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Visitante observa
exposição de fotos de
Cartier-Bresson que
termina hoje na
Biblioteca Nacional
da França (Paris)
Jacques Rancière
Sombra dramática
Observemos, por exemplo, a foto tirada em 1953, na cidade
de Salerno, no sul da Itália, na hora em que o calor esvazia as
ruas. A sombra negra de uma parede lateral devora toda a
frente da imagem. Na parede clara do fundo, destaca-se a
silhueta de um menininho cujo rosto, à contraluz, fica
indiscernível. Atrás dele, na faixa iluminada pelo sol, uma
carroça abandonada. A imagem não tem nenhum significado
histórico. Mas a dramaticidade da sombra e a solidão da
silhueta infantil bastam para dar à inofensiva carroça um
aspecto de canhão, para impregnar essa imagem do cotidiano
indiferente da sombra do fascismo italiano e da Guerra Civil
Espanhola. Vejamos simetricamente as fotos tiradas em 1949,
quando as tropas revolucionárias chegavam a Nanquim. Uma
multidão passa na rua sob estandartes que representam as
massas revolucionárias em marcha. A mobilidade das atitudes
e dos olhares voltados para várias direções destoa da rigidez
dos ícones revolucionários, em marcha simulada no sentido
oposto àquele em que se desloca a multidão. A imagem se
presta a uma dupla leitura. Podemos opor a realidade vivida
por essa multidão heteróclita aos ícones de cores berrantes do
comunismo. Mas também podemos ver no desacordo entre
realidade e imagem o sinal positivo de que são pessoas de
carne e osso que levam esses ícones e constroem um
comunismo tão contraditório e complexo quanto a vida. Nas
duas hipóteses, a foto é bem-sucedida. No registro de um
acontecimento histórico no qual triunfa uma ideologia
organizada, insere-se a pequena distância reveladora da
irredutibilidade da vida aos acontecimentos mais
espetaculares e significativos.
Registro tríplice
Em outras fotos, a distância entre significação histórica e
atitude individual dos corpos se torna mais sensível: vemos
um homem aparentemente bem vestido dormindo sobre um
tapete de jornais jogados no chão, aos pés de compatriotas
apinhados em Trafalgar Square, no centro de Londres, para
assistir à passagem do cortejo da coroação de Jorge 6º, em
1938. Uma menina brinca de escalar o Muro de Berlim
enquanto outra apanha sabe Deus o quê na calçada. O instante
dito decisivo é antes um instante qualquer em que os
automatismos e improvisações cotidianas se distanciam das
decisões dos poderes, das corroborações das doutrinas ou dos
desfiles das hierarquias. A época áurea da fotografia foi
aquela na qual ela pôde abolir a oposição entre arte e
documento, apresentando como sua força o registro do
episódio, registro tríplice, porém: ao mesmo tempo teatro
abstrato de formas recortadas em luz e sombra; testemunho
das grandes mudanças ou dos grandes impasses e conflitos de
um período; o evidenciar de uma distância, de um insólito
hiato entre tais manifestações históricas e o modo como os
indivíduos as vivem. A fotografia viveu essa tensão entre os
contrastes de luz e a marca da história, entre a marca da
história e o jogo que a perturba e por isso mesmo a autentica.
Formou assim um olhar novo, propício tanto a registrar os
signos coletivamente relevantes quanto a perscrutar o
pequeno acidente que transtorna sua legibilidade. Essa
característica incentivou o consórcio entre sensibilidade
social, provocação surrealista e senso estético. Hoje a
inocência dessa aliança parece remota. Desde aquela época,
perdemos o grande livro da história que nos permitia ler os
acontecimentos da vida coletiva nos gestos dos corpos.
Perdemos a própria disponibilidade dessas figuras anônimas
que emprestavam seu corpo à lente espectadora do mundo e
borravam com sua opacidade o jogo das significações. Como
lembraram alguns recentemente, no lugar desses corpos, a um
só tempo estranhos e familiares, que tanto levavam quanto
borravam as marcas da história, existem hoje identidades.
Sejam identidades de grupo, esses tipos de novo muito
utilizados pelo cinema, para conquistar "públicos-alvo";
sejam identidades individuais, cada vez mais assimiladas pela
lei a uma propriedade de si, a salvo do voyeurismo
fotográfico. Aos poucos, a rua e seus encontros imprevistos
entre o singular e o histórico vão sendo roubados ao
fotógrafo. Cada vez mais este se contenta em dispor diante da
câmera modelos, inventando para eles pequenas cenas,
quando não toma a si mesmo por objeto. Em Paris, por
exemplo, o Centro Nacional da Fotografia exibe agora, com o
título de "Fábulas da Identidade", uma coleção
contemporânea de retratos. A maioria das fotos expostas sem
dúvida pretende pôr em questão essa "identidade" tão
ruidosamente celebrada pelo universo midiático. Ora o rosto
desaparece, escondido pela coluna, encoberto pelos braços de
quem se debruça exausto sobre a mesa, voltado para o
espelho que não reflete sua imagem ou então a reflete
desfocada em contraste com a nitidez dos objetos: o
retraimento do rosto se contrapõe à legibilidade social do
cenário. Ora a lente se aproxima da face a ponto de reduzi-la
a um olho, a uma boca, a ponto até mesmo de torná-la
inumana, convertê-la numa paisagem molecular indistinta.
Véus e máscaras
Muitas vezes o próprio fotógrafo ou fotógrafa põe véus,
máscaras que apagam ou modificam sua identidade,
transformando-se em imagem publicitária ou estatueta pré-
colombiana. E houve quem colasse umas sobre as outras
dezenas de fotos de identidade cuidadosamente recortadas, de
modo que só restasse o contorno emoldurando -o vazio da
imagem. Podem questionar a identidade. Esta, no entanto,
auxiliada por essa negação, ocupou o lugar antes reservado ao
registro das alteridades indecisas.
Duas das obras presentes na mostra dão uma perfeita idéia da
distância percorrida em meio século. Entre os "clássicos" da
coleção figura a mais famosa das fotos de Robert Doisneau: a
dos moleques parisienses que brincam de tocar a campainha
dos prédios. Mais adiante, uma parede inteira conta uma
história de rua: o auto de infração e as fotografias de Sophie
Calle feitas por um detetive particular, contratado, sem o
saber, pela própria fotógrafa, para realizar essa "espionagem".
A travessura do menino, criado solto pelas ruas, é flagrada
pelo fotógrafo das ruas. Inteiramente oposto a isso é o roteiro
da fotógrafa seguida pelo detetive, roteiro por ela construído
como equivalência absoluta entre a realidade surpreendida
pelo observador e a história inventada.
A fotografia passou a simbolizar o novo status de uma arte até
então cúmplice de seu contrário, a vida qualquer e
incalculável do acaso. Hoje ela assinala exemplarmente o fim
dessa aliança, o retorno do artista a um mundo próprio, o
mundo da autocontemplação e dos modelos que posam, das
cenas arquitetadas e das histórias forjadas.
UOL
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