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Fichamento de O despertar de tudo: uma nova história da Humanidade de David Graeber e

David Wengrow

Capítulo 1 - Adeus à infância da humanidade: Ou por que este não é um livro sobre as
origens da desigualdade
Graeber e Wengrow mostram que no discurso comum há, geralmente, duas grandes correntes
para explicar a pré-história da humanidade. A primeira ancora-se num discurso semelhante ao de
Rousseau em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens no
qual os homens inicialmente viviam em bandos e eram caçadores-coletores, até que a revolução
agrícola os sedentarizou e institui a propriedade privada causando todos os males da sociedade.
O outro discurso ancora-se nas tese de Thomas Hobbes em O Leviatã no qual o homem, em
estado de natureza, seria pobre, solitário, brutal e egoísta. Assim, foi só através da submissão a
um grande poder fixado por leis e instituições que os humanos controlaram seus apetites e criou-
se a civilidade. Este seria um caminho de “repressão coletiva dos nossos instintos mais
elementares”. Dessa maneira, no discurso Rousseauniano teríamos uma igualdade perdia com a
instituição da sociedade civil e no discurso hobbesiano teríamos a impossibilidade histórica da
igualdade por conta do nosso auto-interesse.
De toda maneira, os autores acreditam que é possível pensar diferente destes dois discurso e
apontam três motivos para discordarem deles: i) as duas alternativas simplesmente não são
verdadeiras (com base nos registros arqueológicos e antropológicos); ii) as duas alternativas têm
implicações políticas sinistras (a igualdade não é possível); iii) elas tornam o passado
desnecessariamente opaco (excesso de abstração sobre os registros pré-históricos que
distorcem a nossa capacidade imaginativa sobre essas sociedades, fazendo delas a semelhança
da qual vivemos).
Os autores começam apresentando inicialmente porque a visão rousseauniana não é verdadeira:
“o mundo dos caçadores-coletores, antes da chegada da agricultura, era repleto de experiências
sociais arrojadas, parecendo muito mais um variado desfile carnavalesco de formas políticas do
que as insípidas abstrações da teoria evolucionária. A agricultura, por outro lado, não determinou
o aparecimento da propriedade privada, nem marcou um avanço irreversível rumo à
desigualdade. Na verdade, muitas das primeiras comunidades agrícolas eram relativamente
isentas de níveis e hierarquias. E, longe de estabelecer sólidas diferenças de classe, um número
surpreendente das primeiras cidades do mundo se organizava segundo linhas de claro teor
igualitário, que dispensavam governante autoritários, político-guerreiros ambiciosos ou mesmo
administradores opressores.”
Ademais, Graeber e Wengrow alertam que para repensar a história da humanidade será
necessário não apenas aumentar a quantidade de dados disponíveis para explorar o passado,
mas uma mudança conceitual. ”Para promover essa mudança, é preciso rastrear alguns dos
passos iniciais que levaram à nossa noção atual de evolução social: a ideia de que seria possível
dispor as sociedades humanas em estágios de desenvolvimento, cada qual com tecnologias e
formas de organização próprias (caçadores-coletores, agricultores, sociedade urbano-industrial e

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assim por diante)”. Segundo os autores, esse conceito de evolução social é antes uma crítica
indígena às sociedades europeias. Ademais, a mudança conceitual que está em jogo é tratar
esses registros pré-históricos como pessoas com as quais poderíamos conversar e não como
espécimes a compararem o estágio de evolução e complexidade social com o nosso.
Por fim, ao falar sobre “lei da história” os autores dizem: “Existem tendências na história, sem
dúvida. Algumas são poderosas, correntes tão fortes que se torna muito difícil nadar contra elas
(embora sempre pareça existir alguém que consegue). Mas as únicas ‘leis’ são aquelas que nós
mesmos fazemos.” Assim, a responsabilidade da história está nas mãos de quem a faz.
Trabalhando na crítica às implicações políticas da versão hobbesiana e rousseauísta da história
humana, os autores comentam que na segunda versão o tópico da desigualdade salta aos olhos
como o problema central de nossa sociedade. Embora pareça, à primeira vista, uma contestação
ao sistema falar sobre desigualdade, os autores insistem que “[p] termo ‘desigualdade’ é uma
formulação de problemas sociais apropriada a uma era de reformadores tecnocratas que a
princípio pressupõem que sequer existe a hipótese de visar uma transformação social efetiva.”
Pois nunca fica claro qual o objetivo da diminuição da desigualdade, em que ponto poderíamos
nos dar por satisfeito? Além de toda a discussão sobre a necessidade de acumulação de capital
para promover inovação que é sempre o argumento da direita para manter as coisas como estão.
A grande questão que está por trás da desigualdade é como “alguns [conseguem] transformar a
sua riqueza em poder sobre os demais” ou como muitos percebem as suas necessidades sem
importância ou que sua existência não tenha qualquer valor intrínseco. Isto é, a desigualdade
brutal na qual vivemos importa por conta da perda de humanidade que ela implica. Contudo, o
atual discurso sobre desigualdade nos fóruns econômicos reduz-se a uma alternativa política
inócua: ou reduzimos grande parta da população para vivermos como forrageadores e atingimos
uma igualdade na pobreza ou lutamos politicamente dentro das instituições para diminuir um
pouco o sufocamento que as elites nos impõem. Ambas alternativas são desalentadoras.
Dessa forma, deveríamos abandonar a ideia de um passado idílico em que toda a população vivia
em perfeita igualdade antigamente e praticavam o mesmo tipo de organização social por todo o
globo. “Em última análise, a grande questão da história humana, como veremos, não é o acesso
igualitário aos recursos materiais (solo, calorias, meios de produção), por mais que essas coisas
sejam obviamente importante, mas nossa capacidade de contribuir de forma igualitária para
decidir como vivemos juntos.” Assim, por ser a questão da decisão coletiva a pedra angular do
debate sobre igualdade, os autores propõem que não façamos uma história da humanidade
sobre como decaímos de um passado idílico, mas antes “perguntássemos como acabamos
presos em grilhões conceituais tão rígidos que não conseguimos mais sequer imaginar a
possibilidade de nos reinventar”.
É importante destacar que os autores apontam a falsidade do discurso no qual sociedades
grandes precisam de hierarquia para se organizarem e que somente em pequenas sociedades ela
poderia ser dispensável. Esse discurso reflete antes a ideologia de quem o reproduz e o
desconhecimento de estudos antropológicos.
Outro ponto fundamental a ser apontado é o fato de que a idealização de um homem em estado
de natureza em Rousseau é um experimento mental, isto é, se propõe a um raciocínio hipotético
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e condicional “mais adequados para elucidar a natureza das coisas do que para mostrar a sua
verdadeira origem.” Dessa modo, diferentemente de Smith, Ferguson e Millar que pensavam os
diferentes modos de existência como graus de desenvolvimento social e moral, Rousseau
apresentava “uma especie de parábola, tentando explorar um paradoxo fundamental da política
humana: como nosso impulso inato de liberdade reiteradamente nos leva, de alguma maneira, a
uma ‘marcha espontânea para a desigualdade?’” Ademais, cabe ressaltar que até para Hobbes o
estado de natureza seria somente um recurso retórico e não exatamente a origem da
humanidade.
Dessa maneira, a persistência de discursos pretensamente científicos como de Pinker, Fukuyama
e Diamond sobre a história da humanidade escolhem a dedo os casos que reforçam as suas
teses para fazer do homem primitivo uma figura idílica ou guerreadora por natureza reforçando
ora o discurso rousseauísta ora o discurso hobbesiano.
Dois pontos merecem ser destacados da argumentação de Graeber e Wengrow a seguir. O
primeiro aspecto é mostrarem que a noção de democracia é estranha à “tradição da civilização
europeia”, isto é, é possível ler nos textos da antiguidade um rechaço dos autores que escrevem
sobre política à democracia. Por que então Pinker escolheria a civilização europeia como guardiã
dos conceitos de liberdade, igualdade e democracia? O segundo aspecto a ser destacado é a
pergunta sobre qual o melhor modo de vida: o ocidental ou o ameríndio? Pinker não titubeia em
mostrar dados estatísticos que corroborariam a escolha do primeiro, mas a inversão do critério
de determinação posto por Graeber e Wengrow é simples e direta: vejamos para aqueles que
tiveram a oportunidade de escolher entre estes dois modos de vida, qual eles preferem. Parece
um critério muito simples para ser científico, mas faz parte justamente da mudança na forma de
pensar a questão que os autores propõem.
Assim, Graeber e Wengrow mostram relatos em que os jovens capturados pelos ameríndios,
tendo a oportunidade de voltar à sociedade ocidental ou permanecer entre os ditos “primitivos”
escolhe a segunda opção em busca de proteção e segurança. O que é relevante ter em mente é
que nas sociedade ocidentais o trabalho incessante em busca de acúmulo de riquezas torna a
vida esgotante e até sem sentido. Dessa maneira, poder contar com uma sociedade que
proporciona acesso a novas posições sociais sem necessidade de acúmulo de riquezas, mas
pelo valor pessoal e na qual há uma rede de apoio mútuo de todos, de tal forma que ninguém
passe fome, não pela bondade dos ameríndios, mas pela vida não ser agradável com alguém em
situação de miséria ao seu lado (sentimento constante de nós que vivemos em grandes cidades).
“A ‘Segurança’ tem muitas facetas diferentes. Existe a segurança de saber que se tem uma
chance estatisticamente menor de levar uma flechada. E existe a segurança de saber que, no
caso de levar um flechada, há pessoas no mundo que cuidarão com extremo cuidado dos
ferimentos.” Além disso, adiciono o fato de que a sociedade ocidental leva bastante em
consideração a longevidade das pessoas, mas quantas dessas vidas realmente foram bem
vividas? quantas viveram tempos de miséria? quantas foram vidas de mera sobrevivência no
sistema de mercado? quantas realizaram algum sonho não material? Essas perguntas são mais
relevantes do que o crescimento da expectativa de vida ou o aumento do indicador IDH.

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O último ponto destacado pelos autores, e que é bastante caro ao curso em questão, é o fato da
intercâmbio material entre tribos corroborar ou não a tese de Adam Smith sobre a propensão
natural à troca? De forma bastante direta, Graeber e Wengrow rejeitam essa hipótese daqueles
que querem corroborar a tese de Smith pois enxergar nos laços de intercâmbio o comércio ou
um proto-mercado é na realidade falta de imaginação daqueles que observam esse fenômeno:
“muitas vezes vemos que essas redes regionais se desenvolvem em larga medida para criar
relações de amizade ou para ter um pretexto para se visitarem de vez em quando; e há inúmeras
outras possibilidade que de maneira nenhuma se assemelham a um ‘comércio’.” Isto é, a troca
nas sociedades indígenas não significa mercado, mas antes uma das formas de se relacionar
com outras comunidades e estabelecer laços de amizade. O argumento de Graeber e Wengrow é
o que segue: “Quando simplesmente tentamos adivinhar quais eram as atividades dos seres
humanos em outros tempos e outros lugares, quase sempre nossos palpites são mito menos
interessantes, muito menos excêntricos - em suma, muito menos humanos do que aquilo que
provavelmente estava acontecendo.”
Por fim, Graeber e Wengrow ressaltam que o livro buscará antes entender quando e como se
tornou importante a pergunta pela desigualdade na sociedade ocidental e depois, tentando traçar
uma história da humanidade levando em conta as perspectivas dos próprios pensadores
ameríndios, qual seria a melhor pergunta a se fazer para compreender o que se perdeu com a
instituição da sociedade civil tal como se conhece no ocidente do que repetir a velha pergunta de
Rousseau: qual é a origem da desigualdade social?

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