No livro "Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus identidade
negra", de autoria de Kabengele Munanga, a mestiçagem é analisada sob uma
perspectiva crítica, analisando as interações da ideia de raça e identidade nacional. Por um lado, a mestiçagem é interpretada como um processo natural e frequente, no qual distintos grupos populacionais intercambiam material genético ao longo das gerações. Neste contexto, o conceito de "população" é delineado como um conjunto de indivíduos que, predominantemente, se reproduzem entre si, fundamentando-se em atributos biológicos e não em categorizações previamente estabelecidas. Em contrapartida, a visão centrada na ideia de raça classifica a mestiçagem como resultado das denominadas "grandes raças", as quais são definidas a priori. Diante de incongruências em sua metodologia, frequentemente recorrem à mestiçagem como justificativa, insinuando que os "tipos puros" de eras anteriores foram misturados ao longo da história. O conceito de "raça", intrinsecamente complexo e multifacetado, tem sido empregado de variadas formas ao longo da trajetória histórica, manifestando-se de maneira distinta em contextos culturais e científicos específicos. Inicialmente, sob uma pretensa ótica biológica, a noção de "raça" serviu como instrumento de categorização dos seres humanos, fundamentando-se em características físicas visíveis, tais como a pigmentação da pele, a textura capilar e a morfologia nasal, dentre outras características fenotípicas . Contudo, pesquisas genéticas contemporâneas revelaram que as variações genéticas intragrupais podem superar as intergrupais, desafiando, assim, a concepção de raças humanas como entidades distintas e bem delimitadas. Paralelamente, através de uma ótica sociocultural, muitas sociedades atribuem à raça profundas implicações, utilizando-a como critério de identificação de grupos com base em um conjunto de características físicas, históricas e culturais, o que, por sua vez, molda identidades e interações sociais. Neste sentido, diversos acadêmicos e ativistas postulam que a raça é, predominantemente, uma construção social, sugerindo que sua essência não reside em realidades biológicas concretas, mas em concepções forjadas e perpetuadas por coletividades humanas. Historicamente, é imperativo reconhecer que a raça foi instrumentalizada para endossar práticas de desigualdade, dominação e atrocidades, como o colonialismo , escravidão, e o genocídio engendrado por regimes totalitários como o nazismo, com consequências duradouras às dinâmicas raciais atuais. É importante ressaltar que a interpretação e definição de "raça" diferem consideravelmente entre diferentes culturas e ao longo da história, e o uso desta categoria possui frequentemente nuances políticas, sociais e afetivas. O autor analisa a multifacetada natureza da mestiçagem, considerando tanto dimensões biológicas quanto socioculturais. Inicialmente, é necessário destacar que categorias comumente aceitas como "branco", "negro", "amarelo" e "mestiço", embora frequentemente interpretadas sob uma lente biológica, são, de fato, construções classificatórias profundamente enraizadas na história colonial. Também, a mestiçagem transcende a mera interação genética, estando intrinsecamente entrelaçada com concepções e influências socioculturais. Por exemplo, nos Estados Unidos, a abordagem dicotômica da classificação racial, que segmenta a população em brancos e negros desconsiderando nuances de mestiçagem, reflete a persistente distância social desigual entre esses grupos. Além disso, é importante reconhecer que a terminologia associada à mestiçagem é permeada por preconceitos raciais. Historicamente, no entanto, a mestiçagem tem sido um componente inerente à trajetória humana. Evidências dessa interação podem ser observadas no Egito Antigo, onde ocorreram cruzamentos entre invasores e comunidades autóctones, e na Grécia Clássica, onde a mestiçagem não se limitava à fusão biológica, mas também englobava uma mistura cultural, evidenciada pela aceitação de divindades e filosofias exógenas. Em síntese, o autor enfatiza que a mestiçagem, longe de ser um fenômeno simplista, é um processo complexo, influenciado por variáveis socioculturais e históricas, e sua compreensão e terminologia são moldadas por preconceitos e contextos culturais específicos (p.18-21). No contexto das antigas civilizações grega e romana, ambas adotavam uma postura universalista, demonstrando indiferença à conceituação de raça , pois valorizavam a assimilação cultural. Contudo, enquanto a identidade grega era percebida como uma opção cultural, a romana era uma prerrogativa política, social e cultural. No período do Iluminismo, a mestiçagem tornou-se objeto de análise para filósofos como Voltaire, Buffon e Diderot. Voltaire concebia a mestiçagem como uma aberração, em contraste com Buffon, que a interpretava como um continuum da variação humana. Diderot, diferentemente, enxergava a mestiçagem como uma expressão do potencial criativo inerente à matéria. Por sua vez, pensadores como Maupertuis, postulavam que a mestiçagem poderia gerar novas espécies e otimizar as preexistentes, analogamente ao que ocorre na criação seletiva de animais. Em contrapartida, Buffon articulou a definição biológica de espécie com base na capacidade reprodutiva, inferindo que a mestiçagem entre distintos grupos humanos resultava em variações intrínsecas à mesma espécie. Algumas perspectivas, como a de Julien Offray de la Mettrie, propunham que diferentes agrupamentos humanos emergiram da mestiçagem do homem branco com outras espécies animais, insinuando uma conexão intrínseca entre mestiçagem e raça, onde a primeira era frequentemente associada à ideia de "contaminação". Por fim, Diderot visualizava a mestiçagem como um mecanismo de integração entre culturas, postulando que a América, dada sua diversidade cultural, poderia ascender como uma nova Atenas, suplantando a Europa desgastada. Em resumo, o autor sublinha que a mestiçagem, ao longo da história, tem sido objeto de análise, com distintos intelectuais propondo interpretações e compreensões variadas sobre o tema, enaltecendo-a ora como vetor de unificação, ora como fonte de diversidade (p.22-25). O capítulo inicial do livro analisa meticulosamente a mestiçagem sob prismas histórico, filosófico e social, enfatizando inicialmente as concepções e teorias de eminentes pensadores do século XVIII. Buffon , por exemplo, postulava que todas as variações humanas se inscreviam sob o manto de uma única espécie, interpretando a mestiçagem como um mecanismo de recondução à forma primordial da espécie humana. Concomitantemente, embora Kant corroborasse com a definição de espécie proposta por Buffon, sustentava que as características raciais emanavam de princípios genéticos inalteráveis. Contrariamente à visão de Buffon, Kant não percebia a mestiçagem como um potencial aprimorador da espécie humana, mas sim como um vetor de sua possível degradação. No que tange aos Poligenistas, figuras como Edward Long defendiam a ideia de que brancos e negros pertenciam a espécies distintas, utilizando os mulatos como evidência dessa disparidade, alegando sua incapacidade de perpetuar sua própria linhagem. Deste modo, no cenário colonial, a mestiçagem era percebida de forma ambígua. Por um lado, a mestiçagem era uma inevitabilidade diante da escassez de mulheres brancas, mas, por outro, era interpretada como uma potencial subversão à hierarquia social e racial vigente. Embora as relações inter-raciais fossem frequentes nas colônias, os matrimônios mistos eram excepcionais e muitas vezes desestimulados, visto que as autoridades coloniais identificavam na mestiçagem uma ameaça à ordem preestabelecida. Seguindo esta lógica da ambiguidade, o Código Negro de 1685, que normatizava a existência dos escravizados nas colônias francesas, não estabelecia distinções entre diferentes agrupamentos raciais, pautando-se, em vez disso, no direito romano. Portanto, o capítulo inicial sublinha primeiramente a complexidade das perspectivas acerca da mestiçagem no século XVIII, ilustrando a diversidade de opiniões moldadas por contextos sociais, políticos e geográficos específicos, onde a mestiçagem oscilava entre ser concebida como elemento conciliador e potencial disruptor da ordem vigente (p.26-29). O capítulo prossegue na análise da intricada dinâmica das relações raciais e da mestiçagem, com ênfase nas colônias francesas do século XVIII. Especificamente, o Código Negro, instaurado em 1685, tinha como objetivo normatizar a existência dos escravizados nas referidas colônias. Notavelmente, este código afirmava a igualdade entre todos os homens livres, desconsiderando origem racial ou status prévio. No entanto, contrariamente ao estipulado em lei , muitas destas disposições eram negligenciadas na prática, resultando na perpetuação de abusos contra mulheres negras. Quanto aos matrimônios inter-raciais, a legislação colonial desestimulava ou até mesmo proibia estas uniões, identificando estes arranjos como potenciais desestabilizadores da ordem social e racial vigente. Consequentemente , indivíduos que optavam por casar-se fora de sua raça eram frequentemente marginalizados ou privados de seus direitos. Adicionalmente, tanto a legislação quanto a prática colonial objetivavam relegar os mulatos e outros grupos racializados a uma posição subalterna. Estes eram sistematicamente preteridos de cargos de influência e eram alvo de distintas modalidades de discriminação. Nesse contexto, emergiu a noção de uma "linha de cor", que estabelecia uma demarcação nítida entre brancos e demais grupos, desconsiderando o grau de mestiçagem. Seguindo esta lógica, para a sociedade da época, esta linha representava uma fronteira intransponível, e aqueles que ousavam transgredi-la eram recebidos com desconfiança e preconceito. Em paralelo , a sociedade da época, ao reconhecer a diversidade fenotípica, instituiu sistemas de categorização baseados na pigmentação pele, sendo que estas taxonomias eram empregadas para determinar o status social e os privilégios conferidos a um indivíduo. Em linhas gerais havia um contraste entre a legislação oficial e a realidade vivenciada nas colônias. Embora os dispositivos legais pudessem proclamar determinados direitos ou igualdades, na prática, as demarcações raciais eram rigorosamente preservadas e intensificadas por preconceitos arraigados no tecido social e cultural. A mestiçagem, enquanto fenômeno, era ambivalente: ao mesmo tempo em que era reconhecida, era também repelida, espelhando as complexidades inerentes às relações raciais do período (p.30-33). O capítulo se aprofunda nas dinâmicas das relações raciais e da mestiçagem, particularmente no cenário de São Domingos (atual Haiti) durante o século XVIII e início do XIX. Nesse contexto, Moreau de Saint-Méry concebeu um meticuloso sistema classificatório ancorado na genealogia e na proporção de ascendência branca ou negra. Dentro deste sistema , emergem categorias distintas como “Sacatra”, “Griffe”, “Marabou” e “Mulâtre”, onde cada uma é caracterizada por uma proporção específica de partes brancas e negras. Contudo , Moreau de Saint-Méry admitiu que sua taxonomia era meramente aproximativa, reconhecendo que o fenótipo, ou seja, a aparência física, ocasionalmente influenciava na categorização de um indivíduo. Nesse panorama, estabeleceu-se uma hierarquia baseada na pigmentação cutânea, na qual aqueles que se aproximavam esteticamente dos brancos eram mais valorizados. Esta estratificação culminou no que foi descrito como “sub-racismo” entre os próprios indivíduos racializados. Posteriormente, com a independência de São Domingos em 1803, negros e mulatos encontraram-se diametralmente opostos em uma dicotomia racial. Interessantemente , embora ambos fossem categorizados como “negros” na primeira Constituição do Haiti pós-independência, persistiam tensões evidentes entre estes grupos. Deste modo, o legado da colonização perpetuou uma divisão racial e uma hierarquia. Assim, mesmo após a independência, as tensões raciais e as segmentações cromáticas continuaram a influenciar significativamente a sociedade. Também, o capítulo adentra nas complexas relações raciais, na mestiçagem e na ideologia racial, especialmente no cenário dos séculos XVIII e XIX. Durante esse período, emergiu o que foi denominado de Consciência da Ameaça , ou seja, o fato de que no final do século XVIII, as elites escravocratas e os líderes coloniais tendo consciência da incongruência entre a ordem social e racial poderia desestabilizar a colônia. Diante disso, propuseram uma reestruturação na qual somente os negros seriam categorizados como escravos, enquanto todos os indivíduos livres seriam classificados como brancos. No entanto, tal proposta não obteve consenso. Avançando para o século XIX, surgiu um programa reformista que aspirava sistematizar as graduações raciais, possibilitando uma "passagem de linha" progressiva para aqueles que se alinhassem ao grupo branco. Ao mesmo tempo, a mestiçagem, ao entrelaçar diferentes raças, desafiou a demarcação nítida de fronteiras raciais. Por exemplo, nos EUA, a ideologia transmutou-se para uma dicotomia racial estrita, onde qualquer indivíduo de linhagem mista era prontamente alocado ao grupo racial subalterno. Do decorrer dos séculos XIX e XX, a doutrina nórdica preconizava a pureza racial como pilar para o florescimento cultural, enxergando a miscigenação como potencial ameaça à cultura e à coesão social. Contrapondo-se a essa visão, existiam propostas de que a mestiçagem poderia, de fato, fortalecer o conjunto de uma sociedade. Adicionalmente, os mestiços, frequentemente confrontavam desafios psicossociais decorrentes de sua posição ambígua na sociedade. Em contextos onde prevaleciam sistemas quase como de castas inflexíveis, tais indivíduos eram comumente relegados a estratos inferiores, independentemente de suas competências. É imperativo também considerar os Aspectos Biológicos da Mestiçagem, visto que tanto a endogamia (união dentro do mesmo grupo racial ou étnico) quanto a exogamia (união fora do grupo) carregam implicações biológicas intrínsecas. Em resumo, o capítulo também ilumina a multifacetada tessitura das relações raciais e da mestiçagem ao longo dos séculos XVIII e XIX, delineando como distintas sociedades e ideologias navegaram pela temática da miscigenação. A mestiçagem emergiu como um epicentro de tensões e debates, com grupos divergentes defendendo tanto a pureza racial quanto a integração racial (p.38- 41). Subsequentemente, Gobineau, em sua obra acerca da desigualdade das raças humanas, postula que civilizações emergem e se extinguem em função da pureza ou degeneração racial. Em sua perspectiva, a mestiçagem é o catalisador da degeneração racial e, por extensão, do ocaso cultural. Contudo, paradoxalmente, ele também concebe a mestiçagem como um pilar fundamental para o avanço civilizacional. Entretanto, a teoria de Gobineau é permeada por ambiguidades. Embora ele reconheça a mestiçagem como alicerce da civilização, simultaneamente sustenta que uma miscigenação exacerbada culmina no declínio civilizacional. Nesta lógica, Gobineau propõe que um equilíbrio na mestiçagem é crucial para o progresso, mas que miscigenações subsequentes são deletérias. Por sua vez, Hitler, em "Mein Kampf", repudia a mestiçagem racial, categorizando-a como vetor de degeneração. Em sua visão, a miscigenação com raças tidas como "inferiores" resulta na diluição das qualidades civilizadoras. Esta concepção gerou políticas terríveis, como a esterilização compulsória de mestiços na Alemanha. Avançando para a década de 1930, a França colonial propôs o conceito de "mestiçagem cultural" como contraponto às doutrinas de pureza racial advogadas pelo nazismo. Esta ideologia almejava a assimilação e a aculturação, em contraste com a segregação e estratificação racial. Deste modo, a mestiçagem, enquanto fenômeno biológico e cultural, tem sido palco de fervorosos debates, com distintas ideologias ora incentivando, ora repudiando sua prática (p.42-45). O debate em torno da mestiçagem cultural suscitou intensas discussões entre intelectuais, educadores e líderes africanos. Muitos apoiavam essa visão, enquanto outros, como o distinto poeta Léopold Sédar Senghor, expressavam preocupações, argumentando que a imersão em humanidades grego-latinas poderia ofuscar a essência e o potencial únicos dos africanos. Esta noção de mestiçagem cultural levou à fundação de um teatro africano de língua francesa em Gré em 1933. O autor destaca a complexidade das opiniões sobre mestiçagem, abrangendo dimensões tanto raciais quanto culturais. Para alguns, a mestiçagem é vista como um meio de enriquecimento cultural, enquanto para outros, representa um risco à pureza e à identidade racial ou cultural. De modo geral, o capítulo destaca a interação de variadas ideologias e abordagens relacionadas à mestiçagem, enfatizando a intersecção de perspectivas europeias e africanas sobre o assunto.(p.46-50). No Capítulo II, Kabengele Munanga descreve o modo pelo qual a mestiçagem tornou-se um tema relevante no contexto do pensamento brasileiro, enfatizando a abordagem dos intelectuais brasileiros, entre o fim do século XIX e início do século XX, quanto às temáticas raciais e à construção da identidade nacional. Sob influência das teorias raciais ocidentais da época, esses intelectuais não apenas assimilaram conceitos europeus sobre raça e mestiçagem, mas também forjaram perspectivas próprias. Assim, a mestiçagem, oriunda da interação de raças (branca, negra e indígena) no Brasil, surgiu como um questionamento relativo à formação da identidade nacional. Entre a elite intelectual, prevalecia uma preocupação acerca da influência dos grupos não-brancos nessa definição identitária brasileira. Pensadores destacados, como Silvio Romero, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre, se dedicaram a moldar uma identidade nacional distinta para o Brasil. Em seus debates, ponderavam se a mestiçagem conduziria a uma identidade intrinsecamente brasileira ou se tendia a uma predominância branca. Romero, como exemplo, percebia a mestiçagem como impulsionadora da criação de um perfil racial especificamente brasileiro. No entanto, especulava que a seleção natural poderia favorecer a raça branca, relegando a mestiçagem a uma fase transitória na construção identitária nacional. Esse pensamento, assim como o de muitos contemporâneos, apresentava-se com nuances ambíguas. Enquanto alguns defendiam a ideia de um “branqueamento” gradativo da população brasileira, outros viam na mestiçagem um mecanismo positivo para a afirmação de uma identidade brasileira única. Decorrente desse embate de visões, a narrativa racial brasileira ressalta os obstáculos enfrentados por negros e mestiços na busca por uma identidade coletiva no país, sendo afetados tanto pela influência de teorias raciais europeias quanto pela ênfase na “pureza racial”. Em síntese, o capítulo procura elucidar a complexa relação entre raça, mestiçagem e identidade no pensamento brasileiro do período em questão, destacando as polêmicas e discussões que permearam reflexões sobre a identidade nacional e o lugar dos grupos não-brancos no cenário sociocultural brasileiro (p.50-53).
No referido capítulo, o autor descreve as concepções de Raimundo Nina Rodrigues
sobre raça, mestiçagem e identidade no Brasil, contrastando-as com as ideias de Sílvio Romero e, posteriormente, com as de Euclides da Cunha. Nina Rodrigues, por sua vez, não compartilhava do otimismo de Romero acerca da capacidade de criar uma civilização brasileira proveniente da confluência das culturas branca, negra e indígena. Em sua análise, Nina Rodrigues classificou as culturas negra e indígena como "grupos com capacidades distintas". Desse modo, sugeriu que a assimilação destes a uma cultura tida como predominante poderia ter ocasionado desajustes psicológicos. Partindo dessa premissa, Nina Rodrigues defendeu que o desenvolvimento individual (ontogênico) refletia a evolução do grupo (filogênica), implicando que características físicas e mentais eram herdadas. Além disso, acreditava no fenômeno do atavismo em indivíduos mestiços. Em contraposição a Romero, Nina Rodrigues rejeitou a ideia de uma unidade étnica brasileira. Em alternativa, propôs o reconhecimento e respeito à diversidade racial. Como exemplo, sugeriu uma "responsabilidade penal adaptada" através de diferenças raciais ao avaliar a imputabilidade criminal. Em sua perspectiva, a mestiçagem foi vista sob uma ótica menos positiva, avaliando que os indivíduos mestiços poderiam manifestar características menos favoráveis em relação a seus antecessores. Além disso, argumentou que a mestiçagem não conduziria a um Brasil majoritariamente branco, mas talvez a um perfil com maior presença negra. Adicionalmente, postulou que as condições climáticas do norte brasileiro seriam adversas à aclimatação de grupos brancos. Assim, previu uma dicotomia regional: um sul com predominância branca e um norte de perfil mestiço.
Por outro lado, Euclides da Cunha, divergindo de ambos, postulou a existência de
distintos perfis étnicos no Brasil. Esses perfis eram frutos da diversidade racial, miscigenação, fatores ambientais e contextos históricos. Em sua análise, o mestiço foi caracterizado por desequilíbrios, não reunindo as aptidões físicas dos indígenas nem a capacidade intelectual tradicionalmente associada aos brancos (p.53-57).
O debate intelectual do final do século XIX e início do XX no Brasil abordava temas
como raça, mestiçagem e identidade nacional. Euclides, retomando o conceito de atavismo de Nina Rodrigues, argumentava que a mestiçagem entre grupos denominados "superiores" e "inferiores" modificava os traços dos primeiros e reintroduzia características dos segundos. Segundo ele, o sertanejo, resultante da mistura entre índios e portugueses, se diferenciava dos mestiços litorâneos. Por sua vez, Clóvis Moura apresentava críticas à abordagem de Euclides, enquanto Dante Moreira Leite apontava para inconsistências em sua perspectiva sobre mestiçagem e raça. Alberto Torres direcionava a discussão da raça para a formação da nacionalidade brasileira, argumentando que a variedade racial não impedia a formação de uma identidade nacional. Ele identificava desafios na adoção de instituições externas e propunha a educação para o patriotismo como solução. Torres baseou-se em estudos de antropologia e arqueologia, influenciado por Franz Boas e Friedrich Ratzel, opondo-se às teorias racistas e ideias de desigualdade racial. O texto, portanto, analisa as diferentes perspectivas de intelectuais brasileiros sobre raça, mestiçagem e identidade nacional. Enquanto alguns abordavam a mestiçagem com reservas, outros, como Alberto Torres, viam a diversidade racial como elemento chave na formação da identidade nacional (p.58-61). Dentro do panorama histórico proposto como objeto de estudo, Kabengele Munanga fornece um vasto compêndio discursivo que revela as múltiplas facetas do pensamento brasileiro sobre raça, mestiçagem e identidade nacional. Alberto Torres, em sua abordagem, sugere que a intervenção estrangeira no Brasil e o domínio econômico por forças capitalistas externas culminaram na exploração exacerbada dos recursos naturais, relegando a segundo plano o bem-estar da população brasileira. Ademais, aponta que um distanciamento das elites em relação à realidade nacional levou-as a adotar, sem crítica, teorias europeias de teor racista. Como contraponto a essa perspectiva, Torres combateu intensamente conceitos que propagavam a inferioridade racial. Manuel Bonfim, por sua vez, delineia um panorama crítico das doutrinas racistas dominantes em sua época, direcionando sua análise para os legados coloniais como a principal causa dos dilemas socioeconômicos da América Latina. A solução vislumbrada por Bonfim centrava-se no investimento em educação e na diversificação econômica. João Batista Lacerda, ao expor seus pensamentos no Congresso Universal de Raças em 1911, atribuiu aos mestiços uma posição ambígua: em termos de aptidão agrícola, eram vistos como inferiores aos negros, mas, em aspectos físicos e intelectuais, superiores a estes. Lacerda previa que, em um século, mestiços e negros estariam ausentes do cenário brasileiro. Por sua vez, Edgar Roquete Pinto, influenciado por “Os Sertões”, distancia- se de postulados racistas e defende que os desafios do Brasil estão atrelados à educação e não à raça. Com convicção, Roquete Pinto postula que a formação da identidade brasileira ocorre no âmbito sociológico. Nessa mesma linha, Francisco José de Oliveira Viana, destacado intelectual e referência nos debates sobre a ideologia do branqueamento no Brasil, conceitua o mestiço como fruto dos sistemas latifundiários, rotulando-o como um “desclassificado permanente” no cenário colonial. Em conclusão, torna-se imperativo entender que as abordagens apresentadas refletem as tensões e desafios inerentes ao processo de moldagem da identidade nacional brasileira. Estas vozes, em sua pluralidade, são cruciais para decifrar o complexo mosaico sociocultural do Brasil nos anos em questão. (p.62-65). No panorama do pensamento social brasileiro do início do século XX, destaca-se a figura emblemática de Oliveira Viana, sociólogo e jurista. Citando observações do Padre Antonil e do relato do viajante holandês Zacarias Wagner, Viana traça um mosaico da percepção colonial acerca dos mestiços, concebendo-os como entidades deslocadas, oscilantes em termos de estabilidade social. Sendo assim, Viana postula a coexistência de categorias de mestiços: os designados "inferiores", frutos da união de brancos com negros categorizados do mesmo modo, e os "superiores", oriundos da união de brancos com negros avaliados em termos "superiores". Esta distinção, para Viana , não é meramente teórica, pois implica no fato que os mestiços "superiores" detêm uma maior probabilidade de integração com à elite branca, enquanto os "inferiores" são relegados às margens sociais. Em sua argumentação , Viana recorre ao conceito de atavismo, propondo que traços ancestrais possam emergir nas gerações subsequentes. E, assim, sugere uma tendência dos mestiços em convergir para o tipo racial "inferior". Neste mesmo sentido , ao examinar a mestiçagem entre brancos e indígenas, Viana afirma que tais mestiços superam os mulatos em atributos físicos e potencial de ascensão social no âmbito da sociedade colonial. Contudo, apesar da tese do atavismo e à concepção de degenerescência dos mestiços, Oliveira Viana acreditava na "arianização", ou seja , no branqueamento da sociedade brasileira. Em síntese, a tese de Oliveira Viana da dicotomia de mestiços "inferiores" e "superiores" e da progressiva "arianização" do Brasil insere-se no epicentro das discussões sobre raça e identidade no país nas primeiras décadas do século XX (p.66-69). A "arianização", conforme conceituado por Viana, é o fenômeno pelo qual mestiços "superiores" adaptam-se, em termos de mentalidade e comportamento, a padrões atribuídos aos arianos (brancos). Esta categorização de mestiços "inferiores" os caracteriza como seres propensos à instabilidade, exuberância e insurgência, levando-os a ser percebidos, em sua natureza, como intrinsecamente anárquicos e rebeldes. Viana é frequentemente situado como defensor da ideologia do branqueamento no Brasil, perspectiva esta que posteriormente Oracy Nogueira qualifica como preconceito de "marca" ou "cor", estabelecendo um contraste com o preconceito norte-americano de origem. Contraditoriamente, Viana sustenta que, embora existam disparidades raciais, emerge uma simbiose de oportunidades entre os grupos étnico-raciais no Brasil. Sua visão contempla a mestiçagem como uma etapa efêmera rumo à "arianização". Ele, valendo-se de dados estatísticos, argumenta que a população branca exibe uma taxa de crescimento mais acentuada, atribuindo tal fenômeno tanto à fecundidade deste grupo quanto à imigração europeia. Ao incorporar as ideias darwinianas à esfera social, Viana postula que a "raça branca" exibe uma predisposição natural à prosperidade e à sobrevivência. A visão de Oliveira Viana, ancorada em uma perspectiva determinista e hierárquica das raças, exalta a primazia dos brancos e vislumbra uma eventual "arianização" do contingente mestiço. Tais reflexões, emblemáticas das tensões raciais e identitárias do Brasil daquele período, são frequentemente debatidas e avaliadas sob uma lente crítica nas discussões contemporâneas sobre raça e mestiçagem (p.70-73). Oliveira Viana é um exemplo de intelectual brasileiro que, como vários outros ao redor do mundo no início do século XX, estava influenciado pelas teorias raciais que dominavam o pensamento científico da época. Sua visão sobre a mestiçagem e "arianização" da população brasileira revela as tensões e debates complexos que cercavam a identidade nacional durante esse período. Viana parece confiar fortemente em estatísticas para solidificar seus argumentos. O aumento da proporção de brancos, de 38,1% em 1872 para 44% em 1890, é por ele atribuído a uma combinação de imigração europeia e uma crença na superioridade biológica dos brancos. A ideia do "melting-pot" é tradicionalmente associada à imigração nos EUA, onde diferentes culturas e raças se misturam para formar uma única identidade nacional. Viana, ao usar esse termo, sugere que o Brasil é uma nação onde diferentes raças se fundem, eventualmente levando a uma predominância genotípica mestiça. O Racismo de "Marca", observado por Oracy Nogueira, é oriundo deste contexto como o de Oliveira Viana, sendo que o preconceito no Brasil não se baseia tanto na ancestralidade, mas sim na aparência física. Isto é, indivíduos que parecem "mais brancos" são menos propensos a enfrentar discriminação, independentemente de sua ascendência. A crença de Viana de que mamelucos são superiores em termos de moralidade e caráter, em comparação aos mulatos que se destacam em inteligência, demonstra uma tentativa de criar uma hierarquia racial. Esse tipo de classificação, baseado em características percebidas ou reais, foi comum em teorias raciais do início do século XX. Viana parece ver o processo de "arianização" como algo positivo para o Brasil, levando eventualmente ao "branqueamento" da população. Esta visão pode ser vista como reflexo de uma ideologia que valoriza características europeias em detrimento de outras. Em suma, as opiniões de Oliveira Viana sobre mestiçagem e "arianização" no Brasil evidenciam as tensões do período em relação à raça e identidade. Embora suas visões possam parecer controversas e até mesmo desatualizadas hoje, elas são representativas de uma era onde a ciência racial predominava e influenciava as políticas e o pensamento social. É importante reconhecer essas perspectivas históricas para compreender melhor a evolução do pensamento sobre raça e identidade no Brasil e no mundo. (p.74-77). O autor , ao final, compara as perspectivas de dois notáveis intelectuais brasileiros , Oliveira Viana e Gilberto Freyre, sobre a questão da mestiçagem e a formação da identidade nacional no Brasil. Oliveira Viana, influenciado pelas teorias raciais da época, enfatizava a superioridade de certas raças em detrimento de outras. Ele interpretava a mestiçagem como um fenômeno que levaria à assimilação da população negra na branca, culminando no que ele chamou de "arianização" da sociedade brasileira. Em sua visão, esse processo não só evitaria conflitos raciais como também asseguraria a continuidade da dominação branca. Este entendimento foi desafiado e reconfigurado na década de 1930, quando o Brasil passou por significativas mudanças políticas com um foco renovado no desenvolvimento social. Essa orientação política trouxe consigo uma revisão das teorias raciais que eram populares no final do século XIX. Nesse novo cenário, Gilberto Freyre emergiu como uma figura central, trazendo uma perspectiva alternativa sobre a questão racial. Freyre valorizava a mestiçagem, vendo-a como uma força positiva e reconhecendo a contribuição vital de negros, índios e mestiços à cultura brasileira. Em sua visão, a interação entre estas raças levou ao que ele denominou "democracia racial", onde todos os grupos étnicos coexistiriam em harmonia. No entanto, esta noção foi posteriormente criticada por muitos que acreditavam que ela ocultava as reais desigualdades e tensões raciais existentes no país. Além disso, Freyre enfatizou a importância da família patriarcal do nordeste brasileiro, considerando-a o núcleo da colonização e uma fonte de autoridade e coesão social. Ele acreditava que esta estrutura familiar era o pilar que permitia uma integração harmoniosa da diversidade racial e cultural da sociedade brasileira. A mestiçagem, portanto, passou a ser vista como elemento central na identidade nacional brasileira. A interação biológica e cultural entre as três raças principais (negra, branca e índia) teria dado origem ao mito da democracia racial, conforme proposto por Freyre. No entanto, enquanto sua visão era louvada por valorizar a cultura negra e a mestiçagem, ele também enfrentou críticas. Muitos argumentaram que Freyre não abordou de maneira adequada as relações de poder desequilibradas entre senhores e escravos, com alguns alegando que sua análise reforçava o ideal de branqueamento. Concluindo , a discussão em torno da mestiçagem, identidade nacional e relações raciais no Brasil é complexa e multifacetada, com diferentes intelectuais oferecendo contribuições valiosas, mas também enfrentando críticas substanciais por suas perspectivas (p.78-81). Oliveira Viana interpretou dados estatísticos para concluir que a porcentagem de “sangue ariano” estava aumentando rapidamente na população mestiça brasileira, moldando-a mais para o tipo de homem branco. Viana acreditava que quanto maior a proporção de sangue ariano nos mestiços, mais rapidamente eles adotariam as características físicas do homem branco. Ele também observou uma rápida diminuição da população negra e mestiça em comparação com um aumento da população branca. Viana atribuiu o crescimento da população branca à imigração europeia, ao fim do tráfico negreiro em 1850, à alta mortalidade da população negra devido às condições adversas e à eliminação dos indígenas devido a doenças, álcool e armas de fogo. Ele acreditava que o Brasil estava se tornando um “melting-pot”, onde, após algumas gerações, o “branco puro” não existiria mais, resultando em um país de mestiços genotipicamente. Viana também reconheceu que, apesar da mestiçagem genotípica, o preconceito contra a mestiçagem ainda era forte no Brasil, em grande parte devido à ideologia racial da superioridade branca. Gilberto Freyre, por sua vez, surgiu no cenário brasileiro em 1930, trazendo uma nova perspectiva sobre a mestiçagem e a identidade nacional. Ele deslocou o foco da discussão do conceito de “raça” para o conceito de cultura. Em sua obra “Casa Grande e Senzala”, Freyre descreveu a história social do mundo agrário e escravista do nordeste brasileiro nos séculos XVI e XVII. Ele destacou a relação entre senhores brancos e escravas negras e índias, resultando em mestiçagem devido à escassez de mulheres brancas. Freyre acreditava que a mestiçagem era uma vantagem e transformou-a em um valor positivo para a identidade brasileira. Ele enfatizou a contribuição positiva de negros, índios e mestiços à cultura brasileira e como influenciaram o estilo de vida da classe senhorial. Freyre também introduziu o conceito de “democracia racial”, sugerindo que o Brasil era uma nação onde diferentes raças conviviam harmoniosamente. No entanto, ele não abordou profundamente as relações assimétricas de poder entre senhores e escravos. Em relação a Identidade Nacional, a mestiçagem desempenhou um papel fundamental na formação de uma identidade específica do brasileiro. A ideia de mestiçagem biológica e cultural entre as três raças originárias (negra, branca e índia) é profundamente enraizada na sociedade brasileira. Esta noção promove a ideia de convivência harmoniosa entre indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos. No entanto, essa perspectiva também tem sido usada pelas elites dominantes para mascarar desigualdades e impedir que comunidades não-brancas reconheçam os mecanismos sutis de exclusão que enfrentam na sociedade. A ideologia da mestiçagem sugere que a mistura gerou um povo sem barreiras ou preconceitos, reforçando a ideia de uma “democracia racial”. No entanto, essa visão muitas vezes obscurece as realidades das desigualdades raciais e sociais no Brasil.