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29/07/2020 POR UM CINEMA IMPERFEITO – Zagaia

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Edição Atual
POR UM CINEMA IMPERFEITO
por Coletivo Zagaia (http://zagaiaemrevista.com.br/author/coletivo-
zagaia/)
em 14 de abril de 2016

Publicamos aqui o texto seminal “Por um cinema imperfeito” do cubano


Julio García Espinosa, um dos grandes diretores e pensadores do cinema
latino-americano, autor do clássico “As Aventuras de Juan Quinquín”, que
faleceu esta semana aos 90 anos.

Texto original por: Julio García Espinosa , Cuba/1969.

Tradução: Brigada De Audiovisual Eduardo Coutinho – MST.

 
Hoje em dia, um cinema perfeito – técnica e artisticamente realizado – é
quase sempre um cinema reacionário.

A maior tentação que se oferece ao cinema cubano nestes momentos –


quando busca seu objetivo de um cinema de qualidade, de um cinema com
signi cação cultural dentro do processo revolucionário – é justamente a de
converter-se em um cinema perfeito.
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29/07/2020 POR UM CINEMA IMPERFEITO – Zagaia

O boom do cinema latino-americano – com Brasil e Cuba à frente, segundo


os aplausos e os bons olhos da intelectualidade européia – é similar, na
atualidade, ao que vinha desfrutando a literatura latino-americana.

Por que nos aplaudem? Sem dúvida uma certa qualidade foi alcançada.
Sem dúvida há um certo oportunismo político. Sem dúvida há uma certa
instrumentalização mútua. Mas sem dúvida há algo mais.

Por que nos preocupa que nos aplaudam? Não existe, dentre as regras do
jogo artístico, a nalidade de um reconhecimento público? Não equivale o
reconhecimento europeu – ao nível da cultura artística – a um
reconhecimento mundial? Que as obras realizadas no subdesenvolvimento
obtenham um reconhecimento de tal natureza não bene cia a arte e nossos
povos?

Curiosamente, a motivação destas inquietudes, é necessário deixar claro,


não é só de ordem ética. É mais precisamente, e sobretudo, estética, se é
que se pode traçar uma linha tão arbitrariamente divisória entre ambos
termos.

Quando nos perguntamos por que somos nós os diretores de cinema e não
os outros, quer dizer, e não os espectadores, a pergunta não é motivada
somente por uma preocupação de ordem ética. Sabemos que somos
diretores de cinema porque pertencemos a uma minoria que teve o tempo
e as circunstancias necessárias para desenvolver, em si mesma, uma
cultura artística; e porque os recursos materiais da técnica cinematográ ca
são limitados e, portanto, ao alcance de algum poucos e não de todos. Mas
o que ocorre se o futuro é a universalização do ensino universitário, se o
desenvolvimento econômico e social reduz as horas de trabalho, se a
evolução da técnica cinematográ ca (como já existem sinais evidentes)
tornará possível que esta deixe de ser privilégio de poucos, o que ocorre se
o desenvolvimento do video-tape soluciona a capacidade inevitavelmente
limitada dos laboratórios, se os aparatos da televisão e sua possibilidade de
‘projetar’ com independência da planta matriz fazem desnecessária a
construção ao in nito das salas de cinema? Ocorre então não só um ato de
justiça social, a possibilidade de que todos possam fazer cinema, senão um
feito de extrema importância para a cultura artística: a possibilidade de
resgatar, sem complexos, nem sentimentos de culpa de nenhuma classe, o
verdadeiro sentido da atividade artística. Ocorre então que podemos
entender que a arte é uma atividade ‘desinteressada’ do homem. Que a arte
não é um trabalho. Que o artista não é propriamente um trabalhador.

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O sentimento de que isto é assim, e a impossibilidade de praticá-lo em


conseqüência, é a agonia e, ao mesmo tempo, o farisaísmo de toda a arte
contemporânea.

De fato existem duas tendências. Os que pretendem realizá- la como uma


atividade ‘desinteressada’ e os que pretendem justi cá- la como uma
atividade ‘interessada’. Uns e outros estão num beco sem saída.

Qualquer um que realiza uma atividade artística se pergunta em um


determinado momento que sentido tem o que ele faz. O simples fato de
que surja essa inquietude demonstra que existem fatores que a motivam.
Fatores que, por sua vez, evidenciam que a arte não se desenvolve
livremente. Os que teimam em negar-lhe um sentido especí co sentem o
peso moral de seu egoísmo. Os que pretendem conferir-lhe um,
compensam com bondade social sua consciência pesada. Não importa que
os mediadores (crítico, teóricos, etc.) tratem de justi car um ou outro caso. O
mediador é para o artista contemporâneo sua aspirina, sua pílula
tranqüilizante. Mas como esta, só alivia a dor de cabeça temporariamente. É
certo, sem dúvida, que a arte, como diabinho caprichoso, segue
direcionando esporadicamente a cabeça para uma ou outra tendência.

Sem dúvida, é mais fácil de nir a arte pelo que não é do que pelo que é –
se é que se pode falar de de nições fechadas não só para a arte, como para
qualquer atividade da vida. O espírito de contradição impregna tudo e já
não há nada nem ninguém que se deixe encerrar num marco por mais
dourado que este seja.

É possível que a arte nos proporcione uma visão da sociedade ou da


natureza humana e que, ao mesmo tempo, não se possa de nir como visão
da sociedade ou da natureza humana. É possível que no prazer estético
esteja implícito um certo narcisismo da consciência em reconhecer-se
pequena consciência histórica, sociológica, psicológica, losó ca, etcétera e
a ao mesmo não basta essa sensação para explicar o prazer estético. Não é
muito mais próximo à natureza artística concebê-la com seu próprio poder
cognoscitivo? Em outras palavras, a arte não é ‘ilustração’ de idéias que
possam ser ditas pela loso a, pela sociologia, pela psicologia? O desejo de
todo artista de expressar o inexpressável não é mais que o desejo de
expressar a visão do tema em termos inexpressáveis por outras vias que
não sejam as artísticas. Talvez seu poder cognoscitivo é como o do jogo
para o menino. Talvez o prazer estético é o prazer que nos provoca a sentir
a funcionalidade (sem um m especí co) de nossa inteligência e nossa
própria sensibilidade. A arte pode estimular, em geral, a função criadora do
homem. Pode operar como agente de excitação constante para adotar uma
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atitude de transformação perante a vida. Mas, diferentemente da ciência,


nos enriquece de tal forma que seus resultados não são especí cos, não se
podem aplicar a algo particular. Daí o fato de podermos chamá- la de uma
atividade ‘desinteressada’, de podermos dizer que a arte não é
propriamente um ‘trabalho’, que o artista é talvez o menos intelectual dos
intelectuais.

Porque o artista, no entanto, sente a necessidade de justi car- se como


‘trabalhador’, como ‘intelectual’, como ‘pro ssional’, como homem
disciplinado e organizado, como qualquer outra tarefa produtiva? Por que
sente a necessidade de hipertro ar a importância de sua atividade? Por que
sente a necessidade de ter críticos – mediadores – que o defendam, o
justi quem, o interpretem? Por que fala orgulhosamente em ‘meus críticos’?
Por que sente a necessidade de fazer declarações transcendentes, como
se ele fosse o verdadeiro intérprete da sociedade e do ser humano? Por
que pretende considerar- se crítico e consciência da sociedade quando –
se bem que estes objetivos possam estar implícitos ou até mesmo
explícitos em determinadas circunstâncias – num verdadeiro processo
revolucionário essas funções devem ser exercidas por todos, quer dizer, por
todo o povo? E por que, então, por outra parte, se vê na necessidade de
limitar esses objetivos, estas atitudes, esta características? Por que
proteger-se e ganhar importância como trabalhador, político e cientí co
(revolucionários, entende-se) e não estar disposto a correr riscos de tais
opções?

O problema é complexo. Não se trata fundamentalmente de oportunismo e


nem sequer de covardia. Um verdadeiro artista está disposto a correr todos
os riscos se tem a certeza de que sua obra não deixará de ser uma
expressão artística. O único risco que ele não aceita é o de que a obra não
tenha uma qualidade artística.

Também estão os que aceitam e defendem a função ‘desinteressada’ da


arte. Pretendem ser mais conseqüentes. Preferem a amargura de um
mundo fechado na esperança de que amanhã a história lhes fará justiça.
Mas o caso é que mesmo hoje a ‘Monalisa’ não pode ser desfrutada por
todos. Deviam possuir menos contradições, deviam estar menos alienados.
Mas de fato não é assim, ainda que tal atitude lhes dê a possibilidade de um
álibi mais produtivo na ordem pessoal. Em geral, sentem a esterilidade de
sua ‘pureza’ ou se dedicam a travar combates corrosivos, mas sempre na
defensiva. Podem, inclusive, rechaçar, numa operação inversa, o interesse
de encontrar na obra de arte a tranqüilidade, a harmonia, uma certa
compensação, expressando o desequilíbrio, o caos, a incerteza, o que não
deixa de ser também um objetivo ‘interessado’.
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O que é, então, que torna impossível praticar a arte como atividade


‘desinteressada’? Por que esta situação é hoje mais sensível que nunca?
Desde que o mundo é mundo, quer dizer, desde que o mundo é mundo
dividido em classes, esta situação permanece latente. Se hoje se
intensi cou é precisamente porque hoje começa a existir a possibilidade de
superá-la. Não por uma tomada de consciência, não pela vontade expressa
de nenhum artista, mas sim porque a própria realidade começou a revelar
sintomas (nada utópicos) de que ‘no futuro já não haverá pintores, mas sim,
quando muito, homens que, ente outras coisas, pratiquem a pintura’ (Marx).

Não pode existir arte ‘desinteressada’, não pode existir um novo e


verdadeiro salto qualitativo na arte, se não se acaba, ao mesmo tempo e
para sempre, com o conceito e a realidade ‘elitista’ na arte. Três fatores
podem favorecer nosso otimismo: o desenvolvimento da ciência, a
presença social das massas, a potencialidade revolucionária no mundo
contemporâneo. Os três sem ordem hierárquica, os três inter-relacionados.

Por que se teme à ciência? Por que se teme que a arte possa ser esmagada
ante a produtividade e utilidade evidentes da ciência? Por que esse
complexo de inferioridade? É certo que lemos hoje com muito mais prazer
um bom ensaio que uma novela. Por que repetimos, então, com horror, que
o mundo se torna mais interesseiro, mais utilitário, mais materialista? Não é
realmente maravilhoso que o desenvolvimento da ciência, da sociologia, da
antropologia, da psicologia contribua para ‘depurar’ a arte? A aparição,
graças à ciência, dos meios expressivos como a fotogra a e o cinema (o
qual nos implica invalidar-los artisticamente) não tornou possível uma maior
‘depuração’ na pintura e no teatro? A ciência hoje não tornou anacrônico
tantas análises ‘artísticas’ sobre a alma humana? Não nos permite a ciência
hoje nos livrarmos de tantos lmes cheios de charlatanices e encobertos
com isso que se chama mundo poético? Com o avanço da ciência a arte
não tem nada a perder, ao contrário, tem todo um mundo a ganhar. Qual é o
temor então? A ciência desnuda a arte e parece que não é fácil andar sem
roupas pela rua. A verdadeira tragédia do artista contemporâneo está na
impossibilidade de exercer a arte como atividade minoritária. Diz-se que a
arte não pode conquistar a cooperação do sujeito que faz a experiência. É
certo. Mas, que fazer para que o público deixe de ser objeto e se converta
em sujeito?

O desenvolvimento da ciência, da técnica, das teorias e práticas sociais


mais avançadas, tornou possível, como nunca, a presença ativa das massas
na vida social. No plano da vida artística há mais espectadores que em
nenhum outro momento da história. É a primeira fase de um processo de
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‘deselitização’. O importante agora é saber se começam a existir as


condições para que esses espectadores se convertam em autores. Não
apenas em espectadores mais ativos, em co-autores, mas sim em
verdadeiros autores. O importante agora é perguntar se a arte é realmente
uma atividade de especialistas. Se a arte, por desígnios extra-humanos, é
possibilidade de uns quantos ou possibilidade de todos.

Como con ar as perspectivas e possibilidades da arte à simples educação


do povo, enquanto espectadores? O gosto de nido pela ‘alta cultura’, uma
vez superado por ela mesma, não passa ao resto da sociedade como
resíduo que devoram e ruminam os não convidados ao banquete? Não é
esse o eterno espiral convertido hoje, ademais, em círculo vicioso? O camp
e sua ótica (entre outras) sobre o velho são uma tentativa de resgatar estes
resíduos e encurtar a distância com o povo. Mas a diferença é que o camp o
resgata como valor estético, enquanto que para o povo seguem sendo,
todavia, valores éticos.

Nos perguntamos se é imprescindível para um presente e um futuro


realmente revolucionário possuir ‘seus’ artistas, ‘seus’ intelectuais, como a
burguesia teve os ‘seus’. O verdadeiramente revolucionário não seria tentar,
desde agora, contribuir para a superação destes conceitos e práticas
minoritárias, mais que perseguir eternamente a ‘qualidade artística’ da obra?
A atual perspectiva da cultura artística não é mais a possibilidade de que
todos tenham o gosto de uns quantos, mas sim a de que todos possam ser
criadores de cultura artística. A arte sempre foi uma necessidade de todos.
O que nunca ocorreu foi a possibilidade de todos a criarem em condições
de igualdade. Simultaneamente à arte culta vêm existindo a arte popular.

A arte popular nada tem a ver com a chamada arte de massas. A arte
popular necessita do, e portanto tende a desenvolver, o gosto pessoal,
individual, do povo. A arte de massas ou para as massas, ao contrário,
necessita que o povo não tenha gosto. A arte de massas será efetivamente
das massas quando as massas verdadeiramente a façam. Arte de massas,
hoje em dia, é a arte que fazem uns poucos para as massas. Grotowski disse
que o teatro de hoje deve ser de minorias porque é o cinema que pode
fazer uma arte de massas. Não é certo. Possivelmente não exista uma arte
mais minoritária hoje me dia que o cinema. O cinema hoje, em todas as
partes, é feito por uma minoria para as massas. Arte de massas é, pois, a
arte popular, a que fazem as massas. Arte para as massas é, como bem
disse Hauser, a produção desenvolvida por uma minoria para satisfazer a
demanda de uma massa reduzida ao papel de espectador e consumidor.

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A arte popular é aquela que é feita sempre pela parte mais inculta da
sociedade. Mas este setor inculto conseguiu conservar para a arte
características profundamente cultas. Um delas é que os criadores são ao
mesmo tempo os espectadores e vice-versa. Não existe entre os que
produzem e os que recebem uma linha tão marcadamente de nida. A arte
culta, em nossos dias, alcançou também essa situação. A grande cota de
liberdade da arte moderna não é mais que a conquista de um novo
interlocutor: o próprio artista. Por isso é inútil esforçar- se em lutar para que
se substitua a burguesia pelas massas, como novo e potencial espectador.
Esta situação mantida pela arte popular, conquistada pela arte culta, deve
fundir-se e converter-se em patrimônio de todos. Esse e não outro deve ser
o grande objetivo de uma cultura artística autenticamente revolucionária.
Mas a arte popular conserva outra característica ainda mais importante para
a cultura. A arte popular se realiza como uma atividade a mais da vida. A
arte culta ao contrário. A arte culta se desenvolve como atividade única,
especí ca, quer dizer, se desenvolve não como atividade, mas sim como
realização de tipo pessoal. Eis aí o preço cruel de ter de manter a existência
da atividade artística a custo da inexistência dela no povo. Pretender
realizar-se à margem da vida não se constituiu em um álibi demasiado
dolorido para o artista e para a própria arte? Pretender a arte com seita,
como sociedade dentro da sociedade, como terra prometida, onde
possamos realizar-nos fugazmente, por um momento, por alguns instantes,
não é criar a ilusão de que aos nos realizarmos no plano da consciência nos
realizamos também no da existência? Não resulta tudo isto demasiado
óbvio nas atuais circunstâncias? A escolha essencial da arte popular é que
ela é realizada como uma atividade dentro da vida, que o homem não deve
realizar-se como artista senão plenamente, que o artista não deve realizar-
se como artista senão como homem.

No mundo moderno, principalmente nos países capitalistas desenvolvidos e


nos países em processo revolucionário, há sintomas alarmantes, sinais
evidentes que pressagiam uma transformação.

Digamos que começa a surgir a possibilidade de superar esta tradicional


dissociação. Não são sintomas provocados pela consciência, mas sim pela
própria realidade. Grande parte da batalha da arte moderna é, de fato, para
‘democratizar’ a arte. Que outra coisa signi ca combater as limitações do
gosto, a arte para museus, as linhas demarcadamente divisórias entre
criador e público? Que é hoje a beleza? Onde se encontra? Nas etiquetas
das sopas Campbell, na tampa de uma lata de lixo? Não se pretende
inclusive questionar o valor de eternidade na obra de arte? Que signi cam
estas esculturas, surgidas em recentes exposições, feitas de blocos de gelo
e que, por consequência, derretem enquanto o público as observa? Não é –
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mais que o desaparecimento da arte – a pretensão de que desapareça o


espectador? Não existe um afã por saltar a barreira da arte ‘elitista’ nesses
pintores que con am a qualquer um, não só a seus discípulos, parte da
realização da obra? Não existe igual atitude nos compositores cujas obras
permitem ampla liberdade de executantes? Não existe toda uma tendência
na arte moderna de fazer participar cada vez mais ao espectador? Se cada
vez participa mais, aonde chegará? Não deixará, então, de ser espectador?
Não é este ou pelo menos não deveria ser este o desenlace lógico? Não é
essa uma tendência coletivista e individualista ao mesmo tempo? Se se
propõe a possibilidade de participação de todos, não se está aceitando a
possibilidade de criação individual que temos todos? Quando Grotowski fala
que o teatro de hoje deve ser de minoria, não se equivoca? Não é
justamente o contrário? Teatro da pobreza não quer dizer na realidade
teatro do mais alto re namento? Teatro que não necessita de nenhum valor
secundário, quer dizer, que não necessita de vestuário, cenogra a,
maquiagem, cenário. Não quer dizer isto que as condições materiais se
reduziram ao máximo e que, desde esse ponto de vista, a possibilidade de
fazer teatro está ao alcance de todos? E o fato de que o teatro tenha cada
vez menos público não quer dizer que as condições começam a estar
maduras para que se converta em um verdadeiro teatro de massas? Talvez
a tragédia do teatro seja o fato de ter chegado demasiado cedo a esse
ponto de evolução.

Quando nós olhamos para a Europa, esfregamos as mãos. Vemos a velha


cultura impossibilitada hoje a dar uma resposta aos problemas da arte. Na
realidade, acontece que a Europa não pode já responder na forma
tradicional e, ao mesmo tempo, lhe é muito difícil fazê-lo de uma maneira
inteiramente nova. Europa já não é capaz de dar ao mundo um novo ‘ismo’ e
não está em condições de fazê-los desaparecer por completo. Pensamos
então que chegou momento. Que ao m, os subdesenvolvidos podem
disfarçar-se de homens ‘cultos’. É nosso maior perigo. Essa é nossa maior
tentação. Esse é o oportunismo de uns poucos em nosso continente.
Porque, efetivamente, dado ao atraso técnico e cientí co, dada à pouca
presença das massas na vida social, este continente ainda pode responder
na forma tradicional, ou seja, rea rmando o conceito e a prática ‘elitista’ da
arte. E talvez então a verdadeira causa do aplauso europeu a algumas de
nossas obras, literárias e fílmicas, não seja outra coisa que a de uma certa
nostalgia que provocamos. Além do mais, o europeu não tem outra Europa
para direcionar os olhos. No entanto, o terceiro fator, o mais importante de
todos, a Revolução, está presente em nós como e nenhuma outra parte. E
ela sim é nossa verdadeira oportunidade. É a revolução o que possível outra
alternativa, o que pode oferecer uma resposta autenticamente nova, o que
nos permite varrer de uma vez por todas e para sempre os conceitos e
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práticas minoritária da arte. Porque é a revolução e o processo


revolucionário os únicos que podem tornar possível a presença total e livre
das massas. Porque a presença total e livre das massas será o
desaparecimento de nitivo da estrita divisão do trabalho, da sociedade
dividida em classes e setores. Por isso, para nós a Revolução é a expressão
máxima da cultura, porque fará desaparecer a cultura artística como cultura
fragmentária do homem.

Para esse futuro certo, para essa perspectiva inquestionável, as respostas


no presente podem ser tantas como a quantidade de países que existem
em nosso continente. Cada arte, cada manifestação artística, deverá
encontrar a sua própria resposta, visto que as características e os níveis
alcançados não são iguais.

[author][author_info] Em homenagem ao falecimento de Julio Garcia


Espinosa (1926 – 2016). Desde muito jovem trabalhou como diretor e ator de
teatro e mais tarde dirige programas de rádio. Foi presidente da sessão de
cinema da “Sociedad Cultural Nuestro Tiempo”. Autor, junto a outros
cineastas de “El Mégano”, considerado como antecedente do novo cinema
cubano. Participou da criação do “Grupo Teatro Estudio”. Com o triunfo da
Revolução Cubana em 1959, torna-se Chefe da Sessão de Arte da
“Dirección de Cultura” do Exército Rebelde. Alí se realizaram os primeiros
documentais da Revolução: “Esta tierra nuestra” y “la Vivienda”. Realizou
também “Cuba Baila” (1960), “El joven rebelde” (1961), “Aventuras de Juan
Quin Quin” (1967), dentre outros. Sua produção teórica foi de grande
importância para a consolidação do Novo Cinema Latino-Americano.

Texto originalmente publicado em: Cine Cubano No. 140.[/author_info]


[/author]

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Um comentário em “POR UM CINEMA IMPERFEITO”


1. Leandro Cunha disse:
17 de abril de 2018 às 15:52 (http://zagaiaemrevista.com.br/por-um-
cinema-imperfeito/#comment-5250)
Maravilhosa cartilha audiovisual. Leitura obrigatória para tod@s
estudios@s e militantes da área.

Responder (http://zagaiaemrevista.com.br/por-um-cinema-
imperfeito/?replytocom=5250#respond)

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