Você está na página 1de 17

ANTÓNIO GUERREIRO

O DEMÓNIO
DAS IMAGENS
SOBRE ABY WARBURG

LÍNGUA MORTA
IM SISMÓGRAFO DA CULTURA

Em 1927, dois ano antes da sua morte, Aby Warburg pla-

uma
neou viagem a America, a que renunciou por imposi-
cão do seu médico o psiquiatra suiço, amigo e correspon-
são
dente de Freud, Ludwig Binswanger. Desse projecto, deixou
estemunho num texto dactilografado, em cinco folhas,
que se encontra nos seus arquivos pessoais. Ai, numa pas-

sagem em que faz a sintese do seu percurso intelectual e


dos objectivos da sua investigação, afirma de maneira la-
pidar: "Se rememoro a viagem da minha vida, parece-me
que a minha missão é a de funcionar como um sismógrafo
da alma na linha de divisão entre as culturas". Esta sensi-
bilidade sismográfica tinha-se manifestado com a máxima
evidencia na conferência pronunciada em 1923, na clínica
de Binswanger, em Kreuzlingen, que tinha por título O Ri-
tual da Serpente. Devemos recordar as circunstâncias dessa
conferência: depois de cinco anos de internamento (metade
dos quais nessa "montanha mágica" que era Keuzlingen)
por de uma profunda esquizofrenia que os médicos
causa

tinham considerado incurável, Warburg quis provar ao seu


psiquiatra que estava em condições de voltar a Hamburgo
e prosseguir o seu trabalho. E, para isso, propôs-lhe fazer
uma conferência, escrita a partir de notas escritas e docu-
mentacäo iconográfica de uma viagem efectuada vinte e
oito antes. Em 1895 tinha ido a Nova lorque para assistir

77
irmao;
irmão; mas, acabadas as
mas,

ao
c a s a m e n t o
de uum
de m

por alguns
meses em cerimnia
missão
da
cidade
de
Scapou-se
t r o p o l o g o
dor das fronteiras da sua an
p o u c or e s p e i t a d o r

estadia
numa
ribo de
tribo de índios
índios do Novo Méxic ciencia,
fez
uma
escobriu foi
descobriu que eles se enconte
foi que
E o que
logos"2, travam
evelando no
Pueblo.
e o
os entre a magia
Os

caminho
a meio mento
c o m p o r t a m e n t o eadamente, através
nsamento
e no
sincro. do mágico-religi com o lo
danças) a
das suas
simbólico,o,onde
deum espaço
criação
gico-racional. A esta de imagen
de produção de imagens, po-
estera atemporal
inscreve a
se
capacidade mitopoiética. Com Ossímbolos
demos chamar
eram 0 instrumento
a serpente, que
especial destaque para se orientar, para Con
dispor para
os Pueblo tinham a0seu
caoS, para superar- num 're-
trolar o perigo mortal do
desconhecidas através de uma
causas
flexo fóbico"=as a
Completamente ambivalente, serpente
imagem conhecida.
do símbolo: nela exprime-se
é um exemplo da polaridade
instintiva das emoções
ao mesmo tempo
a força irracional e

triunfo do logos que está do lado da imor


primitivas e um

distância entre o Eu eo
talidade e do renascimento, que cria
mundo exterior, o que na Introdução ao Atlas Mnemosyne
idehinido como "o acto fundador da civilização humana"
Oconceito de polarização, como iremos ver, é central
em

toda a investigação de Warburg e, particularmente, na sua

teoria da imagem.
Nesta viagem aos índios Pueblo, só num primeiro mo
mentg e que Warburg surge investido no papel de antro
Pglogo. Aquilo que o
interessava, de facto, era estaberc
uma relação entre
as forças
expressivas primitivas (ue
quais
o
paganismo
constitui um aspecte particular) e as fi-
guraçoes míticas que, na cultura, têm a função de controlar
forcas, vendo nas imagens o ponto de sutura entre os

daisnmomentos-entre o aspecto demoníaco das emoções

imitivas
prim
e a tentativa de dominá-las racionalmente. Tal
como as entende, elas são dotadas de uma espessura his-
róorico-cultural, transportam uma memória colectiva que

ora permanece apagada, reactiva, e conjugam a re-


ora se

presentação racionale a representação mágica da vida. E,


pois,na condição de "historiador da civilização" (uma das /

definições que ele dá do seu trabalho), mais do que de an-


formulan-
tropólogo que Warburg observa os índios Pueblo,
interessava era como
doassimoseu objectivo: "O que me
um paiís que tinha feito da
conseguia sobreviver, no meio de
admirável de precisão nas mãos
cultura técnica uma arma

do homem racional, um enclave de homens primitivos e

com absoluto re-


pagaos, os quais, ainda que enfrentando
relação com a agricultu-
alismo a luta pela existência, na

continuavam a praticar com fé inabalável


ra e com a caça,
com
considerados habitualmente,
rituais mágicos por nós
total"*. Enquanto his-
desprezo, signo de atraso
como um
do
descobre naquela tribo
toriador da civilização, Warburg
de um poten
expressivos dotados
NOvo México elementos não em

C1ial energético que se plasma nãoem significados, do sig-


ordem
mas em que é da
algo
recorrências temáticas, intensihicada
a mímica
nihcante: a gestualidade superlativa, sobrevive
c o m o a da
Ninta, que
movimento",
da Vida em passando
desde o paganismo antig0,
ate
ao longo dos tempos, Renascimento,

Clássica, depois pelo


pela Antiguidade

79
à Modernidade. A questão de Warburg, na
Keuzlingen, é pois aquela que o tinha
os seus primeiros estudos sobre a
arted acompanhad« de
desde
tava na base do programa de
investigação enasci mento eeees
que tinha
topara
Kulturwissenschaftliche.
a sua
Bibliothek propos
(KBW): deveria servir para
ela Warbur
investigar a Nachlebe
não se pode traduzir que
apenas por "sobrevivênci: tratase
de uma vida póstuma
reactivada) da Antiguidade
que razão certas tormas pag, por
antigas ficaram impressas
mória colectiva, de tal modo que renascem em na me
épocas. E devia fazê-lo tendo em conta a determindas
logos, o contlito entre o pólo polaridade magial
pólo racional do ethos que mágico-instintivo
eo
do pathos
tinha observado
Pueblo. Daí que, num discurso de nos índios
1929, ao Kuratorium, em
Hamburg, tenha definido desta maneira a
tual em que se colocava "situaço espiri-
a KBW no mundo da
Ela investigação:
representa um capítulo que poderia ser intitulado: Da
orientação do homem em relação a si mesmo e ao cosmo0s
guiada pelo mito e
pelo medo, à orientação quetem como
Bula o
pensamento científico e matemático">. Tanto
um instituto
quanto
de investigação, a KBW
ritz Saxl
servia, com0 escrevc
(que assumiu as funções de director da lio
teca
quando Warburg esteve Biboi
internado), para elaborar uum
problema. E esse problema era o
da "Nachleben aE Anti
Re, O da
transmissão e recepcão de fórmulas ngtd
I d a s da
Antiguidade e que fazem uma migração histor
Beografhca como fantasmas (uma "história de fandsmas
para adultos": foi assim seu
que Warbure definiu o
pro
inacabado de um Atlas de imagens, o Bilderatlas
Que deveria ser uma exposição da filosofia warburguiana

da programa da Biblioteca,
memória). O nos termos usa-

dos por Wark num discurso de 1928, pronunciado na


dos por Warburg
Camara de Comercio de
Camara Hamburgo, consistia em "mostrar
memória ectiva europeia como força for-
a função da
cultura da
madora de estilo, assumind0
madora como constante a

Antiguidade paga"°. E, em 1923, tinha dito que a colecção


de livros e documentos da sua Biblioteca (que compreendia
também um conjunto importante de material iconográfico),
modo como os tinha organizado, era uma tentativa de
eo
responder a esta questão: "Como se originam as expressões

yerbal e pictórica? Quais sao os sentimentos ou pontos de


determinam o seu
Vista, conscientes Ou inconscientes, que
armazenamento nOS arquivOs da memória? Quais são as leis

a sua formação ou reemergência?"


que govenam
A singular concepço da Kulturwissenschaft warburgui-
razão, entre visão
ana é a de que o conflito entre magia e

religiosa e matemática, é uma condiçã0 perene, está presen-


todos os momentos da história da
te época actual em
até à
transhistóri-
civilização. Trata-se de um conflito tipológico
e

que preside
co, irredutível ao processo dialéctico-teleológico
desenvolvimento da cultura, tanto na Geistesgeschichte
ao

como no evolucionismo da tradicional história


hegeliana
das ideias. A história como memória, como mnemosyne,
se apropria dele para o dissol-
não destrói o passado, nem
a
para exprimir perene novidade:
a sua
ver, mas
conserva-o

assedia o presente de
sua convicção é a de que "a eternidade
o nome da deusa da memória,
todos os lados", Mnemosyne,
entrada da sua
Warburg tinha fixado à
éapalavra grega que

81
"ymism
Biblioteca, que
cle deiniu como

nal que regista o tráhco genético kespiritual çnere


sismógrafoi ntytnacr,
Ocidente, entreo
Norte Sul, de modo a
indicar cm
Orent
eo

caracteriza,
atraves ndência selectiva,
de uma tendência
a
forma
io da memória de uma tal massa hereditária nas divers
se

épocas Mais uma vez, Warburg utiliza metáfora do sis


apurados inste.
i

aos seus
mógrafo para
se referir
instrumentos de
investigação.
Percebemos todo o alcance que Warburg quer dar ae
metáfora eomodo como ela deine uma constelacänd pen

chamados Burckhardt.f.
samento, quando lemos os
as reflexoes que Warburg
dedicou às posições de BiureLi<hardt
Nietzsche relativamente ao fundamento mítico da culue
tura.
e
em I927-28 orientou na ln
à margem dos seminários que
Como se iniciam essas reflexöes
versidade de Hamburgo. Eis
"Devemos reconhecer Burckhardt e Nietzsche como aguele
a onda mnemica, e ver como ambos fo-
que apreenderam
consciencia
ram tocados de modo basttante diterente pela
dois sismógr-
universal de cada um deles (..). Trata-se de
fundamen-
fos de grande sensibilidade que vacilam
nos seus

transmitem as ondas. Uma grande


tos quando recebem e
recebeu as onaa
diferença, porém, separa: Burckhardt
os
da região do passado, sentiu os abalos perigosos e pre
Pelo

pou-se em reforçar a estabilidade do seu sismograro


'protetu
contrário, Nietzsche é um vidente, uma espécie de
e dore
antigo que corre pela estrada, rasga as vestes, Be
seugestoorig
Consegue, talvez, arrastar consigo o povo. O su
rigados as
Sao
nário é o do guia com o tirso que todos :Nietts

guir. Analisando as diferenças entre Burckna

82
o p
primeiro
rimei como aguem que se salva das
ve o
Warburg

he.
he, remas,
CNremas,
e e ppor isso permaneceu sempre como um
ibracoes
que o segundo.entrou em ruína por se
minista, enqu quanto
aos alos
abalos mais tremendos. Warburg,
solitariamente

nr
eporsoli

atracção pelo fundo dionisiaco, sentiu-se, enquanto


sua

de Nietzsche. E essa posição está


na
mais próximo
grafo,
SIs marcada
quando, manifesta
a vontade de chegar "a
bem

da des-razão pura, ainda não escrita"


critica
mostrado, na arte do Renas-
modo que tinha
uma

Do mesmo
como se
tinha dado a migração dos antigos deu-
cimento,

particular
relevo para as nintas e as deusas, cujas
(com
ses
diáfanas regressam na pintura, exprimindo
vestes
levese di
leves e
vestes

Pathosformeln, em fórmulas
movimento" em
"yida em
sobreviviam fontes arcaicas que dão às
e como
de pathos) histórico-cultural, Warburg mostra
uma espessura
imagens
serpente a origem
ne-
o ritual da
conferëncia sobre
na sua conheci-
de todo o
cessariamente
mítica e antropomórfica
conflito perene en-
se dá a ver no
mento natural, algo que
matemática e o pólo
racional da contemplação
tre o pólo formular é a de que a
ideia ele irá
mágico-religioso. A que
Mas
esquizofrénica.
humanidade é sempre,
em cada época,
utilita- tantásticae

enquanto que a
coexistência de magia
esquizóide,
tem para o
índio nada de
ismo racional não de uma
libertadora
a experiência
Pelo contrário, "significa
entre ohomeme o
limitada possibilidade de correlação
homem europeu esse con
envolve" para o
o tragico
doque cultura. Um
fundo trágico da
sua
O designa um
haver uma
vitoria

não pode
nem solução porque
a conquista
do
nunca

VContra as forças irracionais,

83
do Denkraun
paco do
pensamento- a de m
em cada moment.
vez por todas:
"E prcciso salva
Alexandria""',
escreve Warburg na tenas
conclusão de umes
de
rudo de 1920, sobre As divindades antigas pag s em text

de Lutero. E isso signifca tos


na
a linguagem
e imagens da época
warburguiana, conquistar o "Denkraum der Beso.
onnenhen
Denkraum é um conceito. eito que enc
entre si e o objecto.
esclarecimento mais cabal num texto de 1929
trará um
que
ao projecto do Atlas Mnemos Mnemosyne. Ai.
serviu de introdução
fala-se da função da memória soCial enquanto criadora de

de pensamento.
O Denkraum, reforca oc

um espaço po-
los opostos do comportamento psiquico0: a tendência para

contemplação
retlexiva (a Besonnenheit, Dalau..
a serena
Sophrosyne) ou para o furor
alemã para traduzir grega
a

nietzschiana desta dualidade tinha


orgiástico. A inspiração
num texto de
1913 sobre O lngresso
ficado bem explicitada
Antiquisante [antikiesierend na Pintura do
do Estilo Ideal
Italian0: "O ethos apolíneo germi
Primeiro Renascimento
dionisíaco como um duplo ramo de
na ao lado do path0os
misteriosas proftundidades
tronco radicado nas
um mesmo

Denkraum, em Warburg,
signihca
da terra-m ae grega"l4,
O
necessaria
de uma harmonia
uma medida,
a introdução de da
está na origem
o elemento dionisíaco que
para corrigir "Melancolna l
pensativa na
capacidade expressiva. A pose u
Warburg a entendeu, é o quepermitey
de Dürer, tal como UXOCS

homem e as Suas pa
distância entre o
Se estabeleça uma

temo seu contrapon


demoniacas. O frenesi dionisíaco cultura.
da
trágico
é o dilema a cul
depressão racionalista: este

constantes-
trans-históricas
Entre as tipologias

84
fura,
dualismo apolineoldionisiaco tem uma
importância
danmental no diagnóstico da civilização que Warburg re
imaginado-se como uma espécie de psico-historiador,
ado por um reflexo autobiográhco. E ele próprio que o
dir
numa nota datada de 3 de Abril: "Por vezes, vejo-me
omo se fosse um psIco-historiador que procura ler, num re-
fexo autobiográfico, a esquizofrenia do Ocidente a partir de
um lado imagético: a ninta extática (maníaca) de um lado, e
o triste deus fluvial (depressivo), do outro"13
A conferencia sobre o ritual da serpente termina
preci-
samente com um diagnóstico de onde emerge uma noção

de trágico que deriva do conflito entre a vida e as formas


(para utilizarmos um vocabulário muito próprio da época,
que encontramos, por exemplo, em Georg Simmel) entre a
"orientação" no mundo através do culto mágico dos sím-
bolos e o pensamento tecnológico moderno que os destrói
completamente: "O raio conduzido no fio - a electricidade
capturada - produziu uma civilização que faz tábua rasa

do paganismo. Mas o que é que coloca no seu lugar? As for-


ças da natureza já não são concebidas como entidades bio-
mórhcas ou antropomórficas, mas como ondas infinitas que
obedecem docilmente ao comando do homem. Deste modo,
a Civilização das máquinas destrói aquilo que a ciência natu-
ral derivada do mito tinha congquistado com esforço: o espa-
Go para a oração, que se transformou depois em espaço para
pensamento"". Warburg contra a modernidade? Esta per-
gunta está longe de ter uma resposta unívoca. Seja como tor,
nao podemos esquecer que a modernidade, para Warburg
não se pode definir pela lógica de um progresso cumulativo,

85
mas de uma
historia c o m o
e1emosyne, em que se dáda sem
mnemosvn

património
se
deum de sem
pre
imagens
a
reminiscência

previamente
experielaenciasas e de
impressas (neste sentido, e

do mito).Tal corm
nun
completamente
emancipa nos devemosse
suas palavras qualquer rol.
abster de ver nas
cão com
discurso, de que
ele foi contemporâneo, sobre o
um
"dechii
do Ocidente",
à maneira de Spengler. Warbur
tudo preocupado
com a esterilização da sobre
cultura, derivada
da incapacidade de criar imagens e símbolos e ada
com
truição da distäncia operada pelo triunfo do inst
a
des.
Não nos esqueçamos da frase inicial da sua
instantâneo.
Atlas Mnemosyne: "Introduz1r conscientemente uma d.
ntrodução;ao
tancia entre o Eu e o mundo exterior é aquilo
que podemos
sem dúvida designar como o acto fundador da civilizacän
humana"

As imagens que constituem o objecto da "psicologia his.


tórica da expressão humana" trazem consigo o traço de um
conflito e têm de ser percebidas como um campo de forças
em luta, um território de tensões. A iconologia warburguia-
na, na acepção mais alargada de teoria da cultura para onde
conduz a sua teoria da imagem, não é orientada preferenci
almente para as imagens artísticas. Ou melhor, a sua análise
da imagem afasta-se do esteticismo, do privilégio concedido
cx
à dimensão formal, que Warburg viu sempre como uma
pecie de pecado original da história da arte. Na sua pers
pectiva, as imagens não deveriam ser desligadas da relay

com a religião e deveriam ser analisadas na sua a


dina
antropológica e como concentração de energla.
sobre
mologia, eis investigaçao
como Warburg concebe a
tanto uma teoria ge-
Ea a dinamologia significa
imager
como, num sentido mais específico,
onergética do figural
inversão ou co-
das possibilidac de conversão,
eoria
uma

da energia
contida na imagem.
mutação saber
é que isto signihca? Antes de mais, convém
Oque
Warburg tinha ido buscar a Richard Semon as categori-
ane
q u
A cria-
e "engramma" ou "dinamograma".
as de "mneme
de
cão do símbolo
corresponderia então a uma espécie carga
um acontecimento
intenso e repetido
energética derivada de
memória co-
inscrever-se de forma indelével na
de modo a
forma de engrama. Warburg pensa aqui num
lectiva sob a
forte que se torna traumático,
acontecimento de tal modo
a experièncias originári-
um acontecimento que diz respeito
ou uma cicatriz material
as de pathos que deixam um traço
arcaicos da consciência. Tais experiências
sobre os estratos

momentos de poderoso entusiasmo religio


tem a ver com
arcaicas, e com os
das comunidades humanas
so, próprio Atlas
Lemos na Introdução ao
frenéticos ritos dionisíacos.
de massa

Mnemosyne: "Na região da exaltação orgiástica


na memória as
tor
devemos procurar a
matriz que inculca
na

mas expressivas da
máxima exaltação interior exprimível
tal intensidade que estes engra-
com uma
linguagem gestual,
sobrevivem como patrimonio
mas da experiencia emotiva
que
memória"l6. o elemento patético-
Ora,
hereditário da
irrepresentavel,
sen o enquanto
ao chega à representação e dai o tacto
se subtrai ao sentido;
Isto é, na medida em que
semantismo
escapar a
todo o
iconologia warburguiana
de a intro-
Warburg
uma noçäo que
e o que é expresso por a
sobre Durer:
vez n u m texto
de l905,
duziu pela primeira

87
nocão de Pathostormel, de tórmula de pathoe "t
se de
eis de estados psiquicos ou
expressoces patéticos que as
imagens fossilizam, uma vez
quesào dotadas da
de se recordarcm das
suasorigens de exibircm a
e faculdade
memóri
histórica que nelas está inscrita. E é precisamente por ea
causa
dessa relação com a memoria que se da a sobrevivênei Cia, a
Nachleben, das fórmulas de pathos. Analisando uma
de Dürer, "A Morte de Orteu",
gravu
ra Warburg mostra como a
linguagem patética que a Grécia tinha elaborado para a
cena trágica vai incidir nela determinando-lhe directamente
o estilo. Não são os motivos temáticos que interessam na
análise de Warburg: é a expressão intensihcada dos gestos,
acentuação retórica dos corpos em movimento. As imagens
carregam então a memória da estratihcação que o passado
depositou nelas. Não se trata, porém, de um passado "cro-
notogico-Tantiga Grécia, por exemplo- mas de um
passado acronológico", mais antigo que a própria Anti-
guidade. O que signiica dizer: a vida, com tudo aquilo que
ela comporta: sofrimento, dor, morte. Em oposição à "no-
bre simplicidade e plácida beleza" que Winckelmann tinha
exaltado na arte grega, Warburg, profundamente insatis-
feito com a interpretação tradicional do Renascimento, em
chave apolínea, mostrou sempre grande interesse em desco-
brir nele a dimensão "demónica" e dionisíaca, onde ganha
relevo o pathos do movimento e dos gestos violentos. Dai a

importäncia que tem na sua investigação a figura da Ninta,


entendida como personificação do paganismo renascentista.
A Ninta representava de facto quer a "Vittoria" clássica,

que sobreviveu no Renascimento, quer o irromper da emo-

88
tivid. primordial contra a barreira do
espiritualismo cris-
0E, ao escrever sObre o grupo escultórico do Laocoonte
Warburg sublinha, contra Winckelmann a sublimidade trá-
,

8oica das figuras, exactamente o contrário da clássica com-


nOstura. Ousa mesmo esta tirada provocatória: "Não receio
ser mal compreendido se disser que se o Renascimento não
tivesse descoberto o grupo das dores de
Laocoonte, teria de
o inventar, precisamente pela
perturbante eloquência
sua

Datética"', Warburg situa-se numa posição diametralmente


oposta à de Winckelmann. Para ele, o Laocoonte não é um
mito terrível posto serenidade pelo domínio do equilí-
em

brio formal naquelas figuras escultóricas, mas pelo contrá-


rio um exemplo de "eloquéncia patética" que tinha pene-
trado com força intensa no Renascimento florentino, o qual
seria permeável não apenas ao "ethos apolíneo", mas tam-
bém ao "pathos dionisíaco". Numa página de O Ritual da
Serpente, Warburg traça uma correspondência: "Esta ideia
da serpente como poder ctónio destrutivo encontrou o seu
símbolo trágico mais eficaz no mito e no grupo escultórico
do Laocoonte. O sacerdote e os seus dois filhos, que por
apertados nos nós das serpen-
Vingança dos deuses morrem

escultura da Antiguidade
tes, tornam-se nesta famosíssima
sofrimento humano" l".
a propria encarnação do supremo
Renascimento (glorifica-
Contra uma visão unilateral do
Warburg descobre nele a alternân-
da por Winckelamann),
entre o pólo apolineo
e
luz uma oscilação
Cia de e trevas,
manei-
nietzschiana revela-se de
dionisiaco. A inspiração
determina
sua teoria da polaridade que
ra explícita nesta totalidade cultural.
Com
na
da imagem
também a função

89
a imagem tem uma
efeito, para
Warburg relaç? de
com a
totalidade
Gesamtkultur, a
inter
das questoes que envolvem as cultural: ela
dependencia

é indissociável raizes das


turas hunmanas
constituição
e a Sua histórica
Oenigmaculda
facto de ela estar radicada
é o
na
matéria
quea transmite e polariza..Para Warburg, a imagemmném
imagem
mica
veicn
os valores
expressivos que restituem a memória de veicula
cias cruciais originárias. Das investigações experien-
arburguianas
e v

emerge uma teoria da imagem que a concebe numa.


crucial para satisfazer:ao mesmo tempo a exigéncia
posi
cão
de
distanciamento, de conquista de um espaço de pensamento.
e de regresso ao pathos primordial que as cunhou.
Dai, o
facto Warburg
de ter dito que praticava uma "iconologia do
intervalo". Mas é preciso perceber que o potencial energé.
tico da imagem signihca que ela tem uma dimensão sensível
que não se deixa traduzir nos "signifcados" que nela estão
incorporados. Essa dimensão sensível são os "engramas"
que nela foram impressos e que sobrevivem como heran
ça transmitida pela memória, tornando-se reactivos através
do contacto com a vontade selectiva de uma determinada
epoca. Dito de outro modo: as imagens so polarizadas em
função das necessidades expressivas de uma época, o que
SIgnihica que elas podem mover-se entre dois pólos opost
ate obterem uma
carga de sinal contrário e inverterenn
seu significado. E o que acontece em Dürer, em que Satur
ur
0,Omais sinistro e demoníaco de todos os planetay
ne. Num estudo
Be como emblema do saber e da sophrosyne. N
sobre Rembrandt, Warburg
p o l a r i d a d e d i

refere-se à lei da polar renascr


Derança clássica nestes termos: "Cada época ten ca
tem o

90
mento da Antiguidade que merece".
Procurando na profundidade antropológica e religiosa a

linfa vital" que al1menta a imagem, Warburg recusou sem-


nre situar a sua analise (mesmo quando o seu objecto eram
fazem parte da história da arte) num imutável
imagens que
e pré-constituídoparadigma das formas: "A consideração
a uma con-
formal da imagem parecia-me conduzir apenas
1923, manifestar o
versa estéril", escreveu Warburg em ao

"história de arte estetizante". Paraele,


seu desprezo pela
em toda a sua pregnância, significa-
compreender a imagem
dimensão de memória e de tempo histó-
va acolhe-la na sua

rico condensado.
39
A

Fainel 39 do Atlas imagens da Nnta.


Mnemosyne, com Na
de
Superior do painel, Warburg colocou reproduçoes
Nascimento de Vénus" (1482-1485) e"Primavera /
1482), de Botticelli.

Você também pode gostar