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Antropologia, ficção e queda em abismo
Pedro
de Nieme
yer Ce
sarino
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neira que conceitos tais como os de indivíduo, de autoria, de substância,
de tempo, de espaço, de sujeito, entre outros, foram desestabilizados para
tentar acomodar problemas pertencentes ao universo xamanístico e sua
singular concepção de pessoa, marcada por configurações recursivas e to-
pologias complexas. São essas configurações que me levaram a refletir, a
partir do trabalho de tradução das artes verbais xamânicas, sobre o estatu-
to da enunciação multiplicada entre distintos pontos de vista, que distri-
buem a função-autor (Foucault 2009) em uma série de posições virtuais
irredutíveis ao que modernos concebem como um sujeito solipsista, hu-
mano e autocentrado. Há décadas anunciado por Lévi-Strauss ao longo
das Mitológicas, o papel da virtualização para o pensamento ameríndio
foi ampliado mais recentemente pelo trabalho de Viveiros de Castro, que
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teve desdobramentos em meus estudos sobre os regimes xamanísticos Roteiros,deretornos: leituras de Tristes
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trópicos
enunciação integrados a outras diversas pesquisas sobre tradução de artes
Apresentação —
verbais ameríndias realizadas nos últimos anos (ver Choquevilca,Eduardo
Heurich, 2015; Ramos, 2018; Guerreiro, 2015, entre outros). Aproveitan-
2011; Jorge de Oliveira
Lévi-Strauss e o cubismo —
do o espaço aberto pelo trabalho pioneiro de Viveiros de CastroEduardo
(1986) Jorge de Oliveira e
Justin Greene
sobre a estrutura polifônica dos cantos araweté, tais estudos demonstram
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Encontrar uma linguagem? Claude
de maneira rigorosa como o problema da virtualização do conhecimento
Lévi-Strauss e a literatura —
narrativo descoberto por Lévi-Strauss tem reflexos na própria composi-
Vincent Debaene
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as Mitológicas, mas apresentado por mim em uma longa versão versifica-
da. Não menciono essa tradução aqui por acaso, pois é justamente ela que
nos conduzirá de volta ao contraste com a escrita de ficção.
Textos ficcionais não pretendem, ao contrário do que dizia Strathern,
produzir uma tensão no vocabulário analítico de partida, nem obrigatoria-
mente oferecer reflexões que sejam coextensivas a coletivos realmente
existentes, com os quais alguma relação de objetividade científica, mes-
mo que instável e provisória, precisa ser mantida. Isso não quer dizer que
contos ou romances virem as costas para a verdade: bem ao contrário, o
que fazem é submetê-la a outro regime de verossimilhança para dela ex-
trair consequências que não são facilmente expressadas através dos gêne-
ros tradicionais das ciências humanas. É o que explica Juan José Saer:
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mos que formam quase-mundos” (2017: 34).
Tratamos aí de um universo de existência, vale frisar, bastante distin-
to daquele das ontologias ameríndias, para as quais faz sentido assumir a
posição de realidade de espíritos e duplos de pessoas que, não por acaso,
frequentemente coincidem com os antepassados que povoam as narrati-
vas míticas. Longe de serem personagens de ficção, tais figuras costu-
mam com alguma frequência visitar o plano de existência atual através da
intermediação do corpo dos xamãs. As presenças que povoam os mundos
ameríndios, distintas portanto de personagens de ficção, tampouco se
confundem com o que Soriau chamava de “nuvem dos virtuais”, ou seja,
“uma quantidade de esboços ou de começos, de indicações interrompidas
[que] desenham, em torno de uma realidade ínfima e cambiante, todo um
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porânea. A diferença entre os dois gêneros metropolitanos de escrita so-
bre os quais falávamos (o ensaio etnográfico e o romance de ficção) po-
deria ser vista sob um outro ângulo, que permite compreendê-los como
um exercício de variação em torno de problemas comuns, a despeito da
incompatibilidade ontológica que caracteriza suas fundações.
Afinal, ambos se submetem à “imaginação mitopoiética enquanto fa-
culdade da variação”, como diz Viveiros de Castro (2017: 261 — tradu-
ção minha) a partir de sua reflexão sobre os pensamentos de Lévi-Strauss
e Patrice Maniglier. Isso quer dizer que tanto a literatura de ficção quanto
a escrita etnográfica (mas também a filosofia ocidental e outros regimes
de pensamento não ocidentais) estão sujeitos ao “regime estrutural geral
da verdade enquanto variação, da verdade na variação” (idem ibidem)
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havia descoberto, de resvalar para as quedas em abismo que constituem a
composição mitopoiética, cuja tessitura se exibe nas Mitológicas como
em poucas outras obras, e talvez a despeito das intenções iniciais de seu
próprio autor.
Embora tenha lido o estudo de Viveiros de Castro (2017) sobre a va-
riação narrativa depois de ter escrito o romance Rio acima, pude perceber
que suas reflexões estavam diretamente relacionadas a tal narrativa. Mi-
nha preocupação fundamental se inseria no ambiente da reflexão de Lévi-
Strauss (1991) sobre a chegada dos brancos, pensada pelos ameríndios
via o problema da ideologia bipartite e seu perpétuo desequilíbrio, desen-
volvido na História de lince. Por meio de narrativas que tratam dos pares
de gêmeos assimétricos (mais novo/mais velho; trapaceiro/benevolente,
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do estrangeiro, sendo os brancos a sua encarnação exemplar.
O estudo do pensamento narrativo marubo, desta forma, corroborava
de maneira muito clara o problema da afinidade tal como elaborado pela
etnologia americanista, ainda mais quando pensado em relação ao papel
reservado aos brancos na História de lince. Algo, contudo, não me pare-
cia ser suficientemente compreensível pelo legado dos dois mestres da
antropologia (o francês e o brasileiro) ou, mais propriamente, não perten-
cia exatamente ao escopo do pensamento que eles se propuseram a cons-
truir. É certo que, do ponto de vista indígena, brancos são considerados
como espécies de cunhados potenciais com os quais se torna possível es-
tabelecer uma relação de aliança, isso quando não são enquadrados em
uma posição ainda mais afastada, ou seja, a dos inimigos. Sabemos tam-
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bém que, alternativmente, os brancos podem ser aparentados por seus an-
fitriões indígenas, dos quais recebem nomes e posições de parentesco,
mesmo que com eles não estabeleçam relações matrimoniais. O que não
necessariamente se conhece é a dimensão afetiva real que tal vínculo pro-
duz entre pessoas que viveram juntas por determinado período, para en-
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tão se distanciarem em suas realidades radicalmente distintas (a da vida
em uma cidade cosmopolita e em uma comunidade na floresta). Essa di-
mensão afetiva é toda permeada por conflitos, diríamos, por equívocos
tradutórios (Viveiros de Castro 2004), por expectativas cruzadas, muito
frequentemente frustradas, entre pessoas de origens civilizatórias distin-
tas e, mais do que isso, profundamente afetadas pela herança do genocí-
dio. O livro recente de Aparecida Vilaça (2018) sobre a relação com Pale-
tó, seu pai Wari’, aliás também construído para além das fronteiras narra-
tivas da antropologia, é uma exceção à escassez de publicações dedicadas
a esmiuçar tais encontros.
Não quero com isso dizer que Lévi-Strauss ou Viveiros de Castro não
se dedicaram a refletir sobre o assunto. O que pretendo mostrar é que a
dimensão propriamente afetiva e íntima de tal desencontro civilizatório,
salvo engano meu, não foi e nem deveria necessariamente ser explorada
por tal antropologia, muito embora o enquadramento conceitual e socio-
lógico por ela oferecido certamente seja fundamental para pensar sobre
esses afetos. Enquanto vivia com os Marubo, ao longo dos aproximados
quatorze meses em que morei na comunidade Alegria, eu me perguntava
frequentemente se ou até que ponto era efetivamente amigo das pessoas
de que era próximo, sabendo desde o início que a instituição e os afetos
da amizade poderiam muito bem projetar um equívoco de minha parte so-
bre um mundo no qual eles não existem da mesma forma. Fui muito bem
recebido e bem tratado ao longo de toda minha estadia, tive poucos con-
flitos: não é essa a questão a que me refiro. Não se trata de algo pessoal,
mas sim de um problema especulativo que, evidentemente, eu tentava
pensar via minha própria experiência, mas sobre o qual não encontrava
ecos na literatura antropológica com a qual dialogava. Afinal, o que pode-
ria ser a instituição e o vínculo de amizade entre mundos radicalmente
distintos — um no qual o parentesco coincide com a própria sociedade e,
outro, no qual a cisão entre esfera pública e privada molda os afetos e a
intimidade?
Foi para rodear essa questão — não para resolvê-la, é certoFoi para rodear essa
— que
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me lancei, um tanto ao acaso, na construção de um romance. É aqui que
questão — não para
volta a fazer sentido a reflexão de Saer acima destacada: a ficção vem
resolvê-la, é certo —
para “pôr em evidência o caráter complexo da situação”. Para tanto, re-
que me lancei, um
corri não exatamente aos mitos que traduzi ou aos que estudei em Lévi-
tanto ao acaso, na
Strauss, mas a uma imagem geral do pensamento indígena reconstruída
através de um povo, de uma cosmologia e de um narrador fictícios. construção
Em li- de um
nhas gerais, a história de Rio acima narra a última viagem de umromance.
pesqui-
sador para a aldeia em que viveu, na tentativa de recolher e de traduzir o
último mito que lhe faltava, precisamente o do “pegador de pássaros” —
narrativa que, como disse acima, eu mesmo gravei e traduzi entre os Ma-
rubo. O narrador, um pesquisador branco, vai então apresentando seus
vínculos com parentes próximos, cujos nomes foram deliberadamente
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da filiação” característica do Ocidente. É o que podemos ver no problema
do incesto-tabu ameríndio, que se estabelece entre irmãos de sexo cruza-
do, e não entre pais e filhos, como no caso ocidental. O incesto edipiano é
uma questão de filiação; o ameríndio trata, porém, dos riscos de cancela-
mento da aliança, derivados da exclusão potencial do cunhado e, portan-
to, da possibilidade de abertura do parentesco para a alteridade. A compe-
tição entre irmãos do mesmo sexo é, por sua vez, devedora do problema
causado pelo “excesso” de homens. “Entre os ensinamentos que os Ba-
niwa passam aos jovens”, escrevia a propósito Lévi-Strauss, “está o de
‘não seguir as mulheres de seus irmãos’. Uma visada teórica sobre a soci-
edade mostra de fato que todo homem, para que possa com segurança ob-
ter uma esposa, deve poder dispor de uma irmã. Mas nada exige que ele
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dos sociais e existenciais (o agenciamento cosmológico do parentesco e o
regime imaginativo do personagem de ficção). Ainda assim, me parecia
que tal torção precisava exprimir, via o regime de signos da literatura, o
profundo enraizamento político dos mundos desencontrados que, de toda
forma, seguem vivendo juntos. É por isso que Rio acima propõe um ca-
minho inverso ao do heroísmo modernista: a tentativa de “colecionar”, de
traduzir e de estudar uma narrativa indígena via circuitos muito distintos
daqueles pelos quais ela faz sentido em seu modo original de enunciação,
poderá produzir efeitos contrários ao da suposta vantagem intelectual do
estrangeiro? Poderá, ainda mais, engendrar alguma espécie de armadilha,
algum envolvimento em posições que extrapolam o que ocidentais conce-
bem como mero texto ou artifício de linguagem e que, ao contrário, tal-
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Bibliografia
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Ramos, Danilo Paiva. 2018. Círculos de coca e de fumaça. São Paulo, Hedra.
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Strathern, Marilyn. 1988. The gender of the gift. Berkeley, University of California Press.
Vilaça, Aparecida. 2018. Paletó e eu — memórias de meu pai indígena. São Paulo, Todavia.
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Lívia Melzi Ensaio para um diário visual
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