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RESENHA

GÊNERO, PATRIARCADO E VIOLÊNCIA – SAFFIOTI

A violência é um fenômeno que faz parte do cotidiano do brasileiro,


sendo uma das principais causas de preocupação. Não há como se falar em
violência no Brasil sem se considerar a questão da desigualdade social, visto
que a violência está intimamente relacionada com a situação de miséria.

Pensando o poder na concepção foucaultiana, não como um objeto do


qual se possa realizar uma definitiva apropriação, mas como algo que flui, que
circula nas e pelas relações sociais. O poder deve ser analisado como algo que
circula, só funcionando em cadeia, em redes. Nesse sentido, os indivíduos
sempre se encontram em condição de exercer esse poder e de sofrer sua
ação, não sendo alvos inertes, mas sempre centros de transmissão.
(FOUCAULT, 1981). Daí se infere que essa rotatividade do poder funciona
dessa forma também nas relações micropolíticas.

Como o poder se exerce em grande medida pelas riquezas, cumpre


adentrar, embora superficialmente, no campo econômico. A fase da hegemonia
do capitalismo que vivemos na atualidade é certamente a maior causa da
instabilidade social no mundo globalizado. Sem a concretização de sua lei
máxima acumulação e miséria, o capitalismo não se sustentaria. Apesar da
mudanças trazidas pela globalização, a lógica da dominação-exploração entre
países e entre classes sociais continua a mesma.

Nesse contexto, entra em jogo um dos mais sérios perpetuadores da


miséria e da violência, as drogas pesadas, que certamente aumentam os
índices da violência urbana. Isto somado ao consumo das drogas lícitas, temos
grande parte da população submersas em um alterado estado de consciência,
que tem grande influencia sob o código de ética de cada um.

Não se pode olvidar da relação entre desemprego e violência, sobretudo


para os estudiosos das violências contra as mulheres.

Os índices de violência no Brasil são tão altos que já nos habituamos a


viver sob estas condições. De forma que a violência é vista apenas como a
ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade física, psíquica,
sexual, moral.

O poder é macho, branco e, de preferência, heterossexual (SAFFIOTI,


1987).
O conceito de gênero

Por serem tão usados no dia-a-dia, os conceitos de violência de gênero,


violência contra a mulher e violência doméstica costumam ser confundidos.

A violência de gênero engloba tanto a violência de homens contra


mulheres, como de mulheres contra homens, uma vez que o conceito de
gênero é aberto. Apesar das diversas controvérsias geradas pelo termo gênero
no mundo acadêmico, existe o consenso que “o gênero é a construção social
do masculino e do feminino”. Importante esclarecer que a temática gênero não
explicita necessariamente as desigualdades entre homens e mulheres, daí a
necessidade de se trabalhar também com o conceito de “patriarcado”. Gênero
funcionaria para toda a história das relações entre homem-mulher da
humanidade, enquanto patriarcado funcionaria como categoria específica de
determinado período, ou seja, os últimos 6 ou 7 milênios.

Inegavelmente, não existe mais nos dias atuais, um patriarcado tal qual
quando foi concebido; como todos os fenômenos sociais, este também
encontra-se em constante processo de transformação. Não existe mais hoje o
domínio legal do homem sobre a mulher tal qual na Roma Antiga, em que o
homem detinha poder de vida e morte de sua mulher assegurado pelas leis.
Tais leis não mais existem na atualidade, entretanto homens continuam
matando as mulheres como se ainda tivessem o direito legal para tal e a
sociedade continuam amenizando estes crimes e, muitas vezes, procurando
culpabilizar as mulheres pelos mesmos.

Embora os brasileiros costumem se escandalizar com os casos de


violência contra a mulher cometidos em outros países e culturas, como é o
caso do Oriente Médio, Índia e outros países do continente africano, podemos
citar dezenas de casos de violência contra a mulher com requintes de
crueldade também no Brasil. Casos como o de Daniela Perez, Angela Diniz,
Maria Celsa (que foi incendiada pelo namorado), um nordestino que marcou a
mulher a ferro, casos como o de Maria da Penha, Elóa, e mais recentemente o
caso que ficou conhecido como o Massacre de Campinas fazem parte do dia-a-
dia do povo brasileiro.

O poder tem duas faces: a da potência e a da impotência. As mulheres


estão familiarizadas com a impotência, mas o homem não, o que os leva a
acreditar que quando cometem atos de violência estão sob o efeito dela
(SAFFIOTI E ALMEIDA, 1995).
O conceito de patriarcado

Da mesma forma que as relações patriarcas, bem como suas


hierarquias e estruturas de poder contaminam toda a sociedade, o direito
patriarcal ultrapassa a sociedade civil e se estabelece também no Estado.
Ainda que não se negue as diferenças entre os espaço público e privado,
reconhece-se que estes espaços estão profundamente ligados e mesclados.

Pateman mostras que o contrato original é um contrato entre homens e


tem por objeto as mulheres. A diferença sexual é, portanto, convertida em
diferença política, passando a se exprimir ou em liberdade ou em sujeição.

Abandonar o conceito de patriarcado, representaria na opinião de


Pateman (1993), “a perda, pela teoria política feminista, do único conceito que
se refere especificamente à sujeição da mulher, e que singulariza a forma de
direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens”.

Porque manter o nome patriarcado?

1) Não se trata de uma relação privada, mas civil.


2) Dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres.
3) Configura um tipo hierárquico de relação que invade praticamente
todos os espaços da sociedade.
4) Tem uma base material.
5) Corporifica-se.
6) Representa uma ideologia de poder baseada tanto na ideologia
quanto na violência.

Depois de extensa pesquisa nos 5 continentes, Castells (1999), pode


concluir que “o patriarcalismo dá sinais no mundo inteiro de que ainda está vivo
e passando bem...”

Não pode haver uma sociedade sem gênero, na medida em que as


sociedades tendem a construir uma imagem do masculino e do feminino. Do
gênero pode advir uma divisão social do trabalho, também conhecida por
divisão sexual do trabalho. O que não implica que as atividades atribuídas às
mulheres sejam necessariamente desvalorizadas em relação às dos homens. A
divisão do trabalho em razão do gênero não traz desigualdade em sua
essência. Como exemplo, podemos citar as sociedades de caça e coleta, em
que cabia aos homens a caça e às mulheres à coleta, sendo as duas
atividades de extrema importância para a sobrevivência do grupo.

Johnson atribui a dois fatores históricos a mudança deste tipo de


sociedade igualitária às sociedades que se conhecem hoje: a produção do
excedente econômico (cerca de 11 mil anos atrás) e a descoberta da
participação do homem no processo de fecundação.

Lerner dá mais atenção ao segundo motivo, afirmando que embora as


mulheres não detivessem mais poder que os homens à época, eram
consideradas seres poderosos, em virtude de sua capacidade de conceber
uma nova vida aparentemente sozinhas.

Estima-se que a transição entre estes dois tipos de sociedade, igualitária


para a patriarcal, durou cerca de dois milênios e meio, pois havia forte
resistência das mulheres ao novo regime que as colocava em desigualdade.

Há, no Brasil, uma enorme confusão entre os tipos de violência violência


contra a mulher, violência de gênero, violência doméstica e violência
intrafamiliar.

A violência de gênero é, se dúvida, o tipo mais abrangente. O uso


deste conceito, segundo Scott (1988), pode revelar sua neutralidade, na
medida em que não inclui desigualdades e poder como fatores necessários.
Fato este que se mostra muito relevante, na medida em que esta categoria
deixa aberta a possibilidade ou não do vetor dominação/exploração, enquanto
os outros tipos estão intimamente ligados a ele.

Importante destacar que gênero considera preferencialmente as


relações homem-mulher, entretanto não se pretende olvidar que existe
violência de gênero em se tratando se relações homem-homem ou mulher-
mulher. como exemplo, pode haver violência entre dois homens na disputa por
uma mulher. Preferencialmente, porque a desigualdades das relações homem-
mulher, longe de serem naturais, são impostas pela sociedade, pelas tradições
culturais, pelas estruturas de poder; não é uma desigualdade dada, mas
construída com frequência.

Violência Familiar envolve membros de uma mesma família extensa ou


nuclear, levando-se em conta a consanguinidade ou afinidade. Pode ocorrer no
interior do domicílio ou fora dele, podendo extrapolar os limites do domicílio
(por exemplo, um avô que mora em outra casa pode cometer violência contra
seu neto).

A violência doméstica apresenta alguns pontos de sobreposição com a


violência familiar, atingindo porém também pessoas que mesmo não
pertencendo a família, vivem no domicílio do agressor, como empregadas
domésticas e agregados.

Estabelecido o domínio de um território, o chefe, via de regra um


homem, passa a reinar quase incondicionalmente sobre seus demais
ocupantes. “O processo de territorialização do domínio não é puramente
geográfico, mas também simbólico”. A violência doméstica tem lugar
predominante no domicílio, mas nada impede o agressor de ultrapassar os
limites deste realizando a agressão em outros espaços.

Importante destacar ainda que dificilmente as mulheres sofram


passivamente as violências sofridas por seus parceiros. Podem inclusive
cometer contra ele diversas formas de violência, entretanto dificilmente esta se
mostra física, na medida em que tanto sua força física quanto sua educação
para docilidade a prejudicam.

Cabe destacar ainda a violência praticada pelos pais contra os filhos, e


neste caso não se fala predominantemente no homem como agressor principal,
pois as mulheres também sofrem da síndrome do pequeno poder, sendo
frequente autoras de agressão contra crianças.

O significado de violência

O que se percebe é que a sociedade acha natural a violência de homens


contra mulheres e de pais contra filhos, ratificando a pedagogia da violência.
Trata-se, segundo Saffioti, da ordem social das bicadas. A grande questão se
situa na tolerância e até no incentivo da sociedade para que os homens
exerçam sua força-potência-dominação contra as mulheres, em detrimento de
uma virilidade doce e sensível.

A concepção da violência como ruptura da integridade parece pouco


eficaz em se tratando destes tipos de violência que aqui tratamos, pois são
muito tênues os limites entre quebra de integridade e obrigação de suportar o
destino de gênero traçado para as mulheres: sujeição aos homens. Posto que
a ruptura de integridade como critério de avaliação de um ato como violento
situa-se no terreno da integridade. Cada mulher interpretará a sua maneira.

Por esta maneira, prefere-se trabalhar com o conceito de direitos


humanos, entendendo por violência todo ato capaz de violá-los.

No estudo desta temática, cabe ressaltar alguns pontos baseados em


dados empíricos:

1) A violência doméstica ocorre numa relação afetiva, cuja ruptura


demanda, via de regra, uma interrupção externa. Dificilmente uma
mulher consegue se desvencilhar de um relacionamento abusivo sem
ajuda. Até que a ruptura ocorra, ocorre uma trajetória oscilante,
conhecida por ciclo da violência. Do que se percebe que a violência no
seio familiar não é e nem pode ser expressão unilateral do
temperamento de uma só pessoa, sendo “tramada” conjuntamente por
vários indivíduos.
Do que não se infere que as mulheres sejam cúmplices da própria
violência, sendo detentoras de uma parcela infinitamente menor de
poder que os homens, as mulheres só podem ceder à violência, e não
consentir (MATTHIEU, 1985).
2) As mulheres lidam, via de regra, muito bem com micropoderes. Não
ocupam tanto espaço em relação aos macropoderes por terem sido
historicamente alijadas deles e por não conhecerem a sua própria
história de luta, achando-se incapazes de se mover no seio da
macropolítica.
3) Violência de gênero não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma
organização social de gênero, que privilegia o masculino.
4) Afirmar que as relações de gênero são relações interpessoais significa
singularizar os casais, perdendo de vista a estrutura social e tornand
cada homem inimigo das mulheres (DELPHY, 1998). Não se pode
analisar aqui somente do ponto de vista da classe social, sem levar em
consideração o gênero e raça/etnia.
5) Também obscurece a compreensão o fenômeno da violência de gênero,
o raciocínio que patologiza os agressores, funcionando da mesma forma
a culpabilização dos pobres pela violência.
6) Como a maior parte da violência de gênero ocorre nas relações afetivas,
importante o conceito de co-dependência.
7) O poder apresenta duas faces: a da potência e a da impotência. As
mulheres são sociabilizadas para viverem na impotência, os homens são
preparados para o exercício do poder, convivendo mal com a
impotência. Acredita-se ser no momento da impotência que os homens
praticam atos violentos, estabelecendo relações deste tipo (SAFFIOTI E
ALMEIDA, 1997). Daí a relação tão importante entre desemprego e
violência doméstica.

Violência Doméstica

A violência doméstica apresenta características específicas, sendo uma


das mais relevantes a rotinização, o que contribui para a co-dependência. A
relação violenta se constitui uma verdadeira prisão e neste sentido o gênero se
revela uma camisa de força, na medida em que o homem deve agredir, porque
o macho deve dominar a qualquer custo, enquanto à mulher cabe suportar
agressões de toda ordem, porque o seu destino assim determina.
A ambiguidade feminina em relação à violência sofrida é muito grande e
compreende-se o porquê disto. Em primeiro lugar, trata-se de uma relação
afetiva, com múltiplas dependências recíprocas. Em segundo lugar, raras são
as mulheres que constroem sua própria independência ou que pertencem a
grupos dominantes. Independência difere de autonomia, as pessoas vinculadas
por laços afetivos dependem umas das outras, não havendo para ninguém total
independência. Em terceiro lugar, na maioria das vezes o homem é o único ou
principal provedor familiar. Em quarto lugar, existe a pressão feita pela família
extensa, amigos, Igreja, sociedade, etc. no sentido da preservação da sagrada
família.

Para Hartman (1979), patriarcado representa um pacto masculino para


garantir a opressão das mulheres.

Neste regime, as mulheres são meramente objetos da satisfação sexual


dos homens, reprodutora de herdeiros, de força de trabalho e de novas
reprodutoras. Apesar dos avanços na conquistas de direitos, é importante reter
que a base material do patriarcado não foi destruída.

A base econômica do patriarcado não consiste apenas na intensa


discriminação salarial das trabalhadoras, em sua segregação ocupacional e em
sua marginalização dos importantes papéis econômicos e político-deliberativos,
mas também no controle de sua sexualidade e de sua capacidade reprodutiva.

Qualquer que seja a profundidade da dominação-exploração das


mulheres pelos homens na atualidade, a natureza do patriarcado continua a
mesma.

GÊNERO E PODER

Necessário estabelecer uma diferenciação entre as categorias sexo e


gênero. Categorias de sexo podem ser consideradas os homens e mulheres
enquanto grupos diferenciados biologicamente, enquanto gênero diz respeito
às imagens que a sociedade constrói do masculino e do feminino.

Não se contesta que os estudos sobre poder sejam essenciais nas


discussões sobre gênero. Não se pode esquecer, contudo, que o poder pode
ser democraticamente partilhado, gerando liberdade, como também exercido
discricionariamente, criado desigualdades.
Do que se pretende admitir, em conclusão, que a categoria gênero é muito
mais vasta que patriarcado, na medida em que neste as relações são
hierarquizadas entre seres socialmente desiguais, enquanto o gênero
compreende também relações igualitárias. Desta forma, o patriarcado é um
caso específico das relações de gênero.

O patriarcado serve a interesses dos grupos dominante e que o sexismo


não é meramente um preconceito, sendo também o poder de agir de acordo
com ele. No caso do sexismo, o preconceituoso está investido de poder,
habilitado pela sociedade a tratar como quiser a pessoa sob a qual recai o
preconceito.

Defende-se a necessidade de se tratar o termo gênero conjuntamente


ao de patriarcado. Se se escolher falar somente de gênero, estar-se-á
distraindo a atenção do poder do patriarca.

O gênero é constitutivo das relações sociais, como afirma Scott, da


mesma forma que a violência é constitutiva das relações entre homens e
mulheres, na fase histórica da ordem patriarcal de gênero (SAFFIOTI, 2001).

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