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O cinema de Eduardo Coutinho: notas sobre método e variações*

Cláudia Mesquita e Leandro Saraiva

Nos últimos anos, os filmes de Eduardo Coutinho tornaram-se uma referência não
apenas para os interessados em documentário, mas para o cinema brasileiro como um todo.
É comum vermos referências à obra do realizador em discussões sobre os mais diversos
filmes, servindo de parâmetro comparativo para avaliação das estratégias empregadas em
cada caso para a representação da experiência. Há, certamente, um “estilo” ou “método”
coutiniano que, como costuma acontecer com os grandes autores, tem sido alçado à
condição de parâmetro com que os outros diretores têm que se confrontar.
O que há no cinema de Coutinho que o faz candidato a régua e compasso para o
cinema brasileiro contemporâneo?
Coutinho vem burilando um ascetismo que, limitando ao máximo os recursos
cinematográficos empregados, acaba por deixar exposta a relação básica, constitutiva de
qualquer filme (documental ou não): a relação entre quem filma e quem é filmado.
Ele elege, como forma para esta relação, a situação da entrevista, e a toma como
“prisão”, regra que delimita o “jogo”. Esforçando-se para eliminar tudo que não surja dessa
relação imediata, o filme será composto pela coleção de registros desses momentos de
encontro (ou desencontro).
Uma série de procedimentos são utilizados para construir estas situações de
entrevista do modo mais intenso possível.
Coutinho escolhe sempre uma locação específica, um recorte espacial. Restringindo
assim seu campo de ação – à favela Vila Parque da Cidade ou ao Edifício Master – ele
obriga-se a aprofundar o olhar. A particularização do interesse evita que o quadro de
entrevistados seja selecionado por critérios de tipicidade, o que seria uma forma de
imposição de idéias preconcebidas ao filme (noutras palavras, um retorno à documentação
de um “objeto” construído a priori, abstratamente). Num grupo restrito, serão escolhidos
aqueles que se mostrarem capazes de expressar, performaticamente, as suas experiências
pessoais.
As entrevistas de Coutinho estão assentadas sobre o reconhecimento mútuo da
mediação pública criada pela câmera. Entrevistador e entrevistados só se encontram, pela
primeira e única vez, em frente à câmera (já que a pesquisa – o “casting” – é feita por
outros), cientes que seu encontro acontece sob (e para) o olhar de um público potencial.
Em várias oportunidades Coutinho manifestou-se sobre a especificidade da entrevista
cinematográfica. Numa entrevista à Revista Sinopse, ele recusa a idéia de uma relação
pessoal no documentário nos seguintes termos:
“Eu não quero ficar amigo, não quero ficar inimigo, não quero julgá-la, não quero
nada, senão isso: a relação durante a filmagem (...) Geralmente as pessoas mantêm uma
relação e ficam gratas é com as pessoas da pesquisa. Comigo não. É um pouco como se
olhassem pra mim, sentissem a onda magnética, o interesse no olhar, mas como se eu fosse
transparente. É fantástico isso. Eu sou puro mediador entre elas e a câmera (...) A minha
solidão fica igual depois de cada filme” 1.
1
Revista Sinopse no. 3 (dez/1999). Entrevista concedida a Cláudia Mesquita e Israel do Vale.
Universidade de São Paulo/ CINUSP, p.29
Um desdobramento desta postura está na também recorrente recusa do cineasta do
interesse voyeurista nos “segredos” do entrevistado. Coutinho costuma afirmar o
imperativo ético de manter o entrevistado lúcido sobre as possíveis conseqüências de suas
revelações para a câmera.
Esses são modos de Coutinho lidar com o poder encarnado na câmera, o poder de
tornar público, fixar imagens e versões. É através desse poder que a interlocução
documental é criada. Os entrevistados são atraídos a essa arena pública. Os “personagens”
de Coutinho são pessoas que, em geral, ocupam posições inferiores na hierarquia social e,
frente à câmera, têm a oportunidade de criar sua imagem, recriar-se como imagem, dar
forma “publicável” a uma experiência marcada por opressões e frustrações.
Coutinho impõe-se restrições na montagem – preservação do presente da filmagem
(sem imagens de cobertura, sem edição de som) e até da ordem de realização das
entrevistas – que acabam por torná-la praticamente uma extensão de sua intervenção como
entrevistador: ele monta de modo a não sobrepor sentidos às falas dos entrevistados,
esforçando-se em destacar, polir (sempre de forma discreta) o modo de cada pessoa
construir-se como personagem.
Esse já célebre minimalismo tem sua base nesse modo ético – desdobrado em forma
estética – de lidar com a relação criada pelo poder cinematográfico.
Em entrevista à Revista Palavra, o cineasta lançou mão de uma citação de Pierre
Bourdieu para definir seu princípio como entrevistador (que, como foi dito, é seu próprio
princípio como cineasta):
“a entrevista pode ser considerada como uma forma de exercício espiritual, visando
obter, pelo esquecimento de si, uma verdadeira conversão do olhar que lançamos sobre os
outros nas circunstâncias comuns da vida. A disposição acolhedora que inclina a fazer
seus os problemas do entrevistado, a aptidão a aceitá-lo e a compreendê-lo tal como ele é,
na sua necessidade singular, é uma espécie de amor intelectual” 2.
Parece estar expressa aí a raiz do método coutiniano, no qual Ismail Xavier, em
recente comunicação à SOCINE3, identificou o propósito da criação de um diálogo livre
dos protocolos de poder, opressão e frustração que regem as interações cotidianas. O
“exercício espiritual de esquecimento de si” resulta, assim, numa forma de expressão, por
parte dos entrevistados, livre da marca do ressentimento – que, como aponta Ismail, tem
sido constante no cinema ficcional contemporâneo brasileiro. A escolha dos entrevistados,
o modo de conduzir a entrevista (instigando o entrevistado a “ir mais fundo”) e o modo de
montá-la (sem comentários retóricos) criam um espaço cinematográfico onde as pessoas
podem construir-se como personagens capazes de superar as adversidades, apresentando-se
como seres únicos e autênticos (e não como vítimas, como acontece com os ressentidos).
No set de filmagem de Coutinho o entrevistado “interpreta” (no sentido teatral e
hermenêutico) a si próprio, e o entrevistador o dirige – num estilo de direção centrada no
ator. Talvez nada esteja mais próximo da entrevista coutiniana do que o teatro.
Eduardo Coutinho forjou uma forma de relação cinematográfica que põe em cena, a
um só tempo, o poder social encarnado no cinema e a subjetividade dos despossuídos.
Expostos e postos numa relação à parte, destacada do jogo cotidiano de poder, estes pólos

2
Revista Palavra, ano I, n 6, setembro de 1999. Entrevista a Cláudia Mesquita.
3
XAVIER, Ismail. “Na contramão do ressentimento: personagens do documentário brasileiro recente
em comparação com personagens de ficção”. Comunicação apresentada na VI SOCINE, Rio de Janeiro,
dezembro, 2002.
são subvertidos e produz-se um espetáculo a contrapelo das representações dominantes.
Coutinho documenta, assim, interpretações alternativas sobre a experiência de ser brasileiro
e pobre hoje. Estas versões imaginárias produzidas por narradores/atores populares
(excluídos dos grupos dominantes) estão marcadas não pelas obsessões do ressentimento –
que grassam nos filmes de ficção dos anos 90 – mas por um potencial de improviso de si
mesmo que, hoje, parece estar questionando as formas ficcionais, como que exigindo
personagens e estruturas narrativas menos esquemáticas. A abertura coutiniana ao risco do
encontro com o outro ensaia tornar-se referência para quem pretenda flagrar na tela algo do
momento histórico.

Santo Forte: filmando o invisível


O cinema que vem sendo feito por Coutinho responde a algumas questões centrais
para o campo do documentário: afinal, o que é um “documentário”? O que é
“documentado” num filme deste tipo? Em Santo Forte, por exemplo, seria documentada “a
religiosidade popular”, como algo que “está lá”? O que podemos ver no filme são os
registros dos encontros produzidos pela própria filmagem.
Todas as entrevistas giram em torno das experiências religiosas dos entrevistados.
Como diz Coutinho:
“Qual é o grande tema sobre o Brasil? (...) o que não está inserido no cotidiano do
povo não rende. E não tem outra: é a religião. Religião, bem ou mal, as pessoas vivem. É
religião, é condição, é morte, bem, mal, isso as pessoas vivem: ética, religião, magia.” 4
Implícita na observação de Coutinho está uma constatação sobre a relação entre
tema e grupo documentado: a onipresença da religião, transfigurada em rica expressividade
verbal e performance teatral, não seria a mesma se os documentados fossem, por exemplo,
universitários.
Não há contradição entre a regra do método acima indicada, que se recusa a definir
“sobre o que é” o documentário, e esse privilégio da religião em Santo Forte. Apesar de
partir de uma pesquisa antropológica de Patrícia Guimarães, o interesse de Coutinho não é
fazer um estudo sobre religião5, mas sobre o “modo de ser” popular.
Temos em Santo Forte um verdadeiro show de interpretações. André, o rapaz que
conta a história das incorporações, por sua esposa, de sua mãe, de uma pomba-gira e de
uma “preta velha”, desempenha, em sua narrativa, todos esses personagens sobrepostos (no
corpo de sua esposa, segundo seu relato), além do dele próprio. Lança mão de recursos de
voz, gestos, pausas, comentários, para recriar as complexas cenas.
Dona Thereza, a cozinheira que em outra encarnação foi uma rainha do Egito, narra
suas histórias com um talento que não fica nada a dever às grandes atrizes da
cinematografia nacional. Vai ainda além da interpretação de André, controlando o tom e o
volume de voz, fazendo pausas espetaculares, interrompendo a narrativa para comentá-la,
interagindo com o entrevistador com ampla desenvoltura.
Mais do que as informações e interpretações sobre religiosidade – tal como seriam
transmitidas, por exemplo, numa monografia antropológica –, o que nos atrai é a

4
Revista Sinopse, op. cit., p. 20
5
Na sua resenha sobre Santo Forte, Ronaldo de Almeida e Silvana do Nascimento (Novos Estudos
Cebrap, no. 57, julho, 2000) analisam o filme sob esse ângulo estritamente sócio-antropológico, vendo o que
ele traz de conhecimento sobre a religiosidade popular. Apesar da correta sistematização das informações
apresentadas pelo filme, essa leitura acaba por passar ao largo das formas de expressão dos entrevistados, e
parece não penetrar na emoção que o filme nos desperta como espectadores.
capacidade narrativa, encenada em moldes que lembram a “cena de rua” 6, que Brecht erige
como padrão de sua teatralidade épica (ainda que, na contramão do dramaturgo, aqui se
tenha por objetivo o envolvimento emocional do espectador, e não a análise).
Os moradores da favela Vila Parque da Cidade não apenas narram experiências
religiosas que sugerem uma riqueza espiritual fervilhante sob a pele opaca do seu acanhado
cotidiano, como o fazem de um modo teatral, performático. Através da religião, o que está
documentado em Santo Forte são formas de expressão de um modo de ser, provavelmente
de uma parte significativa das classes populares urbanas. Essas encenações nos oferecem a
imagem de subjetividades “porosas”, de pessoas em constante e cotidiano intercâmbio e
interpenetração com seres espirituais, numa vivência bastante distante do individualismo
liberal.
***

Em Santo Forte, Coutinho inaugurou uma nova fase em sua carreira. Nos filmes que
vem realizando desde então, ele tem explorado variações da forma cinematográfica aí
conquistada.
O risco, frente ao sucesso estético de Coutinho, é congelá-lo numa visão
catalogante, vendo nele “apenas” um cineasta que alcançou uma profunda consistência
precedida, no passado, pelo histórico Cabra Marcado para Morrer. Sem prejuízo do
reconhecimento destes feitos, acreditamos ser enriquecedor a consideração da obra do
cineasta em suas transformações.
Com este objetivo, partindo da apresentação feita, a partir de Santo Forte, do
método contemporâneo de Coutinho, procuraremos compreender momentos anteriores de
sua obra, comentando Boca de Lixo (1992) e Theodorico, imperador do sertão (1978).

Boca de Lixo: o drama da documentação

Em Boca de Lixo, a entrevista não é o começo nem o fim de tudo. Há entrevistas,


sim, e fundamentais, mas aqui o palco é mais amplo. Ao invés de concentrar o diálogo
circunscrevendo-o a um momento privilegiado, a filmagem cria um espaço de interação
coletivo e precário. O palco, aqui, é o lixão de Itaoca. A câmera chega, ligada, e Coutinho
tem que enfrentar as reações, de início pouco amistosas, dos que ali trabalham, catando no
lixo o que ainda pode ser vendido ou utilizado.
Também neste filme o que se documenta é a relação entre quem filma e quem é
filmado, numa cena produzida pelo poder de visualização pública encarnado na câmera. De
novo, as interpretações de si feitas em função de um público potencial. Mas em Boca de
Lixo não há pesquisa prévia que selecione personagens e estabeleça as regras da entrevista a
ser filmada pelo cineasta. Surpreendidos pela câmera, os catadores reagem ao uso
costumeiro das imagens assim produzidas: a confirmação do estereótipo da miséria, que
iguala todos como “símbolo”, ilustração de idéias preconcebidas (normalmente expressas
pela locução em off, típica da matéria telejornalística).
Será a persistência de Coutinho e sua equipe, prolongando sua permanência,
puxando conversa e retornando algumas vezes ao lixão, que superará as resistências e
estabelecerá as bases para um pacto documental no qual os filmados acreditem a ponto de
se disporem a conceder entrevistas.

6
BRECHT, Bertold. “Cenas de rua” in Estudos sobre teatro. Portugália Editora, s/d
Coutinho chegará, afinal, a entrevistas mais parecidas com a de seus filmes mais
recentes, quando conquista a confiança de alguns dos catadores a ponto de ir a suas casas
para entrevistá-los. Então, singularizados já pelo espaço privado e pela negociação
registrada nas – às vezes tensas – filmagens anteriores, eles terão a oportunidade de
“interpretarem a si mesmos” (como dizíamos sobre as entrevistas de Santo Forte).
Não se trata apenas de registrar as dificuldades da realização. O desenrolar da
relação com os trabalhadores implica numa série de consequências constitutivas do filme.
A montagem, para dar conta da narrativa do desenvolvimento da relação, lança mão de
diversos procedimentos construtivos.
A abertura, por exemplo, é composta por um encadeamento de imagens que resume
a tensão da abordagem. Primeiro, um travelling abstrato ao rés do chão, seguido de
imagens dos animais que vivem no lixo (pássaros, porcos, cachorro). Só depois os homens:
uma pequena multidão se acotovelando em torno de um caminhão que despeja uma carga
de lixo. Entre eles, a equipe. Surgem os créditos e seguir, uma espécie de clipe reúne uma
série de cenas de conteúdo quase idêntico: pessoas escondem o rosto ou fogem, evitando
ser gravadas. A trilha sonora não avança comentários, embora dê ritmo à sequência;
mimética, simula ruídos de latas e do vento, parece querer se integrar ao ambiente. Ao
final, uma menina descobre o rosto, num gesto que sugere pacto com a equipe de gravação
e gera a expectativa de possíveis representações. O primeiro diálogo, tenso, é com um
menino, que resume o sentimento de rejeição que o clipe evocara: “Quê que cês ganham
com isso, ficar colocando essa coisa na nossa cara?”, pergunta, referindo-se à câmera de
vídeo. Coutinho justifica a invasão que sua presença (e a da câmera) representam, voz fora
de quadro: “É pra mostrar a vida real de vocês”. Estimulado pelo entrevistador, finalmente
outro menino diz alguma coisa em nome de todos: “Ninguém aqui tá roubando não, todo
mundo aqui tá trabalhando”. É aplaudido pelos demais que, reunidos em volta, se
recusavam a dar depoimentos.
Esta montagem está distante do ascetismo dos filmes mais recentes de Coutinho. A
costura das imagens e sons é feita visando um efeito narrativo e ao mesmo tempo
dissertativo: uma equipe de filmagem quer se aproximar de um grupo de catadores de lixo,
que se recusam a se submeter ao estereótipo televisivo da miséria. De certo modo, temos
aqui a ética transfigurada em estética que podemos observar nos filmes contemporâneos de
Coutinho, com uma explicitação das regras do jogo. Mas, sendo o jogo outro, outros são
seus lances (outro é o “método”).
Trabalhando numa situação mais aberta e indefinida, a montagem assume uma
função de concentração e síntese. Ao longo do filme surgirão outros “clipes”, com o
objetivo de fornecer informações sobre o cotidiano de trabalho no lixão. Mas isso sem
retirar do diálogo direto a preponderância que podemos observar em todos os filmes de
Coutinho. Tais imagens só surgem a partir de falas dos próprios trabalhadores.
Por exemplo, com Nirinha, a primeira personagem individualizada pelo filme, antes
ainda de passarmos às entrevistas realizadas nas casas dos catadores, aprenderemos sobre
os esquemas de compra de latas, plásticos e papéis, sobre os atravessadores, e sobre a
dificuldade que têm aqueles que dependem do “trocadinho toda semana” para acumular e
vender lixo em condições mais favoráveis.
Quando Nirinha explica sobre a venda do lixo, uma série de imagens de
compra/venda são editadas num breve clipe, como que constatando – e estendendo ao
grupo maior de catadores – a narração da personagem, que se torna over. Este é um dos
clipes temáticos através dos quais o filme descreve o cotidiano no lixão. Com este
procedimento, Boca de Lixo, de um lado, fortalece a evidência de um grupo submetido a
condições de trabalho e vida semelhantes. Mas as elaborações individuais têm privilégio
sobre a objetividade das imagens e a organização da montagem: é a partir do momento em
que as pessoas representam com palavras seu cotidiano que a enunciação se põe “à
vontade” para representá-las também com imagens, estendendo a mais gente atitudes e
situações descritas por indivíduos. É o que acontece, por exemplo, quando Lúcia conta que
precisa das coisas (sapatos, roupas) que encontra no lixo, tendo sua fala reforçada por
imagens de vários catadores recolhendo objetos úteis entre os entulhos. Este “pacto”,
estabelecido artificialmente na edição, reforça a atitude geral do documentário: representar
sim o cotidiano de um grupo, mas a partir das elaborações “internas” de indivíduos
singulares, sem impor-lhes sentidos anteriores.
Apesar desta articulação respeitosa da montagem em torno das falas dos
entrevistados, tomando-os como foco autorizado para nos elucidar a vida local, será nas
conversas mais longas, realizadas nas casas, que a elaboração de sentidos por parte dos
catadores extrapolará completamente os estereótipos sobre eles construídos pela mídia.
Nestes encontros singulares, o que surge, frente à câmera, é a não fixidez. Ninguém
permanece igual a si mesmo: Lúcia mostra e reflete a diferença entre seu modo de ser no
lixão e em casa; Jurema desmente o que dissera antes a Coutinho. E, numa cena antológica,
a filha de Cícera realiza seu sonho de ser “cantora de música sertaneja”: no campo do
vídeo, a menina pode encarnar o personagem que deseja ser. Boca de Lixo oferece a ela,
pactualmente, o palco que a vida ainda não lhe deu, aceitando, e mais, estimulando uma
representação da menina de acordo com o seu desejo. A música cantada por ela, depois de
alguns minutos, torna-se over, comentando um clipe de cenas cotidianas e familiares na
casa de Cícera – pela carga de emoção e desejo íntimos, o comentário mais “interno”
possível, reforçando o projeto do filme de não impor sentidos aos sujeitos retratados, mas
construi-los em diálogo.

Retrospectivamente, é possível ver nas performances de si realizadas pelos


personagens de Boca de Lixo uma espécie de anúncio do que o minimalismo recente de
Coutinho viria a lapidar até a forma pura da entrevista. Mas é possível também vermos no
filme um método distinto, que combina entrevista e montagem, expressão e informação,
numa forma que, ao invés de teatro, poderia ser vista como uma tentativa de “fazer da
reportagem uma das belas artes” – o que, segundo o próprio Coutinho, seria um de seus
objetivos.
Essa versão, que não vê a obra do cineasta de modo teleológico, mas como uma
série de experiências de risco, tem a vantagem de relativizar o esquematismo acarretado
pela compreensão por demais literal da idéia de um “método coutiniano”.

Theodorico, imperador do sertão: filmando a voz do dono

Recuando mais no tempo, tomamos ainda, como último exemplo a ser considerado,
um filme realizado institucionalmente como reportagem televisiva: Theodorico foi um
episódio do Globo Repórter, numa época em que o formato era posto em xeque pela
ousadia de uma equipe que trabalhava com razoável autonomia dentro da emissora.
Já neste filme, tudo gira em torno da fala de um personagem. Mas, como diz o
próprio Theodorico Bezerra, “a posição transforma o homem”, e a fala em questão é não
apenas um exercício de criação de sentido para a vida, mas um exercício de poder, uma fala
congelada em lei.
Através da interpretação de si de um personagem, espécie de “rei-sol” de seu
mundo, Theodorico nos apresenta uma determinada ordem social, baseada na dominação
pessoal de um todo-poderoso proprietário sobre “seus” moradores.
Depois de uma apresentação pessoal do personagem, o painel da ordem social na
propriedade de Theodorico desdobra-se a partir das “tábuas da lei” escritas pelo “imperador
do sertão”. Da legislação, passa-se aos blocos temáticos dedicados às diferentes esferas da
vida coletiva: escola, feira, açude, religião, política, direitos trabalhistas e – já através de
entrevistas realizadas pelo próprio Theodorico – o trabalho e o controle sobre as
autoridades locais. À vasta apresentação do sistema local, segue-se a história da vida de
Theodorico, que amalgama-se a sua conexão com o poder central da Federação. Quando, ao
final, voltamos à subjetividade do proprietário, ela surge como eixo daquele mundo, ao qual
ele impõe a sua imagem e semelhança.
Tomando como principal matéria-prima a “voz do dono” (literalmente), Coutinho
monta um painel didático da ordem social na propriedade de Theodorico: a locução do
proprietário ordena também as imagens da vida dos que vivem sob sua tutela. Essa
exposição do mundo segundo Theodorico Bezerra é reforçada por procedimentos
cinematográficos – como, por exemplo, a montagem do desfile seguindo a batuta de
descrição do dono.
Essa ordenção do filme provoca uma situalização da “voz do dono” (ou “voz de
Deus”), que, assim, perde algo de sua naturalidade, de pretensa “lei natural”. Em
momentos-chave, o narrador implícito introduz ainda uma dissonância entre o que o
narrador explícito (Theodorico) diz e o que a câmera mostra – como na marcante passagem
na qual Theodorico derrama-se em lirismo rural, enquanto as imagens evidenciam a
precariedade da vida daqueles que o escutam e obedecem.
O mundo segundo Theodorico revela-se, assim, apenas isso: um mundo estruturado
por um poder situado, com forte capacidade de coerção, mas passível de mudança.
Theodorico, imperador do sertão é uma análise crítica de uma forma de dominação. E
análise no sentido forte, já que as falas de Theodorico, com as quais a locução do filme está
composta, estão completamente reorganizadas, extraídas de seus contextos originais e
remontadas segundo crítérios de uma análise do poder do “imperador”.
Esta obra-prima realizada há 25 anos, antes mesmo de Cabra Marcado para
Morrer, está construída de modo bastante diverso do que hoje nos parece “o método
coutiniano”, mas profundamente adequado ao material produzido pela relação com seu
entrevistado. A fala de Theodorico não tem nada da maleabilidade e da abertura de
personagens como Dona Thereza (Santo Forte) ou Jurema (Boca de Lixo). Trata-se de uma
fala de poder e, como tal, ela tem uma performance que não é uma improvisação de
sentidos, mas uma reprodução, confirmação e reforço da ordem. Frente a esta fixidez, a
montagem está liberada para recortar e reordenar o discurso. Afinal, com sua pretensão a
ordem natural e lógica das coisas, a palavra do major Theodorico permite ser rearranjada e
confrontada (cotejada pela montagem) com as imagens do mundo, sem qualquer temor de
abalo em sua validade. Afinal, a Lei pode e deve poder se aplicar em qualquer
circunstância.
Sendo assim, não há – a nosso ver – qualquer incoerência ética do filme junto ao
entrevistado – que, inclusive, confirma para a câmera a sua aprovação. Para ele, foi tudo
“televisionado com respeito”. É aos nossos olhos, externos àquela forma de dominação, que
o poder de Theodorico se revela tão coercitivo e arbitrário.
Quanto ao “método”, se Coutinho se mostra sempre fiel a uma ética da
transparência como base para a forma do filme, podemos observar o quanto variaram os
precedimentos empregados pelo cineasta, conforme as relações em jogo.
Sempre atento à fala, em suas infinitas variações, indissociavelmente existenciais e
políticas, Coutinho mantém sua escuta cinematográfica em alerta, flexível como a “matéria
movente” que pretende flagrar.

Publicado no catálogo da retrospectiva “Eduardo Coutinho – cinema do encontro”


(CCBB/São Paulo, 2003)

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