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leyla perrone .

noisés
FALENCIA DA CRITICA
Um caso limite: Lautréamont

~\\1~
~ ~ EDITORA PERSPECTIVA
~I\~
Coleção Debates

Dirigida por J. Guinsburg

Conselho Editorial: Anatol Rosenfeld, Anita Novinsky,


Augusto de Campos, Aracy Amaral, Boris Schnaiderman,
Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Dante Moreira Lei-
te, Gita K. Guinsburg, Haroldo de · Campos, Leyla
:Perrone-Moisés, Maria de Lourdes Santos Machado,
Regina Schnaiderman, Robert Norman V. C. Nicol, Rosa
R. Krausz, Sábato Magaldi, Sergio Miceli e Zulmira Ri-
beiro Tavares.

Equipe de realização: Revisão: Plínio Martins Filho; Pro-


dução: Lúcio Gomes Machado; Capa: MoysésBaumstein.
Retrato.s Imaginários de Lautréamont ·

Valloton

Salvador Dali
Hathri Elmekki

rautrtamont
Pastor

Melchor Mendes
© EDIT ORA PERS PECT IVA S.A.
1973

EDI TOR A PER SPE CTIV A S. A.


Av. Brig adeir o Luís Antô nio, 3 025
Tele fone : 288- 6680
São Paul o - Bras il - O1401
SUMARI.d
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
1 A Crítica da Perplexidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
2 A Crítica do Gosto e do Desgosto . . . . . . . . . . . . . 25
3 A Crítica da Razão Impura. . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
4 A Crítica E:tica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
5 A Crítica Biográfica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
6 A Crítica M istijicadora. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
7 A Crítica Ocultista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
8 A Crítica de Fontes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
9 A Crítica Psicol6gica e Psicanalitica. . . . . . . . . . . 87
10 A Crítica Temática. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
11 A Crítica Marxista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
12, A Crítica Estruturalista e Semiol6gica. . . . . . . . . 123
c1_3) A Autocrftica de Lautréamont. . . . . . . . . . . . . . . . 137
14 Conclusão . ................... ·....... : ._. . . . 159
Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167
Índice Onomástico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174
~
INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como ponto de partida uma obra


cuja centenária novidade espicaça a crítica, mas que, irre-
dutível ã análise, acaba por ·tornar irrisório todo e
qualquer comentário. Essa obra é a de Isidore Ducasse,
em literatura Conde de Lautréamont. - - - - - - -
Autor e obra estão marcados com o selo da es-
tranheza. Aútor sem biografia, vagou como um fantasma
entre Montevidéu e Paris, deixando apenas breves in-
dícios de sua passagem. Obra de pequenas dimensões,
composta de duas partes surpreendentes e contraditórias,.
caiu como um aerólito na história da literatura e não
encontrou registro.
9
Autár sem biografia~ Tudo o que se sabe com certeza
acerca de Isidore Ducasse reduz-se a bem pouco. De
inicio, possuiam-se apenas algumas informações não
comprovadas, transmitidas por seus primeiros editores.
Com o passar dos anos, o aparecimento de alguns
documentos permitiu que se fixassem alguns fatos e· da-
tas, sem que contudo se tapassem tOdas as brechas, por
onde escapam ainda múltiplas suposições e devaneios.
O que se sabe é o seguinte:
Isidore Lucien Ducasse nasceu a 4 de abril de 1846,
.em Montevidéu, filho de François Ducas--se: ~ch.a:ri.ceter-do
. Consulado da França, e de Célestine Jacquette Davezac,
empregada doméstica. O casamento realizou-se dois
meses antes do nascimento de lsidore.
Naquela ocasião, a cidade se encontrava em estado
de sitio, em plena Guerra do Prata. Com dezenove meses,
o menino foi batizado na Igreja Metropolitana de Monte-
vidéu. Nada se sabe de seguro sobre sua infância. Consta
que seu pai era uma estranha personagem, misto de le-
trado, dom-juan e aventureiro, e que sua mãe morreu
quando ele tinha dez meses.
Em 1859, o jovem Isidore partiu para a França,
ingressando como aluno interno no Liceu Imperial de
Tarbes, nos Pireneus (sua familia era originária dessa re-
gião). Os arquivos do liceu mencionam alguns prêmios
obtidos pelo futuro escritor, em versão latina, gramática,
cálculo e desenho. Em 1863, transferiu-se para o Liceu
Imperial de Pau, onde recebeu prêmios em recitação
clássica, inglês e fisica. Até o presente momento, não se
encontrou prova de que Isidore Ducasse tenha chegado ao
baccalauréat, exame de conclusão do curso secundário.
Seu condiscípulo Paul Lespes, interrogado po1
François Alicot em 1927, quando já estava com 81 anos,
forneceu as únicas indicações que temos sobre o liceano
Ducasse: alto, um pouco curvado, a tez pálida, os cabelos
longos caidos sobre a testa, a voz aguda, uma fisionomia
pouco atraente; temperamento retraído, introspectivo e
soturno, desadaptado à França e saudoso de seu pais na-
tal.
Dos dados fornecidos por Lespês, o mais curioso se
refere ao comportamento de Ducasse durante as aulas de
Monsieur Hinstin, professor de ret6rica, a quem mais
tarde o poeta <;l~g~i!'!- suas Poesias. Ducasse revoltava-se
contra os exercícios propostos pelo professor, e este, por

10
sua vez, punia-o por suas delirantes e lúgubres disser-
tações.
Neste ponto da vida de Ducasse encontramos um
vazio de aproximadamente dois anos. Supõe-se que entre
1865 e 1867 o escritor tenha voltado ao Uruguai, onde seu
contemporâneo Prudencio Montagne afirmou tê-lo visto.
Em 1867, Ducasse instalou-se em Paris, num hotel
da Rue Notre Dame des Victoires. Esta informação nos é
dada por L. Genonceaux, em seu prefácio à edição de
1890. Afirma ainda que o poeta escrevia noites a fio,
declamando alto seus Cantos, ao som de acordes de piano.
Ducasse viera a Paris para inscrever-se na Escola Poli-
técnica ou das Minas. Esses informes foram colhidos por
Genonceaux do editor Lacroix, uma das poucas pessoas
que tiveram contato direto com o poeta.
Em novembro de 1868 foi publicado o Chant Premier
de Maldoror, impresso por Balitout, Questroy et Cie., 7
rue Baillif. Em 1869, Ducasse travou relações com o já ci-
_tado Lacroix, que imprimiu Les Chants de Maldoror;
.assinados pelo c~~-~-_9:~___:!,.,_il~~~rngll.J...._.ps.e.udônipiO
inspirado no romance histórico Latréaumont de Eugene
Sue: . cf'poêfá' viviã eritãõ~iiitRU._ê_êfii-Faubo.Ürg Morlt-
'ffiartre, n. 0 32, de onde escreveu algumas cartas ao
banqueíro Darasse e ao editor Verboeckhoven, sócio de
Lacroix. São as únicas cartas que se conhecem de
Ducasse.
Impressa a obra, o editor Lacroix assustou-se com
sua irreverência e suspendeu sua distribuição, temendo
um processo judicial. Pressionado pelo autor, Ver-
boeckhoven vendeu a obra à Bélgica, onde foi divulgada.
No começo de 1870, Ducasse mudou-se para a Rue
Vivienne, n. 0 15, entre a Bolsa de Paris e a Biblioteca
Nacional. Não consta que, em todo esse período, tenha
freqüentado os meios literários e artísticos da capital,já
que nenhum dos contemporâneos jamais o mencionou.
Em sua carta ao banqueiro Darasse, Ducasse afirmava
que estava em casa o dia inteiro. Nessa mesma carta, o
poeta informava sobre sua disposição de escrever uma no-
va obra, cantando o Bem e a Esperança. A obra recebeu o
título de Poésies, sob o nome autoral de Isidore Ducasse, e.·
saiu pela Librairie Gabrie, 25 passage V erdeau. o·
primeiro fascículo apareceu em abril, o segundo em
junho.
Nesse mês, Ducasse mudou-se para o n. 0 7 da Rue
Faubourg Montmartre, onde morreu em circunstâncias

11
I"
desconhec idas, no dia 24 de novembro de ,.\870, aos 24
anos. O hoteleiro e o garçom do hotel são as~i:estemurihãs
·êitaâas em seu atestado de óbito. Paris estava sitiada
pelos prussiano s e, como no ano do nascimen to do poeta,
a peste grassava. Ducasse foi enterrado no Cemitério do
Norte e postedorm ente seus ossos foram dispersos no

"*
. Ossuário de Pantin.
Tudo predispõe a fazer dessa biografia um mito.
Numa época em que os indivíduo s já deixavam numerosa s
marcas de sua passagem , Isidore Ducasse conseguiu
desaparec er deixando apenas três atestados (de nas-
cimento, de batismo e de óbito), meia dúzia de cartas de
negócios e nenhuma fotografia . Só nos resta sua biografia
poética: os Cantos de M aldoror e as Poesias.
Obras sem registro. A obra se compõe de dois livros
pouco extensos. Descrevê- los seria já traí-los, pela atri-
buição de um significad o preciso. Poderíam os carac-
terizar a obra segundo o que dela diz o próprio autor, em
suas cartas: os Cantos de Maldoror são a exaltação poé-
tica do Mal, e as Poesias, a apologia do Bem e da Es-
perança, sob forma de máximas e pensamen tos. Esta
caracteriz ação é, entretanto , extremam ente ambigua e
quando o autor no-la fornece, não o faz sem certa ironia.
Tentemos portanto uma breve descrição, embora sa-
. bendo que qualquer descrição é traidora.
Os Cantos ele M aldoror constam de seis partes
(Cantos I a VI) subdividid as em "estrofes" . Cada uma
dessas estrofes tem a aparência de um poema em prosa e o ·
. seu conjunto esboça algo como uma narrativa épica. Em
linhas gerais, essa narrativa tem a estrutura do
.. romanesc o": o herói Maldoror está em constante busca,
cujo objetivo é a conquista do universo ou simplesm ente
de sua própria independê ncia. Para atingir esse objetivo,
o proteiform e Maldoror deve enfrentar vários inimigos,
cada vez mais temíveis: o homem, o anjo, o Criador e
finalment e sua própria consciênc ia moral, que morre e
renasce constante mente sob forma de fantãsmas .
Herói ultra-rom ântico, Maldoror se apresenta com
todo os atributos do satanismo mais descabela do. O espa-
ço de suas aventuras é o do romance negro: falésias e va-
gas tempestuo sas, jardins e praças desertas, ruelas es-
curas de Paris. Nesses cenários, Maldoror realiza toda
espécie de crueldade , dirigida em geral contra frágeis
adolescen tes.

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Através dos Cantos, o poeta explica a maldade de
Maldoror por uma profunda decepção originária em face
do homem, do Criador e da moral cristã. .
Trechos narrativos e trechos liricos alternam-se com
precisa.S descrições em estilo de enciclopédia científica,
numa aparente desordem. O tom geral é de provocação e
sarcasmo, mascarados por surpreendente solenidade e
grandiloqüência.
As Poesias, malgrado o título, não con-têm peças/
versifi.cadas. Trata-se de uma coletânea de máximas e
pensamentos, no mais das vezes parodiados dos grandes
clássicos franceses: Pascal, La Rochefoucauld,
V auvenargues. '·
Embora na carta a Verboeckhoven Ducasse ex-
plicasse esta obra como a contrapartida de M aldoror e seu
antídoto, como o canto do Bem e da Esperança, seria
muito diflcil ver nas Poesias uma proposta moral
coerente. As mudanças introduzidas por Ducasse nos
pensamentos pastichados são anárquicas e podem ser
caracterizadas a partir de cinco processos fundamentais:
1) inversão da mensagem no sentido do otimismo;. 2)
inver~ão da mensagem no sentido do pessimismo; 3)
inversão da mensagem mostrando que o contrário
também é válido; 4) esvaziamento do sentido com anula-
ção total da mensagem; 5) plágio ou resumo do
pensamento inspirador.
Examinando o estilo dos pensamentos e máximas de
Ducasse em confronto com o estilo dos pensamentos e
máximas que lhe serviram de base, notamos uma
transformação constante, no sentido da simplificação.
Ducasse parafraseia ou contradiz anulando os ar-
tifícios de ret6rica. Transforma as perguntas · em afir-
mações. Substitui as longas subordinadas dos autores
clássicos por orações independentes, curtas, incisivas,
.assertivas. Isso acarreta o desaparecimento de quase to-
das as conjunções, o aumento numérico de pontos finais
com conseqüente diminuição de vírgulas, pontos e vir-
gulas e dois pontos. O futuro substitui o condicional, os
talvez são sistematicamente abolidos. A elipse trans-
forma-se na figura mestra. O estilo de Ducasse é seco,
sintético, enxuto, objetivo. O uso exagerado de processos
ret6ricos nos Cantos de M aldoror encontra nas Poesias o
seu oposto. Ducasse anula a ret6rica para mostrar o
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pensamen to nu. :É o strip-teas e da frase, o ques-
tionament o abrupto de seus significad os.
Critica sem rumo. Desde sua publicaçã o, a obra de
Ducasse constituiu um problema para a crítica. A leitura
de tudo o que foi escrito sobre essa obra, nos cem anos de
sua existência , nos revela o profundo mal-estar que a
crítica literária vem experime ntando diante dela. As
perplexid ades, os extravios, os impasses se encontram no
caminho de todos os pesquisad ores. A obra de Ducasse
resiste a todos os assaltos, a todas as interpreta ções, a to-
dos os métodos de análise, obrigando sempre o crítico a
recomeça r da estaca zero, apresenta ndo-lhe um rosto
sempre intacto, porque sempre outro.
Que pode fazer a crítica biográfica com um autor
quase desprovid o de biografia? Como farão os his-
toriadores da literatura para situar no tempo e no espaço
essa obra inclassific ável, que se prende aos mitos primi-
tivos tanto quanto à cultura européia, que situa o homem
em seu passado, em seu presente e em seu futuro? A
crítica psicológic a, acuada pela falta de dados bio-
gráficos, perde-se nos recônditos dessa personalid ade
fugidia porque exclusivam ente literária. A crítica das
fontes, procurand o situar os pontos de partida da obra,
encontra um referencia l cada vez mais vasto, afastando -se
cada vez mais da própria obra para mergulha r no re-
positório da cultura ocidental. Desencor ajada diante de
todos esses obstáculo s, a crítica se sente tentada a
sucumbir ao mito de Lautréam ont, especulan do eso-
tericarnen te sobre seu mistério e esquecend o nesse lance a
obra e sua crítica.
Percorrer a crítica de um único autor no período de
um século é uma tarefa esclareced ora não só quanto aos
problemas desse autor, mas sob_retudo quanto aos pro-
blemas da crítica. E quando se trata de uma obra de
ruptura, uma obra que coloca em questão o próprio
conceito de literatura, uma obra que parece cair em plena
literatura como um objeto não-ident ificado, a crítica rece-
be um desafio exemplar.
"Abram Lautréam ont! e eis toda a literatura re-
virada como um guarda-ch uva! Fechem Lautréam ont! e
imediatam ente tudo reencontr a seu lugar!H - escrevia
Francís Ponge em 1946. Poderíam os parafr~eá-lo:
"Abram a crítica de Lautréam ont! e eis toda a crítica re-
virada como um guarda-ch uva!" Esse objeto privilegia do

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constituiu desde logo e constitui ainda uma prova de fogo
para qualquer método critico.
· Nada de mais desencorajador, portanto, para um
critico maldororiano em potencial, do que a critica
maldororiana que o precede. Francis Ponge caracteriza os
Cantos como "'o fim de certa literatura". E a critica mal-
dororiana, em ·seu conjunto, não nos levaria a passar o
.atestado de óbito de .. certa crítica"? Qualquer que seja a
resposta a essa pergunta, é certo que um critico não pode
lançar-se no estudo de Lautréamont sem se fazer per-
guntas sobre a própria crítica, sobre seus fundamentos
teóricos, seu campo, seu objeto, seus métodos.
. Eis o que nos levou a tomar Lautréamont como obje-
to privilegiado para servir· de teste aos métodos da critica
literária. ~-c;ri:Q.çª'-.!!l_a.is 4~_ql1~-ka~.1::r:~amont, con~titui _o
,verdadeiro objeto de nossa indagação. '
~ Uma obra como a de Lautréamont obriga a que se
reformule o próprio conceito de critica literária, e que se
·revejam o papel e a função do critico. O critico Ji1:~rário
sempre foi um agregado um de~ndetit"e, sempre
precisotl do. apoio do escritor-criadQ.r p~ia exis!i.!. As me-
tafõras usadas pelos críticos para definir sua condição re-
velam esse sentimento de incompletude, de mutilação:
para Sainte-Beuve, o crítico é o impotente; para Georges
Poulet, o cego; para Roland Barthes, o afásico do eu, o
escritor em sursis.
Mas essa dependência, como todas as dependências,
acaba por inverter os papéis. Para usar uma imagem
maldororiana, diremos que o critico é uma espécie de
vampiro que suga o sangue do criador para nutrir as veias
de seu discurso paralelo. Parasita hipócrita (um piolho,
diria Lautréamont), porque ao mesmo tempo que finge
estar a ·serviço do escritor, tem a secreta pretensão de
•Concorrer com ele e suplantá-lo.
Privado da força do criador, vinga-se dele arvorando-
se em árbitro, respaldando-se no código da instituição li-
terária para proferir condenações e absolvições. Não
sendo ,nem mesmo literatura, .a critica pretende ser a
consciência da literatura, isto é, seu deus: "A crítica li-
terária não é um gênero a bem dizer, nada de semelhante
nem de análogo ao drama ou ao romance, mas antes a
contrapartida de todos os outros gêneros, sua consciência
esté}ica, por assim dizer, e seu juiz" (Brunetiêre, verbete
CRITICA, Grande Encyclopédie, 1885).

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Ora, Lautréamont é um escritor que se nega "" a entrar
com o critico nessa dialética de senhor e escravo, cujo pre-
ço é a mútua agressividade. Os Cantos e as Poesias
desbaratam os explicadores e demitem os juizes. Impossi-
bilitando o parasitismo, fecham igualmente o caminho
aos superegos críticos. "Arranjem-se" ,diz ele nas Poesias.
Duplamente destituído, de seu lugar de filho e de seu
lugar de pai, o crítico é lançado à sua própria sorte. Não
pode mais seguir a corrente remansosa da obra, lançando
sobre ela, do interior de seu barquinho seco, os raios de
sua supervisão. Lautréamont o joga n'água, isto é, na li-
teratura. Ou ele se afoga, ou aprende definitivamente a
nadar.

LEYLA PERRONE-MOISÉS
Universidade de São Paulo,
outubro de 1972

16.
A CRÍTICA DA PERPLEXIDADE

"Não convém que todos leiam as páginas que se-


guem: somente alguns saborearão sem perigo este
.fruto amargo. Por conseguinte. alma tímida. antes de
penetrar n1ais adentro nessas charnecas inexplora-
das. dirige teus calcanhares para trás e 11Õo para
frente .. (C. !. /).1

No momento da publicação dos Cantos de Maldoror,


Isidore Ducasse se mostrava preocupado com a acolhida
da crítica:
O) A edição de Lautréamont citada neste trabalho é a das Oeuv,..,. complirf!'s. Paris. Li:
brairie José Corti, 1938-1963. A partir de agora. nós a designaremos pelas iniciais O. C. As ci-
tações de Lautréarnont serão acompanhadas das seguintes abreviações.: C. tL ..s Clr<r1tt:r de
M<rfdoror), algarismo romano (número do Canto). algarismo arábico {númeTo da estrofe); P.
(Poésies). algàrismo romano (fasclculo).

17
"O que eu desejaria é que a crítica fosse confiada aos
principais colunistas. Somente eles julgarão em primeira e
última instância o começo de uma publicação que, evi-
dentemente, só verá seu fim mais tarde, quando eu terei
visto o meu. Portanto, a morai da história ainda está por
ser feita" (Carta ao editor Verboeckhoven, 23 de outubro
de 1869).
Estranhas contradições! A primeira: a de um autor
que invoca o ódio do leitor, desde as primeiras páginas de
sua obra e que, ao mesmo tempo, confia seu julgamento
ac:>s jornalistas. A segunda: no interior do próprio texto
em que esse desejo é enunciado: os criticas julgarão "em
última instância", dirão a última palavra acerca de uma
obra cuja "moral" só poderá,ser feita mais tarde .
.· Inclinamo-nos a crer que essas contradições se ex-
plicam por uma fusão irônica de dois emissores: o homem
Ducasse, levado pela necessidade de convencer seu editor
e seu pai do bom encaminhamento de sua carreira de
escritor (outra carta, endereçada ao banqueiro Darasse a
22 de maio do mesmo ano, nos revela essa preocupação); e
o escritor Lautréamont, consciente da impossibilidade de
ser compreendido e julgado pela crítica de seu tempo.
Com efeito, a critica francesa do fim do século XIX
não estava armada para enfrentar Maldoror. A re-
percussão imediata da obra foi praticamente nula, e isto
se explica não só por seu caráter desconcertante, mas
também pelas dificuldades encontradas em sua dis-
tribuição. Mas essas dificuldades não se deviam exa-
tamente ao aspecto desconcertante da obra? Um editor
amedrontado (Lacroix), que preferiu manter a obra em
estoque a correr o risco de um processo por obscenidade,
não era o mais indicado para estabelecer boas relações
com a imprensa. Os constrangimentos sociais começaram
assim, desde logo, a pesar sobre a critica de Lautréamont;
e a critica jornalistica foi a primeira (por seu imediatismo
e por seu caráter de instituição social) a sentir e a revelar
esses constrangimentos.
O primeiro comentário sobre os Cantos saiu ime-
diatamente após a publicação do Canto I, e vinha as-
sinado por Epistemon, no jornal La Jeunesse, n':' 5 de 1
a 15 de setembro de 1868. Aquele que se escondia sob esse
pseudônimo era o próprio diretor do jornal, Alfred Sircos:
"O primeiro efeito produzido pela leitura deste livro
é o espanto: a ênfase hiperbólica do estilo, a estranheza
selvagem, o vigor desesperado da idéia, o contraste entre

18
esta linguagem apaixonada e as mais insossas elucubra-
ções de nosso tempo, lanÇam inicialmente o espírito numa
profunda estupefação ..
· "Alfred de Musset fala, em algum lugar, daquilo que
ele chama de 'Doença do Século': é a incerteza do futuro,
o desprezo do passado, ou a incredulidade e o desespero.
Maldoror sofre deste mal; cético, torna-se maldoso, e re-
verte para a crueldade todas as forças de seu gênio. Primo
de Childe-Harold e de Fausto, ele conhece os homens e os
despreza. A inveja o devora, e seu coração, sempre vazio.
agita-se incessantemente em sombrios pensamentos, sem
jamais poder alcançar aquele objetivo vago e ideal que ele
procura e adivinha.
"Não levaremos adiante o exame deste livro. t:
preciso lê-lo para sentir a inspiração poderosa que o
anima, o desespero negro derramado nessas páginas
lúgubres. Apesar de seus defeitos, que são numerosos, a
incorreção do estilo, a confusão dos quadros, acreditamos
que esta obra não passará confundida com as outras
publicações de hoje; sua originalidade pouco comum está
garantida".
O primeiro critico de Maldoror tinha lançado assim
algumas palavras-chave da crítica maldororiana subse-
qüente: "espanto", "estranhezç", "estupefação", "ori-
ginalidade". Uma tendência neoclássica (o espírito da re-
vista era tradicionalista) leva-o a assinalar alguns "de-
feitos": "a incorreção do estilo", "a confusão dos qua-
dros", mas não o impede de pressentir a importância da
obra. O conflito entre a admiração do critico e a ideologia
que o norteia, leva-o a um comentário paradoxal e contra-
ditório.
Alfred Sircos, como· todo sujeito perante um objeto
novo, procura enquadrar este objeto em suas categorias
mentais. Ora, o objeto não tem registro, não se encaixa
perfeitamente em nenhuma classificação prévia. O crítico
busca pontos de referência: o mal do século, o parentesco
com certas obras anteriores que revelam o mesmo des-
prezo pelo homem. Mas, assim que Sircos aproxima a
obra de outras, e procura descrevê-la a partir desse
confronto, malogra em seu intento. Cede aos lugares-
comuns de sua época e, finalmente, sua breve descrição de
Maldoror poderia aplicar-se indistintamente a René de
Chateaubriand ou a Adolphe de Benjamin Constant.
Essas semelhanças desfariam a estupefação inicialmente
referida, ao invés de a justificar.

19
O critico se encontra assim num impasse, entre a
afirmação da originalidade da obra e o desejo de acomo-
dá-la · num quadro literário conhecido, portanto não-
original. 1!:. talvez a tomada de consciência desse impasse
que leva Sircos a abandonar abruptamente o exame do li-
vro e a sugerir que os leitores o abram eles mesmos, "para
sentir a inspiração poderosa que o anima''.
Evidentemente, não é através do. conhecido que se
domina o desconhecido. Utilizando a categoria do "mal
do século" para definir os Cantos, Sircos deixa escapar as
possibilidades de explicar a originalidade da obra. Por
outro lado, tudo o que não corresponde às suas categorias
estéticas, é imediatamente qualificado como "defeito". O
critico do século XIX não podia desconfiar que aquilo que
ele chama de "defeito" da obra poderia constituir
precisamente sua "estranheza selvagem" e sua "ori-
ginalidade pouco comumH. Sircos é um caso tipico de
intuição crítica privada de uma aparelhagem conveniente.
A intuiçãó que ele tem da imwrtância dos Cantos é aba-
fada pelo uso de uma linguagem critica que s6 dispõe dos
moldes de urna literatura já cristalizada e datada, a li-
teratura romântica.
A segunda nota publicada a respeito dos Cantos data
de 1869: uma breve notícia no Bulletin trimestriel n. 0 7
des publications d4.fendues en F rance. imprimées à l' é-
tranger, publicado por Poulet-Malassis, célebre editor de
Baudelaire. Eis o texto:
"Não há mais maniqueus, dizia Pangloss- Há um:
eu, respondia Martin. O autor deste livro não é de uma
espécie menos rara. Corno Baudelaire, corno Flaubert, ele
acredita que a expressão poética do Mal implica o mais
vivo apetite do Bem, a mais alta moralidade. O Sr. Isidore
Ducasse (tivemos a curiosidade de conhecer seu nome) fez
mal em não imprimir em França os Cantos de Maldoror.
O sacramento da Sexta Câmara não lhe teria faltado" 2 •
Esta nota chama a atenção para o problema moral
levantado pelos Can.tos: exaltação do Mal pelo Mal ou
para valorizar o Bem? Ainda uma vez, o comentador pre-
. tende compreender o novo adaptando-o a um esquema
conhecido: "como Baudelaire, como Flaubert... " Esta
visão rápida e superficial que Poulet-Malassis nos dá de
Lautréamont corresponde ao ponto de vista de um editor
(2) O *-sacramento da Sexta Câmara'' seria a condenação por um tribunal de censura~

20
de publicações proibidas, que quer torná-las ao mesmo
tempo atraentes e aceitáveis.
O próprio poeta lhe fornecera esta pista, numa carta
ao editor Verboeckhoven, encontrada posteriormente
num exemplar da edição original dos Cantos, pertencente
à biblioteca de Poulet-Malassis:
"Deixe-me primeiramente explicar-lhe minha si-
tuação. Cantei o mal como fizeram Mickiewicz, Byron,
Milton, Southey, A. de Musset, Baudelaire, etc. Na-
turalmente, exagerei um pouco o diapa.São para fazer algo
•novo no sentido dessa literatura sublime que só canta o
desespero para oprimir o leitor, e para fazê-lo desejar o
bem como remédio''.
1

Mas aqui mergulhamos nas ambigüidades das cartas


de Ducasse. Esta foi escrita no momento em que a edição
dos Cantos fora recolhida, e seu objetivo era tranqüilizar o
editor pela afirmação de suas boas intenções e pelo apoio
buscado em exemplos ilustres. Na verdade, Lautréamont
não tinha cantado o Mal como seus predecessores. O exa-
gero ao qual ele se refere ultrapassa largamente a medida
de "um pouco". A prova está em que a critica, que não
tinha duvidado da seriedade dos autores citados, pôs ime-
diatamente em dúvida a sua. Uma resenha anônima no
Bulletin du Bibliophile et du Bibliothécaire, em maio de
1870, levantou a hipótese de uma impostura:
"Este volume impresso em Bruxelas foi, asseguram-
nos, publicado em pequena tiragem e suprimido em se-
guida pelo autor que dissimulou seu verdadeiro nome sob
.um pseudônimo. Ele ocupará um lugar entre as sin-
gularidades bibliográficas; sem nenhum prefácio, uma
'série de visões e de reflexões em estilo bizarro, uma es-
pécie de Apocalipse cujo sentido seria inútil procurar.
Será uma brincadeira? O escritor tem um ar muito sério,
e nada mais lúgubre do que os quadros que ele coloca sob
os olhos de seus leitores. ( ... ) Se falamos dessa produção
estranha, é que ela ficará, sem dúvida; desconhecida na
Franç·a".
Novamente o que é posto em relevo, nos Cantos, é sua
singularidade, o "estilo bizarro" desta "produção es-
tranha". Aqui, a saída encontrada para o espanto é negar
que a obra tenha um sentido .("cujo sentido seria inútil
procurar") e desconfiar que se trate de uma brincadeira.
Desde já, vemos esboçarem-se dois caminhos diante
da obra: assimilá-la às obras do passado, negligenciando
sua estranheza; ou interpretar essa estranheza como falta
21
de sentido. Os dois caminhos mostram bem a repulsão da
critica em face do novo, suas acomodações que .são uma
espécie de autodefesa. E a defesa de suas categorias, pela
crítica do século XIX, é a defesa das bases éticas de uma
sociedade. Uma obra como os Cantos ameaçava bem mais
que a literatura, como se verâ a seguir.
Eis o que conduz a critica a engajar-se no segundo
caminho (a afirmação da falta de sentido) e a fazer de
Lautréamont um marginal. O primeiro grande res-
ponsável do purgatório onde Maldoror seria lançado por
longos anos foi Léon Bloy, em 1886:
"Um dos sinais mais claros da acuação das almas
modernas no extremo de tudo é a recente intrusão em
França de um monstro de livro, quase desconhecido
ainda, embora publicado na Bélgica hâ dez anos: os
Cantos de M aldoror, do Conde de Lautréamont, obra
absolutamente sem par e provavelmente destinada a re-
;percutir. O autor morreu num hospício e é tudo o que se
sabe dele".
Começam aqui as especulações em torno da
"loucura" de Lautréamont, que prosseguem ainda hoje
nos estudos psicanalíticos acerca do poeta. Léon Bloy
parecia repetir uma opinião corrente entre aqueles que
conheciam a obra e esta opinião, embora desprovida de
qualquer base documental, cavaria profundas raizes. Os
Cantos se apresentaram, desde o início, como um desafio
vital: ou se tratava de um fruto da loucura e, portanto,
naturalmente posto à margem, sem colocar em perigo os
conceitos fundamentais da crítica e da sociedade; ou eram
considerados como lúcidos, mas isto exigiria um reexame
total das estruturas mentais, que seriam postas em
questão e teriam de se transformar para englobar a obra.
Léon Bloy, bem instalado em seu racionalismo cristão,
duplamente atingido pelo irracionalismo e pela irre-
verência religiosa de Lautréamont, sentiu que essa obra
representava um perigo e exorcizou-a sob etiqueta da
loucura. Essa repulsa pelo objeto estranho é carácteristica
de uma critica institucional, a serviço da preservação de
um sistema de valores que, por sua vez, garante a
preservação de um sistema social.
O objeto estranho remete naturalmente a pesquisa à
·sua fonte. De onde vem? Quem o fabricou? No prefácio à
edição de 1890, o editor L.Genonceaux levanta o pro-
blema da biografia. Tendo empreendido um "inquérito

22
muito aprofundado ': Genonceaux esboça a primeira
"biografia" de Ducasse .. Como, mais tarde, algumas
dessas informações foram negadas por documentos
encontrados , e outras permanecer ão para sempre in-
verificáveis, esta primeira biografia já se caracteriza pela
imprecisão que marcará os estudos biográficos futuros.
Perplexo diante dessa obra "estranha e desigual"
Genonceaux abre o cortejo dos que procuram a chave do
mistério de Lautréamon t na vida de Isidore Ducasse.
A primeira crítica de Lautréamon t, que acabamos de
percorrer rapidamente , é pois a crítica da perplexidad e.
Os habitantes. da terra bem conhecida das Belas-Letra s
dão a volta ao disco voador, procurando encontrar uma
porta, uma brecha, um sinal.
Assim, na vertente do século, as preocupaçõe s mais
constantes da futura crítica maldororian a já tinham sido
levantadas e as reações dos primeiros critic!os prefiguram
de certa forma as reações dos seguintes.
Se pensarmos nos elementos que constituem o
processo da comunicaçã o, veremos que esses críticos
procuraram, por todos os lados, uma via de acesso àquela
mensagem enigmática.
Sircos procurou o código segundo o qual se poderia
decifrá-la: seria o código romântico?
Poulet-Mala ssis interessou-s e pelo referente (seria
.apenas uma obra que trata do problema do Bem e do
Mal?) e pelo receptor (que o editor queria atrair).
O critico anônimo do Bulletin du Bibliophile et du
Bibliothécai re sentiu que aquela estranha mensagem se
explicaria, talvez, pelas relações entre o emissor e o re-
ceptor, e já que o receptor não se sentia capaz de dominar
essas relações, era preciso concluir que elas tinham sido
deliberadam ente perturbadas .
Para Léon Bloy, é o próprio emissor o perturbado,
provocando uma desordem geral da comunicaçã o, que o
receptor devia recusar energicamen te.
Genonceaux empreendeu pesquisas sobre o emissor,
por ele identificado com o autor.
Nenhum deles enfrentou a mensagem ela própria, to-
dos procuraram atingi-la por caminhos indiretos. In-
felizmente para eles, a mensagem não oferecia entrada la-
teral.

23
A CRÍTICA DO GOSTO E DO DESGOSTO

"'A fronteira entre teu gosto e o meu é invisíveL·


nunca poderás percebê-la: prova de que essa fron-
teira não existe. Re.flete pois que então (e apenas
afloro a questão) não seria impossível que tivesses
assinado um tratado de aliança com a obstinação.
essa agradqvel filha do asno, fonte tão rica de in-
tolerância" (C. V. I).

"Julga-se bom aquilo de que se gosta". Esta


asserção de Jules Lemattre t define o impressionismo
critico, que reinou nos anos subseqüentes à publicação

(!) Les contemporains. (1903-1918) vol. 11, p. 85

25
dos Cantos de Maldoror e das Poesias. A frase citada
caracteriza bem esse gênero de critica, ao mesmo tempo
normativa e subjetiva. A critica baseada no gosto teria,
perante nosso objeto, as reações mais contraditórias.
· Léon Bloy, por exemplo, praticava um im-
pressionismo violento. Exercia uma crítica baseada no
gosto pessoal, e o seu se inclinava para os julgamentos
impetuosos e radicais:
~·1:: pois uma ruína humana compieta que decidi
oferecer aos melancólicos, aos saturados de melancolia.
(... ) O inédito, o enlouquecedor, o monstruosíssimo poe-
ta desconhecido ( .... que) experimentou a apavorante
aventura de sobreviver a si próprio" 2 •
Visto que a obra de Lautréamont não correspondia a
seus padrões morais, representando mesmo uma ameaça
para esses padrões, Léon Bloy encarou-a como um sinal
do Apocalipse. A obra também não correspondia a seus
padrões estéticos:
· "Quanto à forma literária, ela não existe. É lava
liquida" 3.
· Entretanto, a violência dos Cantos e seu tom pro-
fético tinham afinidades com o estilo do próprio Léon
Bloy, o que o leva a reconhecer na obra "uma beleza
pânica surpreendente".
Eis pois uma crítica inteiramente submissa, em suas
diatribes como em seus ~logios, aos gostos pessoais do
critico. As limitações desse gênero de. "análise" são tão
universalmente reconhecidas, nos dias de hoje, que nos
parece supérfluo sublinhá-las.
Lancemos porém um olhar do outro lado, isto é, do
lado dos críticos que gostam da obra, que a consideram
"boa.,. Encontramos aí outro representante do im-
pressionismo critico, o aristocrático Rémy de Gourmont,
que apreciava os Cantos e incluiu o nome de Lautréamont
em seu Livre des Masques.
Rémy de Gourmont aceita a obra com muito menos
reservas do que Léon Bloy, embora partilhe sua opinião
sobre a loucura do poeta:
· "Era um jovem de uma originalidade furiosa e
inesperada, um gênio doente e mesmo francamente um
gênio louco'' 4 •

(2) Belluaires et. po,.chers. p.S.


(3) ldem.
(4) o.c.. p. 17.

26
Enquanto a admiração de Léon Bloy pelos Cantos
fora bloqueada por seus· principies religiosos e estéticos,
Rémy de Gourmont não parece nada ofendido pelas
heresias de Lautréamont, muito pelo contrário:
"Foi um magnífico rasgo de gênio, quase inex-
plicável. Unico, assim permanecerá este livro, ~ desde já
ele faz p::~.rte das obras que, com a exclusão de todo
classicismo, formam a breve biblioteca e a única literatura
admissível para aqueles cuio espírito malfeito se recusa às
alegrias, menos raras, do lugar-comum e da moral
convencional" 5 .
Rémy de Gourmont praticava uma crítica de volúpia.
Discípulo de Nietzsche, via com olhar cético qualquer
dogma ou principio moral e duvidava da escala de valores
de sua sociedade. A irreverência de Lautréamont agrada-
va ao lado "perverso" de sua personalidade, o lado atraí-
do pelos Iívros eróticos e ocultistas que ele colecionava
como bibliófilo. Rémy de Gourmont era, além disso, u1n
admirador do novo e do original.
Entretanto, a sua simpatia pela obra nada acres-
centou à sua crítica. Critica de desgosto (Léon Bloy) ou
critica de gosto (Rémy de Gourmont), ambas têm exa-
tamente o mesmo ~so: ambas permanecem estranhas à
obra já que, na verdade, elas não revelam senão o in-
divíduo crítico e, por detrás dele, a sociedade de onde elas
.emanam.
A adesão de Rémy de Gourmont à obra de
Lautréamont contribuiu até mesmo, e paradoxalmente,
para a marginalização do poeta, definido por ele como o
autor de uma obra destinada a alguns leitores perversos,
gulosos de emoções raras 6 •
CL crítico impressionista trabalha com várias ca-
J~gQrjas_:_JiliLl!.!Jla_Lpuram~nfe_s_iibjetivas (ii]iniaãdes :ou
i~rasias) e outras güev1sãm incluir a _pbra na socie-
dade (categortas éticas e estéticas).
Um leitorcomORemy-de-Gourmont julga contra o
gosto coletivo, mas esse julgamento não atinge as ca-
tegorias coletivas, porque ele se apresenta como marginal,
como excêntrico.
Mas, n..a-maiQLJlarte_dQs..,ç_ª~~-~se
encqntta em h<Irmonia c9m.a.socieda.Q~_-:.~Q_g.Q_§tp~é
visto como a manifestação de um "bom gosto" absoluto.
- "'-~-----"-"''·'··-_.:,..,"""""'=- ... --~

(S) Idem .
.(6) Quanto a sua atividade pessoal, Rémy de Gourmont favoreéeu os Cantos. Como bibliotecário
da Biblioteca Nacional, realizou pesquisas que permitiram chegar a indicações precisas sobre as
primeiras edições da obra.

27
;
O crítico é então apenas o porta-v oz do "bom. gosto" que
deve dirigir o gosto coletivo . Este foi o papel assumi do por
Henri Duvern ois, quando , num artigo sobre o "mau
gosto", apresen tou Lautré amont como "o monum ento
dess~ gênero de estilo" 7.
O "bom gosto" é um dos mitos remane scentes do
raciona lismo clássico , intimam ente ligado aos mitos do
"bom senso", da "clarez a", do "equilí brio,., etc.,
pressup ostos univers ais que dispens am definiç ão. A
critica fundad a sobre o .. bom gosto" pretend e sempre
integra r a obra na comun idade; como bem diz Northro p
Frye:
"O papel desse gênero de crítica será de mostra r de
modo exempl ar como um homem de gosto sabe aprecia r e
utilizar a literatu ra, e indicar assim como a literatu ra deve
tornar- se parte integra nte de um conjun to social. "8
Quand o essa crítica de gosto é individ ualista (como
no caso de Rémy de Gourm ont), a obra em questão nada
ganha, já que o gosto individ ual não se explica e não p:r;e-
tende justific ar suas escolha s. Quand o ela toma um cará-
ter coletivo , basead o no ·senso moral ou no senso estético
(Léon Bloy e Duvern ois), essa critica conduz irá à assimil a-
ção ou à conden ação da obra em nome dos princíp ios
fundam entais da socieda de. Ora, os Cantos podiam ser
aceitos individ ualmen te (por excentr icidade ), mas já que
não podiam ser assimil ados pela socieda de, dela deveria m
ser excluíd os.
Durant e o período simboli sta, a critica concern ente
a Lautréa mont é extrem amente reduzid a, sobretu do se a
compar armos com as ressonâ ncias das obras de um
Baudel aire ou de um Rimba ud na mesma época. Alguma s
breves alusões a Lautréa mont, no fim do século XIX, na-
da trouxer am de novo. Elas mostra m soment e que o nome
do poeta continu ava circula ndo num círculo restrito :
Gustav e Kahn 9; Camille Lemmo nier to, Alfred Jarry n.
Em 1899, Ruben Darío consag ra-lhe um capítul o em Los
Raros, revelan do à Améric a Latina um poeta sul-
americ ano; seus coment ários, descriti vos e repetiti vos,
não ultrapa ssam porém o nível da divulga ção.
Assim, a influên cia de Lautré amont sobre a li-
teratur a frances a do fim do século foi pratica mente nula,
como bem mostra o testemu nho de Edouar d Dujard in:
\1) Je sais tout, 15 de setembro de 1911, p. !80.
(8) Anatomie de la critique, pp. 19/20.
(9) Enquêtesur l'évo{ution littêraire, dirigida por Jules Huret, Paris, Charpentie
r, 1891..
(10) Mercure de France, 1891, vol. li, p. 66.
{fl)L:Art litÍéraire, ano 3', nova série, n ?s 1·2, janeiro de 1894, p. :30.

28
"Durante todo o período simbolista, não ouvi
pronunciar uma só vez o nome de Lautréamont~ e como
eu não vivia de modo algum isolado, tenho razoes para
crer que ele era tão desconhecido para meus com-
panheiros como para mim.•" 12
Da mesma forma, André Gide, interrogado em 1925
sobre Lautréamont, afirmou: "Sua influência no século
XIX foi nula:."IJ
Entretanto, essas afirmações sao apenas par-
cialmente verdadeiras. Lautréamont não era um autor
influente, até o fim da Primeira Guerra Mundial, mas sua
obra foi, desde o inicio, conhecida e admirada por alguns.
Se Paul v alécy mal· a "conheCÍa -,4 ·• se Má.eterlfnck a consi~
derava ilegível 1 5, Valéry Larbaud era um de seus fer-
vorosos iniciados:
"Os Cantos de Maldoror são um de nossos pequenos
clássicos. Pouco importa que o grande público os ignore e
que os manuais não os mencionem ainda (isso virá um
dia). Basta que para muitos escritores que representam
atualmente a alta tradição francesa, isto é, para os
sucessores do simbolismo, eles tenham sido, no tempo de
informação que precede à aprendizagem, um dos livros
excitadores ( .. .) a obra cuja lição é clara e útil: tudo
dizer e tudo ousar." !6
Foi o mesmo V aléry Larbaud quem fez o primeiro
balanço da crítica de Lautréamont até aquele momento,
exatamente aquele em que terminava historicamente o
século XIX:
"(A crítica) fez pior do que negligenciá-lo. Ela parece
só se ter ocupado dele para aumentar a incerteza e a
obscuridade que cercam sua obra .. " 1 7
Depois desse balanço pessimista da crítica mal-
dororiana imédiatamente posterior à obra, tentaremos
encontrar os pontos comuns desses primeiros comentários
e explicar seu malogro.
Os pontos comuns são os seguintes: reconhecimento
geral do caráter espantoso e original da obra, sem que
nenhum crítico consiga explicar em que consiste essa
originalidade; concordância quase geral sobre a irre-
gularidade formal da obra; algumas desculpas dessa irre-
(12) Opínion. N.? especiíll deLe disque:vert. 1925, p. 97.
(13) Préface, Idem. p. 9!>.
(14) Opinion. Idem. p. 93.
(15) Opinion. Idem. ibidem.
(16) Les poésies d'Isidore Ducasse,La Phalange. fevereiro 1914, p. 148.
(17) Idem.

29
gularidade pela juventude do autor, que teria sido grande
se tivesse vivido mais. . _
Esse quadro apresenta a constante atestaçao de um
desvio da norma, que ora constitui uma qualidade estética
(originalidade), ora um defeito igualmente estético (mau
gosto), e quase sempre um defeito moral (loucura, ima-
turidade). Ele demonstra igualmente um duplo mo-
vimento de atração (fascinio inexplicável) e de recusa
(perigo evidente).
Compreende-se facilmente que, de um modo geral, a
crítica dessa época não estivesse preparada para enfrentar
Maldoror. Nessa crítica podemos discernir três correntes
principais: tradicionalista, impressionista e simbolista.
Vejamos o que Lautréamont representava para cada uma
dessas correntes:
Depois do desastre de 1870, os dirigentes franceses
tinham encorajado uma tendência de volta à tradição, às
raízes clássicas 18. Para esse chauvinismo renascente,
uma obra como os Cantos só poderia parecer deletéria,
por seu irracionalismo e por seu anarquismo. Embora
Lautréamont atacasse, como esses novos racionalistas, a
doença romântica e o decadentismo, seus meios eram
suspeitos demais para que se reconhecesse o lado positivo
de suas posições.
Para o impressionismo critico, a obra de
Lautréamont era mais irritante do que agradável. Funda~
da sobre um gosto pessoal que pressupunha fre-
qüentemente um gosto coletivo, essa crítica encontrava
em Lautréamont poucos motivos de deleite. Os Cantos
não lisonjeiam o leitor, mas irritam-no. E somente um lei-
tor blasé como Rémy de Gourmont poderia encontrar
prazer nesse tipo de tratamento.
As relações de Lautréamont com o simbolismo são
bastante complexas. Como Rimbaud e Verlaine,
Lautréamont era um "poeta maldito", e os poetas maldi-
tos foram os precursores do simbolismo. Mas havia algo
de suspeito, também para os simbolistas, no poeta dos
Cantos: a ironia, que faz desse poeta maldito um critico
da poesia maldita. Além dessa ironia perturbadora, a
obra de Lautréamont não correspondia ao ideal estético
dos simbolistas. Esses nefelibatas não apreciavam o
paroxismo dos Cantos, nem a objetividade especial da
obra.
(18) Cf. Moreau, P. La critique littéraire en France. p. 158: "Depois da crise de 1870, vê-se o tra·
dicionalísmo penetrar urna a uma todas as avenidas da inteligência. Ele converteu até mesmo os
~iletantes".

30
O estetismo do movim.ent o simbolista era . con-
trariado pela falta de respeito pela arte, por parte de um
poeta que trata sua própria obra com ironia, que a
desmonta a cada passo e que pretende atingir .a beleza na
convulsão . O misticism o simbolista não tem qualquer
afinidade com a af'trmação de· Lautréam ont segundo a:
qual .. a poesia deve ter por objetivo a verdade prática,.
(P.ll). O gosto pela musicalid ade suave, pelas gamas
delicadas, pelas cores pálidas e pelos contornos im..:
precisos, não encontra eco na grandiloq üência sinfanica
dos Cantos. ou na violência expressio nista de seus qua-
dros. Há pois uma falta completa de empatia entre o
simbolism o e a obra de Lautréam ont, entre a poesia
lânguida e casta de um Samain e o erotismo sa-
domasoqu ista dos Cantos. entre a combativi dade de
Maldoror e o derrotism o de um Laforgue.
Lautréam ont não podia pois ser compreen dido nem
pelos continuad ores da tradição clássica, . nem pelos
críticos de impressão , nem pelos decadenti stas, muito
linfáticos para apreciar um· poeta da revolta ativa. En-
quanto a limitação da critica de gosto é a imprecisã o de
seus critérios, ao mesmo tempo subjetivos e guiados por·
padrões estéticos mstitucion alizados, a fraqueza da critica
de .. escola" (como a crítica simbolista ) consiste em se
tratar de uma crítica baseada ·num programa estético,
portanto forçosame nte sectária e normativa .
Mas é preciso ver, na atitude hostil ou tácita da
critica do século XIX, mais do que a simples impotênci a:
é preciso reconhece r nela algo de deliberad o, um desejo de
ocultamen to e de exclusão.
A critica desse período é dirigida por critérios.
racionalis tas, estéticos ou éticos. Uma grande trindade
preside à formação do ~osto: a Razão, o Bem e a Beleza.
Mais precisame nte: o julgamen to da Beleza decorre dos
preceitos da Razão e do Bem.
Veremos, nos capítulos seguintes, que esses critérios
de julgamen to estético, enraizado s no classicism o e em .
pleno vigor no século XIX, apresenta m uma enorme
resistência e permanec em subjacent es em várias críticas
mais recentes.
Veremos igualment e que o apelo a cada uma das
entidades dessa grande trindade, acarreta fre-
qüenteme nte a invocação das duas outras. A obra de
Lautréam ont será julgada alternada mente ou ao mesmo
tempo como irracional , moralmen te nociva e es-
teticamen te inaceitáve l.
31
A CRÍTICA DA RAZÃO IMPURA

··uma lógica existe para a poesia. Não é a mesma que


a da jilosqfia"' (P. l!J.

"O que me espanta é a 16gica excessiva de


Lautréamont" 1.
'·•·sente-se, à medida que se acaba a leitura do
volume, que a consciência foge, foge . . ." 2
Esses dois julgamentos contradit6rios e fre-
qüentemente repetidos, sob outras formas, acerca de
Lautréamont, colocam o problema da razão ~ da desrazão
em literatura. Ducasse seria extraordinariamente lúcido
ou simplesmente louco? ·
01 UJYQ;!RETTI. Giuseppe. Le secret de Lautréamont. N ? especialdeLedisque vert.192S,p. 63:
(2) GOURMONT, Rémy de. O.C., p. 17.

33
Os priméiros ciiticos do poeta escolheram a hipótese
da loucura. Léon Bloy foi o grande responsável pela di-
vulgação dessa hipótese; mas, no momento em que a di~
vulgava, o critico parecia referir-se a uma informação já
corrente:
"O autor morreu num hospício, e é tudo o que se sa-
be dele" 3•
Dois partidos se formaram imediatame nte, um pela
lucidez e outro pela loucura, e ambos continuam bem vi-
vos até nossos dias.
As relações que os Cantos mantêm com o mundo
·"real" e com as obras literárias anteriores, sua sintaxe e
sua retórica, s~o à primeira vista (e sobretudo para o leitor
tradicionalis ta) pelo menos surpreenden tes. Na verdade,
elas são mais do que surpreçnden tes; são assustadoras
porque _não corresponde m à lógica vigente, considerada
como sa.
E, no entanto, o minimo que se pode dizer é que os
Cantos não são desprovidos de lógica; o próprio poeta
exprime essa exigência lógica em sua ode às matemáticas :
"Havia algo de vago em m,eu espírito, um não sei quê
espesso como a fumaça; mas eu soube escalar reli-
giosamente os degraus que levam a vosso altar, e vós
afastastes esse véu obscuro, como o vento afasta o petrel.
Vós pusestes, em seu lugar. uma frieza excessiva, uma
prudência consumadà e uma lógica implacável" (C.II,
10~ .
A lógica dos Cantos não é entretanto a que o "senso
comum" admite, e que os cânones literários tradicionais
aceitam. Assim, a obra foi vista, desde logo, como um
perigo. Essa lógica "implacável " mas outra foi ime-
diatamente sentida como uma ameaça para aquela que
servia de fundamento à literatura e à sociedade do século
XIX.
Toda ordenação diferente representa um atentado
em potencial contra a organização vigente. Para
neutralizar esse perigo, é preciso encontrar um lugar onde
se possa enquadrá-la sem alterar o sistema. Michel
Foucault, em Folie .et déraison. Histoire de lafo/ie à l'âge
:classique, mostrou bem o mecanismo segundo o qual
,nossa sociedade etiqueta e segrega os loucos. A definição
de loucura é puramente funcional: uma sociedade consi-
dera loucos os que pensam de forma diferente. Cop1o a

{3) Op. cit., p. S.

34
loucura , é desprovida de um discurso próprio, a se-
gregação dos individues que manifestam uma lógica
outra. sempre foi suficiente para salvaguardar a sociedade
e sua lógica. ,
A linguagem- é o lugar de risco para a lógica oficial,
porque ao explorá-la, podeMse desmistificar as falhas de
seu próprio sistema, explorar zonas pré-lógicas ou a-
lógicas onde são postos em questão o homem e a socie-
dade:
"Do interior da linguagem experimentada e per-
corrida como linguagem, no jogo de suas possibilidades
levadas a seu ponto extremo, o que se anuncia é que o
homem está acabado, e que, chegado ao cume de toda
linguagem possivel, não é à sua própria profundeza que
ele chega mas à beira daquilo que o limita: nessa região
onde vaga a morte, onde o pensamento se extingue, onde
a promessa da origem recua indefinidamente". 4
Eis por que a linguagem é um terreno par-
ticularmente vigiado pela lógica oficial. Eis por que os
escritores "loucos" são particularmente temíveis. Quando
essa lógica outra se acha escrita e publicada, não se pode
mantê-la de lado tão facilmente como se faz com a dos
al.ienados.
Em nossa spciedade, a loucura é fundamentalmente
um "desvio" de linguagem: ,
"Loucura cuja definição, · em razão do dominio
exercido pela lingüística nas 'ciências humanas', na psi-
quiatria em particular, parece consistir, cada vez mais,
num desvio de linguagem, portanto numa diferença com
relação a uma outra linguagem (ideal) dita normal.
Enquanto não formos capazes de estabelecer ou de aceitar
uma teoria satisfatória do texto e de sua produção, será
em última instância o fato de um texto pertencer a tal ou
tal instituição estético-literária que permitirá a decisão
sobre sua 'normalidade'. Bastará, por exemplo, que um
texto escape, à instituição estético-literária, ou não a
reconheça, para que ele seja imediatamente suspeito de
'delirante'''s.
A definição de razão é igualmente funcional: é aquilo
sobre o que se apóia o sistema social. Embora se fale, mais
freqüentemente, de razão num plano ético ou estético, o
alicerce econômico da noção é facilmente perceptível.
(4) FOUCAULT. M'ichel. Les mots et les choses, Une archéoiogie des sciences humaines, pp.
394-:395.
($) BANDRY, Jean-Louis. In: Tlréorit• d'•·nsemble, p. 158.

35
Julien Gracq, em seu prefácio aos Cantos, m~stra as rela-
ções entre a valorização da razão, em literatura, e a as-
censão da burguesia. Não é por pura coincidência que "os
'livros de razão' designaram, na época alta, in-
diferentemente uma antologia de provérbios ou um estado
de caixa" 6 •
Se consultarmos o verbete razão em qualquer
dicionário, notaremos essa confusão significativa entre as
diferentes acepções da palavra, ora espirituais ou morais,
ora econômicas. No Pequeno Dicionflrio Brasileiro de
Lí11gua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Hollanda
Ferreira, encontramos:
"Razão, s.f. Faculdade espiritual própria do homem e
pela qual ele chega à concepção de idéias universais como
sejam as de unidade, de identidade, de causa, de substância;
faculdade de conhecer; bom senso; justiça; direito; a lei moral;
causa, motivo; prova por argumento; conhecimento; notícias;
participação; porcentagem; relação entre grandezas da mesma
espécie; conta corrente; conta; razão de Estado: motivo
baseado no interesse público; etc.''
E no Petit Larousse:
"Razão social, nome adotado por uma sociedade comer-
cial para assinar a correspondência, os títulos comerciais, em
resumo, para fazer as atas que comportam o ato de associação.''
Que pode fazer a sociedade para salvaguardar seus
"atos de associação" contra a ameaça dos .. alienados"
providos de um discurso, os escritores "loucos':? Em
certos casos, basta a censura moral para isolar essa célula
degenerada e degeneradora: e essa censura foi a primeira
a pesar sobre a obra de Lautréamont, candidato natural à
condenação da Sexta Câmara do Segundo Império, como
bem dissera Poulet-Malassis. Violar os tabus morais (e
mais especificamente sexuais) de uma sociedade, é dar
provas evidentes de desrazão. A experiência de Sade é a
esse respeito particularmente esclarecedora, e mesmo
exemplar. . .
Mas no caso de Lautréamont, classificar a obra como
atentatória à moral, à religião e aos bons costumes, re-
velou-se insuficiente. Muitos outros tinham, como ele,
exaltado o Mal e ofendido a Deus. Mas o que tornava essa
obra mais perturbadora do que as outras era o fato de que
sua desrazão não se manifestava apenas nos temas, mas
também e sobretudo no seu discurso, que escapava às re-
gras da razão literária.
(ó) o,c.. p. 69.

36
A "razão literária", no fim do século passado, nao
era outra coisa senão o respeito às normas de um código ·
estético estabelecido. Esse código provinha. diretamente
do racionà1ismo cartesiano clássico, que o romantismo·
francês não abalou, já que ele só foi inovador nos temas e,
formalmente, respeitou as regras da estética anterior
(salvo alguns "loucos", precisamente, como Nerval). :f!:
ainda Julien Gracq quem nos diz que o drama da li-
teratura francesa, há três séculos, é o "irracional infeliz"
do "irracional envergonhado" 7 • .
A razão do código clássico provém do fun-
cionamento de um conjunto de convenções, segundo re-
gras determinadas. Ora, Lautréamont é particularmente
incomodativo, porque ele adotou as convenções literárias
de seu tempo, mas utilizou-as segundo novas regras, que
alteravam totalmente suas }Unções. :f!: exatamente por isso
que ele desorientou os críticos de sua época e os que, anos
mais tarde, continuavam na linha da tradição.
· Cada setor da atividade social comporta sua polícia,
encarregada de sancionar os desvios. Em literatura, existe
um código de ''gênero" e um código de "estilo" (a re-
tórica, repertório das figuras admissíveis), e o respeito a
esses códigos é assegurado pelos críticos-censores.
Lautréamont colocou desde logo graves problemas
para a classificação genérica:
"" "Poema estranho e desigual onde, numa desordem
furiosa, chocam-se episódios admiráveis e outros fre-
qüentemente confusos" 8 •
Tratar-se-ia de "poemas"? Embora divididos em
estrofes, os Cantos não são metrificados ou rimados, e têm
um conteúdo francamente narrativo. Mas es~narrativa
que se faz e se desfaz pode ser considerada como um
romance? Poema em prosa, talvez. Mas:
"Pode-se aliás perguntar se a poesia pode ainda
subsistir a partir do momento em. que o escrit<?r _:xerce so-
bre sua obra uma tal vontade lúctda' de destrmçao: parece
que o começo do Canto IV, por exemplo, ou as diversas .
estrofes do Canto VI podem dificilmente ser ainda ba-
tizadas de 'poemas em prosa'.
"(. . . ) Essa 'máquitÚl infernal' dirigida-contra a lite-
ratura, inaugura uma forma nova de literatura. O poema
em prosa, ·tal qual Lautréaínont o concebeu, é algo de
(7) a.c.. p. 70.
(8) a.c.. p. 10.

37
inteiramente novo, que tem algo de romance, de invectiva
lírica e de poema épico. Sem dúvida, pode-se dizer que os
Cantos de Maldoror pulverizam os quadros estritos do
poema em prosa, concebido como um gênero literário
bem definido" 9 •
Quanto ao ·estilo, essa obra oferece problemas não
menos espinhosos. Quais são os valores tradicionais do
bom estilo? Clareza, adequação ao referente, or-
namentação submetida às regras da retórica, 'manutenção .
de um tom, etc. Lautréamont é um infrator de todas essas
regras. Mas o problema não é tão simples. Por vezes, ele
se revela um excelente jogador segundo as regras ad-
mitidas; mas assim que o leitor tradicional "toma pé", o
poeta o desconcerta com uma infração. O ponto de
juntura entre o estético e o inestético, a razão e a desrazão
literárias, o lugar onde uma se articula com a outra é di-
ficilmente detectável. A loucura de Lautréamont é in-
termitente, como a de sua personagem Aghone: .
"Ele nota que a loucura é apenas intermitente; o
acesso desapareceu; seu interlocutor responde lo-
gicamente a todas as perguntas" (C. VI, 5).
- Ilustremos esses problemas de estilo por um breve
trecho dos Cantos. extraído da célebre invocação ao mar,
passagem geralmente louvada (com reservas) pela critica
tradicional:
"Velho oceano das vagas de cristal, tu te assemelhas
·proporcionalmente àquelas marcas azuládas que se vêem
sobre as costas machucadas dos musgos; és uma imensa
equimose aplicada sobre o corpo da terra: gosto dessa
comparação" (C. I, 9).
· Dirigir uma invocação ao mar, nada de mais normal
segundo as regras româ:riticas, já que esse movimento li-
terário habituou os leitores a essas conversas com a na-
tureza (mas uma lógica rigorosa não obrigaria a
reconhecer que é "ilógico" falar ao m;;..r como se fosse
uma pessoa?). Continuemos. As "vagàs de cristal" são
aceitáveis porque se trata de um lugar-comum literário,
um clichê. Acolhe-se bem o já visto, embora se louve a ori-
ginalidade. Anestesiado por esse clichê, o leitor aceita
bem a primeira comparação, apesar da precisão insólita
fornecida pelo advérbio "proporcionalmente". Mas a me-
táfora seguinte, de referente patológico ("uma imensa
equimose") desagrada ao "bom gosto", primo irmão do
(9) BERNARD. Suz.anne._.Le pm!me en prose (De Baudelairejusqu'!a nosjours), pp. 242/2<'

38
"bom senso". E o que é definitivamente inaceitável é a
intervenção do poeta para julgar sua própria comparação;
essa intervenção falseia todas as relações, introduz uma
nota desrespeitosa e irônica com relação às regras do jogo.
' Toda essa estrofe dos C~ntos é construída sobre a
oscilação entre o admissível e o inadmissível, passando do
original (valor estético) ao extravagante (defeito estético),
do sensato (lógico) ao insensato (a-lógico), evidenciando a
imprecisão das categorias clássicas. Até que ponto o
artista pode dar rédeas à sua imaginação sem ultrapassar
os limites do racional?
O crítico tradicional, racionalista, encontra grandes
dificuldades no julgamento do estilo de Lautréamont. O
original é admissível e mesmo louvável, contanto que ele
não se afaste muito do já visto, isto é, na medida em que
ele não é muito original. Procura-se a originalidade, mas a
regra é dada pelo "bom senso" e pelo "bom gosto", e o
bom senso e o bom gosto é o que se encontra nos clássicos.
Um impasse exemplar:
"Lendo o estilo caótico do conde d~ Lautréamont,
por exemplo, um homem de gosto verá hnediatamente o
que produz um pensamento do qual a reflexão está
ausente e que é levado por um vento de loucura; ele no-
tará que as frases não são ligadas entre si por aquele elo
lógico e sólido que se encontra em todos os grandes
clássicos" 10 •
Diante desse impasse, a crítica tradicional pode rea-
gir de dois modos: negar totalmente o valor da obra-
como fizeram Maeterlinck, René Lalou 11 e outros; ou
aceitá-la parcialmente, considerando-a "desigual", isto é,
exaltar as partes que se conformam às normas literárias
tradicionais e condenar as outras. Esse julgamento de
"desigualdade" acompanha, em geral, a tese da loucura,
ou a que atribui à juventude do escritor e à sua falta de
habilidade as passagens não-ortodoxas. Este foi o
caminho escolhido por L. Genonceaux, Léon Bloy e
Albert Thibaudet 1 2
Os espíritos- cartesianos,· diante dos Cantos, caíram
em estado de perplexidade: não se pode opor argumentos
(10) DUVERNOIS, Henri Op. cit.. p. 180. . .
{ll) Histain• de la littí!rature.franç/'lfse contcrnporaine. p. 173: "'Duvida-se mesmo de que ele
mereça o elogio com que tempera a critica de seu herói: '*Teu espírito está tão doente ... u
(12) Opinion. Le disque vert, 1925, p. 90: "Lautréamont não é certamente um de meus
autores de cabeceira e persisto em acreditar que há no seu caso um elemento de loucura (mas ele
tem) uma força de visão e de expressão reais. uma coragem em ser ele mesmo, em se querer nu.
que é preciso admirar em qualquer lugar onde se encontre ...

39
aos de Lautréa mont, simples mente porque- .. os seus se
articula m segund o outras regras, segund o outra lógica.
Segund o a lógica clássica , não só é imposs ível acom-
panhar o desenvo lviment o de suas idéias mas também , e
sobretu do, não se chega a pegar o tom do poeta: não se
sabe disting uir o sério do irônico . Então, se o critico
admira as passage ns "inspir adas", segund o os cânone s
tradicio nais, será ridicula rizado pelas passage ns irônica s,
juntam ente coin aquilo que o poeta torna irrisóri o, isto é,
suas própria s metáfo ras e compar ações.
Assini, os primeir os leitores dos Cantos (e o que é
mais grave, outros leitores mais próxim os de nós no
tempo) sentiram -se ludibri ados, "cretin izados" , e alguns
reagira m com o mau humor do jogado r engana do. Esses
leitores , que queriam entrar no jogo de Maldor or segund o
suas própria s regras, desemb ocavam num ir"pass e: ou
esse jogo tinha algum sentido , e não o compre ender era
encontr ar-se em situaçã o de flagran te inferior idade, ou
era preciso decidir que esse jogo não tinha sentido algum.
A falta de sentido raciona l, numa socieda de raciona lista,
é a loucura .
O diagnós tico de loucura , basead o em sintom as de
anorma lidade estética , encont ra natural mente seu luga1
sob uma etiquet a posta em voga pelos românt icos: a eti-
queta de "gênio ". "Gênio " e "louco " são duas noções que
a burgue sia associa natural mente. Classif icar um autor
como "gênio " é muito cômodo para a critica tradicio nal
já que, pronun ciada essa palavra mágica , dispens am-se
outras explica ções. Por outro lado, essa designa ção é mui-
to cômod a para a burgue sta, já que ela é ao mesmo tempo
glorios a e isolante . O gênio é a exceção , suas loucura s se
situam à margem do sistema , não o alteram :
"É preciso conclui r por aquilo que se chama uma
loucura lúcida, e para o conjun to dos Cantos de Mal-
doror, por uma loucura que se aproxim a das fronteir as do
gênio e, p0r vezes, insolen te e francam ente, as ultra-
passa" 13 •
Nesse julgam ento de Rémy de Gourm ont, vemos bem
que o gênio é natural mente associa do à doença , que se
trata de um desvio cujo extrem o é a loucura . Existe uma
grande coerênc ia entre o .julgam ento da razão, em li-
teratur a e o julgam ento da razão. na socieda de burgue sa.
A loucura , em literatu ra, é tudo o que se afasta das
(13) La littérature Maldoror. Mercure de France, fevereiro de 1891. p. 102.

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normas literárias tradicionais, assim como a loucura é
aquilo que ameaça o .equilíbrio da sociedade. O diag-
nóstico da loucura é uma medida sanitária, uma -em-
presa de erradicação, um meio de afastar o perigo de
contágio:
"Quanto ao perigo de contágio, não posso acreditar
que ele exista. I:: um alienado que fala, o mais deplorável,
o mais lancinante dos alienados e a imensa píedade
mesclada de indizível horror que ele inspira deve ser, para
a razão, o mais eficaz dos profiláticos'' 14 •
Acreditou-se por longo tempo numa racionalidade
natural da linguagem, ao mesmo tempo apoio e mani-
festação de uma racionalidade natural do homem. Essa
lógica natural, de direito e de fato, seria também o
fundamento da ordem social. Ameaçando a lógica da
linguagem, explorando pelo contrário sua irracionali-
dade, Lautréamont punha em risco as instituições sociais
cujo modelo é a linguagem. E os criticos-censores não se
enganam quando desconfiam que as infrações contra a
linguagem são perigosas para a ordem social.
É preciso ter a lucidez superior de um Antonin
Artaud para desmascarar o jogo suspeito do crítico-
censor:
"Mas por que imunda puta de imbecilidade enraiza-
da ouvi dizer um dia que se o conde de Lautréamont não
tivesse morrido aos vinte e quatro anos, no começo de sua
existência, ele também teria sido internado, como Nie-
tzsche, Van Gogh e o pobre Gérard de Nerval? E isso
porque, se a atitude de Maldoror é aceitável num livro, ela
só o é depois da morte do poeta e cem anos depois,
quando os explosivos adstringentes do coração víride do ·
poeta tiveram tempo para se acalmar. Pois. em vida, eles
são fortes demais. Foi assim que fecharam a boca de
Baudelaire, de Edgar Poe, de Gérard de Nerval e do conde
impensável de Lautréamont. Porque tiveram medo que
sua poesia saísse dos livros e derrubasse a realidade.
( . . . ) E fecharam a boca do jovem Lautréamont para
acabar imediatamente com aquela agressividade afluente
de um coração que a vida cotidiana catastroficamente
indispõe, e que teria acabado por levar a toda parte· a
cinica e insólita cautela de seus incansáveis
dilaceramentos" 15.
(14) BLOY. Léon. Op. cir .. p. 6.
(15) Lettre sur Lautréamont. Cahiers du Sud, n ~ 275, p. 8.

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