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RESUMO
Apesar da ciência afirmar que “raças” são construções sociais, muitas vezes as
categorias raciais são utilizadas sem investigação histórica, dada a abordagem de somente
um tipo de racismo em contextos mais “óbvios” (ex: “judeu”). Só quando
questionamos as várias formas de discriminação como “racismo” é que a definição e os
processos de racialização começam a ser pensados.
No geral, hoje “raça” é vista como um fenômeno a ver com diferenças físicas
entre grupos de ascendência comum, já “etnicidade” sobre diferenças culturais. Fruto
da separação biologia x cultura pelas ciências sociais (sec. XIX e XX), conveniente aos
discursos racistas ligados a “atrasos culturais”. Antes a tendência era mais ou menos
lamarckiana, em que a cultura era expressão do “sangue” herdado. Uma definição do
racismo não pode, assim, basear-se em distinções entre fenótipo e cultura.
Um grupo étnico, para Weber, é um grupo humano com uma identidade coletiva
baseada na origem comum, real ou imaginada. Barth acrescenta que elementos culturais
específicos salientam a distinção de um grupo para outro. Hoje, há um consenso entre
antropólogos que um grupo étnico não equivale a uma “cultura”, a delimitação das
fronteiras étnicas só importam em interações grupais que permitem sua manutenção.
Podemos estender a lógica de Barth para as diferenças físicas, dado que são socialmente
construídas e somente certas são reconhecidas, sendo também uma fronteira étnica.
A definição sociológica do racismo deve também reconhecer a relação entre
ideologias ou discursos racistas e práticas de dominação racial, dada a importância da
racialização das instituições sociais na durabilidade do racismo e seu sentido. Desenvolve-
se a definição de racismo em elementos de dominação étnica e ideologia, se
caracterizando pelo essencialismo negativo, definindo como intrínseca e duravelmente
negativa as características de um grupo étnico, servindo como justificativa de dominação ou
exclusão do grupo.
Nesta concepção, o fenótipo pode servir como pertencimento racial, mas a
racialização é consequência da dominação étnica, assegurada pela internalização no
habitus racial do indivíduo das categorias raciais.
1 Barton
“raças” superiores (ex: aristocracias pensavam ser descendentes dos
conquistadores). Com o colonialismo, imperialismo e nacionalismo essa noção de
superioridade se difundiu. Porém, havia mecanismos de mobilidade além da
ascendência, adquirindo-se títulos de nobreza. Nas justificativas bíblicas da escravidão e
suposta inferioridade dos negros, a culpa da condenação deles era dado algum pecado de
um ancestral ou uma maldição da pele escura marcado por Deus.
Com o tempo, “raça” passou a se referir a povos inteiros - grupos étnicos. É
somente a partir do racismo científico europeu e norte-americano do século XIX que se
estabeleceu a noção de “raças” como tipos humanos permanentemente distintos (“raça
nórdica x latina”). No século XX passou-se a aceitar o esquema branco-negro-amarelo-
vermelho, de origens continentais, além de outras racializações (ex: antissemitismo
europeu). Pós-2ªGM, há certo grau de consenso na ciência que “raças” biológicas não
existem, a variação genética é pouco relacionada com as origens continentais. As
diferenças físicas geralmente resultam de pequenas mutações, adaptações a ambientes
distintos, sendo absurda a crença racista de correlação entre físico e moral.
Os cientistas sociais e psicólogos também contribuíram para debelar essa crença
em qualidades internas características de “raças”, mostrando que a maioria dos
comportamentos é produto do contexto social e história, aqueles que são componentes
biológicos, são apenas potencialidades, cuja realização depende da história e do contexto.
Ainda existe uma tendência popular, estimulada por políticos, de misturar e confundir
a ancestralidade, a história compartilhada e a cultura dos povos estigmatizados. Separar na
análise sociológica discriminação cultural da física servem muitas vezes como eufemismos
para o racismo que é visto como inaceitável, utilizando termos velados como “etnias”,
“imigrantes” e “culturas”. Na Europa continental, Reino Unido e EUA os grupos étnicos são
essencializados: os muçulmanos são “resistentes à integração”, “machistas”, “simpatizantes
do terrorismo” ; a pobreza da população negra é fruto de uma “cultura de pobre”. Esta
opinião que exime a população branca de responsabilidade, tal como brasileiros brancos a
respeito das comunidades carentes de maior concentração de pretos.
A reprodução do racismo
Como qualquer instituição social, o racismo não continua por força própria.
Sewell mostra que qualquer falha na reprodução social pode reverberar em mudanças
sociais imprevisíveis, sendo elas relacionadas. Sahlins reitera tal pontuação, porém mostra
que várias instituições sociais e os sistemas simbólicos sobrevivem a períodos de
mudanças intensas, essas servem de base para a reconstrução do mundo social. Giddens
enfatiza que mesmo nas mudanças radicais, os humanos precisam mobilizar as categorias
existentes, o que reforça-as.
A reprodução do racismo envolve pelo menos cinco ordens da realidade social:
- as instituições: Omi e Winant denominam o que o “Estado racial” abrange não
somente as leis, mas seus órgãos. Estes são contraditórios, alguns racionalizam
e discriminam, outros tentam combater com projetos sociais. Além do Estado, as
categorias raciais podem estar em escolas, empresas, igrejas e famílias;
- as redes sociais: tendem a ser racializadas. No Brasil, negros e mestiços
concentram os setores subordinados e periféricos das redes, a natureza das
redes sociais brasileiras facilita a exploração racial simbólica ao mesmo tempo
em que intensifica o controle sobre os negros e fragmenta sua resistência,
contribuindo para a reprodução da dominação racial;
- as representações e ideologias: aspecto da realidade social mais comumente
analisado, dada às ideologias raciais são acessíveis ao método de pesquisa
intelectual. Porém, as representações racionalizadas incluem uma ampla
variedade de fenômenos, como estereótipos raciais parcialmente subconscientes;
- as interações sociais: Giddens enfatiza que as rotinas e normas informais da
interação delimitam o comportamento aceitável ou despropositado. Também
existe um conjunto de normas de comportamento e interação impostas pelo grupo
dominante que reforçam a coerência interna do gripo e sua capacidade de manter
os subordinados no “seu lugar”;
- e o habitus racial: importante em situações de mudança nas instituições, como
a abolição, porque o habitus é relativamente durável; as disposições e formas de
percepção racializadas que se internalizaram sob o antigo regime racial
continuaram. Para Bourdieu, o habitus é a internalização das estruturas do mundo
social, na forma de disposições, categorias cognitivas e esquemas de ação. Para
ele, o habitus não é segmentado e parcialmente contraditório, o autor sim
considera que o habitus corresponde às lógicas estruturais parcialmente
diferenciadas das instituições e campos sociais distintos que o indivíduo atua.
Sewell demonstra que qualquer sociedade inclui várias estruturas e sistemas
culturais (posso ser escravo, colega de trabalho e pai). As lógicas distintas e
potencialmente contraditórias de diversas esferas institucionais são internalizadas
como aspectos distintos do habitus.
As primeiras experiências formam as camadas mais profundas do habitus, e as
categorias raciais expostas em um novo contexto podem acionar disposições
mais profundas distintas do habitus local que se encontra. O habitus possui
também esquemas de percepção, que classificam as situações sociais e acionam
disposições para cada situação.
Em épocas de mudança institucional, desentendimentos e conflitos sobre a
definição de situações cotidianas são mais prováveis.Pós-abolição, ex-senhores
e escravos tinham visões diferentes sobre o que podiam fazer, assim como
dignidade e igualdade para os negros era vista como ultraje e violência.
O pós-abolição na América
Na América espanhola e nos EUA, a abolição da escravidão foi uma tática de guerra
(recrutamento para exército da liberatação, enfraquecimento dos confederados), o que
provocou muitas vezes um desequilíbrio demográfico muito grande que empobreceu
muitas mulheres e crianças negras. Com algumas exceções notáveis, como o Haiti após-
revolucionário ou o Sul dos EUA, os ex-escravocratas continuavam com seu poder,
enquanto os libertos apenas com sua “liberdade”. Os abolicionistas brancos haviam lutado
contra uma instituição dado valores próprios, mas nunca pensaram em igualdade. Os
libertos não foram abandonados a própria sorte, em diversos contextos foram inclusive alvo
de medidas repressivas do Estado (leis anti vadiagem, criminalização cultural e religiosa).
O brancos “ameaçados” pela competição se organizaram para exclusão dos negros das
boas terras e empregos. O resultado seria a forte tendência dos negros continuarem
pobres pós-abolição.
Nessa linha, o habitus social dos brancos naturalizada a pobreza dos negros, assim
como ditava a resistência como indícios de defeitos inerentes dos negros. Esses fenômenos
gerais se manifestaram de formas diferentes, dependendo das especificidades regionais e
dos diferentes ritmos temporais, lembrando que a abolição chegou tardiamente aos EUA, ao
Brasil e a Cuba.
As regiões de maior concentração de negros no pós-abolição quase sempre
eram aquelas com predominância histórica de fazendas escravistas, como o Nordeste
brasileiro, no qual reforçaram a violência e dependência com concessões de usufruto
ou parcerias. O atraso e a pobreza típicos dessas regiões também levou o atraso
regional como culpa dos negros ao habitus racial dos brancos. Como argumenta W.
Arthur Lewis, as regiões de fazendas tropicais e subtropicais continuavam pobres dada a
competição mundial. Segundo ele, as limitações das políticas racistas de imigração das
colônias e ex-colônias europeias contribuíram mais para a divisão do mundo entre países
ricos e pobres do que as políticas dos países metropolitanos à industrialização. As
migrações internacionais de grandes números de trabalhadores pobres e as
oportunidades e políticas ditadas nos destinos contribuíram para o nivelamento de baixos
salários, endividamento por custos, restrições dos contratos, constituindo um contexto de
reprodução do racismo. A nova categoria de mão de obra semisservil, com
“enganações” aos imigrantes contribuiu ao habitus racial.
Um terceiro tipo de contexto do pós-abolição na América é consequência da
busca de muitos negros por terras e autonomia, com migrações para regiões afastadas,
fazendas abandonadas. Andrews enfatiza que esses lugares proporcionaram dignidade
por pouco tempo, dada a expropriação posterior. Essas comunidades autônomas de
negros (Brasil-comunidades quilombolas). com propriedade comuntária da terra e
tradições festivas e religiosas de matrizes africanas, foram estigmatizadas como atrasadas
e semiselvagens pelos liberais. Um quarto contexto geral de reprodução do racismo eram
os territórios com agricultura altamente produtiva e indústrias crescentes, dada a atração
de imigrantes europeus com os negros em desvantagens competitivas.Alguns países
inclusive fizeram leis limitando ou barrando a imigração de não brancos (ex: italianos x
chineses no Brasil). Os negros já existentes nessas regiões de clima temperado ou
subtropical não podiam ser barrados por políticas de imigração, mas competiam com os
imigrantes e sofriam racismo (até chegaram a ser usados como fura-greves no Norte EUA).
São Paulo e Cuba são as únicas duas regiões de fazendas escravistas da
América a receber grandes números de imigrantes europeus. Em ambos os
contextos, dado os custos da imigração, havia uma tensão entre as elites que
queriam branquear a população versus os fazendeiros em busca de mão de obra de
qualquer cor. São Paulo se destaca também pela industrialização do período, além de
“importar” imigrantes com toda sua família e com uma durabilidade e até fixação maior,
diferente de Cuba. Sendo assim São Paulo permite examinar a reprodução e mutações
da dominação racial de brancos em um contexto onde boa parte dos europeus
inicialmente era pobre tal qual os negros.
Mattos apresenta evidências de que, no século XIX, o termo pardo era usado para
negros nascidos livres, então não podemos comparar os pardos de 1886 com os mulatos. O
emprego desta terminologia em 1997 sugere as categorias raciais predominantes se
referiam a cor da pele e fenótipo, ainda se remetendo ao contraste dos escravizados e
nascidos livres. O desaparecimento de “caboclo” constitui mais evidência de que era
principalmente a cor da pele que embasava as categorias raciais, embora vários
deixaram o município em busca de ocupação de terras como posseiros.
São Carlos chegou a ocupar o primeiro lugar em 1894 em atração de estrangeiros.
Entre 1887 e 1902, 64% dos imigrantes eram italianos. Os estrangeiros em 1907
constitiuam 40% da população, subestimando a presença imigrante, dado que
descendentes foram contatos como brasileiros. Em 1907, 67,1% dos chefes de família eram
imigrantes, metade de italianos. No mesmo ano pretos e mulatos eram apenas 12,5%.
Os brasileiros pretos eram o terceiro maior grupo, quase 8%. Logo, mesmo no
Oeste paulista, onde segundo a literatura a presença de imigrantes resultou na
marginalização dos negros, a persistência destes nos cafezais surpreende. A trajetória
identificada por Rios, o “pacto paternalista” era uma possibilidade real, a segunda trajetória,
a itinerância era possível também, mas a terceira, com o estabelecimento de comunidades
independente de negros era menos viável nesta região, dado o desestímulo de
doação/”achado” aos libertos pela valorização das terras pelo café.
A tabela 3, mostra que boa parte da literatura errou ao afirmar que os negros só
trabalhavam como camaradas ou trabalhadores especializados no Oeste Paulista. Com o
colonato permitia-se certa mobilidade social, o acúmulo de dinheiro permitia a
compra de pequenos sítios e negócios. Como esperado, mostra-se que os italianos e
espanhóis concentravam-se no colonato, mas que era a categoria ocupacional mais
comum entre chefes negros de família (43,5% de pretos e 31,3% multados). que
somadas eram mais numerosas que as de colonos espanhois ou portuguesas. Tal
análise, porém, subestimou o número de camaradas imigrantes, dado que vários italianos e
portugueses migraram para São Paulo sozinhos.
Estrutura familiar
Florestan Fernandes propôs a tese da anomia do liberto, uma forma de
analisar isso com o censo de 1907 é examinar a estrutura familiar dos vários grupos,
supondo que a alta porcentagem de famílias chefiadas por mulheres seja indicador da
anomia dos homens. A tabela 4 mostra a % baixa de chefes femininas em todas as
categorias raciais, não apoiando a ideia de maior tendência para desestruturação familiar
entre a população negra.
Outra manifestação de anomia em um contexto católico tradicional seria uma baixa
taxa de casamento, mas elas são mais altas em não brancos.
Tamanho das famílias
Os fazendeiros preferiam famílias maiores para os contratos de colonato, a
política migratória também favorecia famílias grandes, assim como o tamanho
influenciava as possibilidades de poupar dinheiro.
A cultura italiana da época também valorizava a família conjunta, com irmãos
casados morando e trabalhando juntos. Diferenças raciais nas taxas de mortalidade podem
explicar parte da diferença no tamanho das famílias negras. A falta de atendimento médico
também teria aumentado a taxa de mortalidade infantil dos pretos. Além disso, os bairros
urbanos e suburbanos onde os negros moravam se concentravam provavelmente eram
menos salubres.
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