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José De Nicola
Lucas De Nicola
PAULICEIA
DESVAIRADA
Rio de Janeiro, 1ª edição, 2021
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Todos os direitos reservados
Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
A553
Andrade, Mario de
CDD 869.1
PAULICEIA
DESVAIRADA
sumário
INTRODUÇÃO
O desvairismo contra o leito de Procusto ............. 10
PAULICEIA DESVAIRADA...................................... 33
“A Mário de Andrade”............................................ 35
Prefácio Interessantíssimo..................................... 36
Inspiração................................................................ 68
O trovador............................................................... 69
Os cortejos............................................................... 70
A escalada................................................................ 71
Rua de São Bento..................................................... 73
O rebanho................................................................ 75
Tietê......................................................................... 77
Paisagem nº 1........................................................... 78
Ode ao burguês........................................................ 79
Tristura.................................................................... 81
Domingo.................................................................. 82
O domador.............................................................. 84
Anhangabaú............................................................. 86
A caçada................................................................... 87
Noturno.................................................................... 90
Paisagem nº 2........................................................... 93
Tu............................................................................. 95
Paisagem nº 3........................................................... 97
Colloque sentimental.............................................. 98
Religião...................................................................100
Paisagem nº 4..........................................................102
As enfibraturas do Ipiranga...................................104
10
história do bandido mitológico. Diz o seguinte: “Não
acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter
comoções a um leito de Procusto para que obtenham, em
ritmo convencional, número convencional de sílabas”.
Nesse trecho, em que há uma patente crítica aos modelos
poéticos parnasianos então em voga, já vem expresso
muito da proposta poética desse livro fundamental
para o entendimento da primeira fase do modernismo
brasileiro: a poesia surge da comoção, do sentimento de
seu autor, logo, deve ser livre e, a cada ocorrência, única,
diferente. Nessa proposta, portanto, não fazia mais
sentido a excessiva preocupação em adequar a comoção
a um modelo pré-estabelecido, baseado em métrica
rigorosa, em rimas fixas e na construção do poema a
partir de um padrão formal praticamente inabalável. Em
outras palavras, os poetas não podiam mais se comportar
como o mitológico bandido, submetendo violentamente
suas emoções à dimensão de um rígido metro de ferro.
O mundo, a vida e a efervescente Pauliceia do
começo do século XX exigiam um novo fazer poético.
◊◊◊
11
um livro: “Já, primeiro livro, usei indiferentemente, sem
obrigação de retorno periódico, os diversos metros pares.
Agora liberto-me também desse preconceito. Adquiro
outros. Razão para que me insultem?” O primeiro livro
de Mário fora publicado em meados de 1917, sob o
pseudônimo de Mário Sobral; trata-se de um pequeno
volume intitulado Há uma gota de sangue em cada poema,
com um prefácio em forma de soneto e onze poemas
que apresentam tímidas inovações estéticas. O livro
contava com projeto gráfico do próprio autor, tipografia
de aspecto art nouveau e, acompanhando o título de
cada poema, o desenho de uma gota de sangue. O nome
da obra, assim, expressava tanto o sentimento de pesar
expresso nos versos quanto a própria materialidade
da publicação. É um livro bastante peculiar e que,
tematicamente, parece algo deslocado de seu meio –
Manuel Bandeira, em um juízo ambíguo, diria que a
obra era de um “ruim esquisito”.1
Na abertura do volume, os leitores podiam encon-
trar uma breve biografia do autor, na qual este afirma ter
nascido “acompanhado daquela estragosa sensibilidade
que deprime os seres e prejudica as existências, medroso
e humilde. E para a publicação destes poemas, sentiu-se
1
Manuel Bandeira. “Itinerário de Pasárgada”. In: Poesia completa e prosa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. p. 62.
12
mais medroso e mais humilde que ao nascer”.2 É impor-
tante comentar que os poemas do livro tinham sido escri-
tos por Mário sob o impacto da perda de seu irmão mais
novo, Renato, falecido precocemente após um banal
acidente enquanto jogava bola; além disso, tratavam das
mazelas da Primeira Guerra Mundial, com um evidente
propósito pacifista. Tanto era pacifista que, ao final do
volume o autor precisou anexar uma “explicação”, di-
zendo que os poemas tinham sido compostos em abril
de 1917, poucos dias antes de o Brasil entrar na guer-
ra, após um submarino alemão ter afundado um navio
brasileiro e um nacionalismo bélico ter tomado conta do
país. Diante do exacerbado ufanismo que se fazia sentir,
aqueles versos poderiam soar equívocos, até mesmo para
o seu próprio autor.
Mas foi justamente por esse clima de guerra que Mário
acabou conhecendo Oswald de Andrade, um encontro
fundamental para a trajetória do modernismo brasileiro.
Em novembro de 1917, Oswald, como ele mesmo narra
em suas memória, trabalhando como repórter para o
Jornal do Comércio, fora escalado para cobrir uma palestra
do Secretário da Justiça e Segurança Pública do Estado
de São Paulo, Elói Chaves, no Conservatório Dramático
2
Mário Sobral (Mário de Andrade). Há uma gota de sangue em cada poema.
São Paulo: Pocai & Companhia, 1917. p. 3.
13
e Musical de São Paulo. O discurso de recepção foi
feito por Mário – que à época iniciava a sua longa
carreira como professor da instituição. O jovem “alto,
mulato, de dentuça aberta e de óculos” fez um discurso
repleto de referências à natureza do Brasil, o que soou
“assombroso” aos ouvidos de Oswald. Impressionado, o
repórter correu para o palco e chegou a se altercar com
outros jornalistas para obter o original da fala; queria
publicá-la integramente no jornal.3
◊◊◊
3
Oswald de Andrade. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe.
São Paulo: Globo; Secretaria de Estado da Cultura, 1990. p.109.
14
uma série de mudanças e a realizar um aprofundamento
de pesquisas. Uma etapa fundamental nesse processo
ocorreu entre dezembro de 1917 e janeiro de 1918,
quando Anita Malfatti realizou, em um salão da rua
Líbero Badaró, a sua “Exposição de Pintura Moderna”.
Dentre os principais incentivadores da exposição, estava
Di Cavalcanti, jovem desenhista carioca então vivendo
em São Paulo. A pintora, que se tornaria grande amiga de
Mário – este, um dia em que visitou a exposição, chegou
a lhe oferecer “um soneto de forma parnasianíssima”
inspirado pela tela O homem amarelo4 – , tinha passado
temporadas na Alemanha e nos Estados Unidos, e já
realizara, anos antes, uma mostra em São Paulo, sem ter
causado grande alvoroço. Dessa feita, suas obras de viés
expressionista chamariam a atenção do público, mas não
pelos motivos mais louváveis.
No final de dezembro de 1917, Monteiro Lobato,
que fazia as vias de crítico de arte, publicou no jornal
O Estado de S. Paulo um duro texto no qual desaprovava
aquilo que via como excessos da arte moderna; em sua
opinião, tais descomedimentos só podiam ser frutos da
paranoia ou da mistificação. As reações ao polêmico
texto e ao escândalo que gerou acabariam por consolidar
o primeiro núcleo modernista da cidade, que seria
engrossado, nos anos seguintes, por intelectuais como
4
Mário de Andrade. O movimento modernista. Rio de Janeiro: Casa do
Estudante do Brasil, 1942. p. 17.
15
Rubens Borba de Moraes e Sérgio Millet, e artistas como
Regina Gomide e John Graz, todos chegados da Suíça.
Também seria fundamental a participação de Menotti
del Picchia, autor de um livro poético de grande sucesso,
Juca Mulato, publicado em 1917, e que escreveria crônicas,
sob o pseudônimo de Hélios, no Correio Paulistano, fazendo
de sua coluna uma tribuna dos jovens artistas e escritores
então tratados como “futuristas”.
Outro momento fundamental na trajetória dos
modernistas de São Paulo, e que se ligaria à de Pauliceia
desvairada, foi a entrada de Victor Brecheret no grupo.
Nascido na Itália, mas tendo vivido na capital paulista
quando criança, aos cuidados de uma tia materna,
Brecheret tinha feito seus primeiros estudos artísticos no
Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Entre 1913 e 1919,
o jovem e promissor artista, contando com limitados
recursos financeiros, tinha embarcado de volta para a
Itália, a fim de se aprimorar nas suas pesquisas estéticas.
Quando voltou para o Brasil, apesar da auspiciosa
recepção feita pela imprensa paulista, Brecheret não
conseguiu arranjar um bom trabalho; somente tinha
conseguido, junto ao conhecido engenheiro Ramos de
Azevedo, o diretor do Liceu de Artes e Ofícios, alguns
bicos e uma sala no Palácio da Indústrias, localizado no
Parque D. Pedro II, onde pode estabelecer o seu ateliê.
Foi nessa sala um tanto obscura que Brecheret e sua obra
seriam “descobertos” pelos modernistas.
16
Se a exposição de Anita fora o embrião para o surgi-
mento do grupo modernista de São Paulo, a admiração
por Brecheret, e uma consequente campanha em favor
de suas obras, foi o elemento que consolidou o grupo.
Nesse sentido, merece destaque a defesa que os moder-
nistas fizeram, em meados de 1920, da construção de
um Monumento às Bandeiras, projetado por Brecheret, as-
sim como o destaque que o escultor recebeu nas páginas
da revista Papel e Tinta, a primeira publicação organizada
pelo grupo. Mário de Andrade, que foi um dos principais
divulgadores da arte do escultor, sempre demonstrou
predileção por uma peça específica, a Cabeça de Cristo. A
admiração era tamanha que encomendou ao artista uma
versão da escultura passada em bronze, para o que teve
de contrair uma dívida junto a seu irmão mais velho, o
advogado Carlos, que lhe emprestou parte do dinheiro
da compra.
Romulo Fialdini/Tempo Composto/
Instituto de Estudos Brasileiros da
USP, São Paulo, SP
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Na famosa conferência que Mário realizaria em
abril de 1942, no salão do palácio do Itamaraty, no Rio
de Janeiro, quando a Semana de Arte Moderna com-
pletava vinte anos, o escritor relacionou o surgimento
dos poemas de Pauliceia desvairada com a Cabeça de Cristo.
Segundo explicou em sua fala, em dezembro de 1920,
andava enrolado com a realização dos exames finais no
Conservatório e com aulas particulares de reforço. Sofria
ainda certos apertos econômicos, decorrência de seus
gastos excessivos com livros, revistas e obras de arte. O
pior de tudo era a falta de inspiração poética, algo que
vinha ocorrendo ao longo dos últimos meses. Somente
conseguia produzir, inspirado sobretudo na poética ur-
bana do belga Émile Verhaeren, alguns poucos versos,
coisas parnasianas e simbolistas sem muito valor. Vivia
em angústia, “numa insuficiência feroz”; sentia-se “inso-
frido”, como se a poesia tivesse acabado em si.
Foi numa dessas “insofridas” noites de verão, no
entanto, que a poesia rebentou. Mário teria chegado
em sua casa, um sobrado no largo do Paissandu, onde
morava com a família, radiante e satisfeito: trazia con-
sigo a sua nova aquisição, a Cabeça de Cristo passada em
bronze. A escultura representava um Cristo de pescoço
alongado, com expressão de dor e, acinte dos acintes,
duas trancinhas que caíam pelas têmporas e acompa-
nhavam o comprido pescoço. Diante da obra, a reação
dos parentes foi a pior possível, achavam que aquilo era
18
um disparate, praticamente um pecado, resultado de de-
masiada leitura e do descabido interesse do jovem por
questões artísticas modernas.
Por sua vez, Mário também estava possesso, incon-
formado com a incompreensão da parentada, com seus
juízos artísticos tão tacanhos. Subiu para seu quarto com
vontade de “botar uma bomba no centro do mundo”. A
fim de se acalmar, foi para a sacada observar o movimen-
to do largo do Paissandu e da avenida São João, olhar as
luzes da cidade e escutar os seus ruídos. Foi então que,
sem qualquer premeditação, sentiu um impulso que o le-
vou até a escrivaninha, pegou caneta e papel, e escreveu
duas palavras: Pauliceia desvairada, “o título em que jamais
pensara”. A partir daí, irrompeu o “canto bárbaro, duas
vezes maior talvez do que isso que o trabalho de arte deu
num livro”.5
É difícil saber se os eventos ocorreram realmente
dessa forma. Em outras ocasiões, sobretudo em cartas
nas quais Mário comentou o surgimento do livro, ele não
chegou a falar na escultura de Brecheret. O que importa,
entretanto, é que a noção de uma poesia que irrompe
de forma quase incontrolável sempre esteve presente.
As coisas tinham se dado como um estouro de boiada,
segundo a imagem que usou em missiva enviada a Carlos
Drummond de Andrade, em 18 de fevereiro de 1925.
5
Mário de Andrade. O movimento modernista. Op. cit. p. 21-22.
19
Foi assim que o poeta se libertou definitivamente
da cama de Procusto na qual ainda parecia preso e deu
vazão a um “canto bárbaro”, a uma poesia livre na
forma, capaz de dar sentido aos seus sentimentos e à
comoção que a Pauliceia lhe despertava.
◊◊◊
20