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Texto publicado no site do Kátharsis.

Tradução por Bruno Bianchi.


Revisão por Kristhine Silva.

Publicado originalmente em:


LUKÁCS, G., Manipolazione culturale e ruolo della critica, Cinema nuovo, nº 178,
novembre-dicembre, 1965.

Manipulação cultural e papel da crítica

G. Lukács

Diante da tarefa, certamente lisonjeadora para mim, de escrever uma introdução para o
seu novo livro1, não posso esconder meu constrangimento e as inibições que me surgem. Elas
surgem de uma consciência bem fundamentada da minha incompetência quando se trata de
formular juízos concretos em discussões concretas sobre os problemas do cinema.

É verdade que com os problemas do cinema eu já havia me ocupado na juventude. Se,


ainda hoje, não posso se não considerar como unilateral e ocasional a escrita que lhe dediquei
naquela época2, ela ainda testemunha um interesse vital ao nascimento de um novo gênero de
arte, e numa época em que ainda havia poucos, mesmo entre os produtores e críticos, que
acreditavam que uma nova arte havia nascido. Desde então, tenho continuado a acompanhar a
evolução do cinema com grande interesse, embora a falta de tempo e o campo central da minha
atividade nunca me permitiram aprofundar concretamente em problemas particulares, o que me
parece ser o único modo de adquirir uma competência autêntica e não fictícia. Ultimamente, na
primeira parte da minha estética (Die Eigenart des Ästhetischen3), tenho tentado tomar uma
posição sobre o que me parece ser, em princípio, os problemas mais importantes de uma estética

1
O texto foi originalmente escrito como Introdução ao livro de Guido Aristarco, Il dissolvimento della ragione:
discorso sul cinema. Milano: Feltrinelli, 1965.
2
Lukács se refere ao seu artigo Riflessioni per un’estetica del cinema [Reflexões para uma estética do cinema],
escrito em 1913.
3
Cf. LUKÁCS, G., Estetica, v. 2, pp. 1258-1287.
1
do cinema. Também naquela ocasião tentei não me passar por um especialista em questões
particulares, que são, em última análise, aquelas que são frequentemente de excepcional
importância na arte, e sem a possibilidade de examinar em detalhes a evolução histórica da nova
arte. Devo dizer que eu acreditava – e acredito ainda hoje – que os mais relevantes problemas
sociais e estéticos ligados à arte cinematográfica poderiam ser compreendidos como um todo,
mesmo por aqueles que, incapazes de fazer de outra forma, os considerariam de um ponto de
vista abstrato.

O nascimento, e mesmo a ulterior evolução, do cinema foi e é determinado mais


fortemente, mais intensamente, por invenções de natureza meramente técnica do que em
qualquer outro gênero de arte mais antigo, com a possível exceção da arquitetura. Isso teve como
consequência necessária a literatura sobre o cinema, já há algum tempo bastante vasta, ter sido
informada pela análise dessas inovações técnicas e, no melhor dos casos, de seus efeitos
psicológicos. E, em comparação, têm sido raras as pesquisas sobre o significado social da nova
arte, e muito mais raras as tentativas de compreender a sua essência estética. Essa tendência
surgiu não só da já mencionada gênese técnica dos novos meios expressivos do cinema mas
também, e talvez sobretudo, da típica maneira de olhar a arte hoje, da absoluta predominância
dos problemas técnicos singulares sobre as questões estéticas de base. E, no entanto, em última
análise, essa não é uma questão imanente à estética, como também não é questão de
Weltanschauung [visão de mundo], enraizando-se, ao invés, e muito mais, na tendência geral do
nosso tempo, naquele domínio geral da manipulação, à qual sempre, em medida mais vasta, se
está submetendo também o campo da arte. Que esse domínio, no caso do cinema, só possa se
manifestar com particular pregnância, é evidente. Se a produção cinematográfica está nas mãos
de grandes potências capitalistas, e com uma imediatez e completude muito maiores do que no
caso de qualquer outra arte, o cinema, por sua própria natureza e certamente mais do que
qualquer outra arte, está destinado exclusivamente a exercer efeitos imediatos de massa.

O problema da manipulação não se limita, entretanto, a questões técnicas; a


manipulação também tem a consequência espontânea – talvez mesmo consciente – de desviar a
preeminência exclusiva ou pelo menos ampla concedida às questões técnicas do conteúdo
humano e social da manipulação. Este processo, a íntima conexão existente entre o primado da
técnica e a persuasão de que a manipulação é indiscutível, não deve ser simplificado e
trivializado, embora seja fácil ver que o kitsch mais banal pode ser remendado e disfarçado e
inextinguivelmente comercializado em doses massivas e massificantes. Também é indiscutível
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que em ambas as dimensões ocorreu uma convergência destas tendências. Basta pensar no efeito
do choque. O choque é hoje um dos instrumentos essenciais da manipulação. Além de seu efeito
propagandístico como a irrupção do inesperado, da subversão, da sensação etc., ele pode ser
provocado de modo mais fácil e seguro por um novo truque técnico, e ainda é evidente que a
semântica tecnicista do juízo crítico se deixa contentar com essa coincidência. Tanto mais que é
da essência do choque provocar um abalo nervoso momentâneo, que, tanto em sua origem
quanto em suas consequências, de modo algum toca nos fundos mais profundos e ocultos. Dessa
forma, quer queiramos ou não, quer saibamos ou não, tal abalo vem em auxílio à ideologia da
manipulação: o choque, o seu efeito explosivo, o caráter inusitado de sua manifestação, dá
àqueles que o sofrem, e ainda mais àqueles que o provocam, a ilusão de uma atitude não
conformista, sem qualquer oposição decisiva, no plano teórico ou no ético, a ser manipulada,
sem que se manifeste qualquer inconformismo autêntico.

Tudo isso pode nascer em um plano técnico-artístico em perfeita boa fé. Pode até se
dilatar para a Weltanschauung, basta para isso que o estado de manipulação em que o homem se
encontra seja concebido como a condition humaine, seja existencialista, seja da psicologia
profunda. Uma oposição pode emergir, mesmo em um nível estético, a ponto de negar
radicalmente o que existe, pode se realizar como antirromance, antidrama etc., sem com isso
subtrair um único homem da manipulação. Mas será que decorre dessa submissão, muitas vezes
de boa fé e voluntária, a força imparável da manipulação, assim como sua reflexão subjetiva, a
alienação? A meu ver, não.

E creio que não tanto no plano social objetivo quanto no plano humano subjetivo.
Certamente, a essa dupla negação deve estar conectada a infeliz consequência do surgimento de
uma oposição real. E aqui as coisas se fazem sérias. Não discutiremos as consequências materiais
de se encontrar excluído do número daqueles que “contam” aqui (embora esse não seja um
assunto socialmente sem relevância), exceto que se encontrar sozinho, consigo mesmo, com suas
convicções ideológicas e morais, é, em última instância, uma oportunidade séria para testar o
próprio caráter. É um risco que se deve correr se não se deseja aceitar de forma completamente
passiva essa esmagadora realidade da manipulação.

A irresistibilidade, todavia, é apenas aparente. Não há dia, não agora, em que a vida
não ofereça oportunidade de resistência real; no entanto, é ao mesmo tempo na essência da
manipulação da opinião pública que em toda a imprensa e nas publicações literárias, sem falar

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no cinema, essa oposição se expressa de forma incomparavelmente mais fraca. Essa é uma
afirmação que em nosso tempo é difícil de ser fundamentada. Mas pense, por exemplo, no
fascismo, que agora pertence às coisas de ontem: quantas obras de arte (incluindo as da
publicística) existem que podem ser comparadas, quantitativa e qualitativamente, com as últimas
cartas dos antifascistas condenados à morte, com o diário de Fučík etc.? (o cinema italiano, nesse
aspecto, tem os melhores resultados). A impressão geral, entretanto, é, para ser honesto,
assustadora. E com toda probabilidade, o mesmo juízo sobre nosso presente terá que ser feito
em um futuro não muito distante.

Mas voltemos ao cinema e à sua atividade, senhor Aristarco. Se devemos deter a


manipulação, intencional ou não, voluntária ou imposta, da cultura e, portanto, do cinema, a
tarefa da teoria e da crítica, ao menos, isto é, das esferas que, por natureza, são mais improváveis
que a produção como tal de serem industrializadas e comercializadas, é exercer seu dever e
resistir. A resistência na primeira fileira não é, entretanto, uma luta diretamente política ou
propagandística; a maior parte dos comediantes da manipulação cultural são artistas que
acreditam na arte, pessoas de boa-fé, todos sinceramente comprometidos com sua filosofia e
sua estética, não raramente muito dotados, às vezes pensadores por direito próprio e críticos.
Contra sua falsa Weltanschauung, e a sua falsa estética, contra sua intenção distorcida de arte,
é necessário apresentar uma teoria autêntica, convincente e capaz de convencer.

A superação do tecnicismo na teoria e na práxis do cinema, a demonstração de que por


trás de toda questão em aparência meramente formal existem graves e enormes problemas da
vida humana, que influenciam através da configuração artística a descoberta ou a perda do
homem: essa é a tarefa central do crítico cinematográfico que hoje quer merecer esse nome. O
conhecimento específico e a fina sensibilidade estética são, entende-se, premissas necessárias;
porém, não mais do que premissas, não a coisa em si. O que flui deles – apontar o caminho
correto ou, ao contrário, desviar-se dele – tem seu fundamento nessa relação com a vida
humana. “Ser radical”, diz Marx, “significa ir à raiz das coisas. Mas, para o homem, a raiz é o
homem mesmo”. Chaplin nunca foi um marxista. Ele mostrou, no entanto, das mais diversas
formas, até que ponto as novas possibilidades técnicas do cinema podem ser exploradas para
fixar, como ele fixou de forma inesquecível, a imagem do homem em perigo, da sua luta para
se preservar, do desmascaramento do que essa humanidade se põe e mina. O cinema e a crítica
cinematográfica que se movem no plano exteriorizante do tecnicismo devem ser combatidos
por uma crítica capaz de interiorização e de aprofundamento estético, a qual, se souber ir até o
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fim, em espírito de verdade e de exatidão, só pode alcançar o homem, o homem real, que sofre
e luta socialmente entre homens e contra outros homens.

Por pouco que me considere competente no campo do cinema, por pouco que esteja
ciente de sua produção complessiva – mesmo que eu saiba que não posso verificar seus juízos,
muitas vezes devido à ignorância dos modelos a que você se refere –, tirei de seus escritos a
firme convicção de que você é um crítico de cinema que tem a intenção de percorrer o caminho
correto. É por isso que considerei um dever e uma honra a possibilidade de escrever estas linhas
introdutórias ao seu livro. Desejo que esta obra provoque uma controvérsia acalorada e amarga
e que consiga esclarecer os problemas do cinema, de modo que, se autêntica no esclarecimento
desses problemas, seja capaz de ir mais longe, isto é, capaz de convidar ao esclarecimento dos
problemas da humanidade.

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