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Este material é uma tradução livre do capítulo 8 do livro

Aphro-ism: “Essays on Pop Culture, Feminism and Black

Veganism from Two Sisters”, escrito pelas irmãs Aph e Syl Ko.

O portal “Aphro-ism” era um espaço digital dedicado ao

pensamento crítico, conversas intelectuais e ensaios

sondadores, centrados no feminismo descolonial, no

veganismo, nos animais e no anti-racismo. O site foi criado

originalmente em 2015 e todos os ensaios foram removidos,

editados e publicados pela Lantern Books em junho de 2017.


Tratar do Racismo Requer Tratar da Situação dos Animais
Syl Ko1

A maneira como escolhemos tratar e “fazer algo”

a respeito de violações ou danos cometidos contra

grupos vulneráveis importa. É compreensível que

queiramos sentir que estamos “fazendo algo” sobre um

problema e, ao querermos nos sentir assim, nos

apressamos para “fazer” aquele “algo”. Mas, muitas

vezes, ao nos apressarmos para “fazer algo” sobre um

problema, involuntariamente reproduzimos ou

perpetuamos a violência ou o dano contra o qual

protestamos, precisamente pelos métodos ou maneiras

de pensar que usamos.

1 Syl Ko estudou filosofia na Universidade Estadual de São


Francisco e na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel
Hill. Atualmente, ela está trabalhando em um livro que explora
as "formas de vida" de Wittgenstein, defesas do uso de animais,
levando em consideração a racialização do animal.

2
Às vezes, não nos passa pela cabeça que o trabalho

prosaico de pensar sobre e discutir como deveríamos

fazer algo sobre algum problema é fazer algo sobre o

problema. É somente ao discutir e pensar sobre como

aquele problema surge, como ele se apresenta, como é

mantido, que conseguimos determinar o que é o

problema. E, frequentemente, o problema parece

completamente diferente do que era quando as

discussões iniciaram.

A base ideológica para o website Aphro-ism é o

resultado de anos de discussões entre mim e Aph,

envolvendo assuntos relacionados com sermos

mulheres negras nos Estados Unidos. Finalmente, essas

discussões foram se ampliando para como a nossa luta

é relacionada às lutas de outros grupos racializados nos

EUA e às lutas de grupos racializados ao redor do globo.

Fomos incentivadas a criar este espaço único após

entendermos que temos uma maneira muito diferente

de entender o que é o problema para povos racializados

3
e, assim, para como devemos proceder no nosso

ativismo, considerando essa rearticulação do problema.

Acreditamos que falta algo crucial na maioria das

discussões sobre racismo e em quase todas as

estratégias para resistir ou combater o racismo: a

situação dos animais.

Obviamente que pessoas de cor, em espaços de

ativismo, abordam “o animal”, ao menos

conceitualmente, de alguma maneira. Por exemplo,

quase toda boa análise de racismo ou colonialidade

normalmente chama atenção para o grau em que

povos racializados são animalizados. Isto é,

animalizamos ou desumanizamos certos povos,

individualmente ou como grupos, para assim justificar

sua violação.2
2 Em ambientes veganos e de direitos dos animais, é comum
que os membros explorem o racismo ou práticas racistas,
normalmente o comércio transatlântico de escravos, como
uma forma de criar uma analogia produtiva entre a situação
de animais não-humanos e aquela de grupos humanos
oprimidos. Mas essas analogias normalmente são apenas isso:

4
A professora de Direito Maneesha Deckha nota que

“o castigo em corpos animais é percebido como

violência legitimada por conta do status não-humano

da espécie envolvida”.3 Resulta que, se conseguimos

convencer o senso comum que certos grupos não se

encaixam no “humano” – são irracionais, têm valores

“bárbaros”, têm sistemas de crenças “inferiores”,

comportam-se “como animais”, entre outros –

legitimamos a ação contra esses grupos em formas que

seriam, de outra maneira, consideradas extremamente

inapropriadas e criminosas.

Interessantemente, no entanto, a maioria das

análises no discurso antirracista, no que envolve

analogias. Embora alguns ativistas se assegurem de analisar


mais profundamente esses horrores como manifestações do
mesmo sistema, geralmente falham ao não afirmar o que trato
aqui: que racismo e especismo não deveriam ser tratados
independentemente, já que especismo é pensamento racial.

3 Conferir o artigo fantástico da professora de Direito Maneesha


Deckha: “The Subhuman as a Cultural Agent of Violence,”
Journal for Critical Animal Studies, Vol., No. 3 (2010): 28–51.
(Ainda sem tradução para o português)

5
animalidade, param aí. O que costuma seguir são

objeções sobre a animalização de grupos de cor.

Pessoas de cor são humanos, também; então,

deveríamos tratá-los como humanos, não como

animais. Note que há aqui uma aceitação irrestrita do

status negativo de “o animal” que, a meu ver, é uma

aceitação tácita do sistema racial hierárquico e da

supremacia branca em geral.

A divisão humano-animal é a fundação ideológica

que sustenta a estrutura da supremacia branca. A

noção negativa de “o animal” é a âncora desse sistema.

“Branco” não é apenas a raça superior, é também

o modo superior de ser. Ocupando o topo da hierarquia

racial está o humano branco, onde espécie e raça

coincidem na criação do ser supremo. Repousando no

fundo como o oposto abjeto do humano, da

6
branquitude, está a (necessariamente) nebulosa noção

de “o animal”.4

Citando o excelente livro de Sherene Razack sobre a

ausência de muçulmanos no Direito ocidental,

publicado em 2007 e intitulado Casting Out: The Eviction

of Muslims from Western Law and Politics, Deckha afirma:

“É o pensamento especista que ajuda a criar a

demarcação racial. Pensar em raça, a negação de uma

ligação humana em comum entre as pessoas de

4 O que estou sugerindo é que [humano branco macho] forma


uma única categoria. Então, não estou dizendo que há três
categorias que formam o nível superior: [humano] + [branco] +
[macho]. Também, penso que vale apontar que, devido à
obsessão ocidental com a individualidade, as plantas e a
“natureza” geralmente estão ausentes do esquema (ou o
[animal] compactado na ainda mais genérica e ofensiva
redução da complexidade de diferentes formas de vida:
[natureza]). Obviamente, quanto menos “individualidade”
percebemos, menor é o seu valor moral. Isso contribui para o
entendimento de por que membros de grupos racializados
denunciam que não são vistos como “indivíduos”, mas sim
como representantes do grupo inteiro. Como menciono mais à
frente, no entanto, não tenho certeza de que esse protesto
funcione a nosso favor.

7
ascendência europeia e as que não a têm, é uma

característica definidora da ordem mundial tanto hoje

como no passado.”5

A hierarquia racial e o racismo, sem falar no

pensamento racial que eles geram, foi a nova forma

para que europeus brancos ocidentais no período

colonial, legal e moralmente, classificassem grupos fora

da zona “humana”. Desta forma, os autores desse

sistema estavam profundamente interessados numa

rígida divisão especista na qual “humano” indicava o

domínio da moralidade e da lei, e “animal” era o espaço

de ausência do ser e de falta de lei, apontando para

uma necessidade de ser controlado, disciplinado e

contido pelos “humanos”.6

5 Deckha, op. cit.: 38.

6 Extrato de Deckha: “[Sherene] Razack destaca o fenômeno do


‘campo’ – espaços onde estados aprovam leis ou tomam outras
medidas para criar uma zona sem lei intocada pela régua dos
princípios da lei”. Esta é uma “característica notável de muitos
campos” hoje: “indivíduos racializados identificados como
terrorista ou ameaças migrantes e, portanto, faz-se necessário
confinamento e disciplina” (34). Deckha continua e nota que

8
Como autores do modelo racial, os homens

brancos ocidentais criaram a ideia deles próprios como

representantes da humanidade. Eles eram os objetos da

moralidade e da lei e, não por acaso, os sujeitos que

ditavam como deveríamos pensar sobre noções como

moralidade, lei e justiça.

Sua noção de “o animal” – construída sob seu

modelo branco supremacista como “subhumano”,

“não-humano” ou “desumano” – é o veículo conceitual

Razack chama esses espaços de “estado[s] de exceção” e diz


que “o efeito da guerra ao terror tem sido de normalizar
discursivamente esses espaços e a violência que eles infligem”
(35). Aqui está outra citação relevante de Razack, citada por
Deckha (37): Embora o pensamento de raça varie, para
muçulmanos e árabes, ele está fincado na ideia de que povos
seculares iluminados devem se proteger de povos religiosos
pré-modernos cuja lealdade à tribo e à comunidade estão
acima do seu comprometimento com a lei. A marca do
pertencimento à esfera da cultura e da religião, em oposição à
esfera da lei e da razão, tem consequências devastantes... [O]
Ocidente tem frequentemente definido os benefícios da
modernidade para aqueles considerados fora dela. Excluídos do
universal, e consequentemente da civilização e do progresso, o
não-Ocidente ocupa uma zona fora da lei. A violência pode ser
dirigida a ele com impunidade. (Razack, 2007)

9
para a violência justificada ou, como Deckha também

coloca, uma “categoria produtora de violência”.

Considerando que o racismo requer essa noção de

animalidade, considerando que racismo e pensamento

racial não teriam sentido sem a animalidade, aqueles

que estão interessados em resistir ou combater o

racismo precisam considerar seriamente por que o

status de “o animal” é o que é.

Ao relevarmos um dano causado contra um ser

dizendo “É só um animal”, precisamos questionar o uso

de “só” nessa frase. A divisão (binária) humano-animal,

na qual “o humano” e “o animal” formam polos opostos

e, portanto, marcadores de status opostos numa

“cadeia do ser”, não é um modelo objetivo que caiu dos

céus. “O humano” e “o animal” foram estabelecidos

através do postulado do sistema racial.7 Do mesmo

7 Para uma genealogia do “humano”, ver Sylvia Wynter:


“Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom:
Towards the Human, After Man, Its Overrepresentation—An
Argument.” CR: The New Centennial Review, Vol. 3, No. 3 (Fall
2003): 257–337.

10
modo, categorias raciais delimitando modos de “ser” e

graus de superioridade/inferioridade não são parte de

um modelo objetivo que deve ser considerado para

refletirmos sobre ou organizar conceitualmente

membros do mundo. Ambos os modelos, que estão

profundamente interligados, e não fazem sentido

independente um do outro, foram criações inventadas

por uma pequena porcentagem de pessoas que se

consideravam o único ponto de conhecimento e,

através de séculos de violência, genocídio e controle

fizeram sua visão de mundo, deles próprios e de outros

universal.8

Fica claro para mim que se queremos,

verdadeiramente, enfrentar supremacia branca,

8 Para mais sobre este tópico, ver o ensaio de Walter D. Mignolo:


“Sylvia Wynter: What Does It Mean to Be Human?”, em Sylvia
Wynter: On Being Human as Praxis, edited by Katherine
McKittrick (Durham, N.C.: Duke University Press, 2015): 106–23.
Também recomendo a entrevista de Hasan Azad com o
professor de antropologia Talal Asad em Islamic Monthly
(October 20, 2015), na qual Asad discute as noções
eurocêntricas de “humanidade” e “civilização”: http://
theislamicmonthly.com/being-human-an-interview-with-talal-
asad/

11
racismo e colonialidade (de qualquer maneira que se

queira falar sobre isso), então precisamos fazer o

mesmo com a visão persistente e aceitada de que “o

animal” é o marcador de status oposto ao “o humano”.

Enquanto essas noções de “o animal” e “o humano”

estiverem intactas, a supremacia branca permanece

intacta.

Por esta razão, aconselhei contra a estratégia de

“humanizar” grupos de cor, ou ganhar proteções para

grupos vulneráveis baseadas em sua humanidade.

Deckha igualmente nos alerta sobre confiar em teorias

nas quais o subhumano é crucial, tais como as teorias

humanistas e liberais: “Seja motivado por um foco na

vulnerabilidade humana, na vulnerabilidade não

humana, ou em ambas, almejar projetos anti-violência

com o status quo antropocêntrico atual coloca

seriamente em risco esses mesmos projetos.”9

Como resultado de sustentar essa posição singular –

isto é, que enfrentar a supremacia branca vai envolver

9 Deckha, op. cit.: 46.

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enfrentar a divisão humano-animal – temos que ser

criativos na maneira de proceder com o nosso ativismo.

Como mencionado, precisamos nos afastar de teorias

que se sustentam, fundamentalmente, na divisão

humano-animal. Embora a utilização da divisão

humano-animal possa trazer algum alívio para um

problema, não ajuda em nada a chegar na raiz do

problema, na base de sustentação da lógica da

supremacia branca. Ao nos acomodarmos com

melhorias temporárias sem tratar da “violência

produtora de categoria” do animal/subhumano/não-

humano, abrimos as portas para a garantia de danos

futuros, os quais – considerando os avanços

tecnológicos - serão mais destrutivos que nunca.

Ao pensarmos que um comprometimento sério com

o anti-racismo envolverá um comprometimento

profundo com os animais, os portadores diretos das

consequências infelizes do marcador de status negativo

“o animal”, nós também devemos tomar cuidado com

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abordagens típicas ao estender o cuidado para os

animais.

Assim como as principais iniciativas anti-racistas, que

erram ao considerar o elemento espécie da lógica

racista, muitas das principais iniciativas anti-especistas

erram ao considerar a mesmíssima coisa presente na

lógica especista. Entretanto, relativamente e mais

importante, como mencionei antes, homens brancos

ocidentais tomaram para si o papel de serem as únicas

vozes para dizer como devemos pensar sobre noções

tais quais justiça e moralidade, sem mencionar

inúmeras outras ideias cruciais escondidas em nossas

formas de pensar sobre o mundo.

Uma grande parte de enfrentar o racismo está em

rejeitar a posição de que vozes e visões brancas ocidentais

são as únicas vozes e visões legítimas no mundo.

Não vejo por que devemos tentar ampliar as visões

de, digamos, John Rawls ou Immanuel Kant em vez de

buscarmos outras perspectivas, enraizadas em

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tradições diferentes, anti-racistas, ou mesmo criarmos

uma nós mesmas. Não vejo por que temos que honrar a

hiper-obsessão com a “pessoa” ou o “indivíduo” no

ocidente e tentar ampliar os conceitos de pessoalidade

ou individualidade para os animais a fim de

repensar/reimaginar a animalidade. Podemos

simplesmente resistir a essa obsessão como um todo –

resistir à ideia de que preocupação, cuidado ou

proteções devem estar relacionadas a “um indivíduo”.

Não vejo por que temos que tentar encontrar algum

princípio abstrato ou alguma capacidade ou

característica que seja a capacidade ou característica

“conferidora de status universal” e tentar provar que

isso se aplica a todos os seres que tentamos cobrir.

Mas também não acho que a forma de fazer o

trabalho de enfrentamento que recomendei é evitar a

terminologia que é chave para esta discussão: fingir

que as noções de “humano” e “animal” não existem ou

que elas não podem ser úteis. Esta abordagem poderia

ser um método desastroso, até perigoso, de ser

empregado, e então eu não o recomento – pela mesma

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razão eu não incentivo evitar termos raciais ou fingir

que não existem. Evitar é ineficiente e não contribui

para tratar do racismo ou da situação dos animais e, na

verdade, pode ajudar a manter esses fenômenos.

Por exemplo, embora as leis dos EUA não façam

mais nenhuma referência explícita a raças, são bem

efetivas na manutenção do racismo. Evitar esses

termos-chave como uma estratégia de enfrentamento é

desconsiderar a natureza das palavras e noções, e quão

profundamente engendradas elas estão em nossas

atitudes, práticas e instituições, quer nos refiramos

explicitamente a elas ou não.

Tentei defender que o trabalho anti-racista vai

requerer uma liberação que talvez não tenhamos

incialmente previsto: a liberação da divisão humano-

animal e, como resultado, a separação da conexão entre

“animalidade” e “não-status”. Também direi que,

considerando a minha perspectiva, estou afirmando

que a melhor defesa em favor dos animais contra

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violação será gerada de dentro do comprometimento

anti-racista. Diferentemente de outras, não os vejos

como comprometimentos conflitantes e, na verdade,

acredito que essas questões devam ser tratadas juntas.

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