Você está na página 1de 7

0

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


RAPHAEL FERRERONI P. N. MEDEIROS (DRE: 116045700)

A SUPERAÇÃO DO
MAL-ESTAR DECADENTISTA
EM CIVILIZAÇÃO, DE EÇA DE QUEIROZ

Trabalho apresentado como conclusão à


disciplina “Narrativa Portuguesa”. Faculdade
de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro;
Departamento de Letras Vernáculas;
Setor de Literatura Portuguesa.

Docente: Profa. Dra. Luciana dos Santos Salles

Rio de Janeiro

2019
1

Introdução
A postura em análise, usualmente denominada como decadentista e associada aos
poetas do final do século XIX, expressa fortes sentimentos de pessimismo,
melancolia, desilusão e niilismo. Decadentismo envolve mais do que o sentimento
generalizado de decadência, recorrente na história da humanidade; a visão
decadentista revela que apesar de todo o progresso científico e social observável
com o passar do tempo, o homem não teria de fato “melhorado”, e nesse sentimento
de desilusão após a grande aposta no progresso estão enraizadas as dores e
frustrações do decadentista.

No ensaio A decadência do riso, Eça de Queiroz discute questões


relacionadas à vida maçante e enfadonha na Europa ao fim do século, ao dissertar
sobre a morte da alegria (simbolizada pelo riso).O autor menciona uma frase de
Rabelais sobre tempos de outrora: “[...] Et maintenant riez! Car lê rire est lê propre
de l´homme!”, opondo à citação a cena decadente de seu tempo: “Decerto,
folheando nossos livros, cruzando as multidões, vivendo o nosso viver, o bom
Rabelais diria que ‘chorar é próprio do homem’ – porque o largo puro riso de seu
tempo não o encontraria em face alguma.” (QUEIRÓS, sem data) Eça reflete
também sobre as origens de tal decadência:
“Penso eu que o riso acabou – porque a humanidade entristeceu – por
causa da sua imensa civilização. [...] Quanto mais uma sociedade é culta,
mais a sua face é triste. Foi a enorme civilização que criamos nestes
derradeiros oitenta anos, a civilização material, a política, a econômica, a
social, a literária, a artística que matou o nosso riso [...] Tanto complicamos
a nossa existência social, que a ação, no meio dela, pelo esforço prodigioso
que reclama, se tornou uma dor grande [...] Os homens de ação e de
pensamento hoje estão irremediavelmente voltados à melancolia.
(QUEIROZ, sem data)

Ou seja, tal “exagero civilizatório” e investimento no progresso cometidos


pelos homens do século XIX é o gera que gera o grande mal-estar e a crise em
questão. Sigmund Freud também discute a ideia de civilização e suas
2

consequências, chegando à conclusão similar de que o “progresso civilizatório” não


trouxe ao homem uma maior felicidade necessariamente. Frente a isso, Freud nos
traz a conclusão de que “o que nós chamamos ‘nossa civilização’ é, em grande
parte, responsável pela nossa desgraça” e que “seríamos muito mais felizes se a
abandonássemos, retornando a condições primitivas.” (FREUD, 1997)

Análise
A postura em foco parece ser a mesma trazida por Eça de Queiroz em seu
contro Civilização. O conto nos apresenta uma personagem “saturada” de
civilização, adepta a uma postura de memória pautada na visão decadentista;
deixando a cidade para fazer um passeio no campo, descobre por acaso uma outra
vida, recuperando o “riso” e, em consequência, a própria vida (embora mantenha-se
alienado ao restante mundo).

Eça tece uma narrativa que habilmente explora sentimentos ligados a uma
exaltação do progresso, da civilização — mas, em verdade, questiona esse
comportamento, já que o vê como algo falho, decadente. Desta forma, o autor
assinala a decadência do mundo, mas não assume o manto de decadentista, porque
parece escrever seu conto tendo a esperança em uma potencial mudança.

Alguns traços do decadentismo são o pessimismo, o tédio, o sentimento


escatológico, um culto à artificialidade, a marcação do individualismo, a perda do rir
e um sufocamento oriundo da civilização; paralelamente a isso, a figura do dandy é
típica entre as personagens de narrativas decadentistas — o homem civilizado,
aristocrático, dotado de um profundo desejo por distinção, preocupado com a
estética da vida por não ser afligido pelas reais preocupações da plebe, que
persegue o sucesso e a paixão como fuga de um grande tédio existencial e não
como fins em si.

O conto de Queiroz nos apresenta o sentimento de “fatiga de civilização”


tipicamente decadentista através de Jacinto, a personagem previamente
3

mencionada. Ele é apresentado ao leitor pelo narrador/personagem (seu amigo),


como um homem oriundo da aristocracia e, portanto, acostumado com a vida fácil,
luxo e civilização. Identifica-se já aí um traço do dandy arquetípico em Jacinto: um
filho da aristocracia.

O caráter impassível e insensível do dandy estão presentes também em


Jacinto: “Nunca padeceu, mesmo na idade em que se lê Balzac e Musset, os
tormentos da sensibilidade.” (Civilização, p. 17) Simultaneamente, pode-se constatar
a ausência de desejo, seu caráter estóico: “ambição, sentira somente a de
compreender bem as ideias gerais” (p. 17).

A postura entediada, pessimista e melancólica de Jacinto não é apontada


somente pelos livros que lia e em que acreditava, mas também nas descrições
físicas de seu porte curvado e seus bocejos constantes. Vive ele imerso em
excessiva civilização; como diz o narrador do conto, ““Era ele, de todos os homens
que conheci, o mais complexamente civilizado – ou antes aquele que se munira da
mais vasta soma de civilização material, ornamental e intelectual.” (p.18). Nesta
mesma página, nos é dada a descrição do escritório de trabalho de Jacinto; apesar
de raramente utilizado, abundam luxo material e novas tecnologias. Assim também é
a biblioteca de Jacinto, estocada com uma quantidade impressionante de livros
jamais lidos de fato, armazenados com o maior luxo e elegância.

As descrições da casa de Jacinto vão além, gerando para o leitor uma


sensação de sufocamento entre toda aquela elegância e tecnologia; esse
sufocamento é espelhado em Jacinto; mesmo em constante busca por novidades,
ele se vê invariavelmente desapontado, frustrado pela realização de seus desejos,
como podemos ver indicado pelo incidente com a torneira de água quente, relatado
na página 23. A sensação de sufocamento civilizatório é evidenciada mais ainda
quando Jacinto sai de casa e, ao respirar o ar fresco, começa a se sentir
notadamente melhor.

Tal melhora continua conforme se dá o deslocamento de Jacinto da cidade


para seu velho solar em Torges. Podemos notar que as exclamações da
4

personagem vão mudando de tom; na cidade, era comum ouvir Jacinto bradar “Que
maçada!”, por exemplo; em seu deslocamento para o campo, encontramos
exclamações elogiosas como “Ah! Que beleza!” (p.27).

Jacinto “enfim descansa” ao encontrar a vida no campo (p.30); reconhece


que a civilização não é necessariamente vantajosa à vida, e toda sua fisionomia se
altera refletindo essa metamorfose:
Era o nosso Jacinto. E imediatamente o comparei a uma planta, meio
murcha e estiolada no escuro, que fora profusamente regada e revivera em
pleno sol. Não corcovava. Sobre a palidez de supercivilizado, o ar trigueiro e
forte que o virilava soberbamente. Dos olhos que na cidade eu lhe
conhecera sempre crepusculares, saltava agora um brilho de meio-dia,
decidido e largo, que mergulhava francamente na beleza das coisas. [...]
Era uma reencarnação. (p. 35)

Também podemos encontrar diferenças também na visão filosófica de


Jacint sobre a vida. A admiração superficial anterior que tinha pelos pessimistas
(Schopenhauer e Salomão) vira um notado desdém. “sua confiança nesses dois
sombrios explicadores da vida desaparecera, e irremediavelmente, sem poder mais
voltar, como uma névoa que o sol espalha.” (p. 36) Ao final, Jacinto vai até mesmo
“se casar com uma forte, sã e bela rapariga de Guiães” (p. 37) — para
Schopenhauer, o amor é uma ilusão, e fora estabelecido que o dandy é misógino e
avesso a compromissos, mas Jacinto talvez não mais se enquadre no arquétipo do
dandy, ou tenha construído uma forma diferente de se enquadrar.

Conclusão
Direcionamos nosso olhar então ao fim do conto:
E através das ruas mais frescas, eu ia pensando que este nosso magnífico
século XIX, se assemelharia um dia àquele Jasmineiro abandonado, e que
outros homens, com uma certeza mais pura do que é a Vida e a Felicidade,
dariam como eu, com o pé no lixo da supercivilização, e, como eu, ririam
alegremente da grande ilusão que findara, inútil e coberta de ferrugem.
5

Àquela hora, de certo, Jacinto, na varanda, em Torges, sem fonógrafo e


sem telefone, reentrado na simplicidade, via, sob a paz lenta da tarde, ao
tremeluzir da primeira estrela, a boiada recolher entre o canto dos boieiros.
(p. 38)

O tom casualmente apocalíptico com que o narrador se refere à


possibilidade de um futuro em que os adventos do super-progresso superficial dá ao
final da obra um tom de “aposta no futuro”, quiçá uma proposta para a sociedade.
Enxergo no conto não exatamente uma ideia rasa de fugere urbem, uma vez que
nada no conto de Queiroz remete à ideia de busca de santuário no campo, e sim do
potencial de transformação que aquele ambiente possui. Além disso, Jacinto não
abdica totalmente aos adventos de seu tempo para viver como um eremita, ele leva
algumas inovações ao solar campestre; há aí uma valorização do trabalho, e do
progresso razoável.

Retomando as palavras de Queiroz em A decadência do riso, citadas


anteriormente, pode-se chegar à seguinte conclusão: o problema do homem naquele
tempo é o “excesso de civilização”, que deprime. Descartando o excesso de
civilização, tirando dela apenas o seu lado útil (o trabalho), poderíamos aprender a
criar vidas melhores, ainda que tendo consciência da “dor da existência”.

Desta forma, Eça de Queiroz consegue estar à frente de seu tempo,


trabalhando com um cenário fundamentalmente decadentista para chegar a uma
conclusão sobre um futuro desejável, uma Modernidade em que a existência
quintessencialmente frívola da figura do dandy não tenha lugar, uma vez que o
trabalho e o verdadeiro progresso não podem existir em uma sociedade sufocada.
Nesse paradigma, o conto Civilização é lido como uma proposta de superação da
decadência pervasiva ao fim do século XIX.
6

Referências

QUEIRÓS, Eça de. Civilização. Domínio público, disponível em


<http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/eca9.pdf>.

QUEIRÓS, Eça de. A decadência do riso. In: Notas contemporâneas. Lisboa: Edição
Livros do Brasil, sem data.

BAUDELAIRE, Charles. The dandy. In: The painter of modern life and other essays.
Londres: Phaidon Press, 1964. pp. 26-29.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

Você também pode gostar