vir a se interessar exatamente por aquilo que, na escul-
tura africana, não deve nada à modelagemsz.Após essemomento
de dissociação, Picasso foi capaz de vislumbrar outras possibilida-
des para a escultura além do entalhe direto que caracterizavasuas
experiênciasprimitivistas de 1907.Pede deixar deânitivamente de
lado o pictorialismo que ele alçadaàs alturas com as esculturas que
antecederam,em váüos meses,a estada em Cadaqués,como a cé-
lebre Cabeçade mz //zerdo final de 1909, onde "o contraste de luz e
sombra é usado de maneira sistemática; ele segue um ritmo figo
rosa: área clara, área escura, luz, sombra"s3
Não é por acaso que menciono a estada frustrante de Picasso
em Cadaqués,pois Kahnweiler situa ali a ruptura em questão. Da
obra realizada no verão, ele trouxe de volta al=biis vários "quadros
que não o satisfaziam, mas nos quais as estruturas rígidas não
eram mais imitações de sólidos em redondo, mas uma espéciede
sistema de andaimes" (flg. 20)s'. Segundo Kahnweiler, "Picasse
havia compreendido a forma fechada"ss; se era para o claro
escuroter um papel na pintura, não mais seria ajudando a cir-
cunscreversólidos. Se tivemos de esperar mais dois anos pela
"verdadeira" descoberta da arte africana, isso é porque a disso
ciaçãomencionada antes.dormentelevou craque e Picassoa faze-
rem, primeiramente, uma nova análise das "passagens" de Cé
zanne, cuja ambiguidade os afastou das considerações relativas
ao espaço tátil. Começando por refletir sobre as condições míni-
mas para a legibilidade dos signos pictóricos, craque e Picasso
chegaram a questionar todas as propriedades dessessignos. So
mente após uma pesquisa abrangente, que se estendeu durante
toda a fase"hermética" do cubismo (da qual o retrato de Kahn-
weiler [fig. 21] constitui um dos exemp]os máximos), é que Pi-
casso pede se interessar novamente pela arte "negra"
19. PabloPicasso.Homemnu .

iilã2-Ê:',!\T$n.?E Paraapresentar um relato mais específico da lição que Picas-


PO.). Museu de Arte Moderna do se extraiu da máscara grebo e de acompanhar o raciocínio de
Norte. Villeneuve d'Ascq. Doação
feita por Masurel.foto de Routhier. Kahnweiler,há um outro texto sobrearte africana,rigorosamente

»:: J
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COMO MODELO

20. PabloPicasso,O vio/onísta.verão contemporâneo da obra de Carl Einstein, que é particular\ente


de 1910. Óleo sobre tela. 100 x 73
cm (39% x 28% pol.). Museu Nacional
fecundo neste câsosó.Trata-se de lskussfuo/zegrou[A arte dos ne-
de Arte Moderna, Centro Georges gros], escrito em 1913-14 porVladimir Markov. pintor e crítico
Pompidou, Paras.Doado pelo sr. e sra.
André Lefêvre. Foto do museu ligado ao ambiente da vanguarda russa.Apesar de um certo nú-
mero de clichês(devidosà confiançaexageradaem Leo Frobe-
nius), o livro, publicado postumamente em 1919 graçasa Maia-
kóvski, apresenta uma análise particularmente surpreendente da
arte africana. Segundo Markov. suas três características funda-
mentais são: (1) o poderoso senso de volume de sua estatuária,
produzido pela arbífrariedízde inorgânica de suas articulações
(embora separeçacom o de Einstein, esseconceito é formulado
de maneira diferente);(2) a diversidade e a arbíhízHedadede seus
elementos morfológicos (que Markov chama de "simbolismo
plástico" e que correspondem ao caráter semiológico que im-
pressionou Kahnweiler nas máscaras grebos); e (3) a diversidade
e a ízrbíhadedadedos materiais, cuja articulação parecia ser de-
terminada pelo chefe da montagems7
Bastante semelhante, sob vários aspectos, ao de Einstein, esse
texto é importante por referir-se explicitamente a Picasso, en
21. Pablo Picasso,Retrato de Dan/e/- quanto Einstein contentou-se com uma alusão à arte francesaem
F/enryKahnwei/er.outono de 191 0.
óleo sobretela.l l0,6 x 72,8 cm gerals8,e pela tripla insistência no caráter arbitrário da organiza-
ção plástica da arte africana. Markov dá numerosos exemplos dos
g:Üi:3.H:.:H:S:u=«
Chapman, em memória de Charles B. três tipos de arbitrariedade, explicitando-os por meio de um con-
Goodspeed.foto do museu
junto de montagens fotográficas que "desnudam" determinadas
peças (fig. 22). A sintaxe é "arbitrária" no sentido de que deixou
de confiar no conhecimento anatómico e, por conseguinte, no
ilusionismo pictórico que sempre brota desseconhecimento (o
rosto e o cabelo podem estar separados em dois volumes iguais,
dispostosde um lado e de outro do pescoçocilíndrico -- um
exemplo ao qual podemos acrescentar a característica protube
unte dos olhos das máscaras grebos). O vocabulário é arbitrário
e,portanto, estende se até o infinito porque os elementos escul-
turais não precisam mais ter nenhuma semelhançadireta com seu
referente. O cauri* pode representar o olho, mas um prego pode
desempenhar a mesma função. O terceiro tipo de arbitrariedade

Pequenaconcha branca que. no passado, foi usada como moeda na Ária e na África. (N. do T.)
TOTENSDA MODERNIDADE
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104 A PINTURACOMO MODELO

23. PabloPicasso.A/máscara
e
caZ)faças,
1907. Lápis,22 x 16,3 cm
(8% x 6% pol.). Outrora da coleção
JacquelinePicasso,Mougins

em pranto, uma cabeça-igual-a-uma-folha e uma cabeça-igual-


a-um-vaso-de planta (fig. 23). Pouco antes de descobrir a más
cara grebo, Picassoinsistiu na possibilidade de metaforização
plástica que existia no núcleo do cubismo, pelo uso que fez do
pente" do decorador-pintor (usado normalmente para imitar os
veios da madeira) para retratar o cabelo de O roera, de 1912.Wer-
ner Spies escreve,acertadamente, que "deveríamos querer falar,
por analogia com o 'trabalho do sonho'de Freud, em'trabalho do
:Jinl::$JH::
1919
U=lâ!'H=liE'&
UÊ:.;E.'i:E
E=S=:1.:::!,.,.
..,'", cubista"'s9

Todossabem que o conceito de arbitrariedade do signo, ex-


(a.dos materiais) é um desdobramento do segundo, o mesmo traído da linguística convencionalista de William Dwight Whit
ocorrendo com uma série completa de métodos poéticos que po' ney,um especialistaamericano em sânscrito, foi formulado por
demos denominar agora de deslocamentos metafóricos. O cauri Ferdinand de Saussure no Curso de Lí7zgz.lütícíz
GerczZ,
ministrado
ao longo de três anos, entre 1907 e 1911,e publicado postuma
pode representar o olho, mas também pode representar o umbi-
mente em 1916.Não existe, de fato, nenhuma possibilidade de
go ou a boca; portanto, o olho também repres(antaa boca ou o
que um jovem pintor como Markov pudesse ter entrado em con
õ- 'igo. Na verdade, já em 1907 Picasso percebera o potencial
tato com o Czlrsode Saussure (além do mais, o livro só apareceu
de expansão metafórica da arte africana, como podemos perceber
em um desenho desseano no qual uma cabeçaafricano-oceâni- na Rússia no mínimo dois anos após sua publicação, quando
Markov já estava mortos', mas isso não afeta o raciocínio que
ca cria, por meio de uma simples inclinação formal, uma cabeça
TOTENSDA MODERNIDADE
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106 A PINTURA
COMO MODELO

encerradasó'.Não obstante, para que possamos compreender


aquilo que Kahnweiler intuiu, é preciso fazer uma digressão.O
que desejo enfatizar é que Saussure foi muito além da noção con-
vencional do arbitrário como a ausência de uma ligação "natural"
entre o signo e seu referente,apesar do fato de seu primeiro
exemplo de arbitrariedade ser tipicamente convencional (a sim-
p[es existência de muitas ]ínguas). ])ma Saussure, o arbitrário não
implica a ligação entre o signo e seu referente, mas a ligação entre
o significante e o significado no interior do signo. Seu alvo prin
cipa] foi a concepção adâmica da linguagem (da atuação de Adão
no Gênesís:
a linguagem como um conjunto de nomes atHbuídos
às coisas). Para ele, essa noção representa "aquilo que de menos
refinado existe na semiologia", e, como ela pressupõe a existên-
cia (como ainda o faz Whitney) de significados invariáveis e

ente eles.'mó2
Com as responsabilidades que tinha no núcleo da apriorísticos que recebem em cada língua específicauma vesti-
menta formal diferente, ele a qualifica de "fantasiosa"'s. Esseân
União da Juventudede Petrogrado,Markov não estavaapenas
guio de abordagem levou Saussure a separar completamente o
problema da referencialldade (do qual ele não tratou) do proble
ma da significação, entendida como a instituição, naquilo que ele
denominou de parolo, de um elo arbitrário, porém necessário,
tencial da poesia abstrata; estavatambém em contato direto com entre o significante acústico e o significado "conceitual"
os futuros teóricos da Opoyaz':,Viktor Shklovsky e Osip Brik, e,
Este diagrama, por exemplo:
talvez, até com o linguista Baudoin de Courtenay,que as vezes
participava dos encontros da União e cujas pesquisas precede-
ram as de Saussureós. O importante, aqui, não é o encontro hi-
potético entre Markov e um linguista específico,saussurianoou
objetos
;ll-«
$
mesmo momento da elaboraçãoteórica de Saussure
era falso para Saussure,que acrescentou: "Para além de todo co
nhecimento de uma relação efetiva como x-a, baseada num ob
feto, a verdadeira significação é a-b-c. Se qualquer objeto pudes-
se ser o termo sobre o qual o signo estivesse fixado, a linguística
deixariaimediatamente de ser o que é, de cima a baixo, e o
mesmoaconteceria com a mente humana"", isto é, com a própria
É claro que não cabe,aqui, entrar na discussãotécnica do con-
ceito saussurianode arbitrariedade do signo, uma vez que esse possibilidade da existência da linguagem. A linguagem, para
conceito pem\eia todo o Curso e deu origem a inúmeras discus- Saussure,é uma forma cujas unidades são distintas (sejam elas
unidades acústicas [significantes], unidades "conceituais" [signi-
sões entre os linguistas, discussões que, além do mais, não estão
ficados] ou signos, isto é, conjunções de significantes e significa-
Acrõnimo. em russo. da Sociedade de Estudos da Linguagem Poética. (N. do T.)
dos) -- ou, na conhecida passagem do Curso:
TOTENSDA MODERNIDADE
109
108 A PINTURA
COMO MODELO

Na língua só existem diferenças. Mais importante ainda: uma di- simultaneidade ou do paradigma, que define o léxico (um con-
junto de palavras que poderiam ocupar o mesmo espaço na sen
vença). Essevalor se diferencia de maneira absoluta, como o valor
de uma nota de cem francosem relaçãoa uma de mil francos,
é menos importante que os outros signos que o rodeiam." mas ele confere "algo positivo" ao signo
Para explicar esseconceito de valor (e para diferencia-lo da
Entretanto, nas numerosas referências feitas a essaslinhas, em significação ou da relação entre o significante e o significado, que
geral se omite a inflexão contida no parágrafo seguinte: "Mas a oscila à medida que se concretiza na paro/e [falal), Saussure re
afirmação de que tudo na linguagem é negativo só é verdadeha se correu à metáfora do jogo de xadrez, igualmente utilizada por
o s gniücado e o signiâcante forem considerados separadamente; Matisse na mesma época, por motivos bastante semelhantes72
ando consideramos o signo em sua totalidade, temos algo que Se,durante uma partida, uma peça é perdida - por exemplo, se
'i' -.. .. Embora o .signi6cante
' ' l categoria.""
épositivoemsuapropn ...-.:--- acús- uma criança leva o cavalo para um canto qualquer -, não impor-
tico e o signihcado "conceptual" se diferenciem de maneira nega- ta que outra peça irá substituí-lo provisoriamente; podemos es-
tiva (derem-se por aquilo que não são), o resultado de sua com- colher de forma arbitrária (qualquer objeto serve,e, dependendo
binação é um fato positivo, "o único tipo de fato que a linguagem da capacidade de memória do jogador, até a falta de objeto). Pois
contém", a saber,o signo. Por que ele é positivo, quando em todas é a função da peça dentro do sistema que Ihe confere seu valor (e
as outras passagens Saussure insiste na natureza oposítorízdo sinto-me tentado a dizer que é a posição da peça em cada mo-
signo? Seráque ele estavaintroduzindo aqui uma qualidade subs- mento do jogo que dá a ela sua significação). "Se acrescentarmos
tantiva quando toda a sua linguística se fundamenta na desco- um signo à linguagem", dizia Saussure,"diminuímos, na mesma
berta de que "a linguagem é forma e não substância"?ó9 proporção, o [valor] dos outros. Reciprocamente, se só tivermos
Tudo gira em torno do conceito de odor, um dos mais com escolhido dois signos (. . .) todas as significações [concretas] te
plexos e controvertidos conceitos de Saussure.O signo é positivo riam de ser divididas entre essesdois signos. Um designaria uma
metade dos objetos, o outro, a outra metade."73Para Saussure,
porque seu valor é "determinado (1). por um elemento desseme-
Ihante que pode ser trocado, o qual também podemos represen valor é um conceito económico; permite a troca de signos (na co-
municação social ou na tradução), mas também impede a per-
tar por I', e'(2) por elementos similares que sejam comparave's:
mutabilidade total. (Saussuretem um exemplo famoso, o dos va
ç- +- I' Q -+ -) lotes diferentes de s/jeep,em inglês, e de moufon,em francês, pois
em inglês sheepse contrapõe a muffolz. "Ao falar de um pedaço
Ambos os elementos são necessários para o valor"70.Em outras de carne pronto para ser levado à mesa, o inglês utiliza mutfon e
não sheep.A diferença de valor entre sbeepe mouf07z deve-se ao
palavras,de acordo com a fórmula de RenéAmacker, "(a) t.Á-
valor é definido em relação ao sistema do qual é extraído, porém fato de que sheeptem, ao seu lado, um segundo termo, o que não
ocorre com a palavra francesa."z4)
(b) todo valor é determinado necessariamente,também, pelo uso
Esseconceito de valor, por fim, está paradoxalmente ligado à
que dele fazemos,por aquilo que podemos trocar pol-.ele,ou seja,
'.iuv -''-' ''' - externaaele, que tem aquelevalor"7t. O noção que Saussurechamou de "motivação relativa do signo lin
pelacategoriadecoisas . .. . . .J-;-
[;i;lfã, ;]ü,«. .i".«. d- p';:ç;' q:«. .i; .'-p' ";,d'i; :i""; guistico", tantas vezes mal interpretada. "Estou convencido de
que tudo que se relaciona com a linguagem enquanto sistema
da linguagem: o eixo da sucessão,do sintagma, que é determi-
deve serabordado do seguinte ponto de vista, que quase não tem
nado pela gramática (numa sentença, por exemplo), e o eixo da
TOTENSDA MODERNIDADE
l ll
110 A PINTURACOMOMODELO

O que Picassoviu, de fato, nos olhos protuberantes da más


caragrebo? Não é corneto pensar que ele chegou somente à con
cepçãoconvencional da arbitrariedade do signo (o fato de não
haver semelhança alguma entre os olhos protuberantes e aquilo
que normalmente chamamos, depois de Leonardo, de "janelas
da alma") *. Como Kahnweiler percebeu, Picasso tornou-se cons
ciente, mais especificamente, da natureza diferenciada do signo
e de seu valor: o valor do signo plástico/olho como uma marca
num terreno não demarcado, no interior de um sistema que re-
gula seu uso (relembrando o texto de Kahnweiler, ' máscaras
[grebo] demonstravam, em toda a sua pureza, o conceito de que
a arte tem como objetivo a criação de signos. O rosto humano
'visto', ou melhor,'lido', não coincide, de maneira nenhuma, com
os detalhes do signo; ademais, essesdetalhes não teriam nenhum
significado se estivessem isolados")se.A sintaxe anatómica tradi-
cional pode ser inteiramente posta de lado, porque o valor posi-
tivo do signo enquanto marca semântica, "que depende da pre-
sençaou da ausênciade um termo adjacente"81 e que permite
sua troca, pode ser criado por qualquer processo. Daí Picasso ter
explorado continuamente a mutabilidade dos signos no núcleo
do mesmo sistema de valores: a boca pode soõ.eruma rotação de
90' e lançar-se para fora do rosto, produzindo um beijo vaginal
perturbador e predatório, ou pode ser multiplicada segundoum
jogo metafórico baseado na troca de signos (o mesmo tipo de jogo
que Markov observou na arte africanas:. É possível perceber isso
no jogo que Picassofaz a respeito do signo mínimo, preparado
por todo o cubismo"hermético" anterior à associaçãomáscara
grebo/Violão e levado ao extremo com a série de papíer co//ésa
partir da primavera de 191383.A redução, por Picasso, desse sis
tema plástico a um punhado de signos, sem que nenhum deles
se refira univocamente a um referente, faz com que seu valor en
contre numerosassignificações.Uma forma pode ser vista às
vezes como "nariz" e às vezes como "boca"; um conjunto de for
mas pode ser visto às vezes como "cabeça" e às vezes como "vio
lão". Kahnweiler, mais uma vez:

Constaque Leonardoda Vincifoi o primeiroa chamaros olhosde "janelasda alma". (N.do R.da T.)
intuída pela primeira vez por Kahnweiler.
TOTENSDA MODERNIDADE
113
112 A PINTURA
COMO MODELO

fura não precisavamais ter medo de ser engolida pelo espaço real
dos objetos; ela podia empregar formalmente o espaço,transfor-
mar o vazionuma marca e combinar essamarca com todos os
tipos de signos. O yzo/ãode Picasso é, até certo ponto, uma res
posta a Hildebrands7. Isso é confirmado na experiência seguinte
84 de Picasso,na qual ele montou uma imagem em pízpíerco//éque
lidos'
surgia de seu suporte vertical, segurava um violão de verdade no
espaço e estendia as pernas de papel debaixo de uma mesa de
No entanto, é possível perceber, por e.sta última citação: que verdade,na qual estavadisposta uma natureza-morta com uma
o "sistema de valores" que guiava a arte de Picasso,embora não garrafa de verdade, um cachimbo e, o mais importante, um jor
nal (um jornal de verdade, isto é, o objeto que forneceu a maré
ria-prima pastosa da imagem; fíg. 24). A mistura de espaçoreal e
espaçoartístico, semelhante ao que Hildebrand abominava na
'pintura panorâmica", nas paredesde cera e no túmulo de Ca
nova, encontra-se no núcleo do cubismo, da oyefalídade que ele
desejaconfere à obra de arte e que a leitura de Greenbergtende
a minimizar, quando não a apagar.Mais do que recorrer à con
e do outono de 1912, no momento em que se imagina que Pi- cepção trivial da "volta à realidade" que as colagens deveriam ter
casso descobriu a máscara grebo e elaborou o Violão. conquistado (e cujo vazio Greenberg demonstrou com tanta
Finalmente, e creio que esseé o motivo fundamental pam a maestria), devemos considerar, da perspectiva da semiologla
cubista, como a "realidade" dessas obras (o acréscimo de objetos
reais,a escultura do espaçoreal) poderia ter sido incorporada
assim que tivesse sido apanhada em uma rede de diferenças e
em um sistema de valores -- uma vez que se tivesse transformado
em signo. Outra experiência igualmente significativa é a da única
como um termo positivo. esculturade papel feita por craque, da qual restam algunsvestí-
gios (fig. 25). Presa no canto de uma sala, a estrutura incorpora o
espaçoarquitetânico ao seu contexto real, por meio daquilo que se
pode chamarde contiguidade indicial. O campo da imagem não
estáseparado do campo do suporte; o canto arquitetânico real é,
simultaneamente, suporte e parte da imagem. Ela antecipa, com
precisão, os conhízrre/mos de canto deVladimir Tatlin88
A combinação infinita de signos arbitrários e imateriais no nú-
cleo de um sistema de valores finito é esse o modelo rízíso/z/za
vém unicamente da imaginaçãocriativa do espectador."
bie revelado pela arte africana, em relação ao qual, de certo modo,
a reduçãoiconográfica da obra de Picasso(acentuada,ademais,
Como Kahnweiler diz claramente,a compreensãodo caráter
entre 1912 e 1914) funcionou como uma preparação89.Quando,
imaterial do signo levou Picassoàs estruturas "abertas" .A escul-
TOTENSDA MODERNIDADE
115
114 A PINTURACOMO MODELO

25. GeorgesBraque.Estrutura (no ateliê de Braque),1913. Papele cartolina; destruída


Esteé o único documento que existedas esculturasde papel de Braque. que foram todas
destruídas

24. PabloPicasso,Estrutura com vio/onista (no ateliê de Picasse)1913. Papel.violão e objetos


variados;destruída.
TOTENSDA MODERNIDADE
117
116 A PINTURACOMO MODELO

natureza diferencial do signo9s.SÓnos resta lamentar que ele não


tenha tido acesso a Saussure,pois a teoria do linguista genebrês
teria permitido que ele saísseda contradição que o aprisionava.
os primeiros textos de Kahnweiler mostram os germes dessa
contradição, revelando que, afinal de contas, talvez ele não fosse
tão kantista assim.Na verdade,apesarde utilizar a noção kantis-
ta de "beleza dependente" ao falar da identificação, por parte do
espectador,do objeto representado na obra cubista e apesar de
sua recusa em perceber nesse ato de identificação (que ele deno-
minava "assimilação") o cenário do prazer estético9'--, Kahnwei-
ler baseouseuraciocínio numa teoria associacionistada percep
de 1955, o artista descreve sua aversão diante de uma exposição
ção que o obrigava a definir "assimilação" como o momento final
intitulada "Os criadores do cubismo":
para o qual se direciona toda a relação empírica com a obra de
arte. Kahnweiler acreditava que a "elegibilidade" dos primórdios
do cubismo era uma doença temporária, e que sua diHculdade
tinha por baseuma diferença de grau, não de gênero:

Agora entendemostambém por que um novo modo de expres


são, um novo "estilo" nas artes plásticas frequentemente parece íle
cível como o impressionismo em seu tempo e, agora,o cubismo:
os impulsos ópticos desacostumados não evocam imagens da me
perEl1lectiva o, mas ainda eram uma forma de substituí-la.91 mória em alguns observadoresporque não existenenhuma forma
ção de associações até que, finalmente, a "escrita", que no começo
E André Salmon, um dos amigos mais íntimos de Picasse du- parecia estranha, se torna um hábito e, depois de ver essesquadros
com frequência, as associações são finalmente feitas.9S
rante os anos do cubismo, relata a função emblemática que o
enigmático Violão,misturando todas as categorias, desempenha- A incompatibilidade entre o kantismo o associacionismode
va no ateliê de Picasso92
Kahnweiler produziu uma ú'atura em seu discurso.Essafutura
extremamente visível levou-o a estigmatizar o espectador "ingê-
Mencionei a concepção de Kahnweiler, que ele expõe de m.a-
nuo", que "identifica o signo com o significado" ao rejeitar o
"nariz torto" das mulheres de Picasso,embora tenha permitido
que ele concebesseaquilo que chamava de leitura da pintura
como essemesmo ato de identificação9ó.Uma vez que a pintura é
"escrita formadora") e em termos de uma concepção linguística
"lida" de acordo com um código, ela "existe" na "consciência" do
obsoleta. Ele não apenas cometeu um equívoco fundamental ao
espectador,porque, doravante, "ele terá identificado o signo com
avaliar a escrita não alfabética e a possibilidade do pictograma
o objeto significado"97.Na verdade, o que faltava a Kahnweiler
puro -- um conceito hoje abandonado.pelos.historiadores da es-
era o conceito que teria levado sua analogia escritural para além
crita -, mas, novamente, como corolário, parou numa concepção
doslimites de uma analogia: o do referente. O espectadoringê-
adâmica da linguagem, apesarde seu claro entendimento da
118 A PINTURACOMO MODELO TOTENSDA MODERNIDADE
119

nuo não confunde o "signo" com o significado, mas, como Kahn-


weiler e a maioria dos historiadores e críticos da arte, o significa-
do com o referente. Como resultado desseequívoco lógico, o
texto de Kahnweiler oscila entre ficar do lado do espectador con-
tra os "estetas raquíticos" a respeito do "assunto em Picasso"98
ou quando repudia a pintura abstrata (que,por não ter nenhum
referente no mundo, não tem significado algum para Kahnwei-
ler), e voltar a ser formalista, quando insiste na afinidade entre os
projetos de Mallarmé e do cubismo sintético.
Gostaria de finalizar nesseponto, pois, quando Kahnweiler
fala de cubismo e Mallarmé, ele não se contenta apenascom uma
ligação meramente ilustrativa apenas entre esta ou aquela obra de
Picasso e Ufz Coup des dés (cujo aspecto mais impressionante, ao
participar daquilo que podemos chamar, à maneira de Freud, de
lógica do humor cubista, ocorre no papíer coZléem que o título do
jornal, "ulz coup de théâbe", torna-se .'u7zcoup de thé"*)99. Kahn-
weiler relaciona a virtualidade e a imaterialidade dos signos
cubistas com a arte mallarmeana, uma arte de concavidades,es-
paçamentos e diferenciação - de uma exacerbaçT das caracte-
rísticas da escrita, no sentido amplo que JacquesDerrida deu ao
termo. Ele insistena "suspensãovibrante" do objeto, na natureza
mágica do poema que faz do leitor um criador e menciona a guer-
ra contra o acaso que a poesia mallarmeana esforça-se em travar
(a estrutura totalizadora da obra e a determinação dos elementos
por meio de "relações"), ligando o "cubismo.' dos caZ/ígrammes
de Apollinaire à importância dos espaçosem branco da obra de
Mallarmé e àsrestriçõesque elesimpunham à linearidadedo sig-
nificante:oo.A ligação que Kahnweiler faz entre a pintura cubista
e Mallarmé constitui, em si mesma, um feito teórico que faz com
que perdoemos suas imprecaçõesdogmáticas contra a pintura
abstrata (pelo que até Picasso o censurouyo:. Embora certamen- 26. PabloPicasso,Wo/ão,partitura e copo, final do outono de 191 2. Carvão, guache e pasta
te não tenha sido o primeiro a fazer essaligação (já em 1911, de papel,48 x 36,5 cm(24% x18% pol.). Museu de Arte Marion Koogler McNay, SanAntonio
mexas.
foto do museu
Ardengo Soffici escreveraem La Moreque as pinturas de craque
e Picasso "têm a propriedade de um hieróglifo que serve para

1:%g:E:T::'b::;T;!':111:K"='Ug'=;lF."i,T,l:=HP,;E'ã::'S;;:
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120 A PINTURACOMO MODELO

descreveruma realidade lírica(. . .) idêntica, até certo ponto, à sin-


taxe elíptica e às transposições gramaticais de Stéph.aneMallar-
mé"):'z, ele foi o primeiro a compreende.r sua importância. ABSTRAÇÃO
Mais do que adentrar essaquestão de maneira detalhada,o
que seriaobjeto de um.outro artigo, gostaria de reproduzir estas
linhas de Magoe,de Mallarmé, que serviram de base para a.relação
estabelecidapor Kahnweiler. Cito-as com referência a Violão,par-
tíMxa e copo(fig. 26), um dos primeiros papíers coliés de Picasso,
concluído alguns meses depois do golão, quando o impacto da
máscara grebo já havia sido absorvido:

Evocar, com calculada ambiguidade, o objeto silenciado por pa'


lavras alusivas e indiretas, que se reduzem a um silêncio uniforme,

:likÉái :n n yHB
I'e fato, uma ilusão semelhante ao olhar.Versostraço máglcol e não
se negará ao cüculo que a rima eternamente fecha e abre uma se-
melhança com os volteios da fada ou do mágico em meio à relva.t03

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