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George Sand

(Amandine Lucie Aurore Dupin, baronesa Dudevant 1804-1876)

ELA e ELE
EDITORA CLUBE DO LIVRO LTDA.
Título original: Elle et Lui
Tradução especial para o " Clube do Livro" de
JOSÉ MARIA MACHADO

Nota explicativa de EVANGELISTA PRADO


CLUBE DO LIVRO
SÃO PAULO — BRASIL
1963
NOTA EXPLICATIVA
OS PERSONAGENS INCÓGNITOS
Parece que foi ontem o estupefaciente impacto, causado no mundo por,
apenas, um livro essencialmente literário! Esse livro, que dividiu os centros
intelectuais e populares da Europa e das outras nações em duas partes, era,
tão somente, um romance. Sem fórmulas financeiras, políticas, filosóficas,
nucleares, siderais ou supersônicas, conseguiu, no entanto, o seu autor, o
imortal Gustave Flaubert, abalar os alicerces da chamada opinião pública
mundial. Como se chamava esse livro formidável, que possuía tanta força
assim? Que espécie de livro podia ser? Tinha um nome simples, no entanto,
e era, singelamente, um romance de amor, chamado: "Madame Bovary".
Estamos em Paris e corre o ano de 1857. Logo depois desse palpitante
acontecimento, e exatamente a 1.° de julho de 1858, numa outra capital
européia, em Londres, tão perto da grande cidade parisiense, outro livro
surgia e abalava, também, o mundo daquela época: o de Alfred Russel
Wallace e Charles Darwin, sobre a origem das espécies. Novo impacto
terrífico na opinião pública mundial e novos tremores na consciência dos
homens. Em seguida, em 1859, a célebre George Sand*, retomando o fio
literário de Flaubert e ainda no clima da fermentação intelectual, publica
esta impressionante obra-prima das letras francesas: "Ela e Ele". Em três
anos, tão somente, a Europa sacudia-se nos espantos da psique humana, na
sondagem dos subterrâneos anímicos de cada um, e nas arrojadas teses da
antropologia, que procuravam converter a criatura humana em simples
conseqüência de uma evolução de répteis e batráquios...
* Pseudônimo de Amandine Lucie Aurore Dupin, baronesa Dudevant, famosa escritora
francesa (18041876). (Nota do "Clube do Livro").

O século XIX continuava nos ribombos dos entrechoques e das


convulsões revolucionárias, como fora o século XVIII, quando a Revolução
Francesa levou de roldão as muralhas das masmorras políticas e feudais.
Nos oratórios e nos templos, rezava-se pela salvação de um mundo em
convulsões inéditas.
Embora não haja, aparentemente, nenhum parentesco entre tantos
acontecimentos importantes, o sumo dessas manifestações repousa num
denominador comum: a posse de uma nova concepção de liberdade, em
antagonismo ao que adviera, no desenrolar dos séculos. Fatos e figuras
movem-se ao sopro dos novos ventos. Os homens estão cansados de certas
limitações, mantidas pelos tempos antigos. A era científica e libertária das
condições humanas, que iniciara a sua caminhada em 1789, com a queda da
Bastilha, acende o rastilho das mais estranhas aspirações e conduz os
homens para novos horizontes. Tanto os práticos economistas como os
gênios da arte começam a encarar a vida sem os véus das confinações
anteriores. Já se acentuara, pouco antes, o reatamento com as formas
pagas, através dos mantos aveludados e bordados de ouro da chamada
época renascentista. Havia de viver-se, diziam aqueles homens, no clima
natural da espécie, na posse dos sentidos, na exuberância dos instintos, sem
grades e grilhões.
O clima em que Flaubert e Sand escrevem estas duas obras-primas
confirma o que estamos dizendo. Ema Bovary e Teresa Jacques, as duas
heroínas dos dois romances, encarnam todo o protesto de inúmeras
gerações, que foram esmagadas pelo que certos homens têm de mais abjeto.
E esse clamor humano, que deu às letras universais jóias de incomparável
beleza, só foi possível, no ritmo dos tempos, pela convencional libertação
daquelas amarras, que começa com a revolução cultural da Enciclopédia,
estruturada por Bacon, na Inglaterra, em 1728, e Diderot, na França, em
1781.
Esse movimento do intelecto não se fazia, somente, para orientar os
corações humanos no sentido do aprimoramento individual e social, ou
como um libelo contra as incompreensões, a exemplo de Flaubert e de Sand,
mas era um movimento demolidor, que procurava atingir as muralhas da
Idade-Média, responsáveis pela imersão de muitas gerações sob os véus e
mortalhas, algumas, até, como diziam, antinaturais. E da necessidade desse
novo mundo, que prometia mil prazeres voluptuários e sensoriais, os
homens passaram, não, apenas, a demolir aquelas estruturações antigas,
mas a negar o que poderia haver de transcendente na marcha de uma civili-
zação. Essa liberdade, no entanto, conseguida em nome de tantos símbolos,
ofuscou os homens. Cegou-os. E sem uma luz interior, sem uma diretiva
espiritual, os homens mergulharam na antropologia darwinista e no
realismo literário de Zola, que continuava, no plano das letras, o tanta
demolidor dos novos líderes.
Sem buscarem uma finalidade transcendente, sem a qual tudo é pequeno
e precário, os homens achegaram-se ao existencialismo de Sartre, do seu
"Néant", o "Nada" do após-guerra, em pleno século XX, o século super-
bélico e ultra-sônico — os frutos sazonados e dolorosos de uma civilização
sem temores!
Tais são as fórmulas que esses homens muito práticos e objetivos
oferecem a esta pobre humanidade, assustada, desprotegida e infeliz.
Nestas páginas de intensas emoções, quis a sua autora configurar o
amor de uma mulher excepcional por um homem de gênio, sacrificando-se
até ao limite das possibilidades femininas. Seria Lourenço o grande Alfred
de Musset, ao qual se refere, em seu prefácio, o escritor Jacob Penteado,
quando apresenta ao público brasileiro a obra "Os dois amores", edição do
"Clube do Livro", de março de 1963?
Aquele idílio dessa extraordinária mulher, que caminhava para o altar
dos sacramentos, retratará, totalmente, a vida de Amandine Aurore, a genial
escritora francesa? Ou desejarão estas páginas confirmar as de Flaubert,
na defesa do que as mulheres têm de mais puro e de mais belo, que é a
própria essência do amor? Que personagens se escondem e se ocultam sob
as máscaras dos poemas e das novelas?
Embora não encontremos as mesmas linhas de uma obra como
"Madame Bovary", aqui, estão, nestas famosas páginas, o que mais freme e
palpita em nossos corações: os personagens incógnitos, que não sabemos
como surgem e como se desempenham no palco da nossa vida quotidiana.
Estaremos nós todos incluídos no devotamento de Teresa e nas
encruzilhadas de Lourenço? Ricardo Palmer é um homem ou é um símbolo?
Os personagens que se movem pelos capítulos deste admirável livro são
reais, fictícios, imaginários? Existem nas volutas da arte ou nas lágrimas de
nossos olhos? São criaturas verdadeiras, ou são figurações enevoadas, fruto
dos caprichos da arte e da carpintaria romanesca? Como seremos, vistos
pelos escritores, nós outros, que não somos criações fantásticas, mas
sangramos na legitimidade de nossos sonhos e de nossos anelos? Fica-
remos, realmente, iguais a Lourenço, à Teresa, a Palmer? Ou esses
personagens são meras especulações do intelecto, figurinos das vias e dos
salões, vivendo o minuto emocional que lhes atribui o seu criador literário?
E como serão os verdadeiros personagens, que, incógnitos, sem roupagens
teatrais ou intelectuais, vivem, de fato, em nós mesmos?
Estas perquirições levariam os monólogos e diálogos ao tablado de mil
suposições. O que é, certamente, verdadeiro e autêntico é aquilo que George
Sand pôs em seu romance e que o leitor encontrará ao longo dessas
formosas páginas: a beleza literária, vestindo de flores as espirais de um
coração feminino, amando e chorando, na glória e no sofrimento, que tal é o
destino luminoso e amargo das mulheres e das mães.

EVANGELISTA PRADO
À senhorita Jacques

Minha cara Teresa,


Como você não me permite chamá-la de senhorita, vou dar-lhe
conhecimento de importante novidade no mundo da arte, como diz nosso
amigo Bernardo. Fique sabendo que isto não soa bem, mas o que lhe vou
contar, também, não tem som, nem tom.
Imagine que, ontem, após tê-la aborrecido com a minha visita, ao
regressar, encontrei um lorde britânico... Na verdade, talvez não seja lorde,
mas trata-se, sem dúvida, de um inglês, que me perguntou na sua linguagem
cheia de reticências:
— O senhor é pintor?
— Sou, sim, mylord*.
* Lorde, título dado, na Inglaterra, aos pares do reino e aos membros da
Câmara Alta, aportuguesamento do inglês lord; milorde, nome que se dá aos
lordes, ou pares da Inglaterra, quando se lhes dirige a palavra, adaptação do
inglês mylord. (Nota do " Clube do Livro")

— Pinta também retratos?


— Pinto, sim, mylord.
— Pinta as mãos?
— Sim, mylord e, também, os pés.
— Então, quer fazer o meu retrato?
— Seu retrato?
— Por que não?
Estas palavras foram pronunciadas no tom mais do que amável o que
impediu que ^ eu tomasse o tal indivíduo por um imbecil, tanto mais que ele
é um homem magnífico. É a cabeça de um súdito do imperador Adriano
sobre os ombros de... um inglês. É tipo grego da melhor época, num busto,
vestido com toda a correção, à moda britânica.
— Palavra de honra! — disse-lhe eu, o senhor é um belo modelo, não
há dúvida e eu teria muito prazer e bastante proveito em fazer um estudo de
seu corpo. Mas não posso fazer o seu retrato.
— Por que?
— Porque não pinto retratos.
— Oh!... Será que, na França, é preciso tirar patente desta ou daquela
especialidade, no domínio das artes?
— Não, senhor, mas o público não nos permite acumular... Ele quer
saber no que ê que se apóia a nossa arte, sobretudo quando somos moços.
Se eu tivesse a infelicidade, eu que sou ainda bastante jovem, de fazer um
bom retrato seu, teria grande dificuldade em conseguir êxito na próxima
exposição, em que entrassem outras obras que não fossem retratos. Da
mesma maneira que se eu conseguisse, apenas, fazer um retrato medíocre,
ficaria proibido de tentar fazer outros. Decidiriam que não possuo talento
de retratista, declarariam que eu teria sido um presunçoso em arriscar-me a
tal empresa.
Contei ao inglês outras muitas coisas de que você tem conhecimento, o
que o fez arregalar os olhos e rir bastante. Percebi, claramente, que as
minhas razões lhe inspiraram, apenas, a mais absoluta indiferença.
— Encurtemos razões, — atalhou o inglês — o senhor o que não gosta é
do retrato.
— Como? Diga antes que não me arrisco ainda a fazer retratos, que os
não saberia pintar, visto que ou se trata de uma especialidade que não
admite o exercício de outras ou é uma perfeição c, assim sendo, pelo que se
diz, ê a coroa do talento. Certos pintores, incapazes de compor seja o que
for, podem copiar fielmente e com agrado o seu modelo vivo. Esses têm um
êxito garantido, por muito pouco que saibam apresentar o seu modelo sob o
aspecto mais favorável e por maior destreza que demonstrem cm saber vesti-
lo a seu modo, rigorosamente de acordo com a moda. Mas quando se é
apenas um pobre pintor de mentira, muito moço c muito discutido, como
tenho a honra de ser, não se pode lutar contra os mestres do ofício.
Confesso que nunca estudei, conscienciosamente, as pregas de um traje
preto, nem a expressão particular de determinada fisionomia. Sou um
modestíssimo estudioso de atitudes, de tipos e de expressões.
Portanto, não me peça aquilo que um dia, talvez, possa vir a fazer, se
por acaso me tornar semelhante a um Rubens ou a um Ticiano, porque
então saberia permanecer poeta e criador, unindo e comprimindo, sem
esforço e sem receio, a forte e a majestosa realidade. Infelizmente, o mais
provável é que venha a ser qualquer coisa como um bobo ou um animal.
Leia tal e tal escritor; eles disseram o mesmo em seus folhetins.
Imagine, Teresa, que eu não disse ao meu inglês uma só destas
palavras; nada do que lhe estou escrevendo. Quando se fala por conta
própria, tudo se arranja, mas tudo quanto me foi possível dizer-lhe para
desculpar-me de não saber pintar retratos, de nada serviu. O que disse de
melhor foi "por que diabo não se dirige à senhorita Jacques?"
O inglês proferiu três: Ohs!. Depois, pediu-me o seu endereço e foi-se
embora sem fazer o menor comentário, deixando-me confuso e irritado por
não ter permitido concluir a minha dissertação a respeito do retrato.
Porque, finalmente, minha boa Teresa, se esse belo inglês for hoje à sua
casa, como desconfio e se ele lhe repetir tudo quanto acabo de escrever-lhe,
ou seja, aquilo que não lhe disse sobre os simples ''fazedores" e os grandes
mestres da pintura, que irá você pensar deste seu ingrato amigo? Que ele a
classifique entre os primeiros e a julgue incapaz de fazer outra coisa a não
ser retratos bonitos e que agradem a toda gente!... Você sabe, perfeitamente,
que para mim você não c a senhorita Jacques, que faz retratos parecidos
com o original, mas um homem superior que se dissimula numa mulher e,
sem nunca ter freqüentado a academia, adivinha e sabe fazer que se des-
cubra um corpo e uma alma num busto, à maneira dos grandes escultores
da antigüidade e dos grandes pintores da Renascença.
Mas, não digo mais nada. Você não gosta que se fale o que se pensa a
seu respeito, dando a entender que toma h do isso por elogios. Você, Teresa,
é muito orgulhosa.
Hoje, sinto-me muito triste, sem saber porquê. Almocei muito mal,
agora, pela manhã... jamais comi pior desde que arranjei uma cozinheira.
Além disso, impossível conseguir bom fumo. O monopólio envenena-o.
Depois, trouxeram-me um par de botas novas que absolutamente não me
servem nos pés... E depois, chove... E depois, que sei eu? Os dias, desde
algum tempo são longos como os dias sem pão, — não lhe parece? Não,
você não acha, não. Você desconhece o estar mal disposto, o prazer que
enfada, a amofinação que embriaga, o mal sem nome de que a outra noite
eu lhe falava, nesse pequeno salão lilás, onde tanto gostaria de estar neste
momento. Porque o dia de hoje está horrível para a pintura e, não podendo
pintar, teria o prazer de importuná-la com a minha tagarelice.
Por conseguinte, não a verei, hoje. Você tem aí uma família
insuportável, que a subtrai à convivência, de seus amigos mais queridos.
Esta noite, portanto, serei tentado a cometer alguma tolice indescritível... É
esse o efeito da sua bondade sobre a minha pessoa, minha querida e grande
camarada. Quando a não vejo fico tão louco e tão vazio que sinto
absolutamente a necessidade de atordoar-me, com riscos de escandalizá-
la... Mas, fique sossegada; não lhe contarei depois o que fiz no meu serão...
Seu amigo e criado,
LOURENÇO

Ao senhor
Lourenço de Fauvel,

Antes de mais nada, meu caro Lourenço, rogo-lhe, se o que tem por mim
alguma amizade, que não faça tão frequentemente tolices, que lhe
prejudiquem a saúde. As outras são-lhe permitidas. Você vai pedir-me que
lhe cite algumas dessas tolices e eu fico bastante embaraçada, porque, cm
questão de tolices, conheço muito poucas, que não lhe sejam prejudiciais.
Resta, porém, saber o que você entende por tolice. Se se trata dessas
intermináveis ceias de que o outro dia me falou, creio que elas o matam e
isso me causa aflição. Em que pensa você, destruindo assim, alegremente,
uma existência tão preciosa e tão bela? Mas, eu sei que você não quer saber
de sermões, por isso limito-me ao pedido.
Quanto ao seu inglês, que, por sinal é americano, acabo de vê-lo e como
não verei você esta noite, nem talvez amanhã, aliás, com grande tristeza
minha, devo dizer-lhe que procedeu muito mal, não querendo fazer-lhe o
retrato. Ele lhe oferecia muito dinheiro de que você precisa, justamente para
não fazer tolices, na esperança de um golpe de sorte, que não chega nunca
para as pessoas de imaginação, uma vez que tais pessoas não sabem jogar,
perdem sempre.
Você acha que sou positiva demais, não é verdade? Isso pouco me
importa. Aliás, se examinarmos mesmo por alto a questão, todas as razões
apresentadas por você ao americano e a mim mesma não valem dois vinténs.
Diz você que não sabe fazer retrato. É possível, talvez, seja mesmo
verdade, mas se fosse preciso fazê-lo sob as condições do êxito burguês...
Mas, o senhor Palmer não exigia de maneira alguma que assim fosse. Você
tomou-o por um merceeiro e enganou-se, redondamente. É um homem de
opinião e bom gosto, conhece a arte e sente entusiasmo por você. Pode
julgar se o recebi bem! Animei-o, também, prometendo-lhe que faria todo o
possível para que você se resolvesse a pintar-lhe o retrato.
Depois de amanhã, portanto, falaremos sobre este assunto, porque tenho
hora marcada, esta noite, com o referido senhor Palmer, a fim de que ele me
ajude a pleitear sua própria causa e consiga a sua promessa.
A respeito disto, meu caro Lourenço, distraia-se da melhor maneira do
desejo de ver-me durante dois dias, o que não lhe será difícil, pois você
conhece muita gente de espírito e vive no mais belo dos mundos. Por manha
parte, sou, apenas, ama velha pregadora que lhe deseja muito bem e lhe
suplica que não se recolha tarde, todas as noites, e o aconselha a não come-
ter excessos, não abusando de coisa alguma. Você não tem o direito de fazê-
lo: o espírito obriga...
Sua colega,
TERESA JACQUES

à senhorita Jacques,
Minha querida Teresa, vou partir, dentro de duas horas, para um
passeio no campo, em companhia do conde de S... e do príncipe D...
Teremos lá ao que me asseguram, mocidade e beleza... Prometo-lhe e juro-
lhe que não cometerei tolices, nem beberei champanha.
Certamente, eu preferiria passear pelo seu grande estúdio e discutir no
seu salãozinho lilás. Mas, visto que você está em retiro juntamente com os
seus trinta e seis primos da província, não há de certamente notar a minha
ausência. Você terá a deliciosa música da pronúncia anglo-americana
durante toda a tarde. Ah! Esse bom senhor Palmer chama-se Dick, não c
verdade?
Creio que Dick é um diminutivo familiar de Ricardo, mas verdade seja
que em questões de linguagem eu conheço apenas mal e mal o francês.
Relativamente, ao retrato, não se fala mais nisso. Você é mil vezes maternal,
minha boa Teresa, ao pensar nos meus interesses, em detrimento dos seus.
Embora você tenha uma bela clientela, a sua generosidade não lhe permite
ficar rica e mais algumas notas de banco estarão melhor em suas mãos do
que nas minhas. Você sabe empregá-las em ações felizes, ao passo que eu,
como você diz, atirá-las-ia ia ao jogo de cartas...
Por outro lado, nunca estive menos bem disposto para a pintura... Para
isso, são necessárias duas coisas que você possui: a reflexão e a inspiração.
Compreendo perfeitamente o que me falta. Ainda não vivi bastante e parto
por três ou quatro dias com a senhora Realidade, que me aparece sob a
imagem de várias ninfas do corpo de bailado da Ópera. Espero que, ao
regressar, seja o homem mais satisfeito deste mundo, quer dizer, o mais
insenbilizado e o mais razoável...
Seu amigo,
LOURENÇO

CAPITULO I

Teresa compreendeu, logo à primeira vista, o despeito e o ciúme, que


haviam ditado aquela carta.
— Todavia, ele não está apaixonado por mim. Oh! Não! Certamente, ele
jamais se apaixonará por alguém e muito menor por mim.
Voltando a lê-la e a meditar sobre ela, Teresa receava iludir-se, tentando
persuadir-se a ,si mesma de que Lourenço não correria perigo algum a seu
lado.
— Mas, que perigo? — interrogava-se. — Sofrer por um capricho não
satisfeito? Será que se sofre muito por um capricho? Não sei coisa alguma;
nunca tive um capricho.
Eram cinco horas da tarde. Teresa pôs a carta no bolso, pediu o seu
chapéu e deu licença a seu criado por vinte e quatro horas, fez diversas
recomendações à sua velha e fiel Catarina e tomou um carro de praça. Duas
horas mais tarde, regressava com uma delicada mulherzinha, um pouco
curva, e tão perfeitamente dissimulada que o seu semblante nem foi visto
pelo cocheiro. Fechou-se em casa com essa misteriosa criatura e Catarina
serviu-lhes um bom jantar.
Por .seu lado, Lourenço preparava-se para partir para o campo. Mas,
quando o príncipe D... veio buscá-lo, no seu carro, Lourenço disse-lhe que
um negócio imprevisto o obrigava a demorar-se ainda umas duas horas em
Paris, ficando de encontrar-se com ele, à tardinha, na sua casa de campo.
Todavia, ele não tinha negócio algum a tratar. Vestira-se
apressadamente, penteando-se com cuidado todo particular. Em seguida,
pondo o paletó numa poltrona, deitou-se na cama.
— Mas, por que será que ela me fecha a sua porta durante dois dias? Há
nisso qualquer coisa escusa. E quando me fixa uma entrevista para o terceiro
dia é para que eu vá encontrar em sua casa um inglês ou americano, que não
conheço. Mas o que me parece certo é que ela conhece esse Palmer, a quem
trata, aliás, pelo nome de batismo. Mas, então, por que foi que ele me pediu
o seu endereço? Por que tal idéia? Mero disfarce? Mas por que dissimularia
ela comigo? Não sou noivo de Teresa, não tenho direito algum sobre ela. O
namorado de Teresa! Jamais o serei certamente. Deus me livre! É cinco anos
mais velha... Talvez, ainda mais... Quem sabe a idade de uma mulher,
justamente daquela de que ninguém sabe coisa alguma? Um passado assim
misterioso deve por força ocultar alguma tolice enorme, quem sabe se não
será qualquer mancha grave. E é com isso, presumida, beata ou filósofa...
quem sabe? Fala de todas as coisas com uma tolerância, uma imparcialidade,
ou um desinteresse... Quem sabe se acredita ou não, que deseja, que ama, ou
mesmo se é capaz de amar?
Mercourt, jovem crítico de um jornal, amigo de Lourenço, entrou no
apartamento.
— Soube que você ia partir para Montmorency; por isso, não faço mais
que entrar e sair só para pedir-lhe um endereço — o da senhorita Jacques.
Lourenço estremeceu.
— E que diabo quer você da senhorita Jacques? — perguntou,
procurando papel para enrolar um cigarro.
— Eu? Nada... quer dizer, sim, desejaria conhecê-la, porque só a
conheço de vista e de renome. É para uma pessoa que deseja fazer um retrato
que lhe peço o endereço dela.
— Conhece de vista a senhorita Jacques?
— Conheço. Presentemente, seu nome é bastante conhecido e célebre. E
quem é que a conhece e não a aprecia? Ela é digna disso...
_ Acha?
— Acho, sim, e você?
— Eu? Não sei. Amo-a bastante, não me sinto competente, nem idôneo.
— Então, ama-a tanto assim?
— Como lhe digo. A prova é que não a cortejo.
— Vê-a muitas vezes?
— Algumas.
— Então, é seu amigo?... Sincero?
— Bem, sou-o um pouco. Por que motivo está sorrindo?
— Porque não acredito em nada do que me está dizendo. Aos vinte e
quatro anos, homem nenhum pode ser amigo desinteressado e sincero de
uma mulher... bonita e jovem.
— Ora, essa! Ela não é assim tão jovem, nem tão bonita como você está
dizendo. É uma boa colega, que não desagrada à vista. Todavia, não aprecio
o seu tipo e tenho de perdoar-lhe o fato de ser loura. Não gosto de louras, a
não ser em pintura.
— Ela não é assim tão loura. Possui olhos de um negro aveludado e
doce...
— Bonitas palavras... Você gosta das mulheres de estatura alta?
— Ela não é assim tão alta. Tem pés e mãos pequenos. É uma mulher no
verdadeiro sentido da palavra. Nisso, reparei bem, porque me sinto
apaixonado...
— Que idéia!
— Isso pouco lhe deve importar, pois se ela é assim tão feminina, como
não lhe agrada?...
— Meu caro, se ela me amasse eu me esforçaria por ser melhor para com
ela, melhor do que tenho sido. Mas não me sentiria apaixonado. Esse é um
estado de espírito que não me seduz. Portanto, não teria ciúmes. Continue,
pois, as suas intenções, como melhor lhe parecer.
— Eu? Se tivesse tempo de procurá-la... No fundo, sou semelhante a
você, Lourenço, — inclinado .à paciência; sou de um mundo que passou e de
um tempo em que nunca falta o prazer... Mas, uma vez que estamos falando
a respeito dessa criatura e como você a conhece, diga-me, pois... Mera
curiosidade, juro: ela é viúva ou...
— Ou quê?
— Quero dizer se ela é viúva de algum namorado ou de um marido?
— Não sei nada disso.
— Sabe o que por aí dizem?
— Não; não me interessa o que podem dizer?
— A prova é que isso o interessa... Dizem que ela é casada com um
homem rico e nobre.
— Casada...
— No civil e no religioso; não é possível outra coisa...
— Tolice! Se fosse casada, usaria o nome e o título do marido.
— Pois bem; aí é que está o mistério. Quando me sobrar tempo, hei de
procurar descobri-lo, e então dir-lhe-ei do que .se trata. Mas aquela cabeça...
é magnífica, soberba. Quem será? Deixe-me ver?
— É apenas um esboço...
— E não se compromete a pessoa a quem se assemelha...
— Então, parece-se com alguém?
— Ora essa! Brincadeira de mau gosto! Julga que não será capaz de
reconhecê-la? Meu caro, você quis brincar comigo, pois nega tudo, até as
coisas mais simples. Você é o namorado dessa mulher!
— A prova é que vou partir para Montmorency! — disse, friamente,
Lourenço, pegando no chapéu.
— Isso não impede!... respondeu Mercourt. Lourenço saiu e Mercourt,
que havia descido juntamente com ele, viu-o tomar um carro de praça.
Lourenço, porém, mandou seguir para o Bosque de Bolonha. Jantou sozinho
num pequeno café e ao cair da noite regressou, a pé, imerso nos seus sonhos.
No bairro dos Campos Elíseos daquele tempo, de edifícios menos
suntuosos e menos habitado do que atualmente, havia quarteirões novos,
onde se alugavam, ainda, a preços razoáveis, pequenas casas com seus
jardinzinhos de caráter muito íntimo.
Numa dessas casas, caiadas de branco, muito limpas, no meio de
maciços de lilases em flor e por trás de uma sebe de espinheiros, fechada por
uma parede de estacas pintadas de verde, morava Teresa. Era no mês de
maio. O tempo magnífico. Às nove horas, o jovem encontrou-se atrás dessa
sebe, na rua deserta e semi-acabada, onde não havia ainda candeeiros de gás
e vicejavam as urtigas e outras ervas daninhas.
Lourenço não sabia como se encontrava ali. Sentia-se embaraçado. A
sebe era bastante espessa. Voltou-se sem ruído, sem perceber outra coisa
senão folhas levemente douradas por uma luz que ele julgava colocada no
jardim, sobre a pequena mesa junto à qual tinha o hábito de fumar, quando
passava a tarde em casa de Teresa. Fumava-se no jardim ou tomava-se,
algumas vezes, chá.
Teresa anunciara que estava à espera de uma família inteira da província
e ele ouvia, apenas, o sussurro misterioso de duas vozes, uma das quais lhe
parecia ser a de Teresa. A outra falava em tom mais baixo. Seria a voz de um
homem?
Lourenço sentiu uma zoeira nos ouvidos até que, finalmente, escutou ou
julgou escutar as seguintes palavras de Teresa:
— Que me importa tudo isso? Só tenho um amor neste mundo e esse
amor é você!
— Agora — dizia Lourenço, deixando precipitadamente a pequena rua
deserta e regressando à cidade, agora estou tranqüilo. Teresa tem um
namorado. Efetivamente, não tinha motivos para confiar-me tal segredo.
Mas, também, não era obrigada a falar nesse assunto em todas as ocasiões,
de maneira a fazer-me acreditar que não era nem desejava ser de ninguém. É
como certas mulheres: primeiro e acima de tudo tem necessidade de mentir.
Que me importa? Todavia, mal diria eu... É mesmo preciso que eu tenha a
cabeça, sem o confessar, cheia dela, para ficar assim à escuta, no mais vil
dos misteres, quando não se trata de ciúme... Não posso, todavia, arrepender-
me. Isto salvar-me-á de uma grande miséria e de um logro: desejar uma
mulher que nada possui de mais desejável do que muitas outras, nem sequer
a sinceridade.
Mandou parar um carro e dirigiu-se a Montmorency. Prometia a si
mesmo passar ali oito dias e antes de quinze não voltaria a pôr os pés em
casa de Teresa. Entretanto, demorou-se no campo apenas quarenta e oito
horas e na terceira noite estava à porta de Teresa, precisamente no mesmo
instante em que ali chegava Ricardo Palmer.
— Oh! — exclamou o americano, estendendo-lhe a mão — encantado
em tornar a vê-lo.
Lourenço não pôde deixar de dar-lhe a mão, perguntando-lhe ao mesmo
tempo porque se sentia tão satisfeito por encontrá-lo.
O estrangeiro não prestou a menor atenção ao tom um tanto impertinente
do artista.
— Estou muito contente porque gosto de você, — respondeu o outro
com irresistível cordialidade, — e gosto de você porque o admiro muito.
— Como? Você, também? — perguntou Teresa, admirada, olhando para
Lourenço. — Já não contava com você esta noite!
Lourenço julgou discernir um desusado tom de frieza nessas simples
palavras.
— Ah! — respondeu ele, em voz baixa — creio que vim perturbar uma
deliciosa conversa particular.
— Que é tanto mais cruel para você, — tornou Teresa, no mesmo tom
jovial, — uma vez que parece querer poupar-me a essa conversa.
— Se você contava com isso, por que não me mandou um recado?"
Devo ir-me embora?
— Não, fique. Tenho de resignar-me a suportá-lo, exclamou, sorrindo.
O americano, depois de ter cumprimentado Teresa, abrira a carteira e
procurara uma carta que lha entregou. Impassível, Teresa correu os olhos
pela carta, sem fazer algum comentário.
— Se deseja responder a essa carta, tenho um portador para Havana...
— Muito obrigada, — respondeu Teresa, abrindo a gaveta de um
pequeno móvel que lhe estava à mão. — Não vou responder-lhe.
Lourenço, que acompanhava todos os seus gestos, viu que incluía aquela
carta junto a diversas outras e uma delas, pela forma e pelo sobrescrito,
chamou-lhe a atenção; era a que ele mesmo havia escrito a Teresa na
véspera. Sem saber por que sentiu-se interiormente chocado por ver essa
carta junto daquela que Palmer acabava de entregar-lhe.
Deixa-me ficar aí, pensou ele, — misturado com os seus admiradores
abandonados!... Todavia, não tenho direito a essa distinção. Nunca lhe falei
em amor.
Teresa começou a falar com o Sr. Palmer a respeito do retrato. Lourenço
espiava os mais insignificantes olhares, as mais leves inflexões de voz de
ambos, imaginando a cada instante o temor secreto de vê-lo ceder. Mas a
insistência de Palmer era de tão boa-fé que ele logo censurou as próprias
suspeitas. Se Teresa mantinha relações com esse estrangeiro, livre e sozinha
como vivia, aparentemente nada devia a quem quer que fosse, e como nunca
se preocupava com o que poderiam dizer a seu respeito, precisaria por acaso
do pretexto de um retrato para receber em sua casa e durante muito tempo o
objeto do seu amor ou da sua fantasia?
Como se sentia calmo, Lourenço não tinha razões para deixar de
manifestar a sua curiosidade.
— Então, você é americana? — perguntou a Teresa que, de quando em
quando traduzia para o senhor Palmer, em inglês, as respostas que ele
parecia não compreender bem.
— Eu? — respondeu Teresa. — Não lhe disse já que tenho a honra de
ser sua conterrânea?
— É que você fala tão corretamente o inglês!
— Como é que você sabe se falo bem inglês, visto que não entende essa
língua? Mas já vejo o que é; você é muito curioso. Pergunta você se é de
ontem ou de há muito que conheço o Sr. Ricardo. Pois bem; pergunte-lhe.
Palmer não esperava uma pergunta que Lourenço não estivesse
imediatamente decidido a fazer-lhe. Respondeu-lhe, portanto, que não era a
primeira vez que vinha à França; que conhecera Teresa muito moça, ainda,
em casa de uns seus parentes. Mas não lhe referiu quem fossem esses
parentes. Teresa costumava dizer que não chegara a conhecer pai, nem mãe!
O passado da senhorita Teresa Jacques era um mistério impenetrável
para as pessoas da sociedade que iam posar para ela e para o pequeno
número de artistas que ela recebia em particular. Tinha vindo para Paris, não
se sabia de onde, nem quando, nem com quem. Havia, apenas, uns dois ou
três anos que se tornara conhecida, em conseqüência de um retrato que
pintara e que tinha sido examinado por algumas pessoas de bom gosto, sendo
logo assinalado como obra de mestre. E foi assim que de uma clientela e
existência pobre e obscura, passara subitamente a gozar de grande reputação
e de vida folgada e cômoda.
Dizia, sempre:
— Não está em jogo a minha pessoa. Nada tenho a contar. Só tive
desgostos em minha vida, dos quais não mais me recordo, nem tenho tempo
para neles pensar. Presentemente, sinto-me feliz, pois trabalho não me falta
e, acima de tudo, gosto de trabalhar.
Por mera casualidade e em conseqüência de relações de artista para
artista, em determinada reunião, que Lourenço chegara a travar
conhecimento com a senhorita Jacques.
Apresentado como gentil-homem e artista de nomeada num mundo
frívolo, Lourenço tinha, aos vinte e quatro anos, a experiência das coisas,
experiência que nem todos possuem aos quarenta. Por esse motivo, era ele
de melindres fáceis, afligindo-se por motivos fúteis. Mas, não possuía a
experiência do coração, que não se adquire na promiscuidade. Graças ao seu
alarde de ceticismo, deduzira que Teresa tinha como namorados todos
quantos tratava como simples amigos. Foi preciso ouvi-los, pouco a pouco, a
afirmar a pureza de suas relações, para chegar a considerá-la como pessoa
que podia ter tido suas paixões, mas longe de galanterias de qualquer
espécie...
No fundo, consistia nisso toda a verdade. Mas o amor insinuara-se no
seu coração moço e já se viu como Lourenço se debatia contra a invasão de
um sentimento que desejava ainda ocultar a seus próprios olhos e a Teresa,
tanto mais quanto experimentava esse sentimento pela primeira vez em sua
existência.
Ante a insistência de Palmer para fazer-lhe o retrato, argumentou:
— Mas, afinal, porque insiste o senhor numa coisa que, provavelmente,
não será muito boa, quando conhece a senhorita Jacques, que, certamente,
não se recusará fazer um trabalho excelente?
— Ela recusa — respondeu Palmer, muito ingenuamente, não sei bem
porquê. Prometi a minha mãe, que tem a fraqueza de achar-me bonito, um
retrato de mestre. Esse o motivo por que me dirigi ao senhor como a um
mestre idealista. Se recusar, terei então o desprazer de não satisfazer o desejo
de minha mãe e o aborrecimento de ter de procurar outro artista.
— Isso não lhe causará muita demora... Não faltam artistas mais
competentes que eu!...
— Não creio. Mas, admitindo mesmo que eu encontre outro artista, estou
certo de que ele não disporá de tempo, no momento, para fazer-me o retrato
e tenho pressa em enviá-lo quanto antes a seu destino. É para festejar o meu
aniversário natalício, que ocorrerá dentro de quatro meses, e o transporte
demorará pelo menos uns dois meses.
— Quer dizer, Lourenço — aparteou Teresa — que é forçoso que você
faça esse retrato em seis semanas, quando muito, e, como sei o tempo de que
você pode dispor, teria de começar amanhã mesmo. Vamos; estamos
entendidos: promete fazer o retrato, não é verdade?
Palmer estendeu a mão a Lourenço, dizendo:
— Eis o contrato, devidamente assinado. A senhorita Jacques foi quem
fixou as condições. A que horas pretende começar, amanhã?
Combinada a hora, Palmer pegou no chapéu e Lourenço viu-se obrigado
a fazer o mesmo, como demonstração de respeito por Teresa. Palmer, porém,
não prestou atenção ao caso e retirou-se, depois de ter apertado, sem a beijar,
a mão de Teresa.
— Quer que eu vá? — perguntou Lourenço.
— Não é preciso — respondeu Teresa. — Todas as pessoas que recebo
me conhecem bastante. Somente, você terá que sair, hoje, quando forem dez
horas. Nestes últimos tempos, temos ficado a conversar até quase à meia-
noite, e como não consigo dormir logo, sinto-me muito cansada.
— Se eu fosse presunçoso, isso me causaria vaidade.
— Mas, graças a Deus, você não é presunçoso; deixe que os tolos o
sejam. Agora, vejamos, mestre Lourenço; apesar das felicitações, vejo-me
obrigada a censurá-lo e repreendê-lo. Dizem que você não trabalha.
— Você é muito boa, Teresa. Já sei. Quer que eu ganhe a minha vida,
apesar de toda a ojeriza ao trabalho, que tenho.
— Não me estou envolvendo com os seus meios de existência. Não
tenho o direito. Não tenho a sorte ou... a falta de sorte de ser sua mãe. Mas
sou sua irmã... em Apolo* e é impossível deixar de afligir-me com essa sua
preguiça.
* Apolo é uma das principais divindades gregas, o deus do dia, da
poesia, da música, das artes. (Nota do "Clube do Livro").

— Mas que é que isso lhe pode fazer, Teresa? — perguntou Lourenço
num misto de prazer e despeito que ela bem percebeu, obrigando-a a
responder com a sua habitual franqueza.
— Escute, meu caro Lourenço — disse ela — explique-mo-nos. Tenho
por você muita amizade.
— Isso me envaidece, mas desconheço-lhe os motivos. Nem sequer sirvo
para ser seu amigo, Teresa! Não creio mais na amizade do que no amor entre
um homem e uma mulher.
— Você já me disse isso, mas para mim é indiferente que acredite ou
não. Eu acredito naquilo que sinto, e sinto por você interesse e afeição. Sou
assim; não posso ter perto de mim um ser qualquer sem a ele me ligar,
desejando que seja feliz. Então, costumo fazer aquilo que está ao meu
alcance, sem esperar qualquer recompensa. Ora, você não é um ser qualquer,
mas um homem de gênio e, além disso, espero, um homem de coração...
— Eu, um homem de coração? Sim, se você por essa palavra
compreender o que todo mundo compreende. Sei bater-me em duelo, pago as
minhas dívidas, defendo a mulher a quem dou o braço. Mas, se julga que
possuo um coração cheio de ternura, ingênuo, amoroso...
— Sei que pretende ser velho, acabado e corrompido. Mas as suas
pretensões nada valem, nada significam. É uma atitude muito na moda nos
dias que correm. Em você é uma doença dolorosa ou imaginária, mas que
passará, quando quiser... Você é um homem de coração, um homem de es-
pírito e isso, justamente, porque sente um vácuo no coração. Alguma mulher
há de aparecer para preencher esse vácuo — caso ela o compreenda e você o
permitir. Mas isto está longe do assunto. Estou falando ao artista, não ao
homem e este só se sente infeliz dentro da sua personalidade, porque o ar-
tista não está satisfeito consigo mesmo.
— Bem, Teresa, está enganada, acudiu, vivamente, Lourenço. É
exatamente o contrário do que está dizendo. É o homem que sofre no artista
e o abafa também. Não sei o que fazer da minha pessoa. O tédio mata-me,
Mas, tédio de quê? — dirá você. Tédio de tudo. Não sei como você, criatura
aplicada e calma, durante seis horas de trabalho, dar umas voltas pelo jardim,
atirando migalhas de pão aos pássaros, e, depois, recomeçar o trabalho
durante mais quatro horas, sorrindo à noite a dois ou três importunos
semelhantes a mim, por exemplo, à espera da hora de dormir. Para mim, o
sono é mau, os passeios são agitados, o meu trabalho é febril. A invenção
perturba-me e faz-me tremer. A execução, sempre muito lenta a meu
capricho, provoca-me incríveis palpitações de coração e é chorando,
esforçando-me por não gritar que dou à luz a idéia que me embriaga, mas da
qual me sinto mortalmente envergonhado e aborrecido no dia seguinte, pela
manhã.
Eis o que se passa na minha vida, quando me deixo dominar por esse
artista gigante que está em mim e do qual este pobre homem, que lhe fala,
arranca uma a uma, pelas tenazes de sua vontade, magras cartilagens
semimortas. Portanto, Teresa, o melhor é eu continuar a viver como tenho
imaginado, que faça excessos de toda ordem até matar este verme roedor, a
que os meus semelhantes chamam modestamente "inspiração" e que eu
qualifico sem cerimônia de minha enfermidade.
— Então, fica entendido que você trabalha para o suicídio de sua
inteligência? Pois bem. Não acredito numa única de suas palavras. Se
alguém lhe viesse amanhã propor ser o conde de S... ou o príncipe D... com
os milhões de um e os belos cavalos do outro, você responderia, falando de
sua pobre palheta, tão desprezada: "devolva-me o meu miolo de pão".
— Minha desprezada palheta? Você não me compreende, Teresa. Ela é
um instrumento de glória, bem sei, e aquilo que se chama glória é o apreço
que se concede ao talento, mais puro e primoroso do que aquele que se
outorga à fortuna. Gosto tanto de mim como qualquer outro. Amo a mim
mesmo de todo coração, juro por Deus! O que eu digo é que a minha palheta,
instrumento de glória, é o meu suplício, uma vez que não sei trabalhar sem
sofrer. Então, procuro na desordem, não a morte do meu corpo ou do meu
espírito, mas o relaxamento ou deterioração dos meus nervos. É somente
isso, Teresa. Que é que existe nisso que não seja razoável? Só trabalho
mesmo um pouco quando me sinto desfalecer de fraqueza.
— É verdade, — disse Teresa, — já o observei e admiro-me disso como
de uma curiosa anomalia. Mas tenho muito medo de que essa maneira de
produzir dê cabo da sua existência e custa-me acreditar que suceda de outro
modo... Responda-me a esta pergunta: não é verdade que você começou a sua
vida pelo trabalho e pela abstinência e sentiu, então, a necessidade de
atordoar-se, a fim de poder repousar, não é?
— Não, ao contrário. Quando saí do colégio, já gostava da pintura, mas
não acreditava que me visse jamais obrigado a pintar, Julgava-me rico. Meu
pai morreu e não me deixou senão coisa de trinta mil francos, quantia essa
que me dei pressa em gastar, para ter, ao menos, um ano agradável na vida,
Quando me vi sem um vintém, peguei no pincel e dediquei-me à pintura dos
nus, que atualmente constitui o maior êxito. Agora, durante alguns meses ou
semanas a fio, dou-me ao luxo e aos prazeres, até esgotar-se o meu dinheiro.
Quando nada mais resta, sinto que isso é melhor para mim, pois sinto-me ao
mesmo tempo sem forças e sem desejos. Então, volto ao trabalho com raiva,
com dor e em delírio e, concluída a tarefa, recomeça o repouso e a
prodigalidade.
— Há muito tempo que leva essa vida?
— Na minha idade, não seria possível viver dessa forma por muito
tempo. Há, apenas, uns três anos...
— Oh! para a sua idade, é demais! Além disso, começou mal, deitou ao
fogo à sua vitalidade antes que ela se manifestasse em toda a sua pujança.
Bebeu vinagre .para não crescer. Entretanto, sua cabeça desenvolveu-se e,
com ela, malgrado isso tudo, o seu gênio criador. Mas é possível que o seu
coração se haja atrofiado; talvez, por isso, não chegue a ser um homem ou
um artista completo.
Estas palavras de Teresa, pronunciadas com tranqüila tristeza, irritaram
Lourenço.
— Nesse caso, — disse ele, — você me despreza?
— Não — respondeu ela, estendendo-lhe a mão — sinto, simplesmente,
pena de você!
E Lourenço viu duas grossas lágrimas deslizando, lentamente, pela face
de Teresa. Essas lágrimas produziram-lhe uma reação violenta. Com o rosto
banhado em copioso choro, deitou-se aos pés de Teresa, dizendo como
criança que se arrepende:
— Ah! Minha pobre e querida amiga! — E tomando-lhe as mãos: —
você tem razão de lastimar a minha atitude. Preciso disso; sinto-me infeliz,
tão infeliz que tenho vergonha de dizê-lo. Aquilo que tenho no peito, em
lugar do coração, está incessantemente clamando por qualquer coisa que não
sei bem o que seja e ignoro o que devo dar-lhe para apaziguá-lo. Amo a
Deus e, todavia, duvido. Amo todas as mulheres e, todavia, desprezo-as a
todas. Permita-me dizer-lhe isto a você que é minha colega e minha amiga:
às vezes, surpreendo-me quase a amar até à idolatria uma cortesã, enquanto
aos pés de um anjo me sentiria talvez mais frio do que o próprio mármore.
Tudo é perturbação nos meus conhecimentos, nas minhas noções das coisas,
tudo, talvez, esteja transviado nos meus instintos. Se eu lhe disser que não
mais acho encanto e prazer no vinho...
Que quer que eu faça, Teresa? Não tem pena de mim?
— Certamente, tenho pena de você, meu pobre amigo — disse Teresa,
enxugando-lhe os olhos, com o lenço, — mas que adianta?
— Se você me amasse, Teresa. Não retire as mãos. Não é que permitiu
que eu me tornasse uma espécie de amigo?
— Disse que o amava e você respondeu-me que não podia acreditar na
amizade de uma mulher.
— Mas acreditava, talvez, na sua. Você tem um coração de homem, pois
tem a força e o talento de um coração masculino. Dê-me a sua amizade.
— Mas eu não lhe retirei essa amizade — respondeu Teresa. A amizade
de um homem deve possuir maior rudeza e autoridade, virtudes de que não
me sinto dotada. Sinto-me mais capacitada, mesmo contra a minha vontade,
de lastimar o seu destino do que, propriamente, o censurar. Já vai ver porque.
Prometi a mim mesma que haveria de humilhá-lo, hoje, deixando-o furioso
contra mim e contra você, e, em vez disso, estou chorando e isto não resolve
coisa alguma.
— Essas lágrimas são boas — tornou Lourenço; elas foram um refrigério
para um terreno sáfaro. É possível que o meu coração floresça, agora, neste
terreno, regado por você. Teresa, você já me disse certa vez que eu me
vangloriava diante de si daquilo que deveria fazer-me corar e que eu era
semelhante ao muro de uma prisão. Só se esqueceu de que atrás desse muro
existe um prisioneiro. Se eu conseguisse abrir a porta, você poderia vê-lo.
Mas a porta está fechada e o muro é de bronze. A minha vontade, a minha fé,
a minha expansibilidade, a minha palavra, nada é capaz de atravessar esse
muro. Terei, então, de viver e morrer assim? Para que cobrir de pinturas
fantásticas as paredes do meu cárcere, se não vejo a palavra amar escrita em
parte alguma?
— Se bem o compreendo — disse Teresa, numa expressão absorta —
você julga que a sua obra necessita de ser aquecida pelo sentimento.
— Não pensa da mesma forma? Não estará aí, justamente, o sentido de
todas as suas queixas?
— Não é, precisamente, assim. Existe, apenas, excesso de fogo na sua
execução. Eu tenho tratado sempre com respeito essa exuberância da
mocidade que produz os grandes artistas e cuja beleza impede a qualquer
entusiasmo investigar ou expurgar os defeitos... Em vez de achar o seu
trabalho frio e vazio, sinto-o ardente e apaixonado. Mas esperava encontrar
em você a sede de uma paixão. Estou vendo, agora, que ela reside no desejo
da alma. Sim, — acrescentou Teresa, sonhadora, como se procurasse romper
o véu de seu próprio pensamento — o desejo pode converter-se numa
paixão.
— Em que está pensando? — perguntou Lourenço, acompanhando-lhe o
olhar absorto.
— Estou perguntando a mim mesma se deve combater essa força que
está dentro de você e se, ao convencê-lo de que seja feliz e calmo, não lhe
estou roubando o fogo sagrado. Penso, todavia, que a inspiração não pode
ser para o espírito uma situação duradoura e que deve cair sobre nós e
oprimir-nos, quando vivamente expressa durante um período de febre. Que
lhe parece? Aquilo que chamamos as diversas maneiras dos mestres não será
a expressão das sucessivas transformações do nosso ser? Aos trinta anos,
poderá alguém aspirar a tudo, sem nada apertar nos braços? Não lhe é
imposto o dever de ter uma certeza, uma estabilidade sobre qualquer ponto?
Você está na idade das fantasias; cedo, virá a idade da luz. Não é seu desejo
fazer progressos?
— Mas será que isso depende de mim?
— Certamente, se você não se esforçar para perturbar o equilíbrio de
suas faculdades. Você não me convencerá de que o esgotamento seja o
remédio da febre, e não, simplesmente, o resultado final.
— Nesse caso, qual o remédio que me aconselha?
— Sei lá. Talvez, o casamento.
— Que horror! — exclamou Lourenço, soltando uma risada. E sempre a
sorrir, sem saber a razão do corretivo, acrescentou:
— A não ser que seja com você, Teresa. Não acha que é uma idéia?
— Muitíssimo interessante — respondeu ela, — mas de todo impossível!
A resposta de Teresa, tranqüila e sem apelação, impressionou Lourenço
e as palavras que ela pronunciara num arrebatamento afiguraram-se-lhe,
subitamente, um sonho enterrado... Aquele espírito forte e arrebatado
desejava, sempre, qualquer coisa em que entrasse a palavra impossível e era
justamente essa a palavra que Teresa acabara de pronunciar.
Logo depois, voltaram-lhe as veleidades amorosas, conjuntamente com
suas suspeitas, o seu ciúme, a sua cólera. Até então o encanto da amizade
como que o embalara e embriagara. Subitamente, tornou-se frio e amargo.
— Ah! com efeito! — disse, apanhando o chapéu para retirar-se — essa
é uma palavra que ocorre sempre na minha vida a propósito de tudo, no final
de qualquer gracejo, como conclusão de qualquer coisa séria: impossível!
Você não conhece um inimigo dessa ordem, Teresa. O seu amor é tranqüilo.
Você tem um namorado ou um amiguinho, que não é ciumento, porque ele a
julga fria e sensata. Isso faz-me pensar que o tempo caminha e que os seus
trinta e seis primos estão talvez lá fora, à'espera de que eu me retire...
— Que está dizendo? — perguntou Teresa espantada. Quais são as idéias
que o aborrecem? Sobreveio-lhe algum acesso de loucura?
— É assim de vez em quando — respondeu Lourenço, retirando-se. —
Deve perdoar-me tais acessos...
CAPÍTULO II

No dia seguinte, Teresa recebeu de Lourenço seguinte carta :

"Minha boa e querida amiguinha: Como a deixei, ontem? Se alguma


enormidade lhe disse, queira esquecê-la. Não tive consciência do que disse.
Tive uma ofuscação, uma tontura, que não se dissipou ainda. Achei-me
diante da porta da minha casa, de carruagem, sem que me fosse possível re-
cordar-me da maneira como chegara até ali.
Isso acontece-me, freqüentemente, minha querida amiga, de tal maneira
que a minha boca pronuncia uma palavra, enquanto o meu- cérebro pensa
noutra. Tenha dó de mim e perdoe-me. Sinto-me doente. Você tinha ramo; a
vida que estou levando é detestável.
Com que direito me atrevo a dirigir-lhe perguntas? Faça-me, porém,
essa justiça: nos três primeiros meses que se passaram desde que você me
recebeu em sua intimidade, ê a primeira vez que isto!acontece. Que me
importa que você seja noiva, casada ou viúva... Você não quer que ninguém
saiba. Mas será que eu procurei saber? Já lhe dirigi alguma pergunta a tal
respeito?
Ah! Teresa, ainda agora, de manhã, reina o caos na minha cabeça e,
entretanto, sinto que estou mentindo, ora não desejo de forma alguma
mentir-lhe. Sexta-feira, à noite, tive o primeiro acesso de curiosidade a seu
respeito. O de ontem foi o segundo, mas garanto-lhe que será o último e
para não se tratar mais do caso, quero confessar-lhe tudo.
Eu estive, efetivamente, em frente de sua casa, quer dizer junto à grade
do seu jardim. Olhei para dentro e não vi nada. Pus-me a escutar e escutei...
Mas que lhe interessa isto? Ignoro como ele se chama, não lhe vi o rosto...
Sei que você é minha irmã, minha confidente, minha consolação, meu
amparo na vida. Sei que, ontem, eu chorava a seus pés e você enxugava as
minhas lágrimas com seu lenço. Sei que você é sensata, laboriosa, tranqüila,
respeitada; ê livre, amada e feliz; você dispõe de tempo e tem caridade
bastante para lastimar a minha sorte, para saber que eu existo e desejar
tornar melhor a minha existência. Quem a não a abençoasse seria um
ingrato e, por mais miserável que eu seja, não quero ser ingrato. Quando
deseja receber-me? Talvez a ofendesse, Teresa! Era o que faltava. Irei esta
noite à sua casa? Se você me responder que não, irei para o inferno!"
Quando o seu criado regressou, entregou-lhe a resposta de Teresa:
"Venha esta noite".
Esse recado deixou-o a tremer como uma criança. Nunca ela lhe tinha
escrito naquele tom. Era a sua despedida que ela lhe ordenava que fosse
buscar? Ou seria para um encontro de amor que o chamava? Essas três
palavras secas ou inflamadas teriam sido ditadas pela indignação ou pelo
delírio?
Chegou o senhor Palmer e Lourenço, muito agitado e preocupado teve
de começar-lhe o retrato. Tinha pensado em interrogá-lo com muita
habilidade, arrancando-lhe todos os segredos de Teresa, mas não encontrou
uma única palavra para entrar no assunto.
Finalmente, Lourenço, depois de acalmar-se, conseguiu examinar a
fisionomia plácida e pura do estrangeiro. Era de perfeitas linhas, o que, à
primeira vista, lhe dava um aspecto inanimado, peculiar às fisionomias
regulares. Examinado melhor, descobria-se certa delicadeza no seu sorriso e
certo fogo no seu olhar. Enquanto fazia estas observações, Lourenço
estudava a idade do seu modelo.
— Perdão, — disse, subitamente, — desejaria e preciso saber se o senhor
é ainda um moço um pouco fatigado, ou homem já maduro e
extraordinariamente bem conservado. Tenho-o observado bastante, mas
confesso que não o compreendo bem.
— Tenho quarenta anos — disse Palmer com simplicidade.
— Viva! — exclamou Lourenço, — O Senhor goza de uma saúde de
ferro.
— É, realmente, muito boa! — disse Palmer.
E retomou a sua posição cômoda e seu sorriso tranqüilo. Não pôde
resistir ao desejo de fazer-lhe outra pergunta:
— Então, conheceu a senhorita Jacques muito moça ainda?
— Quando a vi, pela primeira vez, tinha quinze anos. Lourenço não teve
coragem de perguntar-lhe em que ano.
Parecia-lhe que, ao falar de Teresa, o sangue lhe afluía às faces. Mas,
afinal, que lhe importava a idade de Teresa? O que ele desejaria saber era a
história de sua vida. Ela, pelas aparências, não devia ter mais de trinta anos.
Palmer poderia, pois, ter sido outrora simplesmente um seu amigo.
Finalmente, caiu a noite e o artista, que não costumava ser muito
pontual, viu que chegara a hora em que Teresa costumava recebê-lo,
habitualmente. Contrariando os seus hábitos, viu-se no jardim,
despreocupado, passeando um pouco aflito.
Logo que ela o viu, foi ao seu encontro e pegando-lhe na mão, num gesto
mais autoritário do que afetuoso, disse-lhe:
— Se você é um homem digno, vai dizer-me tudo quanto ouviu através
destes arbustos! Vamos; fale, estou escutando.
Sentou-se num banco, irritado com aquele acolhimento pouco habitual,
tentou causar-lhe certa inquietação com resposta evasiva. Ela, porém, logo o
desanimou numa atitude de descontentamento, e numa expressão estranha,
que lhe era completamente nova. O receio de causar-lhe aborrecimento fez
que Lourenço lhe contasse sem rodeios, simplesmente, a verdade.
— Então — disse ela, — foi somente isso que você ouviu? Eu estava
dizendo a certa pessoa que você nem pôde perceber quem fosse: "você é
agora o meu único amor na terra"?
— Então, foi a sonhar que ouvi essas palavras? Quase creio que sim,
Teresa. Basta que assim o ordene.
— Não, você não estava sonhando. Eu disse mais ou menos essas
palavras. E que foi que me responderam?
— Não ouvi resposta alguma, — disse Lourenço sobre o qual as palavras
de Teresa tinham produzido o efeito de uma ducha fria. — Nem sequer o
tom da voz com quem você estava falando. Agora, está .sossegada? Não faço
a menor suposição. Só pensei no senhor Palmer.
— Ah! — exclamou Teresa, com ar de grande satisfação — então,
pensou que fosse o Sr. Palmer?
— Por que não poderia ser ele? Seria uma injúria pensar que se reatasse
subitamente uma velha amizade?
— Efetivamente — respondeu Teresa, que não parecia disposta a negar
coisa alguma. E por que me espionava? Explique-me essa fantasia.
— Teresa! — exclamou vivamente, o moço, disposto a libertar-se de um
resto de sofrimento. Diga-se que tem um namorado e que esse namorado é o
senhor Palmer e eu a estimarei, verdadeiramente, e falar-lhe-ei com a maior
franqueza. Pedir-lhe-ei perdão dos excessos de minhas loucuras e nunca
mais terá motivo para censurar-me. Vejamos: quer que eu seja seu amigo?
Apesar de meus defeitos, sinto a necessidade de ser seu amigo e serei capaz
de o ser. A única coisa que lhe peço é que use comigo de franqueza.
— Meu querido menino, você fala-me como a uma donzela namoradeira,
que procurasse retê-lo junto dela e tivesse qualquer falta a confessar-lhe. Eu
não posso aceitar esta situação, que absolutamente não me convém. O senhor
Palmer não é e jamais será para mim mais do que um amigo a quem muito
estimo, com o qual, entretanto, nem sequer chego a formar a mínima
intimidade. É isto o que devo dizer-lhe; nada mais. Meus segredos, se os
tivesse, não carecem de expansão e peço-lhe que por eles se não interesse
além dos limites que desejo manter. Não tem, portanto, o direito de
interrogar-me. É você quem deve responder. Que estava você fazendo aqui
há quatro dias? Por que me espionava? Qual é o excesso de loucura que eu
devo conhecer — que eu devo conhecer e julgar?
— O tom em que me fala é pouco animador. Por que hei de confessar-
me agora, desde que você não se digna tratar-me como bom camarada, não
depositando confiança na minha pessoa?
— Não confesse coisa nenhuma — tornou Teresa, levantando-se, — isso
prova que você não é merecedor da estima que lhe tenho testemunhado e
que, procurando conhecer os meus segredos, não retribui coisa alguma,
absolutamente.
— Quer dizer, — disse Lourenço — que você me expulsa, que entre nós
está tudo acabado?
— Sim, tudo acabado; adeus! — concluiu Teresa em tom severo.
Lourenço saiu, furioso, sem poder articular palavra. Mas não tinha
andado ainda trinta passos, quando voltou para dizer a Catarina que se havia
esquecido de um recado de que o tinham encarregado junto de sua patroa.
Teresa estava sentada no pequeno salão. A porta que dava para o jardim
permanecia aberta. Teresa, aflita e abatida, parecia mergulhada em
profundas reflexões. O acolhimento que lhe fez foi extremamente frio.
— Ah! voltou? — perguntou, — de que foi que se esqueceu?
— Esqueci-me de dizer-lhe a verdade.
— Não quero ouvi-la.
— Entretanto, pediu-me que lhe dissesse.
— Eu julgava que o senhor a pudesse dizer, espontaneamente ...
— Podia, .sim, e devia. Fiz mal em não lhe dizer toda a verdade.
Vejamos: Teresa, você admite que seja possível a um homem da minha
idade poder ver você sem sentir-se imediatamente apaixonado?
— Apaixonado? — perguntou Teresa, franzindo as sobrancelhas, —
Quando você disse que não podia ser de mulher nenhuma, você não fez
pouco de mim?
— Absolutamente, não! Disse, apenas, aquilo que eu pensava.
— Então, você estava enganado, pois agora se confessa apaixonado.
Tem certeza?
— Por amor de Deus, não se zangue dessa maneira... Não é bem assim.
Idéias de amor passaram-me pela cabeça, pelos sentidos. Você tem tão pouca
experiência para julgar isso impossível?
— Estou na idade da experiência, — respondeu Teresa. — Há muito que
vivo sozinha; não tenho experiência de certas situações. Admira-se? Mas é
pura verdade. Embora tenha sido enganada, tenho bastante simplicidade...
como toda gente diz. Você disse-me centenas de vezes que me respeitava
demais para ver em mim simplesmente uma mulher e isto porque você não
amava as mulheres senão com muita grosseria. Eu sentia-me, pois, ao abrigo
do ultraje dos seus desejos e, entre todas as coisas que eu prezava em você,
era a sua sinceridade que mais apreciava.
— Eu disse isso de boa-fé. Será que tenho culpa ter vinte e quatro anos e
você ser bonita?
— Ainda sou bonita? Julgava que não.
— Não sabia. No começo, não achava... Depois, um belo dia, você
aparece-me assim. Foi sem desejar que experimentei tal sedução. Foi tão
sem querer que me senti desculpado. Devolvi a Satanás aquilo que a Satanás
pertencia, isto é, a minha pobre alma, e somente trouxe a César o que era de
César — o meu respeito e o meu silêncio. Todavia, desde há uma semana
que essa emoção me volta em sonhos, dissipando-se logo que me encontro a
seu lado. Dou-lhe a minha palavra, Teresa, quando a vejo, quando você me
fala, sinto-me calmo. Depois, não sei que sopro da primavera passa no
inverno do meu pobre coração e tenho a impressão de que você é quem cria
essa aragem de primavera em mim. É você,
Teresa, com esse seu culto por aquilo a que chama de verdadeiro amor!
Seja como for, isto dá que pensar!...
— Creio que você está enganado. Nunca falo de amor...
— Sim, bem sei, você tem a esse respeito uma opinião formada. Leu
algures que falar de amor era já amar ou ser amado... Mas o seu silêncio tem
grande eloqüência, suas reticências são febris e sua excessiva prudência
possui uma atração diabólica.
— Nesse caso — tornou Teresa, — não nos vejamos mais.
— Por quê? Que lhe pode interessar que tenha tido algumas noites de
insônia, se somente você poderia tranquilizar-me e fazer-me como eu era
dantes?
— Que é necessário fazer para reconquistar essa tranqüilidade?
— É isso mesmo que eu lhe pedia: que me dissesse que pertence a
alguém. Eu me daria por satisfeito e, como sou muito orgulhoso, ficaria
curado como se me tocasse a varinha mágica de uma fada.
— E se eu lhe disser que não pertenço a ninguém, que não desejo amar a
ninguém, isso não seria suficiente?
— Não! Eu teria a fatuidade de acreditar que você podia ter mudado de
parecer...
Teresa riu de boa vontade.
— Bem, disse ela, sinta-se curado e restitua-me essa amizade que me
envaidecia, em lugar de um amor do qual eu teria de envergonhar-me. Amo
a alguém.
—i Isso não basta, Teresa! É preciso que me diga a quem ama!
— Você acredita que esse alguém seja você mesmo, não é verdade? Pois
bem, tenho um companheiro. Está satisfeito, agora?
— Perfeitamente e beijo-lhe as mãos em sinal de reconhecimento pela
sua franqueza. Seja boa, Teresa, e diga-me se é ou não Palmer?
— Isso é impossível; eu mentiria.
— Então..,
— Não é pessoa que você conheça. É um ausente...
— Que, todavia, por aqui aparece algumas vezes...
— Assim parece, pois você surpreendeu-me num desabafo.
— Obrigado, Teresa, obrigado. Agora fico inteiramente à vontade. Sinto-
me firme na terra que calco aos pés. Sei quem você é, quem eu sou, e preciso
dizer-lhe que gosto mais de você assim. Você' é mulher, não é mais uma
esfinge. Por que não me disse isso há mais tempo?
— Então, sente-se assim dominado pela paixão? — perguntou Teresa em
tom escarninho.
— Talvez. Daqui a dez anos, eu lhe direi e então riremos os dois.
— Bem; está combinado. Boa-noite!
Lourenço deitou-se perfeitamente tranqüilo e desenganado. Desejara
essa criatura com veemente paixão, sem se atrever a deixar que ela o
percebesse. Não era seguramente uma boa paixão. Nela se misturavam a
vaidade e a curiosidade.
Acordou calmo e triste. Lastimava a sua quimera, a sua bela esfinge, essa
esfinge que lia em sua alma com atenção complacente, que o admirava, que
o repreendia asperamente, encorajando-o e lastimando-o, ao mesmo tempo,
sem jamais revelar qualquer coisa do seu destino, deixando-lhe apenas
pressentir os tesouros de afeição, de devotamento e de amor. Era dessa
forma que Lourenço gostava de interpretar o silêncio de Teresa e certo
sorriso, semelhante ao da Gioconda, que lhe aflorava aos lábios, todas as
vezes que blasfemava na sua presença. Nessas ocasiões, parece que ela lhe
dizia: "Eu seria capaz de descrever o paraíso em comparação com este
inferno mau, mas este pobre louco não me compreenderia.:."
Revelado o mistério de seu coração, Teresa perdeu, imediatamente, o seu
prestigio aos olhos de Lourenço. Era uma mulher como as outras. Ele sentia-
se mesmo tentado a rebaixá-la na sua estima, e embora ela nunca se deixasse
interrogar, desejaria acusá-la de hipócrita e afetada.
Essa situação durou uns três dias. Lourenço preparava diversos pretextos
de desculpa, se por acaso Teresa lhe pedisse
contas de todo o tempo que esteve ausente. No quarto dia, sentiu-se
dominado por uma depressão inexplicável. Em nenhum de seus amigos, ele
encontrava aquela bondade, aquela paciência, aquela delicadeza com que
Teresa costumava curá-lo desses aborrecimentos, procurando distraí-lo
de .suas preocupações, indagando da causa e do remédio do seu sofrimento
— ocupando-se dele, numa palavra. Só ela sabia o que convinha dizer-lhe e
parecia compreender que o destino de um artista como ele não era um caso
de pouca importância, sobre o qual um espírito elevado tinha o direito de
pronunciar-se. Se era infeliz, pior para ele...
Lourenço correu à casa de Teresa tão alvoroçadamente que se esqueceu
do que desejava dizer-lhe como desculpa. Teresa não se mostrou
descontente, nem surpreendida com o esquecimento do seu amigo e não lhe
fez pergunta alguma, de maneira que evitou que ele lhe mentisse. Irritou-se
com isso, observando que sentia, agora, mais ciúmes por ela do que antes.
— Certamente viu o companheiro — pensou, — para assim ter-se
esquecido de mim...
Entretanto, não lhe revelou o seu despeito e controlou-se com mais
cuidado, a fim de que Teresa se iludisse com a sua atitude.
Teresa percebera perfeitamente o amor daquele moço e não mais tinha
qualquer dúvida a respeito. Amava-o sinceramente. Queria-lhe um bem
enorme. Artista entusiasta, sob uma aparência calma e reflexiva, dedicava
uma espécie de culto a esse gênio sofredor e transviado..,.
Se tivesse a certeza de não despertar nele qualquer desejo material,
acariciá-lo-ia como filho. Em certos momentos, vinha-lhe mesmo à ponta
dos lábios a tentação de tratá-lo por tu com todo o carinho. Existiria amor
nesse sentimento maternal? Existia, certamente, sem que mesmo Teresa o
suspeitasse. Mas a mulher verdadeiramente casta, que tem vivido a maior
parte do tempo trabalhando, sem deixar-se dominar pelas paixões, consegue
guardar durante muito tempo em segredo um amor de que tomou a resolução
de defender-se. Quando Lourenço encontrava a tranqüilidade e bem-estar a
seu lado, ela achava, também, meio de atenuar-lhe os sofrimentos, sentindo
que ele seria incapaz de amar conforme ela entendia. Passada a crise,
gabava-se de ter encontrado num inocente logro o meio de prevenir-se contra
o seu estratagema.
Todos esses sofrimentos e perigos de um e outro eram ocultos e como
que disfarçados sob hábitos de alegria trocista, que é o sinete indelével dos
artistas franceses. É uma segunda natureza pela qual somos censurados pelos
estrangeiros do Norte. É esse hábito, ou melhor, essa segunda natureza,
entretanto, que torna encantadoras e delicadas as nossas relações e nos
defende, muitas vezes, contra muitas loucuras. Procurar o lado ridículo das
coisas. Zombar dos perigos em que a alma se encontra empenhada é procurar
afrontá-la, semelhante aos soldados que vão rindo e cantando para as linhas
de fogo. Ridicularizar um amigo é muitas vezes salvá-lo de uma vileza em
que nossa alma deveria comprazer-se. Finalmente, quando motejamos de nós
mesmos, preservamo-nos de uma estulta embriaguez do exagerado amor-
próprio.
Certa manhã, ficou concluído o retrato de Palmer e Teresa enviou da
parte de seu amigo uma apreciável soma que o jovem artista prometeu deixar
de lado para qualquer eventualidade, um caso de doença ou uma despesa
obrigatória e imprevista.
Lourenço, ao pintar-lhe o retrato, ligara-se de amizade ao americano.
Descobrira nele qualidades que, efetivamente, ele possuía: justo, correto,
generoso, inteligente, instruído. Era um homem rico, cuja fortuna lhe adviera
do comércio. Tinha viajado bastante, durante a sua juventude. Aos trinta
anos, tivera o bom senso de, verificando ser bastante abonado, desejar viver
por si próprio.
Palmer era um filósofo tolerante, de hábitos rígidos consigo mesmo, mas
bastante compassivo e tolerante com os outros. Pelas suas idéias, senão pelo
seu caráter, assemelhava-se à Teresa e quase sempre estava de acordo com
ela. Lourenço sentia-se um pouco enciumado com aquilo que Palmer
chamava sua "imperturbável unidade de espírito" e como isso era, apenas,
um ciúme intelectual, não gostava de queixar-se à Teresa. ...
— A sua definição não procede — dizia ela — acho Palmer muito calmo
e perfeito para mim.

CAPITULO III

Certo dia, a pedido de Palmer, Lourenço foi ao Hotel Maurice, onde


residia o americano, a fim de convencer-se de que o retrato estava
convenientemente emoldurado e embalado. Fecharam o engradado e Palmer
escreveu, a pincel, o endereço de sua mãe. Depois, quando conduziam a
encomenda, Palmer apertou a mão do artista, dizendo-lhe:
— Devo-lhe o grande prazer que vai ter minha mãe. Agora, quer
conversar um pouco? Queria dizer-lhe uma coisa.
Passaram para um salão, onde Lourenço viu muitas malas de viagem.
— Parto amanhã para a Itália — disse Palmer, oferecendo-lhe excelentes
charutos e um pavio de estearina para acendê-los, embora ele não fumasse.
Não quero ausentar-me sem falar-lhe de um assunto delicado, tão delicado
mesmo que se me interromper eu não seria capaz de encontrar palavras
convenientes para dizê-las em francês.
— Prometo-lhe que ficarei mudo como um túmulo, — disse Lourenço,
sorrindo, admirado e um tanto inquieto com aquelas palavras.
Palmer prosseguiu:
— Você gosta da senhorita Jacques e eu creio que ela também gosta de
você. É possível que venha a ser o seu namorado. Você prometeu-me que
não diria uma palavra. Não lhe estou pedindo ou perguntando coisa alguma.
Creio que você merece a honra que lhe reconheço, mas penso que não
conheça suficientemente a senhorita Teresa. É o que receio, em
conseqüência de algumas perguntas que você me fez a respeito de Teresa e,
também, em virtude de certos assuntos, que têm sido tratados diante de nós
ambos, no que lhe diz respeito e em razão dos quais tenho reparado que você
fica emocionado tanto ou mais do que eu. É a prova de ignorar muita coisa
a .seu respeito. E eu, que sei de tudo, quero dizer-lhe para que a sua
dedicação pela senhorita Jacques se baseie na estima e na confiança de que
ela é merecedora.
— Um momento, Palmer — exclamou Lourenço que ardia de
curiosidade, mas sentia-se dominado por um generoso escrúpulo: — É com
permissão ou por ordem da senhorita Jacques que vai contar-me essas coisas
a seu respeito?
— Nem uma, nem outra coisa, — replicou Palmer. Teresa nunca lhe
contará a sua vida.
— Então, não diga nada. Não desejo saber senão o que ela quiser que eu
saiba.
— Muito bem! — tornou Palmer, apertando-lhe a mão, mas se aquilo
que tenho a dizer-lhe a justifica de toda e qualquer suspeita?
— Então, qual o motivo pelo qual ela o oculta?
— Porque é generosa para com os outros.
— Nesse caso, o senhor pode falar, — disse Lourenço que não podia
conter-se.
— Não direi nomes seja de quem for, — prosseguiu Palmer. — Dir-lhe-
ei, apenas, o seguinte: numa grande cidade da França havia um rico
banqueiro, que seduzira certa moça, bondosa e ingênua, preceptora de seu
filho. Com ela, teve ele uma criança que nasceu há vinte e oito anos, no dia
de São Tiago, e que, registrada no cartório da municipalidade, como filho de
pais desconhecidos, recebeu como nome de família o prenome de Jacques.
Esse filho... é Teresa!
A preceptora recebeu do referido banqueiro um dote e casou-se, cinco
anos mais tarde, com um de seus auxiliares, homem honesto, que não
desconfiava de coisa alguma. O acordo realizou-se sob o maior sigilo. A
criança foi levada para o campo; o pai encarregou-se disso. Em seguida,
entrou para um convento, onde lhe foi dada esmerada educação, sendo ali
tratada com todo o cuidado e carinho. Nos primeiros tempos, sua mãe via
freqüentemente a menina. Mas ao contrair o casamento, o marido suspeitou
de qualquer coisa. Pediu demissão do emprego que exercia em casa do
banqueiro, indo com a esposa para a Bélgica, onde arranjou nova colocação
e enriqueceu. A pobre da mãe teve que ocultar as lágrimas e obedecer a seu
esposo. Essa mulher vive ainda, mas sempre longe de sua filha. Tem outros
filhos, é de uma conduta irrepreensível desde que se casou com o
funcionário do banco. Mas nunca se sentiu feliz. O marido tem-lhe muito
amor e muito cuidado com ela, mas sem deixar de ser ciumento.
Tudo parecia indicar que o tempo chegasse a provocar a confissão da
pobre criatura e o perdão da outra. Isso, em geral, acontece nos romances,
mas nada existe de menos lógico do que a vida real. E assim esse lar
continua a viver perturbado, como no primeiro dia: — marido apaixonado,
inquieto, rude, e a esposa arrependida, porém, muda e sofredora.
Nas difíceis circunstâncias em que se encontrava, Teresa não pôde,
portanto, contar com o apoio, com os conselhos e a consolação de sua mãe.
Todavia, esta dedica-lhe entranhado amor, tanto mais profundo quanto sabe
que ela é obrigada a vê-la, em segredo, às escondidas, quando vem sozinha a
Paris, onde passa somente um ou dois dias, como aconteceu ultimamente. Só
passados alguns anos foi que ela conseguiu arquitetar alguns pretextos,
obtendo do marido essas raras permissões.
Teresa adora a sua mãe e jamais confessaria qualquer coisa que pudesse
comprometê-la. É esse o motivo pelo qual você nunca ouviu da boca de
Teresa qualquer palavra de censura às mulheres.
Agora, vou contar-lhe a história da condessa das ... três estrelinhas.
Creio que é assim vocês dizem, quando não querem nomear as pessoas por
seu nome. Essa condessa que não usa o seu título nem o nome de seu
marido, é, também, Teresa.
— Então, ela é casada? Não é viúva?
— Calma! É casada e.... não é. Vai ver. Teresa tinha quinze anos quando
seu pai, o tal banqueiro ficou viúvo e \ livre. Seus filhos legítimos estavam
todos estabelecidos. Era • homem excelente e, apesar do erro de que lhe falei
e que não desculpo, era impossível deixar de apreciar homem dotado de
espírito e generosidade. Mantive com ele as melhores relações e foi ele quem
me contou a história do nascimento de Teresa e, uma vez por outra, levava-
me ao convento, onde a filha se achava internada. Era esta já a esse tempo
uma bela menina, instruída, amável e cheia de sensibilidade. Creio que ele
desejava que eu viesse a pedi-la em casamento. Mas, naquele tempo, o meu
coração não estava livre... de outra maneira... Mas, assim, eu não podia
pensar em tal coisa...
Então, ele pediu-me informações acerca de um moço de origem ibérica,
de família nobre, que possuía grandes propriedades em Havana. Era um belo
rapaz, que freqüentava a casa do banqueiro. Eu já encontrara esse moço em
Paris, mas não o conhecia pessoalmente, e por isso, abstive-me de | formular
opinião a seu respeito. Era um jovem sedutor, mas fosse pelo que fosse
jamais me fiaria nele. Era o conde das três estrelinhas e com ele realizava-se
um ano mais tarde o seu casamento com Teresa.
Nisto, tive eu de ir à Rússia. Quando regressei, o banqueiro tinha
falecido de uma apoplexia e Teresa estava casada com o referido moço,
positivamente, um louco para não dizer um infame. Era já casado em
Havana, quando teve a audácia de casar com Teresa.
Não me pergunte como foi que o pai de Teresa, homem de espírito e com
grande experiência da vida, se deixou enganar assim, a pressa de vê-la
casada facultou o equívoco. Confiou no Conde, que era uma pessoa polida.
Nos últimos anos de sua vida, o banqueiro tinha caído em novas
leviandades, o que levava a crer que seu espírito já se achasse
comprometido. Ele fizera um dote a Teresa, em vez de torná-la sua herdeira.
Teresa não quis entrar em litígio, embora contasse com grandes
probabilidades de êxito. Viu-se, pois, completamente arruinada, justamente
no momento em que ia ser mãe. Nessa mesma época, chegava à sua casa
certa mulher, exasperada, que reclamava os seus direitos e estava decidida a
provocar um escândalo: era a primeira, a única esposa legítima de seu
marido. Teresa demonstrou uma coragem não comum. Tranqüilizou a
criatura e conseguiu dela a promessa de que não lhe moveria processo
algum. Obteve do Conde o compromisso de que se uniria novamente à sua
esposa legítima, regressando em sua companhia para a Europa.
Dadas as circunstâncias do nascimento de Teresa e do segredo que seu
pai desejara envolver as testemunhas de sua paixão, o seu casamento
realizara-se, também, no estrangeiro a portas fechadas e fora, também, no
exterior que o jovem casal tinha vivido esse tempo. Essa sua vida tinha sido
bastante misteriosa. O Conde, receoso de vir a ser desmascarado, se voltasse
a aparecer na sociedade, fazia crer que Teresa tinha uma verdadeira paixão
pelo isolamento e a jovem esposa, confiante e crédula, achava muito natural
que seu marido viajasse em sua companhia e sob nome suposto, a fim de
passar despercebido.
Quando Teresa descobriu o horror de sua situação, foi fácil amortalhar
tudo em silêncio. Consultou discretamente um advogado e tendo-se
certificado de que o seu casamento era nulo, mas que seria preciso um
processo de julgamento para rompê-lo, caso quisesse entrar na posse da sua
plena liberdade, tomou naquele momento uma resolução inabalável: — a de
não ser livre, nem casada, a fim de não macular o nome do pai de seu filho
num escândalo e numa condenação infamante. A criança tornava-se, assim, e
verdadeiramente, um filho natural. Mas seria muito melhor que não tivesse
um nome e ignorasse para sempre as circunstâncias de seu nascimento a ter
de reclamar um nome desonrando seu pai. Teresa gostava ainda, ao que
parece, desse infame. Ela confessou-me que ainda o amava e ele tinha por
essa mulher uma paixão estranha. Ocorreram lutas pungentes, cenas incríveis
em que Teresa se debatia com energia superior à sua idade, muito acima da
fragilidade do seu sexo. A mulher, quando é heróica, raras vezes o é pela
metade...
Finalmente, saiu vitoriosa. Conservou o filho, expulsou o culpado, que
partiu em companhia de sua rival, que, apesar de seus ciúmes, reconheceu a
magnanimidade de Teresa, chegando a beijar-lhe os pés, ao retirar-se com o
marido.
Depois disso, Teresa mudou de país e de nome. Fez-se passar por viúva e
resolveu esquecer as poucas pessoas que tinha conhecido, começando a viver
para seu filho com verdadeiro entusiasmo. Era para ela tão querido esse
menino que pensava consolar-se com ele de todos os seus sofrimentos.
Mas esta última felicidade não devia durar por muito tempo. Como o
Conde possuía uma grande fortuna e não tinha filhos da primeira mulher,
Teresa viu-se obrigada a aceitar, a pedido do próprio Conde, uma pensão
razoável com a qual pudesse educar convenientemente o seu filho.
Mas logo que o conde reconduziu a esposa à cidade de Havana,
abandonou-a de novo. Voltou à Europa e foi lançar-se aos pés de Teresa,
suplicando-lhe que fugisse com ele e com o filho para outro extremo da
terra. Teresa foi inexorável. Refletira muito e orara. Seu coração tinha endu-
recido, após tanto sofrimento. Já não amava o Conde. Justamente por causa
do filho não queria absolutamente que aquele homem se tornasse o senhor de
sua vida; perdera o direito de .ser feliz, mas não o de respeitar-se e ser
respeitada. O Conde ameaçou deixá-la sem recursos. Respondeu que não
tinha receio de trabalhar para viver. O miserável recorreu, então, a um meio
infame. A fim de obrigá-la a render-se e vingar-se de sua resistência, raptou
a criança e desapareceu. Teresa tentou seguir o filho, mas ele tomou
caminho incerto, de sorte que não conseguiu localizá-lo.
Foi nesse momento que a encontrei na Inglaterra, desesperada e cansada,
morando num albergue. Estava quase louco e tão devastada pela desgraça
que me custou reconhecê-lo.
Consegui-lhe a promessa de descansar um pouco, deixando-me agir.
As minhas pesquisas foram de um êxito deplorável. O Conde embarcara
para a América e a criança falecera, ao chegar, devido a excessos de fadiga.
Quando levei essa infausta notícia ao conhecimento de Teresa, fiquei
espantado com a calma revelada pela infeliz. Durante oito dias, dir-se-ia que
era mais pessoa morta do que viva. Finalmente, derramou abundantes
lágrimas e verifiquei que estava salva. Vi-me obrigado a deixá-la. Disse-me
ela que desejava fixar residência, onde se encontrava. Como eu me
inquietasse a respeito dos seus meios de subsistência, ela enganou-me
dizendo-me que sua mãe não lhe deixava faltar coisa alguma. Mais tarde,
porém, vim a saber que sua mãe fora impedida de auxiliá-la, pois não
dispunha de quaisquer recursos de suas economias domésticas, pois era
obrigada a prestar contas de tudo quanto gastasse. Ela não ignorava, aliás, a
desgraça de sua filha. Teresa escrevia-lhe em segredo, mas ocultava-lhe os
seus sofrimentos para não lhe causar aflição.
Teresa vivia na Inglaterra, ganhando a sua vida dando lições de francês,
desenho e música, pois era talentosa, possuía boa cultura e muita coragem
para tirar proveito de seus conhecimentos, sem ver-se obrigada a recorrer à
piedade alheia.
Ao fim de um ano, regressou à França, fixando residência em Paris,
cidade que até então lhe era estranha e onde não conhecia ninguém. A esse
tempo, contava vinte anos, pois tinha-se casado aos dezesseis. A sua beleza
não era tão fascinante como outrora e foram precisos oito anos de repouso e
resignação para recuperar a sua saúde e a mansa alegria de antigamente.
Durante todo esse tempo, via-a, raramente, pois era obrigado a constantes
viagens. Encontrei-a sempre altiva e digna, trabalhando com indefectível
coragem e ocultando a sua pobreza sob um milagre de ordem e asseio, não se
queixando nunca de Deus ou de pessoa alguma, não desejando, porém, falar
do passado, acariciando algumas vezes as crianças, em segredo, deixando-as
logo, quando alguém olhava para ela, receando, sem dúvida, que a vissem
emocionada.
Há três anos que eu a não encontrava, e quando vim pedir-lhe que fizesse
o meu retrato, procurava justamente endereço dela, quando você me falou a
respeito de Teresa. Como havia chegado na véspera, ignorava ainda que ela
conseguira, finalmente, êxito artístico, o seu bem-estar, a celebridade. Ao
encontrá-la assim, compreendi que essa bela alma, tão oprimida pelo
sofrimento, podia ainda viver, amar, sofrer e ser feliz. Deve, portanto, fazer
também o possível para que ela o seja, pois bem o conquistou. Se você está
certo de que a não fará sofrer, prefira fazer saltar os miolos a ter de voltar
esta noite à casa de Teresa. É o que desejava dizer-lhe.
— Um momento, — disse Lourenço, vivamente comovido — vive ainda
esse conde das três estrelinhas?
— Infelizmente, ainda vive.
Lourenço, ao ouvir esta narração de Palmer, pensara casar com Teresa.
A declaração comovera-o. As inflexões monótonas e algumas bizarras
transposições de Palmer, que fora inútil reproduzir, haviam dado à viva
imaginação do ouvinte estranha e terrível sensação. Tão estranha e terrível
como o destino de Teresa. Essa filha sem pai, essa mãe sem filho, essa
mulher sem marido não estaria sujeita a uma desgraça excepcional? Que
tristes idéias não devia ela ter guardado do amor e da vida. A esfinge
reaparecia diante dos olhos deslumbrados de Lourenço. Agora, Teresa
parecia-lhe mais misteriosa do que nunca. Ter-se-ia ela consolado para
sempre de tantos desenganos ou teria ao menos sentido um instante de
consolo?
Lourenço abraçou, efusivamente, Palmer, dizendo-lhe sob juramento que
amava Teresa e se fosse amado por ela, recordar-se-ia, em todas as horas de
sua vida daquela hora que vinha de escoar-se no tempo e da revelação que
acabava de ouvir. Depois, prometendo a Palmer que não daria a entender que
conhecia a história da senhorita Jacques, voltou para casa e escreveu-lhe:

"Teresa,
Não acredite numa só das palavras que lhe tenho dito nestes últimos
meses. Não creia no que lhe disse, quando você teve receio de ver-me
apaixonado. Não estou apaixonado. Amo-a, loucamente, perdidamente. B
absurdo, ê insensato, é miserável. Mas eu que não acreditava poder ou
jamais escrever a uma mulher as palavras "eu a amo", acho agora estas
palavras frias e "moderadas demais para explicar o que existe entre nós.
Não posso viver mais com este segredo que me sufoca e que você não quer
adivinhar. Tenho tentado deixá-la cem vezes e fugir para o fim do mundo,
para poder esquecê-la. Ao cabo de uma hora, porém, estou novamente à sua
porta e, muitas vezes, à noite, devorado pelo ciúme, quase furioso contra
mim mesmo, peço a Deus que me cure deste meu mal. Mostre-me esse
homem nos seus braços, Teresa, o seu namorado, ou então goste de mim.
Alem desta solução, não encontro senão uma terceira — a de que me mate
para acabar com isto. Ê covarde e estúpida esta ameaça banal.
Teresa, não creia que eu seja um corrupto! Você sabe, perfeitamente,
que no fundo da minh'alma não se encontra lama. Do abismo a que me
havia atirado contra a minha vontade, sempre tenho invocado o céu. A seu
lado, sinto-me casto semelhante a uma criança e, algumas vezes, você não
receou pegar em suas mãos minha cabeça, como se fosse beijar-me na
fronte. E você dizia: "Cabeça má; o que merecia era apanhar um pouco!" E,
entretanto, em vez de bater-me, você esforçava-se para que nela penetrasse
o sopro puro e ardente do seu espírito. Pois bem; você não teve muito êxito.
E agora, que acendeu o fogo sagrado sobre o altar, volta-se e diz: "Confie a
guarda deste fogo sagrado a outra! Case-se, ame uma bela moça, que lhe
seja bem dedicada. Tenha filhos, ambição por causa deles, ordem, felicidade
doméstica, sei lá o quê? Tudo, exceto a fuinha pessoa!"
Eu, Teresa, sinto que ê a você que amo apaixonadamente e não a mim
mesmo. Desde que a conheço, você tem-me feito acreditar na felicidade.
Não pergunto a mim mesmo se o seu amor será a felicidade para mim. Sei,
apenas, que ele será a minha vida e que, boa ou má, ê essa vida ou essa
morte a única coisa que preciso,"
LOURENÇO

CAPITULO IV

Teresa sentiu-se profundamente abalada com esta carta que a feriu


semelhante a um raio. A palavra paixão causava-lhe revolta.
— Paixões para mim! — dizia ela a si própria. — Então, ele acredita que
eu não sei o que venha a ser isso e que vou voltar a essa beberagem
envenenada! Que fiz eu que lhe tenho dado tanta ternura e tantos desvelos
para que me proponha, à guisa de agradecimento, o desespero, a febre e a
morte?...
Mas, apesar de tudo — pensava, — esse infeliz não tem culpa. Não sabe
o que quer, nem o que deseja. Como farei para acalmá-lo e desviá-lo de uma
fantasia que o torna infeliz? A culpa é minha, ele tem razão em dizê-lo.
Desejando afastá-lo da libertinagem e da licenciosidade, habituei-o a uma
dedicação honesta. Mas ele é homem e julga incompleta a nossa amizade.
Por que me enganou? Por que me declarou que se sentia tranqüilo a meu
lado? Que devia eu fazer para reparar a loucura da minha inexperiência? Não
tenho sido bastante fiel ao meu sexo no sentido da persuasão. Não tenho
procurado compreender que a mulher por mais enfastiada que esteja da vida
é sempre capaz de perturbar o cérebro de um homem...
Sozinha no seu estúdio, ia e vinha, dominada por um mal doloroso,
olhando ora para a carta fatal, que deixara sobre a mesa, como se não
soubesse o que fazer dela, sem se decidir a reabri-la ou destruí-la, ora a olhar
para o seu trabalho interrompido no cavalete. Ela trabalhava justamente com
entusiasmo e prazer no momento em que lhe haviam entregue aquela carta,
que trazia sua dúvida, sua desordem e seus temores. Era semelhante à
miragem que fizesse ressurgir no horizonte tranqüilo e nu, todos os espectros
de suas antigas desgraças. Cada palavra escrita naquela folha de papel era
semelhante a um grito de morte, ouvido no passado, como profecia de novas
desventuras.
Teresa procurou recuperar a serenidade, voltando a pintar. Era o grande
remédio contra todas as agitações da sua vida, mas, naquele dia, o remédio
não surtiu o mínimo efeito. O medo que essa paixão lhe inspirava atingia no
mais puro e mais íntimo santuário de sua vida. — "Duas felicidades
perturbadas ou destruídas" — dizia ela, pondo de lado os pincéis e olhando
para a carta — "o trabalho e a amizade".
O resto do dia passou-se sem ela resolver coisa alguma. No seu espírito,
havia, apenas, um ponto claro: — a resolução de dizer não. Mas queria que
fosse um não de verdade e não queria dizê-lo depressa, com essa rudeza
assustadiça das mulheres. A maneira de proferir esse não sem apelo que não
devia deixar lugar para qualquer sentimento, nem para esperanças, era para
Teresa um problema difícil e cheio de amargura. Aquela recordação era o
seu próprio amor. Quando há um morto querido a enterrar ninguém se decide
a deitar um pano branco sobre o seu rosto, atirando-o em seguida à fossa
comum. Desejar-se-ia, preferentemente, embalsamar o corpo do morto
querido num túmulo previamente preparado, onde pudesse ser visto de
tempos a tempos e diante do qual fosse fácil orar pela sua alma.
Chegou a noite sem Teresa haver encontrado um expediente para
recusar-se e não o fazer sofrer muito. Catarina, que a viu jantar sem vontade,
perguntou-lhe, bastante inquieta, se estava doente.
— Não! — respondeu Teresa. Apenas, preocupada.
— A senhora trabalha muito, — tornou a boa velha, — nem pensa em
viver.
Teresa ergueu um dedo no ar. Era o gesto, cuja significação Catarina
conhecia e queria dizer: "Não tratemos de tal assunto".
A hora em que Teresa recebia o seu pequeno número de pessoas amigas,
havia algum tempo somente era aproveitada por Lourenço. Embora a porta
se mantivesse aberta para quem desejasse entrar, Lourenço vinha sozinho, ou
fosse porque os outros estivessem ausentes (era a época de ir ou ficar no
campo), ou fosse tivessem sentido em Teresa certa preocupação, um
involuntário desejo mal dissimulado de conversar exclusivamente com
Lourenço.
Lourenço chegava às oito horas. Teresa olhou para o relógio, dizendo de
si para consigo:
— Não dei resposta. Hoje, certamente, ele não virá. Sentiu no coração
um grande vácuo e refletiu:
— Não convém mesmo que ele volte aqui.
Como passar essa longa noite que ela costumava preencher a conversar
com seu jovem amigo, realizando alguns esboços ou qualquer trabalho
feminino, enquanto ele fumava, estendido indolentemente nas almofadas do
diva? Pensou fugir ao tédio, fazendo uma visita a sua amiga que morava no
bairro de Saint-Germain, em companhia da qual ia, às vezes, ao teatro. Mas
essa amiga recolhia-se cedo ao leito e decerto já seria tarde, quando Teresa
chegasse à sua casa. O percurso a seguir era longo e as carruagens andavam
a passo lento. Além disso, era preciso vestir-se e Teresa, que estava de
chinelas, como em geral os artistas que trabalham com afinco e não
suportam coisa que os moleste, tinha preguiça de fazer quaisquer pre-
parativos para uma visita. Atirar aos ombros um xale e mandar a carruagem
de aluguel seguir pelas aléias desertas do Bosque de Bolonha?
Teresa tinha ali passeado, assim, em companhia de Lourenço, quando,
nas tardes de calor, sentia necessidade de ar fresco sob as árvores do grande
parque parisiense. Para qualquer outra pessoa, tais passeios redundariam
num compromisso, mas Lourenço guardava religiosamente o segredo de sua
confiança. E os dois compraziam-se na excentricidade dessas misteriosas
entrevistas, como de qualquer coisa que ficasse já longe no passado e num
suspiro disse a si mesma que jamais elas se repetiriam:
— Foi nos bons tempos! Nada disso poderia recomeçar para ele que
sofre, nem para mim que presentemente o não ignoro...
Eram nove horas, quando, finalmente, se dispunha a dar uma resposta a
Lourenço. Nesse instante, o som da campainha a fez estremecer. Era ele!
Teresa levantou-se para dizer a Catarina que dissesse que ela havia saído.
Era, apenas, outra carta de Lourenço... Teresa lastimou interiormente que
não tivesse sido ele. Essa carta continha apenas as seguintes palavras:
"Adeus, Teresa! Você não me ama e eu amo a você como uma criança!"
Estas duas linhas fizeram-na estremecer da cabeça aos pés. A única
paixão que ela jamais procurara extinguir em seu peito era o amor materno.
Essa chaga, aparentemente fechada, sangrava sempre como um amor que
não foi saciado.
— Como uma criança! — repetiu Teresa, apertando entre as mãos
convulsas, com um arrepio estranho o bilhete de Lourenço. Ele ama-me
semelhante a uma criança! Saberá o mal que assim me fez, recordando-me?
Adeus! Meu filho, também, já sabia dizer adeus, mas não me disse quando o
levaram. Eu o teria ouvido e agora nunca mais o tornarei a ouvir...
Estava excitadíssima e desatou num choro convulso.
— A senhora chamou-me? — perguntou-lhe Catarina, entrando na sala.
— Mas, meu Deus, que é que a- senhora tem? Agora está chorando como
dantes!...
— Nada, nada, deixe-me... — respondeu Teresa. — Se alguém vier
visitar-me diga que fui ao teatro. Quero ficar sozinha. Sinto-me doente,
Catarina saiu e foi para o jardim. Tinha visto passar Lourenço a passos
furtivos, ao longo da sebe.
— Não fique assim com essa cara aborrecida — disse Catarina ao jovem.
Não sei porque é que a patroa está chorando, mas deve ser por culpa sua. O
senhor é quem a faz sofrer. Ela não quer vê-lo. Venha daí pedir-lhe perdão!
— Ela está chorando? — perguntou o moço. Por que será?
E de um pulo atravessou o pequeno jardim, indo cair de joelhos aos pés
de Teresa, que estava soluçando no salão nobre, a cabeça entre as mãos.
Lourenço teria ficado louco de alegria ao contemplá-la naquela posição,
se realmente fosse o libertino que, por vezes, parecia desejar ser. Mas, no
fundo do coração era profundamente bondoso. Teresa possuía sobre ele a
secreta influência de fazê-lo voltar à sua natureza verdadeira. As suas
lágrimas produziram-lhe uma dor real e profunda. Lourenço suplicou-lhe
que esquecesse mais essa loucura sua e dominasse a crise com a doçura de
seu raciocínio.
— Só desejo o que você deseja, — disse Lourenço e, visto que você
chora a nossa amizade morta, juro-lhe que a farei renascer, sem lhe causar
qualquer desgosto. Mas, veja, minha boa e doce Teresa, irmã querida:
sejamos francos; não mais me sinto com força para enganá-la. Tenha a
bondade de aceitar o meu amor como triste descoberta que tenha feito e
como um mal de que queira curar-me pela sua paciência e bondade. Para
consegui-lo, envidarei todos os meus esforços, dou-lhe a minha palavra. Seja
para mim como uma irmã de caridade que não se limita a tratar de uma
ferida, mas se esforça igualmente por reconciliar uma alma com o céu.
Teresa, não retire as suas mãos cheias de lealdade, não desvie a cabeça, tão
bela na sua dor. Não me levantarei de seus pés sem que você haja permitido
ou ao menos perdoado o ser tão amada por mim.
Teresa devia aceitar a sinceridade destas palavras, porque Lourenço
estava de boa-fé. Repeli-lo seria antes uma confissão da viva ternura que por
ele sentia. Mostrou-se corajosa e talvez, o fosse, sinceramente, porque ainda
se acreditava forte. Romper naquele momento teria sido provocar reações
terríveis, emoções que seria melhor acalmar. Isso poderia levar ainda alguns
dias.
Acalmaram-se, pois, um e outro, auxiliando-se mutuamente a esquecer o
temporal que desabara. Esforçaram-se até para rirem dele, para poderem
tranqüilizar-se a respeito do futuro. Como quer que fosse, porém, a sua
situação estava essencialmente mudada e a intimidade havia dado um passo
de gigante. O receio de perder-se fez que um se aproximasse do outro e
jurando que nada havia mudado entre eles quanto à amizade, transparecia em
todas as suas palavras e em todas as suas idéias uma espécie de cansaço que
era já o abandono do amor.
Catarina, ao trazer o chá, acabou de aproximá-los ainda mais por suas
ingênuas e maternais preocupações.
— Seria muito melhor — disse à Teresa — que a senhora comesse uma
asa de frango* do que engolir num estômago vazio este simples chá. O
senhor sabe, senhor Lourenço, que a patroa não chegou a comer quase nada,
no jantar? — terminou ela, dirigindo-se a Lourenço.
* Quase todos os escritos em torno de George Sand (Amandine Aurore
Lucie Dupin, baronesa de Dudevant), a imortal autora destas admiráveis
páginas, se referem à predileção dela pelas asas de frango, como elegante
motivo de uma alimentação descuidada, que levou Frederico Chopin, um dos
gênios da música universal, seu companheiro e noivo, a um estado de
tuberculose que acabou por matá-lo em plena mocidade. A sugestão de
Catarina comprova o que estamos dizendo. Julgavam autores e personagens
daquele tempo (como muitas pessoas, ainda hoje, julgam) que asas de frango
fossem alimento especial e completo, quando não passam de apetitosos
motivos de elegância alimentar, sem dar ao organismo os elementos
indispensáveis a uma saúde normal, como os hidratos de carbono (massas,
pão, batatas, macarrão, doces, arroz etc.), proteínas (carne, peixe, fígado,
miúdos, queijo, leite, ovos etc.), gorduras (banha, manteiga, toucinho, azeite,
óleos etc.) e vitaminas (complexos), encontradas nas frutas de estação e nas
verduras cruas. Essa alimentação variada dá ao nosso organismo o suficiente
para alcançarmos, em média, aquelas imprescindíveis calorias diárias (2.500
a 3.000). O frango tem um teor muito baixo de proteína em virtude de ser
alimento muito rico em água, mais ou menos 65 por cento. (Nota do "Clube
do Livro").

— Pois bem, nesse caso, vamos cear depressa! Não diga que não,
Teresa. Você deve alimentar-se. Que seria de mim se você ficasse doente?
E como Teresa recusasse, porque efetivamente não tinha fome, ele
reclamou, a um sinal de Catarina para que insistisse, dizendo que ele mesmo
estava com fome, o que era verdade, porque, efetivamente, não tinha
jantado.
Como Teresa lhe oferecesse o jantar, comeram ambos, pela primeira vez,
o que na vida solitária e modesta de Teresa não era um fato sem importância.
Comer em comum, à mesma mesa, é uma fonte de intimidade e num sentido
mais elevado, como a própria palavra indica, uma verdadeira comunhão.
Lourenço comparou-se, imediatamente, ao filho pródigo, sorrindo, para
quem Catarina se dera pressa em matar o novilho gordo. E esse novilho
gordo, que revestira a forma de um frango, emprestou muita alegria aos dois
convivas.
Mas aquilo era muito pouco para o apetite do rapaz, tanto que Teresa
ficou preocupada. O bairro não oferecia nenhum recurso e Lourenço não
quis que Catarina se incomodasse com eles. Depois de demorada procura,
descobriu-se no fundo de um armário um pote de geléia, presente de Palmer.
Teresa não reparara ainda no presente. Lourenço evocou logo a recordação
do excelente Dick, pessoa de quem tivera a tolice de ter ciúmes e a quem
estimava agora de todo o coração.
No dia seguinte, Lourenço enviou-lhe flores magníficas, acompanhadas
de um bilhete, cheio de ternura, doce e respeitoso, que a deixou comovida.
Considerava-se o mais feliz dos homens. Não desejava outra coisa além do
seu perdão. Aceitava todas as privações, todos os rigores, desde que não lhe
fosse proibido ver e ouvir a sua amiguinha. Ele sabia muito bem que Teresa
não lhe podia oferecer o seu amor, o que não o impedia de dizer logo em
seguida: "Não é indissolúvel o nosso santo amor?"...
Nada é mais perigoso como essa intimidade em que fazemos a promessa
de não nos atacar, mutuamente, quando uma das partes não inspira à outra
qualquer repulsa física.

CAPITULO V

Após dolorosa meditação, Teresa disse a Lourenço:


— Desejo aquilo que você deseja, pois chegamos ao ponto em que o erro
a cometer consiste na reparação de uma série de erros cometidos. Tenho sido
culpada em relação à sua pessoa, por não ter tido a prudência egoísta de fugir
de você. ]y[as é muito melhor que eu seja culpada, permanecendo sua
companheira, à custa do meu descanso de espírito e do meu orgulho.
Escute — continuou, segurando entre as suas mãos a mão de Lourenço
com toda a força — não retire nunca esta mão e aconteça o que acontecer
seja bastante honrado e firme para não se esquecer de que antes de ser sua
namorada, tenho sido sua amiga verdadeira. Desde o primeiro dia de sua
paixão, tenho repetido isto à minha alma. Se tiver de sofrer, devido ao seu
caráter ou ao seu passado, que seja... Sentir-me-ei recompensada se o livrar
do suicídio que você estava prestes a realizar, quando o conheci. E se o não
fizer, pelo menos eu terei me esforçado nesse sentido e Deus me perdoará
uma abnegação inútil, pois sabe que é sincera esta oferenda.
Lourenço sentira-se cheio de entusiasmo, reconhecimento e fé, nos
primeiros dias desta união. Elevara-se acima das suas forças, tinha arroubos
religiosos, bendizia sua querida amiguinha por haver-lhe dado, finalmente, a
oportunidade de conhecer o verdadeiro amor, casto e nobre, amor com que
ele sonhara tanto e do qual se julgara para sempre deserdado, aliás por culpa
exclusivamente sua.
Teresa acreditou, firmemente, em tudo isso e entregou-se à alegria de
haver dado toda essa felicidade e restituído toda essa grandeza a uma alma
privilegiada. Esqueceu todas as suas apreensões, considerando-as sonhos
vãos, levados a sério. Um e outro escarneceram de tais sonhos.
Teresa rejuvenescera uns dez anos. Agora, parecia uma criança, mais
ainda do que o próprio Lourenço. Não sabia o
que imaginar para tornar-lhe a vida de tal forma que ele não sentisse
sequer o vinco de uma folha de rosa.
Pobre Teresa! A sua embriaguez não durou sequer oito dias completos.
O sétimo dia da sua felicidade foi, irrevo-gàvelmente, o derradeiro.
Circunstâncias fortuitas tinham concorrido para prolongar essa eternidade de
alegrias, que durou uma semana. Durante esse tempo, nenhum dos amigos
íntimos de Teresa fora visitá-la e ela não tivera nenhum trabalho urgente.
Lourenço prometia voltar ao trabalho desde que lhe fosse possível
retomar a posse do seu estúdio, onde os operários procediam a certas
reparações. Como o calor estava excessivo, ele propôs a Teresa passarem
oito dias no campo, em pleno bosque. Era o sétimo dia. Viajaram e
chegaram à noite num hotel, de onde saíram, após o jantar, e encaminharam-
se à floresta, num passeio agradável. A noite estava magnífica, com um luar
esplêndido. Tinham alugado cavalos e um guia, porém, este logo os
aborreceu com seu pretensioso palavreado. Percorreram umas duas léguas e
encontravam-se ao pé de um grupo de rochedos conhecidos de Lourenço.
Este propôs que despedissem o guia, regressando ambos a pé, embora fosse
já bastante tarde.
— Não sei porque não passamos a noite aqui na floresta, — disse Teresa.
Não há lobos, nem ladrões. Descansemos aqui enquanto você quiser e se
preferir não voltemos mais, se for de seu agrado.
Ficaram sós e ocorreu um fato bizarro, quase fantástico. Tinham subido
ao cume de um rochedo, onde se sentaram no musgo espesso e seco.
Lourenço contemplava o céu admirável, onde a lua amortecia a claridade das
estrelas. Somente duas ou três de primeira grandeza brilhavam ainda acima
do horizonte. Deitado de costas, Lourenço contemplava, maravilhado, o
firmamento.
— Desejaria saber o nome da estrela que está quase por cima da minha
cabeça e que parece olhar para mim.
— Chama-se Vega! — respondeu Teresa.
— Então, você é assim tão sábia que conhece o nome de todas as
estrelas?
— Quase. Não é difícil e num quarto de hora você saberá tanto como eu.
Quando quiser aprender...
— Não, obrigado. Prefiro ignorar os seus nomes, para nomeá-los
conforme me der na fantasia.
— Tem razão.
— Prefiro passear ao acaso sobre essas linhas traçadas no alto e fazer
combinações de grupos, de acordo com a minha imaginação, a caminhar pela
vontade dos outros. É possível, todavia, que esteja errado. Você gosta dos
caminhos abertos e amplos, não é verdade?
— Anda-se melhor, porque são melhores para os pés. Eu não possuo
como você botas de sete léguas... Não tenho asas para voar...
— Veja se arranja asas para levar-me até lá. Mas não falemos em
separar-nos. Essa palavra seria capaz de fazer chover...
— Quem pensa nisso? Não repita essa palavra terrível.
— Não, não pensemos nisso, — exclamou Lourenço, levantando-se
bruscamente.
— Aonde vai? — perguntou Teresa.
— Não sei — respondeu ele. — Ah! Sim, a propósito... Existe por estas
bandas um eco extraordinário. A primeira vez que vim aqui com... Você,
certamente, não deseja saber como se chamava a moça, não é verdade? Senti
o mais vivo prazer ao ouvi-la daqui, enquanto ela cantava lá em baixo, na
colina que nos fica defronte.
Teresa não disse palavra. Sentiu que essa recordação de uma das suas
más companhias não devia ser revelada nessa contingência romântica.
Lourenço perguntou-lhe se queria também cantar para ele.
— Não posso — respondeu, docemente, a companheira. — Há muito
que não montava a cavalo; agora, sinto-me um pouco fatigada.
— Se não está cansada demais, Teresa, faça um pequeno esforço. Dar-
me-ia tanto prazer.
Teresa era orgulhosa demais para demonstrar ciúmes. Mas sentia um
certo pesar. Voltou-se e fingiu que estava tossindo.
— Vamos — disse Lourenço, sorrindo, — você é mulher fraca. E uma
vez que não acredita no meu eco, quero que ao menos escute o meu. Fique
aqui, enquanto eu subo acolá. Espero que não terá medo de ficar só durante
cinco minutos.
— Não! — tornou Teresa em tom frio. Absolutamente, não tenho medo.
Para subir até ao alto rochedo, era preciso descer um pequeno barranco,
que o separava do lugar onde se encontrava. Mas esse barranco era mais
fundo do que parecia.
Quando Lourenço, depois de ter descido até ao meio, viu quanto restava
ainda para chegar ao ponto indicado, parou, receando deixar Teresa sozinha
durante muito tempo. Gritando por ela, perguntou-lhe se o não havia
chamado.
— Não, absolutamente! — gritou ela, por sua vez, desejosa de não
contrariá-lo.
É impossível explicar o que se passou então no cérebro de Lourenço.
Tomou essas palavras por uma expressão dura e começou a descer agora
devagar e distraído.
Teresa acompanhou com o olhar o vulto de Lourenço, que ia pelo
declive do rochedo, até ele se perder entre as sombras espessas do barranco.
Agora, já o não via e admirava-se do tempo que lhe seria preciso para voltar
a aparecer sobre a vertente do outro montículo. Sentiu-se dominada por uma
forte apreensão. Podia ser que Lourenço houvesse caído nalgum precipício.
Os seus olhos interrogavam a profundidade do terreno, eriçado de grandes
rochas sombrias. Ia erguer-se e gritar por ele, quando um grito de
inexprimível angústia subiu do vale até seu ouvidos, — grito rouco,
medroso, desesperado que lhe causou arrepios, fazendo-lhe eriçarem os
cabelos.
Então, atirou-se como uma flecha na direção da voz angustiosa. Tratava-
se de um rápido declive sobre o qual escorregou diversas vezes, por cima do
musgo, rasgando o vestido nos espinhos. Chegou sem saber como até onde
estava Lourenço. Encontrou-o de pé, desvairado, e agitado por um tremor
convulso.
— Ah! fez bem em vir! Julguei que morreria aqui sozinho!... E
acrescentou em voz rouca e brusca:
— Vamo-nos embora daqui!
Conduziu Teresa pelo caminho, seguindo ao acaso, mal podendo
compreender o que lhe havia sucedido. Finalmente, ao cabo de um quarto de
hora, acalmou-se e sentou-se numa clareira. Não sabiam onde se
encontravam. O chão estava semeado de pequenos rochedos chatos,
semelhantes a pedras tumulares. Entre elas, brotavam aqui, acolá, pequenos
zimbros que podiam tomar-se à noite por ciprestes.
— Meu Deus! — disse Lourenço, subitamente, — será que estamos num
cemitério. Porque me trouxe aqui?
— Isto é apenas um lugar inculto, no meio do bosque — respondeu ela.
Já temos atravessado à noite lugares semelhantes a este. Voltemos para a
sombra das grandes árvores.
— Não, deixemo-nos ficar aqui — respondeu Lourenço. Já que o destino
me lança nestas idéias de morte, tanto faz combatê-las como esgotar todo o
seu horror. Tudo quanto abala fortemente a imaginação é um prazer. Quando
uma cabeça rola no cadafalso, a multidão vai contemplá-la e acha tudo
natural. Não são, apenas, as emoções suaves que nos fazem viver;
precisamos, também, das emoções fortes, que nos fazem sentir a intensidade
da vida.
Ficou assim falando ao acaso, durante alguns instantes, sem que Teresa
se atrevesse a interrompê-lo, esforçando-se embora por distraí-lo.
Ela percebia, perfeitamente, que ele acabava de sofrer um acesso de
delírio. Lourenço tivera uma alucinação. Deitado sobre a erva do barranco,
seu cérebro fora vítima de forte tontura. Tinha ouvido o eco sozinho e esse
canto era uma canção obscena. Depois, ao procurar erguer-se, apoiando-se
nas mãos, a fim de observar o fenômeno, viu passar ao lado, no mato, um
homem a correr, muito pálido, com as roupas dilaceradas e os cabelos em
desalinho.
— Vi-o, perfeitamente, — explicou Lourenço — e tive tempo para
raciocinar e ver que se tratava de um passeante atrasado, surpreendido e
perseguido por ladrões. Cheguei a procurar a minha bengala para socorrer o
pobre do homem, mas a bengala tinha-se perdido entre as ervas e o homem
avançava sempre em direção ao lugar, onde eu me encontrava. Quando se
aproximou, vi que era um bêbado e não estava sendo perseguido. Passou
perto de mim, lançando-me um olhar estúpido, feio, fazendo uma careta de
ódio e desprezo. Então, tive medo, escondi o rosto no chão, porque vi que
esse homem... era eu mesmo... Sim, era o meu espectro, Teresa! Não fique
assim assustada. Era eu mesmo, com vinte anos mais, as feições cavadas
pela orgia ou pela doença, a boca embrutecida. Então, disse a mim mesmo:
Oh! meu Deus! será então assim que ficarei quando tiver mais idade?... Esta
noite tive péssimas recordações, que revelei em palavras, embora contra a
minha vontade. Será possível que carregue sempre dentro em mim esse
velho de que acreditava já achar-me livre? O estro da libertinagem não quer
largar-me e vem sempre ridicularizar-me e gritar: "É tarde demais!"...
Então, ergui-me para ir ao seu encontro, Teresa. Queria pedir-lhe perdão
das minhas torpezas, suplicando-lhe que me acudisse. Mas não sei durante
quantos minutos ou séculos fiquei voltado para mim mesmo, sem poder
avançar, se você não tivesse, afinal, aparecido. Reconheci-a, imediatamente,
e não tive medo de você, Teresa. Senti-me logo liberto da minha obsessão.
Era difícil saber, quando Lourenço falava dessa maneira, se contava
alguma proeza ou se realmente havia surgido no seu cérebro uma alegria
fruto de suas amargas reflexões, se uma imagem entrevista num sonho de
quem está estremunhado. Jurou, todavia, que não sonhara na relva, que não
adormecera na relva e tinha noção exata do lugar em que se encontrava e do
tempo que se ia passando, o que era aliás muito difícil de verificar-se. Teresa
perdera-o de vista e para ela o tempo parecera-lhe naturalmente longo.
Perguntou-lhe se estava sujeito a tais alucinações.
— Sim, — respondeu Lourenço, — na embriaguez. Mas há quinze dias
não tenho sentido outra embriaguez senão a que deriva da sua presença.
Desde que você me pertence, não me embriago senão com o seu amor...
— Quinze dias! — exclamou Teresa, admirada.
— Não, — corrigiu o rapaz, — menos que isso. Você está vendo que não
estou ainda bom da cabeça... Caminhemos; isso me fará bem.
— Mas, você, precisa de repouso. Seria melhor que pensássemos em
regressar ao hotel.
— Muito bem; então, que fazemos?
— Estamos seguindo direção oposta, voltando as costas ao nosso ponto
de partida.
— Quer que passe novamente por esse maldito rochedo?
— Não; tomemos à direita.
— É exatamente ao contrário.
Teresa insistiu. Lourenço não quis desistir e chegou até a ficar zangado,
falando em tom irritado, como se estivesse discutindo.
Teresa cedeu e acompanhou-o aonde ele queria ir.
Sentia-se esmagada de emoção e tristeza. Lourenço acabara de falar-lhe
num tom que ela jamais falaria ao dirigir-se a Catarina, mesmo quando a boa
velha lhe causasse certa impaciência. Perdoava, porém, a Lourenço, porque
compreendia que ele estava doente. Mas esse estado de excitação dolorosa
em que ele se encontrava não deixava de causar-lhe tanto maior
inquietação...
Devido à obstinação de Lourenço, perderam-se na floresta, caminhando
durante quatro horas e regressando somente ao romper do dia.
A marcha na areia fina foi penosa e muito lenta. Teresa mal podia
arrastar-se. Lourenço que se sentia reanimado com o violento exercício, não
pensava em moderar os seus passos. Caminhava sempre na frente, afirmando
que descobrira o bom caminho. Perguntando-lhe, de vez em quando, se
sentia cansada, não previa que ao responder-lhe negativamente, ela desejava
poupar-lhe o desgosto de ser causa do seu aborrecimento.
No dia seguinte, Lourenço não se lembrava já do incidente. Todavia,
essa estranha crise abalara-o fortemente. Mas é próprio dos temperamentos
nervosos refazerem-se rapidamente dos seus excessos. Teresa chegou até a
observar que, no dia seguinte a essas terríveis experiências, era ela que
estava fatigada, enquanto ele parecia revigorado.
Teresa não dormira, preocupada, esperando vê-lo acometido por
qualquer grave sintoma. Mas, Lourenço, depois de ter tomado um banho,
sentiu-se logo bem disposto, pronto para recomeçar o passeio da véspera.
A triste impressão deliu-se rapidamente do espírito de Teresa.
Regressando a Paris, pensou mesmo que nada houvesse mudado entre
ambos. Mas, naquela noite, Lourenço teve o capricho de fazer a caricatura de
Teresa ao lado da sua, ambos errantes sob o luar, pela floresta, ele com ar
assustado e distraído, ela com o vestido rasgado pelos espinhos, o corpo
consumido de fadiga. Os artistas estão muito acostumados a verem-se
caricaturados uns pelos outros; Teresa não se ofendeu vendo a sua. Mas,
embora tivesse tanta facilidade e espírito na ponta do seu lápis, por coisa
alguma deste mundo desejaria fazer a caricatura de Lourenço, mas sentiu-se
bastante aborrecida quando o viu esboçar em forma caricatural aquela cena
noturna, que lhe torturara a alma. Parecia-lhe que certas dores espirituais não
podem, nunca apresentar-se com um sentido ridículo.
Lourenço, em vez de assim o compreender, realizou o trabalho ainda
com maior ironia. E escreveu por baixo do desenho: "Perdido na floresta" e
por baixo da imagem de Teresa: "O coração tão dilacerado como o vestido".
À composição deu o título: "Lua-de-mel num cemitério".
Teresa esforçou-se por sorrir. Gabou o desenho que revelava a mão de
artista consumado e não fez reflexão nenhuma a respeito do assunto. Teresa
fez mal. Teria agido melhor se exigisse de Lourenço que não desbaratasse a
sua alegria ao acaso.
Tendo sido advertida por dois ou três fatos daquela natureza, Teresa
perguntou a si própria se a vida doce e metódica que desejava dar ao seu
amigo seria, realmente, a medida higiênica, que convinha a essa organização
excepcional.
Tinha-lhe dito:
— Você há de aborrecer-se, às vezes, mas o tédio funda-se no desvario.
E quando a saúde se restabelecer, você se divertirá aos poucos e conhecerá a
verdadeira alegria.
As coisas corriam, porém, em sentido contrário. Lourenço não
confessava o seu tédio, mas era-lhe impossível suportá-lo e ele o
manifestava em caprichos amargos e bizarros. Acostumara-se a uma
existência de altos e baixos constantes.
— Você é feliz, — dizia ele a Teresa, — despertando todas as manhãs
com o coração no mesmo lugar. Eu perco o meu, enquanto durmo. É
semelhante à touca de dormir que minha pajem me punha na cabeça, quando
eu era criança. Ora, ela a encontrava a meus pés; ora, no chão.
Teresa compreendeu que a serenidade não podia mesmo atingir de
repente essa alma perturbada e que era necessário acostumá-la aos poucos,
gradativamente. Para isso, era preciso impedi-la de voltar algumas vezes à
vida ativa.
Estudou-lhe os gostos e as fantasias e ficou surpreendida ao verificar que
não era muito difícil satisfazer-lhe os caprichos em muitas coisas. O rapaz
desejava avidamente diversões imprevistas. Não era preciso levá-lo a passear
por encantamentos irrealizáveis; bastava conduzi-lo para onde encontrasse
um divertimento com o qual não contasse. Se, em vez de fazer que ele
jantasse em sua casa, Teresa lhe anunciasse, pondo o chapéu na cabeça, que
iriam jantar num restaurante qualquer e se, em vez de irem a tal teatro, aonde
ela tinha vontade de ir, ela lhe pedisse, subitamente, que a levasse a um
espetáculo completamente diverso, ele se mostrava encantado com a
inesperada distração, nela encontrando o maior prazer; obedecendo, porém, a
um plano qualquer, previamente traçado, experimentava um insuportável
mal-estar. Teresa resolveu, portanto, tratá-lo como criança em convalescença
à qual nada se recusa, sem prestar a menor atenção aos inconvenientes que
daí resultassem para ela.
A primeira e mais grave era comprometer a sua reputação. Diziam que
era mulher de tino e prudência.
Quando a viram na rua, de braço dado com Lourenço, começaram a
admirar-se e a censura foi tanto mais severa, quanto se sabia que havia já
bastante tempo ela procurava evitar esse procedimento. Lourenço era muito
estimado entre os artistas, mas era bem reduzido o número de amigos, que
entre eles tinha. Sabiam que ele era homem de mau gosto para poder surgir
assim como gentil-homem entre os elegantes de outra classe. E, por outro
lado, os amigos que possuía nesse outro mundo não compreendiam, nem
acreditavam na sua conversão.
Para aqueles, que não queriam condenar Teresa, a paixão violenta de
Lourenço parecia, apenas, um ato de libertinagem de que ele era suficiente
hábil para libertar-se, quando se sentisse cansado.
Assim, Teresa ficou desconsiderada em virtude da escolha que acabara
de fazer e de que, afinal, ela não pretendia fazer alarde.
Com a desconsideração, logo chegou para Teresa o momento de novo
sacrifício: o da sua segurança doméstica; até, então, ganhara bastante com o
seu trabalho, tendo vida folgada. Isso era devido a seus hábitos morigerados,
muita ordem nas suas despesas e perseverança no seu trabalho. O imprevisto,
que encantava Lourenço, trouxe-lhe a primeira tortura. Ela ocultou-lhe essa
tortura, não desejando recusar-lhe o sacrifício desse tempo precioso, que
constitui o mais valioso capital do artista. Mas, tudo isso não era senão a
moldura de um quadro bem mais sombrio e sobre o qual Teresa colocava um
véu tão espesso, que ninguém punha em dúvida a sua desgraça e os seus
amigos, escandalizados e penalizados de sua situação, afastavam-se dela,
dizendo:
"Teresa está embriagada. Esperemos que abra os olhos, o que não tardará
muito."
E tudo sucedia de uma só vez. Teresa adquiria todos os dias a triste
convicção de que Lourenço já não gostava dela ou a amava tão pouco que
não existia naquela união qualquer esperança de felicidade para um ou para
outro.

CAPITULO VI

Havia muito que Lourenço desejava visitar a Itália. Era esse o seu sonho
de infância. Alguns trabalhos, que conseguiu vender de maneira inesperada,
levaram-no a pensar na realização dessa viagem. Pediu a Teresa que o
acompanhasse, mostrando-lhe, orgulhoso, a pequena fortuna e jurando-lhe
que, se por acaso ela recusasse acompanhá-lo, ele não faria a viagem. Ora,
Teresa sabia perfeitamente que ele não renunciaria à viagem sem queixas e
censuras, por isso tratou, por seu lado, de arranjar dinheiro, empenhando
seus trabalhos futuros.
No fim do outono, partiram para a Itália. Lourenço tinha alimentado
grandes ilusões a respeito desse país, acreditando encontrar no mês de
dezembro a primavera com que sonhara. Teve uma desilusão; suportou um
frio bastante intenso durante a travessia de Marselha para Gênova. Esta
última cidade agradou-lhe, extraordinariamente. E, como havia ali muita
pintura a ver, o que constituía o principal objetivo da viagem, resolveu ali
permanecer por um ou dois meses. Alugou um apartamento mobiliado.
Ao cabo de oito dias, Lourenço tinha visto tudo quanto havia para ver-se.
Teresa não fazia senão pintar, pois não podia viver sem isso. Para conseguir
ganhar alguns mil francos, teve de comprometer-se com um negociante de
quadros, fazendo-lhe várias cópias de obras inéditas que ele desejava em
seguida mandar gravar. O trabalho não era desagradável. Como homem de
bom gosto, o negociante havia-lhe indicado diversos retratos de Van Dyck,
um em Gênova, o outro em Florença. Copiar esse mestre era uma especiali-
dade, graças à qual Teresa havia desenvolvido o seu próprio talento e tinha
obtido algum dinheiro antes de ganhar a vida por sua própria conta. Para
começar, todavia, era necessário conseguir autorização dos donos dessas
obras-primas. Embora se houvesse dedicado diligentemente a essa tarefa,
passou-se uma semana antes de conseguir fazer a cópia desejada.
Lourenço não se sentia absolutamente disposto a fazer cópias fosse do
que fosse. A sua individualidade era muito pronunciada e muito ardente para
esse gênero de trabalho. Lourenço contava, então, apenas, vinte e cinco anos
e podia ainda aprender. Na sua opinião, Teresa via, também, nessa
oportunidade, um meio de aumentar os seus recursos pecuniários.
Deixou, pois, Teresa absorta diante do seu modelo, ironizando um pouco
a respeito do trabalho de Van. Dyck*, que ela ia fazer, tentando mesmo
desanimá-la da tarefa penosa, que decidira empreender. Depois, começou a
vadiar pela cidade, muito preocupado com o emprego das seis semanas, que
Teresa lhe pedira para concluir a sua obra.
* Antão Van Dyck, famoso pintor flamengo, nascido em Antuérpia
(Bélgica) e falecido em Londres (1599-1641). Retratista notável, filiado à
escola de Rubens, célebre pintor do século XVI. (Nota do "Clube do Livro").

Não tinha ela, decerto, tempo a perder, visto os dias de dezembro na


Itália serem curtos e sombrios e a sua instalação material não lhe permitia
todas as comodidades do seu estúdio de Paris. Um mau dia, uma grande sala,
nada ou pouco aquecida e uma multidão de ociosos em viagem, sob pretexto
de contemplarem a obra-prima, colocavam-se na sua frente e importunavam-
na com as suas reflexões. Resfriada, doente, tolerante, entristecida,
preocupada, sobretudo, com o tédio que via desenhar-se nos olhos de
Lourenço, Teresa regressava para encontrá-lo de mau-humor ou para esperá-
lo até que a fome o obrigasse a voltar ao apartamento. Não se passavam dois
dias sem que ele a censurasse por ter aceito um trabalho embrutecedor e não
lhe propusesse abandoná-lo. Não havia dinheiro para ambos? E por que era
então que Teresa se recusava a partilhar com ele esse dinheiro?
Teresa pensava certo. Ela sabia que o dinheiro não durava nas mãos de
Lourenço. Talvez, não tivesse com que regressar à França, quando se
sentisse cansado da Itália.
Ele viu que Teresa tinha razão e resolveu trabalhar. Abriu as suas caixas,
procurou um local propício e fez vários esboços. Mas, ou fosse pela
mudança de seus hábitos, ou fosse pela visão recentíssima de tantas e tão
diferentes obras-primas, que o haviam comovido e cuja composição lhe era
preciso assimilar, o fato é que se sentia imobilizado por momentânea
impotência, caindo num desses abatimentos contra os quais se sentia incapaz
de reagir sozinho. Precisava de emoções vindas do exterior.
Subitamente, no meio dessas vagas e tumultuosas aspirações, um mau
pensamento sobreveio-lhe, sem o desejar.
Quando penso que, outrora, a menor loucura bastava para reanimar-me!
Teria eu necessidade de um ideal como Teresa? Como, pois, convencer-me
de que a beleza moral e física é necessária no amor? De resto, existirá uma
verdadeira beleza para os sentidos? A verdadeira não é aquela que agrada?
Aquela de que nos sentimos saciados é como se jamais tivesse existido.
Aliás, ainda existe prazer na mudança e nisso consiste, talvez, um dos
segredos da vida. Mudar é renovar-se. Poder mudar é ser livre. Será que o
artista nasceu para o cativeiro e não é o cativeiro senão a fidelidade que se
guarda ou, apenas, a fé prometida?
Lourenço deixou-se assaltar por esses velhos sofismas, sempre novos
para as almas transviadas. Experimentou bem depressa a necessidade de
revelá-lo fosse a quem fosse, até mesmo a Teresa. Tanto pior para ela, se
Lourenço não via senão a sua pessoa.
À noite, a conversa começava sempre desta maneira:
— Como esta cidade é aborrecida!
Uma noite, ele acrescentou:
— Aparentemente, todos, aqui, devem aborrecer-se. Eu não gostaria de
ser o modelo que você copia. Esta pobre e formosa condessa de vestido ouro
e negro, que está aí, dependurada há duzentos anos, se é que os seus doces
olhos não a condenaram a ver a própria imagem encerrada neste país tão
monótono...
— E, todavia, — contestou Teresa — ela conserva o privilégio de sua
beleza, o acontecimento que sobreviveu à morte, eternizado pela mão de um
grande artista. Por mais seca que esteja no fundo do seu túmulo, tem, ainda,
namorados sobre a Terra. Todos os dias, vejo moços que, embora insensíveis
ao merecimento da pintura, ficam em êxtase diante dessa beleza, que parece
respirar e sorrir, numa calma triunfante.
— Ela parece-se com você, sabe, Teresa? Tem um quê de esfinge e eu
não me admiro de que você, se tenha apaixonado pelo seu sorriso misterioso.
Dizem que os artistas criam, sempre de acordo com a sua natureza... É muito
natural que você tenha escolhido os retratos de Van Dyck para seu
aprendizado. Ele fazia-os pomposos, delicados, elegantes e orgulhosos como
o seu modo de ser...
— Que cumprimentos! É melhor parar porque vem chegando a
zombaria...
— Não, não estou rindo. Você bem sabe que já não sorrio. Junto de você
é preciso levar tudo a sério. Conformo-me com essa ordem; digo, apenas,
uma coisa, aliás triste: é que a sua defunta condessa deve estar bastante
enfastiada de parecer sempre bela, sempre do mesmo jeito. Uma idéia,
Teresa! Um sonho fantástico que me vem precisamente do que você dizia
ainda agora. Escute:
Um rapaz, que possuía algumas noções de escultura, ficou vivamente
apaixonado por uma estátua de mármore que ornamentava a tampa de um
túmulo. Tomou-se de tal obsessão que um belo dia ergueu a pedra tumular, a
fim de verificar o que restava da mulher encerrada no fundo do sarcófago. E
achou o que não podia deixar de encontrar; a múmia! Recuperou, então, a
razão, abraçou o esqueleto, exclamando: "Amo-te mais, assim! Pelo menos,
és qualquer coisa que teve vida, enquanto eu estava cativo de uma pedra que
nunca teve consciência de si mesma!"
— Não compreendo! — comentou Teresa.
— Nem eu, mas é possível que em amor a estátua seja aquilo que se
constrói na cabeça, e a múmia, ao contrário, o que se oculta no coração.
Certa vez, ele esboçou a figura e a atitude de Teresa, sonhadora e triste,
num álbum que ela folheou, em seguida, e no qual encontrou uma porção de
esboços de mulheres, em posições impertinentes, cujos tipos descarados a
fizeram corar... Eram os fantasmas do passado, que povoavam novamente a
imaginação de Lourenço e se haviam colado, contra sua vontade, sobre as
folhas brancas do álbum.
Sem dizer palavra, Teresa rasgou o esboço em que figurava em tão
vergonhosa companhia, atirou ao fogo a figura de papel, fechou o álbum,
tornando a colocá-lo sobre a mesa. Depois, sentou-se perto do fogo, estendeu
os pés e quis falar de outra coisa.
Lourenço disse-lhe:
— Você é muito orgulhosa, querida! Se tivesse queimado todas as folhas
desse álbum, que lhe desagradam, deixando, apenas, a sua imagem, eu
compreenderia e ter-lhe-ia dito: "Fez muito bem"; mas retirar a sua imagem,
deixando as outras, isso significa que jamais me disputaria em confronto
com outrem...
— Disputei-o à libertinagem — respondeu Teresa — jamais o disputarei
a qualquer uma dessas vestais.
— Isso é orgulho, — repito! Não é amor!
— Você não estará cansado de amar uma estátua? Será que a múmia não
se encontra em seu coração?
— Ah! você tem boa memória para as palavras. Meu Deus! Que é uma
palavra? A gente pode interpretá-la à vontade. Com uma palavra, pode
enforcar-se um inocente. Vejo que é preciso ter cuidado com o que se diz a
você. O mais prudente seria, talvez, deixarmos de conversar.
— Já chegamos a esse ponto, santo Deus? — perguntou Teresa, desfeita
em lágrimas.
Efetivamente, tinham chegado a isso. Foi em vão que Lourenço, aflito
com o seu choro, lhe pediu perdão por fazê-la chorar. A cena triste
recomeçou no dia seguinte.
— Então, que é que você quer que eu faça nesta detestável cidade. Quer
que eu trabalhe? Eu, também, tenho desejado trabalhar, mas não posso! Não
nasci como você com uma pequena mola de aço no cérebro, a qual basta
apertar o botão para o fazer funcionar à vontade. Eu sou um criador. Grande
ou pequena, fraca ou poderosa, a mola não obedece a coisa alguma e entra a
funcionar, quando lhe apraz, ao sopro de Deus ou do vento, que passa.
Quando estou aborrecido, em qualquer parte, sou incapaz de realizar algo.
— Como se explica que um homem inteligente se aborreça, —
perguntou Teresa, — a não ser quando está privado de luz e de ar, no fundo
de uma enxovia? Então, não existem nesta cidade que no primeiro dia tanto
o encantou, nem belas coisas para ver, nem passeios interessantes pelos arre-
dores, nem bons livros para consultar, nem pessoas inteligentes com quais se
possa conversar?
— As coisas belas aqui ficam fora da minha visão. Não gosto de passear
só. Os melhores livros irritam-me, quando me dizem o que não estou em vias
de acreditar. Quanto às relações, é certo que tenho comigo cartas de
apresentação, mas como você deve saber, não posso fazer uso dessas cartas.
— Não sei por quê!
— Porque, naturalmente, os meus amigos da sociedade recomendam-me
a pessoas de elite. Ora, estas pessoas não vivem em quatro paredes, sem
pensar em diversões. E como você não pertence a essa sociedade ou a essa
elite, Teresa, e como não me poderia acompanhar, terei de deixá-la sozinha.
— De dia, pois sou forçada a trabalhar lá embaixo, neste palácio...
— De dia, pagam-se visitas e organizam-se projetos para a noite. É a
noite que a gente se diverte em toda parte. Não sabia?
— Bem, nesse caso, saia algumas vezes, à noite, visto ser preciso. Vá a
bailes, às reuniões. O que unicamente lhe peço é que não jogue.
— Mas é isso o que não posso prometer-lhe. Em sociedade, quase todos
se entregam ao jogo e às mulheres.
— Então, na sociedade, os homens arruínam-se no jogo e na galanteria?
— Aqueles, que não fazem uma coisa, nem outra, aborrecem-se, ou a
sociedade deles se aborrece. Não sou conversador de salão e não me sinto
por enquanto bastante fútil para ficar a escutar o que os outros dizem, sem
dizer palavra. Vejamos uma coisa, Teresa: você quer que eu me atire a essa
sociedade, com todos os seus riscos e perigos?
— Por enquanto, não! — respondeu Teresa. Mais um pouco de
paciência. Ah! Não estou ainda preparada para perder você tão cedo.
O tom doloroso e o olhar dilacerante de Teresa irritaram Lourenço mais
do que nunca.
— Você sabe — disse ele — que me leva sempre a admitir o seu ponto-
de-vista, com a menor lamentação e abusa da sua força, Teresa. Será que não
vai arrepender-se um dia, vendo-me doente e exasperado?
— Já disso estou arrependida, visto que lhe causo tamanho
aborrecimento! — respondeu ela. Por isso, faça como entender.
— É assim que me abandona ao meu destino? Já cansou de lutar? É você
agora quem não mais me ama!
— Escute! — disse ela, erguendo-se; partamos amanhã, aconteça o que
acontecer. Aqui, você acaba maluco! Talvez, seja pior, mas irei até ao fim da
minha tarefa.
Ouvindo estas palavras, Lourenço ficou furioso. Então, ela havia-se
imposto uma tarefa e cumpria friamente um dever? É possível que tivesse
feito alguma promessa à Virgem...
E apanhou o chapéu com um ar de supremo desdém e aquele rompante
que lhe eram peculiares, e retirou-se sem dizer aonde ia.
Eram dez horas. Teresa passou a noite numa horrível e profunda tristeza.
Lourenço regressou de manhã e fechou-se no quarto, batendo fortemente
a porta. Ela nem se atreveu a aparecer-lhe, com receio de irritá-lo ainda mais
e retirou-se sem ruído para o seu canto. Era a primeira vez que acontecia
isso.
No dia seguinte, em vez de voltar ao seu trabalho, Teresa fez as suas
malas e preparou-se para viajar. Lourenço acordou às três horas da tarde e
perguntou-lhe, sorrindo, o que estava pensando fazer. Recuperara a sua boa
disposição moral... Passeara toda a noite, sozinho, pela praia. Refletira, e
estava agora mais calmo.
— Esse vasto mar, monótono e ruidoso, tornou-me impaciente — disse,
com jovialidade. Esta manhã estou bem disposto. Não quero viajar. Dê-me
um abraço, Teresa, e não falemos da tolice de ontem à noite. Tire essas
malas, depressa, que eu as não veja mais. Elas parecem uma censura e,
agora, não a mereço.
Uma surpresa veio distraí-los. Palmer chegara pela manhã a Gênova e
vinha convidá-los para jantar. Lourenço mostrou-se encantado. Ele que tinha
sempre atitudes bastante frias em presença de outros homens, atirou-se ao
pescoço do americano, dizendo-o enviado por Deus. Palmer sentiu-se mais
surpreendido do que lisonjeado com o caloroso acolhimento.
Bastou-lhe um rápido olhar a Teresa pára convencer-se de que aquilo
não era a expansão da felicidade. Todavia, Lourenço não lhe falou a respeito
do seu tédio e Teresa ficou bastante surpreendida de ouvi-lo elogiar a cidade
e a terra. Chegou a dizer que as mulheres eram encantadoras. De onde as
conheceria ele?
Quando bateram oito horas, pediu o seu sobretudo e saiu. Palmer quis
retirar-se, também.
— Por que não se demora mais um pouco com Teresa? _— perguntou-
lhe Lourenço. Isso, certamente, lhe agradaria. Aqui* vivemos em completo
isolamento. Não me demorarei mais de uma hora. Espere por mim para o
chá.
Eram onze horas da noite e Lourenço não regressara, ainda. Teresa
estava muito abatida, fazendo esforços vãos para ocultar a sua inquietude.
Mas, sentia-se sobretudo perdida. Palmer compreendeu tudo, mas agiu como
se nada percebesse, e retirou-se.
Lourenço chegou logo depois e sentiu a emoção de Teresa; ridicularizou
as preocupações da pobre criatura, num tom que afetava não provir do
ciúme.
— Lourenço, não me faça sofrer inutilmente. Pensa que Palmer me está
fazendo a corte? Vamos embora? Já lhe propus isso!
— Não, minha querida, não sou a tal ponto absurdo. Visto que você tem
uma companhia e me permite sair um pouco por minha conta, tudo está
muito bem e estou' disposto a trabalhar.
— Farei o que você quiser — respondeu Teresa. Mas se você assim se
alegra em virtude dessa companhia, tenha a bondade de não referir-se a tal
pessoa da maneira como o fez ainda há pouco. Isso me seria difícil de
suportar.
— Por que diabo se está zangando? Que disse eu de ofensivo ou
inconveniente? Você tornou-se de uma suscetibilidade, minha boa
amiguinha! Que mal haveria se o bom Palmer estivesse apaixonado por
você?
— Existiria, sim, em você deixar-me a sós com ele àquela hora... Se
você pensasse no que está dizendo...
— Ah! Existirá algum mal em abandonar você ao perigo? Bem vê que o
perigo existe, segundo a sua própria maneira de pensar, o que prova que eu
não me estava enganando,
— Seja! Nesse caso, passemos juntos os nossos serões sem receber
ninguém. É isso o que deseja? Está combinado?
— Você é boa, minha querida Teresa! Perdoe-me. Ficarei a seu lado e
veremos o que você quer. Será um bom e agradável acordo.
Efetivamente, Lourenço parecia voltar ao que era. Começou um bom
trabalho no seu estúdio e convidou Teresa para ir vê-lo. Passaram-se alguns
dias numa perfeita calma. Palmer não reaparecera, mas Lourenço, dentro em
pouco, aborreceu-se daquela vida regular e foi à procura do americano,
acusando-o de haver abandonado os seus amigos. Porém, mal ele chegou, a
fim de passar as primeiras horas da noite com os dois, Lourenço achou logo
um pretexto para sair, ficando fora até à meia-noite.
Passou-se, assim, uma semana. Depois, mais outras; Lourenço passava
uma noite com Teresa e logo a seguir três ou quatro na rua. E que noites
aquelas! Ela preferiria a solidão. Aonde ia ele? Nunca o soube. Não aparecia
na sociedade. O tempo úmido e frio não lhe permitia passear à beira-mar.
Todavia, subia freqüentemente a bordo de uma barca e recebia lições de um
pescador que ia procurá-lo no ancoradouro. Efetivamente, a sua roupa
cheirava a alcatrão. Dizia que se sentia bem disposto para o trabalho no dia
seguinte, com a excitação dos nervos refeitos.
Teresa já não o procurava no seu estúdio. Ele mostrava-se indignado,
quando ela pretendia ver o seu trabalho.
Duas ou três vezes, passou a noite toda fora de casa. Teresa não podia
habituar-se à inquietação, que lhe causavam essas ausências. Não era
possível segui-lo à noite pelas ruas da cidade, cheias de marinheiros e
aventureiros de todas as nações. Por coisa nenhuma deste mundo o mandaria
acompanhar de perto. Entrava no seu quarto sem fazer ruído e contemplava-
o depois a dormir. Lourenço parecia exausto de fadiga. Era, provavelmente,
a luta desesperada contra si mesmo em que ele procurava apagar, com
bastante exercício físico o seu excesso de reflexão.
Certa noite, Teresa notou que as roupas de Lourenço estavam cheias de
lama e rasgadas, como se ele se tivesse empenhado em luta corporal e
tivesse sofrido alguma queda. Aterrorizada, viu uma pequena mancha de
sangue no travesseiro. Lourenço recebera uma ligeira incisão na testa. Como
ele dormia um sono profundo, tentou ver se no peito tinha qualquer outro
ferimento. Ele, porém, acordou e ficou furioso. Ela procurou fugir, mas ele
segurou-a, vestiu um roupão, fechou a porta e numa grande agitação a
passear pelo apartamento, fracamente iluminado, externou finalmente, todo o
sofrimento que tinha acumulado na sua alma:
— Chega! Sejamos francos. Já não nos amamos e jamais tornaremos a
amar-nos. Enganamo-nos um e outro. Você precisava de um servo, de um
escravo. Julgou que o meu caráter infeliz, as minhas dúvidas, o meu tédio, o
meu aborrecimento de uma vida de excessos, minhas ilusões a respeito do
verdadeiro amor, tudo isso me colocaria às suas ordens e que eu jamais
poderia corrigir-me.
Para levar a cabo tão arriscada empresa, você deveria possuir um caráter
mais feliz, mais paciência, mais docilidade e sobretudo mais espírito. Você
não tem espírito, Teresa! Não pretendo ofendê-la ao dizer isto. Você é de
uma só peça, monótona, teimosa e vaidosa até ao excesso de sua pretendida
moderação, o que é apenas a filosofia das criaturas de visão estreita e de
faculdades tacanhas. Eu, eu sou um louco, um inconstante, um ingrato, tudo
o que você quiser.
Pálido, amargo, irônico e furioso, os cabelos em desalinho, a camisa
rasgada e a fronte ensangüentada, Lourenço era tão terrível e era tão horrível
vê-lo e ouvi-lo que Teresa sentiu que todo o seu amor se transformava em
ódio. Tão desesperada estava naquele instante que nem tinha medo.
Deixava-o desabafar essa torrente de blasfêmias e dizendo consigo mesma
que aquele insensato era capaz de matá-la, aguardava com desprezo glacial e
uma absoluta indiferença os excessos do seu paroxismo de raiva.
Mas Lourenço calou-se; não teve mais forças para falar. Teresa levantou-
se e sem lhe ter respondido uma única palavra, sem lançar-lhe um olhar,
retirou-se para o seu aposento.

CAPITULO VII

Lourenço não refletia sobre uma só das expressões que dizia à Teresa;
naquele momento, não pensava no que falava. Não se recordou mais de coisa
alguma depois de adormecer de novo e se alguém o tivesse acordado e lho
recordasse teria negado tudo.
Negaria redondamente tudo. Havia, porém, algo verdadeiro: — no
momento estava cansado do seu amor sublime e aspirava fortemente aos
funestos arrebatamentos do passado. Era o castigo do mau caminho pelo
qual tinha enveredado ao começar a vida, castigo cruel, é certo, e do qual se
compreendia que ele se queixasse energicamente, ela que não premeditara
coisa alguma e que se havia atirado, a rir, num abismo, de onde julgava
poder sair quando lhe aprouvesse. Mas, o amor é regido por um código que
parece basear-se como todos os códigos sociais na fórmula terrível: a
ninguém é permitido ignorar a lei! Efetivamente, tanto pior para aqueles que
a ignoram. Se a criança se atira às garras da pantera, julgando poder acariciá-
la, a pantera não tomará conhecimento da inocência da criança. Devorará a
criança, pois não depende de seu instinto ter de poupá-la. São da mesma
natureza os venenos, o raio, o vício — agentes cegos da lei que o homem
deve conhecer e combater.
No dia seguinte à crise de que falamos, só restava na , mente de
Lourenço a consciência de ter tido com Teresa uma explicação decisiva e
uma vaga idéia de tê-la visto resignada. Tudo caminha, talvez, para o
melhor, pensou ao encontrá-la tão calma como a deixara antes. Havia,
entretanto, motivos para recear a sua palidez.
— Não é nada — disse Teresa, tranqüilamente. É um resfriado, que me
cansa bastante mas não passa disso. Desaparecerá com o tempo...
— Bem, Teresa! Você é quem deve decidir. Separa-mo-nos com zanga
ou despeito, ou permanecemos juntos como outrora, na mesma base de
amizade?
— Não tenho despeito algum — respondeu ela. Permanecemos amigos.
Fique aqui se tal lhe agrada. Eu termino o meu trabalho e dentro de quinze
dias volto para a França.
— Mas, daqui a quinze dias terei de ir morar noutra casa? Não receia que
se venha a saber do que se passou?...
— Faça como lhe parecer melhor. Temos aqui nossos apartamentos
independentes um do outro. Apenas, o salão é comum. Ora, eu não preciso
dele. Ficará para você.
— Não, peço-lhe que fique com ele. Você não ouvirá os meus passos,
quando eu entrar ou sair. Se o proibir, não porei aí os pés.
— Não lhe proíbo coisa alguma! — tornou Teresa. A não ser de deixar
de acreditar um instante que sua amiga está infinitamente acima de quaisquer
desilusões. Ela espera poder ser-lhe ainda útil, quando sentir a necessidade
de sua afeição.
Teresa estendeu a mão a Lourenço e foi trabalhar.
Lourenço não a compreendia. Tamanho domínio sobre si mesma
parecia-lhe uma coisa que não sabia explicar. Ele não conhecia a coragem
passiva e as resoluções silenciosas. Acreditou que ela fosse capaz de
recuperar o seu império sobre ele e desejasse reconduzi-lo ao amor pela
amizade. Prometeu a si mesmo ser invulnerável a toda fraqueza e, para ficar
mais senhor de si mesmo, resolveu tomar qualquer pessoa como testemunha
do seu rompimento. Foi ao encontro de Palmer, narrou-lhe a infeliz história
do seu amor e concluiu:
— Se você ama Teresa, meu caro amigo, segundo acredito, faça que ela
o ame. Não posso ter ciúmes. Ao contrário. Como eu a fiz infeliz e como
você será bom para ela — disso tenho a certeza — você me libertará de um
remorso que não desejo fique a pesar-me na consciência.
Lourenço ficou surpreso com o silêncio de Palmer.
— Será que, falando desta maneira, o ofendo? — tornou Lourenço. Não
é, entretanto, a minha intenção. Tenho por você muita amizade, estima e até
mesmo respeito. Se censura em tudo isso a minha conduta, fale com
franqueza, diga-me o que se lhe oferecer. Isso será melhor do que essa
atitude de indiferença ou de desdém.
— Não sou indiferente, nem aos desgostos de Teresa, nem aos seus, —
respondeu Palmer. Quero, apenas, poupar-lhe conselhos e censuras que
viriam tarde demais. Eu acreditava que vocês dois tivessem sido feitos um
para o outro. Agora, convenço-me de que a maior felicidade para um e para
outro, — a única certamente — está na separação. Quanto aos meus
sentimentos pessoais a respeito de Teresa, não lhe reconheço o direito de
dirigir-me qualquer palavra a tal respeito.
— É justo — declarou desembaraçadamente Lourenço. Compreendo,
perfeitamente, o que acaba de dizer-me. Vejo que doravante serei demais e
creio que farei melhor em ir-me embora para não tornar-me impertinente aos
outros.
E partiu, efetivamente, depois de despedir-se friamente de Teresa,
dirigindo-se à Florença com a resolução de atirar-se ao meio social ou ao
trabalho, segundo o seu capricho.
Sem dúvida, Teresa fez mal em não permitir que ele visse quanto era
profunda a ferida que • lhe havia causado. Mas tinha muita coragem e era
orgulhosa. Uma vez que compreendia dever ser essa a cura de um mal
desesperado, não devia recuar diante dos grandes remédios e das operações
cruéis. Era preciso fazer sangrar abundantemente esse coração em delírio,
carregá-lo de censuras, devolver-lhe afronta por afronta, sofrimento por
sofrimento. Ao ver o mal praticado, Lourenço, talvez, fizesse justiça a si
próprio. Era possível que a vergonha e o arrependimento salvassem a sua
alma do crime de assassinar o amor a sangue-frio.
Após três meses de inúteis esforços, Teresa sentia-se desanimada.
"Visto que ele é incurável" — pensou — "de que serve fazê-lo sofrer?
Ele não via que eu não podia fazer coisa alguma? Quando eu lhe disse para
voltar à sociedade, teve medo do meu ciúme e atirou-se a uma vida
misteriosa e grosseira; voltou para casa com a roupa rasgada e o rosto sujo
de sangue!"
No dia em que Lourenço partiu, Palmer perguntou à Teresa:
— Bem, minha amiga, que pretende, agora, fazer? Devo correr atrás
dele?
— Não, absolutamente, não! — respondeu ela.
— Quem sabe se o não traria de volta...
— Eu ficaria desolada.
— Então, não gosta mais dele?
— Não, absolutamente não gosto!
Seguiu-se um instante de silêncio. Depois, Palmer sonhador, voltou a
falar:
— Teresa, tenho uma notícia extremamente grave a comunicar-lhe.
Estou hesitando, porque receio causar-lhe uma grande emoção a mais e você
parece-me pouco disposta...
— Perdoe-me, meu amigo. Estou horrivelmente triste, mas sinto-me
absolutamente calma e preparada para tudo.
— Pois bem, Teresa; fique sabendo que, presentemente, está livre. O
conde das três estrelas morreu.
— Eu já o sabia. Há oito dias que sabia disso.
— E não disse nada a Lourenço?
— Não.
— Por quê?
— Porque, no mesmo instante, se manifestaria nele uma reação... Você
bem sabe como o imprevisto o transtorna e apaixona.
— Então, já o não estima?
— Eu não disse isso, meu caro Palmer! Lastimo-o, não o acuso. Talvez,
outra mulher consiga torná-lo bom e feliz.
Provavelmente, a culpa é tanto minha como dele. Seja como fôr, não
devíamos e não devemos procurar amar-nos um ao outro. j
— E, agora, Teresa, não imagina tirar alguma vantagem da liberdade que
lhe é restituída?
— Que vantagem posso eu retirar daí?
— Pode contrair novas núpcias e conhecer as alegrias da família.
— Meu caro amigo, tentei duas vezes em minha vida e você está vendo a
situação em que me encontro. O meu destino não é ser feliz, e é tarde demais
para procurar o que fugiu das minhas mãos. Tenho mais de trinta anos!
— É justamente porque você conta trinta anos que não pode prescindir
do amor. Você acaba de sofrer o enlevo da paixão e é justamente nessa idade
que as mulheres não podem fugir ao amor. Porque foi excitada e não foi
amada, é por não ter sido suficientemente amada que a inextinguível sede de
felicidade vai despertar no seu ser, conduzindo-a talvez de decepções em
decepções, até abismos mais profundos do que aquele de onde saiu...
— Esperemos que não.
— Sim, Teresa, você espera, no entanto, mas está iludida! É preciso ter
medo da sua idade, da sua sensibilidade, da calma ilusória em que você
imerge num momento de abatimento e cansaço.
— Afinal, Palmer você julga-me perdida porque me sinto infeliz. Isso é
muito cruel e faz-me compreender vivamente quanto tenho descido...
E pôs as mãos no rosto e chorou, amargamente. Palmer deixou-a chorar,
vendo que as lágrimas lhe eram necessárias; ele mesmo tinha provocado
aquela crise. Quando a viu mais calma, disse-lhe:
— Teresa, causei-lhe muita aflição, mas você deve perdoar as minhas
intenções. Gosto de você, aliás, sempre gostei, não com aquela paixão cega,
mas com toda a fé e devotamento de que sou capaz. Mais que nunca vejo em
você uma nobre existência prejudicada e esmagada pelos erros dos outros.
Consinta em casar comigo, Teresa e faça-o, imediatamente, sem receios,
sem escrúpulos, sem falsa delicadeza, sem desconfiança de si mesma. Dou-
lhe a minha vida e só peço que acredite em mim. Sou bastante forte para
aturar lágrimas que a ingratidão do outro lhe tem feito verter ainda. Jamais
lhe censurarei o passado e tornarei o seu futuro tão tranqüilo e seguro que
nunca o vento da tempestade a arrancará de mim.
Palmer continuou a falar durante muito tempo ainda com aquela
abundância de sentimento que Teresa ainda nele não tinha descoberto.
Tentou defender-se, mas essa resistência era apenas, na opinião de Palmer,
um resto de doença moral que devia combater em si mesma. Sentia que
Palmer dizia a verdade, mas sentia igualmente que ele assumia para com ela
uma enorme responsabilidade.
— Não é de mim mesmo que tenho receio, — disse ela. Não posso amar
mais a Lourenço e não mais o amo. Mas o mundo, sua mãe, sua pátria, a
honra do seu nome? Decaí, como você disse há pouco e sinto-o
perfeitamente. Não tenha pressa, Palmer. Estou assustadíssima diante do que
você quer afrontar por minha causa.
No dia seguinte e nos quatro dias que se seguiram, Palmer insistiu com
mais energia. De manhã à noite, sozinho com ela, apelou para todas as forças
da sua vontade para convencê-la. Ver-se-á, depois, se Teresa tinha ou não
razão para hesitar. O que mais a inquietava era a precipitação de Palmer,
forçando-a a prender-se numa promessa.
— Você tem receio das minhas reflexões — dizia ela. — Não tem em
mim a confiança de que se orgulha.
— Creio na sua palavra — respondeu o americano. A prova é que lhe
peço que me dê a sua palavra. Mas não sou obrigado a acreditar que você me
ame. Você nem sabe que nome dar à sua amizade.
Teresa sentia-se magoada, quando Palmer aludia a seus interesses. Via
muita abnegação em Palmer e não podia admitir que ele acreditasse fosse ela
capaz de aceitar essa abnegação sem retribuí-la. Subitamente, teve vergonha
de si mesma nesse combate de generosidade sem exigir dela outra coisa
senão que aceitasse o seu nome, e sua fortuna, a sua proteção e o afeto de
toda a sua existência.
No coração de Teresa, renasceu a esperança. Aquele homem, que ela
tomara por um ser positivo, revelava-se por um aspecto tão imprevisto a seus
olhos, que seu espírito ficou impressionado e como que reanimado na sua
agonia. Era semelhante a um raio de sol no meio de uma noite, que julgara
ser eterna.
No momento em que, desesperada, ia maldizer do amor, ele obrigou-a a
acreditar nesse mesmo sentimento e a encarar o seu desastre como um
desastre comum do qual o céu desejava indenizá-la. Palmer, que era de uma
beleza fria e regular, transfigurava-se a cada instante. Sentiu-se emocionada
e deixou arrancar de sua alma a promessa que ele tanto desejava.
Subitamente, recebeu uma carta, cuja letra lhe pareceu desconhecida, tão
desfigurada estava. Teve certa dificuldade em decifrar a assinatura. Com o
auxílio de Palmer, conseguiu finalmente, ler estas palavras:
"'Joguei e perdi. Tive uma companheira. Ela enganou-me e eu matei-a.
Tomei veneno. Vou morrer. Adeus, Teresa. LOURENÇO ".
— Partamos! — disse Palmer.
— Oh! meu amigo, eu o amo! — disse Teresa, atirando-se aos braços do
americano. Agora, sinto quanto você é digno de ser amado!
E partiram naquele mesmo instante. Viajando toda a noite por mar,
chegaram a Livorno e, ao entardecer, estavam em Florença. Encontraram
Lourenço numa estalagem. Não estava morrendo, mas encontrava-se num
acesso de febre cerebral tão violento que quatro homens não conseguiam
dominá-lo. Ao ver Teresa, reconheceu-a e agarrou-se a seu vestido, gritando
que o queriam enterrar vivo. Agarrou-a com tanta força que ela caiu por
terra: sufocada. Palmer afastou-a do quarto, desfalecida. Mas, ela voltou ao
cabo de um minuto e, com uma perseverança que chegava a ser prodigiosa,
passou vinte dias e vinte noites à cabeceira daquele homem que já não
amava. O enfermo quase a não reconhecia senão para carregá-la de injúrias
grosseiras, e, sempre que ela se afastava um instante, chamava-a, dizendo
que ia morrer.
Não tinha, felizmente, assassinado mulher alguma, nem tomado qualquer
espécie de veneno. Talvez, nem perdera dinheiro no jogo, nem feito nada
daquilo que escrevera a Teresa, no paroxismo do delírio e da febre. Já nem
se lembrava dessa carta da qual ela receava falar-lhe. Quando voltava a ter
consciência de si mesmo, ficava horrorizado com o desequilíbrio de sua
razão.
Teve, ainda, outras alucinações sinistras, enquanto lhe durou a febre.
Teresa não o deixava um instante, embora Palmer tentasse convencê-la
de que necessitava de descansar. Ela, porém, convencida de que Deus a
encarregara de salvar aquela existência frágil, resistiu e com efeito
contribuiu para a sua salvação.
Certa manhã, Lourenço despertou como que de uma letargia, mostrando
surpresa ao ver Teresa e Palmer a um lado e outro do leito. Estendeu a mão a
um e perguntou-lhes onde estava e de onde tinham vindo.
Teresa dormia, agora, vinte e quatro horas a fio. A natureza recobrou os
seus direitos, logo que a inquietação desapareceu. Pouco a pouco, Lourenço
compreendeu até que ponto ela se mostrara dedicada e descobriu na sua
fisionomia tantos indícios de fadiga quantos havia de sofrimento. Como
estava muito fraco para ocupar-se de qualquer coisa, Teresa instalou-se a seu
lado, ora lendo para ele, ora jogando baralho,, ora levando-o a passear de
carruagem. Palmer estava sempre presente.
Um dia, ele disse a Teresa, num momento em que se encontrava a sós
com ela:
— Quando será que esse bom Palmer nos fará o favor de ir-se embora?
Teresa viu que persistia uma lacuna no seu cérebro e não deu resposta.
Então, ele fez um esforço sobre si mesmo e acrescentou:
— Você acha que sou ingrato, minha amiga, falando desta maneira de
um homem que se dedicou tanto a mim quanto você. Mas não deixo de
compreender que foi justamente para não deixar você sozinha que ele se
encerrou neste quarto de doente. Teresa, você pode jurar-me que foi somente
por minha causa?
Teresa sacudiu a cabeça e tentou falar de outra coisa, mas Lourenço
voltou ao mesmo assunto no dia seguinte e disse-lhe com verdadeira
surpresa:
— Mas afinal, aonde vamos, Teresa? Não estamos bem aqui?
— Meu caro, — respondeu Teresa, — você fica aqui. Os médicos dizem
que precisa ainda de uma ou duas semanas antes de poder fazer qualquer
viagem sem perigo de recaída. Eu regresso à França, Terminei o meu
trabalho em Gênova e não tenho presentemente a intenção de demorar-me na
Itália por mais tempo. (
— Muito bem; você é livre, mas se você quer voltar para a França, sinto-
me tão livre como você para desejar a mesma coisa. Não seria possível
esperar-me mais por uma semana?
Ele punha tanta candura no esquecimento dos seus agravos e mostrava-
se tão infantil que Teresa chorou ao recordar-se de outros tempos.
Recomeçou a tratá-lo com intimidade e disse-lhe com a maior doçura e
consideração que era obrigada a deixá-lo por algum tempo.
— Por quê isso? — perguntou Lourenço, será que já não nos amamos?
— Isso seria impossível, — respondeu Teresa, — mas teremos sempre
um pelo outro uma grande amizade. Causamos um ao outro muito
sofrimento, e sua saúde, neste momento, seria incapaz de suportar
contrariedades. que passe algum tempo, para esquecermos tudo.
— Mas eu já esqueci tudo — exclamou Lourenço. — Não me recordo de
mal que você me tenha feito. É preciso que me perdoe tudo e me leve
consigo. Se me deixar aqui, morrerei de aborrecimento.
Teresa não ousava pronunciar a palavra fatal. Esperaria que Palmer
viesse interromper aquele diálogo e assim pudesse evitar uma cena perigosa
para o convalescente. Mas não foi possível. Ele atravessou-se na porta, não
deixando Teresa sair do quarto. Caiu a seus pés num grande desespero:
— Será possível que você me julgue capaz de recusar dizer-lhe uma
palavra. Mas não o posso fazer. Essa palavra não traduziria a verdade. O
amor não mais existe entre nós.
Lourenço levantou-se, furioso. Não compreendia que tivesse podido
matar esse amor no qual pretendia não acreditar.
— Então, é Palmer? — gritou, quebrando a chaleira na qual lhe tinham
trazido a tisana. Então, é ele? Diga, quero saber! Quero saber a verdade.
Morreria disso, bem sei, mas não quero viver enganado! \
— Enganado! — exclamou Teresa, segurando-lhe as mãos, a fim dele
não se ferir com as unhas. — Enganado? Será que eu lhe pertenço? Será que
desde a primeira noite que você passou fora de casa, em Gênova, depois de
ter-me dito que eu era o seu suplício* o seu algoz, não temos sido estranhos
um ao outro? Se você; não compreende o sentimento que me trouxe para
junto do seu leito de agonia e me reteve a seu lado, para auxiliar a sua cura
com cuidados maternais, é porque você, Lourenço, não compreendeu nunca
o meu coração. Este coração — prosseguiu, — batendo no peito, — talvez
não seja tão orgulhoso, nem tão ardente quanto o seu. Mas como você disse
muitas vezes, ele permanece sempre no mesmo lugar. O que ele amou jamais
pode deixar de amar, mas não se iluda, não se trata do amor como você
imagina, desse amor que você me inspirou e no qual, loucamente, ainda
deposita esperança. Esse amor acabou. Nem os meus sentidos, nem o meu
cérebro já agora lhe pertencem. Recobrei o domínio de mim própria e da
minha vontade. Posso, agora, oferecer tudo a quem o mereça. A Palmer, por
exemplo, você nada teria a objetar, você que o procurou certa manhã para
dizer-lhe: "console Teresa; faça-me este favor!"
— É verdade... é verdade!, — exclamou Lourenço, juntando as mãos
trêmulas. Eu disse isso. Tinha esquecido. Agora me lembro!...
— Então, não o esqueça mais, — disse Teresa e saiba meu amigo que o
amor é flor muito delicada para poder reanimar-se, depois de calcada aos
pés. Não pense mais em procurá-lo no meu coração. Procure-o noutra parte.
Você encontrará de novo o amor no dia em que for digno dele. A minha
ternura de irmã e de mãe, apesar de tudo, permanecerá sempre ao seu dispor.
Mas isso é outra coisa. É a piedade — não o oculto — e digo-lhe isto,
precisamente, para que você não procure mais reconquistar um amor que
seria tão humilhante para você como para mim. Se quer que esta amizade se
torne suave e terna, chegou a ocasião de merecê-la. Sirva-se dela, deixe-me
sem fraqueza e sem amargura, mostre-me a sua fisionomia calma de homem
generoso e brioso e não essa cara de criança que chora sem saber porquê.
Teresa falava, ainda, quando Palmer entrou. Lourenço atirou-se ao
pescoço do americano chamando-lhe meu irmão e meu salvador. E,
apontando para Teresa:
— Ah! meu amigo, você se lembra do que me disse, no Hotel Maurice, a
última vez que nos vimos em Paris?: "Se você não pensa que possa torná-la
feliz, prefira dar um tiro na cabeça a voltar à casa dela!" É o que eu devia ter
feito, mas não fiz. E agora, ela está mais desfigurada do que eu. Pobre
Teresa! Foi oprimida e, apesar disso, veio arrancar-me ao leito de morte,
quando deveria maldizer-me e abandonar-me!
O arrependimento de Lourenço era sincero. Palmer sentiu-se vivamente
impressionado. Quando se encontrou só com Teresa, disse-lhe:
— Não creia, minha amiga, que eu tenha sofrido com a sua solicitude
para com Lourenço. Compreendi muito bem a sua atitude: você; quis curar a
alma e o corpo. Venceu. Ele está salvo. Agora, que pretende fazer?
— Deixá-lo para sempre — respondeu Teresa; pelo menos, só tornar a
vê-lo daqui a muitos anos. Se ele voltar para a França eu permanecerei na
Itália, e se ele ficar na Itália, eu voltarei para a França. Não lhe disse já que
era esta a minha resolução? E foi justamente por ser uma resolução
inabalável que adiei um pouco a despedida. Eu sabia que ele teria uma crise
forte e não desejava deixá-lo nesse estado.
— Refletiu bem sobre esse ponto? — perguntou Palmer. — Tem certeza
de que no último momento não cederá?
— Estou certíssima.
— Esse homem parece-me irresistível na dor. Seria capaz de arrancar
piedade das entranhas de uma pedra. Entretanto, se você se render a
Lourenço, você está perdida e ele com você... E se ainda o ama, lembre-se de
que não pode salvá-lo, a não ser abandonando-o.
— Sei disso, — respondeu Teresa, — mas que me diz, então? Já se
esqueceu de que lhe empenhei a minha palavra? Está, também, doente?
Palmer beijou-lhe a mão, sorrindo. A paz tinha voltado ao seu coração.
No dia seguinte, Lourenço veio dizer-lhe que desejava ir à Suíça, onde
terminaria a sua convalescença. O clima da região não lhe convinha. Era
verdade. Os médicos aconselharam-no até a não esperar pelo verão. Ficou
resolvido que se separariam em Florença. Teresa, segundo parecia não tinha
formulado outro projeto senão o de ir aonde Lourenço não fosse.
Mas, ao vê-lo tão abatido da crise da véspera, prometeu-lhe que passaria
ainda uma semana em Florença, a fim de impedi-lo de partir sem estar
inteiramente refeito de suas energias.
Essa semana foi, talvez, a melhor da vida de Lourenço. A ternura tinha-o
vencido, penetrando a fundo na sua alma, invadindo-a por assim dizer. Não
deixava um instante os seus dois amigos, passeando com eles, indo com eles
de carruagem aos Cascines, nas horas menos freqüentadas pela multidão,
comendo com eles, sentindo uma alegria infantil a almoçar no campo,
procurando recuperar as forças, fazendo um pouco de ginástica, em
companhia do americano, acompanhando Teresa ao teatro e fazendo que
Palmer, o grande turista, lhe traçasse o itinerário da sua viagem à Suíça.
Chegou o dia da partida. Lourenço tinha feito os seus preparativos de
viagem com melancólica alegria. Gracejava com a sua roupa, com a sua
bagagem, com o ar exótico que iria certamente ter com uma capa
impermeável, que Palmer o obrigara a aceitar e que era, então, uma
novidade; gracejando com a algaravia do doméstico italiano que Palmer lhe
arranjara e que era o melhor homem do mundo; aceitando, reconhecido e
submisso, todas as atenções extremas de Teresa, Lourenço tinha os olhos
rasos de lágrimas e um sorriso nos lábios. Na noite anterior ao dia da
despedida, teve um acesso de febre. O carro que devia conduzi-lo em
pequenas jornadas estava parado à porta do hotel. A manhã estava fresca.
Teresa inquietou-se.
— Vá com ele até Spezzia — disse Palmer — É lá que ele deve
embarcar. Eu irei encontrá-la nessa cidade, no dia seguinte ao do embarque
de Lourenço. Acabo de encontrar negócio importante que me vai demorar
aqui durante umas vinte e quatro horas.
Surpreendida com tal resolução e com essa proposta, Teresa recusou
partir com Lourenço.
— Suplico-lhe que o faça! — disse Palmer, vivamente. — É-me
impossível seguir com vocês.
— Muito bem, meu amigo, mas não é indispensável que eu vá com ele.
— É preciso, sim!
Teresa acabou por acreditar que Palmer julgava necessária essa prova.
Ficou muito admirada e ficou inquieta com isso.
— É capaz de dar-me a sua palavra de honra de que tem aqui um
negócio importante?
— Sim! — respondeu Palmer. — Dou-lhe a minha palavra de honra.
— Pois bem, então, eu fico também.
— Não, é preciso que parta.
— Não estou compreendendo.
— Explicar-lhe-ei tudo mais tarde, minha amiga. Creio em você como
creio em Deus. Você vê. Tenha confiança em mim. Parta com Lourenço.
Teresa fez, às pressas, a sua maleta que atirou para dentro da carruagem,
tomando depois o seu lugar, ao lado de Lourenço. E, no instante da partida,
gritou para Palmer:
— Tenho a sua palavra de honra, Palmer! Você deverá encontrar-se
comigo dentro de vinte e quatro horas!

CAPITULO VIII

Obrigado, efetivamente, a permanecer em Florença, afastando-se de


Teresa, Palmer ao vê-la partir, sentiu um profundo golpe no coração.
Entretanto, o perigo que ele receava não existia. A cadeia rompida não podia
reatar-se. Lourenço, na certeza de que não havia perdido o seu coração,
tentou readquirir a sua estima. v
Durante esses três dias de intimidade, Teresa sentiu-se feliz ao lado de
Lourenço, vendo abrir-se nova era de delicados sentimentos, uma estrada
inexplorada. Saboreava a doçura de amar sem remorsos, sem inquietação,
um ser pálido e fraco que era, por assim dizer, uma alma apenas e persuadia-
se de que se encontrava novamente no paraíso das essências puras, como se
sonha viver depois da morte.
Foi a dez de maio que chegaram a Spezzia, pequena cidade pitoresca,
meio genovesa, meio florentina, ao fundo de
uma enseada azul e tranqüila, com o mais lindo céu. Não era, ainda, a
estação das férias. A região parecia encantada. O tempo era ameno,
delicioso. Ao contemplar aquela água tranqüila, Lourenço que se sentira
fatigado com os solavancos do carro resolveu prosseguir a viagem por mar.
Um pequeno barco partia de Gênova duas vezes por semana. Teresa ficou
contente por saber que não seria naquela noite a hora da partida... Eram mais
vinte e quatro horas de repouso para o doente. Mandou reservar-lhe um
beliche naquele barco para o dia seguinte, à noite.
Embora fraco, ainda, nunca Lourenço se sentira tão bem disposto. Tinha
um sono e um apetite de criança. Essa doce languidez dos primeiros dias de
cura completa davam à sua alma uma deliciosa perturbação. Sentia e
acreditava-se radicalmente transformado para sempre. Nessa renovação da
sua vida, parecia não mais ter a faculdade de sofrer. Deixava Teresa, entre as
suas lágrimas, numa alegria triunfante. Sentia a necessidade de imolar-se ao
ponto de dizer à Teresa que devia amar a Palmer, que era o melhor dos
amigos e o mais sábio dos filósofos.
— Não me diga nada, Teresa! Não me fale a seu respeito ... Não me
sinto ainda bastante forte para ouvir-lhe dizer que o ama... Mas saiba que eu
o amo também. Que poderia dizer de melhor?
Teresa não pronunciou uma única vez o nome de Palmer. E no momento
em que Lourenço, menos heróico, a interrogou diretamente, ela respondeu-
lhe:
— Cale-se, Lourenço! Guardo um segredo que só mais tarde lhe direi.
Esse segredo não é o que você pensa. Não seria capaz de adivinhá-lo, nem é
bom tentar...
No último dia, percorreram de barco a enseada de Spezzia. De vez em
quando, abicavam à margem, a fim de colherem belas plantas aromáticas que
cresciam na areia e até mesmo nos remoinhos das ondas indolentes e
preguiçosas.
O dia passou como um sonho, resumindo as mais ternas emoções de suas
vidas.
Lourenço tornou-se pensativo e triste ao cair da tarde, vendo de longe a
fumaça do "Ferruccio", o barco que devia conduzi-lo no dia seguinte e essa
fumaça preta passava por sobre a alma do convalescente. Teresa procurou
distraí-lo até ao último instante e perguntou ao barqueiro se havia ainda
alguma coisa interessante a ver-se na baía.
— Há, sim, senhora! — respondeu o barqueiro. Há a ilha Palmaria* e a
pedreira de mármore; se quiser ir até lá pode tomar esta embarcação, que,
antes de entrar no mar largo, pára em frente da ilha, em Porto Venere. A
senhora tem muito tempo para subir a bordo.
* Palmaria, ilha no golfo de Gênova, famosa pelo seu mármore Preto,
raiado de ouro. (Nota do "Clube do Livro".)-
Fizeram-se conduzir até à ilha Palmaria, bloco de mármore, caindo a
pique sobre o mar e que se abaixa num declive suave e fértil, do lado do
golfo. Existem aí algumas habitações a meia-encosta e dois palacetes sobre a
praia. A ilha fica plantada semelhante a uma defesa natural à entrada do
golfo, cujo canal é muito estreito entre a ilha e o pequeno porto, outrora
consagrado à deusa Vênus, de onde lhe ficou o nome.
Não existe coisa alguma nesse pequeno burgo que justifique a poesia do
nome. Mas a sua situação, sobre os rochedos escalvados e batidos pelas
vagas agitadas, as primeiras do grande mar, que se abisma pelo canal, é das
mais pitorescas.
Foi da pedreira de mármore da ilha Palmaria, do outro lado do estreito
canal, que Lourenço e Teresa contemplaram esse conjunto admirável. O sol
poente projetava sobre os primeiros planos uma tonalidade avermelhada.
Lourenço mostrou-se surpreendido com o espetáculo, que abarcou num
olhar de artista, em que Teresa viu refletir-se, como num espelho, todos os
fogos do céu abrasado.
— Graças a Deus, eis o artista que desperta! — exclamou ela.
Efetivamente, desde que caíra enfermo, Lourenço não tivera ainda um
único pensamento para a sua arte. Como a pedreira não lhe oferecesse senão
um interesse de momento, ou seja o de ver grandes blocos de mármore preto
com veios cor de ouro, ele mostrou desejos de subir pelo declive rápido da
ilha para, lá de cima, contemplar a plenitude do mar. £ avançou por um
bosque de pinheiros, caminho emaranhado e difícil, até uma extremidade em
que subitamente se viu como que perdido no espaço. O rochedo estava mal
seguro no mar que lhe foi roendo a base, quebrando-se aí as ondas num
estampido formidável. Lourenço, que não pensava fosse aquela escarpa tão
íngreme, teve uma sensação de vertigem e teria rolado para dentro do
abismo, não fosse a intervenção de Teresa, que o forçou a escorregar para
trás. Nesse movimento, ela viu-o dominado por imenso terror, o olhar
desvairado, como já uma vez o tinha visto no bosque, nos arredores de Paris.
— Que é isso? — perguntou, aflita, Teresa. Ainda um sonho?
— Não! Não! — respondeu Lourenço, agarrando-se a ela com toda a sua
força. Não é um sonho, é a própria realidade, é o mar, o mar terrível que me
vai arrebatar! É a imagem da vida em que vou recair. É o abismo que se vai
abrir entre nós, o seu ruído monótono, infatigável, odioso, que eu ia ouvir, à
noite, no ancoradouro de Gênova e que ululava blasfêmia a meus ouvidos.
— Lourenço! — gritou-lhe Teresa, sacudindo-o com força, — Lourenço,
você ouve o que eu lhe digo?
Ao reconhecer a voz de Teresa como que ia despertando em outro
mundo. E voltou-se surpreendido ao verificar que a árvore a que se agarrara
era, apenas, o braço trêmulo e cansado de sua companheira.
— Perdão! Perdão! — exclamou, passados instantes. É o último acesso.
Não é nada. Vamo-nos embora. Partamos.
Desceram, rapidamente, a encosta por onde tinham subido. O
"Ferruccio", chegava a todo vapor do fundo de Spezzia.
Lourenço subiu ao barco, certo de que Teresa ficaria na praia da ilha e
que esse barco voltaria a buscá-la, logo que ele estivesse a bordo do navio.
Mas ela saltou a seu lado; queria certificar-se de que o doméstico que devia
acompanhar Lourenço viera com as bagagens, e sem esquecer coisa alguma.
—: Você tem a bolsa de Lourenço? — perguntou-lhe Teresa. — Sei que o
encarregou de todas as despesas da viagem. Quanto lhe deu ele para
guardar?
— Duzentas liras florentinas, mas penso que ele guardou a sua carteira.
Teresa examinara os bolsos da roupa de Lourenço, enquanto ele dormia,
e encontrou a carteira. Estava quase inteiramente vazia. O rapaz gastara
quase tudo em Florença e os gastos da sua doença haviam consumido as suas
reservas.
O dinheiro que confiara a Vicentino, o doméstico, parecia-lhe dever
durar bastante, mas na realidade era pouco mais do que o necessário para
chegar à fronteira. Teresa, diante tal imprevidência, entregou a Vicentino
tudo quanto possuía no momento.
Teresa foi ver o seu beliche, muito cômodo, mas cheirando
horrivelmente a peixe.
Um jovem, cuja roupa de viagem e cujas maneiras aristocráticas
contrastavam com as dos outros passageiros, pela maior parte comerciantes
de azeite ou pequenos negociantes costeiros, passou ao lado de Lourenço e
exclamou, reconhecendo-o:
— Ah! é você?...
Apertaram as mãos num gesto de frieza. Era, entretanto, um dos seus
velhos camaradas de sua vida de estróina. Lourenço, em vez de alegrar-se
com o encontro, mandou intimamente para o diabo aquela testemunha
importuna de seu último adeus à Teresa. O Sr. de Vérac — era assim que se
chamava o velho amigo de Lourenço — conhecia Teresa. Tendo,
respeitosamente, saudado a pintora o Sr. de Vérac declarou ter sido uma boa
sorte para ele ter encontrado ali a bordo do "Ferruccio" dois bons
companheiros de viagem como Teresa e Lourenço.
— Mas, eu não vou viajar! — disse Teresa. Eu fico.
— Como? Aqui? Em Porto Venere?
— Não, na Itália.
Afastou-se, discretamente, mas ficou a observar de viés os adeuses dos
dois. De pé, na escada, Teresa empurrada pelos outros viajantes que se
abraçavam ruidosamente, enquanto a campainha de bordo tocava, deu um
beijo fraternal na fronte de Lourenço. Ambos choraram. Em seguida, ela
desceu para a barca e dirigiu-se para a sombria escadaria de rochas chatas,
que dava entrada para o pequeno porto de Venere.
Lourenço ficou admirado de vê-la tomar essa direção, em vez de
regressar a Spezzia.
Ao cabo de uns dez minutos, o "Ferruccio" deu a volta ao promontório,
depois de ter alcançado um pouco esforçada-mente o mar. Lourenço lançou
um último olhar para o rochedo triste e viu na plataforma do velho forte em
ruínas uma silhueta, cuja cabeça e cabelos agitados pelo vento eram ainda
dourados pelos raios do sol. Era Teresa. Lourenço agitou os braços com
entusiasmo.
De Vérac olhava para Lourenço, pasmo. E Lourenço, que era o homem
mais suscetível do mundo, a respeito do ridículo, não se incomodava,
chegando mesmo a demonstrar uma espécie de orgulho.
Quando a costa desapareceu nas brumas da noite, Lourenço estava
sentado num banco ao lado de Vérac.
— Vamos! Conte-me essa estranha aventura. Todos os seus amigos de
Paris, ou melhor, a cidade inteira de Paris vai perguntar-me qual foi o
desenlace de suas relações com a senhorita Jacques, que também se acha um
pouco em evidência. Que vou responder?
— Que você me encontrou muito triste e apalermado. Tudo quanto eu
lhe disse se resume em poucas palavras.
— Então foi você quem primeiro a abandonou a ela? Para você, é melhor
assim.

CAPITULO IX

Era noite, quando Teresa perdeu de vista o "Ferruccio". Despediu a


barca que tinha alugado pela manhã em Spezzia, mas no momento de
regressar percebeu a extrema penúria em que se encontrava. Tinha recursos
para quatro ou cinco dias. A respeito de jóias, possuía um relógio e uma
corrente de ouro. Poderia servir de caução até receber dinheiro de seu
trabalho ou de alguma remessa, que estava esperando. O essencial, agora, era
atravessar a noite em Porto Venere.
Passando na frente de uma dessas portas abertas da pequena cidade,
Teresa avistou um interior que se lhe afigurou mais limpo que os outros e de
onde vinha um cheiro de azeite menos ácido. À soleira da porta, estava
sentada uma pobre mulher de fisionomia agradável e honesta, a inspirar
confiança. Teresa conseguiu entender-se com essa criatura, que lhe
perguntou, delicadamente, se estava à procura de alguém. Teresa entrou,
olhou em redor e perguntou se era possível encontrar ali um quarto, onde
pudesse passar a noite.
— Sim, certamente, um quarto melhor do que este, onde a senhora estará
mais tranqüila do que numa estalagem, onde ouviria os barqueiros a cantar a
noite inteira. Mas, eu não sou estalajadeira e, a fim de evitar-me
dificuldades, a senhora dirá em voz alta, amanhã, de maneira a ser ouvida no
meio da rua, que já me conhecia antes de vir aqui.
— Está bem; quer mostrar-me esse quarto?
Subiram alguns degraus e Teresa encontrou-se num aposento vasto, de
onde o olhar abrangia imenso panorama sobre o mar e sobre o golfo. Teresa
ficou com esse quarto, que se tornou um refúgio para a sua alma atribulada.
No dia seguinte, escreveu à sua mãe:

"Querida mamãe: Eis-me tranqüila, há uma dúzia de horas e em plena


posse da minha liberdade, não sei durante quantos dias ou anos.
Esse amor fatal que tanto inquietava a senhora não prosseguiu e não se
reatará. A este respeito, pode ficar sossegada. Acompanhei o meu doente;
embarquei-o, ontem, à noite. Se não lhe salvei a alma — e por isso não
posso lisonjear-me— consegui, ao menos, melhorar a sua situação e fiz
penetrar nesse coração por alguns instantes a doçura da amizade. Se
anteriormente pudesse ter acreditado nisso, estaria para sempre a salvo de
tempestades.
Agora é preciso que lhe fale a respeito de Palmer. Quer a senhora que
eu me case com ele. Ele quer casar e eu também. Desejei, sim, que isso se
realizasse, mas será que ainda o deseja? Sinto, ainda, certos receios e
alguns escrúpulos. Talvez, a culpa seja dele próprio. Ele não pôde ou não
quis ficar comigo nos últimos momentos que passei junto de Lourenço.
Deixou-me sozinha durante três longos dias, os quais eu sabia e que
realmente foram sem perigo para mim. Todavia, existe de sua parte como
que um certo desinteresse ou uma discrição excessiva que só pode partir dos
bons sentimentos de tal homem, mas que, entretanto, dão margem a algumas
reflexões.
Estou, hoje, hesitante, pois me parece que ele se arrepende. Será sonho
da minha parte? Por que seria que ele não pôde acompanhar-me até aqui?
Por que esse capricho ou essa impossibilidade na última hora? Obstáculo
imprevisto? Parece que o intuito dele foi submeter-me a uma prova, o que
me humilha.
Ou, talvez, quisesse voltar atrás e dissesse a si mesmo o que eu lhe dizia
no principio para dissuadi-lo de pensar em mim.
Encontro-me aqui num simples e magnífico pequeno porto de mar, onde
espero com paciência a última palavra do meu destino. É possível que
Palmer se encontre em Spezzia, a três léguas daqui. Sinto-me
admiràvelmente bem. Tenho debaixo dos olhos o mais admirável dos mares
e sobre a minha cabeça o mais formoso céu, que se possa imaginar. Não me
falta coisa alguma. Estou em casa de pessoas muito respeitáveis; ê possível
que amanhã lhe volte a escrever; ame sempre a sua Teresa, que a adora".

Efetivamente, desde a véspera, Palmer encontrava-se em Spezzia.


Chegara uma hora antes da partida do "Ferruccio". Não tendo encontrado
Teresa no hotel e havendo-se informado de que ela havia conduzido
Lourenço a bordo, à entrada do golfo, ficou à espera. Bateram as nove horas
e viu o barqueiro, que contratara pela manhã, chegar sozinho. Este tinha
bebido inteirinha uma garrafa de Chipre, que Lourenço lhe tinha oferecido,
depois de haver jantado sobre a relva, em companhia de Teresa....
Recordava-se, perfeitamente, de ter conduzido o senhor e a senhora até a
bordo do "Ferruccio", mas não se recordava de ter trazido, depois, a senhora
para Porto Venere.
Se Palmer o tivesse interrogado calmamente, teria descoberto
imediatamente que as idéias do barqueiro não eram nada claras e a sua
informação deixara muito a desejar. Mas Palmer, com seu ar grave e
impassível, irritava-se facilmente e era muito apaixonado. Acreditou que
Teresa tinha partido com Lourenço, sem se atrever a confessar-lhe a verdade.
Entrou, pois, no hotel, deu o dito por não dito e passou uma noite terrível.
Levantou-se muito cedo e foi passear pela orla do golfo, dominado por
idéias trágicas, de suicídio, que, entretanto, logo se transformaram numa
espécie de desprezo por Teresa.
Acabrunhado por tais reflexões, Palmer viu aportar bem perto do ponto,
onde estava, uma chalupa pintada de preto, sob o comando de um oficial de
marinha. Os oito remadores que faziam deslizar o barco rapidamente sobre
as ondas tranqüilas, ergueram, rapidamente, os remos brancos, em conti-
nência; com uma precisão toda militar.
O oficial desembarcou e dirigiu-se a Palmer, que o reconhecera de longe.
Era o capitão Lawson, comandante de uma fragata americana, que havia um
ano estava em cruzeiro pelo Mediterrâneo e fazia ponto no golfo.
Era um dos amigos de infância .de Palmer, que havia entregado a Teresa
uma carta de recomendação para o caso dela querer visitar o navio e
percorrer a enseada. Lawson levou Palmer para almoçar a bordo. A fragata
devia terminar o seu cruzeiro no fim da primavera. Palmer pensou que
poderia aproveitar a oportunidade de regressar aos Estados Unidos. Parecia-
lhe que tudo estava rompido entre ele e Teresa.
Havia já três dias que se demorava mais a bordo do navio americano do
que no seu quarto do hotel da Cruz de Malta e foi aí que, certa manhã, à hora
do almoço, ouviu de um guarda-marinha, que se tinha apaixonado, desde a
véspera, por certa mulher que devia ter vinte a trinta anos vista a uma janela,
sentada a fazer renda.
A renda de fios de algodão constitui o trabalho de todas as mulheres do
povo em toda a costa genovesa.
O jovem marujo contou ainda que interrogara a respeito dessa senhora o
estalajadeiro de Porto Venere, o qual lhe informara que aquela senhora
estava ali, há uns três dias, morando em casa de uma velha senhora do lugar,
que a fazia passar por sua sobrinha.
De posse destas informações, o jovem marujo deu-se pressa em ir à casa
da velha senhora, pedindo-lhe que alojasse em sua casa um de seus amigos
de quem estava à espera. Contava obter quaisquer informações a respeito da
desconhecida, mas a velha mostrou-se impenetrável e até incorruptível.
Pelo retrato que o guarda-marinha fez da criatura, Palmer pressentiu que
bem podia ser Teresa. Mas que fazia ela ali? Por que se ocultava em Porto
Venere? Sem dúvida, não estava sozinha. Lourenço devia achar-se
escondido em qualquer canto.
Fez-se conduzir, imediatamente, a Porto Venere, onde não teve
dificuldade em descobrir Teresa. A explicação foi viva e franca. Os dois
eram sinceros demais para desconfiarem um do outro. Ambos confessaram o
excessivo capricho recíproco.
— Minha boa amiga — disse Palmer — parece que você nie censura
sobretudo por havê-la abandonado num momento de perigo... Mas eu não
acreditava nesse perigo!
— Você tinha razão e eu lhe agradeço, mas, então, por que se mostrava
tão triste e como que desesperado ao ver-me partir? Não me encontrando,
supôs que eu tivesse partido e que seria inútil procurar-me.
— Escute — disse Palmer — deixando-a partir sozinha com Lourenço
não era meu intuito submetê-la a uma prova. Só Deus sabe quanto sofri.
Depois, quando supus que você tivesse, efetivamente, partido com ele, todas
as fúrias do inferno me assaltaram o coração.
— Pois é disso que eu o censuro! — disse Teresa.
— Mas que quer você, Teresa? Tenho sido tão odiosamente enganado
em minha vida!
— Eu também tenho sido muito enganada e acreditava em você, apesar
de tudo...
— Não falemos mais nisto, minha boa amiga. Sinto profundamente ter
sido obrigado a contar-lhe algumas vezes o meu passado. Você é capaz de
acreditar que esse passado possa influir no meu futuro e, como Lourenço, eu
lhe faça pagar todas as traições de que tenho sido vítima. Vamos refletir,
Teresa. Você está aqui num lugar triste. Vamos expulsar todos os
pensamentos tristes. Venha para Spezzia.
— Não! — disse Teresa. — Vou ficar aqui.
— Como? Que é isso? Despeito entre nós ambos?
— Não, não, meu caro Palmer! — disse ela, estendendo-lhe a mão. —
Afastemos a idéia de casamento e permaneçamos simplesmente amigos.
Retomo, provisoriamente, a minha palavra até poder contar com toda a sua
estima, conforme acreditava possuí-la. Se não quer sujeitar-se a uma
pequena prova, separe-mo-nos, imediatamente. Juro-lhe que na situação em
que me encontro, não desejo dever-lhe o mais pequeno favor. A minha
posição é a seguinte: estou aqui hospedada e alimentada sob promessa,
porque não possuo coisa alguma. As últimas moedas que tinha confiei-as a
Vicentino, para os gastos da viagem de Lourenço, o estróina. Sei fazer renda
mais depressa e melhor do que as mulheres deste lugar. E enquanto espero
de Gênova o dinheiro que me é devido, vou ganhando aqui dia a dia, o que
me serve, ao menos para recompensar a minha boa estalajadeira; não
experimento constrangimento algum neste estado de coisas, que deve durar
até que me chegue o meu dinheiro. Então, verei qual a resolução que devo
tomar. Regresse a Spezzia e volte ver-me, quando quiser. Conversarei com
você, fazendo renda...
Palmer foi obrigado a aceitar esta imposição e submeteu-se de boa
vontade. Sentira que seu erro molestara Teresa e esperava recobrar-lhe a
confiança.

CAPITULO X

O dinheiro que Teresa esperava não chegou senão ao cabo de quinze


dias. Durante esse tempo, ela fez renda, com uma perseverança que desolava
Palmer. Quando, finalmente, se viu de posse de algumas notas de banco,
pagou, generosamente, à sua estalajadeira e resolveu sair com Palmer, a
passear um pouco à margem do golfo. Mas quis ficar ainda algum tempo em
Porto Venere, sem saber o motivo por que se sentia presa daquela maneira a
tão triste e modesta residência.
Há situações morais, que se revelam melhor, quando não se definem. Era
com sua mãe que Teresa se expandia em suas cartas.

"Encontro-me, ainda, aqui — escrevia ela à sua mãe, no mês de julho —


apesar do calor sufocante. Estou retida como a concha a este rochedo, onde
jamais cresceu uma árvore, mas sobre o qual sopram brisas suaves e
tonificantes. O clima ê rude, mas sadio, e a visão continua do mar, que
antigamente me era insuportável, tornou-se, agora, de qualquer maneira,
indispensável para mim.
Algumas vezes, eu e Palmer paramos horas inteiras nos cimos
arborizados dos arredores. Lá de cima, mergulha-se numa infinidade de
terras cultivadas e recortadas, aqui e além, por uma tal qual regularidade
geométrica, por acidentes estranhos. Para além dessa imensidade,
desenrola-se a perder de vista a imensidão azul do mar. Desse outro lado, o
horizonte parece ser sem limites. Do lado do norte e de leste, são os Alpes
marítimos, cujos píncaros, em linhas atrevidas, estavam ainda cobertos de
neve, quando aqui cheguei.
Mas já não se trata dessas savanas de estepes em flor e arbustos com
urzes brancas, que exalam um perfume tão fino e tão fresco nos primeiros
dias de maio. Então, isto aqui era um verdadeiro paraíso terrestre.
Mas existe um verdadeiro flagelo em Spezzia: os mosquitos, pr o criados
nas águas estagnadas de um pequeno lago, vizinho da cidade e dos imensos
pântanos, que a lavoura está, aos poucos, disputando às águas do mar.
Aqui, não são as águas das terras, que nos molestam. Nada de insetos, por
conseguinte, nem um talo de erva. Mas que nuvens de ouro e púrpura! Que
tempestades sublimes, que calmarias solenes! O mar é uma tela que muda
de cor e expressão, a cada minuto, de dia e de noite. Existem, aqui,
precipícios cheios de clamores, todos os soluços do desespero, todas as
imprecações do inferno aí se reúnem e, da minha pequena janela, eu ouço
dentro da noite essas vozes do abismo, que bramam numa bacanal sem
nome, ou cantam hinos selvagens e temíveis nas suas horas paradas.
Agora, estou gostando de tudo isto, quando eu tinha, no entanto,
preferências campestres e gostava dos pequenos recantos verdes e
tranqüilos. Será que foi porque neste meu amor fatal, adquiri o hábito de
amar as tempestades e sentir a necessidade do rumor? É possível;: nós, as
mulheres, somos criaturas tão estranhas! Devo confessar-lhe, querida
mamãe: foram necessários muitos dias para habituar-me ao meu suplício.
Não sabia o que fazer de mim. Não tinha mais a quem servir e de quem
cuidar... Não queria falar-lhe, senão deste país, dos seus passeios, das
minhas ocupações, do meu triste aposento sob o telhado, ou melhor, sobre o
telhado, e onde gosto de ficar sozinha, ignorada, esquecida do mundo, dos
deveres, sem clientes, sem negócios, sem, obrigações, sem fazer outro
trabalho alem daquele que me interessa...
Se eu lhe disser em que ponto se encontram o meu coração e a minha
vontade, a senhora ficará ainda mais inquieta. Pois bem; saiba que estou
disposta a casar-me com Palmer, a quem amo, realmente, mas não fixei até
agora a data do casamento. Receio, por mim e por ele, do dia seguinte ao da
realização desse vínculo indissolúvel. Já não estou na idade das ilusões e
depois de uma vida como a minha, contam-se por cem anos os anos de
experiências e de terrores. Creio que estou absolutamente desligada de
Lourenço; agora, porém, já não me sinto independente dele. Depois da sua
doença, do seu arrependimento e de suas cartas, adoráveis de doçura e
abnegação, cartas que ele me vem escrevendo nestes dois últimos meses,
sinto que um grande dever me liga a esse moço infeliz e não desejaria
melindrá-lo por um abandono completo. É, todavia, o que pode acontecer
no dia imediato ao do meu casamento, Palmer teve um momento de ciúme, e
com razão, e esse momento pode repetir-se, no dia em que eu tiver o direito
de dizer: "Eu quero". Não amo Lourenço. Juro que não. Preferiria morrer a
vir a amá-lo de novo. Mas, no dia em que Palmer quiser romper o afeto por
uma alma desprotegida que sobreviveu no meu coração, talvez deixe de
amar Palmer. É como se a mãe tivesse de abandonar um filho! Tenho dito
tudo isto a Palmer e ele compreende, porque ê um grande filósofo".
Teresa recebeu de Lourenço, naquela mesma ocasião, uma carta tão
ardente e tão apaixonada que a deixou inquieta.

"Ah! Teresa — escrevia ele, — eu a censurava outrora por amar


castamente e ter sido mais feita para o convento do que para o amor. Como
foi que pude dizer semelhante barbaridade? Depois que tento voltar à minha
vida de prazeres fugazes, sou eu que me sinto tornar-me casto como uma
criança e as mulheres, que vejo, dizem-me que sou bom para tornar-me
frade.
Teresa, se você não pertence a Palmer não pode pertencer senão a mim.
Foram maus todos os nossos dias? Não houve entre eles, também, alguns
belos e felizes? Você sofreu muito e está vivendo. Eu, que a fiz sofrer, morro
por causa disso. Já não expiei bastante? Já transcorreram três meses de
agonia para a minha alma!..."
Teresa resolveu responder-lhe, dizendo-lhe que amava Palmer e esperava
amá-lo sempre, mas sem aludir ao casamento, que não podia resolver-se a
considerar como resolução já assente.

"Fique sabendo, escrevia-lhe ela, — que não foi com a intenção de


castigá-lo que ofereci o meu coração e a minha vida a outro. Acredite, meu.
caro menino, que ao cuidar de você, durante a sua doença fui, apenas, uma
irmã de caridade! Será sempre assim. Todas as vezes que, sem faltar ao que
devo a Palmer, puder servi-lo, cuidar de sua saúde, como sua irmã ou como
sua mãe, estarei a seu lado. Foi justamente por não se opor a isto que pude
amar Palmer e é por isso que o amo. Se me fosse preciso passar dos seus
braços para os de seu inimigo, eu teria horror de mim mesma. Mas é justa-
mente o contrário que acontece. Foi em virtude de um juramento mútuo, que
fizemos, — o de velarmos sempre por você e nunca abandoná-lo — que eu e
Palmer unimos as nossas mãos."

Teresa mostrou essa carta a Palmer, que se sentiu vivamente emocionado


e mostrou, também, desejos de escrever de sua parte, em que lhe fez as
mesmas promessas de constante e verdadeira afeição.
Lourenço aguardou novas cartas. Recomeçara para ele um sonho que
vira desaparecer. A princípio, impressionou-se, mas resolveu sacudir esse
pesar que ele não tinha forças para suportar. Operou-se, então, dentro dele
uma dessas revoluções súbitas e completas, que eram, ora um flagelo, ora a
saúde de sua existência. E escreveu à Teresa:

"Bendita seja Você, minha irmã adorada! Sinto-me feliz e orgulhoso de


sua fiel amizade. A sua amizade e a de Palmer comoveram-me até às
lágrimas.
Minha querida Teresa, meu caro Palmer: vocês dois são os meus anjos
da guarda. Vocês me trouxeram a felicidade. Graças a ambos, em suma,
sinto agora que nasci para uma vida diferente daquela que tenho levado.
Estou renascendo, sinto o ar do céu descer para os meus pulmões, estes
pulmões que sentem a avidez de uma atmosfera pura.
Vou amar! Sim, já estou querendo bem... Amo uma bela jovem, que nada
sabe até agora do meu amor e perto da qual sinto um prazer misterioso — o
prazer de guardar o segredo do meu coração e de me parecer e tornar tão
ingênuo, tão alegre e infantil quanto ela própria."

Era mais ou menos deste teor todo o conteúdo da carta de Lourenço. Ao


receber esse hino de alegria e de reconhecimento, Teresa sentiu pela
primeira vez a própria felicidade. Estendeu as mãos a Palmer e perguntou:
— Ah! sim! Onde e quando no.s casaremos?

CAPÍTULO XI

Ficou decidido que o casamento se realizaria na América. Palmer teria


uma imensa alegria de apresentar Teresa à sua mãe e receber sob suas vistas
a bênção nupcial.
A Fragata "Union" fazia os seus preparativos para a partida. O capitão
Lawson oferecera-se para conduzir Palmer e sua noiva.
Tendo-se preparado para embarcar a 18 de agosto, Teresa recebeu uma
carta de sua mãe a qual lhe suplicava que, primeiramente, fosse a. Paris,
mesmo por uma demora de um dia. Tinha que ir à capital francesa tratar de
certos negócios de família e ela não podia saber quando Teresa regressaria
da América.
A pobre senhora não se sentia muito feliz com os seus outros quatro
filhos, aos quais o exemplo de um pai desconfiado e de mau temperamento
tornava insubmissos e frios para com ela. Por isso, adorava Teresa, que
sempre havia sido uma filha terna e amiga dedicada. Queria abençoá-la e
beijá-la, quiçá pela última vez, pois sentia-se velha, doente e cansada de uma
existência sem segurança e sem conforto familiar.
Palmer ficou mais contrariado por essa carta porque não podia confessar
a sua contrariedade.
Embora tivesse admitido com satisfação mais ou menos aparente a
certeza de uma amizade duradoura entre ele e Lourenço, Palmer não deixava
de mostrar-se inquieto, pensando nos sentimentos que ele poderia despertar
em Teresa, logo que ela o tornasse a ver. Eram esses os seus pensamentos,
quando a fragata norte-americana fez troar no golfo de Spezzia a salva de
seus canhões em despedida, durante todo o dia 18 de agosto.
Cada uma dessas explosões fazia-o estremecer; na última, torceu os
dedos a ponto de fazê-los estalar.
— Que é isso, santo Deus? — exclamou Teresa, olhando para ele com
atenção? Que pressentimento o oprime?
— Sim, é isso mesmo! — respondeu Palmer. Um pressentimento! Por
Lawson, meu amigo de infância. Não sei porquê... Sim, é um
pressentimento!
— Julga que lhe vai acontecer alguma desgraça no mar?
— Talvez! Quem sabe? Enfim, você não ficará exposta a essa desgraça,
porque vamos a Paris.
— A "Union" passará por Brest, onde deverá demorar-se uns quinze
dias. É lá que devemos embarcar?
— Sim, caso daqui até lá não aconteça alguma catástrofe. Palmer ficou
triste e abatido, sem que Teresa conseguisse adivinhar o que nele se passava.
Como poderia ela adivinhar? Lourenço achava-se longe, em Baden,
numa.estação de águas e estava também preocupado com os seus projetos de
casamento, segundo escrevera.
Partiram no dia seguinte, pela posta*, sem se deter em parte alguma,
penetrando na França por Turim e monte Cenis. A viagem foi
extraordinariamente triste. Palmer via em tudo prenúncios de desgraça,
dando mostras de superstições e fraqueza de espírito, que não faziam
realmente parte de seu caráter. Teresa nunca o vira assim. E não pôde deixar
de dizer-lho. Ele respondeu-lhe com uma palavra insignificante, que não
dizia coisa alguma, mantendo a sua fisionomia sombria e com tais sinais de
cólera que ela teve medo dele e medo do futuro...
*Mala-posta, antiga diligência, que transportava as malas do correio e
alguns passageiros. (Nota do "Clube do Livro").

Enquanto Teresa e Palmer entravam na França pelo monte Cenis,


Lourenço regressava a Paris, procedente de Genebra, chegando a Paris,
algumas horas antes de seus amigos, repassado da mais viva angústia.
Descobrira, finalmente, que para fazer que ele viajasse durante alguns
meses, Teresa se havia desfeito de tudo quanto possuía. Por intermédio de
uma pessoa que tinha passado nessa época pela cidade de Spezzia soubera
que a senhorita Jacques vivia em Porto Venere em situação mais que
precária, fazendo renda para pagar à estalajadeira as seis libras por mês que
havia combinado.
Humilhado, arrependido, irritado e aborrecidíssimo, Lourenço procurava
alguém que o pudesse informar a respeito da situação atual de Teresa. Ele
sabia que ela era por demais altiva para aceitar dinheiro de Palmer e
confessava a si próprio que se Teresa não houvesse recebido o pagamento de
seus trabalhos de pintura em Gênova, devia ter vendido os seus móveis em
Paris.
Lourenço correu aos Campos Elíseos, tremendo de receio de encontrar
pessoas desconhecidas já morando na pequena casa da qual não se
aproximava nunca sem que o coração lhe palpitasse violentamente no peito.
Ignorava o próximo casamento de Teresa e até mesmo se ela se sentia livre
para realizar esse casamento. A última carta, que ela lhe escrevera sobre o
assunto, chegara de Baden, no dia seguinte da sua partida.
Foi com extrema alegria que viu a velha Catarina abrir a porta da casa.
Saltou ao pescoço da velha, mas ficou repentinamente consternado vendo o
semblante triste da mulher.
— Que vem aqui fazer? — perguntou Catarina de mau modo. Não sabe
que a senhorita chega, hoje? Não pode deixá-la sossegada? Quer provocar
nova desgraça? Disseram-me que vocês se haviam separado e confesso que
fiquei muito contente com a notícia. Porque, depois de ter gostado tanto do
senhor, confesso que o detestava agora. O senhor era o causador de todas as
suas dificuldades. Vamos, não fique à espera da senhorita, a não ser que
tenha o propósito de fazê-la morrer!
— Você disse que ela chega, hoje? — exclamou Lourenço, repetidas
vezes.
Lourenço sentia-se dominado por uma singular emoção. Perguntava a si
próprio por que seria que Teresa regressava a Paris, sem tê-lo prevenido.
Viria com Palmer? Esse brusco e misterioso regresso não significaria uma
ruptura com Palmer?
Semelhante idéia foi ao mesmo tempo motivo de júbilo e horror. Mil
emoções opunham-se e contradiziam-se no seu cérebro, agitando-lhe os
nervos. Num momento, esqueceu-se, insensivelmente, da realidade e
figurou-se-lhe que aqueles móveis cobertos de tela cinzenta eram os túmulos
de um cemitério. Sempre tivera horror da morte e contra a sua vontade
pensava incessantemente nela, vendo-a em redor de sua pessoa, sob as mais
variadas formas. Julgou-se envolto naquelas mortalhas e ergueu-se com
medo, exclamando:
— Quem foi que morreu? Teresa? Palmer? Vejo-o, sinto-o... Alguém
morreu nesta região onde acabo de entrar. Não, foi você! — respondeu ao
eco da própria voz, falando a si mesmo — foi você que viveu nesta casa os
melhores dias da sua vida e agora volta inerte, abandonado, esquecido,
semelhante a um cadáver!.
Catarina, sem ele dar por isso, voltou ao aposento, levantou as telas,
espanou os móveis, abriu as janelas e as persianas, colocou flores nos
grandes vasos da China, nas consolas douradas. Depois, abeirando-se dele,
perguntou:
— Que está o senhor fazendo, aqui?
Lourenço despertou do seu sonho e, olhando em redor, numa alucinação,
viu flores reproduzidas nos espelhos, os móveis com incrustações de cobre e
tartaruga, que brilhavam ao sol e todo aquele ar de festa que se seguira,
como por magia, ao aspecto fúnebre da ausência que, efetivamente, tanto se
assemelha à morte.
A sua alucinação tomou novos rumos.
— Que é que eu faço aqui? — perguntou, com ar sombrio, sim, que
estou eu fazendo aqui? Hoje é dia de festa em casa de Teresa. É um dia de
esquecimento e embriaguez, e, certamente, não é a mim — um morto — que
ela espera... Que faz um cadáver nesta câmara nupcial? Que dirá ela, ao ver-
me aqui? Dirá como você, pobre velha: "Saia daqui! seu lugar é no túmulo!"
Parecia delirante de febre. Catarina teve pena.
— Está louco! — pensou. De resto, sempre o foi... E quando ia dizer-lhe
algumas palavras com doçura, a fim de afastá-lo, ouviu o rumor de uma
carruagem, que parava à porta da rua. Na alegria de tornar a ver Teresa,
Catarina esqueceu-se de Lourenço e correu a abrir a porta.
Palmer viera em companhia de Teresa, mas, desejando desembaraçar-se
logo da poeira da viagem e não querendo deixar a Teresa o encargo de
despedir a carruagem, subiu novamente e mandou o cocheiro seguir para o
Hotel Maurice, dizendo à Teresa que lhe mandaria as malas dentro de duas
horas, quando voltaria para cear com ela.
Teresa abraçou a sua boa Catarina e, perguntando-lhe como havia
passado durante todo aquele tempo, entrou em casa com essa curiosidade
impaciente, inquieta e alegre que se sente ao tornar a ver um lugar, onde se
viveu durante muito tempo, de maneira que Catarina não teve oportunidade
de informar-lhe que Lourenço estava lá e ela surpreendeu-o pálido, absorto e
como que petrificado no sofá do salão. Ele não ouvira o ruído da carruagem,
nem o bater das portas, precipitadamente abertas. Estava mergulhado nos
seus lúgubres devaneios, quando a viu diante dos olhos. Lourenço, soltando
um grito, atirou-se-lhe ao pescoço, abraçando-a, sufocando-a, caindo quase
sem sentidos a seus pés.
Foi necessário desapertar-lhe a gravata e fazer-lhe cheirar um frasco de
éter. A sua respiração era arquejante e as pulsações do coração tão violentas
que todo o seu corpo parecia sacudido por fortes comoções elétricas.
Assustada, ao vê-lo assim, Teresa julgou que ele tivesse recaído doente.
Todavia, o frescor da mocidade depressa lhe voltou às faces e ela notou que
ele tinha mesmo engordado. Lourenço jurou que nunca se sentira tão bem
disposto. Sentia-se feliz ao vê-la tão formosa, como no primeiro dia que a
conhecera. Ajoelhou-se diante dela e beijou-lhe os pés, dando as mais vivas
provas do seu respeito e da sua adoração. Tão vivas eram essas efusões que
Teresa chegou a inquietar-se, julgando dever lembrar-lhe que dentro em
breve teria de seguir novamente viagem, a fim de casar-se com Palmer.
— Como? Que está dizendo? — gritou Lourenço, pálido como se um
raio lhe tivesse caído aos pés. Partir?... Casar!... Como? Por quê? Será que
estou sonhando, ainda?
— Sim! — respondeu Teresa, escrevi-lhe a esse respeito. Então, não
recebeu a minha carta?
— Partir!... Casar! — repetia Lourenço. Mas você dizia antigamente que
isso era impossível. Lembre-se!
— O conde das três estrelinhas morreu; agora, estou livre.
Lourenço ficou tão aturdido com semelhante revelação que se esqueceu
de todos os seus projetos de amizade fraternal e desinteressada. O que Teresa
previra em Gênova realizava-se, agora, nas condições mais singulares.
Então, formou uma idéia exaltada da felicidade que teria sido sua se
houvesse se tornado esposo de Teresa, como devia ser, e derramou lágrimas
abundantes. Sua dor era tão sincera e profunda que Teresa não pôde deixar
de compartilhar sua aflição. Nunca tinha podido ver Lourenço sofrer sem
sentir em si como que toda a compaixão da maternidade. Tentou em vão
deter as próprias lágrimas, Não se iludiu, porém; esse desespero de Lourenço
outra coisa não era senão... uma vertigem! Mas essa vertigem refletia-se
sobre os seus nervos e os nervos de uma mulher como Teresa são as próprias
fibras do coração.
Finalmente, conseguiu acalmar o jovem, fazendo-lhe aceitar o seu
casamento como a melhor das soluções para um e outro.
Palmer entrou sem que se ouvisse o rumor de seus passos. Sem qualquer
premeditação, vinha desconfiado. Parou à porta da sala e reconheceu a voz
de Lourenço.
— Eu estava bem certo disto! — disse ele de si para consigo,
desabotoando a luva, furioso. E bateu à porta.
— Entre! — gritou Teresa, admirada de que alguém lhe batesse à porta
da sala. Ao ver Palmer, ficou pálida. O gesto do americano era mais
eloqüente do que todas as palavras. Ele suspeitava dela. Palmer notou essa
palidez, sem compreender-lhe a causa. Viu que Teresa havia chorado e que
Lourenço tinha a fisionomia alterada.
O primeiro olhar que ambos trocaram foi de ódio e provocação. Depois,
indecisos, dirigiram-se um para o outro, mal sabendo se se estenderiam as
mãos num cumprimento cordial, ou se estrangulariam um ao outro.
Lourenço foi, no momento, o melhor e mais sincero dos dois, pois seus
movimentos espontâneos redimiram as suas culpas. Abriu os braços e
abraçou efusivamente Palmer, sem procurar ocultar-lhe as lágrimas, que
recomeçavam a sufocá-lo.
— Que vem a ser isto? — perguntou Palmer, olhando para Teresa.
— Não sei! — respondeu ela com segurança. — Acabo de dizer-lhe que
estamos de viagem marcada para casar-nos. Isso o tornou muito pesaroso.
Diga-lhe, Palmer, que, perto ou longe, gostaremos sempre muito dele.
— É uma verdadeira criança cheia de mimo! — disse Palmer. — Ele
devia saber que só existe uma palavra e que acima de tudo desejo a sua
felicidade. Será preciso levá-lo para a América, para ele deixar de afligir-se e
de chorar?
Estas palavras foram pronunciadas em tom indefinível de amizade
paternal, num misto de certo amargor invencível.
Teresa compreendeu. Pediu a Catarina o xale e o chapéu e disse a
Palmer:
— Vamos todos jantar no restaurante. Catarina só esperava por mim; o
jantar não chega para nós quatro.
— Quer dizer, para nós três, disse Palmer em tom sempre meio amargo.
— Mas eu não vou jantar com vocês dois — disse Lourenço, que
compreendera o que se estava passando no espírito de Palmer. Eu vou indo
embora. Voltarei, depois, para apresentar as minhas despedidas. Em que dia
vão partir?
— Dentro de oito dias! — respondeu Teresa.
— Oito dias, pelo menos, acrescentou Palmer, olhando para ela, de modo
estranho. Mas, não é motivo para não jantarmos hoje os três. Dê-me esse
prazer, Lourenço. Depois do jantar, daremos algumas voltas de carruagem,
pelo Bosque do Bolonha. Peço-lhe que aceite o convite.
— Já estou comprometido — explicou Lourenço.
— Bem, — tornou Palmer, liberte-se desse compromisso. Aqui, tem
papel e tinta; escreva.
O americano falou num tom tão decidido que mais parecia absoluto.
Lourenço acreditou que fosse esse o seu tom acostumado de sinceridade e
franqueza. Teresa teria bem desejado que ele mantivesse a recusa e, assim,
num rápido olhar, lho fez compreender. Mas Palmer não o perdia de vista e
dir-se-ia disposto a interpretar tudo da maneira mais desfavorável.
O jantar foi de uma tristeza mortal. Embora Palmer, que assumira o
papel de anfitrião, intimamente desejasse e fizesse o possível para servir aos
convivas as iguarias e os vinhos mais finos, tudo lhe parecia amargo.
Lourenço, apesar de seus vãos esforços para reviver a situação de espírito
que gozara em Florença, no dia subseqüente à sua moléstia, entre aquelas
duas pessoas, não quis acompanhá-los no passeio pelo Bosque de Bolonha.
Palmer, que, para atordoar-se, bebera um pouco mais, além de seus
hábitos, insistiu de maneira particularmente irritante.
— Não se obstine assim; Lourenço tem motivos para recusar. No Bosque
de Bolonha, em carro descoberto,, ficaremos à vista de toda gente e
poderemos encontrar pessoas que nos conhecem. Essas pessoas não são
obrigadas a saber em que situação excepcional nos encontramos e poderiam
até pensar a nosso respeito coisas muito desagradáveis.
— Bem, então voltemos para casa, — disse Palmer. Depois, eu sairei a
passear sozinho; sinto necessidade de ar fresco.
Lourenço esquivou-se, vendo que Palmer tinha intenção reservada de
deixá-lo a sós com Teresa, naturalmente para observá-los ou surpreendê-los.
Regressou a casa, oprimido por uma grande tristeza, dizendo a si mesmo
que, talvez, Teresa não se sentisse muito feliz.
Passaram-se, rapidamente, os oito dias seguintes, dias que fizeram que,
de hora em hora, mais periclitasse o romance heróico sonhado mais ou
menos fortemente por esses três amigos.
A mais enganada fora Teresa, pois após temores e previsões prudentes,
resolvera comprometer a sua vida, e fossem quais fossem as injustiças de
Palmer, ela desejava e devia manter a sua palavra.
Palmer desembaraçou-se de tudo isso, após uma série de suspeitas mais
ultrajantes pelo silêncio do que todas as injúrias de Lourenço.
Certa manhã, Palmer, depois de ter passado a noite toda no jardim da
casa de Teresa, ia saindo quando ela lhe surgiu do lado do gradil, obrigando-
o a parar.
— Muito bem! Você esteve de atalaia durante seis horas e eu o estava
vendo do meu quarto. Agora, está realmente bem convencido de que
ninguém veio esta noite à minha casa?
Teresa estava irritada e, entretanto, ao provocar a explicação que Palmer
lhe recusava, esperava ainda inspirar-lhe confiança. Ele, porém,
compreendeu-o de outro modo.
— Vejo que você se cansa de mim — uma vez que exige uma confissão,
após a qual eu seria desprezível a seus olhos. Será que a tenho injuriado e
vexado com sarcasmos amargos? Já lhe escrevi volumes de ultrajes para no
dia seguinte vir chorar a seus pés e fazer-lhe promessas delirantes, sem o
propósito de torturá-la no dia seguinte? Tenho-lhe feito perguntas
indiscretas? Por que não dormiu tranqüilamente esta noite, enquanto eu
estava sentado num banco, sem perturbar o seu sono com gritos e lágrimas?
Não lhe será possível perdoar-me um sofrimento de que, talvez, eu me
envergonhe e que, ao menos, tenho o orgulho de desejar e saber esconder?
Você perdoou muito mais do que tudo isso a alguém que não possuía,
entretanto, a mesma coragem.
— Eu não lhe perdoei coisa alguma, Palmer. Quanto a esse sofrimento
que você confessa e acredita ocultar tão bem, saiba que ele é claro a meus
olhos como a luz do dia, e sofro mais do que você, por isso. Fique sabendo
que ele me humilha profundamente e que, nascido de um homem forte e
prudente como você, me fere cem vezes mais intensamente do que os
ultrajes de uma criança em delírio, que é Lourenço.
— Sim, isso é verdade, — respondeu Palmer. Assim, agora, está
melindrada por minha culpa e irritada contra mim. Pois bem, tudo está
acabado entre nós. Faça por mim o que fez por Lourenço: conserve-me a sua
amizade.
— Então, abandona-me dessa maneira?
— Sim, Teresa. Mas, não se esqueça de que quando você se dignou
comprometer-se comigo, eu já havia posto a seus pés o meu nome, a minha
fortuna, toda a minha consideração. Só tenho uma palavra e manterei o que
prometi. Casemo-nos aqui, sem ruído e sem alegria, aceite o meu nome e a
metade dos meus rendimentos. Depois...
— Depois? — perguntou Teresa.
— Depois, eu partirei; irei abraçar minha mãe e você ficará livre!
— Isso não passa de ameaça de suicídio, o que você me propõe...
— Não, palavra de honra! O suicídio é uma vileza quando se tem mãe
semelhante à minha. Vou viajar; vou recomeçar a minha volta pelo mundo e
você nunca mais tornará a ouvir falar de mim.
Teresa ficou revoltada com semelhante proposta.
— Isso poderia parecer-me uma brincadeira de mau gosto, Palmer —
disse ela, — se eu não o conhecesse e não tivesse na conta de homem sério.
Quero acreditar que você me há de julgar incapaz de aceitar esse nome e
esse dinheiro que me oferece como solução de um caso de consciência. Não
volte jamais a fazer-me semelhante proposta, Palmer; isso me ofenderia.
— Teresa! — exclamou Palmer com violência, apertando-lhe o braço até
fazê-la sofrer. — Jure, pela memória de seu filho, que você perdeu, que não
ama Lourenço e eu imediatamente caio a seus pés, a pedir-lhe perdão da
minha injustiça.
Teresa retirou o braço magoado e fitou Palmer em silêncio. Sentia-se
ofendida até ao âmago do coração, em virtude do juramento que ele lhe
exigia e encontrava nisso a fórmula mais cruel e mais brutal do que o mal
físico que acabava de sofrer.
— Meu filho! — exclamou ela, finalmente, — com voz abafada de
soluços na garganta, — juro por ti, que deves estar no céu, que homem
algum jamais aviltará tua pobre mãe!
Teresa ergueu-se e refugiou-se no seu quarto, fechando-se por dentro.
Percebia um futuro horrível com um homem que sabia tão bem dissimular
ou incubar um ciúme profundo. Ela meditava sobre a horrível existência de
sua mãe com um marido que sentia ciúmes do seu passado e dizia a si
mesma, e com razão, que depois da desdita de ter suportado uma paixão
como a de Lourenço, seria verdadeiramente uma coisa insensata acreditar na
felicidade com outro homem.
Palmer, com o seu temperamento e com o seu orgulho não podia esperar
tornar Teresa feliz, depois do que acabava
de suceder. Via que nunca se curaria do seu ciúme e continuava a
acreditar que esse ciúme tinha algum fundamento. Eis uma carta que ele
escreveu à Teresa:

"Minha boa amiga, perdoe-me se tenho sido motivo de aborrecimento.


Mas não posso deixar de reconhecer que a ia arrastando a um abismo de
desespero. Você ama Lourenço. Sempre o amou, talvez mesmo contra a sua
vontade e há de amá-lo sempre, provavelmente., Ê o seu destino. Quis
afastá-la desse amor; você, também, o quis. Reconheço, também, que você
ao aceitar o meu amor foi sincera e o fez a fim de corresponder ao meu
afeto. Alimentei em mim muitas ilusões. Mas, cada dia que se passava,
depois dos acontecimentos de Florença, eu sentia que essas ilusões iam
desaparecendo. Se ele continuasse a ser ingrato, eu estaria salvo, mas o seu
reconhecimento e o seu arrependimento acabaram por enternecê-la. Até eu
mesmo fiquei emocionado, esforçando-me, todavia, em manter-me
perfeitamente tranqüilo. Mas foi debalde. Houve, então, entre vocês dois,
por minha causa, sofrimentos que nunca você me confessou, mas que eu
adivinhei. Ele ia readquirindo a sua paixão e você, defendendo-se por todos
os meios, lastimava o fato de pertencer-me. Foi, então, que você teve de
retirar a sua palavra. Eu estava pronto a devolvê-la. Deixei-a livre para
seguir com ele até Spezzia. Por que o não fez?
Perdoe-me se a censuro por ter sofrido muito para tornar-me feliz e
unir-me a você. Também combati muito, juro-o por Deus. Agora, se quer
aceitar ainda toda a minha dedicação, estou pronto para lutar e sofrer
ainda. Veja se quer sofrer, também, e se, acompanhando-me até à América,
espera curar-se dessa paixão infeliz que a ameaça com um futuro
deplorável. Estou pronto a levá-la comigo.
Mas não falemos mais em Lourenço — isso eu lhe suplico — e não me
culpe por ter descoberto a verdade. Fiquemos sempre amigos; venha morar
com minha mãe. E se, dentro de alguns anos, não me julgar indigno de si,
aceite o meu nome
e sua estada na América sem jamais ter a intenção de regressar à
França.
Ficarei à espera de sua resposta nestes oito dias, em Paris.
RICARDO".
Teresa rejeitou essa oferta, que era uma ofensa ao seu amor-próprio.
Ainda amava Palmer embora se sentisse ofendida por ser assim recebida,
sem ter de exprobrar-se pelo confrangimento de seu coração. Via, também,
que não poderia refazer qualquer espécie de convívio com ele, sem que isso
contribuísse para fazer durar um suplício que ela já não sentia forças para
dissimular. Sua vida, dali por diante, seria uma luta ou uma amargura de
todos os momentos.
Deixou Paris, em companhia de .sua criada Catarina, sem dizer a
ninguém aonde ia e encerrou-se numa pequena casa de campo, na província,
que alugou por três meses.

CAPÍTULO XII

Palmer partiu para a América, levando dignamente uma profunda ferida


na alma, não admitindo de maneira alguma que se houvesse enganado.
Acreditara-se capaz de curar Teresa daquele amor fatal e com sua fé
exaltada havia conseguido esse milagre. Mas perdia o fruto desse milagre, no
momento de o recolher, porque lhe faltara a fé durante a última prova.
Se Palmer fosse um homem verdadeiramente forte, ou se a sua força
tivesse sido mais ponderada e serena, poderia salvar Teresa dos desastres
que pressentia na sua vida. Assim ele deveria ter agido, porque ela confiara
na sua pessoa, com urna sinceridade e um desinteresse merecedores de
solicitude e respeito. Muitos homens, porém, que possuem a aspiração e a
ilusão da sua força, têm, apenas, energia e Palmer era do número daqueles
sobre os quais a gente pode enganar-se por muito tempo. Todo o seu mal
estava em acreditar na duração inabalável daquilo que em sua personalidade
não passava de um esforço de sua vontade.
A princípio, Lourenço não teve conhecimento da partida; de Palmer para
a América. Ficou consternado ao saber igualmente que Teresa havia viajado
sem se despedir. Recebera dela apenas estas três linhas:
"Você foi, na França, o único confidente do meu projetado casamento
com Palmer. Esse casamento desfez-se. Guardemos agora esse segredo.
Parto.”

Escrevendo estas poucas e frias palavra a Lourenço, Teresa


experimentava uma espécie de amargura contra ele. Não era essa criança
fatal a causa de todas as suas desgraças e de todos os seus aborrecimentos na
vida?
Durante os três meses que se seguiram à partida de Palmer, Lourenço
continuou a mostrar-se digno da amizade de Teresa. Descobrira o lugar do
seu retiro, mas nada fez para perturbar o seu sossego.
Escreveu-lhe, queixando-se, docemente, da frieza de suas despedidas,
censurando-a por não ter confiança nele, nos seus aborrecimentos e por não
o haver tratado como irmão. Depois, vinham certas perguntas às quais
Teresa se vira forçada a responder. "Palmer faltara-lhe ao respeito? Era
preciso exigir dele uma reparação? Cometi alguma imprudência que a
magoasse? Tem qualquer censura a fazer-me? Não creio, meu Deus! Se sou
causa de sua dor, responda-me asperamente e permita-me que chore
consigo".
Teresa justificou o procedimento de Ricardo Palmer, sem querer dar
qualquer explicação. Na sua generosa atitude de não permitir qualquer nódoa
sobre a lembrança de seu ex-noivo, ela deixava acreditar que a ruptura advirá
unicamente de sua parte.
Isso era, talvez, restituir a Lourenço esperanças que ela jamais tivera a
intenção de confiar-lhe, mas há situações em que, faça-se o que se fizer, se
procede desastradamente e se corre fatalmente para a própria destruição.
Lourenço recomeçou a trabalhar com ardor, artista genial que era, com a
resolução de nunca mais voltar a cair na depressão. Seu coração sangrava,
recordando-se das privações que Teresa havia sofrido para animá-lo, o bom
ar e a saúde, numa viagem à Suíça. E resolveu livrar-se o mais depressa
possível dessa obrigação.
Teresa sentiu logo que a afeição do seu pobre menino, como sempre o
intitulava, lhe era grata e que, se pudesse continuar assim, ela teria o mais
puro e o melhor sentimento de sua vida.
Teresa animava Lourenço com respostas maternais, aconselhando-o a
que continuasse a trilhar a senda do trabalho, que ele afirmava ter novamente
tomado.
Essas cartas eram muito doces e resignadas, de uma ternura casta. Mas
Lourenço não teve dúvida em verificar que nelas se manifestava uma tristeza
mortal. Teresa dizia achar-se um pouco enferma e vinham-lhe idéias
fúnebres, das quais ela sorria com amargura e melancolia. Estava, realmente,
enferma. Sem amor e sem trabalho, sentia-se devorada pelo tédio. Levara
consigo pequena soma em dinheiro, que era o resto do que havia ganho em
Gênova. Economizava, rigorosamente, esses recursos, a fim de permanecer
no campo o maior espaço de tempo possível. Ficara com horror de Paris.
Também era possível que pouco e pouco sentisse um certo desejo de rever
Lourenço, modificado e submisso, corrigido de seus erros, como se concluía
de suas cartas.
Esperava que ele se casasse. Como já certa vez tivera essa veleidade, era
bem possível que essa idéia lhe voltasse ao espírito, e ela animava-o em tal
sentido. Ele, ora, dizia que sim; ora, que não.
Teresa esperava, naturalmente, que algum indício do seu velho amor
voltasse a aparecer nas cartas de Lourenço. Essa recordação voltava, com
efeito, até certo ponto, mas era agora com extrema delicadeza e as suas
alusões a um sentimento mal abafado eram, apenas, manifestações de uma
ternura suave, de uma sensibilidade expansiva, uma espécie de piedade filial
e entusiasta.
Quando chegou o verão, Teresa, esgotados todos os seus recursos, viu-se
obrigada a regressar a Paris, onde tinha sua clientela. Não comunicou o seu
regresso a Lourenço, pois não desejava vê-lo desde logo. Mas, fosse por
estranha premonição, ele passou pela rua pouco freqüentada em que ficava a
casa de Teresa.
Vendo as venezianas abertas, entrou, louco de alegria, uma alegria
ingênua, quase infantil, que teria tornado ridícula e pretensiosa toda
desconfiança e reserva.
Lourenço esperou que Teresa acabasse de jantar, suplicando-lhe que
fosse à noite à sua casa para ver uma tela que acabara de pintar e a respeito
da qual desejava saber a sua impressão, antes de expô-la ao público. Estava
já vendida e paga, mas se ela notasse qualquer reparo, ele trabalharia ainda
alguns dias no quadro, aperfeiçoando-o.
Passara o tempo deplorável em que Teresa não entendia daquilo e tinha a
compreensão tacanha e realista dos pintores de retratos e era ainda incapaz
de compreender uma obra de imaginação etc. Ela agora era a sua musa e a
sua potência inspiradora. Sem o auxílio de seu divino sopro, ele nada poderia
realizar. Com os seus conselhos e palavras de animação, o seu talento
cumpria todas as promessas.
Teresa esqueceu o passado e, sem embriagar-se com o presente, julgou
não dever recusar aquilo que um artista jamais recusa a um colega. Tomou
uma carruagem e, de noite, foi à casa de Lourenço.
O estúdio estava iluminado e o quadro concluído, deslumbrante de luz.
Essa tela era um belo trabalho. Aquele estranho gênio era capaz de realizar,
quando repousado, rápidos progressos que nem sempre conseguem obter os
que trabalham com afinco e perseverança.
Havia, porém, em conseqüência de suas viagens e de sua enfermidade, o
espaço de um ano, na execução do seu trabalho. Dir-se-ia que, devido à
reflexão, ele se sentia liberto dos defeitos de sua primitiva exuberância.
Havia adquirido, ao mesmo tempo, outras qualidades que, aparentemente,
ninguém acreditaria fossem apanágio de sua natureza, como a correção do
desenho, a suavidade e delicadeza dos tipos, o encanto da execução, tudo,
enfim, que dali por diante devia agradar ao público, sem prejudicar o seu
merecimento junto dos seus colegas de arte.
Teresa sentiu-se enternecida e encantada, exprimiu-lhe em termos
eloqüentes a sua admiração. Disse-lhe palavras capazes de fazer renascer
nele o nobre orgulho de seu talento sobre as más atrações do passado. Não
encontrou coisa alguma a notar ou corrigir naquele trabalho e aconselhou
mesmo Lourenço a não fazer qualquer retoque.
Modesto nas maneiras e na linguagem, Lourenço tinha ainda mais
orgulho do que Teresa desejava atribuir-lhe. No fundo do coração, sentia-se
embriagado com os seus elogios. Sentia, perfeitamente, que de todas as
pessoas que podiam apreciá-lo era ela a mais atenciosa e a mais competente.
Voltava-lhe, também sentia, aquela imperiosa necessidade de que ela
compartilhasse de suas alegrias e de seus tormentos de artista, e a esperança
de ser um mestre, quer dizer, um homem, coragem que somente ela era
capaz de dar-lhe nos seus desfalecimentos.
Quando Teresa acabou de analisar durante muito tempo o quadro de
Lourenço, voltou-se a fim de examinar certa figura para a qual o artista
chamara a sua atenção, dizendo-lhe que certamente iria ficar ainda mais
satisfeita. Mas, em vez de uma tela, Teresa viu sua mãe, de pé, sorridente, à
entrada do quarto de Lourenço.
A senhora C..., viera a Paris, sem saber ao certo em que dia Teresa
deveria chegar. Tinha negócios muito sérios a tratar. Seu filho ia casar-se e
achava-se desde algum tempo em Paris.
A mãe de Teresa sabedora de que sua filha reatara suas relações com
Lourenço e temendo por seu futuro, viera surpreender Lourenço com a
intenção de dizer-lhe tudo aquilo que a mãe dedicada e amorosa pode dizer a
um homem, a fim de impedir-lhe que viesse a causar a infelicidade de sua
filha.
Lourenço tranqüilizara a pobre mãe inquieta e conseguira que ela se
demorasse, dizendo-lhe:
— Teresa vai chegar. Será a seus pés que eu quero jurar que sempre serei
para ela o que ela quiser, seu irmão, seu noivo, seu esposo, e, em qualquer
caso, seu escravo sempre!
Para Teresa, foi agradável surpresa encontrar sua mãe que tão cedo não
esperava tornar a ver. Abraçaram-se, chorando de alegria. Lourenço
conduziu-as a um pequeno salão todo enfeitado de flores, onde foi servido o
chá, aliás com muito luxo. Lourenço era rico; acabara de ganhar dez mil
francos. Sentia-se feliz e orgulhoso em restituir a Teresa tudo quanto ela
havia gasto com ele. Foi em todos os pontos de vista adorável, naquela noite.
Ganhou o coração da filha e a confiança da mãe e além do mais teve a
delicadeza de não dizer a Teresa uma única palavra de amor. Ao beijar as
mãos juntas das duas criaturas, exclamou com sinceridade que era esse o
mais belo dia de sua existência e que nunca se sentira tão feliz e tão satisfeito
consigo mesmo.
A senhora C..., foi a primeira que, ao termo de alguns dias, abordou com
Teresa a possibilidade de casamento. A pobre senhora, que sacrificara tudo à
consideração exterior e que, apesar de seus desgostos domésticos, acreditava
ter procedido bem, não podia tolerar a idéia de ver sua filha abandonada por
Palmer. Pensava que dali por diante Teresa tinha razão para proceder outra
escolha. Lourenço atingira o clima da celebridade e seu nome estava muito
em voga. Nunca o seu casamento seria mais aconselhável e adequado. O
jovem artista estava redimido de seus erros e caprichos. Teresa tinha sobre
ele uma influência que havia dominado as maiores crises da sua agitada e
penosa transformação. Parecia tornar-se um dever para ambos reatar uma
cadeia que nunca chegara a romper-se completamente e por mais que
fizessem, dali por diante, jamais conseguiriam quebrar inteiramente.
Lourenço desculpava-se dos erros do passado com argumentos muito
curiosos. Fora Teresa quem principiara por estragá-lo com excessos de
doçura e resignação. Se desde a sua primeira ingratidão ela se houvesse
mostrado ofendida poderia tê-lo corrigido de maus hábitos contraídos numa
vida dissipada, cedendo aos seus caprichos e arrebatamentos.
Sem esse amor malogrado, jamais Palmer teria a idéia de casar com ela.
E o esforço que ela fez para comprometer-se com ele não passava de uma
reação de desespero. Lourenço nunca chegara a desaparecer de sua vida. O
argumento que Palmer fora levado a empregar para convencê-la .era um per-
pétuo retorno a essa funesta amizade amorosa que ele desejava fazer que ela
esquecesse, e ele sentia-se fatalmente arrastado a lembrar-lhe
incessantemente essa presença.
Além disso, a volta à amizade, após o rompimento, fora para Lourenço
verdadeiramente um retorno à paixão, enquanto para Teresa não fora senão
uma fase de dedicação, mais delicada e mais terna do que o próprio amor.
Ela havia sofrido o abandono de Palmer, mas com serenidade. Ainda
tinha forças contra a injustiça e pode mesmo dizer-se que nisso consistia
toda a sua força.
Lourenço estava condenado a uma fatalidade inexorável, como ele
próprio confessava nos seus momentos de lucidez. Dir-se-ia que nascido da
fusão de dois anjos, sugara o leite de uma fúria e desse leite ficara-lhe no
sangue um lêvedo de arrebatamento e desespero. Era dessas naturezas
vulgares, que não serão, talvez, tão comuns na espécie humana e nos dois
sexos, e que, com todas as sublimidades da idéia e todos os transportes do
coração, não conseguem atingir o clímax de suas faculdades sem
imediatamente caírem numa espécie de epilepsia intelectual.
Além disso, à semelhança de Palmer, ele queria ousar o impossível que é
enxertar a felicidade sobre a desesperança e experimentar as alegrias celestes
da fé conjugai e da amizade santa sobre as ruínas de um passado,
recentemente reduzido a escombros.
Eram necessários serenidade e recursos para curar essas duas almas
ensangüentadas das feridas que haviam recebido. Teresa desejava esse
repouso com a angústia de um terrível pressentimento e Lourenço acreditava
ter vivido dez séculos durante os dez meses de sua separação. Tornava-se
doente com o excesso de um desejo d'alma que era de natureza a provocar
em Teresa maior espanto do que um impulso dos sentidos.
Infelizmente, foi pela natureza desse desejo que ela se deixou
tranqüilizar. Aparentemente, Lourenço estava regenerado ao ponto de
reintegrar o amor moral no lugar que ele deve ocupar em primeira linha.
Encontrava-se só com Teresa, sem todavia inquietá-la, como outrora, com
seus arrebatamentos.
Ele sabia falar-lhe, durante horas inteiras, com uma afeição quase
sublime e sentia, afinal, que o seu gênio se dilatava e alçava vôo para regiões
superiores. Impunha-se ao futuro de Teresa, mostrando-lhe incessantemente
que tinha de realizar, para si mesmo uma tarefa sagrada, a de subtrair-se aos
enlevos da mocidade, às más ambições da idade madura e ao egoísmo
mesquinho da velhice. Falava-lhe dele próprio e sempre dele próprio. Por
que não? Não falava tão bem? Por causa dela, seria um grande artista, um
grande coração, um homem superior. Ele lhe devia isso porque fora ela
quem lhe salvara a vida. E Teresa com a natural ingenuidade dos corações
meigos chegava a achar esse raciocínio ou esse argumento irrefutável,
transformando em dever aquilo que a princípio lhe fora implorado como
perdão.
Teresa chegou, portanto, a reatar essa cadeia fatal, tendo, somente, a
feliz intuição de adiar o casamento, pois desejava tirar a prova da resolução
de Lourenço sobre esse ponto, receando por causa dele um compromisso
irrevogável. Se se tratasse, apenas, da sua pessoa, a imprudência ter-se-ia
realizado para sempre.
A primeira felicidade de Teresa não durara uma semana; a segunda, não
chegou a durar vinte e quatro horas. As reações de Lourenço eram rápidas e
violentas, resultado de suas próprias alegrias. Quando dizemos "suas
reações", Teresa dizia "suas retratações" e a palavra era verdadeira. Ele obe-
decia à necessidade inexorável de certos adolescentes de matar ou destruir
aquilo que lhe agrada apaixonadamente. Observam-se esses instintos cruéis
em homens de caracteres muito diferentes. A história qualificou-os de
instintos perversos.
Seria mais justo, porém, chamar-lhes instintos pervertidos por qualquer
moléstia cerebral, contraída no meio em que esses homens nasceram.
Os homens de gênio são, também, reis no ambiente em que se
desenvolvem. Chegam mesmo a ser reis tirânicos e absolutos, embriagados
pelo poder. A sede de domínio tortura-os e a alegria de um comando seguro
e garantido chega a exaltá-los até à loucura.
Assim era Lourenço no qual se combatiam dois seres perfeitamente
distintos. Parecia que duas almas disputavam o cuidado de animar o seu
corpo. Elas entregavam-se a uma luta furiosa, procurando uma dominar e
repelir a outra. Em meio a esses desencontrados excessos, o infeliz perdia o
seu livre-arbítrio e sucumbia esgotado, cada dia, com a vitória do anjo e do
demônio que dentro de si se digladiavam.
— Sim, — dizia ele à Teresa, — eu sofro o fenômeno que os teólogos
chamam de possessão. Há dois espíritos que se apoderam de mim. Será
realmente bom um deles e o outro será mau? Não creio. Aquele que é motivo
de inquietação para si, o cético, o violento, o perverso, não pratica o mal
senão porque não está em seu poder praticar o bem como ele o entenderia...
Eu desejava ser calmo, filosófico, alegre, tolerante. Mas o outro não quer
que seja assim, quer realizar o seu papel de anjo bom, deseja ser ardente,
entusiasta, dedicado, exclusivo. E como o seu opositor o ridicularizaria,
como procura negá-lo e feri-lo, ele torna-se, por vezes, sombrio e cruel, de
sorte que os dois anjos que vivem dentro em mim chegam a conceber um
verdadeiro demônio.
Lourenço dizia-o e escrevia à Teresa sobre tão curioso assunto coisas
belas e terríveis, que davam a impressão de verdadeiras e pareciam
acrescentar novos direitos à impunidade que parecia relativamente reservada
à Teresa.
Tudo aquilo que Teresa receara ter de sofrer por causa de Lourenço, se
viesse a ser a esposa de Palmer, ela teve de experimentar por causa de
Palmer, ao voltar ao convívio com Lourenço. O amargurado ciúme
retrospectivo, o pior de todos porque se prende a tudo sem poder certificar-se
de coisa alguma, começou a roer e oprimir o cérebro do infeliz artista. A
lembrança de Palmer tornou-se o seu espectro e o seu vampiro. Obstinou-se
em querer que Teresa lhe contasse todos os pormenores de sua vida em
Gênova e em Porto Venere, e como a isso ela se recusasse, ele acusou-a de
ter querido enganá-lo desde aquela época esquecendo-se de que naquela
ocasião Teresa lhe havia dito em carta que amava a Palmer e logo a seguir
informando-o de que ia casar com ele. Lourenço responsabilizava-a por ter
sempre conservado em suas mãos firmes e pérfidas a cadeia da esperança e
do desejo que a ela o prendia.
Teresa mostrou-lhe toda a sua correspondência e ele teve de reconhecer
que ela lhe havia dito oportunamente tudo quanto a sua lealdade lhe exigira
que dissesse para afastar-se dele.
Parecia que depois de tais explicações e quando Lourenço se dizia pronto
a assinar com sangue e lágrimas o que havia dito, e quando a calma devia
renascer e começar a felicidade, nada disso se verificava. Devorado por
cólera secreta, Lourenço, no dia seguinte, voltava às suas perguntas, aos seus
ultrajes e aos seus sarcasmos. Passaram-se noites inteiras em discussões
deploráveis, noites em que se diria ter ele absoluta necessidade de exercitar o
próprio gênio a chicotadas, ferindo-a e torturando-a, para torná-lo fecundo
em maldições de uma eloqüência espantosa e atingir nele e em Teresa os
limites do desespero.
Depois dessas tempestades, parecia que nada mais lhes restava fazer do
que se matarem simultaneamente. Era o que Teresa sempre esperara, pronta
para esse sacrifício, porque estava horrorizada da vida.
Mas Lourenço não chegara ainda a tal pensamento. Exausto, pegava no
sono e o seu anjo bom parecia voltar a embalar-lhe o sono, esboçando no seu
semblante o sorriso divino das visões celestes. Regra invariável, absurda,
incompreensível, nessa estranha associação o sono operava uma transfor-
mação em todas as suas resoluções. Se adormecia com o espírito cheio de
ternura, despertava sequioso de combate e violência. Reciprocamente, se
amaldiçoava na véspera, acudia no dia seguinte a abençoar.
Teresa por três vezes o deixou e fugiu para longe de Paris. Três vezes,
ele a seguiu, obrigando-a a perdoar o seu desespero. Logo que ele a perdia,
voltava a adorá-la e recomeçava a implorar o seu amor com todas as
lágrimas de um arrependimento exaltado.
Teresa era miserável e sublime nesse inferno em que mergulhara,
fazendo o sacrifício da própria vida. Levou a sua abnegação até às
imolações, que faziam tremer os seus amigos.
O que prendia Teresa a Lourenço era essa imensa piedade, de fundo
maternal, cujo hábito imperioso se contrai com os seres aos quais muito se
tem perdoado. Dir-se-ia que o perdão gera o perdão até à saciedade, até à
imbecilidade da fraqueza. Quando a mãe chega à conclusão de que o seu
filho é incorrigível, nada mais tem a fazer senão aceitar tudo ou abandoná-lo.
Teresa enganara-se todas as vezes que tinha pensado haver curado Lourenço
pelo abandono. É verdade que ele voltava sempre melhor, mas isso era sob a
condição de esperar pelo perdão. Quando mais não o esperava, atirava-se
perdidamente à preguiça e à desordem. Ela, então, voltava a acolhê-lo,
conseguindo que ele trabalhasse durante alguns dias. Mas era bem alto o
preço que ela pagava em comparação do pouco bem que ele chegava a dar-
lhe.
Entretanto, Teresa nessa piedade que ele implorava tão ardentemente
para logo depois sentir-se ofendido, quando ela a concedia, fermentava um
respeito entusiasta e, talvez, mesmo, um pouco fanático pelo gênio do artista.

CAPÍTULO XIII

Certa noite, Lourenço manteve tão longa e incompreensível discussão


que ela deixou de prestar ouvidos às suas palavras e adormeceu, sentada
numa poltrona. Ao cabo de poucos instantes, ligeiro atrito fez que abrisse os
olhos. Lourenço tinha atirado ao chão qualquer coisa de brilhante: era um
punhal.
Teresa sorriu e tornou a fechar os olhos. Compreendia, um pouco
vagamente e como através do véu de um sonho, que ele tinha pensado, no
seu desespero, em matá-la. Naquele momento, porém, tudo era indiferente
para Teresa: descansar de viver e de pensar fosse por intermédio do sono ou
da morte, seria o que o destino quisesse. O que ela desprezava era a morte,
mas Lourenço julgou que era a ele que ela desprezava e, finalmente, deixou-
a.
Três dias depois, Teresa resolveu realizar um empréstimo que lhe
permitisse fazer uma longa viagem. Aquela vida de tempestades morais e
aflições de toda ordem matava o seu trabalho e arruinava-lhe a existência.
Foi ao mercado das flores e comprou uma roseira branca. Enviou a
planta a Lourenço, sem ter dado o nome do ofertante. Era o seu adeus!
Ao regressar a casa, encontrou aí, também, uma roseira branca, sem o
nome do remetente. Era o adeus de Lourenço! Os dois partiriam, mas
ficaram!
A coincidência dessas duas roseiras comoveu Lourenço até às lágrimas.
Correu à casa de Teresa e encontrou-a a dar a última demão aos seus
embrulhos e às suas malas. Mandara reservar passagem para o expresso das
seis da noite. O lugar de Lourenço estava também, reservado no mesmo trem
e na mesma carruagem. Um e outro tinham pensado em tornar a ver a Itália,
mas, indo cada um para seu lado...
— Então, vamos juntos! — exclamou Lourenço.
— Não, não; eu não vou mais! — respondeu Teresa.
— Teresa, por mais que nós queiramos, esta cadeia jamais se romperá. É
loucura pensar nisso ainda. Meu amor tem resistido a tudo quanto pode
dissipar um sentimento e aniquilar uma alma. É indispensável que você me
queira tal qual sou ou então que morramos juntos. Quer amar-me dessa
maneira?
— Eu o desejaria, mas em vão! — respondeu Teresa. Não posso mais.
Sinto o coração destroçado; penso que está morto.
— Pois bem f então, quer morrer?
— Tudo me é indiferente! — respondeu Teresa. Você bem sabe. Mas,
com você não desejo, nem a vida, nem a morte. '
— Ah! você acredita na eternidade do nosso eu. Não quer encontrar-me
na outra vida! Pobre mártir; compreendo tudo...
— Nunca mais nos encontraremos, Lourenço! Cada alma obedece ao seu
núcleo de atração. Sinto que o descanso me chama, e você será sempre e em
toda parte atraído pela tempestade.
— Quer dizer que não tem merecido o inferno?...
— Nunca o mereci, você... você terá outro céu...
— Se você me abandona, que me resta neste mundo?
— A glória, quando você deixar de procurar a embriaguez dos sentidos!
Lourenço ficou pensativo. Repetiu várias vezes a palavra glória. Depois,
ajoelhou diante do fogão, reavivou o fogo, como costumava fazer, quando
queria ficar a sós consigo mesmo. Teresa saiu para dar contra-ordem à
viagem. Sabia, perfeitamente, que Lourenço não deixaria de acompanhá-la.
Quando regressou, encontrou Lourenço muito alegre e bem humorado.
— Este mundo — disse ele — não passa de comédia sem graça alguma.
Mas para que querer elevar-se acima deste viver, quando não sabemos o que
existe mais para cima, se é que alguma coisa existe? A glória da qual você ri,
intimamente, eu a compreendo muito bem...
— Não rio da glória dos outros...
— Os outros, quais?.
— Aqueles que nela acreditam e a amam.
— Deus sabe se creio nela, Teresa, e não zombo da glória como de uma
farsa. Mas, pode-se muito bem amar uma coisa, cujo pequeno valor não se
ignora, gostamos de um cavalo arisco que nos quebra o pescoço, gostamos
do tabaco que sabemos ser um veneno, uma peça mal escrita e amamos a
glória que é, apenas, uma mascarada. A glória! Que é que ela representa para
um artista vivo? Artigos dos jornais, elogios que ninguém lê, porque o
público só se diverte com as críticas acerbas e quando colocamos o nosso
ídolo contra a luz, ninguém mais faz caso dele. Além disso, grupos que se
comprimem e se sucedem diante de uma tela pintada; depois, encomendas
monumentais que nos arrebatam nas asas da alegria e da ambição e nos
deixam quase mortos de fadiga, sem termos realizado o nosso ideal...
Depois, a academia...
E Lourenço entregou-se ao mais amargo dos sarcasmos, terminando com
estas palavras:
— Não importa! É essa a glória do mundo! A gente detesta essa glória,
mas é impossível passar sem ela, pois não existe nada melhor!
O diálogo continuou até à noite, trocista, filosófico e, a pouco e pouco,
inteiramente impessoal. Dir-se-ia, ao ver e ouvir aquelas duas criaturas, que
eram dois pacatos amigos, que jamais se tinham indisposto um contra o
outro.
Essa estranha situação repetira-se, várias vezes, durante a sua grande
crise. É que, quando os corações ficavam em silêncio, as suas inteligências
combinavam entre si e entendiam-se, ainda.
Logo depois, sozinha, Teresa escalou, pela milésima vez em si mesma, o
abismo deste destino misterioso. Que faltava, na verdade, a Lourenço para
ser um dos mais belos destinos humanos? Apenas, uma coisa: a razão. Mas,
que é a razão? perguntava Teresa a si mesma. Como é que o gênio pode
existir sem ela? Será que por ser uma tão grande força é que ele pode matá-la
e sobreviver-lhe? Ou será que a razão nada mais é que uma faculdade isolada
e cuja união com as outras faculdades nem sempre é necessária?
Caiu numa espécie de devaneio metafísico. Sempre lhe havia parecido
que a razão era um conjunto de idéias e não uma simples particularidade.
Que todas as faculdades de um ser bem organizado lhe emprestam e
fornecem alternadamente qualquer coisa; que ela era a um só tempo um
meio e um fim; que nenhuma obra-prima poderia isentar-se de sua lei e
homem algum podia ter valor real, depois de tê-la resolutamente calcado aos
pés.
Repassava em sua memória a visão dos grandes artistas, analisando,
também, a vida dos artistas contemporâneos. Em tudo, via a regra da verdade
associada ao sonho da beleza e em tudo, também, muitas exceções, muitas
incongruências, anomalias medonhas, figuras radiantes e fulmíneas,
semelhantes à de Lourenço. As aspirações para o sublime constituíam uma
doença do tempo e do meio em que Teresa se encontrava. Era qualquer coisa
de febricitante, que se apoderava da mocidade e fazia que ela menosprezasse
as condições da felicidade normal e ao mesmo tempo os deveres da vida
cotidiana.
Pela força dos acontecimentos, a própria Teresa sentia-se atraída sem o
haver previsto, nem desejado, para esse círculo fatal do inferno humano. Ela
tornara-se a companheira, a metade intelectual de um desses loucos
sublimes, de um desses gênios extravagantes. Suportava o contragolpe
dessas dores pungentes, sem lhes compreender a causa e poder encontrar um
remédio para elas.
Entretanto, Deus ainda se encontrava nessa alma rebelde e torturada,
pois em certas horas Lourenço tornava-se bom e entusiasta, o que provava
que a fonte pura da inspiração sagrada não se havia exaurido. Não estava em
presença de um talento esgotado, mas sim, talvez, ainda, de um homem
genial. Seria necessário abandoná-lo à obsessão do delírio e ao
embrutecimento da fadiga?
Por todos os motivos, tanto os da amizade como os da razão, o mundo
censurava-a pelo fato de repreender-se e corrigir-se. Aí estava, com efeito, o
dever, segundo o mundo, e cujo nome em semelhante caso equivale ao da
ordem geral do interesse da sociedade: "Continue pelo bom caminho, dei-
xando perigar aqueles que dele se afastam". E os outros postulados oficiais
acrescentavam: "Os sábios, os prudentes e os bons, para a felicidade eterna,
os cegos e os rebeldes para o fogo eterno". Portanto, ao sábio pouco ou nada
interessa que o insensato pereça!
Teresa revoltou-se contra essa conclusão.
— No dia em que eu me julgar a criatura mais perfeita e mais preciosa e
a mais excelente da terra — pensou ela — admitirei a sentença de morte de
todas as demais criaturas! Mas, se chegar a ver esse dia, não serei mais louca
que todos os loucos? Para trás a loucura da vaidade, mãe do egoísmo! Sofra-
se ainda por outrem! Sofra-se por quem precisa de nós!
Era quase meia-noite, quando Teresa se ergueu da poltrona, onde se
afundara inerte, e prostrada, quatro horas antes. Acabavam de tocar lá fora a
campainha. Um mensageiro trouxe uma caixa de papelão e um bilhete. A
caixa continha um dominó e a máscara de cetim negro. No bilhete, estas
poucas palavras, escritas pela mão de Lourenço: "Senza vedere, senza
parlare".
Sem ver e sem falar... Que significavam aquelas palavras? Desejaria ele
que Tereza fosse ao baile de máscaras, intrigando-a com uma aventura
banal? Desejaria ainda tentar fazer que ele a amasse sem se reconhecer?
Seria uma fantasia de poeta ou um insulto de libertino?
Teresa entregou à empregada a caixa de papelão e recaiu na poltrona.
Mas a perquirição do seu espírito não mais a deixou refletir. Não era seu
dever tentar tudo no mundo para arrancar essa vítima da alucinação infernal?
— Irei — disse ela — e segui-lo-ei a passo e passo. Verei a sua vida fora
de mim e saberei o que existe de verdadeiro nas torpezas que ele me conta,
até que ponto ele ama, ingênua ou fingidamente, o mal, e se tem
verdadeiramente gostos depravados ou se procura, apenas, distrair-se.
Sabendo tudo quanto tenho desejado ignorar a seu respeito, assim como a
respeito deste mundo mau, e tudo quanto o afasta enfadado de suas
recordações e da minha imaginação, descobrirei, talvez, um meio secreto,
um subterfúgio para arrancá-lo a essa voragem... e pô-lo no trabalho criador.
Teresa lembrou-se do dominó que Lourenço lhe mandara e ao qual quase
não deitara os olhos. Esse dominó era de cetim. Mandou buscá-lo, colocou a
máscara, disfarçou cuidadosamente os cabelos, muniu-se de uns laços de
fitas de diversas cores, a fim de mudar a sua aparência física, no caso em que
Lourenço conseguisse descobri-la sob esse disfarce... E, chamando uma
carruagem foi, resolutamente, ao baile da Ópera...
Ela nunca havia posto ali os pés. A máscara parecia-lhe uma coisa
insuportável e sufocante. Nunca havia aprendido a disfarçar a voz, nem"
desejara ser adivinhada por ninguém. Deslizou silenciosamente pelos
corredores, procurando os cantos mais isolados. Esperava ficar inteiramente
só e livre, no meio da multidão agitada...
Naquela época, não se dançava nos bailes de máscara da Ópera; o único
disfarce permitido era o dominó preto. Era, pois, uma sombra e grave
confusão aparente, com suas intrigas, tão pouco morais como as outras
reuniões dessa espécie, mas, imponente de aspecto, contemplada do alto.
Depois, subitamente, de hora em hora, uma orquestra barulhenta tocava
quadrilhas desenfreadas, como se a administração, em luta contra a polícia,
tentasse a multidão a violar a sua proibição. Mas ninguém aí parecia cogitar
disso. O negro formigueiro continuava a caminhar lentamente e a cochichar
no seio dessa algazarra.
Ficou tão impressionada com o espetáculo que, por alguns momentos, se
esqueceu onde estava, acreditando-se no mundo dos sonhos tristes.
Procurava Lourenço e não o encontrava.
Finalmente, aventurou-se pelo salão do teatro, onde se conservavam,
sem máscara, nem qualquer outro disfarce, os homens mais conhecidos de
Paris inteira. Quando acabara de dar uma volta e ia retirar-se, ouviu
pronunciar o seu nome a um canto da sala. Voltou-se e viu sentado entre
duas mulheres mascaradas o homem a quem tanto quisera. Esse homem
tinha na voz um não sei quê de mole e picante que denota a fadiga dos
sentidos e a amargura do espírito.
— Mas, então — perguntava uma das mulheres — Você, finalmente,
abandonou a sua famosa Teresa? Parece que ela o enganou, na Itália e você
não queria acreditar...
Teresa sentiu-se mortalmente tocada ao ver o doloroso romance da sua
vida sujeita a semelhante interpretação, notando, ainda, que Lourenço sorria
e respondia ao que elas diziam, afirmando-lhes que não sabiam o que
estavam dizendo e falando-lhes de outra coisa, como se não houvesse
sentido a menor indignação, lembrança ou inquietação, em virtude daquilo
que acabava de ouvir. Teresa jamais acreditara que, pelo menos, ele não
fosse um amigo. Lourenço permaneceu sentado, onde estava, escutando
ainda. Sentiu que um suor amargo lhe colava a máscara ao rosto.
Entretanto, Lourenço não dizia às pequenas que o rodeavam senão aquilo
que pudesse ser ouvido por toda gente. Pairava, divertia-se com a tagarelice
das mulheres e respondia a suas perguntas como um homem de sociedade.
Elas não tinham espírito algum; por duas ou três vezes, ele bocejou, tentando
dissimular o seu enfado... Entretanto, continuava ali.
Esta situação durou bem uns quinze minutos. Teresa permanecia no
mesmo lugar. Lourenço dava-lhe as costas. O banco do teatro em que ele se
sentara estava colocado no desvão de uma porta de cristal, revestida de
estanho, a qual estava fechada à sua frente. Quando um grupo de pessoas,
errando pelos corredores externos, parava diante dessa porta, os vestidos e os
dominós formavam um fundo opaco e a vidraça transformava-se em negro
cristal, refletindo a imagem de Teresa, sem que ele o percebesse. Lourenço
pôde, assim, vê-la em diversos intervalos, sem julgar que fosse ela. Mas,
pouco a pouco, a imobilidade daquele rosto mascarado começou a inquietá-
lo e ele disse às mulheres, apontando para ela no sombrio espelho:
— Não acham aquela máscara horrível?
— Será que lhes causamos medo?
— Não, você, não — disse ele, dirigindo-se a uma delas. Eu sei como é o
seu nariz debaixo desse pedaço de cetim.
Uma fisionomia que não se adivinha, nem se decifra, que não se conhece
e fixa a gente como uma pupila ardente... Vou-me embora. Estou farto disto.
— Quer dizer, replicaram as mulheres, que está farto de nós?
— Não! — respondeu. Estou farto do baile. Aqui, a gente sufoca. Vamos
ver cair a neve lá fora? Vou até ao Bosque de Bolonha.
— É de morrer...
— Bem, vocês querem vir comigo?
— Palavra de honra que não!
— Querem vir assim de dominó, ao Bosque de Bolonha? — perguntou
Lourenço, erguendo a voz.
Um grupo de figuras negras precipitou-se semelhante a um bando de
morcegos ao redor de Lourenço.
— Quanto vai custar isso? — perguntou uma das mulheres.
— Você fará o meu retrato? — perguntou outra.
— A pé ou a cavalo? — perguntou uma terceira.
— Cem francos por cabeça — respondeu Lourenço e apenas para
passear, ao lugar, com os pés na neve. Eu as acompanharei de longe, para
ver o efeito?... Quantas são?
— perguntou ao cabo de poucos minutos. — Dez! Quase nada! Não
importa, vamos!
Três delas ficaram, dizendo: — "ele não tem vintém, o mais que nos
poderia suceder seria apanhar uma pneumonia".
— Vocês ficam? — perguntou Lourenço. Restam sete, número
cabalístico, os sete pecados mortais. Viva Deus! Estava com receio de
aborrecer-me; eis uma idéia que nos salva!
Vamos e venhamos — pensou Teresa — um capricho de artista! Ele
lembra-se de que é pintor. Nada se perde!
Seguiu a estranha companhia até ao peristilo, para convencer-se de que,
efetivamente, a idéia fantástica ia ser posta em execução. Mas o frio fez que
recusassem e Lourenço deixou-se convencer que convinha renunciar ao seu
plano. Alvitraram que ele transformasse o passeio numa ceia geral.
— Isso, palavra, não! — exclamou Lourenço. Vocês são medrosas e
egoístas. Vou em boa companhia. Tanto pior para vocês.
Mas elas trouxeram-no de volta para o salão do teatro e aí se instalaram
ao seu lado outras jovens de suas relações e um tropel de moças
inconvenientes. — Uma conversa tão viva, tão cheia de belos projetos que
Teresa, vencida pelo tédio, se retirou, achando que era muito tarde. Lourenço
amava o vício. Ela nada mais podia fazer por ele.
Lourenço amaria com efeito o vício? Não, o escravo não ama o jugo,
nem o chicote, mas quando se torna escravo por .sua própria culpa, quando
deixou que lhe tomassem a sua liberdade, por falta de coragem e prudência,
habitua-se à servidão e a todos os seus sofrimentos, justificando um dito
profundo de um escritor antigo, segundo o qual, quando Júpiter reduz um
homem a esse estado lhe tira metade de sua alma.
Ao retomar Teresa a carruagem para regressar à casa, um homem
loucamente apaixonado atirou-se a seu lado... Era Lourenço. Reconhecera-a
no instante em que ela deixava o salão do teatro, com um gesto involuntário
de horror do qual, aliás, não tivera consciência.
— Teresa! — disse. Voltemos ao baile. Quero dizer a todos esses
homens. "Sois uns brutos!" E a todas aquelas mulheres: "Sois infames!"
Quero proclamar o seu nome, o seu nome sagrado, diante dessa turba
ignóbil, rolando a seus pés, mordendo o pó e invocando sobre a minha
pessoa todos os desprezes, todos os insultos, todos os opróbrios! Quero fazer
a minha confissão em voz alta, em meio a essa turba imensa mascarada,
como faziam os primeiros cristãos nos templos pagãos, repentinamente
purificados pelas lágrimas da penitência e lavados pelo sangue dos
mártires...
Esta exaltação continuou até Teresa tê-lo conduzido à porta de sua casa.
— Sou eu quem o faz louco — pensou consigo mesma Teresa. E em voz
alta: ainda há pouco, faltavam-me ao respeito como se tratasse de uma
miserável! E essas palavras não o despertavam. Tornei-me para você uma
espécie de vingador espectral. Não era isso o que eu queria. Separemo-nos,
portanto; já, agora, só lhe posso causar mal!

CAPÍTULO XIV

Tornaram, entretanto, a ver-se no dia seguinte Lourenço suplicou a


Teresa que lhe concedesse um último dia de conversa fraternal e passeio
burguês, amigável, afetuoso, tranqüilo.
Mas a borrasca surdiu terrível, no dia seguinte — tempestade sem causa
aparente, sem qualquer pretexto e absolutamente idêntica às que se formam
durante o verão, pelo único motivo de ter havido bom tempo na véspera...
Depois, dia a dia, tudo ficou sombrio e foi como que um fim do mundo,
como um contínuo dardejar de relâmpagos no seio das trevas.
Uma noite, ele entrou muito tarde em casa de Teresa, num estado de
completa alucinação. E sem saber onde estava, sem lhe dizer palavra,
deixou-se cair sobre o sofá e adormeceu. Teresa passou para o seu estúdio e
pediu a Deus com ardor e quase desespero que a livrasse de tal suplício.
Estava desanimada. Esgotara-se tudo. Chorou e orou durante toda a noite.
Surgiu o dia, quando ela escutou tocar a campainha da porta. Catarina
dormia e Teresa acreditou que algum transeunte se houvesse enganado,
errando de casa. Tocaram, novamente. Uma, duas, três vezes. Teresa foi
espreitar pela clarabóia da escada, que dava para a porta de entrada e viu um
menino de seus dez a doze anos, cuja roupa demonstrava achar-se em
situação próspera. Seu rosto, erguido para ela, afigurou-se-lhe angelical.
— Que quer, meu amiguinho? — perguntou-lhe Teresa. — Está perdido
neste bairro?
— Não, senhora, — respondeu a criança. Mandaram-me aqui. Estou à
procura da senhorita Jacques.
Teresa desceu, abriu a porta ao rapazinho, olhando pra ele com
extraordinária emoção. Parecia-lhe já tê-lo visto ou que ele se parecia com
alguém que ela conhecia e cujo nome não podia recordar. A criança parecia,
também, perturbada e indecisa.
Conduziu-o ao jardim para interrogá-lo, mas foi ele quem a interrogou
primeiro:
— Então, a senhora — disse ele, tremendo — é a senhorita Jacques?
— Sou eu mesma, meu filho. Que deseja? Que posso fazer por você?
— Tem de receber-me e conservar-se em sua companhia, se assim
quiser...
— Então, quem é você?
— Sou filho do conde das três estrelinhas...
Teresa conteve um grito e o seu primeiro gesto foi de repelir a criança.
Mas, repentinamente, sentiu-se impressionada com a fisionomia daquele
menino e de um rosto por ela pintado, ultimamente, contemplando-o num
espelho, para enviá-lo a sua mãe e esse rosto era... era o dela mesmo.
— Espere! — exclamou, tomando o menino nos braços, num movimento
convulso. Como se chama?
— Manoel.
— Oh! meu Deus! quem é sua mãe?
— É... recomendaram-me que não lhe dissesse assim de repente... Minha
mãe, é, em primeiro lugar, a condessa das três estrelinhas, que ficou em
Havana. Ela não gostava de mim e dizia-me, muitas vezes: "Não sou tua
mãe; não és meu filho; não sou obrigada a amar-te." Mas o meu pai gostava
de mim e dizia sempre: "És meu, somente. Não tens mãe." Depois que meu
pai morreu, há uns dezoito meses, a condessa disse-me: "És meu e vais ficar
comigo." Isso porque meu pai lhe deixara dinheiro, mas com a condição de
que eu passasse por ser filho de ambos. Entretanto, ela continuava a não
gostar de mim e eu aborrecia-me bastante com ela, até que um senhor dos
Estados Unidos, que se chama Ricardo Palmer, foi certa vez reclamar-me...
A condessa disse: "Não, não o quero". Então, o senhor Palmer perguntou-
me: "Queres que eu te leve à presença de tua verdadeira mãe? Ela acredita
que tenhas morrido e ficará certamente muito contente se tornar a ver-te." Eu
respondi: "Sim, certamente!" Então, o senhor Palmer apareceu à noite num
barco, pois nós morávamos à beira-mar... e fui levado por ele, docemente,
muito docemente e navegamos até um grande navio... E depois atravessamos
todo o mar imenso e eis-me aqui!
— Você está aqui — exclamou Teresa que conservava o menino de
encontro ao peito, num grande abraço e, trêmula de alegria, mantinha o
menino num único e ardente beijo, enquanto ele falava. Onde está esse
senhor Palmer?
— Não sei — respondeu a criança — Ele trouxe-me até à porta e disse-
me: "Toca a campainha". Depois, não o tornei a ver.
— Vamos procurá-lo. Não deve estar longe!
E, em companhia do menino, Teresa encontrou Palmer que se
conservava a pequena distância à espera de certificar-se de que o menino
tinha sido reconhecido por sua mãe.
— Ricardo! Ricardo! — gritou Teresa, atirando-se aos pés do americano,
no meio da rua ainda deserta, coisa que teria feito ainda mesmo se estivesse
cheia de gente. — Você é Deus para mim!
Não pôde proferir outras palavras, sufocada pelas lágrimas da alegria.
Palmer conduziu a jovem através das árvores dos Campos Elíseos e fez
que ela se sentasse. Foi preciso nada menos de uma hora para ela serenar e
se tornasse dona de si mesma, para que pudesse acariciar seu filho, sem
receio de sufocá-lo.
— Agora — disse Palmer — a minha dívida está saldada. Você deu-me
dias de esperança e de felicidade e eu não queria deixar de pagar essa dívida.
Entrego-lhe toda uma existência de ternura, porque este menino é,
verdadeiramente, um anjo. Custa-me bastante ter de separar-me dele. Privei-
o de uma herança, por isso devo-lhe outra em retribuição. Você não tem o
direito de opor-se a isto. Tomei este expediente c os meus interesses estão
consolidados. Ele tem no bolso uma carteira, cujo conteúdo lhe assegura o
presente e o futuro. Adeus, Teresa! Conte sempre comigo. Sou amigo para a
vida e para a morte!
E Palmer afastou-se, feliz. Tinha praticado uma boa ação.
Teresa nunca mais quis pôr os pés na casa em que Lourenço dormia.
Tomou um carro, depois de ter enviado um recado à sua casa, a fim de
dar instruções a Catarina, instruções que escreveu num pequeno café, onde
almoçou com seu filho.
Passaram o dia todo a correr Paris, aparelhando-se para uma longa
viagem. À noite, Catarina foi encontrá-los, carregando os embrulhos que
fizera durante o dia. E Teresa foi ocultar seu filho, sua felicidade, seu
repouso e seu trabalho, sua alegria e sua vida, no interior da Alemanha.
Sentia uma felicidade egoísta, plena, imensa. Não pensou mais no que
Lourenço se tornaria sem ela. Era mãe e a mãe relegara o passado com
aquele homem.
Lourenço dormiu o dia todo e despertou em plena solidão. Levantou-se,
maldizendo Teresa por ter saído a passeio sem cuidar do seu jantar.
Admirou-se por não encontrar Catarina. Mandou a casa ao diabo e foi jantar
no restaurante.
Só ao cabo de alguns dias, conseguiu compreender o que acontecera,
quando viu que a casa onde morara Teresa fora alugada, os móveis
encaixotados ou vendidos e percebeu que tinha esperado semanas e semanas,
meses e meses sem uma palavra de Teresa. Lourenço perdeu,
completamente, a esperança de revê-la e não pensou em mais nada senão em
atordoar-se naquela triste vida.

FIM

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