eISSN 2177-4307
DOI:10.5654/actageo2011.0509.0001 Revista ACTA Geográfica, ANO V, N°9, jan./jun. de 2011. pp.07-14.
Abstract
The paper deals with the concepts for space and place under the perspective of the humanistic horizon
in geography, referring to them, respectively, as darkness and clarity. In this context, it is worthwhile
to remember that the concept for place, based on the principles of phenomenology, alongside with the
notion of life-world, merges with humanistic geography's own trajectory, being considered, par
excellence, a synonym for home, in which the person creates, projects, lives, loves and acts.
Keywords: place; space; humanistic geography; darkness; clarity.
reforçarmos a idéia de que enquanto as DAS LUZES E DAS TREVAS NAS ARTES E
atenções dos geógrafos, de modo geral, estão NO MUNDO VIVIDO
voltadas para a organização espacial, os Acontecimentos festivos, ritualísticos,
geógrafos da tendência humanística estão mórbidos, de imensa felicidade, imponentes
preocupados com os espaços e os lugares dos ou trágicos ou mesmo dramas íntimos ou
homens (TUAN, 1983; 1991). Na verdade, testemunhados por outrem são exibidos no
convém frisarmos, nossos mundos são dia-a-dia ou nos palcos dos teatros. A palavra
realmente segmentados, como lembra Tuan drama “deriva do termo grego que significa
em um dos seus textos (1982), e pleno de fazer”. “O propósito do ato dramático é fazer a
continuidades e descontinuidades (TUAN, vida ordinária possível” (TUAN, 1984, p.86),
1984b). repeti-la ou trasladá-la para o palco.
Aqui é o meu lugar; mas desconheço o Da experiência vivida os dramaturgos
que existe do outro lado da montanha. Amo o extraem elementos para as suas narrativas. São
meu bairro e a minha cidade; todavia não os peças classificadas por gênero, sejam elas tidas
conheço inteiramente. Estimo lugares onde como reais ou de ficção, mas, de todo modo,
nunca estive pessoalmente, porém, a mim fortemente calcadas sobre a cultura ou nos
transmitidos por amigos, parentes ou pelos acontecimentos do mundo vivido e tecidas ao
meios de comunicação. Ao lado disso, a pátria sabor de sentimentos, lembranças, ações e
amada ou até mesmo o planeta Terra – nestes fantasia. Uma peça teatral pode ser
tempos de consciência ecológica – adquirem representada em um ou mais atos
08 simbolicamente o status de lares ou lugares subdivididos em unidades ou cenas e adotar
(MELLO, 1995). Ambivalentemente admito uma estrutura linear, fragmentada ou de
que abomino ou rejeito diversas porções vanguarda em sua linguagem. No palco, astros
espaciais de minha própria cidade ou de meu e estrelas de brilhos próprios personificam
país. No entanto, sonho em ancorar em diversos e intensos papéis. Em termos técnicos,
paraísos naturais ou construídos pelos homens a luz e a escuridão assumem relevância
em meu torrão-natal ou além mar. extraordinárias para o desenvolvimento e
Neste contexto, os espaços dos homens compreensão da trama. Luz significa brilho,
guardam mistérios, dores e desesperanças. Os claridade e fulgor, pressupõe amplidão e
lugares, o aconchego, o trabalho, as festas, os júbilo. Por sua vez, a escuridão denota tristeza
atritos e as recordações. Ao percorrermos os e ignorância. “O Senhor é luz, afirma o texto
espaços nos deparamos com labirintos e na sagrado. O Sol, resplandecente, transmite vida
desenvoltura da travessia dos lugares amplos e inspira confiança. Em contrapartida, as
ressonam o alarido e o corre-corre das pessoas, trevas, dominadas pelas forças do mal, serão
o rufar dos tambores e o toque mágico dos herdadas pelos impuros” (MELLO, 1993, p.32).
sinos. Dos espaços sufocados pela escuridão, Uma obra dramática discorre acerca de
escapamos para a extrema luminosidade dos um resumo de uma vida e/ou ocorrências
lugares, conduzidos pela arte, revestida de triviais ou fantásticas. Todavia, um texto
abnegação, labor e prazer, oferecidos e teatral, por mais extenso que seja, não esgota
consagrados pelos indivíduos e grupos sociais. todo um somatório de vivências. O mundo
vivido, manancial de experiências e fonte de elementos que unem os homens aos “seus”
inspiração, é evidentemente muito mais rico nichos de proteção e convivência ou concepção
com sua teia de tragédias, ritmos e comicidade. simbólica. Neste compasso e atentos à idéia de
Neste contexto, desobrigados e na que “a geografia está em todos os lugares”,
impossibilidade de empreenderem uma tarefa como defende Cosgrove (1998, p.92) da
hercúlea, qual seja a de retratar o mundo corrente cultural, os especialistas da escola
vivido em toda a sua magnitude e esplendor, humanística perseguem obstinadamente o
os escritores selecionam apenas alguns pontos desafio de traduzir a alma dos lugares,
que são elencados em suas obras. sobretudo através da elaboração do conceito
Escritores diversos, incluindo lugar, categoria analítica esta que mais atenção
dramaturgos e pesquisadores, conseguem mereceu dos geógrafos da vertente
apenas recortar e registrar uma parte da humanística (ENTRIKIN, 1980).
riqueza da vida em suas peças, livros e Como Sartre (1956, p.269) sentenciou
compêndios literários, escolares ou científicos. “não me é possível não ter um lugar”. “Existir é
Outros pesquisadores abordam conceitos ter um lugar” (ENTRIKIN, 1980, p.16). A cama,
geográficos com base em uma trajetória de a casa, a rua e o bairro são lugares eleitos e
vida e, assim procuram abrir clareiras ou demarcados a partir de nossas experiências
direcionar fragmentos biográficos como diretas. Todavia, a cidade, a região, a pátria e
experimentos valiosos e fontes de pesquisa até mesmo o Planeta Terra, nestes tempos de
geográfica. consciência ecológica, alçam, simbolicamente,
Experiência, teatro da vida e dos palcos, à condição de lares ou lugares (MELLO, 1995). 09
coletâneas e resumos, astros e estrelas, “A Terra é o nosso lar” (TUAN, 1998, p.7). Da
luminosidade e escuridão, bem como atos e mesma forma, a casa, revestida “de um valor
cenas são alguns vocábulos e expressões excepcional pela sua universalidade, pela
dominantes nestas últimas passagens e de profundidade das suas significações”
interesse para a pesquisa, pois sinalizam em (FRÉMONT, 1980, p.122). Todo espaço
direção a um esforço de esclarecimento de habitado, explicitou BACHELARD (1990, p.22)
conceitos como espaço, de um lado e, por “traz a essência da noção casa”, verdadeiro
outro, a decifrar os meandros, as cosmo (BACHELARD, 1990; ELIADE, 1990;
interiorizações e as reentrâncias do lugar. TUAN, 1983), e, ao mesmo tempo, um ninho,
por conter a grandeza do universo e a
OS ESPAÇOS E OS LUGARES DOS infinidade aconchegante de um refúgio, pleno
HOMENS de aspectos familiares e indissociáveis, tais
“Não há lugar como o lar”. Mas, o que é o como aromas, sons, paisagens íntimas, amigos,
lar? Tuan (1983, p.3) inicia uma de suas obras ensinamentos, lutas, “canções minha mãe me
com esta indagação e, logo em seguida, oferece ensinou” (SCHUTZ, 1979, p.291), e toda sorte
a resposta: é a velha casa, o bairro, a cidade ou a de evocações que permitem à pessoa ''sentir-se
pátria. A explicação aparentemente simples em casa”. Centro de apoio, referência e ação,
encobre uma infinita e complexa rede de afora estabilidade e confinamento, o lar ou
sentimentos e entendimentos a propósito dos lugar integra o âmago dos nossos seres e
de encontro, permanência e vivência de (TUAN, 1983; MELLO, 1990; 1991; 1993; 1997).
parcelas consideráveis de artistas, Quanto à restauração dos lugares do
homossexuais, boêmios, alcoólatras, passado, na escala íntima, perpetuam-se, no
prostitutos de ambos os sexos, desocupados, movimento memorialístico, as casas e os
pedintes etc. Para esta gente, o centro é uma redutos da infância e da adolescência e, por
extensão do lar, logo, lugar. Mas, para quem outro lado, aderindo e apoderando--se da
percorre esses pontos, de dia, com memória seletiva, a magia pretérita de lugares
desembaraço (lugares), os centros das cidades, eternizados na memória.
à noite – desertos ou freqüentados por
“pessoas exóticas” -, são evitados ou causam CONSIDERAÇÕES FINAIS
aflição, sendo, portanto, espaços (MELLO, Pausa, movimento, morada (TUAN,
1991). 1983), consciência, conflitos, sonhos e
Locais próximos ou distantes, em devaneios conferem ao mundo vivido
diferentes escalas, mesmo não vividos distinções como espaço e lugar. Nestes termos,
pessoalmente, podem se tornar lugares vale ressaltar, o ser humano está sempre em
concebidos e/ou míticos, a partir dos relatos busca do lar, refúgio de aconchego, luz,
ou quando cantados, na medida em que esperança e felicidade. O entendimento sobre o
haveria nestes tipos de comunicação, lar/lugar é múltiplo, divergente, descontínuo
realizados através de narrativas, uma certa e surge em diversas escalas. A procura e as
relação de intimidade. Neste caso, as fronteiras destinações, para os monoteístas, não se
12 afetivas e/ou intelectuais demarcariam novos limitam a esta dimensão. No ato da santa missa
lugares, concebidos e/ou míticos, dispostos e nas orações, como prêmio de redenção, os
além do espaço ¾ estranho, ignorado, distante fiéis, em comunhão, clamam que “no fim da
“física” ou emocionalmente. peregrinação terrestre” todos mereçam chegar
A distinção entre o concebido e o mítico “à morada eterna”, plena de luminosidade.
sugere uma certa dificuldade de compreensão. Nestas condições, movimento, destino,
O primeiro assoma como uma transposição do morada/lar/lugar persistem nesta e em outra
que fora captado. Todavia, quando dimensão (MELLO, 1993). A busca por lugares
confrontado pessoalmente pode não ser fiel à envoltos em claridade continua ...
formulação legada, ao passo que o lugar Por fim, neste fecho/desfecho
mítico, disposto no topo da imaginação e do /inconcluso, cabe lembrar, no espetáculo da
simbólico, é idealizado por intermédio da vida, a escuridão prevalece ao anoitecer. Mas, a
cultura, das filosofias religiosas, entre outros aurora, a cada dia, triunfa sobre a obscuridade,
aspectos. O lugar mítico, situado em um dos abrindo clareiras para os lugares de extrema
níveis mais sofisticados do pensamento luminosidade.
humano, diz respeito aos eldorados ou terras
fantásticas, paradisíacas ou infernais, ou
relativo aos projetos irrealizáveis, aos sonhos, NOTAS
i
ao inacessível ou cultivado como um éden a ser Professor do Instituto de Geografia da
alcançado nesta ou em outra dimensão Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ); Doutor em Geografia pela Universidade MELLO, J.B.F. de. Geografia humanística: A
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Coordenador perspectiva de experiência vivida e uma crítica
do Núcleo de Estudos sobre Geografia radical ao positivismo. Revista Brasileira de
Humanística, Artes e Cidade do Rio de Janeiro Geografia. Rio de Janeiro: IBGE, 52(4)91-115,
(NeghaRIO) - www.neghario.igeog.uerj.br ; 1990.
Coordenador dos Roteiros Geográficos do Rio -
MELLO, J.B.F. de. O Rio de Janeiro dos
www.roteiros.igeog.uerj.br.
compositores da música popular brasileira -
E-mail: neghario@uol.com.br 1928/1991 - uma introdução à geografia
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