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SEGATO, Rita Laura.

Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de


um vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos CES [Online], 18 | 2012,
colocado on line no dia 01 dezembro 2012, consultado a 30 abril 2019. URL:
http://journals.openedition.org/eces/1533 ; DOI : 10.4000/eces.1533

FICHAMENTO

Nesse artigo a autora busca examinar a inter-relação entre colonialidade de


gênero e patriarcado, no contexto da luta pelas autonomias indígenas. Sob a luz da
análise de participações na luta feminista indígena, Segato buscar entender como as
relações de gênero se reproduziram e se modificaram historicamente pelo colonialismo,
onde a falta de transparência sobre as transformações ocorridas ao longo dos séculos faz
com que mulheres indígenas se submetam a manutenção de costumes patriarcais que
muitos supõem ou afirmam como tradicionais, sob a ameaça de perda da “identidade
indígena” em caso de alteração dessas práticas, debilitando assim as demandas por
território, recursos e direitos.
O procedimento adotado pela autora é o que ela caracteriza como “escuta”
etnográfica, de uma “uma antropologia por demanda”, que produz conhecimento e
reflexão em resposta às perguntas feitas pelos os objetos de observação e estudo. Ela
também, formula alguns novos conceitos, uma vez que termos como cultura, relativismo
cultural, tradição e pré modernidade se mostraram, nesse contexto, palavras ineficientes
para lidar com essas pautas.
Em 2003 a autora é convidada por algumas organizações a dar respaldo as lutas
de mulheres indígenas vítimas de feminicídio na fronteira norte mexicana, mas que, de
longe, não é um cenário exclusivo do México. Na verdade, para a autora, esse cenário
de crueldade e de desamparo das mulheres indígenas é reflexo da expansão da
modernidade e do mercado e anexação de novas regiões.
Então Segato traz dois temas que se constituem como problemas análogos: a
falsa escolha entre os direitos das assim chamadas minorias – crianças e mulheres – e o
direito à diferença dos povos indígenas. No caso das crianças indígenas, o problema se
daria por um projeto de lei que se apresenta como uma defesa da vida das crianças
indígenas, ao mesmo tempo em que ameaça o direito dos povos a construir suas
autonomias, onde a salvação das crianças seria um álibi para o Estado intervir na vida
dos povos indígenas, mediante a acusação de maus tratos e infanticídio.
O desafio seria pensar sobre a forma de defender sociedades acusadas da prática
de infanticídio ou de não o considerar crime. Para isso, seria necessário construir um
discurso que não recorria nem ao relativismo cultural nem às noções de cultura e
tradição que se costuma utilizar para defender a realidade indígena e as comunidades na
América Latina. Essa resposta também não apelaria ao direito à diferença, mas sim ao
direito à autonomia, como um princípio que não coincide exatamente com o direito à
diferença, já que não pode tornar-se uma regra compulsória para todos os aspectos da
vida e de forma permanente.
O segundo caso, de violência contra as mulheres indígenas, seria um dilema
semelhante, pois de que forma seria possível recorrer ao amparo dos direitos estatais
sem propor a progressiva dependência do Estado colonizador cujo projeto histórico
esbarra no projeto da restauração das autonomias indígenas e do tecido comunitário?
Pois seria “contraditório afirmar o direito à autonomia e, simultaneamente afirmar que
se deve esperar que o Estado crie as leis que deverão defender os frágeis e prejudicados
dentro dessas autonomias”.
Para resolver esse impasse, a primeira consideração feita pela autora é de que “o
Estado entrega com uma mão aquilo que já retirou com a outra: cria uma lei que
defende as mulheres da violência à qual estão expostas porque esse mesmo Estado já
destruiu as instituições e o tecido comunitário que as protegia”.
A respeito do polêmico tema do infanticídio indígena frente à dominação estatal
e à construção do discurso universal dos direitos humanos das Nações Unidas, torna-se
inviável defender uma autonomia em termos de relativismo cultural. Para defender a
autonomia, a autora se apoie no que ela chamou de pluralismo histórico, onde “Os
sujeitos coletivos dessa pluralidade de histórias são os povos, com autonomia
deliberativa para realizar seu processo histórico, ainda que em contato, como sempre
foi, com a experiência, as soluções e os processos de outros povos”.
Nesse sentido, cada povo é visto como um vetor histórico, longe de ser um
patrimônio substantivo, estável, permanente e fixo de cultura. Os costumes de um povo,
na verdade, são submetidos a deliberação permanente e, em consequência, modificam-
se, uma vez que permanência desse povo não depende da repetição de suas práticas,
nem da imutabilidade de suas ideias. Essa concepção permite referir-se a noção de
identidade de um povo enquanto agente coletivo de um projeto histórico, que tem um
passado comum e constroem um futuro também comum, cujas tramas interna não
dispensam conflitos de interesse e antagonismos éticos e políticos. Ou seja, essa
perspectiva possibilita substituir a expressão “uma cultura” pela expressão “um povo”:
“sujeito vivo de uma história, em meio a articulações e intercâmbios que, mais que uma
interculturalidade, desenham uma inter-historicidade”.
Por isso, deve ocorrer o que Segato chama de uma devolução da história, onde o
Estado restituiria a capacidade de cada povo de implementar seu próprio projeto
histórico, de tecerem seu próprio destino, retomando sua autonomia e agenciamento
histórico, pela devolução da jurisdição e a garantia de deliberação. Assim, o argumento
relativista cede lugar ao pluralismo histórico, que é uma variante não culturalista do
relativismo, imune à tendência fundamentalista inerente a todo culturalismo. Dessa
forma “cada povo deveria ter as condições de deliberar internamente como mudar ou
contornar os costumes que levam a sofrimento desnecessário de alguns dos seus
membros. E essa deliberação, que sempre ocorreu, não é outra coisa que o motor da
história”.
No entanto, depois do longo processo de colonização europeia, do
estabelecimento do padrão da colonialidade e o posterior aprofundamento da ordem
moderna sob a égide das Repúblicas é possível pensar seriamente que esse Estado deve
subitamente retirar-se? há algum modo de habitar de forma descolonial ainda que dentro
da matriz desse Estado e transformá-lo em um Estado restituidor do foro interno, e com
isso, da história própria?
Para a autora, a Ordem pré-intrusão segue conseguindo manter algumas
características pertencentes ao mundo que antecedeu a intervenção colonial, que ela
chama de mundo-aldeia. Contudo, esse contato com o processo colonizador exacerbou
as hierarquias que já continham em seu interior que são basicamente as de status: casta e
gênero. Ele criou entre-mundos de cruzamentos variados de influências benignas e
malignas da modernidade dentro dessas comunidades. Nos entre-mundos do sangue, por
exemplo, existe um entre-mundo da mestiçagem como branqueamento, que dilui o
rastro indígena no mundo miscigenado e o do enegrecimento, que faz parte do processo
de construção e restituição demográfica desses povos.
A análise do que diferencia o gênero na modernidade colonial e na ordem pré-
intrusão revela, segundo a autora, o contraste entre seus respectivos padrões de vida em
geral, em todos os âmbitos e não somente no âmbito do gênero, isto porque essas
relações pertencem a uma cena ubíqua e onipresente de toda vida social da aldeia. Por
isso é mais que válido ler a interface entre o mundo pré-intrusão e a modernidade
colonial a partir das transformações do sistema de gênero, conferindo-lhe um estatuto
teórico e epistêmico ao examiná-lo como categoria central que influencia e clareia todos
os outros aspectos da transformação imposta à vida das comunidades ao serem
capturadas pela nova ordem colonial / moderna.
Muitas mulheres indígenas denunciam frequentemente a chantagem das
autoridades indígenas, que as pressionam para que posterguem suas demandas como
mulheres sob o argumento de que, ao não o fazer, estariam colaborando para a
debilidade da coesão em suas comunidades, tornando essas mais vulneráveis nas lutas
por recursos e direitos. Essas reinvindicações femininas geralmente são abafadas pelas
lideranças masculinas frente a intervenções externas sob a frase guarda-sol do “sempre
foi assim”. No entanto, apesar dos dados documentais, históricos e etnográficos do
mundo aldeia, mostrarem a existência de estruturas reconhecíveis de diferença
semelhantes ao que toca as relações de gênero, e o que fica claro para a autora é que
nesses mundos eram mais frequentes as aberturas ao trânsito e à circulação entre essas
posições que se encontram
interditas no nosso equivalente moderno ocidental.
A adoção de uma postura de mais enrijecida dentro das comunidades indígenas
modernas, na verdade, seria fruto da construção da masculinidade que acompanhou a
humanidade ao longo de todo o tempo, que obrigou os povos colonizados a adquiri-la
como status para sobrevivência, garantia e/ou manutenção de certos espaços e direitos.
Sendo assim, esse encontro foi fatal ao transformar uma ordem hierárquica em ultra
hierárquica, pela superinflação dos homens no ambiente comunitário e no seu papel de
intermediários com o mundo exterior, colapsando assim a esfera doméstica, lugar de
participação e inclusão feminina na esfera política das aldeias. Ou seja: a posição
masculina ancestral foi transformada por pelo papel relacional com as poderosas
agências produtoras e reprodutoras da colonialidade. “É com os homens que os
colonizadores guerrearam e negociaram, e é com os homens que o Estado da
colonial /modernidade também o faz”. Agora, apesar de permaneceram as
nomenclaturas, a posição masculina opera sobre uma nova plataforma, sob nova
configuração interna.
De mãos dadas a esse processo de hiperinflação masculina na aldeia, Segato
pontua que também ocorre a emasculação desses mesmos homens frente aos brancos,
mostrando-lhes a relatividade de sua posição masculina frente ao domínio do
colonizador. “Este processo é violentogênico, pois oprime aqui e empodera na aldeia,
obrigando a reproduzir e a exibir a capacidade de controle inerente à posição de sujeito
masculino no único mundo agora possível para restaurar a virilidade prejudicada na
frente externa”.
Outra parte desse panorama da captação do gênero pré-intrusão pelo gênero
moderno é o sequestro da política, da deliberação sobre o bem comum, por parte da
esfera pública republicana em expansão e a consequente privatização do espaço
doméstico. O resultado disso foi fatal para sua segurança feminina, pois rompeu os
vínculos entre as mulheres e do fim das alianças políticas que eles propiciavam,
tornaram-nas progressivamente mais vulneráveis à violência masculina, esta
potencializada pelo estresse causado pela pressão exercida sobre os homens no mundo
exterior.
“Assim como as características do crime de genocídio são, por sua racionalidade
e sistematicidade, originárias dos tempos modernos, os feminicídios, como práticas
quase mecânicas de extermínio das mulheres são também uma invenção moderna”.
Dessa forma, no mundo-aldeia, o espaço doméstico é um lugar e politicamente
completo com sua política própria, com suas associações próprias, hierarquicamente
inferior ao público, mas com capacidade de autodefesa e de autotransformação. Por isso
o fracasso das estratégias de gênero de alguns prestigiosos programas de cooperação
internacional. Porque eles aplicam um olhar universalizaste e partem de uma definição
eurocêntrica de
“gênero” e das relações que este organiza.
Para a autora, esses projetos e ações de cooperação técnica nos revelam a
dificuldade dos países europeus de perceber a especificidade do gênero nos ambientes
comunitários de sua atuação. Em detrimento a ideia de promover a igualdade de gênero
aplicados a mulheres enquanto indivíduos, ou à relação entre indivíduos mulheres e
indivíduos homens, esses programas precisam pensar em ações dirigidas à promoção da
esfera doméstica e do coletivo das mulheres como um todo, frente à hierarquia de
prestígio e poder do espaço público comunitário e ao coletivo dos homens.
O outro grande erro cometido por esses programas reside no conceito de
transversalidade, que propõe transversalizar as políticas destinadas a sanar o caráter
hierárquico das relações de gênero. Para Segato, é falso o pressuposto de que existem
dimensões da vida comunitária que são de interesse universal: como a economia, a
organização social, a vida política –, e dimensões que são de interesse particular,
parcial: o espaço doméstico. A primeira de valor universal, e a segunda de interesse
particular, privado e íntimo.
“Transversalizar o interesse particular, parcial, como fazem as ações de gênero
atravessando temáticas supostamente universais é um erro quando se pretende alcançar
a realidade dos mundos que não obedecem à organização ocidental e moderna da vida,
mundos que não operam orientados pelo binarismo eurocêntrico e colonial. No mundo-
aldeia, ainda que mais prestigiosa, a esfera do político não é universal, mas, como a
doméstico, uma das parcialidades. Ambas são entendidas como ontologicamente
completas. Por essa razão, a estratégia da transversalização não é outra coisa que um
eufemismo para nomear a inferiorização e parcialização colonial / moderna de tudo
quanto interessa às mulheres”.

Por isso que necessitamos utilizar o entre-mundo da modernidade crítica,


fecundando as hierarquias étnicas através do seu discurso de igualdade e gerando uma
cidadania étnica ou comunitária, adequada ao foro interno e a da jurisdição própria, ou
seja, do debate e deliberação de seus membros, que tecerão os fios de sua história
particular.

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