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SEYFERTH, Giralda. A noção de raça no Brasil.

In: ZANINI, Maria Catarina Chitolina


(orgs.). Por que “raça”?: Breves reflexões sobre a questão racial no cinema e na
antropologia. Santa Maria: Ed. UFSM, 2007.
“O que caracteriza o conceito de raça é sua imponderabilidade, o fato de ser, antes de
tudo, uma construção social que interfere nas relações sociais, informa comportamentos
individuais e coletivos, instrui determinadas práticas discriminatórias na medida em que
fornece signos e símbolos de pertencimento – fatores que interferiam também nos
sistemas classificatórios produzidos no campo científico. A ideia de “tipo” contornou as
dificuldades classificatórias através do percentuais de características que permitiam
lidar com a heterogeneidade própria dos fenótipos: além do uso do critério mais popular
da cor da pele e da similitude anatômica fornecida pelas estatísticas antropológicas, os
cientistas apelaram para pressupostos estéticos, comportamentais e morais e a
consequente desqualificação da humanidade de pele mais escura” (p.106-107).
“A omelete chamada “raça” não tem existência fora da frigideira na qual foi
transformada pelo calor da imaginação antropológica” (ASHLEY-MOTANGU, 1945,
p.32) Tal figuração é exemplar e mostra a falta de sentido da forma classificatória, pois
o “tipo”, afinal, não se aplica à realidade, é coisa artificialmente criada e ajudou a
conformar o conceito de raça como sinônimo de grupo de pessoas que se distinguem
pela ancestralidade comum, supondo uma totalidade fixa, quando a realidade biológica
aponta para a variedade de espécie humana”. (p.108).
“A questão fundamental nessa discussão não é, portanto, o conceito de raça, mas o
racismo, palavra que, segundo Banton (1977, p.156), foi introduzida na língua inglesa
“no final dos anos 30, para identificar um tipo de doutrina que, em essência, afirma, que
a raça determina a cultura”. Os termos “racismo” e “racista” passaram a ser usados por
aqueles que criticaram as doutrinas da desigualdade das raças que vicejaram dentro e
fora do campo científico desde o início do século XIX” (p.110).
“O trabalho de Gobineau foi escrito em um momento de grande agitação na Europa,
marcado por movimentos sociais de grande abrangência, envolvendo a massa (ou
classes subalternas), e pelo comunismo, sendo a ideia de “luta de raças” concorrente
direta da tese da “luta de classes”, lembrando que o Manifesto Comunista de Marx e
Engels surgiu em 1848, ano marcado pela revolução popular em vários estados alemães
e pelo início da II República da França. O pessimismo de Gobineau, assentado na
crença de que muita mistura de sangues produz degeneração, obviamente tinha relação
com a perda do poder político da sua própria classe aristocrata. Segunda Hannah Arendt
(1976, p.76), a peculiaridade de Bobineau “reside no fato de que, em meio a ideologias
que louvavam o progresso, ele profetizava a ruina e o fim da humanidade numa lenta
catástrofe natural”. Por outro lado, numa perspectiva estritamente política, o recado do
Essai era simples: o poder devia estar nas mãos de uma elite racial ariana – espécie de
aristocracia natural mais apta a governar em lugar dos regimes democráticos que
ameaçavam a civilização” (p.111).
“A partir de Gobineau e do argumento da maior antiguidade das línguas germânicas foi
fácil inventar a “raça ariana” e sua vinculação aos povos germânicos transformados na
raça mais pura e progressista do ocidente. O mito ariano e o dogma da desigualdade das
raças, segundo Gobineau, voltaram à baila em fins do século XIX, apropriados pelos
doutrinadores racistas chamados “darwinistas sociais”. Estes acreditavam que os “tipos
permanentes” prevaleceriam apesar da grande variação, presumindo que a mestiçagem,
com o correr do tempo, acabaria produzindo híbridos estéreis. A expressão “darwinismo
social” significa, simplesmente, uma interpretação peculiar dos princípios da evolução
segundo Darwin, aplicados à sociedade. O desfecho imaginado para a “luta de raças”,
afinal, era a “sobrevivência dos mais aptos”. Isto é, próceres das ciências raciais como
Lapouge, Otto Amon e muitos outros, falavam em “seleção social” – o mecanismo que
devia completar e até suplantar a seleção natural – reduzida a conflitos de elementos
“antropológicos” (ou de “luta de raças”). Aí entra em cena o pior dos racismos: a noção
de que a seleção social deve ser dirigida para o melhoramento da raça, um pressuposto
que também marcou outra ciência: a Eugenia”. (p.111-112).
“Tais concepções acerca da variabilidade humana tiveram ressonância no Brasil,
particularmente os enunciados sobre a mestiçagem – obstáculo maior à coerência das
tipologias. De certo modo, por aqui, as desigualdades sociais também foram atribuídas à
ordem natural, o que explica porque raça se tornou a palavra-chave na concepção do
progresso e da ordem social. A influência das teses racistas intensificou-se no final do
século XIX com a expansão imperialista e o avanço do capitalismo e, conforme Malik
(1996), a hierarquia baseada na cor foi reforçada: a linha de cor, como meio de
compreender e dividir o mundo, deixou em segundo plano a ideia da inferioridade das
classes baixas europeias (que continuavam sendo alvo da Eugenia). Para Mailik (1996),
a noção de raça não deu lugar à desigualdade; foi a desigualdade que produziu a raça,
isto é, as diferenças sociais originaram a ideia de hierarquização racial e não o contrário.
Por isso mesmo, o conceito foi desenvolvido na Europa para interpretar novas relações
sociais no interior do Estado-nação e, apropriado pelos nacionalistas, ajudou a demarcar
pertencimentos nacionais e excluir minorias incômodas” (p.114-115).

O negrito expõe um ponto importante da documentação que analiso. A nacionalidade


transformou-se em qualidade, antecedendo o referente racial que marca os textos da
segunda metade do século XIX.
“As apropriações simbólicas da teoria da evolução e a própria naturalização da História
contribuíram para criar a imagem das raças históricas, enunciadas no ensaio de
Gobineau, o que possibilitava, por exemplo, converter a nacionalidade num conceito
biológico. Também no Brasil a ideia de raça serviu para muitas interpretações da
“formação nacional”, refletida nos interesses geopolíticos de consolidação do território
pela colonização europeia. Os debates sobre a abolição da escravatura e a questão do
povoamento vinculado à imigração europeia marcaram os primeiros enunciados de
referência racial. No momento histórico em que se iniciava a diáspora europeia para as
Américas, no início do século XIX, temia-se a ocorrência de rebeliões escravas, a
exemplo do Haiti. Em 1818, a imigração suíça para Nova Friburgo (RJ) foi considerada
parte de um processo civilizatório e início de um possível reforço aos batalhões de
“brancos”. Sem usar a palavra raça, ainda pouco conhecida, fez-se a associação
entre cor de pele e capacidade de progresso: negros e mestiços podiam ser escravos,
servos, coadjuvantes, mas não eram considerados adequados para o trabalho livre ou
para agir por livre iniciativa”. (p.115-116). USAR O TRECHO FINAL.

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