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Edição Atual
POR UM CINEMA IMPERFEITO
por Coletivo Zagaia (http://zagaiaemrevista.com.br/author/coletivo-
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em 14 de abril de 2016
Hoje em dia, um cinema perfeito – técnica e artisticamente realizado – é
quase sempre um cinema reacionário.
Por que nos aplaudem? Sem dúvida uma certa qualidade foi alcançada.
Sem dúvida há um certo oportunismo político. Sem dúvida há uma certa
instrumentalização mútua. Mas sem dúvida há algo mais.
Por que nos preocupa que nos aplaudam? Não existe, dentre as regras do
jogo artístico, a nalidade de um reconhecimento público? Não equivale o
reconhecimento europeu – ao nível da cultura artística – a um
reconhecimento mundial? Que as obras realizadas no subdesenvolvimento
obtenham um reconhecimento de tal natureza não bene cia a arte e nossos
povos?
Quando nos perguntamos por que somos nós os diretores de cinema e não
os outros, quer dizer, e não os espectadores, a pergunta não é motivada
somente por uma preocupação de ordem ética. Sabemos que somos
diretores de cinema porque pertencemos a uma minoria que teve o tempo
e as circunstancias necessárias para desenvolver, em si mesma, uma
cultura artística; e porque os recursos materiais da técnica cinematográ ca
são limitados e, portanto, ao alcance de algum poucos e não de todos. Mas
o que ocorre se o futuro é a universalização do ensino universitário, se o
desenvolvimento econômico e social reduz as horas de trabalho, se a
evolução da técnica cinematográ ca (como já existem sinais evidentes)
tornará possível que esta deixe de ser privilégio de poucos, o que ocorre se
o desenvolvimento do video-tape soluciona a capacidade inevitavelmente
limitada dos laboratórios, se os aparatos da televisão e sua possibilidade de
‘projetar’ com independência da planta matriz fazem desnecessária a
construção ao in nito das salas de cinema? Ocorre então não só um ato de
justiça social, a possibilidade de que todos possam fazer cinema, senão um
feito de extrema importância para a cultura artística: a possibilidade de
resgatar, sem complexos, nem sentimentos de culpa de nenhuma classe, o
verdadeiro sentido da atividade artística. Ocorre então que podemos
entender que a arte é uma atividade ‘desinteressada’ do homem. Que a arte
não é um trabalho. Que o artista não é propriamente um trabalhador.
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29/07/2020 POR UM CINEMA IMPERFEITO – Zagaia
Sem dúvida, é mais fácil de nir a arte pelo que não é do que pelo que é –
se é que se pode falar de de nições fechadas não só para a arte, como para
qualquer atividade da vida. O espírito de contradição impregna tudo e já
não há nada nem ninguém que se deixe encerrar num marco por mais
dourado que este seja.
Por que se teme à ciência? Por que se teme que a arte possa ser esmagada
ante a produtividade e utilidade evidentes da ciência? Por que esse
complexo de inferioridade? É certo que lemos hoje com muito mais prazer
um bom ensaio que uma novela. Por que repetimos, então, com horror, que
o mundo se torna mais interesseiro, mais utilitário, mais materialista? Não é
realmente maravilhoso que o desenvolvimento da ciência, da sociologia, da
antropologia, da psicologia contribua para ‘depurar’ a arte? A aparição,
graças à ciência, dos meios expressivos como a fotogra a e o cinema (o
qual nos implica invalidar-los artisticamente) não tornou possível uma maior
‘depuração’ na pintura e no teatro? A ciência hoje não tornou anacrônico
tantas análises ‘artísticas’ sobre a alma humana? Não nos permite a ciência
hoje nos livrarmos de tantos lmes cheios de charlatanices e encobertos
com isso que se chama mundo poético? Com o avanço da ciência a arte
não tem nada a perder, ao contrário, tem todo um mundo a ganhar. Qual é o
temor então? A ciência desnuda a arte e parece que não é fácil andar sem
roupas pela rua. A verdadeira tragédia do artista contemporâneo está na
impossibilidade de exercer a arte como atividade minoritária. Diz-se que a
arte não pode conquistar a cooperação do sujeito que faz a experiência. É
certo. Mas, que fazer para que o público deixe de ser objeto e se converta
em sujeito?
A arte popular nada tem a ver com a chamada arte de massas. A arte
popular necessita do, e portanto tende a desenvolver, o gosto pessoal,
individual, do povo. A arte de massas ou para as massas, ao contrário,
necessita que o povo não tenha gosto. A arte de massas será efetivamente
das massas quando as massas verdadeiramente a façam. Arte de massas,
hoje em dia, é a arte que fazem uns poucos para as massas. Grotowski disse
que o teatro de hoje deve ser de minorias porque é o cinema que pode
fazer uma arte de massas. Não é certo. Possivelmente não exista uma arte
mais minoritária hoje me dia que o cinema. O cinema hoje, em todas as
partes, é feito por uma minoria para as massas. Arte de massas é, pois, a
arte popular, a que fazem as massas. Arte para as massas é, como bem
disse Hauser, a produção desenvolvida por uma minoria para satisfazer a
demanda de uma massa reduzida ao papel de espectador e consumidor.
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A arte popular é aquela que é feita sempre pela parte mais inculta da
sociedade. Mas este setor inculto conseguiu conservar para a arte
características profundamente cultas. Um delas é que os criadores são ao
mesmo tempo os espectadores e vice-versa. Não existe entre os que
produzem e os que recebem uma linha tão marcadamente de nida. A arte
culta, em nossos dias, alcançou também essa situação. A grande cota de
liberdade da arte moderna não é mais que a conquista de um novo
interlocutor: o próprio artista. Por isso é inútil esforçar- se em lutar para que
se substitua a burguesia pelas massas, como novo e potencial espectador.
Esta situação mantida pela arte popular, conquistada pela arte culta, deve
fundir-se e converter-se em patrimônio de todos. Esse e não outro deve ser
o grande objetivo de uma cultura artística autenticamente revolucionária.
Mas a arte popular conserva outra característica ainda mais importante para
a cultura. A arte popular se realiza como uma atividade a mais da vida. A
arte culta ao contrário. A arte culta se desenvolve como atividade única,
especí ca, quer dizer, se desenvolve não como atividade, mas sim como
realização de tipo pessoal. Eis aí o preço cruel de ter de manter a existência
da atividade artística a custo da inexistência dela no povo. Pretender
realizar-se à margem da vida não se constituiu em um álibi demasiado
dolorido para o artista e para a própria arte? Pretender a arte com seita,
como sociedade dentro da sociedade, como terra prometida, onde
possamos realizar-nos fugazmente, por um momento, por alguns instantes,
não é criar a ilusão de que aos nos realizarmos no plano da consciência nos
realizamos também no da existência? Não resulta tudo isto demasiado
óbvio nas atuais circunstâncias? A escolha essencial da arte popular é que
ela é realizada como uma atividade dentro da vida, que o homem não deve
realizar-se como artista senão plenamente, que o artista não deve realizar-
se como artista senão como homem.
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29/07/2020 POR UM CINEMA IMPERFEITO – Zagaia
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