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ELA e ELE
EDITORA CLUBE DO LIVRO LTDA.
Título original: Elle et Lui
Tradução especial para o " Clube do Livro" de
JOSÉ MARIA MACHADO
EVANGELISTA PRADO
À senhorita Jacques
Ao senhor
Lourenço de Fauvel,
Antes de mais nada, meu caro Lourenço, rogo-lhe, se o que tem por mim
alguma amizade, que não faça tão frequentemente tolices, que lhe
prejudiquem a saúde. As outras são-lhe permitidas. Você vai pedir-me que
lhe cite algumas dessas tolices e eu fico bastante embaraçada, porque, cm
questão de tolices, conheço muito poucas, que não lhe sejam prejudiciais.
Resta, porém, saber o que você entende por tolice. Se se trata dessas
intermináveis ceias de que o outro dia me falou, creio que elas o matam e
isso me causa aflição. Em que pensa você, destruindo assim, alegremente,
uma existência tão preciosa e tão bela? Mas, eu sei que você não quer saber
de sermões, por isso limito-me ao pedido.
Quanto ao seu inglês, que, por sinal é americano, acabo de vê-lo e como
não verei você esta noite, nem talvez amanhã, aliás, com grande tristeza
minha, devo dizer-lhe que procedeu muito mal, não querendo fazer-lhe o
retrato. Ele lhe oferecia muito dinheiro de que você precisa, justamente para
não fazer tolices, na esperança de um golpe de sorte, que não chega nunca
para as pessoas de imaginação, uma vez que tais pessoas não sabem jogar,
perdem sempre.
Você acha que sou positiva demais, não é verdade? Isso pouco me
importa. Aliás, se examinarmos mesmo por alto a questão, todas as razões
apresentadas por você ao americano e a mim mesma não valem dois vinténs.
Diz você que não sabe fazer retrato. É possível, talvez, seja mesmo
verdade, mas se fosse preciso fazê-lo sob as condições do êxito burguês...
Mas, o senhor Palmer não exigia de maneira alguma que assim fosse. Você
tomou-o por um merceeiro e enganou-se, redondamente. É um homem de
opinião e bom gosto, conhece a arte e sente entusiasmo por você. Pode
julgar se o recebi bem! Animei-o, também, prometendo-lhe que faria todo o
possível para que você se resolvesse a pintar-lhe o retrato.
Depois de amanhã, portanto, falaremos sobre este assunto, porque tenho
hora marcada, esta noite, com o referido senhor Palmer, a fim de que ele me
ajude a pleitear sua própria causa e consiga a sua promessa.
A respeito disto, meu caro Lourenço, distraia-se da melhor maneira do
desejo de ver-me durante dois dias, o que não lhe será difícil, pois você
conhece muita gente de espírito e vive no mais belo dos mundos. Por manha
parte, sou, apenas, ama velha pregadora que lhe deseja muito bem e lhe
suplica que não se recolha tarde, todas as noites, e o aconselha a não come-
ter excessos, não abusando de coisa alguma. Você não tem o direito de fazê-
lo: o espírito obriga...
Sua colega,
TERESA JACQUES
à senhorita Jacques,
Minha querida Teresa, vou partir, dentro de duas horas, para um
passeio no campo, em companhia do conde de S... e do príncipe D...
Teremos lá ao que me asseguram, mocidade e beleza... Prometo-lhe e juro-
lhe que não cometerei tolices, nem beberei champanha.
Certamente, eu preferiria passear pelo seu grande estúdio e discutir no
seu salãozinho lilás. Mas, visto que você está em retiro juntamente com os
seus trinta e seis primos da província, não há de certamente notar a minha
ausência. Você terá a deliciosa música da pronúncia anglo-americana
durante toda a tarde. Ah! Esse bom senhor Palmer chama-se Dick, não c
verdade?
Creio que Dick é um diminutivo familiar de Ricardo, mas verdade seja
que em questões de linguagem eu conheço apenas mal e mal o francês.
Relativamente, ao retrato, não se fala mais nisso. Você é mil vezes maternal,
minha boa Teresa, ao pensar nos meus interesses, em detrimento dos seus.
Embora você tenha uma bela clientela, a sua generosidade não lhe permite
ficar rica e mais algumas notas de banco estarão melhor em suas mãos do
que nas minhas. Você sabe empregá-las em ações felizes, ao passo que eu,
como você diz, atirá-las-ia ia ao jogo de cartas...
Por outro lado, nunca estive menos bem disposto para a pintura... Para
isso, são necessárias duas coisas que você possui: a reflexão e a inspiração.
Compreendo perfeitamente o que me falta. Ainda não vivi bastante e parto
por três ou quatro dias com a senhora Realidade, que me aparece sob a
imagem de várias ninfas do corpo de bailado da Ópera. Espero que, ao
regressar, seja o homem mais satisfeito deste mundo, quer dizer, o mais
insenbilizado e o mais razoável...
Seu amigo,
LOURENÇO
CAPITULO I
— Mas que é que isso lhe pode fazer, Teresa? — perguntou Lourenço
num misto de prazer e despeito que ela bem percebeu, obrigando-a a
responder com a sua habitual franqueza.
— Escute, meu caro Lourenço — disse ela — explique-mo-nos. Tenho
por você muita amizade.
— Isso me envaidece, mas desconheço-lhe os motivos. Nem sequer sirvo
para ser seu amigo, Teresa! Não creio mais na amizade do que no amor entre
um homem e uma mulher.
— Você já me disse isso, mas para mim é indiferente que acredite ou
não. Eu acredito naquilo que sinto, e sinto por você interesse e afeição. Sou
assim; não posso ter perto de mim um ser qualquer sem a ele me ligar,
desejando que seja feliz. Então, costumo fazer aquilo que está ao meu
alcance, sem esperar qualquer recompensa. Ora, você não é um ser qualquer,
mas um homem de gênio e, além disso, espero, um homem de coração...
— Eu, um homem de coração? Sim, se você por essa palavra
compreender o que todo mundo compreende. Sei bater-me em duelo, pago as
minhas dívidas, defendo a mulher a quem dou o braço. Mas, se julga que
possuo um coração cheio de ternura, ingênuo, amoroso...
— Sei que pretende ser velho, acabado e corrompido. Mas as suas
pretensões nada valem, nada significam. É uma atitude muito na moda nos
dias que correm. Em você é uma doença dolorosa ou imaginária, mas que
passará, quando quiser... Você é um homem de coração, um homem de es-
pírito e isso, justamente, porque sente um vácuo no coração. Alguma mulher
há de aparecer para preencher esse vácuo — caso ela o compreenda e você o
permitir. Mas isto está longe do assunto. Estou falando ao artista, não ao
homem e este só se sente infeliz dentro da sua personalidade, porque o ar-
tista não está satisfeito consigo mesmo.
— Bem, Teresa, está enganada, acudiu, vivamente, Lourenço. É
exatamente o contrário do que está dizendo. É o homem que sofre no artista
e o abafa também. Não sei o que fazer da minha pessoa. O tédio mata-me,
Mas, tédio de quê? — dirá você. Tédio de tudo. Não sei como você, criatura
aplicada e calma, durante seis horas de trabalho, dar umas voltas pelo jardim,
atirando migalhas de pão aos pássaros, e, depois, recomeçar o trabalho
durante mais quatro horas, sorrindo à noite a dois ou três importunos
semelhantes a mim, por exemplo, à espera da hora de dormir. Para mim, o
sono é mau, os passeios são agitados, o meu trabalho é febril. A invenção
perturba-me e faz-me tremer. A execução, sempre muito lenta a meu
capricho, provoca-me incríveis palpitações de coração e é chorando,
esforçando-me por não gritar que dou à luz a idéia que me embriaga, mas da
qual me sinto mortalmente envergonhado e aborrecido no dia seguinte, pela
manhã.
Eis o que se passa na minha vida, quando me deixo dominar por esse
artista gigante que está em mim e do qual este pobre homem, que lhe fala,
arranca uma a uma, pelas tenazes de sua vontade, magras cartilagens
semimortas. Portanto, Teresa, o melhor é eu continuar a viver como tenho
imaginado, que faça excessos de toda ordem até matar este verme roedor, a
que os meus semelhantes chamam modestamente "inspiração" e que eu
qualifico sem cerimônia de minha enfermidade.
— Então, fica entendido que você trabalha para o suicídio de sua
inteligência? Pois bem. Não acredito numa única de suas palavras. Se
alguém lhe viesse amanhã propor ser o conde de S... ou o príncipe D... com
os milhões de um e os belos cavalos do outro, você responderia, falando de
sua pobre palheta, tão desprezada: "devolva-me o meu miolo de pão".
— Minha desprezada palheta? Você não me compreende, Teresa. Ela é
um instrumento de glória, bem sei, e aquilo que se chama glória é o apreço
que se concede ao talento, mais puro e primoroso do que aquele que se
outorga à fortuna. Gosto tanto de mim como qualquer outro. Amo a mim
mesmo de todo coração, juro por Deus! O que eu digo é que a minha palheta,
instrumento de glória, é o meu suplício, uma vez que não sei trabalhar sem
sofrer. Então, procuro na desordem, não a morte do meu corpo ou do meu
espírito, mas o relaxamento ou deterioração dos meus nervos. É somente
isso, Teresa. Que é que existe nisso que não seja razoável? Só trabalho
mesmo um pouco quando me sinto desfalecer de fraqueza.
— É verdade, — disse Teresa, — já o observei e admiro-me disso como
de uma curiosa anomalia. Mas tenho muito medo de que essa maneira de
produzir dê cabo da sua existência e custa-me acreditar que suceda de outro
modo... Responda-me a esta pergunta: não é verdade que você começou a sua
vida pelo trabalho e pela abstinência e sentiu, então, a necessidade de
atordoar-se, a fim de poder repousar, não é?
— Não, ao contrário. Quando saí do colégio, já gostava da pintura, mas
não acreditava que me visse jamais obrigado a pintar, Julgava-me rico. Meu
pai morreu e não me deixou senão coisa de trinta mil francos, quantia essa
que me dei pressa em gastar, para ter, ao menos, um ano agradável na vida,
Quando me vi sem um vintém, peguei no pincel e dediquei-me à pintura dos
nus, que atualmente constitui o maior êxito. Agora, durante alguns meses ou
semanas a fio, dou-me ao luxo e aos prazeres, até esgotar-se o meu dinheiro.
Quando nada mais resta, sinto que isso é melhor para mim, pois sinto-me ao
mesmo tempo sem forças e sem desejos. Então, volto ao trabalho com raiva,
com dor e em delírio e, concluída a tarefa, recomeça o repouso e a
prodigalidade.
— Há muito tempo que leva essa vida?
— Na minha idade, não seria possível viver dessa forma por muito
tempo. Há, apenas, uns três anos...
— Oh! para a sua idade, é demais! Além disso, começou mal, deitou ao
fogo à sua vitalidade antes que ela se manifestasse em toda a sua pujança.
Bebeu vinagre .para não crescer. Entretanto, sua cabeça desenvolveu-se e,
com ela, malgrado isso tudo, o seu gênio criador. Mas é possível que o seu
coração se haja atrofiado; talvez, por isso, não chegue a ser um homem ou
um artista completo.
Estas palavras de Teresa, pronunciadas com tranqüila tristeza, irritaram
Lourenço.
— Nesse caso, — disse ele, — você me despreza?
— Não — respondeu ela, estendendo-lhe a mão — sinto, simplesmente,
pena de você!
E Lourenço viu duas grossas lágrimas deslizando, lentamente, pela face
de Teresa. Essas lágrimas produziram-lhe uma reação violenta. Com o rosto
banhado em copioso choro, deitou-se aos pés de Teresa, dizendo como
criança que se arrepende:
— Ah! Minha pobre e querida amiga! — E tomando-lhe as mãos: —
você tem razão de lastimar a minha atitude. Preciso disso; sinto-me infeliz,
tão infeliz que tenho vergonha de dizê-lo. Aquilo que tenho no peito, em
lugar do coração, está incessantemente clamando por qualquer coisa que não
sei bem o que seja e ignoro o que devo dar-lhe para apaziguá-lo. Amo a
Deus e, todavia, duvido. Amo todas as mulheres e, todavia, desprezo-as a
todas. Permita-me dizer-lhe isto a você que é minha colega e minha amiga:
às vezes, surpreendo-me quase a amar até à idolatria uma cortesã, enquanto
aos pés de um anjo me sentiria talvez mais frio do que o próprio mármore.
Tudo é perturbação nos meus conhecimentos, nas minhas noções das coisas,
tudo, talvez, esteja transviado nos meus instintos. Se eu lhe disser que não
mais acho encanto e prazer no vinho...
Que quer que eu faça, Teresa? Não tem pena de mim?
— Certamente, tenho pena de você, meu pobre amigo — disse Teresa,
enxugando-lhe os olhos, com o lenço, — mas que adianta?
— Se você me amasse, Teresa. Não retire as mãos. Não é que permitiu
que eu me tornasse uma espécie de amigo?
— Disse que o amava e você respondeu-me que não podia acreditar na
amizade de uma mulher.
— Mas acreditava, talvez, na sua. Você tem um coração de homem, pois
tem a força e o talento de um coração masculino. Dê-me a sua amizade.
— Mas eu não lhe retirei essa amizade — respondeu Teresa. A amizade
de um homem deve possuir maior rudeza e autoridade, virtudes de que não
me sinto dotada. Sinto-me mais capacitada, mesmo contra a minha vontade,
de lastimar o seu destino do que, propriamente, o censurar. Já vai ver porque.
Prometi a mim mesma que haveria de humilhá-lo, hoje, deixando-o furioso
contra mim e contra você, e, em vez disso, estou chorando e isto não resolve
coisa alguma.
— Essas lágrimas são boas — tornou Lourenço; elas foram um refrigério
para um terreno sáfaro. É possível que o meu coração floresça, agora, neste
terreno, regado por você. Teresa, você já me disse certa vez que eu me
vangloriava diante de si daquilo que deveria fazer-me corar e que eu era
semelhante ao muro de uma prisão. Só se esqueceu de que atrás desse muro
existe um prisioneiro. Se eu conseguisse abrir a porta, você poderia vê-lo.
Mas a porta está fechada e o muro é de bronze. A minha vontade, a minha fé,
a minha expansibilidade, a minha palavra, nada é capaz de atravessar esse
muro. Terei, então, de viver e morrer assim? Para que cobrir de pinturas
fantásticas as paredes do meu cárcere, se não vejo a palavra amar escrita em
parte alguma?
— Se bem o compreendo — disse Teresa, numa expressão absorta —
você julga que a sua obra necessita de ser aquecida pelo sentimento.
— Não pensa da mesma forma? Não estará aí, justamente, o sentido de
todas as suas queixas?
— Não é, precisamente, assim. Existe, apenas, excesso de fogo na sua
execução. Eu tenho tratado sempre com respeito essa exuberância da
mocidade que produz os grandes artistas e cuja beleza impede a qualquer
entusiasmo investigar ou expurgar os defeitos... Em vez de achar o seu
trabalho frio e vazio, sinto-o ardente e apaixonado. Mas esperava encontrar
em você a sede de uma paixão. Estou vendo, agora, que ela reside no desejo
da alma. Sim, — acrescentou Teresa, sonhadora, como se procurasse romper
o véu de seu próprio pensamento — o desejo pode converter-se numa
paixão.
— Em que está pensando? — perguntou Lourenço, acompanhando-lhe o
olhar absorto.
— Estou perguntando a mim mesma se deve combater essa força que
está dentro de você e se, ao convencê-lo de que seja feliz e calmo, não lhe
estou roubando o fogo sagrado. Penso, todavia, que a inspiração não pode
ser para o espírito uma situação duradoura e que deve cair sobre nós e
oprimir-nos, quando vivamente expressa durante um período de febre. Que
lhe parece? Aquilo que chamamos as diversas maneiras dos mestres não será
a expressão das sucessivas transformações do nosso ser? Aos trinta anos,
poderá alguém aspirar a tudo, sem nada apertar nos braços? Não lhe é
imposto o dever de ter uma certeza, uma estabilidade sobre qualquer ponto?
Você está na idade das fantasias; cedo, virá a idade da luz. Não é seu desejo
fazer progressos?
— Mas será que isso depende de mim?
— Certamente, se você não se esforçar para perturbar o equilíbrio de
suas faculdades. Você não me convencerá de que o esgotamento seja o
remédio da febre, e não, simplesmente, o resultado final.
— Nesse caso, qual o remédio que me aconselha?
— Sei lá. Talvez, o casamento.
— Que horror! — exclamou Lourenço, soltando uma risada. E sempre a
sorrir, sem saber a razão do corretivo, acrescentou:
— A não ser que seja com você, Teresa. Não acha que é uma idéia?
— Muitíssimo interessante — respondeu ela, — mas de todo impossível!
A resposta de Teresa, tranqüila e sem apelação, impressionou Lourenço
e as palavras que ela pronunciara num arrebatamento afiguraram-se-lhe,
subitamente, um sonho enterrado... Aquele espírito forte e arrebatado
desejava, sempre, qualquer coisa em que entrasse a palavra impossível e era
justamente essa a palavra que Teresa acabara de pronunciar.
Logo depois, voltaram-lhe as veleidades amorosas, conjuntamente com
suas suspeitas, o seu ciúme, a sua cólera. Até então o encanto da amizade
como que o embalara e embriagara. Subitamente, tornou-se frio e amargo.
— Ah! com efeito! — disse, apanhando o chapéu para retirar-se — essa
é uma palavra que ocorre sempre na minha vida a propósito de tudo, no final
de qualquer gracejo, como conclusão de qualquer coisa séria: impossível!
Você não conhece um inimigo dessa ordem, Teresa. O seu amor é tranqüilo.
Você tem um namorado ou um amiguinho, que não é ciumento, porque ele a
julga fria e sensata. Isso faz-me pensar que o tempo caminha e que os seus
trinta e seis primos estão talvez lá fora, à'espera de que eu me retire...
— Que está dizendo? — perguntou Teresa espantada. Quais são as idéias
que o aborrecem? Sobreveio-lhe algum acesso de loucura?
— É assim de vez em quando — respondeu Lourenço, retirando-se. —
Deve perdoar-me tais acessos...
CAPÍTULO II
CAPITULO III
"Teresa,
Não acredite numa só das palavras que lhe tenho dito nestes últimos
meses. Não creia no que lhe disse, quando você teve receio de ver-me
apaixonado. Não estou apaixonado. Amo-a, loucamente, perdidamente. B
absurdo, ê insensato, é miserável. Mas eu que não acreditava poder ou
jamais escrever a uma mulher as palavras "eu a amo", acho agora estas
palavras frias e "moderadas demais para explicar o que existe entre nós.
Não posso viver mais com este segredo que me sufoca e que você não quer
adivinhar. Tenho tentado deixá-la cem vezes e fugir para o fim do mundo,
para poder esquecê-la. Ao cabo de uma hora, porém, estou novamente à sua
porta e, muitas vezes, à noite, devorado pelo ciúme, quase furioso contra
mim mesmo, peço a Deus que me cure deste meu mal. Mostre-me esse
homem nos seus braços, Teresa, o seu namorado, ou então goste de mim.
Alem desta solução, não encontro senão uma terceira — a de que me mate
para acabar com isto. Ê covarde e estúpida esta ameaça banal.
Teresa, não creia que eu seja um corrupto! Você sabe, perfeitamente,
que no fundo da minh'alma não se encontra lama. Do abismo a que me
havia atirado contra a minha vontade, sempre tenho invocado o céu. A seu
lado, sinto-me casto semelhante a uma criança e, algumas vezes, você não
receou pegar em suas mãos minha cabeça, como se fosse beijar-me na
fronte. E você dizia: "Cabeça má; o que merecia era apanhar um pouco!" E,
entretanto, em vez de bater-me, você esforçava-se para que nela penetrasse
o sopro puro e ardente do seu espírito. Pois bem; você não teve muito êxito.
E agora, que acendeu o fogo sagrado sobre o altar, volta-se e diz: "Confie a
guarda deste fogo sagrado a outra! Case-se, ame uma bela moça, que lhe
seja bem dedicada. Tenha filhos, ambição por causa deles, ordem, felicidade
doméstica, sei lá o quê? Tudo, exceto a fuinha pessoa!"
Eu, Teresa, sinto que ê a você que amo apaixonadamente e não a mim
mesmo. Desde que a conheço, você tem-me feito acreditar na felicidade.
Não pergunto a mim mesmo se o seu amor será a felicidade para mim. Sei,
apenas, que ele será a minha vida e que, boa ou má, ê essa vida ou essa
morte a única coisa que preciso,"
LOURENÇO
CAPITULO IV
— Pois bem, nesse caso, vamos cear depressa! Não diga que não,
Teresa. Você deve alimentar-se. Que seria de mim se você ficasse doente?
E como Teresa recusasse, porque efetivamente não tinha fome, ele
reclamou, a um sinal de Catarina para que insistisse, dizendo que ele mesmo
estava com fome, o que era verdade, porque, efetivamente, não tinha
jantado.
Como Teresa lhe oferecesse o jantar, comeram ambos, pela primeira vez,
o que na vida solitária e modesta de Teresa não era um fato sem importância.
Comer em comum, à mesma mesa, é uma fonte de intimidade e num sentido
mais elevado, como a própria palavra indica, uma verdadeira comunhão.
Lourenço comparou-se, imediatamente, ao filho pródigo, sorrindo, para
quem Catarina se dera pressa em matar o novilho gordo. E esse novilho
gordo, que revestira a forma de um frango, emprestou muita alegria aos dois
convivas.
Mas aquilo era muito pouco para o apetite do rapaz, tanto que Teresa
ficou preocupada. O bairro não oferecia nenhum recurso e Lourenço não
quis que Catarina se incomodasse com eles. Depois de demorada procura,
descobriu-se no fundo de um armário um pote de geléia, presente de Palmer.
Teresa não reparara ainda no presente. Lourenço evocou logo a recordação
do excelente Dick, pessoa de quem tivera a tolice de ter ciúmes e a quem
estimava agora de todo o coração.
No dia seguinte, Lourenço enviou-lhe flores magníficas, acompanhadas
de um bilhete, cheio de ternura, doce e respeitoso, que a deixou comovida.
Considerava-se o mais feliz dos homens. Não desejava outra coisa além do
seu perdão. Aceitava todas as privações, todos os rigores, desde que não lhe
fosse proibido ver e ouvir a sua amiguinha. Ele sabia muito bem que Teresa
não lhe podia oferecer o seu amor, o que não o impedia de dizer logo em
seguida: "Não é indissolúvel o nosso santo amor?"...
Nada é mais perigoso como essa intimidade em que fazemos a promessa
de não nos atacar, mutuamente, quando uma das partes não inspira à outra
qualquer repulsa física.
CAPITULO V
CAPITULO VI
Havia muito que Lourenço desejava visitar a Itália. Era esse o seu sonho
de infância. Alguns trabalhos, que conseguiu vender de maneira inesperada,
levaram-no a pensar na realização dessa viagem. Pediu a Teresa que o
acompanhasse, mostrando-lhe, orgulhoso, a pequena fortuna e jurando-lhe
que, se por acaso ela recusasse acompanhá-lo, ele não faria a viagem. Ora,
Teresa sabia perfeitamente que ele não renunciaria à viagem sem queixas e
censuras, por isso tratou, por seu lado, de arranjar dinheiro, empenhando
seus trabalhos futuros.
No fim do outono, partiram para a Itália. Lourenço tinha alimentado
grandes ilusões a respeito desse país, acreditando encontrar no mês de
dezembro a primavera com que sonhara. Teve uma desilusão; suportou um
frio bastante intenso durante a travessia de Marselha para Gênova. Esta
última cidade agradou-lhe, extraordinariamente. E, como havia ali muita
pintura a ver, o que constituía o principal objetivo da viagem, resolveu ali
permanecer por um ou dois meses. Alugou um apartamento mobiliado.
Ao cabo de oito dias, Lourenço tinha visto tudo quanto havia para ver-se.
Teresa não fazia senão pintar, pois não podia viver sem isso. Para conseguir
ganhar alguns mil francos, teve de comprometer-se com um negociante de
quadros, fazendo-lhe várias cópias de obras inéditas que ele desejava em
seguida mandar gravar. O trabalho não era desagradável. Como homem de
bom gosto, o negociante havia-lhe indicado diversos retratos de Van Dyck,
um em Gênova, o outro em Florença. Copiar esse mestre era uma especiali-
dade, graças à qual Teresa havia desenvolvido o seu próprio talento e tinha
obtido algum dinheiro antes de ganhar a vida por sua própria conta. Para
começar, todavia, era necessário conseguir autorização dos donos dessas
obras-primas. Embora se houvesse dedicado diligentemente a essa tarefa,
passou-se uma semana antes de conseguir fazer a cópia desejada.
Lourenço não se sentia absolutamente disposto a fazer cópias fosse do
que fosse. A sua individualidade era muito pronunciada e muito ardente para
esse gênero de trabalho. Lourenço contava, então, apenas, vinte e cinco anos
e podia ainda aprender. Na sua opinião, Teresa via, também, nessa
oportunidade, um meio de aumentar os seus recursos pecuniários.
Deixou, pois, Teresa absorta diante do seu modelo, ironizando um pouco
a respeito do trabalho de Van. Dyck*, que ela ia fazer, tentando mesmo
desanimá-la da tarefa penosa, que decidira empreender. Depois, começou a
vadiar pela cidade, muito preocupado com o emprego das seis semanas, que
Teresa lhe pedira para concluir a sua obra.
* Antão Van Dyck, famoso pintor flamengo, nascido em Antuérpia
(Bélgica) e falecido em Londres (1599-1641). Retratista notável, filiado à
escola de Rubens, célebre pintor do século XVI. (Nota do "Clube do Livro").
CAPITULO VII
Lourenço não refletia sobre uma só das expressões que dizia à Teresa;
naquele momento, não pensava no que falava. Não se recordou mais de coisa
alguma depois de adormecer de novo e se alguém o tivesse acordado e lho
recordasse teria negado tudo.
Negaria redondamente tudo. Havia, porém, algo verdadeiro: — no
momento estava cansado do seu amor sublime e aspirava fortemente aos
funestos arrebatamentos do passado. Era o castigo do mau caminho pelo
qual tinha enveredado ao começar a vida, castigo cruel, é certo, e do qual se
compreendia que ele se queixasse energicamente, ela que não premeditara
coisa alguma e que se havia atirado, a rir, num abismo, de onde julgava
poder sair quando lhe aprouvesse. Mas, o amor é regido por um código que
parece basear-se como todos os códigos sociais na fórmula terrível: a
ninguém é permitido ignorar a lei! Efetivamente, tanto pior para aqueles que
a ignoram. Se a criança se atira às garras da pantera, julgando poder acariciá-
la, a pantera não tomará conhecimento da inocência da criança. Devorará a
criança, pois não depende de seu instinto ter de poupá-la. São da mesma
natureza os venenos, o raio, o vício — agentes cegos da lei que o homem
deve conhecer e combater.
No dia seguinte à crise de que falamos, só restava na , mente de
Lourenço a consciência de ter tido com Teresa uma explicação decisiva e
uma vaga idéia de tê-la visto resignada. Tudo caminha, talvez, para o
melhor, pensou ao encontrá-la tão calma como a deixara antes. Havia,
entretanto, motivos para recear a sua palidez.
— Não é nada — disse Teresa, tranqüilamente. É um resfriado, que me
cansa bastante mas não passa disso. Desaparecerá com o tempo...
— Bem, Teresa! Você é quem deve decidir. Separa-mo-nos com zanga
ou despeito, ou permanecemos juntos como outrora, na mesma base de
amizade?
— Não tenho despeito algum — respondeu ela. Permanecemos amigos.
Fique aqui se tal lhe agrada. Eu termino o meu trabalho e dentro de quinze
dias volto para a França.
— Mas, daqui a quinze dias terei de ir morar noutra casa? Não receia que
se venha a saber do que se passou?...
— Faça como lhe parecer melhor. Temos aqui nossos apartamentos
independentes um do outro. Apenas, o salão é comum. Ora, eu não preciso
dele. Ficará para você.
— Não, peço-lhe que fique com ele. Você não ouvirá os meus passos,
quando eu entrar ou sair. Se o proibir, não porei aí os pés.
— Não lhe proíbo coisa alguma! — tornou Teresa. A não ser de deixar
de acreditar um instante que sua amiga está infinitamente acima de quaisquer
desilusões. Ela espera poder ser-lhe ainda útil, quando sentir a necessidade
de sua afeição.
Teresa estendeu a mão a Lourenço e foi trabalhar.
Lourenço não a compreendia. Tamanho domínio sobre si mesma
parecia-lhe uma coisa que não sabia explicar. Ele não conhecia a coragem
passiva e as resoluções silenciosas. Acreditou que ela fosse capaz de
recuperar o seu império sobre ele e desejasse reconduzi-lo ao amor pela
amizade. Prometeu a si mesmo ser invulnerável a toda fraqueza e, para ficar
mais senhor de si mesmo, resolveu tomar qualquer pessoa como testemunha
do seu rompimento. Foi ao encontro de Palmer, narrou-lhe a infeliz história
do seu amor e concluiu:
— Se você ama Teresa, meu caro amigo, segundo acredito, faça que ela
o ame. Não posso ter ciúmes. Ao contrário. Como eu a fiz infeliz e como
você será bom para ela — disso tenho a certeza — você me libertará de um
remorso que não desejo fique a pesar-me na consciência.
Lourenço ficou surpreso com o silêncio de Palmer.
— Será que, falando desta maneira, o ofendo? — tornou Lourenço. Não
é, entretanto, a minha intenção. Tenho por você muita amizade, estima e até
mesmo respeito. Se censura em tudo isso a minha conduta, fale com
franqueza, diga-me o que se lhe oferecer. Isso será melhor do que essa
atitude de indiferença ou de desdém.
— Não sou indiferente, nem aos desgostos de Teresa, nem aos seus, —
respondeu Palmer. Quero, apenas, poupar-lhe conselhos e censuras que
viriam tarde demais. Eu acreditava que vocês dois tivessem sido feitos um
para o outro. Agora, convenço-me de que a maior felicidade para um e para
outro, — a única certamente — está na separação. Quanto aos meus
sentimentos pessoais a respeito de Teresa, não lhe reconheço o direito de
dirigir-me qualquer palavra a tal respeito.
— É justo — declarou desembaraçadamente Lourenço. Compreendo,
perfeitamente, o que acaba de dizer-me. Vejo que doravante serei demais e
creio que farei melhor em ir-me embora para não tornar-me impertinente aos
outros.
E partiu, efetivamente, depois de despedir-se friamente de Teresa,
dirigindo-se à Florença com a resolução de atirar-se ao meio social ou ao
trabalho, segundo o seu capricho.
Sem dúvida, Teresa fez mal em não permitir que ele visse quanto era
profunda a ferida que • lhe havia causado. Mas tinha muita coragem e era
orgulhosa. Uma vez que compreendia dever ser essa a cura de um mal
desesperado, não devia recuar diante dos grandes remédios e das operações
cruéis. Era preciso fazer sangrar abundantemente esse coração em delírio,
carregá-lo de censuras, devolver-lhe afronta por afronta, sofrimento por
sofrimento. Ao ver o mal praticado, Lourenço, talvez, fizesse justiça a si
próprio. Era possível que a vergonha e o arrependimento salvassem a sua
alma do crime de assassinar o amor a sangue-frio.
Após três meses de inúteis esforços, Teresa sentia-se desanimada.
"Visto que ele é incurável" — pensou — "de que serve fazê-lo sofrer?
Ele não via que eu não podia fazer coisa alguma? Quando eu lhe disse para
voltar à sociedade, teve medo do meu ciúme e atirou-se a uma vida
misteriosa e grosseira; voltou para casa com a roupa rasgada e o rosto sujo
de sangue!"
No dia em que Lourenço partiu, Palmer perguntou à Teresa:
— Bem, minha amiga, que pretende, agora, fazer? Devo correr atrás
dele?
— Não, absolutamente, não! — respondeu ela.
— Quem sabe se o não traria de volta...
— Eu ficaria desolada.
— Então, não gosta mais dele?
— Não, absolutamente não gosto!
Seguiu-se um instante de silêncio. Depois, Palmer sonhador, voltou a
falar:
— Teresa, tenho uma notícia extremamente grave a comunicar-lhe.
Estou hesitando, porque receio causar-lhe uma grande emoção a mais e você
parece-me pouco disposta...
— Perdoe-me, meu amigo. Estou horrivelmente triste, mas sinto-me
absolutamente calma e preparada para tudo.
— Pois bem, Teresa; fique sabendo que, presentemente, está livre. O
conde das três estrelas morreu.
— Eu já o sabia. Há oito dias que sabia disso.
— E não disse nada a Lourenço?
— Não.
— Por quê?
— Porque, no mesmo instante, se manifestaria nele uma reação... Você
bem sabe como o imprevisto o transtorna e apaixona.
— Então, já o não estima?
— Eu não disse isso, meu caro Palmer! Lastimo-o, não o acuso. Talvez,
outra mulher consiga torná-lo bom e feliz.
Provavelmente, a culpa é tanto minha como dele. Seja como fôr, não
devíamos e não devemos procurar amar-nos um ao outro. j
— E, agora, Teresa, não imagina tirar alguma vantagem da liberdade que
lhe é restituída?
— Que vantagem posso eu retirar daí?
— Pode contrair novas núpcias e conhecer as alegrias da família.
— Meu caro amigo, tentei duas vezes em minha vida e você está vendo a
situação em que me encontro. O meu destino não é ser feliz, e é tarde demais
para procurar o que fugiu das minhas mãos. Tenho mais de trinta anos!
— É justamente porque você conta trinta anos que não pode prescindir
do amor. Você acaba de sofrer o enlevo da paixão e é justamente nessa idade
que as mulheres não podem fugir ao amor. Porque foi excitada e não foi
amada, é por não ter sido suficientemente amada que a inextinguível sede de
felicidade vai despertar no seu ser, conduzindo-a talvez de decepções em
decepções, até abismos mais profundos do que aquele de onde saiu...
— Esperemos que não.
— Sim, Teresa, você espera, no entanto, mas está iludida! É preciso ter
medo da sua idade, da sua sensibilidade, da calma ilusória em que você
imerge num momento de abatimento e cansaço.
— Afinal, Palmer você julga-me perdida porque me sinto infeliz. Isso é
muito cruel e faz-me compreender vivamente quanto tenho descido...
E pôs as mãos no rosto e chorou, amargamente. Palmer deixou-a chorar,
vendo que as lágrimas lhe eram necessárias; ele mesmo tinha provocado
aquela crise. Quando a viu mais calma, disse-lhe:
— Teresa, causei-lhe muita aflição, mas você deve perdoar as minhas
intenções. Gosto de você, aliás, sempre gostei, não com aquela paixão cega,
mas com toda a fé e devotamento de que sou capaz. Mais que nunca vejo em
você uma nobre existência prejudicada e esmagada pelos erros dos outros.
Consinta em casar comigo, Teresa e faça-o, imediatamente, sem receios,
sem escrúpulos, sem falsa delicadeza, sem desconfiança de si mesma. Dou-
lhe a minha vida e só peço que acredite em mim. Sou bastante forte para
aturar lágrimas que a ingratidão do outro lhe tem feito verter ainda. Jamais
lhe censurarei o passado e tornarei o seu futuro tão tranqüilo e seguro que
nunca o vento da tempestade a arrancará de mim.
Palmer continuou a falar durante muito tempo ainda com aquela
abundância de sentimento que Teresa ainda nele não tinha descoberto.
Tentou defender-se, mas essa resistência era apenas, na opinião de Palmer,
um resto de doença moral que devia combater em si mesma. Sentia que
Palmer dizia a verdade, mas sentia igualmente que ele assumia para com ela
uma enorme responsabilidade.
— Não é de mim mesmo que tenho receio, — disse ela. Não posso amar
mais a Lourenço e não mais o amo. Mas o mundo, sua mãe, sua pátria, a
honra do seu nome? Decaí, como você disse há pouco e sinto-o
perfeitamente. Não tenha pressa, Palmer. Estou assustadíssima diante do que
você quer afrontar por minha causa.
No dia seguinte e nos quatro dias que se seguiram, Palmer insistiu com
mais energia. De manhã à noite, sozinho com ela, apelou para todas as forças
da sua vontade para convencê-la. Ver-se-á, depois, se Teresa tinha ou não
razão para hesitar. O que mais a inquietava era a precipitação de Palmer,
forçando-a a prender-se numa promessa.
— Você tem receio das minhas reflexões — dizia ela. — Não tem em
mim a confiança de que se orgulha.
— Creio na sua palavra — respondeu o americano. A prova é que lhe
peço que me dê a sua palavra. Mas não sou obrigado a acreditar que você me
ame. Você nem sabe que nome dar à sua amizade.
Teresa sentia-se magoada, quando Palmer aludia a seus interesses. Via
muita abnegação em Palmer e não podia admitir que ele acreditasse fosse ela
capaz de aceitar essa abnegação sem retribuí-la. Subitamente, teve vergonha
de si mesma nesse combate de generosidade sem exigir dela outra coisa
senão que aceitasse o seu nome, e sua fortuna, a sua proteção e o afeto de
toda a sua existência.
No coração de Teresa, renasceu a esperança. Aquele homem, que ela
tomara por um ser positivo, revelava-se por um aspecto tão imprevisto a seus
olhos, que seu espírito ficou impressionado e como que reanimado na sua
agonia. Era semelhante a um raio de sol no meio de uma noite, que julgara
ser eterna.
No momento em que, desesperada, ia maldizer do amor, ele obrigou-a a
acreditar nesse mesmo sentimento e a encarar o seu desastre como um
desastre comum do qual o céu desejava indenizá-la. Palmer, que era de uma
beleza fria e regular, transfigurava-se a cada instante. Sentiu-se emocionada
e deixou arrancar de sua alma a promessa que ele tanto desejava.
Subitamente, recebeu uma carta, cuja letra lhe pareceu desconhecida, tão
desfigurada estava. Teve certa dificuldade em decifrar a assinatura. Com o
auxílio de Palmer, conseguiu finalmente, ler estas palavras:
"'Joguei e perdi. Tive uma companheira. Ela enganou-me e eu matei-a.
Tomei veneno. Vou morrer. Adeus, Teresa. LOURENÇO ".
— Partamos! — disse Palmer.
— Oh! meu amigo, eu o amo! — disse Teresa, atirando-se aos braços do
americano. Agora, sinto quanto você é digno de ser amado!
E partiram naquele mesmo instante. Viajando toda a noite por mar,
chegaram a Livorno e, ao entardecer, estavam em Florença. Encontraram
Lourenço numa estalagem. Não estava morrendo, mas encontrava-se num
acesso de febre cerebral tão violento que quatro homens não conseguiam
dominá-lo. Ao ver Teresa, reconheceu-a e agarrou-se a seu vestido, gritando
que o queriam enterrar vivo. Agarrou-a com tanta força que ela caiu por
terra: sufocada. Palmer afastou-a do quarto, desfalecida. Mas, ela voltou ao
cabo de um minuto e, com uma perseverança que chegava a ser prodigiosa,
passou vinte dias e vinte noites à cabeceira daquele homem que já não
amava. O enfermo quase a não reconhecia senão para carregá-la de injúrias
grosseiras, e, sempre que ela se afastava um instante, chamava-a, dizendo
que ia morrer.
Não tinha, felizmente, assassinado mulher alguma, nem tomado qualquer
espécie de veneno. Talvez, nem perdera dinheiro no jogo, nem feito nada
daquilo que escrevera a Teresa, no paroxismo do delírio e da febre. Já nem
se lembrava dessa carta da qual ela receava falar-lhe. Quando voltava a ter
consciência de si mesmo, ficava horrorizado com o desequilíbrio de sua
razão.
Teve, ainda, outras alucinações sinistras, enquanto lhe durou a febre.
Teresa não o deixava um instante, embora Palmer tentasse convencê-la
de que necessitava de descansar. Ela, porém, convencida de que Deus a
encarregara de salvar aquela existência frágil, resistiu e com efeito
contribuiu para a sua salvação.
Certa manhã, Lourenço despertou como que de uma letargia, mostrando
surpresa ao ver Teresa e Palmer a um lado e outro do leito. Estendeu a mão a
um e perguntou-lhes onde estava e de onde tinham vindo.
Teresa dormia, agora, vinte e quatro horas a fio. A natureza recobrou os
seus direitos, logo que a inquietação desapareceu. Pouco a pouco, Lourenço
compreendeu até que ponto ela se mostrara dedicada e descobriu na sua
fisionomia tantos indícios de fadiga quantos havia de sofrimento. Como
estava muito fraco para ocupar-se de qualquer coisa, Teresa instalou-se a seu
lado, ora lendo para ele, ora jogando baralho,, ora levando-o a passear de
carruagem. Palmer estava sempre presente.
Um dia, ele disse a Teresa, num momento em que se encontrava a sós
com ela:
— Quando será que esse bom Palmer nos fará o favor de ir-se embora?
Teresa viu que persistia uma lacuna no seu cérebro e não deu resposta.
Então, ele fez um esforço sobre si mesmo e acrescentou:
— Você acha que sou ingrato, minha amiga, falando desta maneira de
um homem que se dedicou tanto a mim quanto você. Mas não deixo de
compreender que foi justamente para não deixar você sozinha que ele se
encerrou neste quarto de doente. Teresa, você pode jurar-me que foi somente
por minha causa?
Teresa sacudiu a cabeça e tentou falar de outra coisa, mas Lourenço
voltou ao mesmo assunto no dia seguinte e disse-lhe com verdadeira
surpresa:
— Mas afinal, aonde vamos, Teresa? Não estamos bem aqui?
— Meu caro, — respondeu Teresa, — você fica aqui. Os médicos dizem
que precisa ainda de uma ou duas semanas antes de poder fazer qualquer
viagem sem perigo de recaída. Eu regresso à França, Terminei o meu
trabalho em Gênova e não tenho presentemente a intenção de demorar-me na
Itália por mais tempo. (
— Muito bem; você é livre, mas se você quer voltar para a França, sinto-
me tão livre como você para desejar a mesma coisa. Não seria possível
esperar-me mais por uma semana?
Ele punha tanta candura no esquecimento dos seus agravos e mostrava-
se tão infantil que Teresa chorou ao recordar-se de outros tempos.
Recomeçou a tratá-lo com intimidade e disse-lhe com a maior doçura e
consideração que era obrigada a deixá-lo por algum tempo.
— Por quê isso? — perguntou Lourenço, será que já não nos amamos?
— Isso seria impossível, — respondeu Teresa, — mas teremos sempre
um pelo outro uma grande amizade. Causamos um ao outro muito
sofrimento, e sua saúde, neste momento, seria incapaz de suportar
contrariedades. que passe algum tempo, para esquecermos tudo.
— Mas eu já esqueci tudo — exclamou Lourenço. — Não me recordo de
mal que você me tenha feito. É preciso que me perdoe tudo e me leve
consigo. Se me deixar aqui, morrerei de aborrecimento.
Teresa não ousava pronunciar a palavra fatal. Esperaria que Palmer
viesse interromper aquele diálogo e assim pudesse evitar uma cena perigosa
para o convalescente. Mas não foi possível. Ele atravessou-se na porta, não
deixando Teresa sair do quarto. Caiu a seus pés num grande desespero:
— Será possível que você me julgue capaz de recusar dizer-lhe uma
palavra. Mas não o posso fazer. Essa palavra não traduziria a verdade. O
amor não mais existe entre nós.
Lourenço levantou-se, furioso. Não compreendia que tivesse podido
matar esse amor no qual pretendia não acreditar.
— Então, é Palmer? — gritou, quebrando a chaleira na qual lhe tinham
trazido a tisana. Então, é ele? Diga, quero saber! Quero saber a verdade.
Morreria disso, bem sei, mas não quero viver enganado! \
— Enganado! — exclamou Teresa, segurando-lhe as mãos, a fim dele
não se ferir com as unhas. — Enganado? Será que eu lhe pertenço? Será que
desde a primeira noite que você passou fora de casa, em Gênova, depois de
ter-me dito que eu era o seu suplício* o seu algoz, não temos sido estranhos
um ao outro? Se você; não compreende o sentimento que me trouxe para
junto do seu leito de agonia e me reteve a seu lado, para auxiliar a sua cura
com cuidados maternais, é porque você, Lourenço, não compreendeu nunca
o meu coração. Este coração — prosseguiu, — batendo no peito, — talvez
não seja tão orgulhoso, nem tão ardente quanto o seu. Mas como você disse
muitas vezes, ele permanece sempre no mesmo lugar. O que ele amou jamais
pode deixar de amar, mas não se iluda, não se trata do amor como você
imagina, desse amor que você me inspirou e no qual, loucamente, ainda
deposita esperança. Esse amor acabou. Nem os meus sentidos, nem o meu
cérebro já agora lhe pertencem. Recobrei o domínio de mim própria e da
minha vontade. Posso, agora, oferecer tudo a quem o mereça. A Palmer, por
exemplo, você nada teria a objetar, você que o procurou certa manhã para
dizer-lhe: "console Teresa; faça-me este favor!"
— É verdade... é verdade!, — exclamou Lourenço, juntando as mãos
trêmulas. Eu disse isso. Tinha esquecido. Agora me lembro!...
— Então, não o esqueça mais, — disse Teresa e saiba meu amigo que o
amor é flor muito delicada para poder reanimar-se, depois de calcada aos
pés. Não pense mais em procurá-lo no meu coração. Procure-o noutra parte.
Você encontrará de novo o amor no dia em que for digno dele. A minha
ternura de irmã e de mãe, apesar de tudo, permanecerá sempre ao seu dispor.
Mas isso é outra coisa. É a piedade — não o oculto — e digo-lhe isto,
precisamente, para que você não procure mais reconquistar um amor que
seria tão humilhante para você como para mim. Se quer que esta amizade se
torne suave e terna, chegou a ocasião de merecê-la. Sirva-se dela, deixe-me
sem fraqueza e sem amargura, mostre-me a sua fisionomia calma de homem
generoso e brioso e não essa cara de criança que chora sem saber porquê.
Teresa falava, ainda, quando Palmer entrou. Lourenço atirou-se ao
pescoço do americano chamando-lhe meu irmão e meu salvador. E,
apontando para Teresa:
— Ah! meu amigo, você se lembra do que me disse, no Hotel Maurice, a
última vez que nos vimos em Paris?: "Se você não pensa que possa torná-la
feliz, prefira dar um tiro na cabeça a voltar à casa dela!" É o que eu devia ter
feito, mas não fiz. E agora, ela está mais desfigurada do que eu. Pobre
Teresa! Foi oprimida e, apesar disso, veio arrancar-me ao leito de morte,
quando deveria maldizer-me e abandonar-me!
O arrependimento de Lourenço era sincero. Palmer sentiu-se vivamente
impressionado. Quando se encontrou só com Teresa, disse-lhe:
— Não creia, minha amiga, que eu tenha sofrido com a sua solicitude
para com Lourenço. Compreendi muito bem a sua atitude: você; quis curar a
alma e o corpo. Venceu. Ele está salvo. Agora, que pretende fazer?
— Deixá-lo para sempre — respondeu Teresa; pelo menos, só tornar a
vê-lo daqui a muitos anos. Se ele voltar para a França eu permanecerei na
Itália, e se ele ficar na Itália, eu voltarei para a França. Não lhe disse já que
era esta a minha resolução? E foi justamente por ser uma resolução
inabalável que adiei um pouco a despedida. Eu sabia que ele teria uma crise
forte e não desejava deixá-lo nesse estado.
— Refletiu bem sobre esse ponto? — perguntou Palmer. — Tem certeza
de que no último momento não cederá?
— Estou certíssima.
— Esse homem parece-me irresistível na dor. Seria capaz de arrancar
piedade das entranhas de uma pedra. Entretanto, se você se render a
Lourenço, você está perdida e ele com você... E se ainda o ama, lembre-se de
que não pode salvá-lo, a não ser abandonando-o.
— Sei disso, — respondeu Teresa, — mas que me diz, então? Já se
esqueceu de que lhe empenhei a minha palavra? Está, também, doente?
Palmer beijou-lhe a mão, sorrindo. A paz tinha voltado ao seu coração.
No dia seguinte, Lourenço veio dizer-lhe que desejava ir à Suíça, onde
terminaria a sua convalescença. O clima da região não lhe convinha. Era
verdade. Os médicos aconselharam-no até a não esperar pelo verão. Ficou
resolvido que se separariam em Florença. Teresa, segundo parecia não tinha
formulado outro projeto senão o de ir aonde Lourenço não fosse.
Mas, ao vê-lo tão abatido da crise da véspera, prometeu-lhe que passaria
ainda uma semana em Florença, a fim de impedi-lo de partir sem estar
inteiramente refeito de suas energias.
Essa semana foi, talvez, a melhor da vida de Lourenço. A ternura tinha-o
vencido, penetrando a fundo na sua alma, invadindo-a por assim dizer. Não
deixava um instante os seus dois amigos, passeando com eles, indo com eles
de carruagem aos Cascines, nas horas menos freqüentadas pela multidão,
comendo com eles, sentindo uma alegria infantil a almoçar no campo,
procurando recuperar as forças, fazendo um pouco de ginástica, em
companhia do americano, acompanhando Teresa ao teatro e fazendo que
Palmer, o grande turista, lhe traçasse o itinerário da sua viagem à Suíça.
Chegou o dia da partida. Lourenço tinha feito os seus preparativos de
viagem com melancólica alegria. Gracejava com a sua roupa, com a sua
bagagem, com o ar exótico que iria certamente ter com uma capa
impermeável, que Palmer o obrigara a aceitar e que era, então, uma
novidade; gracejando com a algaravia do doméstico italiano que Palmer lhe
arranjara e que era o melhor homem do mundo; aceitando, reconhecido e
submisso, todas as atenções extremas de Teresa, Lourenço tinha os olhos
rasos de lágrimas e um sorriso nos lábios. Na noite anterior ao dia da
despedida, teve um acesso de febre. O carro que devia conduzi-lo em
pequenas jornadas estava parado à porta do hotel. A manhã estava fresca.
Teresa inquietou-se.
— Vá com ele até Spezzia — disse Palmer — É lá que ele deve
embarcar. Eu irei encontrá-la nessa cidade, no dia seguinte ao do embarque
de Lourenço. Acabo de encontrar negócio importante que me vai demorar
aqui durante umas vinte e quatro horas.
Surpreendida com tal resolução e com essa proposta, Teresa recusou
partir com Lourenço.
— Suplico-lhe que o faça! — disse Palmer, vivamente. — É-me
impossível seguir com vocês.
— Muito bem, meu amigo, mas não é indispensável que eu vá com ele.
— É preciso, sim!
Teresa acabou por acreditar que Palmer julgava necessária essa prova.
Ficou muito admirada e ficou inquieta com isso.
— É capaz de dar-me a sua palavra de honra de que tem aqui um
negócio importante?
— Sim! — respondeu Palmer. — Dou-lhe a minha palavra de honra.
— Pois bem, então, eu fico também.
— Não, é preciso que parta.
— Não estou compreendendo.
— Explicar-lhe-ei tudo mais tarde, minha amiga. Creio em você como
creio em Deus. Você vê. Tenha confiança em mim. Parta com Lourenço.
Teresa fez, às pressas, a sua maleta que atirou para dentro da carruagem,
tomando depois o seu lugar, ao lado de Lourenço. E, no instante da partida,
gritou para Palmer:
— Tenho a sua palavra de honra, Palmer! Você deverá encontrar-se
comigo dentro de vinte e quatro horas!
CAPITULO VIII
CAPITULO IX
CAPITULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
FIM