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ODE AO GENIUS LOCI 1

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Lugar X Espaço

“O espaço e o tempo são a estrutura em que toda a realidade está contida. [...] Descrever e analisar o caráter
específico que o espaço e o tempo assumem na experiência humana é uma das tarefas mais atraentes e
importantes de uma filosofia antropológica”.

Ernst Cassirer (Ensaio sobre o homem)

Uma imagem, um território, uma utopia. A definição de um lugar pode visitar nosso vocabulário de inúmeras
formas. Da mesma maneira, um espaço pode ser definido por tantos outros meios, como um conjunto de coisas
ou uma delimitação geográfica, por exemplo. O imaginário presente nestes conceitos é objeto extenso.

A evolução destes conceitos se manifestou em uma infinidade de teorias. Aristóteles aponta que um lugar se
identifica com a noção de contato como limite de dois corpos em afinidade. Já Hegel enfrenta a noção de lugar
apoiando-se em avanços filosóficos do século XIX, ao afirmar que lugar é a união entre espaço e tempo. Vinte
séculos antes, citações de Platão já mencionavam os famosos paradoxos espaço-temporais de Zenão¹.

Na produção de tantas definições, surge uma inquietação: afinal, qual é a substância que diferencia um lugar de
um espaço?

De uma maneira generalizada, de acordo com a análise etimológica dos conceitos, espaço (do latim spatium)
1. Os diálogos Timeo e Parménides de Platão analisam significa “distância entre dois pontos, ou a área ou o volume entre dois limites determinados”, e o lugar (do latim
paradoxos espaço-temporais, que até nos dias de hoje localis, de locus) é o “espaço ocupado”, ou seja, habitado. O termo habitar sugere, neste contexto, o acréscimo de
ocupam estudos de filósofos e matemáticos. “No entanto
um novo elemento: o homem. O espaço que acomoda e abriga, e ganha significado, se transforma em sinônimo de
existe uma terceira natureza, que é o espaço, que é eterno,
ponto de apoio existencial. Quando o homem habita, ele é capaz de se orientar e se identificar dentro de um
(...) e que é apreendido, na ausência de todo sentido,
meio, ou, em outras palavras, quando o homem pode experimentar o ambiente de maneira significativa. Isto
graças a uma certa razão amistosa que é como um sonho”.
O trecho do dialógo Timeo traz a ideia de espaço limitado,
implica que o espaço onde a vida transcorre é denominado um lugar, no sentido mais puro da palavra.

que foge de qualquer identificação. (Muntañola, J. La


arquitectura como lugar. Edición UPC, Barcelona, 2013).

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Segundo Tuan², o espaço se eleva à categoria de lugar à medida que este adquiri definição e significados. Em
outras palavras, o que começa como espaço, se transforma em lugar conforme o dotamos de valor. O autor
destaca o conceito de experiência como chave-mestra para entendermos o conceito de lugar. Experiência envolve
sensação, percepção, concepção; abrange as diferentes maneiras com o qual uma pessoa conhece e constrói uma
realidade.

“Estamos em uma parte desconhecida da cidade: um espaço desconhecido se estende à nossa frente.
Após algum tempo conhecemos alguns referenciais e os caminhos que os ligam. Eventualmente o que foi
uma cidade estranha e desconhecida se torna um lugar familiar. O espaço abstrato, carente de
significados exceto pela estranheza, torna-se um lugar concreto, cheio de significado”³.

Dentro desta perspectiva, a relação entre tempo e espaço se torna fundamental para identificar um lugar. A
extensão temporal é que trará a definição de um espaço. Como o texto cita anteriormente, Hegel defende que um
lugar é a união entre espaço e tempo - o lugar só é tempo enquanto espaço, e vice-versa. O filósofo prehegeliano
Leibniz já defendia esta correlação:

“O lugar nada mais é que uma ordem de coexistência entre o espaço e o tempo... Não somente os objetos
se distinguem graças ao espaço e ao tempo, mas também os objetos nos ajudam a discernir um espaço-
tempo próprio”.

Afim de melhor entender as relações entre tempo e espaço, Tuan sugere entrelaçar os conceitos de três formas
distintas: o lugar que conforme o tempo adquirimos afeição a ele, o lugar como pausa do movimento, e o lugar
como ‘tempo visível’, ou seja, a concretização da memória. De maneira semelhante, Milton Santos nos ensina que
“as formas asseguram a continuidade do tempo, mas o fazem através da sucessão dos eventos, que mudam o seu
sentido” 4. Desta maneira, o lugar testemunha uma história, compilando passado, presente e futuro a um só
tempo.

2. Tuan, Y. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Difel, São Paulo, 1983.


3. Tuan, Y. Op. cit.
4. Santos, M. A Natureza do Espaço. Edusp, São Paulo, 2014.

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A pintura – seus traços, cores e dimensões – representam o acontecimento em si, o agora. Uma imagem tem o
tempo próprio, não o tempo que demorou para ser realizada, ou o tempo que a obra se refere. Peixoto defende
de
que, como uma epifania, a arte conserva in
inúmeras
meras temporalidades em um mesmo tempo, abrigando passado e
presente6.

Pavimento de São Marco, John Singer Sargent (1880-1882).


1882). Caminhar sobre história – o mármore guarda as feridas de
cada passo dado. As marcas e signos de desgaste do piso não são mostras de decadência; eles carregam história, e ao
mesmo tempo a memória de milhões de fiéis peregrinos e visitantes de toda parte do mundo que caminharam neste
piso5.

5. Foscari, G. Elements of Ve
Venice. Lars Müller Publishers, 2015.
6. Peixoto ataca o olhar contemporâneo, que, segundo ele, não tem mais tempo. “ Poderiam a fotografia e o cinema – ruidoso
universo do descartável – nos emudecer e voltar nossos olhos para o infinito: Poderiam suas imagens
image ganhar poder evocador,
carregando
carregando-se
se de história? Para isso, porém, é preciso saber ouvir o seu peculiar silêncio, sentir o ritmo particular da vida nas
suas imagens”. (Peixoto, N. B. Paisagens Urbanas. Editora Senac, São Paulo, 2004, p. 230-231).
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O sentido do lugar é tema central do livro Genius Loci – Towards a Phenomenology of Architecture7, do arquiteto
norueguês Christian Norberg-Schulz. O autor busca na filosofia grega uma reflexão sobre o conceito de lugar.
Para os gregos, todo ser é regido por um genius, algo como um espírito guardião. O genius denota a nossa
essência ou nossas aspirações. Num passado remoto, conhecer o genius de um lugar era de suma importância
para a sobrevivência, tanto sob o aspecto físico como psíquico.

Um dos segredos das civilizações antigas era situar a cidade (a localização dos templos não é fortuita); o deus já
estava presente ali antes da sua construção. A cidade e seu templo apenas manifestam a presença do divino. Os
homens, a princípio, não conceberam os deuses como divindades zeladoras de toda a raça humana, pelo
contrário, acreditavam que cada divindade pertencesse a um determinado povo e localidade. Tais divindades
dialogavam com as características do lugar, assumindo personalidade dependente do domicilio particular.

Norberg- Schulz encontra na filosofia de Martin Heidegger outra manifestação do termo lugar, quando o filósofo
introduz os conceitos de “céu” e “terra” – dois mundos dicotômicos. Heidegger defende que cabe ao homem
entender que, para habitar, deve ter consciência que vive entre dois mundos – o céu e a terra. Este espaço
intermédio seria o lugar onde os ‘mortais’ habitam – o mundo – e permite o homem sentir-se peça inclusa do
meio. O filósofo ainda deixou como legado a sábia sentença de que a comunicação linguística do homem está
condicionada ao seu “ser no mundo”, que é espacial8.

7. Genius loci é um conceito romano, do latim, que significa o espírito do lugar. Segundo os gregos cada ser independente
carrega o seu genius, o seu espírito-guardião, que dava vida às pessoas e aos lugares, os acompanhava desde o nascimento até
a morte e determinava as suas características e essência. (NORBERG-SCHULZ, C. Genius loci. Towards a Phenomenology of
Architecture. Academy Editions, Universidade de Minnesota, 1980.
8. Muntañola, J. La arquitectura como lugar. Ediciones UPC, Barcelona, 2013.

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No entanto, Heidegger segue um caminho curto no que diz respeito ao conceito de lugar. Para descobrirmos a
realidade oculta entre as diferentes definições de lugar, devemos percorrer caminhos não tão óbvios. Mais do que
um espaço geográfico, o lugar faz parte da existência humana.

De fato, são as peças feitas pela mão do homem – a casa, a fazenda, a cidade – e os caminhos que interligam
estas peças que definem um meio natural em um meio cultural. A arquitetura, sob este ponto de vista, surge com
o propósito de dar um ponto de apoio existencial ao homem. Aldo Rossi reforça esta ideia ao dizer que a
arquitetura é “o instrumento que permite um fato ocorrer”, como uma fotografia que revela um rosto por trás de
uma janela. É certo que a natureza humana reclama por símbolos, objetos que representam situações
cotidianas, experiências humanas, ou mesmo desejos. É como concretizar a vida, com o propósito maior de
manter e transmitir valores.

As duas funções psicológicas presentes na relação homem-meio são “orientação” e “identificação”. Segundo
Norberg-Schulz, o homem deve ser capaz de se orientar, saber onde está, mas sobretudo deve identificar-se com
o meio. “O modo no qual você está e eu estou, o modo no qual nós humanos estamos na terra”. A citação de
Heidegger denota, de uma maneira mais simples, que o modo como vivemos irá depender de como percebemos e
como entendemos o espaço. Em outras palavras: experimentar o espaço (a terra, a paisagem, o meio) com toda a
complexidade humana (física, psicológica, espiritual) é o que institui um lugar.

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Definir a natureza de um lugar perpassa estudos de toda espécie, desde a área das humanas até as mais
matemáticas. No entanto, as características mais válidas para a presente pesquisa se concentram no valor
atribuído a um lugar e no tempo, o ingrediente responsável pelas experiências.

Lugares emblemáticos, verdadeiros hiatos, marcam uma cidade, uma paisagem. Turistas de todo canto do
mundo contemplam monumentos, territórios notáveis, templos sagrados. Do que se constitui o sentimento que
se experimenta nestes espaços? Na verdade, o lugar não depende dos monumentos - o que se vê, se sente, se
leva, é a força do lugar. As colunas, por exemplo, presentes em tantos sítios patrimoniais, comovem pelos
indicativos de uma paisagem histórica, e não por si mesmas. Os valores transcendem o instante histórico9.

Exaltar a essência de um lugar não significa ver o que é invisível aos olhos, uma manifestação mística. Muito
antes disto, é afirmar que os eventos produzidos em um espaço – sua história – lhe é inseparável. É o que
permite diferenciar, distinguir cada lugar.

“O lugar é a concreta manifestação do homem”. Os lugares, além de representar o apoio existencial humano,
marcam a nossa existência e transmitem valores. O lugar é o espaço documentado que nos permite construir
vida, construir valores, e, se não silenciado, permite perpetuar identidade.

Fragmentos de Roma. O lugar, mesmo em ruína, transmite


história e identidade. Mais que peças patrimoniais,
surpreendem pela força que transmitem. Imagens autorais.

9. Peixoto, N.B. “Paisagens Urbanas”. Senac, São Paulo, 2004.

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1.2 Presença e permanência -
Um prenúncio

La persistência de la memória, Salvador Dalí (1930).

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“A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata”. A descrição da cidade
de Zaíra, no livro ‘Cidades Invisíveis’, do mestre Italo Calvino, dialoga com o encantamento e a complexidade do
encontro da cidade com o seu passado. Zaíra, uma cidade fictícia, guarda sua história como nas linhas de uma
mão – vestígios marcados no corpo, carregados de identidade.

Estudos sobre a arquitetura da memória e o significado das ruínas foram amplamente explorados nas últimas
décadas, afim de reanimar antigos valores ‘fraturados’ pelo movimento moderno. De fato, em todo fenômeno de
transformação urbana se produz um processo que, além da pugna de interesses econômicos e das pautas
definidas pelo poder municipal ou estatal, se dirige sempre ao terreno das seguintes decisões: o que deve se
manter, o que irá se transformar, o que se deve destruir e como conduzir tais ações.

Um dos problemas mais atuais relativos a este tema é a anulação da memória real e a invenção de memórias
temáticas e impostas. Frequentemente escapamos do tempo e espaço reais para instalarmos em tempo e espaço
virtuais. Assim se percorre um processo de distração psicológica, principalmente quando, “sem que a coletividade
seja consciente disto, de golpe uma falsa memória expulsa a existente, que se substitui por um imago”1. Esvaziar
o conteúdo histórico de um lugar e alterar seu significado na sua apropriação constitui uma variação dentro
deste processo de distração.

Para melhor exemplificar este processo de transformação e distração através de um imago, os autores Montaner e
Muxí2 citam alguns casos de estudo, dentre eles a Potsdamer Platz, praça situada em Berlim que representa um
emblemático caso de extinção dos vestígios históricos do lugar – neste caso a memória ignominiosa do Muro de
Berlim, além da eliminação do contato com a realidade contextual: bairros de imigrantes e o Kulturforum.

1. O termo imago refere-se neste contexto à imagem inconsciente de objeto.


2. Montaner J.; Muxi, Z. (2015) Arquitetura e política. Gustavo Gili, Barcelona.

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A moderna praça borrou a memória urbana do lugar com a construção de uma arquitetura genérica e plástica,
reforçando o desejo de negação e recusa da identidade local. Uma memória pesada que, evidentemente, as
pessoas gostariam de esquecer e deixar no passado. No entanto, Montaner e Muxi recordam que, se escondemos
as feridas, podemos cair novamente nos mesmos erros. Uma coleção de imagens clichês – a falsa memória - não
altera a essência de um lugar.

A propósito deste tema, Jose Muntañola argumenta que a interseção entre realidade e virtualidade, tanto na
reprodução do passado quanto na implantação da arquitetura virtual nos leva necessariamente ao fanatismo e a
indiferença global.

Muntañola salienta que existem duas maneiras essenciais de definir memória: a intrínseca e a extrínseca. A
primeira forma se sustenta na própria experiência arquitetônica e na documentação da obra (fotografias, planos,
memorial). Já a postura extrínseca - também chamada de memória dialógica pelo autor - defende que o
significado e o valor cultural de um lugar não se reduzem à análise do interior da peça; mas abrange a relação do
‘intrínseco’ com a cultura, a sociedade, a história do lugar, ou seja, com o ‘extrínseco’.

“Não existe memória intrínseca sem memória extrínseca”3. Se torna evidente que uma arquitetura justa, digamos
assim, toma como alicerce a situação interdisciplinar do lugar, respeitando as relações entre a arquitetura e a
sociedade, a história e a cultura construída.

Pots-damer Platz, Berlín. 1960 e na atualidade. Entretanto a exaltação da memória, ou, em outras palavras, mumificação das cidades produz uma arquitetura
presa ao passado, não capaz de suprimir ações e desejos mais presentes na situação social atual. O resultado é
uma arquitetura autista, esquizofrênica e que não acrescenta ao urbano. Vale observar que defensores da
memória implícita justificam sua arquitetura pela escassa consciência crítica da sociedade, uma postura não-
dialógica e distante da possível autonomia do entendimento arquitetônico. Muntañola ressalta que a
responsabilidade dos arquitetos é projetar o melhor território possível a partir da cultura de um lugar, otimizando
o que irá apoiar a boa arquitetura (intrínseca) e anulando valores negativos. Encontrar o equilíbrio - frágil
alquimia que demanda um projeto de ordem urbana.

3. Muntañola, J. (2002) Arquitectura, proyecto e memoria. Edicions UPC, Barcelona

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É preciso levar em conta que cada vez que se destrói a cultura e o patrimônio, se leva estratos de uma memória.
E ainda que este seja o desejo de grandes operações imobiliárias, financeiras e turísticas, se perdemos a
memória, perdemos o sentido. Nas palavras do ilustre escritor português Saramago, uma sociedade que não
respeita o seu território, é uma sociedade que não respeita a si mesma.

A obra Paisagens Urbanas, de Nelson Brissac Peixoto descortina uma série de elementos ligados à metrópole e à
arte. Interessa neste contexto o capítulo ‘Ruínas, o essencial ainda está por vir’, no qual Peixoto nos convence, a
partir da análise de peças artísticas sobre a cidade, a interessante aproximação do passado e presente na
paisagem urbana.

“A modernidade – na sua relação privilegiada com a morte – remete à antiguidade porque esta revela uma
propriedade comum de ambas: a fragilidade”4. Peixoto defende que a essência da ruína se aproxima do moderno
porque está igualmente fadada ao esquecimento. Inúmeras obras de arte, representando cidades, tramados,
escombros, emaranhados de cabos, cinzas e ruínas, são apresentadas pelo autor com o objetivo de afirmar a
riqueza da paisagem urbana. O que parece confundir, põe em manifesto: a atualidade se constrói pela
intersecção entre passado e presente. (Peixoto, N.B. 2004, p. 274)

La Morgue, Charles Meryon, 1854.


A cidade do século XIX, uma Babel que prospera com a perda de conexões e referências do passado, é palco de
Fonte: (Peixoto, 2004)
intensa metamorfose e atrofia ao que se refere à tradição. A partir da Revolução Inglesa, o ritmo da cidade ganha
velocidade, deixa de acompanhar as badaladas dos sinos para seguir o tic-tac do relógio mecânico. Charles
Baudelaire, poeta e crítico da arte, encontra nas obras de Charles Meryon a grande representação destes tempos.
Segundo Baudelaire, o artista sabe representar, com poesia, a grandeza de uma paisagem; a “solenidade natural
de uma cidade imensa”. Efetivamente, a riqueza das obras de Meryon está na fusão entre história e presente da
cidade.

4. Peixoto, N. B.(2003) Paisagens Urbanas. Editora Senac, São Paulo.

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O que constitui a riqueza da paisagem, segundo Peixoto, não pode ser tratada como um ornamento ou cenário; a
beleza está nas calçadas do cotidiano, na dança entre coisas e personagens, no percorrer das ruas e ruelas. O
espetáculo das metrópoles – obra natural do tempo transcorrido – é representado pelo aquarelista com maestria:

“A majestade da pedra edificada, as torres das igrejas apontando para o céu, os obeliscos da indústria
vomitando para o firmamento seus blocos de fumaça, (...) – não é esquecido nenhum dos elementos
complexos que compõe o doloroso e glorioso cenário da civilização”5.

A sensação de efêmero, transitável, inerente aos câmbios modernos, se aproxima à ideia de ruína pela
manifestação da fragilidade do presente. Ruínas e construções se mesclam, e é assim que a cidade aflora como
permanência – a paisagem urbana é fluxo permanente. Dentro desta perspectiva, se pode observar que a
singularidade de um lugar está na intersecção de tempo e eternidade, do permanente e o transitório, assim como
do enigmático com o familiar, do transcendente com o imanente.

Meryon é ‘pintor do circunstancial’, busca a beleza fugaz da urbe. O fenômeno cotidiano é incluído em sua arte e
o antigo transparece na própria paisagem presente. O resultado é uma imagem que aflora o passado no próprio
presente, e aí que reside a força de suas gravuras.

O cenário que Meryon apresenta é a majestade e a decrepitude de Paris do século XIX. Uma qualidade dupla e
complexa é representada: a aceitação da existência de um valor herdado e o fruto das novas criações, que
normalmente não reconhecem os substratos passados do lugar. 6

5. Charles Baudelaire, “Salão de 1859”, em A modernidade de Baudelaire. (Peixoto, 2004)

6. “A cidade do século XIX é a progenitora direta da existente, ou seja, esta última é a herdada e transformada mediante a
absorção de novos estratos que surgem no processo evolutivo, produto de novos programas e requerimentos”. Inostroza, S.
(2004). Huellas en la ciudad heredada: complejidad y continuidad en la morfogénesis del proyecto urbano contemporáneo en la
ciudad europea. Tese doctoral, ETSAB, Barcelona.

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Características semelhantes ao cenário retratado por Meryon encontramos na cidade de São Paulo, capital
financeira do Brasil. As primeiras impressões do visitante europeu Anselm Kiefer sobre São Paulo estão
eternizadas na sua obra Lilith (1987), onde a cidade está representada em uma névoa de massa petrificada, entre
“escombros que afloram no meio do deserto”. Lilith, que segundo a mitologia grega representa a encarnação
feminina do diabo, tem o imenso poder da destruição, se apodera da paisagem paulista e reina na expansão
urbana – sem freios – brasileira. Nela, os indícios da história aparecem pálidos e fáceis de borrar.

As paisagens de Kiefer nos apresentam um movimento ao terreno vazio e a-histórico. As cenas retratadas, feitas a
partir de fotografias, apontam a perda de duas dimensões: presença e permanência. No entanto, Peixoto observa
que a função da arquitetura nos quadros de Kiefer é servir de lugar onde os objetos passados encontram novas
disposições, não como uma peça monumental.

Lilith, Anselm Kiefer, 1987. Fonte: (Peixoto, 2004)

“Todos elementos e signos, arrancados do passado profundo em que jaziam, são dispostos num vasto
terreno segundo novas constelações. As coisas são retiradas de seu contexto original e reorganizadas
segundo outras funções, ganhando novos significados. É assim que o passado pode ser recuperado:
como presente”. (PEIXOTO, N.B. 2004, pg. 290)

A mesma abordagem pode ser adotada na prática do urbanismo. O que o texto de Peixoto sugere é que o
interessante é tocar o passado no presente. Combinar e reorganizar os elementos históricos e atuais,
constantemente, como um caleidoscópio que desconhece o lugar e o tempo originais de cada peça.

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Num discurso firme, o artigo Sites of Hurtful Memory (2002), orientado pela historiadora alemã Gabi Dolff-
Bonekamper, defende a preservação de lugares emblemáticos que carregam memórias pesadas, vestígios que
querem ser esquecidos pela sociedade. Gabi observa que a maioria de nós está ciente do impacto positivo da
preservação de um patrimônio cultural, no entanto expõe que não podemos excluir os lugares que foram palco de
conflitos, guerras, ou qualquer outro evento desta natureza difícil, cenários que também carregam história.

Com o objetivo de clarificar esta questão tão complexa, a historiadora articula três perguntas que considera
essenciais na discussão de como intervir nestes lugares:

o Porque preservar um lugar ou um edifício se este ofende os sentimentos das pessoas que o recordam?
o Que tipo de informação estes lugares transitem que não estão disponíveis em outras formas, tais como
livros, testemunhos, filmes ou vídeos?
o E por fim, por que e como estes lugares deveriam ser tratados como patrimônio a ser preservado?

A historiadora destaca que devemos primeiramente refletir sobre a motivação por detrás do desejo da exclusão de
um lugar que carrega uma memória difícil. Ignorar ou destruir as evidências de um crime, por exemplo, é
normalmente uma ação motivada pelo lado de responsáveis do delito, principalmente quando a culpa está
relacionada ao evento.

Dois casos de lugares com memórias difíceis: O Muro de Para responder a segunda pergunta, a autora defende o valor intrínseco o registro físico da história, das peças
Berlim, em fotografia de 1989 e o Estádio Nacional do que foram protagonistas e testemunhas de um evento:
Chile, que albergou centenas de prisioneiros da ditadura,
em fotografia de 1973.

“Edifícios, lugares e paisagens, em sua forma e substância material, são testemunhos preciosos da história. Eles
contêm respostas a perguntas que talvez ainda não consideramos, mas que nossos filhos poderão. Como peças
tridimensionais, são mais complexos que uma fonte escrita, no entanto menos fácil de ler”7.

7.Dolff-Bonekamper, G. (2004) Sites of Hurtful Memory. The Getty Conservation Institute

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Adotar instrumentos de recombinação que configurem espaços heterogêneos, preservando o espírito de um lugar
– o genius loci - pode ser tarefa árdua. No entanto manter a essência de um lugar faz com que as pessoas
possam compartilhar experiências do passado, como se o acesso ao passado e a história do lugar fosse mais
direto¹.

A autora também cita a Teoria da Recepção8, de Hans Robert Jauss, como uma maneira de compreender o tema
e sair de paradoxos. A teoria explica como alterar horizontes de entendimento permite uma interpretação atual de
um evento histórico. Jauss propõe levar a cabo a análise das diferentes possibilidades de significação que oferece
um texto a seus leitores potenciais. Ainda que esteja escrito com um propósito definido, um texto não contém
mensagens trans-históricas ou perguntas que devemos encontras as respostas. Ao invés disso, o lugar contém
respostas para perguntas que devem ser formuladas por nós mesmos.

Com respeito aos acontecimentos históricos e os lugares onde se sucederam, pode-se presumir, segundo a Teoria
da Recepção, que a relação entre um lugar e um evento existe em nossa própria interpretação. Isto significa que
não necessitamos atentar para a conexão entre o lugar e um acontecimento, nem mesmo identificar significados
intrínsecos vinculados ao locus. As relações estão nas nossas próprias interpretações, e irão depender das nossas
perguntas.

8. Desenvolvida por Hans Robert Jauss nos anos 60, a Teoria da Recepção analisa o fato artístico ou cultural dando enfoque a
análise do receptor, ao efeito produzido pela obra nos leitores.

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1.3 Cultura em cena:
O legado de Lina Bo Bardi

¡Qué hermoso tener raíces para beber la savia de los siglos!


¡Qué hermoso tener raíces para poder ser permanentemente creativos y poder renunciar a la copia de otras
culturas que nos son extrañas!
¡Qué hermoso comprenderlo, poder hacernos el regalo de esa luz! ¡Qué hermoso ser inteligente para hacer belleza
con lo
o poco de nuestro hoy y lo mucho de nuestra historia!

Javier Carvajal

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“A arquiteta antropóloga”¹. Assim Marcos Feraz nomeou Lina Bo Bardi, arquiteta italiana e naturalizada
brasileira por opção, figura singular na trajetória da arquitetura do país que escolheu para viver. A força dos seus
projetos definiu-se especialmente pela sua maestria em compreender arquitetura dentro de um sistema de
cultura ‘permeável e dialogal’. Olivia de Oliveira, em seu livro titulado “Lina Bo Bardi – Sutis Substâncias da
Arquitetura”, descreve a criação da arquiteta como um mosaico capaz de juntar o impensável. A autora defende
que Lina trabalha com o material disponível, ou seja, constrói e desconstrói com o pré-existente, sempre com o
propósito de, primeiramente, atender as necessidades do que tem nas mãos.

A obra de Lina tem raiz. Mas não esta raiz que está acostumada a visitar o nosso imaginário. Lina desvela raízes
mutantes, maduras, elásticas. As desenha com compromisso; as une e as transforma em instrumento capaz de
Gió Ponti, arquiteto e designer italiano. Lina colabora para gritar, em alto e bom som, o que move a arquitetura de Lina. Quiça, a arquiteta que melhor soube interpretar e
sua revista “Lo Stile – nella casa e nell’arrendamento”.
homenagear o contexto ideológico cultural do Brasil.

Parto da premissa de que, para entender a alma de um trabalho, é preciso antes de tudo viajar pela história
pessoal do artista. Achilina di Enrico Bo, mais conhecida como Lina Bo, nasceu em Roma no ano de 1914. Teve
uma trajetória escolar inquieta, e desde muito nova Lina se mostra descontente com os limites do papel da
mulher impostos pela sociedade. Iniciou seus estudos na Scuola Superiore di Architettura de Roma em 1939 e se
forma com o trabalho de graduação “Núcleo Assistencial da Maternidade e da Infância”. É importante destacar
que grande parte da formação profissional da arquiteta foi dedicada à observação de antigos monumentos, o que
explica em certa parte a preocupação de Lina quanto ao valor histórico de cada lugar que ela interveio.

Fez parte de uma geração pós-guerra, ativa nas frentes artísticas e políticas da época. Pouco tempo depois de
formada, o berço de Lina ficou muito quadrado para abrigar sua ambição. Se muda para Milão em 1940.
Ilustração de Lina realizada para revistas italianas em
Trabalhou no escritório de Gió Ponti, figura ativa no movimento pela valorização do artesanato italiano, o que
tempos de escassez projetual.
rendeu a participação de Lina na revista “Lo Stile – nella casa e nell’arrendamento”. Atua também nas revistas
Grazia, Belleza, Vetrina e L’illustrazionoe Italiana.

1. Ferraz, M. G. Lina Bo Bardi, a arquiteta antropóloga. Arquitextos Vitruvius. Disponível em:


http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.174/5355.

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Em tempos de Guerra, sentiu que o mundo poderia ser salvo, e expressava sua ânsia em mudar aquela realidade
de desamor e destruição. “A casa do homem ruiu” – Lina observou que, em meio a tantas cinzas, ruínas e pó, a
casa do homem deveria servir ao homem, e não mostrar, como em uma exibição teatral sobre a vaidade inútil
humana. (Ferraz, Suzuki, Vainer, 1996)

“Foi então, quando as bombas demoliam sem piedade a obra do homem, que compreendemos
que a casa deve ser para a vida do homem, deve servir, deve consolar; e não mostrar, numa
exibição teatral, as vaidades inúteis do espírito humano (...)”.

Quando Lina Bo Bardi chega ao Brasil, em 1946, encontra no cenário brasileiro uma arquitetura moderna já
amadurecida. Em meados do século XX, o grupo de jovens arquitetos que arriscaram os primeiros traços de
transformação – entre eles Lúcio Costa e Oscar Niemeyer – afirma-se integralmente e realiza cada vez mais
numerosas e significativas obras, assegurando uma unidade global que ilustra o indiscutível estilo brasileiro.
(Bruand, 2005) O espírito inventivo e a grande liberdade de concepção plástica demonstrados por um número
significativo de arquitetos brasileiros fez com que o Brasil ocupasse um lugar de destaque no panorama da
arquitetura.

A arquitetura moderna brasileira também irá se destacar por seu cunho todo particular, evidenciado por suas
origens: o termo moderno sintetiza preocupações ao mesmo tempo revolucionárias e nacionalistas. Dentre as
várias correntes da arquitetura brasileira, a que mais irá mostrar notoriedade é a que sabe conciliar os princípios
da arquitetura moderna e os da tradição local, representada pelas obras implantadas pelos colonizadores
portugueses e seus descendentes nos séculos XVI e XVII. (Bruand, 2005)

A Semana da Arte Moderna de 1922, apesar de não ter ligação direta ao movimento em busca da renovação na
arquitetura nacional, fomentou um novo clima e relevou o desejo de pôr fim ao marasmo intelectual do país. Não
há dúvidas que o movimento propiciou um campo fértil para a arquitetura, e que favoreceu a afirmação de uma
personalidade própria capaz de propor soluções simples e orgulhosamente nacionais. Foi um primeiro passo
inclusive por movimentar uma nova clientela interessada numa arquitetura nova.

PAISAGEM COMO EPIFANIA 45


Ao longo dos seus discursos, Lina Bo Bardi enfatiza que a concepção arquitetônica deve se relacionar com a
capacidade da arquitetura de situar o homem no mundo, de dar apoio às necessidades físicas e espirituais.
Mesmo que seus traços sofressem algumas metamorfoses quanto á forma e criação de espaço, este foi o enfoque
principal no discurso bobordiano. (Bierrenbach, 2010).

Bo Bardi sempre atuou com dois conceitos: vida e saúde. Sua arquitetura combina elementos diretamente
ligados ao universo, o que está diretamente relacionado com a ligação que buscava com a natureza. Suas obras
não são desenhadas como sistemas autônomos, mas como uma entidade harmônica: o diálogo entre homem,
natureza e universo.

Quanto ao panorama arquitetônico que se desvincula cada vez mais dos homens reais, de carne e osso, para
acercar-se de uma figura idealizada, a arquiteta opina que esta ideologia atua em uma esfera totalmente distante
da vida propriamente humana. Para ela, seria fundamental que a arquitetura volte a se aproximar da escala
humana real e palpável, que seja flexível e resiliente.

O Centro Histórico da Bahia

Um dos principais pontos turísticos hoje, o Pelourinho² e toda sua vibração, deslumbra os visitantes de todo
canto do mundo. Situado no centro histórico de Salvador, o bairro Pelourinho foi objeto de estudo, agraciado
pelas mãos de Lina. No entanto, o projeto desenvolvido pela arquiteta no ano de 1986 não teve nada de turístico,
e por este mesmo motivo, foi abandonado pelo governo então atuante.

Lina trabalhou com a matéria que encontrou no centro histórico: a alma popular da cidade deveria ser
preservada, e não embalsamar as arquiteturas importantes- como foi o desfecho de tantos centros antigos
brasileiros. O plano deveria ser sócio-econômico, não expulsando os moradores de anos e anos e evitando a
‘invasão’ da classe média no bairro de intervenção.

“A Arte em si não consola, a economia junto com a


Poesia, sim”. Lina Bo Bardi.

2. Pelourinho, popularmente chamado de Pelô, é um bairro pertencente ao Centro Histórico de Salvador, capital do estado da
Lina na Casa de Vidro. Por Rômulo Fialdini.
Bahia, no Brasil. A palavra Pelourinho se refere a uma coluna de pedra, normalmente localizada no centro de uma praça. No
Fonte: Folha de São Paulo (12/04/2015).
período colonial do Brasil, era utilizado para castigar escravos. “Coração” da cidade, o Pelourinho concentra grande número de
monumentos de grande valor histórico.

PAISAGEM COMO EPIFANIA 46


Seu projeto ilustrava intervenções sutis, preservando sempre a identidade latente daquele local. A Casa do grupo
Olodum, por exemplo, que tanto chamou a atenção de Lina, recebeu pequenos arremates e seu interior abrigou
materiais e artesanatos próprios da região.

“A banda Olodum é uma organização negra muito importante da Bahia, do Pelourinho. Eu vi nela
a grande floresta, um grande continente, vi a liberdade, e tantas outras coisas maravilhosas”.

O que Lina procurou na recuperação do Centro Histórico da Bahia foi restaurar de acordo com os princípios
históricos, porém relevando o conjunto com um marco moderno. Para isso, buscou deixar intacto não somente o
aspecto exterior, mas principalmente o espírito interno de cada edifício. O projeto foi abandonado, e apenas
algumas peças do centro histórico chegaram a ser executadas e preservadas até hoje em dia. No entanto, o que
Lina tanto temia aconteceu, e o Pelourinho se transformou em terra de turista, de classe média, expulsando toda
a gente e, consequentemente, grande parte da vida que movia o bairro.

“Um lugar que não é bonito especialmente pela arquitetura, é bonito pela alma popular que
circula ali”. Lina Bo Bardi

Lina considerava arquitetura como poesia. Poesia porque deve fundir-se com a liberdade e a fantasia. Seus
discursos expressam esse desejo de arrematar a arquitetura aos aspectos mais inusitados e surpreendentes da
vida. A arquitetura assina a presença humana no mundo, registra as marcas do trabalho, a fatiga cotidiana do
homem, evoca suas feridas. Em outras palavras, a arquitetura dialoga com a característica humana de viver em
sociedade.

Casa do Olodum, antes e depois da restauração.


Fonte: Ferraz, Suzuki, Vainer, 1996;
e fotografia autoral.

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Aquarela para proposta de revitalização da Ladeira da Misericórdia (1987), peça integrante da restauração do Pelourinho, hoje
novamente em ruínas. Fonte: Ferraz, Suzuki, Vainer, 1996.

Vista do Solar do Unhão, conjunto arquitetônico tombado como patrimônio histórico em 1940. Após a restauração idealizada
por Lina Bo Bardi, o conjunto foi adquirido pelo Governo do Estado para sediar o MAM – Museu de Arte Moderna da Bahia. A
célebre intervenção de Lina respeita o passado histórico da edificação do século XVI. A escada foi concebida com um sistema de
encaixes de carros de boi, uma solução moderna que dialoga com a cultura material brasileira. Fotos de Nelson Kon.

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A linha manifesto

Os projetos de Lina vinham quase sempre acompanhados de discursos políticos e engajados da arquiteta. Dizia
que, se a problemática é fundamentalmente político-econômica, a tarefa do arquiteto é, apesar de tudo,
fundamental. A liberdade deveria ser coletiva; uma liberdade ciente da responsabilidade social, que destruísse as
fronteiras da estética, ‘campo de concentração da civilização ocidental’. Derrubar o fetichismo de modelos
abstratos, que consideram igualitários ‘o mundo das cifras e dos homens’, estava entre as premissas do trabalho
de Lina.

Bo Bardi esteve sempre atenta a questões políticas e sociais do país, o que se manifesta claramente em suas
obras e principalmente em seus discursos. Em tom mais engajado e cada vez mais distante de assuntos
unicamente formais, sua arte reclama que a arquitetura antes de mais nada, deve inundar-se de conteúdo
humano e servir com soluções para as carências urbanas mais urgentes. De fato, Lina clama por uma
arquitetura de sentido crítico:

“Desenvolvimento histórico não significa conciliação, senão exame crítico profundo, e sempre
presente, e no caso da arquitetura indispensável para não cair em uma abstração formal. (...) A
linguagem internacional abstrata não pode solucionar os problemas, sem antes a consideração,
baseada em um método rigoroso, dos problemas de vários países, problemas reais que devem ser
resolvidos com meios efetivos e não com os meios da crítica abstrata”.

Sua visão preconiza a potencialização dos espaços, canalizando peculiaridades, buscando as riquezas do lugar a
favor do projeto. Os discursos de Lina quanto à proposta do SESC Pompéia, por exemplo, evidenciam tal
estratégia:

“Na segunda vez que lá estive, um sábado, o ambiente era outro: não mais a elegante e
solitária estrutura Hennebiqueana mas um público alegre de crianças, mães, pais, anciãos
passava de um pavilhão a outro. Crianças corriam, jovens jogavam futebol debaixo da
chuva que caía dos telhados rachados, rindo com os chutes da bola na água. As mães
preparavam o churrasquinhos e sanduíches na entrada da rua Clélia: um teatrinho de
bonecos funcionava perto da mesma, cheio de crianças. Pensei: isto tudo deve continuar
assim, com toda esta alegria”.

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O SESC Pompéia, executado em 1977 em São Paulo, foi uma homenagem ao comum, à gente, à liberdade
pública. A respeito deste projeto, o complexo foi dedicado aos jovens das padarias, açougues, quitandas, e
lojinhas da região que o frequentavam em meados dos anos 70. Lina trabalhou com o ‘caos’ da abandonada
Fábrica de Tambores da Pompéia, e transformou o lugar num centro de lazer, um verdadeiro ode ao povo
brasileiro. Pouco se alterou das belas estruturas originais, próprias dos projetos ingleses do começo da
industrialização europeia (meados do século XIX). A ideia inicial de Lina foi recuperar o Conjunto como uma
‘arquitetura pobre’, não no sentido pejorativo, mas como uma máxima ao valor popular daquele lugar.

“Os espaços de um projeto de arquitetura condicionam o homem, não sendo verdadeiro o contrário,
e um grave erro nas determinações e uso desses espaços pode levar à falência toda uma estrutura”.

O logotipo promocional do centro de lazer, criado pela própria arquiteta, ilustra bem este conceito:
representa a chaminé do conjunto que, ao invés de cinzas, despeja flores. Chamou todo o complexo de
‘Cidadela’, um termo que denota as aspirações urbanísticas que Lina deu ao complexo, como um modelo
urbano ‘apaixonante’. (Oliveira, 2006). A cidadela também expressa uma ideia de proteção, de “bunker’. A
arquiteta afirma que, ao projetar o complexo, pensou nos inúmeros fortes militares brasileiros como
referência. Durante este mesmo período, este link apareceu em mais três obras: no teatro Oficina (1984), na
reabilitação do Forte de São Pedro, em Salvador (1979) e na Fábrica de Perfumes Rastro (1977).

Logotipo elaborado por Lina,


e estudo para sinalização do SESC Pompéia.
Fonte: Oliveira, 2006.

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Foram preservadas as estruturas de concreto, as tubulações metálicas, paredes de tijolos a vista, e a
pavimentação da rua em paralelepípedo, o que garantiu resgatar a identidade da antiga fábrica. O aspecto de vila
operária, com rua central e pavilhões dis
distribuídos
tribuídos ao longo do eixo, logo seria subvertida em uma imagem de
lazer, e do trabalho a serviço do prazer. Uma visão mais doce do mundo.

É fato que Bo Bardi imprimiu nas suas obras uma linha mestra, o que criou uma certa unidade no pequeno
conjunto de obras realizadas: gárgulas, árvores,
ores, pilares, escadas e carrosséis
carrossé se multiplicam na arquitetura de
Croqui-estudo para a Lanchonete do Bloco Esportivo Lina. No entanto, a maneira sensível com que projeta, tratando a arquitetura como uma matéria multidisciplinar
do SESC Pompéia (1984). Arquiteta Lina Bo Bardi, pertencente a um sistema cultural é o que transcende
nscende seu trabalho. Além disso, o lugar e principalmente a
com a colaboração de Marcelo Ferraz e André Vainer.
história de cada espaço que projetou, foram instrumentos diretos nos seus projetos.
Arquivo do Instituto Lina Bo e P.M. Bardi.

Titular Lina Bo Bardi apenas como arquiteta seria um reducionismo, e deixaria de lado trabalhos que guardam
mu
muito
ito de seu legado, como suas incursões pelo design, crítica cultural, cenografia, curadoria, museologia, entre
outras. (Ferraz, 2014) Assim sendo, sua obra não se encaixa em nenhuma corrente arquitetônica previsível – esta
interpretação torna confusa e sal
salvaguarda
vaguarda a potência e a atualidade do trabalho de Lina. Tão pouco inseri-la
inseri em
uma linha de pensamento originária das vanguardas europeias pode explicar a essência das obras.

O leque de obras de Bo Bardi dobra espaços permissíveis, conduzindo a uma potência


potên que já corria pelo lugar
onde ela intervém. O olhar além da superfície, ou seja, saber entender o genius loci do lugar, ilustra o cerne do
trabalho de Lina. E um lance a arquiteta dobra, desdobra, replica (le
( pli, dobra em francês), o que não
impossibi
impossibilita
lita a desdobra (criação). Como metáfora, em arremates sensíveis, feitos em um papel não branco e
repleto de história, Lina não compôs origamis (dobras disciplinadas), mas sim uma arte de dobras infinitas, que
se redobram e desdobram conforme o contexto. O famoso não-cristalizar
cristalizar da história, mas transformá-la
transformá em
potência atual. (Almeida, L.P. 2014)

As ruelas vivas do SESC Pompéia. Foto de Nelson Kon.


Fonte:http://www.archdaily.com.br/br/0140036/fotografi
a-e-arquitetura-nelson-kon

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Do ponto de vista conceitual, é possível notar a compreensão de Lina quanto á arquitetura não intacta, a
interpretação do espaço que passa por câmbios graduais. Bo Bardi buscou a ordem dentro do caos; teve enorme
respeito pelo pré-existente e lidou com extrema modéstia onde ela interveio. Não tinha o desejo de transformar,
mas, ao invés disso, intuía que era preciso escutar, ler o meio, entender a vocação do lugar. Nada mais
contemporâneo, diga-se de passagem.

Como num jogo responsável e cheio de intenção, Lina Bo Bardi soube trabalhar e principalmente valorizar o
patrimônio cultural do Brasil; digamos que deu colo e pôs á luz a alma ‘verde-amarela’, talvez com maior
intensidade que arquitetos naturalmente brasileiros. Em tempos que se clama por respostas aos problemas
sócio-economicos e ambientais que atualmente enfrentamos, o legado de Lina parece encaixar com perfeição:
somente através do compromisso com as causas humanas mais elementares e com o contexto que nos abriga, a
arquitetura pode alcançar seu verdadeiro sentido, o que vai muito além de resultados estéticos. A arquitetura
deve dialogar com o novo humanismo.

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CENÁRIOS PORTUÁRIOS 2

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2.1 Um segundo diálogo: processos da revitalização portuária

A relação entre o porto e a cidade sofreu metamorfoses ao longo do tempo. Muitas civilizações nasceram
estreitamente ligadas ao seu porto e se desenvolveram graças ás atividades portuárias. No entanto esta condição
muda a partir da revolução industrial no século XIX, quando o novo comércio internacional intensifica as
atividades portuárias e reclama por estruturas cada vez mais modernas e especializadas.¹

Em detrimento das novas instalações portuárias, mais afastados do centro urbano e melhor preparadas para
novas demandas do setor, as antigas áreas portuárias passam por um processo de degradação. Num piscar de
olhos, armazéns, guindastes e toda a infra-estrutura de portos originais deixam suas funções no passado para se
transformarem em campos obsoletos; caminham na direção do estado de ruína, pálidas centelhas de memória.

O cenário que se silencia, normalmente próximo ao berço das cidades, carrega significados relativos à identidade
do lugar e, por conseguinte, sua revitalização representa oportunidades de recuperação de valores culturais que
desapareceram com a desativação de atividades do porto. Han Meyer (1999) menciona a importância deste
resgate, que segundo ele supera a função primária que motivou a construção do porto. ²

A visibilidade deste processo parece ter consumido todo um conjunto de peças em prol do desenvolvimento local.
Respostas a este discurso não tardaram em aparecer, principalmente na Europa Oeste e América do Norte, onde
o renascimento e a ressignificação destes lugares começa a entrar na roda de propostas urbanas. (MEYER, 1999)
Propostas estas que significam a mudança das tradicionais atividades portuárias para usos ligados a lazer,
cultura, serviços e habitação, com o objetivo maior de reconectar o porto ao tecido urbano. (VIEIRA, 2011).

1. León, Ana Maria Piedra (2015) Cuando el puerto era ciudad. Estudio de la relación ciudad-puerto antiguo. Seminário
Internacional de Investigación en Urbanismo, Barcelona.
2. Meyer, H. (1999) City and Port. Utrecht: Internacional books.

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Nos últimos anos, urbanistas têm prestado mais atenção ao valor cultural dos espaços urbanos. Prova disso são
os conceitos que pipocam nas propostas de planejamento urbano como ‘identidade cultural’, ou ‘valor cultural’.
Os planos para revitalização de antigas áreas portuárias são um dos exemplos mais pragmáticos desta nova onda
urbanística em favor da cultura local. (MEYER, 1999)

Embora cada cidade tenha características distintas e únicas, os princípios básicos sobre a evolução das áreas
portuárias seguem uma linha mestra. Este padrão foi amplamente analisado por Hoyle (1988), e seu estudo -
desenvolvido com base em portos revitalizados dos Estados Unidos e Europa - concluiu que existem seis estágios
comuns dentro do processo de desenvolvimento de portos. A análise foi sintetizada em um quadro desenvolvido
por Hoyle, e sua utilização também pode ser considerada para casos latino-americanos – já que estes parecem
seguir uma lógica similar, embora com alguns anos de defasagem.³

O quinto estágio analisado por Hoyle denominado “Renovação das frentes-d’água” representa o momento que se
iniciam as revitalizações portuárias. Os objetivos e diretrizes destas operações urbanas são simliares em muitos
casos, no entanto o financiamento e escala costumam ser diferentes. A grande maioria das propostas de
ressignificação de portos visam a redefinição do porto no contexto urbano, a mudança de imagem e o crescimento

Estágios de evolução dos portos. Quadro de Hoyle (1988) econômico da cidade. (VIEIRA, 2011)
com adaptação de Vieira ( 2011).
As propostas partem da idéia de que os portos são a extensão dos centros urbanos. Logo, revitalizar as áreas
portuárias significa dar oportunidades de conexão entre a população e as margens da cidade. Criar convites é a
palavra chave: reconfigurar lugares onde as pessoas queiram se divertir, viver e trabalhar.

“Desde a década de 60, houve uma demanda de espaços públicos de recreação e lazer. Semelhante a outros
espaços abandonados, frentes-de-água revelaram-se um espaço adequado para implantar tendências emergentes
da sociedade. Portanto, recreação - incluindo instalações comerciais, conjuntos habitacionais, unidades de
entretenimento, instalações desportivas, centros culturais e parques – tornou-se o conceito mais dominante na
definição de frentes-de-pagua contemporâneos.” ( BUTUNER, 2006, p.3)

3. VIEIRA, O. (2011) As revitalizações dos espaços portuários de Puerto Madero – Buenos Aires – e dos Cais Mauá – Porto Alegre
– e suas relações com o entorno. Por uma análise de aproximação. Dissertação de mestrado, UFRGS, Porto Alegre.

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A revitalização de espaços portuários também é vista muitas vezes como city marketing; em outras
palavras, como estratégia utilizada por cidades pós-modernas com o objetivo da espetacularização e
promoção das mesmas. A área portuária transformou-se em uma “fórmula de sucesso internacional”.
(MEYER, 1999) As margens das cidades ganharam novos significados, assim como a definição de
espaço público se transformou. Foi precisamente o conceito universal de espaço público moderno que
dirigiu novas diretrizes projetuais: precisamos de espaços múltiplos, que garantam usos e públicos
heterogêneos.

Projetos de revitalização de frentes-de-água mundialmente conhecidos, como o caso de Bilbao, na


Espanha, transformaram a imagem das suas cidades. O impacto econômico destas operações
urbanas é notável: o número de visitantes aumenta consideravelmente na maioria dos casos, e com o
desenvolvimento da nova indústria do turismo, muitas vagas de emprego são criadas. Outra
característica comum destas operações é o envolvimento de ambos setores - público e privado.

Vieira defende que três aspectos devem ser considerados como chaves de sucesso para um projeto de
revitalização de frentes-de-água: o desenvolvimento de um master plan e de um plano de
implementação, o processo de entrega do projeto (diálogo entre público e privado, tempo e marketing
adequados) e o equilíbrio nas esferas econômica e social. (VIEIRA, 2011)
Passeig de Colom – Moll de la Fusta antes e depois do
projeto de revitalização. A dualidade do domínio público e
No caso de Barcelona, o funcionamento conjunto de elementos tanto urbanos como portuários gerou
social constitui uma das marcas mais distintivas na
múltiplas formas de interação entre a população da cidade e de visitantes temporais (turistas ou
abordagem do espaço público em Barcelona na década de
1980. Fonte: MEYER, H. (1999) City and Port. Utrecht: trabalhadores do porto), o que permitiu também um enriquecimento cultural. (PIEDRA, 2015) No
Internacional books. caso de revitalização de áreas portuárias, o resgate de antigos valores identitários se traduz em
recuperação de vitalidade – uma característica fundamental nos dias de hoje, que a cidade portuária
carrega, ou carregava nos seus tempos áureos.

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2.2 Do berço ao legado: o contexto brasileiro

“Entre os marinheiros correm rumores. As doze naus navegam há semanas sem ver terra.Os veteranos do mar não
compreendem: eles não iam para as Índias pela rota que Vasco da Gama acabara de descobrir? Como então se
afastavam tanto da África, rumando para o ocidente? E o perigo? ((...)
...) O sol está desaparecendo quando a notícia se
espalha: existe alguma coisa no mar.Toda a tripulação dos barcos corre para a amurada. (...) Na proa de seu barco,
um homem não tira os olhos da montanha que a noite vai apagando. É Pedro Álvares Cabral a contemplar
c a terra
que descobrira.”

Desembarque de Cabral em Porto Seguro, de Oscar P. da Silva. Museu Paulista


Fonte: Fonte: Civita, Victor (1969) Grandes Personagens da nossa história. Editora Abril Cultural, São Paulo.

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A história do Brasil começa com fé e audácia. A côrte portuguesa é festa com as heróicas explorações, mas os
mares estão cheios de armadilhas. A costa brasileira marcou o começo de toda uma nação, e segue sendo
protagonista da nossa cultura. Num país onde as sedes de diversas capitanias ficavam à beira-mar, governar
significava navegar, vencer o mar.

Desde o preâmbulo desta história, dos rudimentares atracadouros até áreas portuárias modernas e equipadas do
século XIX, os portos foram peças chaves no desenvolvimento do Brasil. Refletem não só a história do
descobrimento de um território, mas também a economia do país, que deles exige transformações que
acompanhem um contexto em ascensão.

Desde a Lei de Modernização dos Portos (1993), os cenários portuários vêm se adequando ás novas tecnologias.
Uma das transformações mais relevantes foi movida pela introdução dos contêineres e seu inovador processo de
transporte de mercadorias. No Brasil, o porto de Santos foi o pioneiro a receber cargas armazenadas neste novo
formato. Foi no ano de 1981 que o porto santista inaugurou o primeiro terminal especializado, e assim o país
passou a integrar a nova ordem econômica marítima. Adaptar-se as novas dinâmicas do comércio exterior
significou investimentos altos, um processo de modernização de equipamentos ímpar na história do Brasil. Em
pouco tempo, mais de 20 portos brasileiros ergueram instalações apropriadas para receber os “formidáveis cofres
de aço”. (CALDAS, 2008)

Assim, antigas instalações portuárias se tornaram obsoletas. Outrora catalisadores de desenvolvimento urbano,
muitos portos sofreram com o declínio e degradação por não responderem às novas demandas do mercado. O
caso de revitalização portuária brasileiro que foi escolhido para compor a presente pesquisa compartilha histórias
em comum com tantos outros portos do Brasil. O que nasceu na baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, revela
suma importância para a história do Brasil. O porto serviu de abrigo às naus dos primeiros colonizadores no
século XVI; trouxe louros à cidade; e sofreu um longo e controverso processo de ressignificação. Um exemplo que
de certa maneira inaugura um tema que vem crescendo no panorama urbanístico do Brasil: renovar,
preservando.

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O Porto Maravilha, Rio de Janeiro

A bela paisagem da baía do Guanabara, no Rio de Janeiro, é testemunha dos episódios


epi mais significativos da
história do Brasil. A zona portuária está conectada com a famosa orla sinuosa, recortada entre morros como o
Pão de Açúcar e o Cara de Cão, com a Praça Mauá, e com uma área que preserva inúmeros edifícios tombados
como patrimô
patrimônio histórico. Em tempos remotos, a generosa oferta de pau-brasil
pau no litoral fluminense atraiu os
colonizadores portugueses e corsários franceses, e a paisagem de areias claras e águas calmas perpetuou na
memória dos novos habitantes. Foi graças a sua loca
localização
lização estratégica que o porto do Rio de Janeiro ganhou
uma nova importância além de sua beleza: Portugal transladou a capital da colônia de Salvador para a cidade
fluminense no ano de 1763. (CALDAS, 2008)

A riqueza da região no início do século XIX, ali


aliada
ada à força política dos barões do café, culminou numa nova fase
do porto. Uma combinação de ferrovias com embarcações a vapor fomentaram novas logísticas no cais do Rio. Na
Lagoa Rodrigo de Freitas, Corcovado, Ipanema e Leblon.
Obra de Nicolao Antonio Facchinetti, 1869.
entrada do século XX, o porto já conta com enormes unidades independentes, uma “miscelânea
“mi de cais” que

Fonte:http://joserosarioart.blogspot.com.br/2011/06/facc representava a porta de entrada de um país emergente. As obras de embelezamento e saneamento da cidade,
hinetti.html protagonizadas por Pereira Passos incluíam a renovação do porto. O novo porto foi inaugurado em julho de 1910,
contando com cinco armazéns e um conjunto de guindastes a vapor.

Dentro do plano de reformas urbanas de Pereira Passo, amplas e modernas avenidas foram construídas sobre
aterros iniciados ao final do século XIX, como a Avenida Central, Francisco Bicalho e Rodrigues Alves. Projetadas
para ligar o novo porto com o local de escoamento de cargas, as vias desenharam a imagem do aterro que, um
século mais tarde, viria a ser a área definida como “potencial adicional de construção”, que possibilitou o
financiamento das operações do Porto Maravilha.

PAISAGEM COMO EPIFANIA 59


Geografia original (em sépia) e a área acrescentada pelos aterros. Fonte: COSTA, A. (2015) Porto Maravilha: A evolução da
região portuária e os cinco primeiros anos da operação urbana consorciada. EPPGG,
EPP Rio de Janeiro.

Após a abertura do novo porto (1910), a região experimentou período de desenvolvimento: a região atraiu novos
moradores e novas oportunidades de negócios. Nas décadas seguintes terrenos da área aterrada foram
lentamente ocupados, pri
principalmente
ncipalmente por fábricas e oficinas, acentuando o caráter de trabalho popular da área.
No entanto, a zona portuária, apesar de atrelada ao centro da cidade, passou a vivenciar os efeitos de
descentralização de atividades, por dificuldades de fixar novos mo
moradores.
radores. Os elos que promoviam as ligações
entre porto e cidade foram lentamente sendo rompidos.

A modernização atrelada á “invasão” do capital e do maquinário estrangeiro, as operações portuárias foram


transferidas para uma nova área, mais ampla e desim
desimpedida – a Ponta do Caju, orla contígua do porto. Por
conseguinte, muitos galpões e armazéns foram desocupados e abandonados. Apesar da forte identidade cultural
que estes espaços carregam, o cenário sofreu um triste processo de marginalização e isolamento.

PAISAGEM COMO EPIFANIA 60


A febre rodoviária agravou ainda mais as distâncias entre porto e trama central, e um lugar com tamanha
importância histórica e cultural se isolou definitivamente após a construção do Elevado da Perimetral. Era
urgente repensar e revitalizar a região portuária, antes que a degradação atingisse níveis irreparáveis. (COSTA,
2015)

O Porto Maravilha foi a resposta.

Aliado a onda mundial de planejamentos urbanos em prol de uma cidade mais integrada e otimizada, áreas
residuais como as de antigos portos se transformam em possíveis lugares catalisadores de novos usos e novas
centralidades. O exemplo de Barcelona, com as propostas de reocupação da região costeira do Port Vell e da
Barceloneta, e do vizinho Puerto Madero, em Buenos Aires, inspiraram os urbanistas cariocas a dar os primeiros
passos em direção a revitalização do porto.

O Porto Maravilha foi concebido para recuperar a infraestrutura urbana, a rede de transportes, o meio ambiente
e o patrimônio histórico e cultural da Região Portuária. O projeto prevê melhoria das condições habitacionais da
área, além da atração de novos moradores, de novas empresas e serviços que estimulem a qualidade e
crescimento da economia.

O novo sistema de transporte proposto privilegia o transporte público coletivo, valora proximidades entre trabalho
e moradia, mais espaços para pedestres e implantação de ciclovias. O Elevado da Perimetral é demolido e
inúmeras peças de valorização urbana são construídas, como o Museu do Amanhã, a Nova Orla Conde e o Museu
de Arte do Rio (MAR).

Quanto ao compromisso social, parte dos recursos foi destinada para a valorização do Patrimônio Material e
Imaterial da área; e programas de desenvolvimento social foram implantados para manter.

Museu da Arte do Rio de Janeiro (MAR), arquitetos


Jacobsen e Bernardes.

1.Porto Maravilha. Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro.

PAISAGEM COMO EPIFANIA 61


Dia 6 de setembro de 2015 foi inaugurada a reforma da Praça Mauá, situada nas imediações do porto da cidade.
Além de fazer parte da estratégia de remodelação da frente portuária do Rio, a revitalização da praça tem valor
simbólico. A abertura da Avenida Rio Branco, feito marcante na modernização protagonizada projetada por
Pereira Passos, partiu da Praça Mauá, que recebeu em 1910 a estátua dedicada ao Barão de Mauá.
(ANDREATTA, V. 2015)

No espaço recuperado após a demolição da Perimetral do Porto foi construído um passeio ajardinado de três
quilômetros de extensão, por onde transcorre o VLT (Veículo Leve sobre trilhos) que conecta a nova zona
portuária com o aeroporto Santos Dumond, a Bahía da Glória e o Terminal da Praça XV.

A operação urbana tem por finalidade promover a reestruturação urbana da área por meio da ampliação,
articulação e requalificação dos espaços livres de uso público da Região do Porto, buscando a melhoria da
qualidade de vida dos moradores e a sustentabilidade ambiental e socioeconômica da área. As intenções foram
as melhores possíveis, e o Porto Maravilha segue em obras para requalificar uma área de tanta importância para
a cidade e para toda a nação. Contudo, assim como em muitos outros exemplos de revitalização portuária, as
controversas se mostram presentes.

Os primeiros edifícios que foram construídos, segundo Verena Andreatta, mostram os desastrosos efeitos de uma
política que cedeu grande parte das decisões ao conjunto de empresas privadas e de um Plano Diretor que se
Antes e depois da revitalização do porto do Rio de Janeiro. ausenta quanto á definição volumétrica das futuras implantações e utiliza somente o coeficiente de
Fonte: http://portomaravilha.com.br/ aproveitamento de cada lote de terreno.².

2. ANDREATTA, V. (2015) La reforma del Water Front de Río de Janeiro. Revista GeocritiQ, Plataforma digital ibero-americana
para la difusión del trabajo científico.

PAISAGEM COMO EPIFANIA 62


Apesar da grande visibilidade do Porto Maravilha, o processo de revitalização caminha para assemelhar-se á
história do Pelourinho, em Salvador, onde criou-se uma certa artificialidade para elitizar o local e fomentar o
turismo. A impressão atual da Praça Mauá é plástica, estética, mas pouco viva.

No discurso da proposta inicial, a intenção de introduzir novos usos e atividades, de forma a “negociar” com o
contexto existente era clara. No entanto, o desejo de ampliar o poder sócio-econômico e arquitetônico da área
ta,bem estava expresso nas entrelinhas, principalmente nos altos índices de verticalização. Segundo análises de
dinâmicas imobiliárias realizadas já na época de projeto, o Porto Maravilha teria efeitos diretos sobre o mercado
imobiliário, como o aumento dos valores de serviços e comércios locais, além da conseqüente valorização de
imóveis. O fenômeno de gentrificação dará as caras, mais cedo ou mais tarde. ³

Os resultados atuais refletem o caráter homogêneo de usos, público e imagem. O grande temor é que o Porto
Maravilha consiga renovar a área portuária de maneira totalizante – será tão fácil apagar quase 450 anos de
história?

O que a experiência do Rio de Janeiro deixa de legado é que é fundamental a discussão do projeto como um todo,
adequando-o aos interesses da população e não do mercado imobiliário. O caráter social que o projeto tinha como
diretriz cai por terra na medida que a valorização imobiliária gera movimentos especulativos que acabam
expulsando em curto prazo os moradores residentes, o que tende a alimentar as favelas.

3. MOREIRA, C. ( 2011) Porto do Rio, um apelo. Revista Vitruvius. Minha cidade. Disponível em:

Imagem do Porto Maravilha atuais. http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/12.134/4024

Fotos autorais, 2016.

PAISAGEM COMO EPIFANIA 63

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