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Alvaro Moreyra: poesia e teatro no modernismo

Duas obras de Alvaro Moreyra foram republicadas pelo Instituto Estadual do


Livro do Rio Grande do Sul, em 1989: Circo e Adão, Eva e Outros Membros da
Família. O escritor, hoje um tanto esquecido no mundo das letras, desfrutou de
enorme prestígio em nosso meio artístico, notabilizando-se como poeta, cronista e
homem de teatro. Nascido em Porto Alegre, em 1888, e morto no Rio de Janeiro, em
1964, sua iniciação literária ocorreu em plena Belle Époque, sob o influxo das
correntes estéticas vigentes no final do século XIX, como aliás confessa numa
passagem de As Amargas, Não..., livro de "lembranças" publicado em 1954: "Minha
educação sentimental partiu toda do século XIX, daquele fim do século XIX, com
naturalismo, parnasianismo, simbolismo e ainda romântico.

A verdade, porém, é que, dentre os movimentos literários acima


mencionados, o simbolismo foi aquele que falou mais alto à sensibilidade do poeta,
um admirador confesso de Jules Laforgue e Antonio Nobre. Os versos de seu livro
de estreia Degenerada (1909), bem como os de Casa Desmoronada (1909), Elegia
da Bruma (1910), Legenda da Luz e da Vida (1911) e Lenda das Rosas (1916) estão
impregnados de meios-tons crepusculares, de uma atmosfera melancólica e de um
intimismo cercado de tristeza que caracterizam perfeitamente o penumbrismo, uma
tendência poética nascida no interior do simbolismo.

Com a revolução modernista de 1922, Alvaro Moreyra mostrou-se sensível


aos novos postulados estéticos e aproximou-se de escritores como Mário de
Andrade, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade. No Rio de Janeiro, onde viveu a
partir de 1910, sua casa tornou-se um dos locais mais frequentados por artistas
modernistas, aos quais abriu as portas da revista Para Todos, da qual era diretor.
Desse contato resultaram também algumas colaborações para a revista Estética e
para a Revista da Antropofagia.

Em várias passagens de As Amargas, Não... fica patente o entusiasmo de


Alvaro Moreyra com o modernismo - "O chamado modernismo no Brasil foi o
encontro com o Brasil. Éramos brasileiros por fora. Ficamos brasileiros também por
dentro". Esse encontro com o nacional marca profundamente os poemas modernistas
reunidos em Circo, livro que apareceu em 1929. São evidentes as afinidades do es-
critor com o Oswald de Andrade antropófago, sobretudo nos momentos em que
recupera poeticamente os nossos tempos primitivos ou passagens da nossa história.
Bons exemplos da busca de brasilidade efetuada por Alvaro Moreyra são poemas
como "Visita de S. Tomé", "Brasil Fidalgo", "História" e "Estilização".

Se a preocupação com o nacional se desdobra em vários poemas, seja através


da utilização do folclore como matéria de poesia, seja pelo recurso à paródia de
motivos românticos - como em "Modinha", "A Minha Terra" e "A Mangueira e o
Sabiá" -, há que se destacar também outras marcas modernistas nesse livro de
Alvaro Moreyra: a liberdade da forrna poética e o tratamento lírico de temas
extraídos do cotidiano e da infância pessoal. Sem nenhum favor, Circo revela um
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poeta competente, integrado no seu tempo, mas que infelizmente não consolidou a
sua obra poética nos anos seguintes, limitando-se a publicar apenas mais um livro,
Caixinha dos Três Segredos, em 1933. Por essa razão, talvez, nas nossas histórias
literárias seu nome seja sempre lembrado entre os poetas simbolistas e poucas vezes
entre os modernistas.

II

Já como homem de teatro, Alvaro Moreyra desempenhou um papel


relativamente importante nos anos que se seguiram à Semana de Arte Moderna.
Como se sabe, o movimento modernista não renovou o teatro. Dificuldades de toda
ordem impediram que tivéssemos já na década de 20 um grupo de dramaturgos e
encenadores afinados com as transformações que aconteciam na poesia e na prosa. É
claro que os escritores modernistas reivindicavam a modernização do teatro, como
comprovam as críticas de Antonio de Ancântara Machado publicadas no Diário
Nacional, na Revista do Brasil, segunda fase, e na revista Terra Roxa e Outras
Terras. Mas o teatro comercial vivia da bilheteria, com as corriqueiras comédias de
costumes que tinham público garantido. Para que o risco de mudança?

É nesse contexto que Alvaro Moreyra escreve Adão, Eva e Outros Membros
da Família, em 1925. Trata-se de uma peça em quatro atos, construída com
linguagem, personagens e problemas que de fato não tinham ainda aparecido na
dramaturgia brasileira. As personagens são desindividualizados: "Um", "Outro",
"Mulher", os principais, dividem a cena com "Redator que Acumula", "Secretário",
"Jovem Poeta" e vários outros. Àntinaturalista, a peça sugere que as personagens são
máscaras ou marionetes - num típico processo de despersonalização expressionista -,
já que no desfecho resignam-se a "morrer": "Cortaram os nossos fios. Tivemos
princípio, meio, fim. Contamos uma história. Fim..."

O enredo é bastante simples. Um mendigo e um ladrão, enriquecidos,


tornam-se homens poderosos na sociedade. "Um", como proprietário de uma
agência de informações, e "Outro" como dono de um jornal. A "Mulher", no
primeiro ato uma viciada em cocaína e nos seguintes uma rica e bem-sucedida atriz,
torna-se amante de "Outro". Mas "Um", traindo o amigo, convence-o a abandoná-la
e a toma para si. No momento do acerto de contas, as duas personagens trocam
insultos, porém logo põem os interesses financeiros acima das questões pessoais.
Sócias, vão fundar mais um jornal.

A rarefação do enredo poderia ser compensada com a criação de personagens


densas, se o objetivo do autor, já expresso no título Adão, Eva... não fosse o de
trabalhar com arquétipos. Como preencher então os quatro atos? Chegamos ao ponto
fraco da peça. Alvaro Moreyra era o que os franceses chamam de phraseur, isto é,
um homem apaixonado pelo jogo de palavras, pelo trocadilho, pelo dito espirituoso,
pela frase precisa. Desse modo, as suas personagens dialogam o tempo todo sobre
assuntos diversos, poucas vezes relacionados com a trama central. Quer dizer, o
enredo dilui-se e perde consistência, por força de um hábito que o dramaturgo não
hesitou em atribuir à personagem "Um": "Guardei o cacoete da eloquência. Faço
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frases". Eis, para esclarecer melhor o problema, um exemplo desse procedimento:
"Não. Um homem que rouba nunca incomoda um homem que pede. O mendigo é a
paródia inocente do ladrão. O ladrão é um mendigo raivoso. Entre nós não surgirão
rivalidades. O senhor tem coragem, arrisca-se. Eu tenho filosofia, estendo a mão.
Sou mais comodista. O senhor conta, no meio dos ancestrais, Alexandre, Napoleão.
Eu descendo humildemente de São Francisco de Assis".

Alvaro Moreyra utilizou a sua habilidade com exagero e transformou Adão,


Eva e Outros Membros da Família num texto que não evita o desperdício, a
redundância e a banalidade. Privilegiando as palavras, não a ação dramática,
procurou, no entanto, ser fiel a um tipo de teatro que tinha em mente e que está
expresso nesta fala do "Escritor": Muito difícil... Teatro é negócio. Precisa de lucros.
Para que arruinar os empresários? Eu queria um teatro que fizesse sorrir, mas que
fizesse pensar... Um teatro com reticências... O último ato não seria o último ato...
Continuaria na sensibilidade e na inteligência dos espectadores.

A estreia da peça ocorreu no Rio de Janeiro, a 10 de novembro de 1927, no


Cassino Beira Mar, junto ao Passeio Público. A montagem foi feita pelo Teatro de
Brinquedo, grupo amador idealizado pelo próprio Alvaro Moreyra, que contou com
a colaboração de sua mulher, a atriz e declamadora Eugenia Moreyra, Joracy
Camargo, Di Cavalcanti, Brutus Pedreira, Alvarus e vários outros.

Numa espécie de "manifesto" que publicou na revista Para Todos, a 3 de


setembro de 1927, Alvaro Moreyra explicou que o grupo pretendia divulgar o
repertório de vanguarda do mundo todo, representar autores brasileiros jovens e
modernos e realizar um teatro de elite para a elite, isto é, para as pessoas que haviam
deixado de frequentar o anacrônico teatro comercial. Ainda que tais objetivos não
tenham sido cumpridos - o sucesso de Adão, Eva e Outros Membros da Família não
impediu o acúmulo de dívidas e o grupo realizou apenas mais uma montagem -,
Alvaro Moreyra merece ser lembrado em nossa história teatral. Sua peça e o Teatro
de Brinquedo são iniciativas louváveis e demonstram, nos anos 20, que os ventos da
renovação modernista atingiram o teatro, mas que também não era fácil quebrar com
a resistência das velhas formas.

FARIA, João Roberto. O teatro na estante. Cotia: Ateliê Editorial, 1998. P. 107-112.

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