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JORGE ANDRADE EM RASTO ATRÁS:

LENDO TCHEKHOV

JORGE ANDRADE IN RASTO ATRÁS: READING TCHECOV

Larissa de Oliveira Neves Catalão


Professora do Departamento de Artes Cênicas
da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.

Resumo: Esse artigo consiste numa análise da peça Rasto atrás, de Jorge Andrade, realizada por meio da
comparação com duas peças de Anton Tchekhov, As três irmãs e A gaivota. O objetivo consiste não só em
demonstrar o modo como o autor brasileiro se apropriou de elementos da dramaturgia tchekhoviana para
criar sua peça, como também em utilizar os textos russos para enriquecer o exame analítico.
Palavras-chave: Jorge Andrade; Rasto atrás, Anton Tchekhov.

Abstract: This paper contains a study of the play Rasto atrás (Track behind), of Jorge Andrade, accomplished
using a comparative analysis with two of Anton Chekhov’s plays: The three sisters and The seagull. The aim
is not only to demonstrate how the Brazilian writer has applied elements of the chekhovian dramaturgy to
create his play, but also to use the Russian texts to enrich the analytical examination.
Keywords: Jorge Andrade; Track behind; Anton Chekhov.

J
orge Andrade (1922–1984) nunca negou no cenário, em estampas fotográ icas de
quais fontes lhe serviram de inspiração Tchekhov, Eugene O’Neill, Arthur Miller e
para criar sua obra dramática; pelo Bertolt Brecht, que decoram a parede do
contrário, em muitos depoimentos revelou escritório de Vicente, a personagem, alter-
1
suas preferências literárias . Na peça O ego do autor, por meio da qual ele buscou dar
Sumidouro, tais iguras surgem penduradas vazão às suas memórias. Além desses, outros
autores foram lembrados pela crítica, como
1 Algumas obras de referência importantes, Tenesse Williams, Sófocles e Dostoievski
em que esses depoimentos são utilizados (PRADO, 2003), entre outros.
são: Arantes, Luiz Humberto Martins, Teatro
da memória: história e ϔicção na dramaturgia A parte mais importante de sua obra
de Jorge Andrade. São Paulo: Annablume, compreende o ciclo publicado em conjunto
2001. Azevedo, Elizabeth Ferreira Cardoso
Ribeiro, Recursos estilísticos na dramaturgia
no volume Marta, a árvore e o relógio (Ed.
de Jorge Andrade. Tese de Doutoramento. São Perspectiva, 1970), resultado de um trabalho
Paulo: ECA/USP, 2001. Sant’Anna, Catarina,
realizado durante quase vinte anos (1951 a
Metalinguagem e teatro. Cuiabá: EdUFMT,
1997. 1970), pensado conscientemente, no decorrer

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do processo de elaboração das dez peças das diversas linguagens cênicas possíveis, a
que o compõe, com o intuito de criar uma im de narrar uma história por meio de um
obra coesa, que explora amplamente uma ângulo especí ico.
temática comum – “a trajetória da ‘família
paulista’ e a da história de São Paulo durante A imobilidade e a frustração das três irmãs
quatro séculos, ou quatro ciclos econômicos
(apresamento do índio, ouro, café, indústria)” Alguns críticos, ao analisarem Rasto
(SANT’ANNA, 1997, p. 30). atrás, observaram semelhanças no tratamento
Dentro do ciclo, Rasto atrás (1966) de espaço e personagens com a obra As três
consiste num dos textos de maior irmãs (1901), do dramaturgo russo Anton
complexidade temática e formal. Temática Tchekhov. Anatol Rosenfeld, no ensaio Visão do
porque, por meio deste grande drama épico, o ciclo (ANDRADE, 1970), elogia enfaticamente
dramaturgo refaz o percurso de sua história – a construção das personagens – sendo essa,
de menino que cresceu numa pequena cidade aliás, apontada como uma das qualidades
rural do interior, o mesmo Vicente de A escada principais de toda a obra de Andrade. Ao
(1960) e O sumidouro (1969), a escritor, citá-las, o crítico menciona “as três irmãs
cuja vocação contraria os planos de seu pai – tchekhovianas, tias de Vicente”. Conhecendo
colocando em cena uma amplitude temporal um pouco a história da elaboração do texto,
que chega a 40 anos. E formal, porque as comprovamos que Jorge Andrade se apropriou
suas escolhas para conseguir explorar a da ambientação interiorana e da inação
trajetória desse menino até a maturidade presentes na peça russa para compor o seu
foge completamente à ordem cronológica, universo.
colocando no palco anacronicamente, e por Rasto atrás surge da reelaboração
vezes simultaneamente, o protagonista em de uma outra peça própria, escrita em
quatro fases de sua vida (com 5, 15 e 13 anos, 1957 e intitulada As moças da rua 14, cujas
na rememoração de Vicente aos 43 anos). semelhanças com As três irmãs seriam mais
Nesta peça, portanto, Andrade explora evidentes, já que o enredo girava em torno das
ao máximo a alternância de planos criada com solteironas Etelvina, Jesuína, Isolina e Elisaura,
mestria para A moratória (1954), sem perder- transformadas, em Rasto atrás, nas tias e avó
se, tornar-se confuso ou cansativo. Nesse de Vicente, perdendo o posto de protagonistas.
aspecto, estrutural, o texto corresponde às Apesar da peça se centrar na história de
mais audaciosas experimentações dramáticas Vicente, as tias continuam tendo papel
realizadas na segunda metade do século XX, determinante, o que permite a irmar que, se
quando o teatro moderno, já tendo passado a trama antiga “guardava nítida atmosfera de
por diversas instâncias de ruptura com a As três irmãs de Tchekhov” (Magaldi, Apud.
forma dramática convencional, apropria-se ANDRADE, 2008, p. 658), a atual não perdeu

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completamente essa “atmosfera”: ela se importância da construção das personagens
preserva na caracterização da vida morna que na condução dos enredos e o modo como a
levam as irmãs de Jaborandi. trama se configura por meio das falas das
Tal caracterização apresenta-se, personagens, que relatam os acontecimentos
principalmente, na primeira parte de Rasto mais importantes de maneira bastante natural.
atrás, até o começo da segunda. Após o Essa semelhança no tratamento do conteúdo
sarau de recepção a Vicente, inicia-se com dramático foi observada pelo crítico Paulo
mais força o processo de rememoração Francis, logo no início da carreira do autor
do protagonista e a exposição dramática brasileiro. Em artigo publicado em agosto de
do con lito entre pai e ilho, que passa a 1957, escreveu ele:
centralizar a cena, diminuindo, então, a
O parentesco do dramaturgo Tchekhov,
“atmosfera” tchekhoviana, para dar lugar no tocante a método, entra pelos olhos
ao embate entre gerações que não se de qualquer um. Ambos encontram no
trivial o que lhes parece ser a essência
compreendem. No entanto, ao inal, o que das coisas. Suas personagens falam a
encerra o texto/espetáculo consiste no retorno linguagem delas. Em O telescópio, por
exemplo, Pai e Mãe discutem a incom-
a essa “atmosfera”. Resolvido o con lito, as patibilidade entre si próprios e seus
ilhos. Ninguém ilosofa, cita Freud ou
tias reaparecem para formar o quadro inal, Fromm. O autor omite-se da conversa
retomando o monótono diálogo que repetem a aparentemente. Falam eles como fala-
riam nossos pais e mães, sem se lem-
cada dia. brarem que estão num palco, ou assim
nos parece ao ouvi-los. E, no entanto,
Embora o con lito entre pai e ilho por um processo de seleção verbal, de
emerja como um componente dramático diversidade de ritmos, de classi icação
da língua, de alinhavo de assuntos, i-
mais absoluto, no sentido de gerar uma ação, camos sabendo tudo quanto necessi-
característica essa praticamente inexistente tamos saber sobre as personagens, no
contexto escolhido pelo autor. Tudo
nas peças mais importantes do dramaturgo é registrado indiretamente, como em
Tchekhov. (FRANCIS, 1957)
russo, podemos fazer um outro paralelo entre
os dois autores, referente à caracterização do
O texto citado como exemplo no trecho
protagonista. As angústias de Vicente fazem
consiste em O telescópio, a primeira peça do
associação a temas trabalhados por Tchekhov
autor. No entanto, a qualidade de “se omitir”
em A gaivota, peça cujas personagens
e de transmitir todo um conteúdo por meio
principais são dois escritores e duas atrizes.
de falas que não dizem nada aparentemente,
Desse modo, constatamos que o diálogo ocorre
mas que, no conjunto do texto, constroem
não somente em relação a um texto especí ico,
uma verdade, manteve-se e se aprimorou no
mas na concepção dramatúrgica como um
decorrer da carreira de Jorge Andrade. Tal
todo.
semelhança signi ica uma identi icação sobre
Alguns aspectos estilísticos
a maneira de engendrar a trama, colocando as
aproximam os dois autores, em especial a

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personagens em primeiro plano e elaborando- estudo das relações entre a peça e a história
as por meio de falas que as inserem num pessoal do autor. Segundo o crítico, nessa
cotidiano bastante verossímil. O próprio peça, mais que nas outras do conjunto,
crítico enfatizou a brasilidade incontestável do Jorge Andrade realizou um mergulho em
teatro andradino: seu passado, a im de compor uma obra
autobiográ ica, cujo foco principal dirige-se
O moderno realismo, irmado por Ib-
sen e Tchekhov, compreende o homem para a relação con lituosa entre o dramaturgo
como vítima das circunstâncias e de
si próprio. Jorge Andrade empenha-
e seu pai. Apesar de autobiográ ica, a obra
-se em transferir isto para a realidade não consiste num espelho da verdade e o
brasileira, sem jamais permitir que
estrangeirismos, em maneira e tom se escritor alterou as informações sobre sua
interponham em seu caminho. (FRAN- família de modo a incorporá-las na trama.
CIS, 1957)
As três tias, de acordo com o crítico, teriam
Para além da semelhança estilística, sido inspiradas em amigas da avó do autor,
portanto, cuja identi icação provavelmente pertencentes à aristocracia decadente, que
favoreceu a admiração de Andrade pelo teatro viviam na cidade natal do mesmo, Barretos,
do autor russo, ou vice-versa (a admiração por interior de São Paulo. Tal constatação reforça
Tchekhov teria favorecido uma identi icação), a importância de Tchekhov na elaboração de
o dramaturgo brasileiro soube empreender Rasto atrás: não existindo, em sua família,
uma leitura direcionada à criação de uma três irmãs solteironas, sendo essas inspiradas
realidade típica do interior de São Paulo, em amigas da avó, a escolha pode, de fato, ter
que remete à distante Rússia de maneira sido efetuada com base na leitura da famosa
correspondente, porém sem imediatismo. obra russa. A criação dessas personagens a
Poderíamos, não obstante, citar uma analogia partir de senhoras da aristocracia decadente,
contígua: tanto em As três irmãs como em rural, de Barretos, justi ica a escolha de Jorge
Rasto atrás a família é composta por três Andrade, porque as três irmãs tchekhovianas
irmãs e um irmão, sendo que o irmão é o são exatamente mulheres cultas, re inadas,
único que se casa, e esse casamento, infeliz “aristocráticas”, obrigadas a viver numa cidade
em ambas as peças, traz infelicidade também em que sua esmerada educação “não serve
aos outros membros das famílias. No entanto, para nada”: “Macha: Saber três línguas nesta
esse paralelismo não é tão importante para cidade é um luxo desnecessário. É até mais
uma análise que busca compreender em que um luxo: é simplesmente uma coisa inútil,
profundidade as motivações internas de Rasto como um sexto dedo” (TCHEKHOV, 2003, p.
atrás. 18).
Sábato Magaldi, no já mencionado As tias de Vicente, solteiras, tendo
ensaio À procura de Rasto atrás, traçou um entre sessenta e setenta anos, passaram a
vida sonhando com uma realidade diferente

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da que levam, com um casamento que O trabalho, o amor (quando acontece, no
nunca acontece, com uma vida social que a caso de Macha), as amizades e as festas não
pequena cidade não oferece. Apenas Etelvina preenchem o vazio que elas sentem em seu dia
é realista e trabalhadora; no “plano” do a dia.
presente, sustenta a casa, não por opção, mas A ausência de felicidade se dá pela
exatamente pela falta de. Jesuína e Isolina consciência que as três delicadas mulheres
continuam sonhadoras como quando moças, e têm da sua realidade mesquinha. Ao
a volta do sobrinho consiste num pretexto para envelhecerem, não é possível imaginar, para
dinamizar o cotidiano com uma festa que seria elas, um destino muito diferente do que
quase como voltar ao passado. A compreensão aquele que vemos na casa da rua quatorze.
dessa cena, em que ocorre um sarau literário Isolina e Jesuína, porém, conseguem ser mais
em homenagem ao retorno de Vicente, ganha felizes que as irmãs tchekhovianas, porque
corpo por meio de uma análise comparativa. mantêm uma inocência quase infantil, sendo
A mediocridade do meio intelectual em que capazes de se alegrar genuinamente com
as mulheres residem contrasta com a vontade pequenas coisas, como um vestido, ou um
de desfrutar de uma outra realidade, evocada agrado - inocência essa que Etelvina não tem,
constantemente por meio de uma conferência por haver herdado da mãe o modo prático
de Coelho Neto; do mesmo modo, as irmãs de lidar com as di iculdades e desilusões.
Prozorov anseiam por vivenciar um ambiente Elizabeth Azevedo constatou essa diferença
mais ilustrado, em Moscou. em um rápido comentário, no qual a irma
Jesuína, Isolina e Etelvina seriam que, quando jovens, as tias, principalmente
um contraponto amargo de Irina, Macha e Isolina e Jesuína, divertem-se e tem esperança.
Olga envelhecidas, quando a vida insossa No entanto, é o tempo que se encarrega de
transcorreu agora quase completamente, trazer a falta de expectativa ao cotidiano das
trabalhando para viver, entre devaneios que três. Envelhecidas e sozinhas, no “plano”
permanecem na esfera da utopia, sem que da atualidade, a utópica Moscou das três
nenhuma delas tenha agido para concretizá- mulheres seria um voltar ao passado, mas
los. O inal de As três irmãs corrobora a cujo desfecho fosse diferente do real. “As
inação apresentada em todos os seus quatro tias de Vicente (bem como Pacheco, eterno
atos. Embora a fala inal, de Olga, seja pretendente de Jesuína e antigo amigo da
repleta de esperança, essa se dirige a um família) sonham não com um lugar, mas com
futuro distante, aos que virão, porque a sina um tempo, justamente aquele em que ainda
daquelas que permanecem é simplesmente existia esperança, quando ainda haveria um
permitir que a vida transcorra, sem que futuro” (AZEVEDO, 2001, p.149).
verdadeiros acontecimentos possibilitem Na cena mencionada acima, da festa
qualquer mudança signi icativa ou reveladora. em homenagem a Vicente, a simplicidade

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das tias torna-se patente. Elas não são de modo certamente arti icial, entregues a
estranhas àquele ambiente interiorano, elas conversas e discussões ilosó icas, sem que
se sentem sinceramente encantadas com as nenhuma atitude seja tomada. Retomando
apresentações do sarau. A festa apresenta o paralelo, a partida da brigada e a morte
um forte caráter irônico, que pode ser ainda do barão (pretendente de Irina que, depois
mais ressaltado no palco, revelando uma de passar a vida sem trabalhar, morre num
comicidade amarga, típica de Jorge Andrade estúpido duelo, quando inalmente resolvera
(sendo essa outra semelhança entre os dois lançar-se em busca de modi icar o mundo por
dramaturgos). Nesse caso, a obtusidade meio da ação – sua morte, portanto, mostra-se
dos moradores, procurando demonstrar bastante emblemática) correspondem à morte
uma erudição que não têm, contrasta ou à fuga daqueles que viviam em Jaborandi e
principalmente com a igura de Vicente, preenchiam a existência das tias de Vicente.
intimidado pela situação de “grande estrela” Enquanto Macha, no inal de As três
da noite. As tias estão em seu meio habitual, irmãs, vislumbra o futuro sem sentido que
embora a ausência de sentido em suas vidas, as espera, em que uma terá apenas a outra
devido aos sonhos não realizados e à falta de para seguir vivendo: “Eles vão embora, um
ação – presente em todo o texto, mesmo nos já se foi completamente... Completamente
pequenos momentos de ternura – permaneça e para sempre. E nós icaremos sozinhas, e
visível e seja escancarado no inal da cena, recomeçaremos a vida. É preciso viver... É
quando a travessa quebra. preciso viver...” (TCHEKHOV, 2003, p. 69);
Entre as irmãs Prozorov, a Etelvina, no inal da cena do sarau, olha para
incompatibilidade com a vida na província trás, observando de um momento futuro todos
parece maior, “estrangeiras” que são. Além os anos que Macha ainda teria que passar
dos sonhos irrealizados, elas sofrem pela até envelhecer: “Você disse bem: izemos um
futilidade representada pelo cotidiano da vila: saque contra a morte. Foi o que nos restou de
o trabalho na escola é cansativo para Olga, tudo” (...) “Os amigos foram desaparecendo,
o casamento não traz a Macha a felicidade um a um! A pobreza acabou levantando
almejada, o entusiasmo juvenil de Irina uma cerca de espinhos em volta desta casa.
não encontra em que extravasar. Os o iciais O lugar... onde demoram as moças da rua
consistem numa possibilidade de alcançar quatorze.” (ANDRADE, 2008, p. 467) O lugar
um futuro potencialmente produtivo de onde não moram as três, e sim “demoram”,
alguma maneira, além de representarem aguardando a morte.
o contato com pessoas de mesmo nível de
erudição, mas, como tudo na peça, trata-se
de uma possibilidade frustrada. Indolentes,
os militares preenchem o vazio das jovens

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O espaço como parte determinante das uma forma dramática em que o olhar
através da janela era o ponto de vista
ações
fundamental sobre a realidade, e o que
era visto, na ação, era a versão, criada
por um homem, de seu próprio mundo,
A casa, em ambas as peças, tem dentro da qual ele criava iguras para
papel decisivo no andamento do enredo. As encená-lo. (WILLIAMS, 2010, p. 225)

escolhas formais dos autores, a partir das


quais o espaço cênico se constitui, revelam,
O crítico aponta a utilização do “palco
mais que os aspectos temáticos, a distância
como se fosse uma sala” como sendo um
temporal entre as obras. O estudioso Raymond
dos recursos encontrados pelo naturalismo
Williams, no seu livro Drama em cena, traçou
para a comunicação de uma estase, de uma
um panorama da evolução no tratamento
imobilidade e ixidez de ação, cujos objetivos
das relações entre texto e cena no decorrer
seriam transmitir as angústias e os problemas
do tempo. O seguinte trecho, presente nas
do homem moderno. A descrição do palco
conclusões de seu estudo, revelam de modo
naturalista, presente em As três irmãs, serve
bastante acurado as diferenças relativas ao uso
de exemplo para a análise referida. Toda a
do espaço, consequência das transformações
“ação”, se é que podemos chamar de ação os
que a arte dramática passou no decorrer do
acontecimentos de um texto teatral que prima
século XX:
pela ausência de con litos, ocorre dentro da
A primeira forma dessa estase foi a casa dos Prozorov.
utilização do palco como se fosse uma
sala, o que foi possível não só por causa Da casa naturalista, Raymond Williams
do sucesso da carpintaria cênica, mas
por causa da convicção de que uma re- passa, então, a comentar uma segunda etapa
alidade importante ocorria dentro das dentro das transformações sofridas pelo
residências particulares, nos espaços
das casas nos quais se davam notícias, espaço na busca por uma representação
dos quais as pessoas olhavam para
que conseguisse pensar a imensidão de
fora, iam e vinham, mas, principalmen-
te, onde todo o interesse central – cha- problemas, internos e externos, vividos pelo
mado de ‘o que acontecia às pessoas e
não à sociedade’ – era representado. homem do século XX. Seria a “supressão
Dessa forma, a experimentação dentro da sala, substituída pelo drama de uma só
do naturalismo era, em grande medi-
da, uma série de indicações – feitas mente”, cujo exemplo maior seria o drama
pelo ambiente, por recursos visuais,
descrições e inserções – do que acon-
expressionista. Rasto atrás, elaborada num
tecia e existia além da sala de estar e momento posterior a essa segunda etapa,
do palco. A segunda forma dessa estase
foi de fato uma liberação do palco pela faz uso de ambas as formas de utilização do
supressão da sala, a qual, no entanto,
espaço, mesclando-as, a im de conceber um
foi substituída pelo drama de uma só
mente em que, por assim dizer, aque- texto teatral que é, ao mesmo tempo, fruto “de
les homens olhando pelas janelas de
uma sala naturalista, sentindo-se pre- uma só mente” – as angústias do protagonista
sos e confusos enquanto observavam o Vicente – e apresentação da realidade por
mundo lá fora, foram substituídos por

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meio do que “acontecia às pessoas”, dentro da do teatro: a estação de trem, o comércio, a


casa2. igreja, toda a vidinha pacata de Jaborandi
Em Rasto atrás, a trama amplia-se podem ser vislumbrados ao ocupar o centro
para outros ambientes, além da casa da rua do diálogo, dentro da casa. Os recursos épicos,
quatorze – como a loresta em que caça João porém, possibilitam uma variação grande
José, ou a cidade grande onde Vicente vive com de espaços. Mesmo assim, a casa continua
a família –, no entanto, para o conhecimento sendo o centralizador dos acontecimentos
do passado de Vicente, que ele almeja de Jaborandi. A novidade passa-se num
reencontrar e compreender, a casa da rua outro teor de exploração formal: o ir e vir
quatorze constitui o espaço centralizador, e no tempo e a presença de personagens de
é nela que quase toda a história das irmãs se tempos diferentes concomitantemente em
revela. Como em As três irmãs, a cidade surge cena. O casamento de João José e Elisaura
por meio dos comentários efetuados pelas demonstra o jogo realizado por Jorge Andrade
personagens no interior da casa. Naquela ao misturar um recurso teatral tradicional
peça, os moradores da província encontram-se (a casa centralizadora de ações externas –
na casa dos Prozorov para o chá, as reuniões, como realizado por Tchekhov) e criar uma
ou simplesmente bater papo. As instituições, multiplicidade de “planos” temporais.
como a escola, a prefeitura, o correio, invadem A cerimônia não é representada no
o espaço a partir da conversação e da entrada palco, mas presenciamos desde a expectativa
e saída de personagens. Nesse texto, do em torno do grande evento, que acontece
começo do século XX, encontramos, em seu no mesmo dia da inauguração da estrada de
formato de “drama burguês”, a despeito ferro, até a sua conclusão, de forma indireta.
das inovações temáticas (SZONDI, 2001) – O texto não é divido em cenas, mas, para
que acabam por comprometer, ainda que ins de análise, podemos considerar que o
involuntariamente, também a forma – a trecho se estende por seis cenas, das quais
“convicção de que uma realidade importante quatro se passam na casa da rua quatorze.
ocorria dentro das residências particulares, Primeiramente, Isolina e Jesuína, chegando da
nos espaços das casas nos quais se davam rua, contam a França e a Etelvina as novidades
notícias, dos quais as pessoas olhavam para de fora: a igreja está arrumada, o noivo João
fora, iam e vinham”. José se veste no hotel, a estação de trem está
Em Rasto atrás visualizamos o mesmo em festa; ouve-se a banda passando lá fora.
procedimento, bastante recorrente na história É a cidade invadindo a casa. Em seguida, na
segunda cena, as irmãs tentam amolecer o
2 Para uma análise detalhada sobre os aspectos
épicos e expressionistas do texto, ver: Elizabeth
coração da mãe, Mariana, que não aprova o
Ferreira Cardoso Ribeiro, Recursos estilísticos casamento e não participará da cerimônia.
na dramaturgia de Jorge Andrade. Tese de
Doutoramento. São Paulo: ECA/USP, 2002. Além disso, evidencia-se a desilusão das

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moças, por não encontrarem pretendentes Como podemos perceber pela leitura
a marido, e a dureza da mãe, o que gera uma do fragmento, Jorge Andrade joga com as
discussão ríspida. possibilidades que lhe são oferecidas pelo
A próxima cena se passa no presente, naturalismo e pelo épico. A casa consiste no
interrompendo a progressão temporal foco onde a cidade se apresenta, por meio
constituída até então. Etelvina recebe das pessoas que nela vivem; ao mesmo
Maruco, o italiano que vende os seus doces tempo, quando necessário, outros ambientes,
em tabuleiro, pelas ruas: novamente a cidade caracteristicamente épicos por serem externos
invade o espaço da casa. Além de mostrar ao recinto familiar (a estação, a loresta),
o modo como Etelvina sustenta as irmãs, o podem surgir repentinamente, quebrando o
diálogo compõe um contraponto entre os andamento espácio-cronológico da ação. O
preparativos para o casamento, no passado, e uso inteligente da combinação de recursos
os preparativos para chegada de Vicente, no formais culmina na cena seguinte, que encerra
presente. As três cenas ocorrem na casa da a primeira parte do texto. Vicente chega a
rua quatorze e, embora a terceira aconteça Jaborandi e encontra seu passado. A evocação
no tempo do presente e as duas primeiras no expressionista, na qual diversos “planos”
passado, nas três a casa serve como espaço temporais se misturam, ao mesmo tempo em
dentro do qual se potencializam as relações que o espaço se dilui, apresenta os quatro
das personagens com a cidade onde residem. Vicentes (de 5, 15, 23 e 43 anos) ao mesmo
Logo após, há o retorno para o dia do tempo no palco, dialogando com outras
casamento, com a noiva sendo vestida pela personagens. A rememoração intensa constitui
mãe (em sua própria casa), e a despedida dos um momento potencialmente dramático, que,
noivos após a cerimônia, concomitantemente paradoxalmente, se manifesta por meio de
à inauguração da estação (apresentada por um rompimento radical com as convenções da
meio da projeção de slides). Nessas duas dramática tradicional.
cenas o espaço se diversi ica, acentuando Temos, portanto, um texto em que
o caráter épico pela inclusão de um espaço ação e inação não apenas se alternam, como
público no palco. A última cena da sequência, estabelecem uma rica movimentação de
porém, situa-se novamente no quarto de troca. No caso de Tchekhov, o rompimento
Mariana, dentro da casa. Etelvina lê a notícia com a convenção consiste no conteúdo da
de jornal sobre o casamento, entremeada conversação. As personagens passam o tempo
pelos comentários ranzinzas da mãe. O leitor/ discorrendo sobre assuntos sem a menor
espectador tem acesso, por meio do relato, importância dramática, que não geram con lito
à cerimônia e à festa, mesmo que essas não ou ação. Se, em As três irmãs, as jovens e os
tenham sido encenadas. militares ilosofam, em Rasto atrás, Isolina
e Jesuína tricotam e repetem os mesmos

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Texto, Cena e Formação Larissa de Oliveira Neves Catalão

temas em suas conversas com Pacheco: a “atmosfera” thekhoviana que se mantem em


estrada de ferro, os troles, o desastre do todo o texto, apresenta-se uma personagem
Titanic. No sarau literário organizado para que age: Vicente. Osman Lins, no artigo
homenagear Vicente os assuntos correm uns “Signi icação de Rasto atrás”, trata do modo
após os outros, como acontece em toda a peça como Jorge Andrade explorou as questões
russa, que se constitui, em grande parte, na relativas ao trabalho do escritor, e a irma:
reunião das pessoas da cidade, com poucas “Vicente não se transforma, como certos
cenas envolvendo, por exemplo, apenas duas personagens de Tchekhov, num adulto inativo,
personagens dialogando sobre um assunto que espera dia após [dia] a morte, em algum
especí ico. solar provinciano, recordando sonhos de sua
O ambiente de Jaborandi, com sua juventude” (LINS, 2008, p. 655). A comparação
“atmosfera” interiorana e estagnada, “às avessas” indica, no entanto, que a presença
apresenta-se principalmente na primeira das questões trabalhadas por Tchekhov não
parte, sendo retomado, como vimos, na se restringem às analogias de mesmo tom
conclusão da peça. O fato de o autor intercalar dramático.
a estrutura de inação a uma outra temática, De fato, é possível pensar que, se Vicente
indicativa de um forte con lito, que é, ao fosse uma personagem tchekhoviana, teria
mesmo tempo, expressionista (por se revelar se casado com Maria, a primeira namorada,
eminentemente a partir da visão de mundo e permanecido em Jaborandi, vivendo, como
de apenas uma personagem - Vicente, no suas tias, uma existência “sem sentido”. Por
caso) e dramático (no sentido de propiciar outro lado, quando analisamos as angústias do
uma relação intersubjetiva e con lituosa entre escritor aos 43 anos, visualizamos problemas
caracteres), comprova o quanto Jorge Andrade semelhantes aos que a ligem os dois literatos
soube utilizar as leituras empreendidas de de A gaivota. Em uma sequência fundamental
modo a criar uma obra em que tais recursos na trama tchekhoviana, localizamos duas
são reelaborados no sentido de obter um imagens simbólicas importantes que, na
resultado extremamente bem construído obra andradina, perpassam todo o enredo.
e original, no qual a forma é trabalhada A primeira consiste na metáfora da caça e a
conscientemente para dar conta de transmitir segunda na referência à lua enquanto símbolo
um conteúdo bastante complexo. poético. Ambas surgem no diálogo entre Nina
e Trigórin, que acontece, no segundo ato, logo
Algumas imagens: as angústias de um após Trepliov depositar a gaivota abatida aos
escritor pés da amada (TCHEKHOV, 2004, pp. 43-51).
Embora seja uma conversa, o que sobressai
Em contraste com a inação das irmãs, são as con issões autocentradas do escritor,
responsável pela manutenção de uma

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disposto a se desvelar frente a uma ouvinte e, no momento de se casar com João José,
atenta e apaixonada. recebe a advertência da mãe: “É uma gente
A caça, esporte popular entre os violenta, indiferente, só pensam em caçadas,
aristocratas russos do inal do século XIX, cachorros e cavalos” (ANDRADE, 2008, p. 481).
representa, tanto em A gaivota como em Rasto Portanto, é bastante provável que Andrade se
atrás, a busca de um escritor por atingir suas identi icasse com uma fala tão pujante como a
metas. No caso especí ico de Vicente, também de Trigórin, de A gaivota, quando se lamenta,
evoca a volta ao passado para investigar suas utilizando a imagem da caça, da di iculdade
raízes, na igura do animal que engana seu em descrever literariamente, com idelidade,
perseguidor, fugindo “rasto atrás”. Ao mesmo a vida real das pessoas. A complexidade do
tempo, os escritores-personagens colocam- símbolo se expande, então, para uma rica
se no lugar da presa, não do caçador, quando, gama de expressividade, indo além do choque
acossados, almejam transpor para a obra existente entre os sonhos do pai caçador e
literária a verdade. Aparecido Nazário, em a personalidade do ilho, intelectual, artista,
seu estudo sobre a peça de Jorge Andrade, poeta:
realizou uma investigação sobre o modo
Trigorin – Que sucesso? Eu nunca agra-
como a caça surge em obras literárias de dei a mim mesmo. Não gosto de mim
como escritor. O pior de tudo é que me
dois outros autores – Ligia Fagundes Telles e sinto numa espécie de embriaguez e
William Faulkner –, examinando a simbologia muitas vezes nem entendo o que es-
crevo... Veja, eu adoro essa água, essas
da imagem, que sempre representa algo maior árvores, esse céu, sinto a natureza, ela
do que um simples “esporte”, e comparando-a, desperta em mim um entusiasmo, um
desejo irresistível de escrever. Mas não
também, com o símbolo do labirinto, a partir sou apenas um paisagista, sou também
um cidadão, amo o país, o povo, sinto
de um conto de Jorge Luís Borges. Suas que, se sou um escritor, estou obrigado
análises envolvem, principalmente, uma a falar do povo, dos seus sofrimentos,
do seu futuro, a falar da ciência, dos di-
comparação não com os dilemas de escritor reitos do homem etc. etc., e então falo
sobre tudo, me afobo, me pressionam
de Jorge Andrade / Vicente, mas com seus de todos os lados, se irritam comigo, eu
con litos perante o pai (NAZÁRIO, 1997). corro de um lado para o outro, como
uma raposa acossada por cães de caça,
O universo representado pela caça fazia vejo que a vida e a ciência avançam
parte da vida de Jorge Andrade, do meio rural cada vez mais, enquanto eu vou ican-
do sempre para trás, como um mujique
em que cresceu, onde “os três grandes valores que chegou atrasado para pegar o trem,
e no im tenho a sensação de que só sei
eram o cavalo, o cachorro, a caça” (ANDRADE, mesmo descrever paisagens e em tudo
1984, nº 2, p. 15), da oposição latejante entre o o mais sou falso, sou falso até a medula
dos ossos. (TCHEKHOV, 2004, p. 49)
ser fazendeiro, macho, rústico e o ser escritor,
intelectual, “delicado”. Essa dualidade faz parte
do crescimento de Vicente, cuja mãe, que não Além da referência a “correr de um
chega a conhecer, recebeu uma ina educação lado para o outro, como uma raposa acossada

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por cães de caça”, referindo-se à di iculdade sua falta de caráter e, “percebendo que mente”
do artista em acompanhar a correria e as nada faz para tentar “sair da mentira”, porque
transformações de seu país, a fala transmite simplesmente não percebe sua incapacidade
o desejo de conseguir expressar a verdade do em se aprofundar no conhecimento dos fatos
povo por meio da literatura. Os dois elementos e pessoas que o cercam, de modo a poder
atingem de forma direta o universo iccional transmitir essa verdade na literatura.
criado por Jorge Andrade em Rasto atrás. O Segundo Silvia Fernandes, em
próprio autor revelou, em depoimento, sua comentário que remete à análise de Raymond
ansiedade em trazer à cena “o que o homem Williams, as personagens de A gaivota são
brasileiro pensa e como vive” (ANDRADE, “indivíduos que consomem sua energia na
1984, nº 2, p. 19), tal qual ele conheceu no tentativa de tomar consciência da própria
convívio com os lavradores na fazenda e com a incapacidade” (FERNANDES, 2010, p. 14).
aristocracia decadente, no campo e na cidade. Trigórin reconhece suas próprias falhas
Em Rasto atrás, o dramaturgo Vicente faz como escritor, mas não tem consciência de
uma viagem ao passado, de modo a obter essa sua ine iciência em expandir os limites nos
mesma representação, uma representação quais se encontra. Ele jamais será um escritor
da vida capaz de ir além da “paisagem”. Ao se apto a transmitir a verdade. No terceiro
despedir da esposa, Vicente explica: “A pior ato, por exemplo, ele simplesmente não se
coisa que pode acontecer a um autor, Lavínia, lembra da gaivota, que mandou empalhar. O
é perceber que mente e não saber como sair da esquecimento consiste num indício evidente
mentira” (ANDRADE, 2008, p. 460). de que, limitado e insensível, jamais se deu
No estudo Tempo e memória no texto conta do mal que fez à jovem atriz Nina, como
e na cena de Jorge Andrade, Luiz Humberto “profetizou” naquela conversa. Tendo sido
Martins Arantes descreve a personagem da amante de Nina, nunca soube compreendê-
seguinte maneira: “Em Rasto atrás, Vicente é a la. E o leitor não pode nem recriminá-lo,
representação do escritor bem-sucedido, mas porque o “criminoso” não é mau, é apenas
insatisfeito com o grau de verdade interior fraco, e obtuso em relação aos sentimentos
daquilo que escreve” (ARANTES, 2008, pp. das pessoas, por isso nunca será um grande
150-151.). A frase remete ao estado de espírito escritor, que conhece as fraquezas e virtudes
de Trigórin, em seu diálogo-monólogo com do ser humano. Nisso, ele se diferencia
Nina: um autor bem sucedido, mas insatisfeito signi icativamente de Vicente.
que, apesar de reconhecido pela crítica e pelos Vaidoso, Trigórin, apesar de se
leitores comuns, não alcançou um patamar apaixonar por Nina, não abandona Arkádina,
literário à altura de outros prosadores russos. que o bajula e sustenta; nem age, como
Consciente de suas limitações artísticas, Vicente, de modo a alcançar a dimensão que
Trigórin, no entanto, não tem consciência de almeja obter em seus escritos. Para ter êxito

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nessa empreitada, o dramaturgo precisa, maturidade e desejo de conhecimento, a
antes de tudo, encontrar a si mesmo. Vicente semelhança com Trigórin transpareça de
compartilha tal angústia com o jovem Trepliov. modo mais saliente. Como o jovem dramaturgo
A busca pelo autoconhecimento, de modo a de A gaivota, Vicente produzirá uma arte
transmitir uma ideia artística verdadeira e que supera a super icialidade da observação
profunda, não plana e paisagística, como de descritiva de Trigórin ao mergulhar nas suas
certo é a obra de Trigórin, torna-se meta do próprias angústias, descortiná-las com apoio
protagonista de Rasto atrás. Trepliov, porém, da realidade que o cerca, e escrever sobre elas.
pela juventude e caráter intempestivo, não faz Vicente, porém, não é um jovem
essa busca de modo consciente, como Vicente, deprimido e desesperado como Trepliov,
que parte para uma viagem ao passado tendo que desiste de viver. Apesar disso, as
como foco a redescoberta do seu eu, para perguntas que norteiam Vicente aos 23 anos
poder progredir na carreira já consolidada de assemelham-se às da personagem russa, aos
autor teatral. Em depoimento, Jorge Andrade, 25. Num momento de autorre lexão, quando
ao comentar o processo de descoberta de sua ansioso pelo início da representação de
personagem, revelou: “A busca não é somente sua peça, Trepliov pensa sobre sua posição
a procura de uma pessoa, mas sobretudo perante a mãe e demais artistas de sua
das verdades deixadas ao longo do caminho” convivência e questiona: “Quem sou eu? O que
(ANDRADE, 1966). sou eu?” (TCHEKHOV, 2004, p. 14) – perguntas
A principal diferença entre o escritor repetidas por Vicente, quando, em confronto
Trepliov e o escritor Trigórin consiste com o pai, que caça, resolve inalmente
no primeiro partir de si mesmo, de suas tomar uma atitude em relação ao seu futuro:
inquietações frente à vida e à arte para “Quem sou eu? Quem?” (ANDRADE, 2008, p.
escrever, enquanto o segundo observa as 486). Trepliov, no entanto, na permanência
pessoas e os fatos exteriormente, sem se da atmosfera tchekhoviana de impotência,
envolver, anotando tudo vorazmente, mas desiludido do amor, se suicida; Vicente não, ele
sem re letir sobre as imagens que lhe são toma uma decisão, age, e vai atrás da sua lua.
apresentadas; assim, seus escritos não Do mesmo modo que a metáfora da
passam de uma descrição super icial. Trigórin caça, a imagem da lua se apresenta, n’A
reconhece essa ausência, anseia por saná- gaivota, em uma fala de Trigórin, naquele
la, mas não sabe como. Ele não percebe mesmo diálogo: “Às vezes, há ideias que nos
que, o que falta a ele e a sua literatura dominam, como quando uma pessoa ica o
consequentemente, é buscar “sobretudo as tempo todo, dia e noite, pensando na lua, por
verdades deixadas ao longo do caminho.” exemplo, e acontece que eu também tenho a
Nesse sentido, Vicente se aproxima de minha lua. Dia e noite, uma ideia obsessiva
Trepliov, embora, à primeira vista, pela me persegue: tenho de escrever, tenho de

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escrever, tenho...” (TCHEKHOV, 2004, p. 46). contrapor o mundo racional e prático dos
Em Rasto atrás, a lua simboliza, positiva ou “caçadores”, à sensibilidade dos artistas.
negativamente, dependendo da personagem
Vicente: (5 anos. Abraça-se às pernas
que a menciona, o alheamento e a inação de Mariana) Por que a lua está quebra-
da? Por quê?
dos poetas, o viver “no mundo da lua”. No
sentido positivo, a lua expressa o mesmo que
para Trigórin: a obsessão pela literatura, a Mariana: Nós somos assim. Pra que
serve uma igreja coberta de lores se
urgência em escrever; além de representar cada mulher que nasce é motivo de
a poesia das palavras, que podem signi icar tristeza? Lua é lua, lor é lor, rio é rio.
No fundo só tem lodo.
muito mais do que seu sentido prosaico. No
negativo, o “viver na lua” indica a inação, a
Vicente: (15 anos. Caminha, transϔigu-
falta de comprometimento com o trabalho rado) Não diga isto, vovó! A lua mora
manual, aquele que dá origem ao alimento, a nas nuvens, as lores são lindas!... e os
rios estão sempre caminhando, cober-
resultados concretos. tos de lores e de luas! (Os três Vicentes
caminham, desaparecendo). (ANDRA-
O menino Vicente, de cinco anos, sente DE, 2008, p. 484-485).
uma obsessão por entender por que a lua
se transforma a cada semana. Sem saber a Esse trecho demonstra, em poucas
resposta, João José reclama da inutilidade falas, toda a dualidade presente no mundo de
daquele tipo de conhecimento, frente a Mariana e no mundo de Vicente. Àquele, em
aprender uma atividade prática, como laçar: que as coisas são o que são, onde no fundo do
“Laçar é mais importante do que saber por rio só existe lodo, e o universo de descobertas
que a lua ica quebrada” (ANDRADE, 2008, p. poéticas vivenciadas por Vicente em seu
464). A menção acontece em outros momentos amadurecimento. O escritor foge daquele
da peça, com igual conotação: “Pacheco: ambiente racional, prático, dominado pelo
Falar à lua, perdido em alamedas, é mais pra trabalho ísico e mergulha num processo de
aluados.”; “Mariana: Isolina! Minhas ilhas aprendizagem cultural e literária. No entanto,
não têm nenhuma iniciativa. Pensam em quando, já no auge de sua carreira, tendo
vocês e falam da lua.”; “João José: Quem sabe recebido prêmios, depara com um momento
onde esse menino anda! Do mundo da lua ele em que tudo perdeu o sentido, seja sua obra,
não sai nunca.” (ANDRADE, 2008, p. 466; p. seja sua vida, apenas ao voltar para aquele
471; p. 504). De Vicente de cinco anos, que universo rural, tão denotativo, de sua infância,
se interessa por desvendar poeticamente o poderá reencontrar o caminho da poesia.
mundo, ao de 15, que já percebe o quanto as
palavras podem dizer muito mais do que o Artigo recebido em 16 de fevereiro de 2011.
sentido trivial, o símbolo da lua é usado para Aprovado em 06 de abril de 2011.

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Jorge Andrade em Rasto atrás: lendo Tchekhov


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