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Jorge Andrade, a História e o teatro paulista: um momento de renovação

Aparecido José Carlos NAZÁRIO 1


Universidade Estadual de Campinas - Unicamp

Os noventa anos de nascimento de Jorge Andrade nos remetem à reflexão acerca


da importância desse notável dramaturgo que deixou, em termos de qualidade, uma
herança apreciável para o teatro brasileiro. Calcado na memória individual e mesmo
coletiva, a obra do dramaturgo se sustenta não apenas pelo ciclo desenvolvido em Marta, a
árvore e o relógio, mas também pela sua contribuição após a década de setenta (inclusive na
televisão), demonstrando que em veículos de comunicação diferenciados também poderia
ser feito um trabalho de cunho social e de elevado questionamento, como por exemplo na
teledramaturgia. Em estudos recentes, em que sociólogos como Maria Arminda do
Nascimento Arruda (2001) e antropólogos como Heloísa Pontes (2010) se debruçam
detalhadamente a respeito da produção cultural da cidade de São Paulo, não dá para
descartar a presença de Jorge Andrade na composição da metrópole.
Maria Arminda do Nascimento Arruda propõe um estudo sobre Jorge Andrade
enquadrando-o como um dos grandes nomes do teatro brasileiro que, juntamente com
outras personalidades do porte de Florestan Fernandes (objeto de estudos da autora na
mesma obra), constituem-se nos responsáveis pela consolidação de um estilo próprio que
definem a metrópole paulista a partir da década de cinquenta. Já Heloísa Pontes, lançando
mão de um olhar diferenciador, destaca a relevância de atores, críticos, diretores e atrizes na
construção da fisionomia cultural paulista nas décadas de quarenta, cinquenta e sessenta,
denominando-os “intérpretes da metrópole”. Embora não haja na referida obra um estudo
que evidencie a contribuição de Jorge Andrade (certamente por questões de recorte e
direcionamento da temática), é indiscutível que no panorama apresentado pela autora ele se
mostra atuante mesmo por trás das cortinas, perpassando a história do teatro paulista e se
misturando ao universo de composição da dramaturgia.
Nesse sentido, tendo em vista que o teatro paulista é rico na proliferação de
profissionais que refletem sobre a formação da metrópole, é bem oportuna a lembrança de
Jorge Andrade se levarmos em consideração dois aspectos importantes que serão
discutidos: 1) a contribuição social do teatro de Jorge Andrade e sua relação com a

1Bacharel em Letras pela UNICAMP, Mestre em Letras na área de Teoria Literária do Instituto de Estudos
da Linguagem da mesma Instituição e Doutor em Letras pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura
Comparada da USP. É professor do curso de Letras da FESB (Fundação Municipal de Ensino Superior de
Bragança Paulista) e Pós-doutorando do IEL/UNICAMP. E-mail: nazariobr@terra.com.br.

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História; 2) o respeito que o autor sempre despertou na crítica e nos historiadores do teatro
de maneira geral. Comecemos pelos estudiosos.
Os historiadores do teatro moderno nos mostram que alguns autores se destacaram
na tarefa de impor um novo ritmo de trabalho à pesquisa e à composição teatral.
Analisando o período posterior a 1930, podemos notar que uma nova era dramática estava
surgindo no Brasil. Grandes companhias se organizavam com o objetivo pleno de formar
bons atores capazes de representar, de modo consciente, a realidade em que viviam. Além
disso, a própria profissão de ator começava a ser vista como atividade técnica que precisava
de aprimoramento com o estudo, os exercícios e a devida aplicação. Esse momento
especial, que marca, inclusive, o aparecimento de Jorge Andrade na cena paulista, é
detectado também por sociólogos do pote de Maria Arminda do Nascimento Arruda que,
ao refletir sobre a metrópole paulista em momentos significativos no século XX, não deixa
de lado a contribuição do dramaturgo, não deixando também de lado um seleto grupo de
autores que definiram a arte do espetáculo nas primeiras décadas. Segundo a autora
(ARRUDA, 2001, p. 135):

No meio do século XX, o teatro de São Paulo celebra a sua estreia no cenário das
linguagens modernas. Diferentemente da ficção, da poesia, mesmo do ensaísmo,
que haviam assentado as bases da renovação expressiva há pelo menos trinta anos,
o gênero teatral parecia sofrer de uma espécie de paralisia, a despeito de existirem
peças escritas pelos próprios modernistas. O tempo de espera terminaria com o
aparecimento das casas de espetáculos. Um novo teatro nascia na capital...

Além de Jorge Andrade, um dos nomes mais representativos nesse novo panorama
é Alfredo Mesquita (o fundador da Escola de Arte Dramática, em São Paulo), o qual teve
grande importância na formação de uma nova concepção de teatro no Brasil. Dramaturgo
de inestimável valor intelectual, Alfredo Mesquita trabalhou de perto com o tema da
decadência da aristocracia rural, a que se filia a temática de Jorge Andrade. Através de suas
peças, ele estuda, particularmente, as causas da desintegração da família tradicional paulista.
Com a crise cafeeira de 1929 e a revolução de 1930, tais famílias eram obrigadas a assumir
uma nova postura. Sua peça mais representativa é Em família (1936), obra na qual ele
mostra o comportamento dos vitimados pela crise do café, sendo obrigados a deixar suas
fazendas e bens. Dentro desse contexto, enquadramos a figura de Jorge Andrade, uma vez
que este, ingressante na Escola de Arte Dramática, aprenderia lá com professores como
Décio de Almeida Prado e Alfredo Mesquita a técnica necessária (e até mesmo adequada)
para ser um escritor bem sucedido. Juntamente com o objetivo da EAD ao apostar na
formação de bons atores, residia também o desejo de formar dramaturgos, diretores

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competentes, encenadores especializados e qualquer profissional que se enquadrasse numa


proposta diferenciada de uma dramaturgia de qualidade. Nesse meio, Jorge Andrade
aprendeu os primeiros passos da escrita e ainda na EAD escreveu sua primeira peça (O
telescópio) intitulada na época As colunas do templo.
Ao sair da EAD, o recém-dramaturgo começa sua intensa carreira profissional. Sua
primeira peça de êxito seria A moratória, trabalho de peso na dramaturgia nacional que
marcaria toda uma época. A partir desse instante, Jorge Andrade passaria a despertar o
interesse da crítica por apresentar um teatro extremamente bem cuidado e orientado. Ele
aparecia num momento em que havia uma carência de bons autores, instaurando, assim, a
renovação a seu modo, já que inaugurava um tema inédito e abria caminho para uma
linguagem teatral diferenciada.
Através da reflexão de alguns estudiosos, podemos entender melhor a relação do
teatro de Jorge Andrade com seu contexto social e sua realidade cultural. Começando por
Sábato Magaldi, depreendemos, através de seu livro Panorama do teatro brasileiro (1962), toda
a atmosfera cultural que pairava no período e como os principais dramaturgos eram vistos
e caracterizados pela crítica. Encontramos, na respectiva obra, uma visão nítida acerca da
influência de nosso dramaturgo naquele contexto cultural, como também das influências
que recebeu de outros grandes intelectuais. Juntamente com alguns nomes de peso como
Nelson Rodrigues, Gianfrancesco Guarnieri e Ariano Suassuna, Jorge Andrade contribuiu
para que o teatro nacional tivesse obras de porte singulares pelo caráter de reflexão, capazes
de fazer com que a dramaturgia brasileira fosse reconhecida devido à qualidade,
demonstrando, através de bons textos, seus próprios temas e inquietações.
Partindo dessas características, Sábato Magaldi relata as qualidades de Jorge
Andrade, que teria modificado o teatro brasileiro com sua peça A moratória em 1955. Ele
teria inaugurado uma nova linguagem, recebendo, segundo o crítico, influências de
dramaturgos da mais alta categoria como Nelson Rodrigues, este com repercussão inegável
no plano da memória, da manipulação temporal, da linguagem seca e telegráfica
(semelhante à dos expressionistas). Sendo assim, Vestido de noiva (que também teria sido um
marco no teatro brasileiro na década de 40) teria exercido uma influência marcante sobre
Jorge Andrade no sentido de devolver na década de 50 o lugar que a cultura brasileira havia
perdido nos anos passados. Nesse sentido, podemos verificar os vários aspectos da
contribuição de Jorge Andrade no momento de sua produção. Alguns deles podem ser
averiguados aqui na exposição que apresentaremos, tendo como pauta a inauguração de um
novo tema e a contribuição conjunta com outros autores.

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Nosso ponto de referência é ainda o crítico Sábato Magaldi (Idem, p. 216). Para
tecer sua argumentação, ele afirma acerca da peça escrita por Jorge Andrade:

A leitura de Vestido de noiva deu-lhe a pista da nova dialogação que passaria a


cultivar: frases secas, cortantes, incisivas – um pingue-pongue contínuo em que a
palavra ressoa em plenitude ao ser explanado no palco. Também o abandono da
continuidade rígida no tempo, já experimentado na peça de Nelson Rodrigues, e a
profunda admiração por A morte dum caixeiro viajante, de Arthur Muller, sugeriram as
primeiras linhas sobre as quais pôde desenvolver a arquitetura de A moratória.

Também podemos ver nesse mesmo livro a comparação que Sábato Magaldi (Idem,
p. 239) faz entre Jorge Andrade e demais intelectuais daquele panorama cultural: “Nelson
Rodrigues, Jorge Andrade, Ariano Suassuna e Gianfrancesco Guarnieri trouxeram, a nosso
ver, até o momento, as contribuições mais efetivas e continuadas à dramaturgia brasileira
contemporânea”. Desse modo, depreendemos a relevância de Jorge Andrade para o teatro
em questão, caracterizando-se como um dos autores mais significativos do período. Em
relação a outros autores, ele se destacou como um dos grandes ícones do teatro nacional,
uma vez que, após Nelson Rodrigues, dramaturgo que propunha uma leitura diferenciada
da sociedade, optando por abrir-lhe as feridas pela denúncia de sua hipocrisia, o teatro
brasileiro estava carente de bons autores que expressassem realmente um conteúdo de
caráter nacional. Mesmo com o surgimento de grandes companhias, como por exemplo Os
Comediantes, que propunham uma linguagem teatral diferenciada, apoiando-se na direção de
Ziembinski, havia uma lacuna que desde a década de 40 precisava ser preenchida.
Tomando como ponto de partida o momento de transformações experimentado
pelo teatro brasileiro, não desconsideramos, com isso, as manifestações artísticas anteriores,
como por exemplo a de Álvaro Moreyra, que, no Modernismo brasileiro, contribuiu com
encanto e fascínio no campo das artes cênicas através de seu Teatro de Brinquedo.
Enfatizamos, apenas, que nos primeiros séculos ainda caminhávamos para a formação de
um teatro nacional, abrindo caminho para manifestações artísticas futuras que
encontrariam o devido respaldo em tais produções. No que diz respeito às incursões
nacionais, João Roberto Faria (1998, p. 112) afirma:

(...) Álvaro Moreyra merece ser lembrado em nossa história teatral. Sua peça e o
Teatro de Brinquedo são iniciativas louváveis e demonstram, nos anos 20, que os
ventos da renovação modernista atingiram o teatro, mas que também não era fácil
quebrar com a resistência das velhas formas.

Retomando a discussão acerca da contribuição de Jorge Andrade, pode-se ressaltar


que nesse período de transformações, que coincide com a aparição do dramaturgo, um

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importante empreendimento paulista surgiu. Foi a criação do TBC (Teatro Brasileiro de


Comédia) através do empresário Franco Zampari. Este importante teatro paulista revelou
grandes nomes da dramaturgia nacional, entre atores, diretores e dramaturgos. Durante as
fases de sua existência (1948-1964), o referido teatro passou por fases distintas,
sobrevivendo, em meio a dívidas e períodos de derrocada, tendo seu fechamento decisivo
no ano de 1964. Durante a trajetória do TBC, a contribuição de Jorge Andrade foi
significativa na manutenção do teatro, principalmente na década de sessenta. Duas das
peças de Jorge Andrade de maior sucesso foram encenadas no TBC (A escada e Os ossos do
Barão) e conseguiram permanecer um bom tempo em cartaz. Além do espaço concedido a
Jorge Andrade, autores nacionais como Dias Gomes e Gianfrancesco Guarnieri (além de
Abílio Pereira de Almeida que já na primeira fase do teatro marcava presença com suas
comédias) encenaram peças no TBC, atendendo, na época, a necessidade de se colocar em
cena questões nacionais que mostravam a face do brasileiro e refletiam um pouco de nossa
identidade. Com isso, acreditava-se que especialmente os autores paulistas conseguissem
alavancar peças significativas que revelassem, através dos temas que propunham a
identificação com a sociedade, um pouco da nossa brasilidade. No entanto, as expectativas
foram frustradas. Apesar de todos os esforços, esse teatro não dispensou os autores
estrangeiros e quase não havia espaço para os autores brasileiros. As companhias
estrangeiras tinham a maioria das oportunidades e prevalecia a necessidade de bons
espetáculos nacionais.
Nesse emaranhado de surpreendentes acontecimentos, tendo ainda em mente o
destaque de Jorge Andrade no teatro paulista, não podemos deixar de mencionar, ao
falarmos do TBC, de um autor que, ao contrário de vários, teve uma inegável repercussão
nesse espaço cultural: Abílio Pereira de Almeida2. Contemporâneo de Jorge Andrade, esse
dramaturgo encantava pela habilidade que possuía na construção de diálogos e agilidade
para criar tipos engraçados. O TBC foi seu grande campo de atuação, embora tenha
também se desenvolvido como cineasta e jornalista. De igual modo, Abílio também
pertencia a uma elite e retratava em suas peças temas semelhantes a Jorge Andrade, como
por exemplo a questão da terra e da tradição através das oligarquias.

2 Abílio Pereira de Almeida foi objeto de estudo de nossa tese de doutorado intitulada Descontinuidade e
literatura: historicidade de São Paulo na ótica de Abílio Pereira de Almeida. No referido trabalho, procuramos
entender como a visão do intelectual acerca da história de São Paulo se mostrava diversificada ao longo de
três décadas, procurando verificar também que nos diferentes gêneros experimentados pelo intelectual
(narrativa, teatro e cinema), uma parte distinta da história paulista era tematizada. A trajetória de Abílio se
tornou mais desafiadora pelo fato de no mestrado nos dedicarmos ao estudo da obra de Jorge Andrade
(Tempo e memória no teatro de Jorge Andrade: uma leitura de Rasto atrás) que, assim como Abílio, também se ateve,
com olhar diferenciado, a um certo segmento da sociedade paulista, tendo sido, por conta disso, considerado
o dramaturgo de São Paulo.

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É nesse contexto que podemos precisar mais de perto a relevância de Jorge


Andrade em comparação a outros autores. O que podemos dizer de Abílio Pereira de
Almeida é que este capta com muita meticulosidade, através dos diálogos construídos, um
momento de contradição da burguesia paulista. O movimento que Jorge Andrade descreve
na zona rural é semelhante ao que Abílio retrata na cidade. Com muita destreza, ele revela
ao leitor elementos escusos no cotidiano do paulista conservador. Temas como a
prostituição, a ascensão da classe média, a mediocridade e o marasmo da sociedade, entre
outros, são colocadas de maneira dinâmica em suas peças. Através delas, podemos ter um
retrato, muitas vezes exagerado, das principais figuras que compunham a terra paulista nas
décadas de 40 e 50.
Uma das análises mais bem aprofundadas do teatro de Abílio Pereira de Almeida
pode ser encontrada no estudo de uma de suas peças. Nesse livro, escrito por Gilda de
Mello e Souza, temos acesso ao ensaio intitulado Teatro ao sul. A autora faz uma análise
comparativa entre a peça Santa Marta Fabril S.A. de Abílio Pereira de Almeida e A moratória
de Jorge Andrade. Através dessa comparação, ela garante à peça de Jorge Andrade a
importância que lhe é peculiar:

Mas se Santa Marta Fabril inventa principalmente um tipo, A moratória descobre


sobretudo um tema, abrindo para a literatura teatral do sul uma nova era. Na
verdade, representa para o novo meio o que os romances de Lins do Rego
representam para o Nordeste: a descoberta de um riquíssimo filão literário, o
drama do café (MELLO E SOUZA, 1986, p. 89).

Historicamente, podemos comprovar o papel desempenhado por Jorge Andrade


dentro de uma época carente de bons autores. O compromisso com o momento histórico é
bem visível se levarmos em consideração o enredo de suas peças e a forte ligação que elas
tinham com a História brasileira, tentando, por exemplo, retratar a realidade com uma
profundidade que levava à crítica social, fazendo com que o homem tivesse consciência de
seu passado e de sua função dentro de um mundo novo repleto de desafios. Era uma nova
temática que nascia no teatro brasileiro, mostrando as tensões sociais e os dramas que
existiam por trás da máscara da tradição.
Por esse compromisso com a História e por esse novo tema instaurado, podemos
verificar a importância de Jorge Andrade na caracterização de um período e na
compreensão do mesmo através de personagens significativos. A preocupação com o
momento histórico de forma mais intensa diferenciava o intelectual de outros autores
como Abílio Pereira de Almeida e o colocava num patamar de questionamento que elevava
seu teatro para um caráter social em falta no país, conferindo à obra de Jorge Andrade um

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tom diferenciador. Esse questionamento mostra-se necessário quando se trata de


considerações acerca do teatro andradino, uma vez que sempre que aparece um movimento
novo existe uma tendência em enquadrá-lo dentro de uma categoria de engajamento. Em
especial no teatro, existe uma cobrança em encerrá-lo dentro de um clichê político, social
ou mesmo épico. No caso de Jorge Andrade, temos uma grande tendência em caracterizá-
lo como teatro épico, principalmente se levarmos em conta a sua produção final, através
das peças As confrarias e O sumidouro. No entanto, qualquer classificação assumida de
maneira definitiva foge à totalidade dos objetivos de Jorge Andrade, mesmo que
admitamos o valor social que o dramaturgo tinha em mente, conseguindo, em variadas
peças, marcar a fundo o tom de crítica a determinado segmento da sociedade. Mesmo
assim, vale a pena abordarmos algumas classificações que fizeram parte dos estudos teatrais
em momentos diversificados.
Quem discute essas questões de forma bem abrangente é Sábato Magaldi. A
preocupação do enquadramento é tão intensa que mereceu pelo menos, por parte da
crítica, uma leve explanação. Em seu livro Iniciação ao teatro (1986), ele apresenta tais
questões e tenta dar um perfil de cada tipo de teatro e a propriedade de cada um, dando-
nos uma visão geral do texto e do espetáculo. No capítulo 11, por exemplo, intitulado
Qualificativos em voga, Sábato Magaldi discute as diferenças entre teatro épico (segundo a
concepção teórica de Brecht), teatro social (que tem por objetivo inserir o homem no seu
papel social, tendo sempre um elemento condutor através da História) e teatro político (em
que a linha mestra é a luta de classes). Apontando as divergências que existem em
decorrência de cada classificação, Magaldi nos apresenta os principais problemas que
podem ocorrer dentro dessas três visões, muitas vezes atacadas (enquanto forma de atacar
o papel do teatro como arte) por diversos dramaturgos. O risco que corremos em adotar
determinada classificação para a dramaturgia de um dado autor é rotulá-lo simplesmente
como produtor de um tipo específico de cultura, desejando inseri-lo dentro de um contexto
que pode não ser o seu. Nesse caso, por exemplo, podemos cometer a impropriedade de
classificar um autor como representante de um teatro social e descartar a possibilidade de
vê-lo como representante de uma atividade política. No entanto, os textos desse autor,
mesmo que não assumam engajadamente a luta de classes, podem ter um teor político
muito mais presente do que aqueles que defendem de modo intenso esse tipo de
comportamento. O mesmo pode acontecer com um texto teatral que não trabalha
abertamente com o teatro épico de Brecht, apesar de trazer em sua escrita marcas que
revelam características narrativas. Lutar por uma classificação pura é o mesmo que

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defender a ideia de que um autor não é influenciado por forças exteriores a ele, negando,
assim, a força de um contexto de época. Mesmo quando um escritor não demonstra
claramente em seu trabalho inquietações de sua época, ele pode estar se sentindo
incomodado com a atitude de um certo segmento social e transmitir em sua produção uma
visão mais camuflada, diferente dos grupos abertamente engajados.
Por tudo isso, entendemos a preocupação de Sábato Magaldi ao apresentar esses
três tipos de classificação e propor o significado de cada uma delas. O que mais nos
interessou nessa apresentação é o tipo de teatro no qual Jorge Andrade se enquadraria. De
acordo com o perfil apresentado pela obra andradina, denotamos que o teatro social é uma
das classificações mis adequadas, devido ao fato de existir uma ligação, nesse tipo de teatro,
com um elo histórico. Sabemos que a relação de Jorge Andrade com a História é de grande
significado, bem expressa em peças como A moratória, Pedreira das almas, As confrarias, O
sumidouro etc. A respeito dessa relação do dramaturgo com a História de seu país, Catarina
Sant’Anna assinala (1997, p. 218):

Acreditando encarnar em suas peças uma visão histórica (...), Jorge Andrade,
quando acusado pela cobrança de uma posição ideológica em seu trabalho, aponta
o uso que faz da História no teatro como elemento suficiente para atestar sua
condição de artista “político”: “Escrevendo sobre a História de meu país, tentando
registrar o homem brasileiro no seu tempo e no seu espaço, eu estou sendo
político”.

Seguindo ainda nessa direção, sabemos também da preocupação social desse autor
retratada em peças como Vereda da salvação, A zebra e Milagre na cela. Essas duas últimas
peças mostram um Jorge Andrade preocupado com uma nova vertente do segmento social.
Trata-se de uma fase posterior àquela do ciclo, em que assuntos como a cegueira
proporcionada pelo futebol enquanto objeto de enriquecimento através das loterias são
retratados de outra maneira, a fim de despertar a conscientização e propiciar um momento
de reflexão sobre os acontecimentos que estavam presentes no país, mas que não
incomodavam a grande massa, acomodada em seu lugar aconchegante e sem nenhuma
preocupação com o que se passava a seu redor, dando vazão à ilusão das loterias de futebol
e à torcida por um time, na dependência de um empate ou uma vitória para ter direito a um
prêmio. Nesse caso, Jorge Andrade cumpre um papel social e faz com que questões
desagradáveis sejam colocadas à prova através da encenação, tendo em vista as perspectivas
de uma mudança. Esse caráter de denúncia faz do teatro andradino um representante do
elemento social, juntamente com o valor histórico e político bem dosados. Sendo assim, a
combinação das várias visões que confluem tanto para o político como para o social,

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valorizando o elemento humano e sua posição na sociedade, nos parecem preponderantes e


sustentáveis no conjunto da dramaturgia.
Esse trabalho humano, alvo das preocupações na arte do dramaturgo, pode ser bem
exemplificado através da peça Milagre na cela. Nesta peça, totalmente diferenciada das
anteriores presentes no ciclo, nota-se a preocupação do dramaturgo em discutir uma
questão atual e não atrelada ao passado, lançando mão de uma certa memória política para
explicar o presente. Nesse instante é um novo ciclo que se apresenta e a preocupação é
expor uma situação de horror que perturba a sociedade, embora esta não se sinta com
forças para mudá-la. Entretanto, a função do dramaturgo era denunciar sem abrir mão da
História presente que estava bem à vista, expressa nas palavras e nas atitudes de uma freira
torturada na ditadura militar devido ao seu intenso envolvimento com atividades políticas.
Nesse contexto social, Jorge Andrade procurou retratar tanto a realidade do torturador
como a do torturado, procurando explicar as causas sociais e emocionais que poderiam
unir as vertentes opostas de uma engrenagem social, desculpando até mesmo o fato de a
vítima se envolver emocionalmente com seu algoz, a ponto de não questionar a
possibilidade do envolvimento físico.
Pensando ainda na repercussão dessa peça na fase posterior do autor, a estudiosa
Catarina Sant’Anna ressalta (p. 220), apoiada em comentários do próprio Jorge Andrade:

(...) Jorge Andrade fala sobre Milagre em 1977, defendendo a necessidade de


registro daquela época difícil, para o que dizia sentir-se com liberdade e
independência: “Não trato apenas de um fato histórico, conjuntural brasileiro,
embora parta especificamente de acontecimentos, de dadas coisas, de fatos
históricos brasileiros. Seu sentido, porém, é universal, em favor da liberdade, dos
direitos do homem no mundo de hoje”; “Não é de modo algum uma peça
partidária. (...) Eu falo do homem no seu sentido histórico. Seja ele um santo, seja
um assassino. Seja fascista, seja comunista. Quero no teatro a presença desse
homem, com toda a sua problemática, suas angústias, vivências, suas contradições”
(J.A., 15-06-1977).

Revelando as mazelas da sociedade, tanto na primeira como na segunda fase de sua


produção, Jorge Andrade acharia seu verdadeiro papel na História. Retomando a primeira
fase, sustentáculo de sua produção, nos parece plausível a ideia de que o caráter de
denúncia adquirido por esse teatro se deveu ao fato da existência de um passado que foi
devidamente enterrado. Além disso, toda uma vida foi colocada à prova dentro de um
processo de sondagem do tempo. Por isso, reconhecemos um caráter social em Jorge
Andrade que se manifesta já nos primeiros instantes de sua trajetória como dramaturgo e
experimentador da História cafeeira paulista, podendo ser averiguado desde sua primeira

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peça de sucesso em 1955. O trabalho primoroso com a temporalidade já preconizava na


época a preocupação em denunciar um momento histórico marcado pela contradição de
uma aristocracia social. Através do elemento temporal, ele mostrava que a História tinha
muito a nos ensinar, tendo em vista a tentativa de uma leitura minimamente correta dessa
vertente histórica. Desse modo, o passado poderia se misturar ao presente num conflito
que acabaria na perda de uma fazenda e numa esperança que só se manteria viva através do
tempo, que num certo sentido mantinha uma característica atemporal. Sábato Magaldi, ao
analisar a peça A moratória, trabalha com a ideia de uma atemporalidade, intercruzando
passado, presente e futuro:

A moratória só poderia lançar mão de dois planos – passado e presente – para


traduzir a procura do autor. O passado, com a perda da fazenda, ainda não
concluíra o retrato da família e era necessário, assim, pintá-la na vida medíocre da
cidade, tentando em vão recuperar as posses antigas. As ideias e os movimentos
das personagens, não se adaptaram às novas condições de existência e, para
enunciar a constante psicológica, o texto joga com uma certa atemporalidade:
sugere-se um conflito no presente e ele será desenvolvido no passado, como se
fosse futuro, porque naquele mundo nada se altera de fato. (MAGALDI, 1962, p.
261)

Realmente, através dessa atemporalidade verifica-se o conflito que se estabelece e o


grande entrave social a que os personagens estão condicionados. O teatro de Jorge
Andrade se reveste de todos os tipos de mascaramento que possam revelar em toda sua
trajetória os desenlaces de uma sociedade tradicional. É através da leitura da tradição que
essa dramaturgia começa a se sustentar na primeira fase, não percebendo que estabeleceria
os subsídios para a dramaturgia futura. Talvez Jorge Andrade, ao escrever essas peças em
momentos históricos distintos, nem tenha se conscientizado de que estava entrelaçando a
sua própria história de vida. O tempo foi o indicador disso e revelou a tradição entranhada
nele como um ingrediente indispensável em seu teatro. Essa marca, sem dúvida, seguiria
Jorge Andrade por toda a vida e se manteria viva em suas peças, fossem elas as mais
diferenciadas possíveis.
Nesse sentido, podemos ver como o teatro de Jorge Andrade apresentou uma
relevância na década de 50 através desses questionamentos. Hoje em dia, esse teatro
também é reconhecido através das montagens que são e já foram realizadas em décadas
recentes, como as do grupo TAPA e a de Antunes Filho, provando que existe, ainda hoje, a
possibilidade de entender a História através de uma peça de Jorge Andrade. Atualmente,

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seu valor é reconhecido e inegavelmente seus textos portadores de qualidade e refinada


reflexão. Vejamos, por exemplo, o que diz Fernanda Montenegro3:

A dramaturgia de Jorge Andrade teve, para a década de 50, um papel similar ao de


Vestido de noiva na década de 40. Ela antecedeu em forma e concepção o papel que
depois seria exercido pelo Teatro de Arena. Dizer-se, como muitos fizeram, que
ele era um autor conservador, voltado para a aristocracia, o amargurou demais,
porque não é verdade, é mera leviandade, que só se explica por disputa no plano
ideológico. Afinal, ele era um autor essencialmente progressista.

Ainda nos dias de hoje, podemos ver que esse teatro é reconhecido como um
elemento formador da cultura brasileira. Temos que reconhecer, dessa forma, o grande
papel renovador que essa dramaturgia representou na época e representa atualmente, pois,
com vias no passado, procurou fundamentar o presente, encontrando ainda ecos na
atualidade e se sustentando através do compromisso com o social, mesmo enfrentando
dificuldades.
Quando falamos em dificuldades, não podemos deixar de mencionar todos os tipos
de problemas que Jorge Andrade enfrentou por ser um escritor requintado. Talvez a
elegância de sua escrita tenha contribuído para que ele fosse tão desconsiderado dentro de
uma sociedade que exigia tão pouco desse teatro. Num balanço atual, reconhece-se que na
maioria das vezes sua obra foi incompreendida e, por isso, muitas de suas peças não foram
encenadas. Esse trauma em sua vida se prolongou mesmo quando ele foi para a televisão.
Por um lado, foi criticado por deixar o meio teatral e aderir a um veículo de comunicação
tido como menor; por outro, seu texto na tv era considerado bom demais para uma
proposta de comunicação tão comercial. Os últimos depoimentos sobre Jorge Andrade
constatam que ele teve muitos desgostos na televisão. Sua produção não era valorizada e
em decorrência disso seu estado emocional teria se agravado. Contudo, já nas décadas
passadas, mesmo no teatro, ele já sofria represálias e os limites econômicos impediam que
fosse realizado um trabalho compatível com o nível desejado. Quem pode nos dar uma
informação precisa sobre o início da trajetória de Jorge Andrade é Gianfrancesco
Guarnieri4:

Foi difícil para Jorge Andrade conviver com as limitações econômicas do teatro
brasileiro, que exigiam textos para poucos atores. Ele tinha tamanho rigor que não
queria nem levar em conta os problemas de produção. Quando eu era ainda líder
estudantil, fui assistir à sua peça A moratória, que acabou me motivando para
escrever Eles não usam Black-tie. Em 58, depois da montagem dessa minha peça,

3 Essa declaração de Fernanda Montenegro se encontra na revista do SESC (p. 32) referente à programação
da peça Vereda da salvação encenada por Antunes Filho em dezembro/1993 a meados de 1994. Além de
declarações, contém também vários estudos sobre o dramaturgo.
4 Idem nota anterior.

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Jorge, com quem sempre mantive contato, veio me dizer que ela acabara se
transformando na força impulsora para ele continuar escrevendo.

É através desse rigor que o teatro de Jorge Andrade pode ser caracterizado. Como
diz Fernanda Montenegro, ele antecipou todo um momento de questionamento social que
seria continuado pelo Teatro de Arena. Sem dúvida, ele inspirou uma época através de seu
modo fragmentário ao se colocar diante de uma realidade carente de interpretação. Esse
teatro, hoje visivelmente reconhecido como um teatro que propõe uma volta “rasto atrás”,
pode ser analisado e colocado dentro de seu devido lugar ao ser avaliado pela crítica como
um teatro que reúne qualidades dramáticas associadas às mais requintadas exigências
cênicas. Jacó Guinsburg, ao refletir hoje sobre o teatro de Jorge Andrade, comprova que o
rigor de sua escrita era um fator fundamental dentro da dramaturgia a que se propunha:

Jorge Andrade tinha o domínio da escritura teatral, dos procedimentos e da


maquinaria cênica. Aliás, naquilo que lhe interessava, mostrou ser um virtuose.
Basta ver as suas disposições cenográficas para o contraponto entre a realidade e a
memória, magistralmente contrapostas para o jogo da interlocução não só verbal,
como visual, e os seus flashes back, que não se limitam a operar dramatizações
psicológicas, pois viabilizam também um certo metateatro e epicizações
brechtianas (GUINSBURG, 1996, p. 115).

Ele também não se esquece de demonstrar como esse dramaturgo viveu num
período que não comportava sua ambição e como seu porte de bom escritor era indesejado
num mundo em que o bom nível teatral era ainda algo por descobrir. Talvez seu modo de
ver a vida fosse um princípio que incomodava determinados segmentos sociais e, por causa
disso, a arte que produzia era relegada a segundo plano. Dessa forma, Guinsburg nos
apresenta um perfil de Jorge Andrade que chega a ser um retrato fiel de si mesmo enquanto
escritor e, consequentemente, questionador da sociedade que o oprimia:

O seu pecado como dramaturgo foi, segundo certa óptica, o de ser um bom
escritor, ou melhor, um grande escritor, cuja produção tem validade histórica além
da primordial, é certo, que é a cênica. Por isso, em um teatro como o nosso, onde
certos avanços ou modismos da linguagem cênica são feitos em detrimento de
outras expressões não menos legítimas da cena, as suas peças passaram por um
longo período de rejeição a título de literatura. Este fato foi a sua grande
frustração. A falta de um teatro de repertório que encene constantemente o nosso
acervo teatral, como ocorre em outros países, é, sem dúvida, um dos responsáveis
por tal situação. Mas outra causa e, talvez mais ainda grave, é a concepção reinante,
e às vezes redutora sobre que estilo e repertório de imagens falam efetivamente ao
público de hoje, no Brasil. O teatro não é um palco de exclusões dogmáticas.
Vanguarda e pesquisa de linguagem não excluem o texto do teatro nem o teatro de
texto. Pois nada mais literário do que Shakespeare, Calderón, Molière ou Buchner,
Tchekehov ou Pirandello que, no entanto, continuum sempre em cena, no teatro
vivo. De modo que não há como questionar a existência de um espaço certo no
tablado para uma obra e um autor do naipe de Jorge Andrade. E que assim o é,
provou-o Antunes Filho. Primeiro por ter apresentado a potencialidade de Vereda

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da salvação em duas leituras diferentes. E não há dúvida de que a mais recente


mostrou a força poética e dramática à luz da teatralidade de hoje, de Jorge
Andrade. (Idem, ibidem)

Nesse sentido, Jorge Andrade experimentou o conflito social, na medida em que


pagou por ser um bom escritor. No teatro suas obras não eram encenadas; na televisão, ele
não contava com a liberdade de escrever um texto de nível mais elaborado. Dessa forma,
ele ficou preso às contingências sociais, não podendo nem sequer desenvolver um trabalho
adequado, uma vez que se sentiu perdido nos dois meios de comunicação, sendo obrigado
também a deixar o veículo televisivo5. Talvez ele não visse nem mesmo a possibilidade de
um retorno ao teatro, já que peças como As confrarias e O sumidouro não teriam apoio para
serem encenadas, devido ao alto custo que exigiam. Catarina Sant’Anna ressalta bem a
qualidade dessas peças que, mesmo concebidas com rigor costumeiro do escritor, se
tornariam incompatíveis com a condição econômica do teatro da época:

(...) pois, em que pese toda a carga de crítica social, política e cultural ali contida,
vazada numa forma teatral dessacralizante, são obras assumidamente complexas
e de encenação onerosa, construídas, como já mencionamos, sem a mínima
esperança de que chegassem ao público, mas, e por isso mesmo, tão somente pelo
puro prazer pessoal de continuar produzindo arte (SANT’ANNA, 1997, p. 298).

Dessa forma, temos exemplificado nele um escritor que pagou demasiadamente


pelas ideias que transmitiu na produção do conjunto de sua obra. No entanto,
culturalmente, ele representa para o teatro e para a literatura brasileira um momento de
riqueza textual, no sentido de que seu teatro propõe uma infinitude de interpretações que
são, através de cada peça, inesgotáveis e, num certo sentido, muito pouco exploradas. A
capacidade de enxergar muito mais longe prova que é possível ainda, nos dias de hoje,
deixar marcas e transmiti-las num contexto que pode permanecer, mesmo depois de muitas
décadas, através do sistema e da História que se perpetua.
Partindo do princípio dessas considerações e retomando a reflexão de Heloísa
Pontes, hoje, mais que nunca, podemos dizer que Jorge Andrade é um “intérprete da
metrópole”, contribuindo, ao lado de atores, diretores, encenadores e críticos de sua época
com a fisionomia cultural da cidade de São Paulo. Sem a obra do dramaturgo, de certa
forma, torna-se mais difícil, no campo da dramaturgia, a compreensão de nossa História,

5 A proposta de dramaturgia de Jorge Andrade causava certa repulsa. Isso se dava porque seus textos eram
muito bem cuidados. O autor se preocupava com a qualidade dramatúrgica e não somente com a produção
televisiva de modo desqualificado. Esse tipo de comportamento o levou a ter problemas futuros, como por
exemplo sua última novela na Rede Bandeirantes (Sabor de mel) em que o dramaturgo foi despedido antes do
término da obra. Isso o amargurou muito, uma vez que na própria televisão conseguiu produzir trabalhos de
alto nível como a novela Ninho da serpente, em que o problema da tradição e do apego às origens pôde ser
retomado através de um outro veículo.

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uma vez que esta se mistura com a História paulista em variadas dimensões. Apoiado na
leitura de todo um passado que se completa no ciclo paulista de Marta, a árvore e o relógio,
bem como nas peças subsequentes, tendo em Milagre na cela uma das representantes vivas
da ditadura militar, o dramaturgo revela a consciência de sua visão histórica ao passar por
fases diferenciadas da História paulista, demonstrando, em momentos singulares (ao
mesmo tempo em que é fiel à História de seu país), as descontinuidades desse processo, o
qual teve seu panorama modificado num período de trinta anos de observação do
dramaturgo. Nesse sentido, consideramos Jorge Andrade um grande leitor das
transformações registradas na História paulista e no teatro brasileiro, colocando-o na
categoria de intérprete da metrópole paulista, uma vez que ele (juntamente com diretores,
atores e atrizes, que conferiram à cidade de São Paulo certa fisionomia no exato momento
de suas respectivas atuações), captou analiticamente, com certa dose de precisão, as
nuances de certa elite, bem como de uma tradição que, em momentos diferenciados,
construíram a fisionomia cultural de São Paulo.
Assim sendo, atestando o caráter qualitativo dessa produção, concordamos com
João Roberto Faria ao dizer (1998, p. 143): “Não creio que haja, na dramaturgia brasileira,
outro autor que tenha aproveitado tanto quanto Jorge Andrade as experiências e vivências
pessoais. O terreno em que ele se move é o mundo que traz dentro de si”.
Essas experiências, marcantes na dramaturgia andradina desde a sua primeira peça,
se processam ainda hoje nas comemorações de que é alvo e nos alertam: se as novas
gerações, no futuro, procurarem referências significativas que possam influenciá-las, uma
das fontes dignas de credibilidade será a visão de mundo que se sustenta no teatro
questionador de Jorge Andrade. Ninguém melhor que ele entendeu a História de São Paulo
e a escreveu, inserindo-a em seu país. Por esse motivo, o momento de renovação não se dá
apenas no que se refere à nacionalidade reivindicada num certo período, mas num contexto
maior que busca nas diferenciadas leituras do país a identidade de um passado e de um
presente, que mesmo depois de um tempo considerável ainda é alvo de reflexão nas
encenações contemporâneas do teatro de Jorge Andrade.
Tomando como referência uma declaração do escritor, fruto do desânimo e do
descrédito concedidos a ele, principalmente nos momentos finais de sua trajetória,
podemos discordar, na atualidade, com certo orgulho, da voz destoante de Jorge Andrade
(apud SANT’ANNA, 1997, p. 86): “ ‘o teatro brasileiro vem sendo destruído há mais de dez
anos’ – Jorge Andrade, 13-08-1978”. Mesmo levando em consideração o tom pessoal de tal
afirmação, acreditando também no trabalho primoroso realizado por outros dramaturgos,

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conforme visto anteriormente, podemos, se olharmos com cuidado e rigor o conjunto da


obra de Jorge Andrade, averiguar que o legado deixado por ele é inspirador, impactando,
ainda hoje, novos atores e diretores que se valem do passado para entender o presente nas
suas dimensões mais profundas, preparando o terreno para que daqui a dez anos (ou mais)
olhemos para trás e enxerguemos a valiosa contribuição de Jorge Andrade.
Esse é o trabalho do historiador: cultivar terrenos, mesmo que o exercício da
História se processe através da arte e desemboque no teatro a partir de experiências
pessoais que se misturam às aspirações da coletividade.

BIBLIOGRAFIA CITADA:

ANDRADE, Jorge. Marta, a árvore e o relógio. 2. ed. São Paulo, Perspectiva, 1986.
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Jorge Andrade: dramaturgo de São Paulo. In: Metrópole e
cultura: São Paulo no meio século XX. Bauru, EDUSC, 2001.
FARIA, João Roberto. A dramaturgia de Jorge Andrade. In: O teatro na estante. São Paulo, Ateliê
Editora, 1998.
GUINSBURG, Jacó. Um teatro em rasto atrás. In: Revista da USP – Dossiê Florestan Fernandes. no.
29. maio a julho, 1996. pp. 113-5.
MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. Brasília: 2ª. Edição, Rio de Janeiro, SNT, 1962.
MELLO E SOUZA, Gilda. Exercícios de leitura: o baile das quatro artes. São Paulo, Duas Cidades,
1986.
NAZÁRIO, Aparecido José Carlos. Tempo e memória no teatro de Jorge Andrade: uma leitura de Rasto
atrás. 1997. Dissertação (mestrado em Teoria e História Literária). Campinas, Unicamp/Instituto de
Estudos da Linguagem.
PONTES, Heloísa. Intérpretes da metrópole. São Paulo, EDUSP/FAPESP, 2010.
PRADO, Décio de Almeida. Apresentação do teatro brasileiro moderno. São Paulo, Martins, 1956.
SANT’ANNA, Catarina. Metalinguagem e teatro: a obra de Jorge Andrade. Cuiabá, EdUFMT, 1997.
Revista do SESC – Referente ao programa da peça Vereda da salvação, encenada por Antunes Filho
de dezembro de 1993 a meados de 1994.

Abstract: This paper aims to investigate some aspects of Jorge Andrade's playwriting, emphasizing,
by an analysis of his most important plays, the writer's social contribution for Brazilian theater. In
his plays, Jorge Andrade not only developed themes related do São Paulo's History, but also opened
space in theater for the discussion of different approaches.about the country's History.

Keywords: Jorge Andrade; History; São Paulo.

Aparecido Nazário

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