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Título: UM GUIA PRÁTICO PARA O DESVIO (A User's Guide to

Detournement)
Autor: Guy Debord e Gil Wolman
Data: Maio 1956
Descrição: Guia para usuários da deturnação
Palavras-chave: França, Maio de 68, Situationistas
Linguagem: Português
Material Relacionado: Traduzido da versão inglesa de Ken Knabb
disponível em http://bopsecrets.org/SI/detourn.htm

TRADUÇÃO 1

Um Guia para Usuários da Deturnação(1)

Toda pessoa razoavelmente atenta em nossos dias está alerta ao


óbvio fato de que a arte já não pode mais ser considerada como uma
atividade superior, ou nem mesmo como uma atividade compensatória
à qual alguém honradamente poderia dedicar-se. A razão para esta
deterioração é o claro aparecimento de forças produtivas que
necessitam de outras relações de produção e de uma nova prática de
vida. Na atual fase da guerra civil em que estamos engajados, e em
íntima conexão com a orientação que estamos descobrindo para
certas atividades superiores por vir, acreditamos que todos os meios
conhecidos de expressão irão convergir para um movimento geral de
propaganda que terá que abarcar todos os perpétuos aspectos
interativos da realidade social.

Há várias opiniões contraditórias sobre as formas e até mesmo sobre


a verdadeira natureza da propaganda educativa, essas opiniões
geralmente refletem uma ou outra variedade de reformismo político
em moda. Basta-nos dizer que, em nossa visão, as premissas para a
revolução, tanto no aspecto cultural como no estritamente político, não
apenas estão maduras como começaram a apodrecer. Não se trata
aqui de voltar ao passado, o que é reacionário; até mesmo os
«modernos» objetivos culturais são em última análise reacionários na
medida em que dependem de formulações ideológicas de uma
sociedade passada que prolongou sua agonia de morte até o
presente. A única tática historicamente justificada é inovação
extremista.

A herança literária e artística da humanidade é usada para propósitos


de propaganda partidária. É claro que é necessário ir além de
qualquer idéia meramente escandalosa. A oposição à noção burguesa
da arte e do gênio artístico tornou-se um chapéu roto. O bigode que
Duchamp rabiscou na Mona Lisa não é mais interessante que a
versão original daquela pintura. Temos agora que empurrar este
processo ao ponto de negar a negação. Bertolt Brecht revelou em uma
recente entrevista no Françe-Observateur que ele faz cortes no
clássicos do teatro de forma a torná-los mais educativos, nesse
aspecto ele está mais próximo que Duchamp da orientação
revolucionária que proclamamos. É necessário destacar, contudo, que
no caso de Brecht tais salutares alterações são estreitamente
limitadas por seu infeliz respeito à cultura definida pelos parâmetros
da classe governante — aquele mesmo respeito, ensinado tanto nos
jornais dos partidos operários como também nas escolas primárias da
burguesia, que induz até mesmo os distritos operários mais vermelhos
de Paris a sempre preferir The Cid à Mãe Coragem [de Brecht].

Na realidade, é necessário eliminar todos resquícios da noção de


propriedade pessoal nesta área. O aparecimento das já ultrapassadas
novas necessidades por obras «inspiradas», torna-se obstáculo,
hábito perigoso. Não se trata de gostar ou não delas. Temos que
superá-las.

Pode-se usar qualquer elemento, não importa donde eles são tirados,
para fazer novas combinações. As descobertas de poesia moderna
relativas à estrutura analógica das imagens demonstram que quando
são reunidos dois objetos, não importa quão distantes possam estar
de seus contextos originais, sempre é formada uma relação.
Restringir-se a um arranjo pessoal de palavras é mera convenção. A
interferência mútua de dois mundos de sensações, ou a reunião de
duas expressões independentes, substitui os elementos originais e
produz uma organização sintética de maior eficácia. Pode-se usar
qualquer coisa.

Desnecessário dizer que ninguém fica limitado a corrigir uma obra ou


a integrar diversos fragmentos de velhas obras em uma nova; a
pessoa pode também alterar o significado desses fragmentos do modo
que achar mais apropriado, deixando os imbecis com suas servis
referências às «citações».

Tais métodos paródicos foram freqüentemente usados para obter


efeitos cômicos. Mas tal humor é o resultado das contradições dentro
de uma condição cuja existência é tida como certa. Como o mundo da
literatura quase sempre parece-nos tão distante quanto o da Idade da
Pedra, tais contradições não nos fazem rir. É então necessário
conceber uma fase paródica-séria onde a acumulação de elementos
deturnados, longe de contribuir para provocar indignação ou riso em
sua alusão a algum trabalho original, expresse nossa indiferença para
com um inexpressivo e desprezível original, e se interesse em fazer
uma certa sublimação.

Lautréamont foi tão longe nesta direção que ele ainda é parcialmente
mal compreendido até mesmo pelos seus mais declarados
admiradores. A despeito de suas óbvias aplicações deste método na
linguagem teórica de Poésies — onde Lautréamont (utilizando as
máximas de Pascal e Vauvenargues, particularmente) ele se esforça
por reduzir o argumento, através de sucessivas concentrações, tão
somente a máximas — um certo Viroux, três ou quatro anos atrás,
causou considerável espanto ao demonstrar conclusivamente que
Maldoror é uma vasta deturnação de Buffon e de outras obras de
história natural, entre outras coisas. O fato dos prosélitos de Figaro,
como o próprio Viroux, serem capazes de ver nisto uma justificação
para desacreditar Lautréamont, e de outros acreditarem que tinham
que defendê-lo elogiando sua insolência, apenas testifica a senilidade
destes dois agrupamentos de parvos em elegante combate. Um lema
como «o plágio é necessário, insinua progresso» ainda é pobremente
compreendido, e pelas mesmas razões que a famosa frase sobre a
poesia, que «deve ser feita por todos».

Aparte da obra de Lautréamont — que bem à frente de seu tempo foi


em grande parte uma crítica precisa — as tendências para a
deturnação que podem ser observadas na expressão contemporânea
são em sua maior parte inconscientes ou acidentais. É na indústria da
propaganda, mais do que na decadente produção estética, onde estão
os melhores exemplos.

Podemos em primeiro lugar definir duas categorias principais de


elementos deturnados, levando em consideração se o ajuntamento
vem ou não acompanhado por correções inseridas nos originais.
Temos aqui deturnações secundárias e deturnações enganosas.

A deturnação secundária é a deturnação de um elemento que não tem


nenhuma importância em si mesmo e que tira todo seu significado do
novo contexto em que foi colocado. Por exemplo, um recorte de jornal,
uma frase neutra, uma fotografia comum.

A deturnação enganosa, também chamada deturnação de proposição-


premonitória, é em contraste a deturnação de um elemento
intrinsecamente significante que deriva de um diferente escopo de um
novo contexto. Por exemplo, um slogan de Saint-Just ou um trecho de
um filme de Eisenstein.
Obras extensamente deturnadas são usualmente compostas por uma
ou mais séries de deturnações enganosas e secundárias.

Agora pode-se formular várias leis no uso da deturnação.

O mais distante elemento deturnado é aquele que contribui mais


nitidamente à impressão global, e não os elementos que diretamente
determinam a natureza desta impressão. Por exemplo, em um
metagráfico [poema-colagem] relativo à Guerra Civil Espanhola a frase
que mais destaca o sentido revolucionário é o fragmento de um
anúncio de batom: «Belos lábios são vermelhos». Em outro
metagráfico («A Morte de J.H.») 125 anúncios classificados de bares à
venda expressam um suicídio mais notavel que as reportagens
jornalísticas que a noticiaram.

As distorções introduzidas nos elementos deturnados devem ser tão


simples quanto possível, pois o impacto principal de uma deturnação
tem relação direta com a lembrança consciente ou semiconsciente dos
contextos originais dos elementos. Isto é bem conhecido. Basta
simplesmente notar que se esta dependência da memória insinua a
necessidade de determinar o público alvo antes de inventar uma
deturnação, este é apenas um caso particular de uma lei geral que
governa não apenas a deturnação mas também qualquer outra forma
de ação no mundo. A idéia da expressão pura, absoluta, está morta;
sobrevive apenas temporariamente na forma paródica na medida em
que nossos outros inimigos sobrevivem.

Quanto mais próximo de uma resposta racional menos efetiva é a


deturnação. Este é o caso de um número bem grande de máximas
alteradas por Lautréamont. Quanto mais aparente for o caráter
racional da resposta, mais indistingüível se torna do espírito ordinário
da réplica, que semelhantemente usa as palavras opostas contra ele.
Isto naturalmente não se limita à linguagem falada. Foi nesse sentido
que contestamos o projeto de alguns de nossos camaradas que
propuseram deturnar um cartaz anti-soviético da organização fascista
«Paz e Liberdade» — que proclamava, em meio a imagens de
bandeiras sobrepostas dos poderes Ocidentais, «a união faz força» —
acrescentando por cima em uma folha menor a frase «e coalizões
fazem a guerra».

A deturnação através da simples reversão é sempre a mais direta e a


menos efetiva. Assim, a Missa Negra reage contra a construção de um
ambiente baseado em determinada metafísica construindo outro
ambiente na mesma base, que apenas inverte — mas ao mesmo
tempo conserva — os valores de tal metafísica. Não obstante, tais
reversões podem ter um certo aspecto progressivo. Por exemplo,
Clemenceau [chamado «o Tigre»] poderia ser chamado «o Tigre
chamado Clemenceau».

Das quatro leis fixadas, a primeira é essencial e se aplica


universalmente. As outras três, na prática, aplicam-se apenas a
elementos deturnados enganosos.

As primeiras conseqüências visíveis da difusão do uso da deturnação,


fora seu intrínseco poder de propaganda, foram a revivificação de uma
multidão de livros ruins, e a extensa (não intencional) participação de
seus desconhecidos autores; uma transformação cada vez maior de
frases ou obras plásticas produzidas para estar na moda; e acima de
tudo uma facilidade de produção que supera em muito, em
quantidade, variedade e qualidade, a escrita automática que tanto nos
chateia.

A deturnação não conduz apenas à descoberta de novos aspectos do


talento; também colide frontalmente com todas as convenções sociais
e legais, pode ser uma arma cultural poderosa a serviço de uma
verdadeira luta de classes. O baixo preço de seus produtos é a
artilharia pesada que derruba todas as muralhas da China do
entendimento.(2) É um verdadeiro meio artístico proletário de
educação, o primeiro passo para um comunismo literário.

No reino da deturnação pode-se multiplicar idéias e criações à


vontade. No momento nos limitaremos a mostrar algumas
possibilidades concretas em vários setores atuais da comunicação —
estes setores separados são significantes apenas em relação às
tecnologias atuais, com tudo tendendo a fundir-se em sínteses
superiores com o avanço destas tecnologias.

Aparte dos vários usos diretos de frases deturnadas em cartazes,


registros e rádio radiodifusão, as duas aplicações principais de prosa
deturnada estão em escritos metagráficos e, em menor grau, na hábil
perversão da moderna forma clássica.

Não há muito futuro na deturnação de romances inteiros, mas durante


a fase transitiva poderia haver um certo número de empreendimentos
deste tipo. Se uma deturnação fica mais rica quando associada a
imagens, tais relações para com textos não são imediatamente óbvias.
Apesar das inegáveis dificuldades, acreditamos que seria possível
produzir uma instrutiva deturnação psicogeográfica da Consuelo de
George Sand, que poderia ser relançada no mercado literário
disfarçada sob algum título inócuo como «Vida nos Subúrbios», ou até
mesmo sob um título deturnado, como «A Patrulha Perdida». (seria
uma boa idéia reutilizar deste modo muitos títulos de velhos filmes
deteriorados dos quais nada mais permanece, ou de filmes que
continuam enfraquecendo as mentes dos jovens nos clubes de
cinema).

A escrita metagráfica, não importa quão antiquada possa ser sua base
plástica, apresenta oportunidades bem mais ricas para a prosa
deturnada, como outros objetos apropriados ou imagens. Pode-se
obter uma idéia do significado disso pelo projeto, concebido em 1951
mas eventualmente abandonado por falta de meios financeiros
suficientes, que pretendeu fabricar uma máquina de fliperama
arranjada de tal forma que o jogo de luzes e trajetórias mais
previsíveis das bolas formaria uma composição metagráfica-espacial
intitulada Sensações Térmicas e Desejos de Pessoas que Passam
pelos Portões do Museu do Cluny Cerca de uma Hora depois do
Poente em Novembro. Percebemos desde então que um
empreendimento situacionista-analítico não pode avançar
cientificamente por meio de tais obras. Não obstante, os meios
permanecem satisfatórios para metas menos ambiciosas.

É obviamente no reino do cinema que a deturnação pode atingir sua


maior efetividade e, para os que se interessam por este aspecto, sua
maior beleza.

Os poderes do filme são tão extensos, e a ausência de coordenação


desses poderes é tão evidente, que virtualmente qualquer filme que
esteja acima da miserável mediocridade provê tema para infinitas
polêmicas entre espectadores ou críticos profissionais. Apenas o
conformismo dessas pessoas lhes impede descobrir tanto a atração
apelativa como as falhas berrantes dos piores filmes. Para ilustrar esta
absurda confusão de valores, podemos observar que Nascimento de
uma Nação de Griffith é um dos filmes mais importantes na história do
cinema por causa de sua riqueza de inovações. Por outro lado, é um
filme racista e portanto não merece absolutamente ser mostrado em
sua presente forma. Mas sua proibição total poderia ser vista como
lamentável do ponto de vista do secundário, mas potencialmente
meritório, domínio do cinema. Seria melhor deturná-lo em sua
totalidade, sem a necessidade de sequer alterar a montagem,
adicionando uma trilha sonora que faça uma poderosa denúncia dos
horrores da guerra imperialista e das atividades da Ku Klux Klan que
até hoje continua atuando nos Estados Unidos.

Tal deturnação — mesmo bem moderada — é em última análise nada


mais que um equivalente moral da restauração de velhas pinturas em
museus. Mas a maioria dos filmes merece apenas o corte para
compor outras obras. Esta reconversão de seqüências preexistentes
serão obviamente acompanhadas de outros elementos, musicais ou
pictóricos como também históricos. Enquanto a reprodução
cinematográfica da história permanecer em grande parte semelhante à
reprodução burlesca de Sacha Guitry, alguém poderá ouvir
Robespierre dizer, antes de sua execução: «Apesar de tantos
julgamentos, a minha experiência e a grandeza de minha tarefa me
convence que tudo está bem». Se neste caso uma apropriada
reutilização de uma tragédia grega nos permite exaltar Robespierre,
podemos imaginar frases tipo-neorealistas em para-choques de
caminhão onde, por exemplo, um motorista de caminhão diz
seriamente a outro: «Antigamente a ética existia apenas nos livros dos
filósofos; nós a introduzimos no governo das nações». Percebe-se que
que esta justaposição elucida a idéia de Maximilien, a idéia de uma
ditadura do proletariado.(3)

A luz da deturnação propaga-se em linha reta. Até mesmo a nova


arquitetura parece ter começado com uma fase barroca experimental,
o complexo arquitetônico — que concebemos como a construção de
um ambiente dinâmico relacionado a estilos de comportamento —
provavelmente deturnará as formas arquitetônicas existentes, e em
todo caso fará um uso plástico e emocional de todos os tipos de
objetos deturnados: arranjos cuidadosos de coisas como guindastes
ou andaimes de metal substituirão uma tradição escultural defunta.
Isto choca apenas os mais fanáticos admiradores dos jardins estilo-
francês. Comenta-se que em sua velhice D'Annunzio, aquele suíno
pró-fascista, mantinha a proa de um barco torpedeiro em seu parque.
Sem considerar seus motivos patrióticos, a idéia de tal monumento
não está isenta de um certo charme.

Se a deturnação fosse estendida a realizações urbanísticas, não


seriam poucas as pessoas que seriam afetadas pela exata
reconstrução em uma cidade de um bairro inteiro em outro. A vida
nunca pode estar demasiado desorientada: a deturnação neste nível
realmente a faria bela.

Os próprios títulos, como vimos anteriormente, são um elemento


básico na deturnação. Isto resulta de duas observações gerais: que
todos os títulos são intercambiáveis e que eles têm uma importância
decisiva em vários gêneros. Todas as histórias de detetive «Série
Noir» são extremamente semelhantes, contudo basta simplesmente
mudar continuamente os títulos para garantir uma considerável
audiência. Na música um título sempre exerce uma grande influência,
contudo a escolha é bem arbitrária. Assim não seria uma má idéia
fazer uma correção final ao nome «Sinfonia Heróica» mudando-a, por
exemplo, para «Sinfonia Lenin».(4)

O título contribui fortemente na deturnação de uma obra, mas há uma


inevitável ação contrária à obra no título. Assim pode-se fazer extenso
uso de títulos específicos retirados de publicações científicas
(«Biologia Litoral dos Mares Temperados») ou militares («Combate
Noturno de Pequenas Unidades de Infantaria»), ou até mesmo de
muitas frases encontradas nos livros ilustrados infantis («Paisagens
Maravilhosas Cumprimentam os Passageiros»).

Para encerrar, mencionaremos rapidamente alguns aspectos do que


chamamos de ultradeturnação, quer dizer, as tendências para uma
deturnação que atua na vida social cotidiana. Pode-se dar outros
significados a gestos e palavras, e isto tem sido feito ao longo da
história por várias razões práticas. As sociedades secretas de China
antiga fizeram uso de técnicas bem sutis de sinalização que
abrangiam a maior parte do comportamento social (a maneira de
organizar xícaras; de beber; de declamar poemas interrompendo-os
em determinados pontos). A necessidade de um idioma secreto, de
contra-senhas, é inseparável de qualquer tendência em jogo. No final
das contas, qualquer sinalização ou palavra é suscetível de ser
convertida em qualquer outra coisa, até mesmo em seu contrário. Os
insurgentes monarquistas do Vendée, por conduzirem a asquerosa
imagem do Sagrado Coração de Jesus, foram chamados de Exército
Vermelho. No domínio limitado do vocabulário político de guerra esta
expressão foi completamente deturnada durante um século.

Fora da linguagem, é possível usar os mesmos métodos para deturnar


roupas, com todas suas fortes conotações emocionais. Aqui
novamente encontramos a noção de disfarce que é inerente ao jogo.
Finalmente, quando alcançamos à fase de construir situações — a
meta última de toda nossa atividade — todo mundo será livre para
deturnar situações inteiras mudando deliberadamente esta ou aquela
condição que as determina.

Não apresentamos estes métodos brevemente expostos aqui como


algo inventado por nós, mas como uma prática geralmente difundida a
qual nos propomos sistematizar.

Em si mesma, a teoria da deturnação bem pouco nos interessa.


Contudo achamos que ela está ligada à quase todos os aspectos
construtivos do período pré-situacionista da transição. Assim seu
enriquecimento, pela prática, parece necessário.
Futuramente prosseguiremos no desenvolvimento dessas teses.

GUY DEBORD, GIL J WOLMAN

[NOTAS DO TRADUTOR]

1. A palavra francesa détournement significa desvio, diversão,


reencaminhamento, distorção, abuso, malversação, seqüestro, ou
virar ao contrário do curso ou propósito normal. Às vezes é traduzida
como «diversão», mas esta palavra gera confusão por causa de seu
significado mais comum como entretenimento inativo. Como a maioria
das outras pessoas que de fato pratica o deturnação, eu simplesmente
preferi aportuguesar a palavra francesa.

2. Os autores estão deturnando uma sentença do Manifesto


Comunista: «O baixo preço das mercadorias da burguesia foi a
artilharia pesada que derrubou todas as muralhas da China, que
forçou a capitulação do intenso, obstinado e bárbaro ódio aos
estrangeiros».

3. Na primeira cena imagina-se uma frase de uma tragédia grega


(Oedipus em Colonus de Sófocles) sendo colocada na boca de
Maximilien Robespierre, líder da Revolução francesa . Na segunda,
uma frase de Robespierre sendo colocada na boca de um motorista
de caminhão.

4. Beethoven originalmente nomeou sua terceira sinfonia em


homenagem a Napoleão (tido como defensor da Revolução
Francesa), mas quando Napoleão coroou a si mesmo como imperador
o compositor rasgou furiosamente tal dedicatória renomeando-a como
«Heróica». A alusão a Lenin nesta passagem (como eventualmente é
mencionado em «estados operários» no «Relatório na Construção de
Situações» de Debord) é um vestígio de um vago anarco-trotskyismo
nos primitivos letristas, em um período politicamente menos
sofisticado.

Este artigo foi publicado no jornal surrealista belga Les Lèvres Nues
#8 (maio de 1956).

Traduzido por Railton Sousa Guedes com base na versão inglesa de


Ken Knabb (com ligeiras modificações da versão «Métodos de
Deturnação» na Antologia Situacionista Internacional).
(O material acima é livre para o uso pessoal ou não comercial)

Vide também (em inglês) [Deturnação como Negação e Introdução]

TRADUÇÃO 2

UM GUIA PRÁTICO PARA O DESVIO

Toda pessoa razoavelmente consciente de nosso tempo já se deu


conta do fato óbvio de que a arte não pode mais ser considerada
como uma atividade superior, ou mesmo como uma atividade
compensatória para a qual alguém pode honradamente se devotar. A
razão para tal deterioração é com certeza a emergência de forças
produtivas que necessitam de outras relações de produção e de uma
nova prática de vida. Na fase de guerra civil na qual estamos
envolvidos, e em estreita conexão com a orientação que estamos
descobrindo para certas atividades superiores que virão, nós
acreditamos que todos os meios de expressão vão convergir num
movimento geral de propaganda e precisam englobar todos os
aspectos perpetuamente interativos da realidade social.

Existem várias opiniões conflitantes sobre as formas e mesmo sobre a


própria natureza da propaganda educativa, opiniões que geralmente
refletem uma ou outra variedade de política reformista atualmente em
voga. É suficiente dizer que, do nosso ponto de vista, as premissas
para a revolução, tanto no plano cultural quanto no estritamente
político, não só estão maduras, mas já começaram a apodrecer. Não
estão apenas retornando a um passado que é reacionário; mesmo os
objetivos culturais «modernos» são em última análise reacionários, já
que dependem de formulações ideológicas de uma sociedade arcaica
que prolongou sua agonia de morte até o presente. A única tática
historicamente justificada é a inovação extremista.

A herança literária e artística da humanidade deve ser usada para


objetivos propagandísticos de guerrilha. É, evidentemente, necessário
ir além do mero escândalo. Já que a oposição à noção burguesa de
arte e gênio artístico se tornou há muito um sapato velho, o bigode
que Duchamp pintou na Mona Lisa não é mais interessante do que a
própria Mona Lisa sem bigode. Nós precisamos empurrar este
processo ao ponto de negar a negação. Bertold Brecht, revelando
numa entrevista recente no France-Observateur que ele faz cortes nos
clássicos do teatro de forma a fazer as performances mais educativas,
está muito mais perto da orientação revolucionária que estamos
propondo do que Duchamp. Entretanto, devemos notar que, no caso
de Brecht, estas saudáveis alterações estão mediocremente limitadas
por seu desafortunado respeito à cultura, da forma como é definida
pela classe dominante - esse mesmo respeito, ensinado tanto nos
jornais dos partidos operários quanto nas escolas primárias da
burguesia, e que leva até os distritos operários mais roxos de Paris a
sempre preferir o El Cid [um filme de Hollywood] à Mãe Coragem [uma
peça de Brecht].

Na verdade é necessário eliminar todos os vestígios da noção de


propriedade pessoal nesta área. A aparição de novas necessidades
torna as obras «inspiradas» anteriores obsoletas. Elas se tornam
obstáculos, vícios perigosos. Não se trata de discutir se nós gostamos
ou não delas. Nós precisamos superá-las.

Quaisquer elementos, não importa de onde forem tirados, podem ser


usados para fazer novas combinações. As descobertas da poesia
moderna a respeito da estrutura analógica das imagens demonstra
que quando dois objetos são unidos, não importa quão distantes os
seus contextos originais, uma relação é sempre formada. Se restringir
a um arranjo pessoal de palavras é mera convenção. A interferência
mútua de dois mundos sensíveis, ou a união de duas expressões
independentes, supera os elementos originais e produz uma
organização sintética de grande eficácia. Qualquer coisa pode ser
usada.

Está implícito que não há limite para corrigir uma obra ou para integrar
diversos fragmentos de trabalhos obsoletos em um novo; pode-se
alterar o significado desses fragmentos de qualquer forma apropriada,
deixando aos imbecis a sua escravidão às referências e às
«citações».

Tais métodos parodísticos foram frequentemente usados para obter


efeitos cômicos. Mas tal humor é o resultado de contradições dentro
de uma condição cuja existência não é posta em questão. Já que o
mundo da literatura nos parece quase tão distante quanto a idade da
pedra, tais contradições não nos fazem rir. Torna-se necessário
conceber então um estágio paródico-sério no qual a acumulação de
elementos desviados, longe de procurar despertar indignação ou riso
ao aludir a um trabalho original, expressará nossa indiferença em
relação a um original insignificante e esquecido, e que procura
proporcionar uma espécie de sublimação.
Lautréamont avançou tanto nessa direção que ele é ainda
parcialmente mal entendido mesmo pelos seus mais ostentosos
admiradores. A despeito de ser óbvio que ele aplicou esse método à
linguagem teórica em Poésies - onde Lautréamont (baseando-se
particularmente nas máximas de Pascal e Vauvenargues) esforça-se
para reduzir o argumento, através de sucessivas concentrações, a
simples máximas - um certo Viroux causou bastante sensação três ou
quatro anos atrás ao demonstrar conclusivamente que Maldoror é um
vasto desvio de Buffon e de outras obras de história natural, além de
outras coisas. O fato de que os prosaístas do Figaro, como o próprio
Viroux, foram capazes de vê-lo como uma justificativa para denegrir
Lautréamont, e de que outros acreditaram que deveriam defendê-lo
exaltando sua insolência, apenas testemunha a senilidade destes dois
bandos de caquéticos em combate cortês. Um slogan como «O plágio
é necessário, o progresso o pressupõe» é ainda pouco compreendido,
e pelas mesmas razões, como na frase famosa sobre a poesia que
«deve ser obra de todos».

Fora o trabalho de Lautréamont - cujo aparecimento tão à frente de


seu tempo o preservou em larga medida de uma crítica precisa - as
tendências rumo ao desvio observadas na expressão contemporânea
são na maior parte inconscientes ou acidentais. É na indústria do
marketing, mais do que na produção estética decadente, que
podemos encontrar os melhores exemplos.

Podemos começar definindo duas categorias principais de elementos


desviados, sem considerar se, ao serem unidos, os originais passam
por algum tipo de correção. Estes são os desvios menores e os
desvios enganadores.

Desvios menores são os desvios de um elemento que não tem


importância própria, e que portanto toma todo seu significado do novo
contexto onde foi colocado. Por exemplo, um resumo informativo, uma
frase neutra, uma foto lugar-comum.

Desvios enganadores, também chamados desvios com proposta


premonitória, são por outro lado o desvio de um elemento
intrínsecamente significativo, o qual toma um dimensão diferente a
partir do novo contexto. Um slogan de Saint-Just, por exemplo, ou
uma sequência cinematográfica de Eisenstein.

Obras extensivamente desviadas serão portanto geralmente


compostas de uma ou mais séries de desvios enganadores e
menores.
Várias normas de utilização do desvio podem agora ser fomuladas.

O elemento que contribui mais decisivamente para a impressão geral


é o elemento mais distante, e não os elementos que determinam
diretamente a natureza da impressão. Por exemplo, num metagrafo
[poema-colagem] relacionado à guerra civil espanhola, a frase com o
sentido revolucionário mais claro é um fragmento de um comercial de
batom: «Lábios bonitos são vermelhos». Em outro metagrafo, («A
Morte de J.H.») 125 anúncios classificados de bares à venda
expressam um suicídio mais dramaticamente do que as reportagens
de jornal que o noticiaram.

As distorções introduzidas nos elementos desviados devem ser as


mais simples possíveis, já que o impacto de um desvio é diretamente
proporcional à memória consciente ou semiconsciente dos contextos
originais dos elementos. Isto é bem sabido. Permita-nos apenas notar
que se esta dependência da memória implica que deve-se determinar
o público-alvo antes de planejar-se um desvio, isto é apenas um caso
particular de uma norma geral que governa não só o desvio como
também outras formas de ação neste mundo. A idéia da expressão
pura e absoluta está morta; ela sobrevive temporariamente em forma
de paródia apenas enquanto o nosso inimigo sobreviver.

O desvio se torna menos efetivo à medida que se aproxima de uma


resposta racional. Este é o caso de um grande número de máximas
alteradas de Lautréamont. Quanto mais o caráter racional da resposta
é aparente, mais difícil fica distinguí-lo de uma réplica ordinária, que
também usa as próprias palavras do oponente para atacá-lo. Foi por
esta razão que objetamos o projeto de alguns de nossos camaradas
que propuseram o desvio de um cartaz anti-soviético da organização
fascista «Paz e liberdade» - a qual proclamou, entre imagens de
bandeiras das potências ocidentais, «A união faz a força» -
adicionando a isto uma folha menor com a frase «e a coalizão faz a
guerra».

O desvio pela simples inversão é sempre o mais direto e o menos


efetivo. Portanto, a missa negra reage contra a construção de um
ambiente baseado numa metafísica dada, construindo um ambiente
dentro da mesma lógica, que simplesmente inverte - e portanto
simultaneamente conserva - os valores dessa metafísica. Entretanto,
tais inversões podem reter um certo aspecto progressista. Por
exemplo, Clemenceau [chamado «O Tigre»] pode ser referido como
«O Tigre chamado Clemenceau».
Das quatro normas propostas, a primeira é essencial e universalmente
aplicável. As outras três são praticamente aplicáveis apenas a
elementos desviados enganosamente.

As primeiras consequências visíveis do uso amplo do desvio, além do


seu poder intrínseco de propaganda, será o ressurgimento de uma
multidão de livros ruins, e portanto a extensa (e não almejada)
participação de seus autores desconhecidos; uma transformação
crescente de frases ou obras de arte que por acaso estejam na moda;
e sobretudo uma facilidade de produção que ultrapassará de longe em
quantidade, variedade e qualidade a escrita automática que nos
entediou por tanto tempo.

O desvio não leva apenas à descoberta de aspectos novos do talento;


somando-se a isso, e se chocando contra todas as convenções
sociais e legais, não poderá falhar em se tornar uma arma cultural a
serviço da verdadeira luta de classes. Os seus produtos baratos são a
artilharia pesada que derruba todas as Muralhas da China do
conhecimento (1). É um verdadeiro meio de educação artística do
proletariado, o primeiro passo em direção a um comunismo literário.

Idéias e criações no reino do desvio podem ser multiplicadas à


vontade. Por hora nos limitaremos a mostrar algumas poucas
possibilidades concretas em vários setores atuais de comunicação -
ficando claro que esses setores separados só têm significado em
relação às tecnologias atuais, e tendem a se fundir em sínteses
superiores com o avanço dessas tecnologias.

À excessão dos vários usos diretos de frases desviadas em cartazes,


discos e programas de rádio, as duas principais aplicações da prosa
desviada são os escritos metagráficos e, em menor grau, a perversão
astuta do formato clássico dos quadrinhos.

Não há muito futuro no desvio de quadrinhos completos, mas durante


a fase de transição talvez haja um certo número de realizações deste
tipo.Tais desvios têm a vantagem de ser acompanhados de
ilustrações cujas relações com o texto não são imediatamente óbvias.
A despeito de inegáveis dificuldades, nós acreditamos que seja
possível produzir um desvio psicogeográfico instrutivo da Consuelo de
George Sand, que assim desfigurado poderia ser relançado no
mercado literário disfarçado sob um título inócuo como «A Vida no
Subúrbio», ou mesmo com um título também desviado, como «A
Patrulha Perdida». (Seria uma boa idéia reutilizar dessa maneira
vários títulos de velhos filmes deteriorados dos quais nada resta, ou
de filmes que continuam a assassinar as mentes dos jovens nos
cinemas).

A escrita metagráfica, não importa quão obsoleto seja o seu suporte


plástico, apresenta oportunidades muito mais ricas para o desvio da
prosa, bem como de outros objetos ou imagens. Pode-se ter uma uma
idéia disto através do projeto, concebido em 1951 mas eventualmente
abandonado por falta de recursos financeiros suficientes, que
propunha uma máquina de fliperama, disposta de tal forma que o jogo
de luzes e as trajetórias mais ou menos esperadas das bolas
formariam uma composição metagráfica-espacial intitulada Sensações
Térmicas e Desejos de Pessoas Passando Pelos Portões do Museu
Cluny Por Volta de Uma Hora Após o Pôr-do-sol em Novembro. Desde
então nós nos demos conta de que uma proposta analítica-
situacionista não pode avançar cientificamente através de
semelhantes empreitadas. No entanto, os meios permanecem
adequados para objetivos menos ambiciosos.

É obviamente no reino do cinema que o desvio pode alcançar a sua


maior eficácia e, para os que se preocupam com este aspecto, a sua
maior beleza.

Os poderes do filme são tão amplos, e a ausência de coordenação de


tais poderes é tão evidente, que virtualmente qualquer filme que está
acima da miserável média pode fornecer material para polêmicas
infindáveis entre expectadores ou críticos profissionais. Apenas o
conformismo dessas pessoas as impede de descobrir encantos
igualmente sedutores e defeitos igualmente óbvios mesmo nos piores
filmes. Para dissecar essa absurda confusão de valores, podemos
observar que Birth of a Nation [O Nascimento de uma Nação, um filme
épico mudo sobre a história dos Estados Unidos] de Griffith é um dos
filmes mais importantes da história do cinema, graças às inovações
que introduziu. Por outro lado, é um filme racista e portanto não
merece ser exibido em sua presente forma. Mas sua proibição total
poderia ser tida como equívoco do ponto de vista secundário, mas
potencialmente mais importante, do cinema. Seria melhor desviá-lo
por completo, sem necessariamente alterar mesmo a montagem,
adicionando uma trilha sonora que fizesse uma poderosa denúncia
dos horrores da guerra imperialista e das atividades do Ku Klux Klan,
que continuam até o presente dia.

Tal desvio - de fato bastante moderado - é em última análise nada


mais do que o equivalente moral da restauração das pinturas antigas
nos museus. Mas a maioria dos filmes só merecem ser cortados para
compor outros trabalhos. Esta reconversão de sequências
preexistentes será obviamente acompanhada de outros elementos,
musicais ou pictóricos, bem como históricos. Enquanto a história
continua sendo reescrita pelo cinema, até o presente momento, à
maneira das recriações burlescas de Sacha Guitry, poderíamos ter
Robespierre dizendo logo antes de sua execução: «A despeito de
tantos julgamentos, minha experiência e a grandeza de minha tarefa
me convencem de que tudo está bem.» Neste caso a reutilização
apropriada de uma tragédia grega nos permite exaltar Robespierre, e
por outro lado podemos imaginar uma sequência de estilo neo-
realista, no caixa de um bar de estrada, com um caminhoneiro dizendo
sériamente a outro: «A ética era préviamente confinada nos livros dos
filósofos; nós a introduzimos na governança das nações.» Pode-se ver
que esta justaposição ilumina a idéia de Maximilien, a idéia da
ditadura do proletariado. (2)

A luz do desvio se propaga em linha reta. À medida que a nova


arquitetura parece ter começado com um estágio barroco
experimental, o complexo arquitetônico - o qual é concebido como a
costrução de um ambiente dinâmico relacionado a estilos de
comportamento - provavelmente desviarão formas arquiteturais
existentes, e de qualquer maneira farão uso plástico e emocional de
todos os tipos de objetos desviados: a organização cuidadosa de
coisas tais como guindastes ou andaimes que substituem uma
tradição escultural falecida. Isto é chocante apenas para os
admiradores mais fanáticos dos jardins de estilo francês. Conta-se que
na sua velhice D'Annunzio, esse porco pró-fascista, tinha a proa de
um navio torpedeiro em seu jardim. Deixando de lado os seus motivos
patrióticos, a idéia de tal monumento não deixa de ter seu charme.

Se o desvio fosse extendido às realizações urbanísticas, poucos


ficariam insensíveis à reconstrução exata de toda uma vizinhança de
uma cidade em outra. A vida é sempre um labirinto: desviá-la dessa
maneira a tornaria verdadeiramente bela.

Os próprios títulos, como já vimos, são elementos básicos do desvio.


Isto advém de duas observações gerais: que todos os títulos são
intercambiáveis e que eles têm uma importância decisiva em vários
gêneros. Todas as histórias de detetive da série «Noir» são
extremamente semelhantes, e mudar contínuamente os títulos é
suficiente para manter a audiência. Na música o título sempre exerce
uma grande influência, mas sua escolha é arbitrária. Portanto não
seria uma má idéia fazer uma correção final ao título da «Sinfonia
Eroica» mudando-a, por exemplo, para «Sinfonia Lênin». (4)
O título contribui fortemente para o desvio de um trabalho, mas existe
uma inevitável ação contrária do trabalho no título. Portanto podemos
fazer vasto uso de títulos específicos tirados de publicações científicas
(«Biologia Costeira de Mares Temperados») ou militares («Pequenas
Unidades de Infantaria em Combate Noturno»), ou mesmo de muitas
frases achadas em livros infantis ilustrados («Paisagens Maravilhosas
Acenam aos Viajantes»).

Finalmente, faremos breve menção a alguns aspectos do que


chamamos de ultradesvio, ou seja, as tendências para a o
funcionamento do desvio na vida social quotidiana. Gestos e palavras
podem tomar outros sentidos, como de fato ocorreu durante toda a
história, por várias razões práticas. As sociedades secretas da China
antiga faziam uso de sinais de reconhecimento muito sutis, associados
às boas maneiras (a forma de dispôr xícaras; de beber; citações
poéticas em pontos pré-combinados). A necessidade de uma
linguagem secreta, de senhas, é inseparável de uma tendência à
brincadeira. No final das contas, qualquer sinal ou palavra é passível
de ser convertido em outra coisa, e até no seu oposto. Os insurgentes
realistas de Vendée, pelo fato de usarem a imagem nojenta do
Sagrado Coração de Jesus, eram chamados de Exército Vermelho.
No estreito domínio do vocabulário da guerra política esta expressão
foi completamente desviada em menos de um século.

Linguagem à parte, é possível usar os mesmos métodos para desviar


roupas, com todas suas fortes conotações emocionais. Aqui podemos
encontrar novamente a noção de disfarce intimamente ligada à
brincadeira. Finalmente, quando chegarmos ao momento de construir
situações -- o objetivo último de toda nossa atividade -- todos serão
livres para desviar situações inteiras através de mudanças deliberadas
desta ou daquela condição determinante.

Os métodos aqui brevemente descritos não são apresentados como


de autoria nossa, mas como uma prática bastante difundida a qual
procuramos sistematizar.

Em si, a teoria do desvio pouco nos interessa. Mas parece-nos que ela
está ligada a quase todos os aspectos construtivos do período de
transição pré-situacionista. Portanto, julgamos que seu enriquecimento
através da prática seja necessário.

Nós deixaremos o desenvolvimento dessas teses para mais tarde.

GUY DEBORD, GIL J WOLMAN


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[NOTAS DO TRADUTOR]

(1) Os autores estão desviando uma frase do Manifesto Comunista:


«Os produtos baratos da burguesia são a artilharia pesada com a qual
ela derruba todas as Muralhas da China, com a qual ela força o ódio
obstinado dos bárbaros a capitular.»

(2) Na primeira cena imaginada a frase de uma tragédia grega (Édipo


em Colonus, de Sófocles) é colocada na boca do líder revolucionário
francês Maximilien Robespierre. Na segunda, uma frase de
Robespierre é colocada na boca de um caminhoneiro.

(3) Beethoven deu originalmente à sua terceira sinfonia o nome de


Napoleão (visto como o defensor da Revolução Francesa), mas
quando Napoleão proclamou a si mesmo imperador, rasgou em fúria a
dedicatória que havia feito e mudou o título para «Eroica». O respeito
implícito que esta passagem dá a Lênin (como as breves referências a
«Estados Operários» no trabalho «Relatório sobre a Construção de
Situações» de Debord) é um vestígio de um vago anarco-trotskismo
do período inicial e menos politicamente sofisticado dos autores.

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Este artigo apareceu no jornal surrealista belga Les Lèvres Nues #8


(Maio 1956).

Traduzido [para o inglês] por Ken Knabb (levemente modificado a


partir da versão intitulada «Métodos de Desvio» na Antologia da
Internacional Situacionista). Esta versão portuguesa foi traduzida a
partir do texto inglês de Knabb, disponível no site www.bopsecrets.org
pelo Sindicato do Rock.

Sem direitos autorais.

[Tradução enviada pelo «Sindicato do Rock»


www.sindicatodorock.cjb.net.]

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