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SARAH CORREA SOLER ALBINO TITZ DE REZENDE

1ª edição

Teoria da Moda e Design

Brasília/DF, 2021.
Elaboração

Sarah Soler

Produção

Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração

Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Marjorie Gonçalves Andersen Trindade, CRB-1/2704

R467t

Rezende, Sarah Correa Soler Albino Titz de


Teoria da moda e design / Sarah Correa Soler Albino Titz de Rezende. –
Brasília : Alumnus, 2021.

88 p.
Recurso online: e-book
Modo de acesso: world wide web

ISBN 978-65-89869-08-5

1. Moda. I. História. II. Aspectos sociológicos. 2. Design. I. e-book. II.


Título.

391:7.05
Sumário

APRESENTAÇÃO.................................................................................................................................. 4

ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA..................................................................... 5

INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 7

UNIDADE I
INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS................................ 9

CAPÍTULO 1
AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS.......................................................................... 9

UNIDADE II
A MODA COMO COMUNICAÇÃO ...................................................................................................... 30

CAPÍTULO 1
AS LINGUAGENS DA MODA .................................................................................................... 30

UNIDADE III
A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE.................................................................................................. 42

CAPÍTULO 1
AS CONEXÕES DO DESIGN E DA MODA................................................................................. 42

UNIDADE IV
O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS........................................................................................ 63

CAPÍTULO 1
OS NOVOS DISCURSOS NA CONTEMPORANEIDADE ............................................................... 63

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 85
Apresentação

Caro aluno

A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se


entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade.
Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela
interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da
Educação a Distância – EaD.

Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade


dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos
específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém
ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a
evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo.

Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo


a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na
profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira.

Conselho Editorial

4
Organização do Caderno
de Estudos e Pesquisa

Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em


capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos
básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar
sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para
aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares.

A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos
Cadernos de Estudos e Pesquisa.

Provocação

Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.

Para refletir

Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita
sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante
que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As
reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões.

Sugestão de estudo complementar

Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo,


discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso.

Atenção

Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a


síntese/conclusão do assunto abordado.

5
Saiba mais

Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões


sobre o assunto abordado.

Sintetizando

Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o


entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

Para (não) finalizar

Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem


ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado.

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Introdução
A moda é um espelho das sociedades, não tão somente como negócio lucrativo, mas
como algo complexo e cultural, pois “reflete as atitudes sociais, econômicas e políticas de
seu tempo”1. Ela conta a história sobre o desenvolvimento das sociedades. Ao observar a
história da humanidade, é possível notar que o ato do vestir sempre esteve presente nas
sociedades e foi o que principalmente serviu de base para estudos sobre determinados
períodos. A roupa age como fronteira ao demarcar as identidades sociais, como por
exemplo, na distinção dos supostos povos bárbaros pelos europeus, que passavam a
impor determinados padrões de vestimentas aos dominados2.

Ao longo das unidades serão apresentadas como as teorias de moda são estudos
realizados pelos grandes pensadores – filósofos, sociólogos, antropólogos –, como
forma de explicar e ajudar a compreender a natureza, os movimentos e as transições,
bem como as transformações que sofreu a moda dentro das sociedades das quais fez
parte.

Objetivos
» Compreender quais são e a importância das principais teorias de moda e
design.

» Conhecer, ainda que brevemente, os autores de maior destaque das


teorias de moda.

» Conhecer a trajetória do design e sobretudo suas influências na sociedade


moderna/contemporânea.

» Possuir base teórica necessária para estabelecer conexões entre moda e


design e de que forma afetam as sociedades e as formas de consumo.

» Introduzir novas formas de consumo de moda e design na


contemporaneidade e quais os desafios dos profissionais de moda e
design para o futuro.

1 (MACKENZIE, 2010, p.6).


2 (LIPOVETSKY, 2009).

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INTRODUÇÃO À
TEORIA DA MODA: AS UNIDADE I
CONTRIBUIÇÕES DOS
GRANDES TEÓRICOS

É importante destacar um início ainda que não totalmente concreto, do


surgimento da ideia de moda, apontado por diversos autores como o final da
Idade Média, como resultado das novas organizações das cidades e o surgimento
de uma nova classe social e econômica, a burguesia.

A moda se transformou em conjunto com o movimento e a evolução da cultura


e da sociedade, tendo como características básicas a necessidade e o apego às
mudanças, a efemeridade e a obsolescência, a distinção das classes e a hierarquia,
o consumo exacerbado etc. As teorias de moda surgem como guias para a
compreensão de tais fenômenos e para a construção de uma ideia de sistema da
moda, produtora da modernidade, segundo Sant’anna (2009).

As teorias apresentadas nessa unidade são observadas segundo a ótica dos


aspectos sociais, culturais e econômicos.

CAPÍTULO 1
As contribuições dos grandes teóricos

Veblen, Simmel e Bourdieu: distinção e


integração social
Thorstein Veblen (1857-1929) é considerado um dos primeiros a defender que o
consumo depende muito mais da estruturação social do que da livre satisfação do
sujeito em consumir. Acredita que o homem não pode ser isolado por natureza, mas
que faz parte da sociedade e se constrói interagindo com as instituições. Sua maior
contribuição para o estudo da moda foi o desenvolvimento da teoria sobre a “Classe
Ociosa”, que auxilia na compreensão da distinção social e é amplamente utilizada

9
UNIDADE I │ INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS

para compreender as sociedades que permitiram o surgimento do sistema de moda.


Ele destaca a importância que os hábitos, as condutas e os pensamentos vigentes,
bem como a sociedade, a história e as instituições foram responsáveis pela difusão dos
comportamentos econômicos.

Sua tarefa foi identificar os hábitos de comportamentos econômicos coletivos no


desenvolvimento da humanidade e compreender a forma com que eles se transformaram
nas instituições econômicas. Ele divide em três fases o comportamento dos indivíduos
na economia:

» selvageria primitiva;

» barbárie;

» e estágio civilizado.

No estágio da selvageria primitiva, ele diz que aspectos comuns nas sociedades
de consumo, como a inveja e a dominação, não poderiam existir, visto que tais
características só podem surgir em sociedades nas quais exista abundância material.
Essa época também não definia de forma clara as divisões de trabalho ou a divisão de
gêneros em linhas de trabalho.

Quando começa a existir excesso de trabalho produtivo e excesso de produção, o


segundo momento surge – a barbárie –, com novas instituições e hábitos que servem
para auxiliar a distinção social entre os sexos, entre os tipos de trabalhos respeitáveis
– masculinos – e os não respeitáveis – femininos. Com o surgimento da ideia de
propriedade, surge então a “classe ociosa”, como forma de demonstrar poder.

Ele retrata os acontecimentos históricos pelo viés da economia ao localizar na história


o momento em que riqueza e honra tornaram-se fundamentais para a valorização do
sujeito, pois era somente por meio da riqueza que o homem encontraria a honra. O
trabalho libera a vida da função de suprir as necessidades básicas, abrindo espaço para
a disputa pela riqueza como meio de comparação entre os proprietários e outros grupos
sociais. A “classe ociosa”, que detém poder econômico e, por consequência, social,
encontra no ócio e no consumo conspícuo, as formas de ostentar tal poder.

O ócio significava, naquele contexto, o tempo gasto em atividades que não fossem
produtivas; como as atividades de lazer – que simbolizavam alto status e poder, como a
caça, por exemplo – que podiam ser demonstradas aos outros e que geravam, portanto,
honra. O trabalho tornou-se nessas sociedades de classes ociosas, inferior, e a busca
pelo ócio era a forma de obter respeito dos outros. O ócio deve ser sempre ostensivo,

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INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS │ UNIDADE I

e o consumo torna-se a principal forma de adquirir ócio nessa sociedade bárbara,


principalmente no que diz respeito às coisas mais supérfluas e efêmeras, como a moda.

As classes mais baixas, relegadas ao trabalho, sentem a inveja e a necessidade


de se igualar aos padrões de vida da classe ociosa, alimentando o consumo e a
valorização do ócio. A ética do trabalho, a honestidade e, principalmente, a
obediência seriam meios de obter um pouco do que as classes ociosas detinham.
Segundo o autor (1965, p.88), “nenhuma classe da sociedade, nem mesmo a mais
abjetamente pobre, abre mão da totalidade do consumo conspícuo costumeiro”.
Isso permite observar a forma como a idealização de um estilo de vida pertencente
a uma classe que detinha poder econômico, passou a afetar as classes daqueles
que precisavam trabalhar para suprir suas necessidades básicas e o ideal de vida
que almejavam, em prol das aparências e posição social; uma vez que o consumo
começa a superar o ócio pelo fato de este ter espalhando-se pela sociedade, e as
pessoas não possuem mais uma forma de julgar a reputação dos sujeitos, senão
pela exibição de bens.

Ao falar sobre o consumo conspícuo, diferentemente de outros autores que relacionam


o consumo conspícuo com a atividade do consumo em si, Veblen traz a relação desse
consumo com o comportamento em geral, sendo o consumo apenas uma forma de
demonstrar esses comportamentos e as manifestações culturais dos sujeitos. Em
outras palavras, ele retira o consumo da ideia de ser apenas um reflexo da produção,
ao considerá-lo um fenômeno que ocupa um lugar de destaque nas relações sociais.

Dessa forma, os mais endinheirados ditam os comportamentos e o bom gosto


às demais classes, e as roupas cumprem essa função: o vestuário começa a agir
simbolicamente ao representar as posições sociais e econômicas dos sujeitos, pois a
manifestação da riqueza mantém a posição de prestígio e hierarquia.

Essa escalada de inovações superficiais não possui nenhuma finalidade funcional


senão a ideia de que “o vestuário ostensivamente custoso é intrinsecamente feio”
(VEBLEN, 1965, p.116), resultando na obsolescência e na busca pela novidade.

É importante destacar, desde já, que o vestuário se torna a principal expressão da


cultura ostensiva, símbolo de prestígio social. Bem mais tarde, na segunda metade
do século XX, essa teoria de difusão hierárquica vai relacionar-se ao termo Trickle
Down, utilizado para analisar as várias formas contemporâneas de difusão da moda.

Como forma de se manter no poder, a classe ociosa controla as esferas da sociedade


que lhes beneficiem, como a religião, os governos, e a educação, que fornecem bases
para sua superioridade intelectual e, portanto, ostensiva. O consumo ostensivo toma

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UNIDADE I │ INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS

lugar como símbolo de respeito nas sociedades que caminham para a mobilidade e
crescente individualização, apesar de não oferecerem à classe ociosa retorno algum:
nem lucrativamente e nem em comodidade.

O fato de uma classe mais baixa imitar o consumo de uma classe mais alta faz com que
os objetos desse consumo deixem de possuir seu status material para se tornar símbolo
de estratificação social – conceito abordado com mais ênfase mais à frente – fazendo
com que o consumo deixe de ser material e passe a ser simbólico.

A terceira fase da divisão do comportamento econômico, o estágio pacífico, caracteriza-


se pelo trabalho assalariado, em que a ideia de trabalho passa a ser aceitável graças à
difusão do consumo, pois dessa forma o trabalho renderia uma “utilidade”: o gasto com
o ócio.

O vestuário deveria mostrar a incapacidade da pessoa para qualquer ocupação lucrativa,


e também mostrar que ela era incapaz de realizar esforços úteis, consequentes das
restrições impostas pelo vestuário.

No caso do sistema da moda, a teoria de Veblen caracteriza a moda como algo


que os indivíduos utilizavam para a distinção social, e o faziam pelo consumo
sempre exacerbado em prol do prestígio e olhar do outro.

Você acha que existe diferença entre o cobrir-se e o vestir-se? Pois Veblen aponta
as diferenças entre os atos, concordando que não são facilmente visíveis, mas que
são frutos do desenvolvimento social-econômico: apesar da necessidade física e
de proteção do corpo, as vestes são usadas muito mais como representações de
ostentação e símbolos do que propriamente o simples cobrir-se. O vestir-se, em
sua percepção, desenvolveu-se primeiro e só então surgiu o ato do cobrir. Um
pouco complicado? Vamos lá:

Existe a necessidade física da proteção do corpo, certo? Bem, apesar disso, as


roupas são usadas (vestidas) muito mais como símbolos de algo do que como
proteção e necessidade básica (cobrir). Isso significa que, para ele, primeiro
as pessoas deram mais valor às representações por meio das roupas do que às
necessidades que elas supririam. Faz sentido?

Svendsen (2004, p.44) ao falar sobre a teoria de Veblen, diz que ele considerava
a modernidade como uma “orgia irracional de consumo”, quando Veblen
relaciona moda e mobilidade social, dizendo que as sociedades ocidentais
modernas são mais afetadas pela moda devido à expansão das cidades, a vida
urbana e a riqueza, que geram o consumo conspícuo.

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INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS │ UNIDADE I

Ele conta que, após a Revolução Francesa e a industrialização, o vestuário masculino


passou pelo processo de simplificação, fazendo com que as roupas fossem sérias e
austeras, deixando para as mulheres a preocupação com o mundo da moda: o que
torna a roupa um fator econômico é o que ela representa nesse sistema.

A roupa da mulher torna-se um indicador da riqueza existente no meio econômico


ao qual ela pertence – a família, lembrando que as mulheres eram propriedades
de seus maridos e pais, e elas eram, portanto, “vitrines” da riqueza da família;
isso resultou na maior aderência da moda por parte das mulheres e até mesmo
na questão de o assunto moda ser “coisa de mulher” na sociedade patriarcal.
Essa passa a ser a função da mulher: exibir o poder de seu meio econômico;
esse é um aspecto das sociedades patriarcais formadas no período bárbaro, em
que a exibição da riqueza está associada à figura da mulher, enquanto cabia ao
homem a função de produzi-la. Dessa forma, mais adiante no tempo, a moda
feminina vai desenvolver-se muito mais se comparada à moda masculina, tanto
por motivos de controle social – os espartilhos, as peças que restringiam os
movimentos femininos – quanto de ostentação. Isso mostra que a reputação,
para o autor, vinha como reconhecimento pela riqueza.

O princípio da novidade surge a partir da velocidade como as modas eram


consumidas, e também tendo em conta que a imagem era sinônimo de
respeito-honra-decência, era condenável, socialmente falando, a repetição das
vestimentas: era aceitável o uso algumas vezes, porém não muitas; a economia
não era aceitável. O adorno, segundo o autor, entraria no conceito da novidade,
auxiliando a diferenciação.

Essa exigência de novidade é o princípio subjacente de todo o difícil e interessante


domínio da moda. A moda não exige fluxo e mudança contínuos simplesmente porque
isso é tolice; fluxo, mudança e novidade são exigidos por força do princípio central da
vestimenta – desperdício conspícuo (VEBLEN, 1964 apud SVENDSEN, 2004, p.44)

Nesse trecho, funcionam dois dos princípios que são fundamentais no sistema de
moda: a diferenciação, que é dirigida às pessoas da própria classe – a elite –, e a
imitação das classes altas pelas classes baixas.

Cabe reforçar então a ideia central do pensamento de Veblen sobre o consumo:


ele se torna um indexador simbólico na sociedade, ao expressar status e ser
capaz de influenciar a imagem individual perante um grupo, proporcionando a
diferenciação.

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UNIDADE I │ INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS

Georg Simmel
Georg Simmel (1858-1918) é considerado um dos pensadores clássicos mais
importantes sobre a teoria da moda. Sua análise das engrenagens da moda é
densa, pois ele utiliza a sociologia para seus estudos sob várias perspectivas,
ao contrário das análises de Veblen, que são focadas muito mais na economia.
Simmel analisa os mecanismos da sociedade, suas tensões e interações que
resultam na socialização, individuação e no surgimento do sistema de moda.
Ainda que entre os filósofos, de acordo com Svendsen (2004, p.19), a moda seja
um tema superficial, portanto não considerado um objeto de estudo satisfatório
no campo, Georg Simmel e Gilles Lipovetsky foram os únicos filósofos a
escreverem livros sobre o assunto. As teorias de Simmel sobre a moda são
utilizadas ainda hoje como forma de compreender não somente as sociedades
do passado, como as nossas de hoje também. Sua principal abordagem situa-se
na contextualização dos dispositivos da moda em relação à hierarquização
social.

De início, Simmel distingue moda de vestimenta ao considerar a moda como um


fenômeno social amplo que influencia todas as áreas sociais, como por exemplo, o uso
das línguas e etiquetas, ainda que o vestuário seja o centro de maior interesse.

A teoria simmeliana defende que a moda é sempre usada como forma de


distinção de classes, da mesma forma como apontou Veblen, em que a classe
alta dita as modas e as classes baixas copiam, procurando adquirir um pouco
do prestígio que as classes altas possuem. Dessa forma, a classe alta perde o
interesse no que usa e parte para a adoção de outras modas, e o ciclo continua, a
imitação pela parte das massas, e a busca pelo novo pela classe alta.

Quando as formas sociais, o vestuário, os juízos estéticos, o grande


estilo em que o homem se expressa, se concebem em contínua
remodelação através da moda, então esta, ou seja, a moda recente,
compete em tudo apenas às camadas superiores. Logo que as
classes inferiores começam a apropriar-se da moda, ultrapassando
assim a fronteira instituída pelas superiores e rompendo, destas,
a homogeneidade da copertença assim simbolizada, as classes
superiores desviam-se desta moda e viram-se para outra, graças à
qual de novo se diferenciam das grandes massas, e na qual o jogo
mais uma vez se inicia. Pois, naturalmente, as classes inferiores
olham para cima e procuram subir e conseguem isto sobretudo nas

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INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS │ UNIDADE I

áreas que estão sujeitas à moda, porque estas são, de longe, as mais
acessíveis à imitação externa. [...] (SIMMEL, 2014, p. 29).

Sua explicação para a difusão da moda, portanto, é que ela sempre nasceria no topo da
pirâmide, gotejando para o restante dela, e renascendo no topo outra vez. A mudança
ou quebra desse ciclo seria para as classes elevadas, a perda de seu poder e posição
privilegiada, e para elas, tudo deveria permanecer como estava.

As classes inferiores moviam-se lentamente ao acompanhar ou romper com o


ciclo da imitação, economicamente falando, por isso restou à classe intermediária
a variação, pois almejavam a dianteira de seus movimentos sociais e culturais,
em sua própria velocidade, e, por conseguinte, essa velocidade os levou à moda.
Não se pode afirmar porém, que as classes inferiores copiavam todas as modas
das classes superiores, pois as classes trabalhadoras ainda que quisessem estar
na moda, precisavam contar com a funcionalidade e com o custo envolvendo
a adoção das modas de elite: as peças costumavam ser radicalmente alteradas
para serem funcionais. Dessa forma, as classes mais baixas (isso no século XIX,
como afirma Svendsen), desenvolveram um gosto diferente pela moda, que não
era o mesmo desenvolvido pela elite, que prezava a ostentação.

Mas assim como Veblen e Bourdieu (a ser estudado no próximo tópico),


Simmel concorda que a moda tenha se desenvolvido nas classes altas
como forma de distinção entre eles mesmos e do restante da população.
Porém, é interessante a sua colocação de que apesar da vanguarda parecer
diferente da multidão, ainda representa o gosto do público, portanto, o
guia é exatamente quem é de fato, guiado.

A partir da expansão dos centros urbanos – Londres e Paris, por exemplo


–, novas habilidades de observação foram sendo desenvolvidas, devido
a diversos ruídos e interferências visuais que surgiam a todo instante,
e que diferenciavam os centros urbanos das áreas rurais. Ainda que se
evitassem o olhar direto ao outro, as pessoas deviam enxergar o que
estava ao seu redor. As ruas e os transportes coletivos fizeram com que as
pessoas estivessem cada vez mais sujeitas ao olhar alheio, o que criava um
distanciamento e o que Simmel chama de atitude blasé.

A cidade tornava-se visual, e as pessoas passaram a vivenciar a vida na


cidade observando tudo ao redor, mantendo-se seguramente à distância.
Assim, começaram a surgir os lugares que contribuiriam para a formação
das individualidades, desenvolvendo assim, o processo da moda.

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UNIDADE I │ INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS

Ele defendia que apenas no espaço das cidades a moda consegui desenvolver-se,
pois somente as grandes cidades acentuavam a ideia de individualidade, fazendo
com que as pessoas passassem a se importar mais com o cuidado pessoal de suas
aparências, ajudando a tornar a moda um elemento fundamental da exteriorização
dessas individualidades.

Parte do funcionamento da moda é que, quando algo passa a ser parte do sistema de
mudanças da moda, mais versões baratas e cópias existirão, pois, ele será desejado
pelas massas, que na maioria das vezes não possuem dinheiro para comprá-los.
Dessa forma, quanto mais rápido a moda se desenvolve, mais baratos serão os
produtos, e mais rápido a moda se renovará. Isso coincide com o que Simmel diz
sobre o fato de que a moda sempre carrega a sua própria morte. A adoção rápida de
algo faz com que isso morra para algo novo nascer.

Sobre o sistema da imitação, que é a primeira condição da moda, Simmel diz


ser uma forma de aprendizado com algo que já existe e é fácil de se ter acesso,
pois ela não exige esforço criativo e pessoal, fornecendo tranquilidade de o
sujeito não estar nessa sozinho para ter que tomar as decisões – e assumir as
responsabilidades. É fácil imitar pois sempre vai existir um grupo em que se
compartilha os mesmos valores, tornando o ato de imitar confortável:

onde imitamos, deslocamos não só a exigência da energia produtiva de


nós para o outro, mas também ao mesmo tempo a responsabilidade por
este agir: ela liberta assim o indivíduo da dor da escolha e deixa-o, sem
mais, aparecer como um produto do grupo, como um receptáculo de
conteúdos sociais (SIMMEL, 2008, p.23).

Dessa forma, é o grupo que conduz o indivíduo, simplesmente transmitindo a ele seu
comportamento, libertando-o da responsabilidade da escolha.

Lembremos, especialmente, que as pessoas consomem símbolos para mostrar


afiliação a uma classe. É assim nas teorias de Simmel e Veblen, mas não é assim
nos dias de hoje: o consumo das marcas e modas está mais ligado à identidade
pessoal do que a uma identidade de classe.

Além desses fatores, existe também a questão da rivalidade, quando a moda


solicita o tal olhar de avaliação, que desperta desejo de ser/possuir aquilo que
se avalia, podendo despertar o desejo de se diferenciar e, com isso, destacar-
se para mostrar superioridade (no esquema observado por Simmel, os nobres
detinham esse olhar das classes mais baixas, e isso gerava a eles respeito,
admiração, inveja e os mantinha no topo).

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INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS │ UNIDADE I

Apesar de a moda ser estratificadora de classes, segundo as teorias de Veblen, ainda que
seus estudos se concentrem muito mais no aspecto econômico das sociedades –, Simmel
em Filosofia da Moda, enfatiza e defende o vínculo que ela possui com a identidade.
Como veremos mais adiante, a roupa é essencial para a construção do eu. A partir das
teorias que explicam o processo de diferenciação do sujeito, começa-se a compreender
o conceito de identidade e a forma como a moda auxilia nessa construção. Ele observou
ainda em seu tempo, que a moda

podia ser usada como um indicador do processo de civilização,


porque uma consciência da moda indica autoconsciência no sentido
de egocentrismo, e que um desenvolvimento mais rápido na moda
indica uma complexidade crescente da autoimagem, da autoidentidade
(SVENDSEN, 2004, p.181).

Simmel observa que a moda não se restringe apenas à divisão e à manutenção do


status social. As mudanças da sociedade levaram o sujeito a repensar seu lugar no
mundo como ser consciente e, juntamente com o desenvolvimento do capitalismo,
resulta no surgimento da ideia de identidade. E a moda, como produtora de
símbolos, oferece a possibilidade de diferenciar e tornar o sujeito parte de um
grupo, o que se desenvolveu juntamente com a ideia da identidade. Ele também
acredita que o consumo ajuda no cultivo do eu, que se dá pela interação com
objetos e com outras pessoas no mundo, e facilita essa interação.

A moda auxilia na individualidade, que pode ser desenvolvida originalmente


por um sujeito para identificar a si próprio ou incorporada por outros sujeitos
nas construções de suas personalidades, tendo em vista uma identificação
com o sujeito criador:

Quando o homem é realmente ele próprio, possui uma força


concentrada suficiente não apenas na própria autopreservação,
mas, por assim dizer, transborda para outros, permitindo a
recepção desses outros em si mesmo e a identificação com estes
(SIMMEL, 2014, p.111).

Dessa forma, não se trata apenas da definição do status social, mas também
do equilíbrio das necessidades humanas que são opostas, como por exemplo,
a individualidade e a conformidade, ou a liberdade e a dependência. Esses
são os paradoxos do sistema da moda. Ao auxiliar o indivíduo no sentido de
construção, ela se torna ambígua, ao oferecer tanto a diferenciação do sujeito
em um meio, quanto à identificação de tal sujeito a um grupo. Ela se torna o
que conecta o individual e o coletivo.

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UNIDADE I │ INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS

Moda significa, pois, por um lado, a anexação do igualitariamente posto,


a unidade de um círculo por ela caracterizado, e assim o fechamento
deste grupo perante os que se encontram mais abaixo, a caracterização
destes como não pertencendo àquele. Unir e diferenciar são as duas
funções básicas que aqui se unem de modo inseparável, das quais uma,
embora constitua ou porque constitui a oposição lógica à outra, é a
condição da sua realização (SIMMEL, 2008, p.25)

A moda só é possível em sociedades nas quais existam classes sociais e nas quais o desejo
de diferenciação é maior que o impulso socializante, pois afinal, ela pressupõe mudança.
Portanto, para Simmel, a moda é algo poderoso que tem a intenção de individualizar e
de socializar os sujeitos, conferindo-lhes diferenciação e coesão. Promete autonomia,
ainda que esta faça parte do ciclo da imitação e gere obediência a ele.

Pierre Bourdieu
Pierre Bourdieu, apesar de ser um contemporâneo sociólogo do século XX, é também
considerado um pensador clássico. Assim como Simmel, ele possui estudos em
diversas áreas, e suas críticas são profundas no que diz respeito aos mecanismos
das desigualdades sociais – a estrutura social é tida por ele como um sistema
hierarquizado de poder e privilégio, determinados pelas posições econômicas,
simbólicas (status) e culturais (intelectualidade). Dessa estrutura, advém a desigual
distribuição de recursos e poderes – chamados de capital econômico (salários,
imóveis), capital cultural (conhecimentos comprovados por títulos acadêmicos),
capital social (relações sociais que podem ser convertidas em capital) e capital
simbólico (prestígio, honra).

Para ele, as práticas da cultura – modos de ser e de fazer – são responsáveis pela
produção de comportamentos e símbolos, sendo a expressão cultural o conjunto
de valores e sentidos dados pelos grupos e indivíduos aos objetos, a partir de suas
vivências sócio-históricas. Podem ser consideradas práticas culturais os gestos e
ações mais banais do dia a dia, como o vestir, uma opção de lazer ou um gosto por
uma estética específica. Porém, ainda que banais, todas elas derivam de influências
sociais e culturais, que resultam no pertencimento do indivíduo a uma estrutura
social.

A moda, como prática de cultura, ao oferecer possibilidade de sociabilidade,


diálogo e de controle entre indivíduo e sociedade, é vista como uma prática que
mantém grupos e indivíduos conectados ou dissociados a partir de transmissões,
comunhões ou diferenciações de sentidos, seja na ordem material ou simbólica.

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INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS │ UNIDADE I

Ela possui ainda, implicações na configuração social do gosto estético: vincula-se


ao habitus por ser expressão do gosto individual – adquirido segundo a posição do
indivíduo nos diversos campos sociais. Ela é ainda um bem simbólico que auxilia
na reprodução do capital e da estrutura de classes que o sustenta. O consumo é o
que confere a distinção.

O conceito de habitus é central nas pesquisas do autor, e a partir de diversos estudos e


determinações sobre o conceito, o que nos parece mais didático e próximo ao estudo
da moda, seria que ele sintetiza o conjunto de saberes e influências construídos e
adquiridos ao longo da história do indivíduo-sociedade-grupo, desde o aprendizado
de uma língua, às formas de convivência, crenças, valores e ideias. Faz a mediação
entre o campo social e o corpo humano. Funciona como meio de observação para a
compreensão da moda como expressão entre indivíduo e sociedade:

Um tipo de habitus (ou um tipo de bom gosto) corresponde a cada


classe de posições, causado pelo condicionamento social que está
ligado às condições correspondentes. E às várias formas de habitus e
sua capacidade de produzir características corresponde uma unidade
sistemática de bens e características ligados uns aos outros por uma
afinidade estilística (BOURDIEU, 1990, p.36 apud SVENDSEN,
2004, p.56).

O gosto seria então cultivado por meio do disciplinamento social, em que as estruturas
sociais determinam as ações e preferências das pessoas, a um nível inconsciente, de
forma que elas próprias não tenham consciência dessas preferências.

A linha de pensamento de Bourdieu segue em partes a de Veblen, porém, ele não


acredita que o principal fator por trás do consumo simbólico seja a imitação das
classes altas pelas classes baixas, mas sim as estratégias de diferenciação utilizadas
pelas classes mais altas: o gosto torna-se o princípio da diferenciação das classes – a
estetização não é acessível a todos, economicamente falando.

O sistema funcionaria da seguinte forma: pretendentes (classe média com


possibilidade de ascensão) e dominados (classe sem capital cultural, classe baixa)
seguindo as modas e estilos de vida dos pretendidos (donos do capital cultural).

Além do conceito de habitus, Bourdieu dialoga muito sobre a questão do gosto, que
para ele é uma categoria negativa, que opera pela exclusão.

Descreve como a aquisição de um objeto estético, quer seja uma pintura


ou roupas da moda, faz com que o objeto seja transformado “numa
negação reificada de todos aqueles que não são dignos de possuí-lo,

19
UNIDADE I │ INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS

por lhes faltarem os meios materiais ou simbólicos necessários para


adquiri-lo.” (SVENDSEN, 2004, p.53-54)

O gosto requintado possui a aversão como princípio. Ao justificá-lo, exclui-se outro


gosto. A classe alta torna-se propulsora no desenvolvimento da moda. A classe média
funciona como um gancho, pois à medida que se esforça para ascender, puxa consigo
a classe baixa. Apesar de suas teorias trazerem o principal aspecto prático da moda, a
estratificação das classes, Bourdieu assim como Simmel, acredita que não eram todas
as classes que seguiam as modas da elite. Para ele, a classe trabalhadora ao priorizar a
funcionalidade, tinha o “gosto pela necessidade”.

Convém destacar que o gosto age como forma de distinguir os sujeitos uns dos
outros pela forma como estes distinguem entre o que é belo e o que é feio, o
comum e o vulgar, revelando a posição desses sujeitos a partir de seus gostos
particulares. Nesse ambiente distintivo, percebe-se a relação do gosto com as
experiências do indivíduo – habitus – e suas condições econômicas e materiais.

O bom gosto, para Bourdieu, traz retorno não somente econômico – como
Veblen defendia – mas também funciona como indicador cultural, pois para ele,
todas as formas de capital estão sujeitas à inflação, fazendo com que os valores
distintivos dos objetos mudem: o valor de qualquer coisa depende do que os
outros não têm, e não somente ao que o portador possui. Para ele, o capital
econômico é somente um caso especial do capital simbólico.

Simmel, Veblen e Bourdieu acreditam que a distinção de classe se situa


anteriormente ao processo da moda, e que a moda apenas reforça, reproduz e
auxilia o processo da diferenciação. Mais à frente, veremos a forma com que a
moda influencia e auxilia na construção das identidades dos sujeitos. Porém, por
enquanto, é necessário compreender que para Veblen, só é possível existir moda
em sociedades onde exista a classe ociosa e, para Simmel, em uma sociedade que
seja dividida e em que exista o desejo da distinção social e individual: esses são
fatores que impulsionam a moda.

A principal diferença nas teorias de Veblen e Bourdieu é que para Veblen, tudo
depende do capital econômico. O capital simbólico só importa como evidência
do capital econômico.

20
INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS │ UNIDADE I

Roland Barthes e a moda como sistema


Roland Barthes (1915-1980) consagrou-se como uma das maiores referências no
estudo da moda e da originalidade, ao considerar a moda como um sistema de signos,
em seu livro O Sistema da Moda (2009), escrito entre 1957 e 1963. Nele, analisa
estruturalmente o vestuário feminino a partir da ciência geral dos signos. Trata-se de
uma obra de aspecto científico, muito complexa por conter tantos dados e análises.
Porém, a partir de vários estudos sobre a obra, entende-se que Barthes procura analisar
os significados que a comunicação de massa fornece aos objetos e às representações de
moda, elevando a moda a um objeto do pensamento.

Naquela época, foi por meio da significação que principalmente os teóricos, passaram a
pensar o mundo moderno, e a princípio, deve-se ter conhecimento de que a semiologia
para Barthes,

[...] tem por objeto, então qualquer sistema de signos, seja qual for
sua substância, sejam quais forem seus limites: imagens, os gestos, os
sons melódicos, os objetos e os complexos dessas substâncias que se
encontram nos ritos, protocolos ou espetáculos que, se não constituem
“linguagens”, são, pelo menos sistemas de significação (BARTHES,
2006, p.11).

Quando começou – ainda que timidamente – a fazer parte dos estudos sociológicos,
históricos e culturais, a moda era apresentada sobretudo por meio das características
de seus usos e tais importâncias disso para a evolução das sociedades, reciclando o que
já havia sido estudado e dito sobre moda. Ao lançar uma obra que estuda a moda sob o
viés da semiologia, Barthes causou furor nos anos 1960, ao propor algo tão diferente.
As proposições feitas por ele, ainda que de forma complexa, cheia de gráficos, conceitos
e reflexões, auxiliam no estudo e no entendimento da moda como comunicação,
apresentando veículos, suportes e agências. Mostram o poder que as mídias impressas
possuem de dar significados aos objetos de moda – a roupa.

Hoje é fácil enxergar que existem diversas coisas que contribuem na construção de
significados nos objetos de moda. Pense no poder das marcas, na publicidade, nos
desfiles, nas mídias e nos materiais gráficos, como embalagens, etiquetas, cheiros etc.;
tudo isso faz com que a moda em si seja mais atrativa, simbolize mais coisas. Geram
desejo de consumo ao agregar valor à marca e à roupa. Porém, naquela época, os
estudos sobre moda focavam quase exclusivamente no fator de mudança social que a
moda desempenhava.

21
UNIDADE I │ INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS

Superficialmente, a roupa não passa de algo que cobre o corpo. Semiologicamente, a


roupa e os elementos de moda funcionam como texto. A roupa é a base material da
moda, mas ela própria é um sistema de significados culturais. O vestuário por si só,
constitui-se um signo, que oferece aos sujeitos sua leitura, seja por meio de imagens,
gestos ou comportamentos. Ao contrário dos autores anteriormente citados – Veblen,
Simmel e Bourdieu – Barthes considera a semiologia – que investiga a produção de
sentidos – o método mais adequado para se compreender a moda, pois seu interesse
é pelo discurso dela, e não pela moda em si: o que interessa a ele, como semiólogo, é
decodificar os símbolos.

Barthes critica a forma como os autores antes dele tratavam o vestuário como um
acontecimento histórico, datado e classificado como se ela apenas mimetizasse
o caráter moral de uma época; e não tratando-a como um sistema que fosse
possível de ser decodificado, pois, para ele, a moda é uma combinação que
possui infinitas regras e elementos de transformações.

Suas análises não se situam apenas em determinado período da moda – inscrito


num determinado período histórico, pois, segundo ele, muitas das características
da moda se repetem dentro de alguns conjuntos de anos –, mas sim numa ordem
geral de como as significações universais dos signos atribuídos à moda variam
de acordo com o que cada sociedade precisa: ele cita como exemplo em uma
entrevista 1, a saia curta: na atualidade, a condenam por ser considerada erótica,
mas que anos antes a saia longa era considerada erótica. Para ele, o ser humano
pode atribuir a qualquer forma, qualquer significado, pois existe a necessidade
de transformar um conjunto de signos num conjunto de razões.

Em suas análises, ele não toma a moda, a vestimenta real, e sim o que é escrito
sobre ela em revistas sobre o assunto, pois considera que ela é antes de tudo,
produtora de significados. Ele não quer o real, o objetivo, mas sim a moda
constituída pela linguagem, construção social e sentido. A produção de sentido e
os discursos da moda motivariam o seu consumo, ao tecerem ao redor do objeto,
uma gama de imagens, sentidos e estímulo para o seu uso.

Mesmo caracterizando a moda como produtora de sentidos, ele não deixa de


lado sua função econômica, pois é o que motiva o consumo mais rápido por
meio dos discursos e sentidos que ela cria entre indivíduos e produtos, fazendo
com que o ritmo de consumo seja mais acelerado que o tempo de desgaste das
mercadorias (vida útil). Os sentidos criados ao redor do objeto permitiriam

1 BARTHES, Roland. O Grão da Voz: entrevistas 1962-1980. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2004.

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INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS │ UNIDADE I

que o indivíduo determinasse o seu tempo de uso, ignorando o tempo natural


estipulado de vida do próprio produto, a fim de favorecer o ciclo da moda.

Barthes parte para a pesquisa de inúmeras revistas especializadas em moda.


Constata então três tipos de vestuário: o real, o imagético e o escrito.

» O real está ligado à estrutura tecnológica da roupa, ligado às técnicas de


produção, sua constituição material.

» O vestuário imagético seria um desenho ou fotografia que corresponde


à estrutura plástica do vestuário.

» O vestuário escrito constitui-se por sua estrutura verbal.

» O vestuário escrito e o imagético estão interligados, como pode-se


observar em uma revista, na qual o texto serve de suporte para a imagem.

O vestuário real por outro lado, não pertence ao âmbito da língua. Vê-se nele uma
forma pessoal de uso.

Ainda aqui, do ponto de vista metodológico, é a pureza estrutural


do objeto que influi na escolha: o vestuário real é embaraçado por
finalidades práticas: proteção, pudor e adorno. Estas finalidades
desaparecem do vestuário ‘representado’, que não serve mais para
proteger, cobrir ou adornar, mas, quando muito, para significar
a proteção, o pudor ou o adorno. O vestuário-imagem conserva,
entretanto, um valor que pode embaraçar consideravelmente a
análise e que é a sua plástica. É só o vestuário escrito que não tem
nenhuma função prática nem estética: é todo ele constituído em
vista duma significação. (BARTHES, 2009, p. 8)

Apesar de não se aprofundar sobre a questão do vestuário imagético, ele diz ser
necessário se atentar ao fato de que o vestuário real só é acessível por meio de suas
representações, dessa forma precisaríamos de representações que constituíssem
a moda para que o real que ela institui possa ser alcançado.

O vestuário imagético também, segundo ele, sempre apresenta o que está na moda,
sendo o primeiro significado atribuído à representação do objeto do vestuário, a
própria moda enquanto valor. Dessa forma, a representação do vestuário, por meio
dos ícones, é um meio de identificação do produto, enquanto o vestuário escrito
atribui-lhe o valor. O vestuário imagético estabelece uma relação de semelhança ao
produto do vestuário representado.

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UNIDADE I │ INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS

Sua ideia é estudar as roupas escritas sem sua função prática, pois segundo Svendsen
(2004, p.75), quando sua função é removida, sobra apenas seu significado. Dessa
forma, a roupa escrita não contém uma temporalidade vaga, fazendo com que seu
estudo seja sobre a moda estática, congelada. Por isso o “estar na moda” nada tem a
ver com as características materiais da roupa, mas sim com os discursos construídos
pela moda.

Como metodologia e forma de leitura, Barthes sugere recortar e recompor, quando


pede que o leitor imagine uma vestimenta infinita, feita de tudo o que os jornais
e revistas de moda dizem; essa roupa sem fim é sustentada por meio de um texto
também infinito. Ele ainda diz ao leitor que se deve organizar, recortar da roupa
as unidades de significados para que se possa compará-las e extrair os sentidos e
significados geral da moda. Como uma análise gramatical. Ele traduz o vestuário
para a linguagem, assim como observa que as revistas de moda fazem.

Ao dizer que o objeto real do vestuário não significa nada, ele quer dizer que o
objeto não se relaciona igualmente ao significado, encontra-se desvinculado dele;
sendo as formas do vestuário apenas abstrações, necessitando de um conjunto de
elementos para que possam aludir algum significado. Em outras palavras, a roupa
por si só, apenas adquire significado quando e se inserida sob algum contexto.

Ao longo de sua pesquisa, ele sugere que a moda possa ser tratada como uma verdadeira
mitologia do vestuário, colocando-a num lugar mítico da modernidade. Para Svendsen,
as análises de Barthes sobre a moda mais serviriam para desmitificá-la, revelando-a
como um mito de forma que as pessoas possam dela se emancipar.

Segundo o autor, Barthes diz que a moda é tirânica e seus signos, arbitrários; por
isso ela transforma o signo em algo natural – como foi exposto anteriormente
pelo exemplo da saia – de forma que não existe motivo pelo qual as pessoas
devem sentirem-se presas a ela.

Em outros textos que trata sobre a moda, Barthes faz uma análise em revistas
de moda que relacionam a estação do ano com determinadas padronagens de
cores, e afirmações do gênero, que têm a intenção de transformar o usuário
em estereótipos como por exemplo, a romântica, naturalizando um discurso
construído pela publicidade que tem a intenção de criar novas necessidades de
consumo, descartando o que já possui, de forma a se manter “atualizado”.

Uma das análises que Barthes realizou, em um de seus artigos sobre a moda,
constituiu em estudar a aproximação entre vestuário e arquitetura, mobiliário
e qualquer outro objeto que refletisse o espírito do tempo, algo presente em

24
INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS │ UNIDADE I

outros trabalhos sobre moda, que falavam como se a moda mimetizasse o jeito
de uma sociedade e uma época, quando os chapéus e cartolas passaram a imitar
as chaminés de fábricas na época da revolução industrial. Essas tentativas de
interpretação segundo o autor, eram redundantes.

O sistema da moda é então, para ele, parte de uma estrutura maior que tem
por objetivo a significação do sensível, o relacionado à experiência. Ele sugere
ainda a possibilidade de definir as sociedades de acordo com o seu poder de
transformar o que é real em signo, e em transformar o signo em máscara da
realidade – uma representação da realidade. O sistema da moda também se
constitui da reprodução que ela realiza sobre si mesma, por meio das significações
que constrói para si e também para o mundo.

Gilles Lipovetsky e a moda na sociedade do


efêmero
Gilles Lipovetsky (1944-) é um filósofo francês que trata sobre a hipermodernidade,
dedicando-se a estudar a cultura do consumo. A moda, inscrita nessa sociedade
de consumo, torna-se foco em seu livro O Império do Efêmero (2009). De maneira
cronológica, procura analisar a moda a partir da ótica social, retornando ao início da
história do vestuário, utilizando-se das teorias de outros autores – alguns dos quais
mencionados anteriormente – para tentar explicar as dinâmicas da moda nos dias de
hoje. Ainda que estereotipada como universo glamoroso, fetichista, fútil e superficial, a
moda, segundo Lipovetsky, é um mecanismo social geral, que não somente se restringe
ao vestuário, pois a partir do século XX, muitas coisas passaram a ser influenciadas
pelas mudanças e pelas novidades.

Por muitos milênios, as sociedades viveram e desenvolveram-se sem a característica


da moda. Ainda que na Roma Antiga os homens usassem perucas, perfumes e
até maquiagens, assim como as mulheres com a adoção dos penteados altos, dos
ornamentos e uso de joias, isso não pode ser inscrito no sistema de moda, pois para
o autor, o sistema de moda tem que impulsionar mudanças, e essas mudanças devem
possuir duas características: a efemeridade e a estética.

Se a mudança resulta frequentemente das influências externas, do


contato com os povos estrangeiros dos quais se copia tal ou tal tipo de
traje, é também ora impulsionada pelo soberano que se imita – os gregos
cortaram a barba a exemplo e por ordem de Alexandre -, ora decretada
pelos conquistadores que impõem seu vestuário aos vencidos, pelo
menos às classes ricas (LIPOVETSKY, 2009, p.30)

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UNIDADE I │ INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS

Vale relembrar que, de acordo com os outros autores estudados anteriormente, a moda
começou a ser observada no período que compreende o final da Idade Média (século
XIV), com o desenvolvimento dos centros urbanos e a partir da diferenciação entre os
trajes femininos e masculinos; para Lipovetsky, isso pôde dar realidade e legitimidade
aos desejos de promoção social das classes que eram sujeitas ao trabalho. A moda
nasceu no luxo da alta classe, composta por nobres e aristocracia. Segue-se o ciclo
da imitação, observado por Veblen, Simmel e Bourdieu: enquanto o rei e os grandes
senhores tornam-se alvo dos olhares da corte, a cidade tem os nobres e a corte como
referência no que se refere à moda em vigor. A imitação é tanto pelo prestígio quanto
pela tentativa de pertencimento. O mundo aristocrático cede lugar ao mundo burguês.

Ele propõe três momentos da história da moda Ocidental:

1. O primeiro, compreende os séculos XIV ao XIX, que corresponde


à fase inicial da moda, em que as mudanças surgem no âmbito das
ornamentações, e não tanto quanto às formas das roupas.

Nesse período, as variações estão conectadas às posições sociais, como


defendem os teóricos já estudados, a partir do aspecto de estratificação
da moda. Nessa época, o culto à aparência começa a ser desenvolvido,
como ponto característico da moda na era aristocrática. Para Lipovetsky,
só existe sistema de moda quando se observa que o gosto pela novidade,
que se torna um princípio constante e regular. A diferença entre o
pensamento de Lipovetsky e dos demais autores, é que, para ele, a
principal característica da moda não foi a divisão de classes; foi o
desenvolvimento da individualidade e da autonomia do gosto pessoal.

Apesar de o movimento da moda ter ocorrido de cima para baixo, a moda


aristocrática também se caracteriza por ter sido uma moda nacional:
até o século XIX, cada Estado territorial singularizou seus trajes por
meio de elementos próprios que os distinguissem de seus vizinhos.
Isso contribuiu para reforçar uma consciência de pertencimento a uma
mesma comunidade cultural e política.

Nesse cenário, quando são redesenhados os papéis da nobreza, da


burguesia e das classes médias, desenvolvem-se duas indústrias: a alta-
costura – responsável pelos modelos originais, de luxo – e a confecção
industrial – reprodução do vestuário em escala industrial; isso acarreta
o fim disputa entre a moda feita sob medida e confecção. Nessa
fase, ocorre a consagração dos ofícios da moda, tendo a alta-costura

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INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS │ UNIDADE I

representado um compromisso com as duas eras: continuidade à moda


aristocrática e organização da produção moderna.

Por ter nascido no luxo e conter ambiguidade, a moda começou a exprimir


uma característica identificável do Ocidente: a frivolidade, o êxtase do eu;
o indivíduo livre e criador. No final da Idade Média, surgem os indícios
de uma afirmação da tomada de consciência da identidade subjetiva:
o aparecimento das autobiografias, o retrato e autorretrato ricos em
detalhes, a preocupação com a morte. Por meioAssim, temas macabros,
testamentos e sepulturas marcam uma preocupação com a vontade de
individualizar, de promoção da identidade pessoal.

2. O segundo momento vai desde a segunda metade do século XIX até a


década de 1960, a moda de cem anos, que se caracteriza pela distinção na
aparência dos sexos.

As maiores variações da moda ocorrem no traje feminino, especialmente


quanto à forma. Como visto anteriormente, cabia as mulheres serem as
“vitrines” das riquezas dos maridos, e o vestuário acompanhou esse fato
social, impondo a elas restrições físicas como forma de controle social.
Dessa forma, a moda passa a ser “coisa de mulher”, o que faz com que ela
se torne cada vez mais efêmera, visto que toma lugar como algo primordial
na vida das mulheres, quase como uma ocupação. É a primeira fase da
moda moderna, que dá início à revolução democrática da moda.

Para atender àqueles que não tinham condições de consumir as roupas


de luxo, surgem cada vez mais lojas de departamentos.

3. O terceiro momento, em meados de 1960, conta com a presença das novas


criações pelos estilistas, fazendo com que as expressões do vestuário não
mais obedeçam à hierarquia da alta-costura – o que cede lugar ao prêt-
à-porter.

Como característica da pós-modernidade, ocorrem mudanças de valores


quanto às posições sociais e sexuais, e isso é representado cada vez mais
por meio das roupas, cada vez em mais opções à escolha do sujeito.

O ideal da moda a partir desse período, não é imitar as elites por busca
e afirmação de posição social. O indivíduo é movido pelo desejo da
juventude, e o “novo” guia o sujeito à busca pela distinção individual,
fazendo com que o consumo se torne estético e até mesmo terapêutico.

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UNIDADE I │ INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS

Tais transformações na chamada “Moda Aberta” culminariam na “Moda


Consumada”, em que ela perde seu epicentro e seria desligada das elites,
tendo sido espalhada para todas as outras classes. A sociedade de consumo,
assim, ao generalizar o processo moda por todo o social, integra a economia à
lógica da moda, enfatizando a lei da obsolescência programada e a expansão
das necessidades. O efêmero passa a governar a produção e o consumo das
necessidades.

Lipovetsky considera a moda um meio privilegiado de expressão e unicidade dos


sujeitos; ainda que um signo de condição, classe e país, ela foi instrumento de
diferenciação e liberdade individual, mesmo que de maneira “superficial”. Mesmo
proporcionando liberdade de escolha que permita ao sujeito formar suas próprias
opiniões e comportamentos a partir dela, ainda detém poder sobre a sociedade,
pois continua a ditar modismos e a influenciá-la diretamente; isso iguala a moda
às outras instituições que organizam a sociedade. As diversas “modas” existentes
trazem a ilusão de que o sujeito possui identidade própria, quando na verdade ele
segue inserido num círculo de consumo imposto pela moda.

A novidade, para ele, não necessita exatamente de um único princípio de difusão;


sendo o mais provável que a novidade em si no que tange a moda, possua uma
força de atração própria que não necessite ser explicada com base em um sistema
de distinção de classes. O consumo não é controlado somente pelas ambições
e reconhecimento social. Numa sociedade pós-moderna, ele é mais movido pelo
desejo de experimentação do bem-estar e pelo prazer. A moda, para Lipovetsky, é
um jogo produtivo, que conseguiu transformar o superficial num instrumento de
salvação, numa meta de existência, tornando-a, ao contrário de algo tirânico, uma
realização da autonomia humana num mundo superficial, pois promove liberdade,
e não coerção.

Segundo alguns dos autores utilizados nessa pesquisa, Lipovetsky parece confundir
“democratização” com “massificação”. Apesar de o consumo tornar a moda acessível
por meio da confecção industrial, não quer dizer que se trate de um mecanismo de
democratização, pois tem o intuito de promover o consumo massivo; a moda da elite
continua sendo designada à elite e o acesso às mercadorias é diferenciado conforme
as classes. Ainda existe hierarquização, pois ela é uma condição para instituição
social que é a moda, ainda que o objetivo não seja mais o de ascensão.

Alguns dos apontamentos do autor são tidos como “exagerados”, pois sua visão
sobre a moda é muito otimista, quando ele defende que existe a total liberdade
de escolha e a diminuição das diferenças sociais no perídio contemporâneo.

28
INTRODUÇÃO À TEORIA DA MODA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GRANDES TEÓRICOS │ UNIDADE I

É importante destacar que, para ele, o egocentrismo individual é o núcleo de um mundo


governado pela moda; quanto mais terreno ela ganha, mais superficial nos tornamos
pois mais queremos consumir em menos tempo.

A maior contribuição de Lipovetsky para o entendimento da moda, é a sua defesa


de que após o monopólio da alta-costura, o prêt-à-porter tornou a moda uma
instituição social ao alcance de todos, “democratizando-a”. Porém, ele também
demonstra que, da mesma forma como proporciona liberdade de escolha, ela
influencia as decisões, os gostos e os comportamentos dos indivíduos, mostrando
que detém poder, motivando o consumo e criando novas necessidades, desejos
e produtos de luxo – que até então pertenciam ao universo da elite. A sociedade
passa a seguir uma lógica de consumo baseada no capitalismo irracional na
busca constante da satisfação de seus desejos, perpetuando um círculo vicioso
de constante busca pelo que não satisfaz.

29
A MODA COMO UNIDADE II
COMUNICAÇÃO

CAPÍTULO 1
As linguagens da moda

Até agora vimos que as roupas são capazes de carregar os mais diversos significados,
desde signos que revelam e sustentam posições sociais, econômicas e culturais até
mesmo signos que representam a individualidade, autonomia e diferenciação, seja ela
sutil ou não.

Claro signo de indicador da identidade dos sujeitos, ainda que hoje a roupa não
dê mais conta de ser completamente o único denominador visível da identidade,
continua ser através dela que tiramos nossas conclusões sobre os outros.

A moda possui alto valor simbólico, e a contemporaneidade fornece a cada


dia, novos significados, nas mais diversas sociedades. Ao longo dos anos,
existiram diversos autores que procuraram definir a moda como um sistema
de comunicação, e já vimos que Barthes foi o que mais chegou perto disso,
de forma mais convincente, porém segundo Svendsen (2006), Barthes apenas
constatou que os significados das roupas são arbitrários e que, portanto, não
devemos nos deixar prender por eles.

A forma mais didática e talvez mais clara de tentar compreender a moda


como forma de comunicação é voltar no tempo e compreender primeiramente,
a noção do corpo vestido. Nessa unidade, vamos conhecer as dialéticas que
propõem uma conexão entre o corpo, a roupa – a moda e a identidade –, pois
afinal, é óbvio que as roupas comunicam algo, certo?

A noção do corpo vestido


O corpo, muito mais do que algo biológico, é também histórico, social e cultural.
É constantemente tido como objeto de estudo nas áreas sociais e humanas,

30
A MODA COMO COMUNICAÇÃO │ UNIDADE II

devido à sua ressignificação ao longo dos anos pelas sociedades, adquirindo ao


longo da história, os mais diversos significados. Ao falar sobre moda, o corpo
age não apenas como seu suporte físico, mas também como suporte simbólico,
visto que a moda é produtora de sentidos e de símbolos.

O corpo é natureza, na medida em que é do mesmo tecido das coisas


do mundo, é submetido a elas, vive em relação a essas coisas e é
dependente, também, do domínio biológico. Entretanto, transcende
essas imposições: o corpo é também cultura, pois o homem ultrapassa
a fronteira do animal, institui níveis da ordem simbólica, transforma o
mundo, cria e recria culturas (CARMO, 2004, p.81).

Como já estudamos na unidade anterior, é a partir da relação do indivíduo com


a cultura-sociedade que se constroem as narrativas culturais do modo de ser de
cada um, individual ou coletivamente; e com o corpo não é diferente: ele age como
eixo na relação do homem com o mundo, e a partir de sua interação com o outro,
o homem é modificado, e são por meio dessas modificações que ele consegue, por
intermédio de seu corpo, definir os seus contornos e inserir-se em um meio social,
tornando-se após esse processo, um membro pertencente ao grupo.

A noção de corpo desde o seu princípio está diretamente relacionada à criação e ao


surgimento do conceito de imagem. Para o estudo da moda, é fundamental compreender
a dialética da relação entre corpo e imagem e a forma como tudo isso auxilia a moda na
construção do sujeito.

Na modernidade, o corpo deixa de ser algo ligado à magia e às influências dos


planetas. As pessoas acreditavam que a astrologia e as práticas de alquimia
tinham efeito sobre o corpo – em casos de doença, de desenvolvimento e de
aparência. Esse era o corpo medieval.

A imagem do corpo também está muito ligada ao cristianismo: é a referência


central, pois está presente em toda parte nos textos e nas representações de
suas divindades. Isso fez com que o corpo fosse transformado em um sujeito da
história, um objeto a ser analisado.

Durante a Contra Reforma (1545), a Igreja pregava que o corpo era a fonte do
pecado, era algo indigno, doença, carne passível de sucumbir ao desejo, à velhice e
à morte. Era apenas uma veste da alma. Ele foi então depreciado e maltratado, pois
por meio dele o homem corria o risco de perder-se. O medo do corpo, em especial
do corpo da mulher, reforçou a precaução e as condenações. Fala-se em carne,

31
UNIDADE II │ A MODA COMO COMUNICAÇÃO

esta que origina o desejo sexual. Nessa época, surgem as práticas de autoflagelo, a
destruição do corpo físico para compartilhar dos sofrimentos de Cristo.

Ao mesmo tempo em que ele é pecado, foi somente através dele que a encarnação
ocorreu. Por intermédio de Cristo, Deus ganha rosto e se torna visível aos homens. Isso
aproxima o homem de Deus, e o corpo passa a ser celebrado. O corpo torna-se belo,
como pode ser visto nas representações das artes do Renascimento.

Na Grécia Antiga, as imagens dos deuses como se conhece hoje foram inspiradas na
glória da juventude e beleza dos heróis dos jogos olímpicos, pois esse era um ideal
glorioso de beleza que os elevava à categoria do divino; o corpo humano serviu de
reflexo à criação imagética dos deuses.

Com o Renascimento, as visões sobre a aparência são novamente elaboradas,


singularizando os corpos – e isso teve um papel grande na emancipação do indivíduo,
mesmo que não intencionalmente. Como visto antes, a arte do autorretrato ajudou esse
processo de individualização.

Sabemos que o corpo humano é modificado de acordo com os períodos e contextos


estéticos, como por exemplo, a evolução da imagem sobre o corpo feminino, que de
figuras colunares gregas, passaram para a fragilidade na Idade Média, que por sua vez
foram substituídas pela figura da mulher “roliça” no Renascimento em Botticelli, para
então as “volumosas” do Barroco e assim por diante. Dessa forma, o mesmo acontece
com o nu.

Antes considerado algo natural e sagrado na Grécia Antiga, a idealização


da semelhança com os deuses, o corpo nu foi utilizado nas artes sob várias
representações do masculino e do feminino. Foi glorificado. Com o avanço da
influência da Igreja na sociedade, com as coerções e os preceitos morais, o
corpo humano nu que era até então natural, e trazia semelhança à imagem de
Deus, teve que ser coberto. A divisão entre corpo e alma fez com que a nudez
fosse vista como símbolo de vergonha e humilhação. Se você pesquisar, vai ver
que não existe nu humano na arte medieval cristã, exceto como representação
dos pecados nas cenas de Adão e Eva e do Juízo Final.

O nu não é aceito e, desde o nascimento, a nudez é manipulada de acordo com


preceitos morais e religiosos de cada época. O corpo nu remete ao pecado original,
não existe sob o olhar dos cristãos. Os pudores, o aspecto sexual, as fisiologias
do corpo são tabus. A sexualidade desde sempre foi manipulada e disciplinada,
especialmente a sexualidade da mulher, restrita apenas à reprodução. A repressão
dos instintos sexuais ocorre tanto pela ordem social quanto pela espiritual.

32
A MODA COMO COMUNICAÇÃO │ UNIDADE II

Ao mesmo tempo, o corpo é vítima e agente dos atos sexuais transgressivos, o


lugar dos crimes contra a religião, a moral e a sociedade. O corpo é, afinal, um
fato social, mesmo que seja feito de tecidos. Ainda hoje restam pudores dessa
época do corpo coberto: Svendsen (2004, p.88) diz que “a nudez só diz alguma
coisa quando em diálogo com as roupas”. Com o tempo, algumas partes do corpo
foram sendo mostradas, especialmente no caso do vestuário feminino: ora o busto
era permitido ser mostrado, ora os braços. Isso está muito relacionado à ideia da
moda e sua influência nas moralidades da sociedade.

Porém, independente do corpo nu ser idealizado ou censurado, o corpo sempre


vai incorporar discursos e códigos culturais. Ele é símbolo de uma sociedade,
e qualquer alteração em sua forma, tem um efeito simbólico sobre o vínculo
social. Ele é a marca do indivíduo, sendo, portanto, fator de individuação, aspecto
que é de extrema importância para a distinção com o outro, que aparece com a
transformação social e cultural, o surgimento e a alimentação do ego.

O corpo, para a autora Kathia Castilho (2004), é algo a ser/possuir; é individual


e coletivo ao mesmo tempo; torna-se um território no qual é possível traçar
limites de acordo com suas modificações constantes. Essa é a riqueza “que faz
do corpo um sujeito e objeto privilegiado de investimento simbólico.” O corpo é
uma realidade biológica, imaginária e cultural. É dessa forma que a história do
corpo acompanha a história da imagem:

o processo de valorização do corpo através dos tempos acompanha, de


certa forma, a valorização da imagem de uma época (iconodulia) para
outra (iconoclastia)2. [...] O ocidente, na busca de um sentido único,
procurou anular a ameaça representada pela estética da imagem, pela
valorização do corpo. [...] houve sempre movimentos de resistência
[...] a sensualidade e a espiritualidade barrocas também buscaram,
na multiplicação do abismo das aparências, atingir pelos sentidos a
profundidade da iluminação. [...] o Romantismo, que privilegiou os
sentidos em pleno século das Luzes triunfantes (VILLAÇA, 2007, p.24).

Além de oferecer proteção, função que teve desde o início, a roupa, como
vimos anteriormente, foi ganhando novas significações e funções dentro das
sociedades.

Aqui, a roupa é entendida como extensão do corpo, uma segunda pele dada ao
sujeito por meio da interação social, e atua na sua definição e diferenciação a

2 Iconodulia: veneração de ícones e imagens religiosas. Iconoclastia: movimento político-religioso contra a iconodulia durante o
Império Bizantino (séc.VIII a séc. IX).

33
UNIDADE II │ A MODA COMO COMUNICAÇÃO

partir de formas não verbais de comunicação. É uma das principais fontes de


expressão da personalidade do indivíduo. A roupa que veste o corpo cria imagens
e oferece espaço nos quais ocorrem os diálogos entre sujeito e sociedade. O ego é
constituído pela apresentação do corpo.

O corpo tornou-se um objeto privilegiado para a moda, pois muda constantemente e


adapta-se às normas. O desenho do corpo influenciou a moda e vice e versa – usaremos
como exemplo, a época do espartilho, que literalmente modificou o aspecto físico do
corpo feminino.

[...] a roupa reveste o corpo de elementos decorativos que adotam


figurativamente a estrutura do corpo e muitas vezes reconstrói sua
forma e aparência exterior. Considerando que as linguagens e as
manifestações discursivas que a homem estrutura possuem um caráter
social dinâmico, percebemos que o que culturalmente ele produz como
discurso possui, no que se refere à moda, uma determinada significação
e um importante caráter agregador (CASTILHO, 2002, p.68).

Quando procuramos identidade no corpo, as roupas são sua continuação


imediata; elas reescrevem o corpo. Percebemos os corpos de acordo com
as modas dominantes em determinadas épocas, e nossa percepção sobre
as modas depende se suas representações visuais são por meiode pintura,
fotografia entre outros meios.

O corpo é um grande gerador de linguagens. A moda, ou melhor, o conjunto


de nossos trajes, adornos, pinturas, tatuagens etc., sobrepõe-se ao corpo
como suporte ideal da moda no qual esta constrói e consolida nossos desejos e
crenças, atualizando nosso sistema de escritura de valores sociais, articulando e
potencializando seu discurso sobre o corpo (CASTILHO, 2002, p.63).

Quanto mais significado é atribuído ao vestuário, mais significado terá a sua


ausência visível, pois o corpo nu sempre está vestido: por meio das definições
sociais.

Moda como linguagem verbal e não verbal


A linguagem verbal é aquela que utiliza palavras faladas ou escrita, enquanto a
linguagem não verbal, comunica por meio de signos visuais – imagens, fotografias,
cores. A autora Kathia Castilho (2004) entende o corpo como sendo estrutura de
linguagem que o indivíduo utiliza, decora e ornamenta por meio de combinações

34
A MODA COMO COMUNICAÇÃO │ UNIDADE II

entre relações de diversos significados, formando textos e discursos; dessa forma


o corpo é tanto objeto quanto sujeito. É uma forma de linguagem não verbal.

A partir desse campo visual por meio do qual a comunicação é possível, os


significados e os simbolismos estão muitas vezes codificados, ocultos. Mas
no oculto, naquilo que não é manifestado ou expresso visualmente ao olhar,
pode-se encontrar diversos saberes. Existe uma infinidade de coisas visíveis e
não visíveis, que fazem parte da mesma ordem e podem estar inscritos numa
superfície visual ou não: o invisível pode ser visto mesmo estando codificado/
escondido e pode ser também palavra ou pensamento.

O corpo seria a figura visível das nossas intenções, o suporte pelo qual os
desejos são exibidos. É algo visível, porém, existem muito mais coisas não
visíveis a respeito dele. É também o meio pelo qual o homem consegue ter
experiências, e a condição do homem “é corpórea, suas fronteiras são traçadas
pela carne, limite físico, que o compõe e o distingue de outro indivíduo”
(CASTILHO, 2002, p.64).

As relações entre as pessoas são realizadas de formas verbais, sendo a


comunicação uma prática social, e as linguagens que utilizamos para construir
nosso corpo social é parte do contexto histórico e, portanto, essencial ao homem.
É por meio do corpo como subsistema cultural que o indivíduo interage com o
mundo e com os outros, por meio também de valores e coesão.

A informação visual é a mais antiga forma de comunicação da história humana.


O corpo oferece ao olhar do outro uma imagem, que é o primeiro contato feito
com o mundo. Esse corpo, que constrói manifestações textuais, cria também
processos identitários. Parte desse processo é o fato de que o outro serve como
espelho e como estímulo; a relação do homem com o outro é fator determinante
para o seu comportamento social, suas ações e sentimentos. Ao ser reconhecido
como sujeito, o indivíduo necessita de um outro indivíduo desejante.

Existe o desejo de ver e ser visto, um julgamento social através do olhar do


outro, que pode ser solicitado, evocado ou até mesmo violentamente desejado
por conta de algum prazer. Esse desejo de ser visto é tão primitivo quanto o
próprio desejo de ver, pois da mesma forma como desejamos conhecer nossa
própria imagem, queremos que os outros a conheçam. Tal desejo de mostrar
o corpo pode despertar no indivíduo, diversos comportamentos cotidianos,
como por exemplo, a escolha do vestuário, da maquiagem e dos jogos aos quais
o indivíduo decide atuar socialmente. Com o tempo, a decoração corporal
tornou-se uma das mais essenciais formas de linguagem humana.

35
UNIDADE II │ A MODA COMO COMUNICAÇÃO

As intervenções na superfície do corpo, como o vestir por exemplo, cria significados


subjetivos. O corpo é ocupado pelo significado do vestir, acumulando vivências e
situações ao enfrentar o espaço. A roupa nesse âmbito constitui um símbolo carregado
de significado de tal realidade, pois pode esconder ou atrair atenção sobre o corpo.
Apesar de algumas roupas comunicarem mensagens de forma clara e visíveis, nem
todas as formas de vestuário agem dessa forma.

Para além de expressar algo por meio das formas e das cores, para Lipovetsky, a
moda é a prática dos prazeres ocasionado pela mudança, que agrada, surpreende
e ofusca. Além de forma de distinção social, ao mostrar por meio do que se
tem, seu poder econômico, é atrativo que serve de prazer aos olhos; serve como
protetora de climas naturais ao mesmo tempo que dissimula e atrai atenção e
olhares, ornamenta e expõe a sedução do corpo. Através desse olhar e dessa
vontade de ser visto pelo outro, que vai ter um efeito na forma que o sujeito
passa a ver a si próprio, a moda tem efeito sob a maioria das atitudes que a
pessoa tem em relação a si própria e ao mundo.

Trata-se do poder de espalhar o ser no mundo ou se preencher com o que o


mundo oferece e, como vimos anteriormente, até mesmo nas sociedades mais
arcaicas as roupas não eram simplesmente funcionais, pois criavam habitus
pessoais que auxiliavam na relação do corpo com o meio, constituindo-se como
a primeira e mais visível forma de expor códigos de conduta. A moda, por ser
um consumo cultural, oferece o consumo de signos e imagens e possui influência
na constituição do gosto individual estético, tendo influência, portanto, nas
posições dos indivíduos nas divisões sociais.

A expressão pelo vestuário e a leitura literal das roupas sempre foram de amplo
conhecimento na maioria das sociedades, através de imaginários culturais, e isso
é tão interiorizado, que quando os códigos são quebrados ou subvertidos, eles
ainda moldam jeitos de ser e de parecer, como por exemplo, o uso de peças
do vestuário masculino por mulheres, que geram significados como resistência,
rebeldia e inconformismo com as concepções de gênero dominantes.

A moda é construção de linguagem que utiliza o corpo como suporte para tal
manifestação, sendo um grande gerador de linguagens, e as intervenções e adornos
funcionam como suporte para os discursos que ela articula sobre o corpo. Corpo este
que é o suporte para o traje, e por isso é submetido a modificações de acordo com
cada período estético regente. Dessa forma, a moda altera o corpo e sua estrutura
física, tornando-o parte por meio dos novos traços, linhas e formas, cores e volumes,
da época e da cultura, e o apresenta como suporte de significados e revelações sobre

36
A MODA COMO COMUNICAÇÃO │ UNIDADE II

o sujeito – suas escolhas, sua personalidade, sua individualidade. Ao dizer que


procuramos a identidade no corpo, dizemos que a enxergamos pela roupa, que é a
continuação imediata dele. Por isso, elas se tornaram tão importantes para nós: são
as coisas mais próximas do nosso corpo, dizem algo sobre nós mesmos.

A moda sempre esteve ligada à teatralidade, afirmando e valorizando o corpo e, ao


mesmo tempo, funcionando como um palco onde existe a encenação de si mesmo por
meio de expressões e manifestações públicas ou íntimas. A teatralidade da moda está nos
“prazeres da metamorfose na espiral da personalização fantasista, nos jogos barrocos
da superdiferenciação individualista, no espetáculo artificialista de si oferecido aos
olhares do Outro” (LIPOVETSKY, 2009, p.149).

Isso pode ser enxergado muito facilmente na moda do Antigo Regime (século XVIII),
no espetáculo presente no vestuário e comportamento do Rei Sol (Luís XIV) e pouco
depois, de Maria Antonieta.

O vestuário deverá, então, ser observado quando inserido em um


determinado meio social, onde se manifestará como uma das mais
espetaculares e significativas formas de expressão presente no processo
cultural. Configura-se plenamente como meio de manipulação,
persuasão, sanção, ação ou performance. Consequentemente, articula
diferentes tipos de discursos: político, poético, amoroso, agregador,
hierárquico etc. tais discursos são construídos à medida que a
sociedade vai se estruturando, se desenvolvendo e exercendo a função
de confirmadora externa do sistema de organização que o homem
social privilegia e o traduz por intermédio da linguagem visual do traje.
(CASTILHO, 2002, p.71)

Ao analisar a roupa como produtora de significados, deve-se atentar ao fato de


que hoje elas perdem os significados muito mais rapidamente à medida que se
espalham. Nas sociedades hierárquicas, elas tinham significados relativamente
estáveis, mas, na pós-modernidade, adquirem novos significados a todo
momento devido à fragmentação das instituições. Svendsen diz que a moda
então tornou-se autorreferente, resignando os significados anteriores, pois
baseia-se nas modas anteriores em sua inovação constante. Para ele talvez seja
mais claro afirmar que ao contrário de como funcionava no período feudal, a
moda não comunica mais uma mensagem: ela é a própria mensagem.

37
UNIDADE II │ A MODA COMO COMUNICAÇÃO

A moda na construção da identidade


A partir do século XVIII, pode-se notar, pela primeira vez na história, uma perspectiva
de mundo que se desenvolve e funciona a partir da singularidade de cada pessoa. O
sentido e o desenvolvimento da vida passam a ser dirigido ao diferente, e não mais ao
igual. É nesse contexto que surge a ideia de um ser social individual, que não mais apenas
imita, mas constrói sua personalidade e sua individualidade a partir da sociedade.

Já parou para pensar em como o conceito de indivíduo é comum? Fica até difícil
de imaginar que um dia isso não existia, não é mesmo?

Mas foi algo construído socialmente, de forma que pode muito bem desaparecer.
Os grandes estudiosos caracterizam a individualidade como sendo construída
por características naturais herdadas geneticamente (adaptados ao longo da
vida no meio social) e aspectos incorporados socialmente. A primeira vez que o
termo “indivíduo” foi utilizado no mundo, foi durante a Idade Média: os filósofos
escolásticos encontraram o latim individum, que foi utilizado para designar um
caso singular numa espécie.

O conceito de individualidade utilizado hoje surgiu na Itália, no período


de transição do Renascimento para a Idade Moderna, e suas características
naquele período eram a separação do indivíduo das formas comunitárias
medievais que faziam com que ele se conformasse com o seu estilo de vida,
nascimento, atividade produtiva e traços de caráter. Isso fazia com que seus
traços pessoais desaparecessem e ele não pudesse desenvolver sua liberdade
pessoal, singularidade e consciência de autorresponsabilidade pelo que queria
para si.

Pelas crises sociais, questionamentos e regras, tradições e hábitos, teve origem


a experiência da subjetividade. Com o declínio e desestruturação de tais
padrões vistos como tradições, o indivíduo encontra-se obrigado a buscar em
si mesmo respostas e novas perspectivas de pensamento, abrindo espaço para
a consciência humana, que passa a servir de caminho para a construção de
verdades. Essa busca abriu tempo e espaço para o surgimento do sujeito que
pratica a reflexão. É a compreensão que o indivíduo tem de si mesmo. A partir
da noção de si próprio, ele constrói a cultura da mesma forma que também é
construído por ela.

A natureza da identidade muda em decorrência do desenvolvimento social,


sendo ela resultado da mistura de vários componentes, como discursos políticos,

38
A MODA COMO COMUNICAÇÃO │ UNIDADE II

culturais e histórias pessoais. Ela é, também, produto de diferentes momentos


históricos e, por isso, está sempre sujeita a constantes transformações.

A partir da abertura da sociedade para novas experiências e novidades no final da era


medieval, o indivíduo vai se soltando das amarras de crenças e costumes tradicionais,
ao surgir na sociedade, teorias que se contrapõem à crença da Terra como centro
do universo, ou ainda, de um deus como centro de tudo. O Humanismo aparece
juntamente com a retomada de ideais greco-romanos, que favorecem a valorização
do indivíduo como ser livre e dono de seu próprio destino, fazendo emergir em meio
a esses movimentos, a consciência que ajuda o sujeito a voltar seu olhar e vida para
si, para a descoberta de seu próprio ser. Ele não precisava mais ser aquilo que seu
nascimento dizia que tinha que ser. Sua maior preocupação passa a ser a própria
diferenciação ao meio social. Logo, torna-se importante a sua busca pela distinção
e unicidade. Quanto mais a vida se torna complexa, na modernidade, mais urgente
se torna a busca do indivíduo por si mesmo como algo sólido e que não desperte
dúvidas, nem em si mesmo e nem nos outros.

É importante deixar claro que diferentes comportamentos, experiências e dons


entre as pessoas sempre existiram, até mesmo nas comunidades da pré-história.
Porém, elas eram forçadas internamente a igualarem suas diferenças as do grupo,
fazendo com que não existissem diferenças entre seus comportamentos. O que
significa, então, que, quanto mais suas forças interiores fossem ouvidas, mais as
diferenças apareceriam. Assim, não só as diferenças tornavam-se mais visíveis,
como também as pessoas tornavam-se mais conscientes dessas diferenças e, em
algum ponto do desenvolvimento social, tais diferenças assumem certo “valor
especial”, pois com a elevação das diferenças e a individualização dos sujeitos, o
caráter individual de uma pessoa toma um lugar de importância em detrimento
do coletivo, na escala social de valores.

A subjetividade se estabelece por meio das trocas e da interação do homem com a


sociedade, do interno com o externo, que permite o indivíduo incorporar aspectos
e características externos e a moldar a si a partir dos aspectos individuais. Ela é
constituída por algo que faz parte do indivíduo, que torna esse pertencimento,
único, singular, que permite a particularidade na consciência e na própria
personalidade. A partir da troca interior e exterior que o sujeito pratica, ele se
apropria de elementos disponíveis no meio social para construir seu próprio
interior, e para Lipovetsky (2009, p.53),

[...] o essencial, historicamente, está aí: o individualismo na moda é a


possibilidade reconhecida à unidade individual – ainda que deva ser

39
UNIDADE II │ A MODA COMO COMUNICAÇÃO

da altíssima sociedade – de ter poder de iniciativa e de transformação,


de mudar a ordem existente, de apropriar-se em pessoa do mérito das
novidades ou, mais modestamente, de introduzir elementos de detalhe
em conformidade com seu gosto próprio.

A moda permitiu que o sujeito praticasse a auto-observação, o investimento


em si próprio, na sua aparência e em seus gostos pessoais, de uma forma
que nunca havia sido feita até então.

Ela proporciona o prazer de ver, mas também o de ser visto, de exibir-


se ao olhar do outro. Reproduz o narcisismo, tornando-o parte da cultura
e utilizando-o na busca pela representação e apresentação, na busca por
elegância e originalidade.

A identidade também é vista como a relação entre um indivíduo e as coisas


que ele usa. Essas coisas agem como significantes dessa identidade, uma
vez que cabe ao sujeito decidir o que possuiu ou não significado para si.
Dessa forma, o gosto pessoal do indivíduo, que é refinado e desenvolvido
por meio dos processos e das interações sociais, é também desenvolvido por
formas pelas quais os indivíduos se apropriam do que existe disponível para
a sua escolha.

Ao contribuir para a auto-observação e autodesenvolvimento, a moda


serve como um dos principais fatores de construção da identidade do
indivíduo, possibilitando popr meio de sua variedade, que o indivíduo possa
experimentar afinidades com as roupas e escolher qual melhor representa
o seu interior.

Nesse âmbito, com a infinita oferta de significados disponíveis ao indivíduo


pela moda e pelos modelos de comportamentos, a representação é inserida
intrínseca à identidade: a representação cria significados ao sujeito. E é
somente a partir de tais significados que são produzidos pelas representações,
que é atribuído sentido às experiências e aquilo que os indivíduos são,
fornecendo respostas às questões que os seres humanos culturalmente
desenvolveram ao longo dos séculos:

» Quem eu sou?

» O que eu poderia ser?

» Quem eu quero ser?

40
A MODA COMO COMUNICAÇÃO │ UNIDADE II

Os discursos e as representações constroem lugares para que os indivíduos se


posicionem.

A identidade é moldada pela cultura, que oferece dentre diversas opções


possíveis uma específica subjetividade. A moda, ao fixar uma regra de conjunto,
expôs juntamente a liberdade de manifestação de gostos e desejos pessoais:
ser como todos, mas ao mesmo tempo ser diferente; ela “foi imediatamente um
instrumento de inscrição da diferença e da liberdade individuais, ainda que a um
nível ‘superficial’ e no mais das vezes de maneira tênue” (LIPOVETSKY, 2009, p.49).

A acentuação das diferenças é a base da cultura, pois pessoas e coisas ganham


sentido pela atribuição de posições em um “sistema classificatório”, e tal
marcação das diferenças contribui para a construção das identidades, através
de representações simbólicas ou por formas de exclusão social. A identidade é
dependente da diferença. O poder reside onde existe a diferenciação, sendo esse o
centro do processo no qual a identidade e a diferença são produzidas.

Nas cortes aristocráticas, o individualismo trazido pela moda conseguiu afirmar-


se mais enfaticamente pelas esferas de poder. Na sociedade em geral, é somente
pela convivência social que o ser humano consegue tornar-se diferente, e assim,
perceber-se como indivíduo diferente dos demais. Tal percepção não se separa da
consciência de também ser percebido pelos outros, não somente como semelhante
a eles, mas muitas vezes, como indivíduo singular e diferente de todos.

O vestir, como dimensão de comunicação da sociedade moderna, que


constrói sobre corpos, diariamente, uma aparência própria, é campo
privilegiado da experiência estética, firmada no prazer de ver e de ser
visto. Como nenhum outro objeto, o traje está totalmente maleável à
apropriação por seu fruidor e permite a poiesis (ação criadora) diária
de retirar do corpo a sua natureza orgânica e travesti-lo de sentidos
múltiplos [...] (SANT’ANNA, 2009, p.49).

41
A MODA E O
DESIGN EM UNIDADE III
SOCIEDADE

CAPÍTULO 1
As conexões do design e da moda

A moda é manifestação cultural, política e econômica, e o design possui o poder de


traduzir formas, cores e linguagens para diversos elementos, produtos ou serviços.
Nesse aspecto, ambos trabalham na construção de linguagens responsáveis
pela sedução das pessoas ao consumo. Hoje, a linha que divide as esferas das
atividades relacionadas à moda e ao design estão cada vez mais sutis, dada
suas relações e conexões. A interdisciplinaridade faz parte da nossa pós-
modernidade, em que não conseguimos mais enxergar onde termina uma coisa
e onde começa outra. Isso abre cada vez mais espaço para o estudo das diversas
esferas presentes nas áreas visuais.

A palavra design, apesar de rapidamente ligá-la à língua inglesa, na verdade


vem do latim designare, que abrange significados como designar ou desenhar.
No inglês, a palavra também existe e é usada tanto como verbo: arquitetar,
idear, simular, quanto como substantivo: ideia, intenção, plano (NICCHELLE,
2011, p.18). Ambos os conjuntos de significados se relacionam com as funções
que o design desenvolve ainda hoje – o de conceber e o de projetar.

Os estudos sobre moda como tema de relevância para a sociedade e a pesquisa


científica são recentes, assim como o próprio desenvolvimento do design
na sociedade. São áreas de produção e estilos de vida que impulsionam o
capitalismo e modificam costumes e valores sociais, sendo capazes de criar
simbolismos e linguagens.

Mas sempre acabamos tendo que voltar no tempo para compreender algo de
natureza complexa, e com o design não será diferente: esse capítulo abrange o
surgimento do design e a sua relação com a sociedade, a fim de entender como
os movimentos estéticos de vanguarda tiveram influência design e na moda.

42
A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE │ UNIDADE III

Toda versão histórica é uma construção e, portanto, nenhuma delas é


definitiva. A história não é tanto um conjunto de fatos, mas um processo
contínuo e interpretar e repensar velhos e novos relatos, constatação
esta que leva a uma indagação de fundamental importância para a
história do design: repensar o passado [...] embora tratando do passado,
toda versão histórica é escrita no presente (CARDOSO, 2008, p.17).

O design e seus aspectos históricos-sociais


Design significa “projeto”. Essa é a concepção mais tradicional e comum sobre
o significado do termo; possui a ambiguidade da abstração de conceber e a
concretude de realizar. Também significa a projeção e produção de bens e serviços
que auxiliam e facilitam o cotidiano das pessoas. No século XX, a popularização
do termo em países não falantes da língua inglesa une-se à publicidade como uma
nova expressão para a produção em série de utensílios e produtos. Nesse cenário,
faz-se presente a obsolescência programada – a ser estudada mais à frente –,
que se constitui na substituição cada vez mais rápida dos produtos em prol da
novidade/inovação.

Embora o design como método de fabricação exista desde a antiguidade, a origem


do design localiza-se entre a segunda metade do século XVIII e o final do século
XIX, época em que a industrialização se espalhou por boa parte da Europa e
Estados Unidos, com o aumento das ofertas de bens de consumo e seu baixo custo.

Mas design não é o mesmo que artesanato? Não. Historicamente, uma das
principais diferenças entre design e artesanato é que o primeiro projeta algo para
ser construído industrialmente, e o segundo o produz manualmente. Hoje em
dia, muitos designers buscam resgatar o fazer manual daquela época, tanto por
motivos de qualidade, quanto por resgate ao “antigo”.

Segundo Rafael Cardoso (2012), a primeira vez que o termo designer apareceu, foi no
século XIX, na Inglaterra, para designar principalmente – mas não exclusivamente,
trabalhadores da indústria têxtil, ligados a confecções e ornamentos. O autor ainda
diz que o design é resultado de três grandes acontecimentos da história mundial:
a industrialização, a urbanização e a globalização. Todos os três podem ser vistos
claramente como influências e catalisadores do sistema capitalista e da crescente
demanda de consumo.

Com a popularização e o maior acesso das pessoas ao consumo, surgem na


Inglaterra na década de 1830, as primeiras manifestações da “reforma do gosto

43
UNIDADE III │ A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE

alheio” (CARDOSO, 2008, p.77), tentativas de educar as pessoas sobre o que elas
estavam consumindo – de acordo com algum padrão estético, normalmente o
dos próprios “educadores” – artistas, arquitetos, governos, museus e instituições
de ensino, procuravam melhorar o bom gosto da população. Antes atividades
silenciadas, as atividades de projetar e fabricar objetos ganharam destaque nos
meios industriais e se expandiram para os centros políticos, sociais e econômicos
da sociedade.

O surgimento das classes médias no século XIX trouxe cada vez mais possibilidades
de individualidade também no consumo, com a crescente circulação de impressos
e imagens. A moradia da classe média foi o primeiro local onde o design encontrou
espaço para a personalização: a preocupação com a aparência, segundo conta
Cardoso (2008, p. 63), como indicador de status serviu como estímulo para que
outras áreas da vida pudessem se tornar focos do design também.

O gosto pela diferenciação e pelo luxo migrou das elites para as novas classes médias,
num mesmo sentido ao estudado anteriormente no sistema de moda! Com os grandes
centros urbanos e as multidões nas ruas, tornou-se cada vez mais primordial a
individualidade e a expressão desta; o ser visto.

O surgimento da eletricidade nos lares urbanos leva ao desenvolvimento de


eletrodomésticos cada vez mais diferenciados entre si, abrindo espaço para
mais oferta e procura por modelos novos e inovadores. As mudanças relativas
à natureza do trabalho – especialmente nos escritórios – fez com que cada vez
mais móveis fossem criados e produzidos, a partir das necessidades surgidas
com as novas configurações espaciais do ambiente de trabalho: pelo advento das
máquinas de escrever, as mulheres ingressaram no mercado de trabalho, ocupando
a função de secretárias – essa mudança pediu por mesas de trabalho mais baixas,
por exemplo. O design desempenhou seu papel nessas novas configurações da
vida social, “contribuindo para projetar a cultura material e visual da época”
(CARDOSO, 2008, p.73).

Os fenômenos sociais trazem outras formas de se produzir design, e outras


necessidades também: é o caso de outras áreas do design que são ligadas ao
desenvolvimento de serviços que dependem das interações, experiências e
necessidades do usuário nas plataformas digitais. As demandas da sociedade,
quando surgem, sempre afetam as áreas criativas.

Mas e a diferença entre arte e design? Existe muito diálogo sobre a questão da arte e do
design: sobre como uma é superior a outra ou sobre como uma está ligada a outra. A
concepção de arte para Held et al. (2015, p.374) é de que esta é puramente conceitual,

44
A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE │ UNIDADE III

não possui intenção de ser reproduzida industrialmente. Não que o design seja somente
reprodução industrial. Não é. Mas uma de suas características que o difere da arte é
justamente esta.

Na antiguidade arte e design se equivaliam em certo sentido. Os dois


termos se traduzem na noção de manobra, agilidade que dá origem
ao ato e ao produto final deste ato. O produto final que justifica o ato
artístico é a obra de arte. E o objeto é o resultado do ato criativo e
processual do design (MARTINS; MARTINS, 2013, p.85).

William Morris iniciou uma série de empreendimentos que frisavam a importância do


design ainda em 1861: abriu uma fábrica que produzia objetos decorativos, móveis,
tecidos etc., pois acreditava que o “consumidor pagaria mais para ter o melhor”. A
empresa produzia objetos artesanalmente e também industrialmente, possibilitando
a produção de artigos de diversos preços, e não apenas de luxo: “foi talvez o primeiro
exemplo, e ainda um dos mais instrutivos, de uma empresa alicerçada sobre o design
como princípio organizador de sua existência comercial” (CARDOSO, 2008, p.81).

Morris sabia que não havia como fugir da industrialização que só avançava cada vez
mais, por isso procurou unir técnicas de produção com a expertise dos artistas-artesãos-
designers para produzir com qualidade e acabamentos superiores.

A empresa de Morris participava de todas as etapas, desde a concepção do projeto, até a


distribuição e a publicidade; tudo isso foi possível pois a empresa se preocupava muito
mais com a qualidade de material e de acabamento de seus produtos do que com a
quantidade. Seus produtos chamavam atenção para os problemas estruturais, cada vez
menos observados nas produções industriais comuns.

A noção de que a forma deve seguir a função foi lema do design por muito tempo,
sendo questionada apenas em 1960 pelos movimentos de contracultura. Os debates
sobre as funcionalidades do objeto, no século XX, correspondiam a simplesmente olhar
um objeto e decidir se ele era ou não funcional. Nesse período chamado “modernismo”,
os objetos ornamentados eram descartados por não se encaixarem na funcionalidade,
pois a ornamentação era contrária à ideia da função.

Para Cardoso (2012, pp.37-41), a ideia de forma é muito complexa para dizer que ela
determina ou não a funcionalidade de algo, pois é fruto de transformações e adquire
novos significados:

O olhar é também sujeito a transformações no tempo, e aquilo que


depreendemos do objeto visto é necessariamente condicionado pelas
premissas de quem enxerga e de como se dá a situação do ato de ver.

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UNIDADE III │ A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE

[...] Seria cômico sugerir, ao projetar um eletrodoméstico, que despojá-


lo de ornamento é mais importante do que minimizar seu impacto
ambiental.

O contexto mundial do início do século XX era cheio de contradições: o luxo e a riqueza


eram ostentados por poucos: movimentos socialistas e anarquistas, emancipação
política por parte das mulheres, guerras de independências, poderio industrial, sistemas
ainda feudais e escravagistas em outros países; por fim, a eclosão da Primeira Guerra
Mundial. Tendências sociais acabam por impulsionar o desenvolvimento da arte e do
design no mundo.

Com o advento da transição da produção em série – século XIX – para a produção em


massa – século XX –, surgem os movimentos estéticos, que muito mais do que impactar
apenas nas artes, acabaram por contribuir a desenvolver todo o campo do design.

Movimento Arts and Crafts

Artes e ofícios foi movimento estético e social inglês, surgido na segunda metade do
século XIX, idealizado em resposta à mecanização e aos excessos de padronização dos
artefatos e às condições de trabalho trazidas com a industrialização.

Foi um movimento que reuniu teóricos e artistas e a principal característica foi


a valorização do trabalho manual e, por isso, foram surgindo ateliês e oficinas
dedicadas à produção de objetos semi industriais ou em escala artesanal - inspiradas
pelo exemplo da empresa de William Morris – que aprimoravam as técnicas dos
artistas, qualificando-os. O movimento também procurou acabar com a distinção
conceitual e prática entre artesão e artista.

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A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE │ UNIDADE III

Figura 1. Estampa do papel de parede Pimpernel.

Fonte: Morris, Marshall, Faulkner e CO. Estampa do papel de parede Pimpernel. Disponível em: <https://www.cliquearquitetura.
com.br/artigo/arts-a-crafts.html>. Acesso em: 18/2/2020.

O objetivo desse movimento era recuperar valores de produção tradicionais, pela


integração cada vez maior entre projeto e execução, o que agregaria mais valor às
produções.

Vale ressaltar que o Arts and Crafts não conseguiu popularizar a arte e o design, tendo
influenciado apenas a classe com maior poder de consumo.

No final do século XIX, o movimento inglês passa a se unir ao próximo movimento,


dessa vez em escala global.

Art Nouveau (Arte Nova)

Foi o movimento que sucedeu ao Arts and Crafts, incorporando algumas de suas
técnicas e alguns poucos valores, mas que, diferentemente do anterior, pôde
alcançar influência estética mundial, o que significa que o movimento em outros
países possuía princípios em comum.

A sociedade carecia de um estilo próprio da modernidade: enquanto uns clamavam


pelo retorno dos estilos clássicos, como o da Grécia ou do Renascimento, outros
defendiam que justamente essa “falta” de um estilo abriria caminho para outros
tantos. O Art Nouveau surge como o primeiro estilo oficialmente desenvolvido
na modernidade e internacionalmente, logo no início do século XX. Reconhecido
como um estilo definido, engloba conceitos utilizados no Arts and Crafts, porém

47
UNIDADE III │ A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE

não age como resposta à industrialização, mas sim utiliza-se dela por meio dos
materiais e das técnicas de produção para integrá-los à arte, procurando unir
arte, cultura de massa e industrialização que desafiassem princípios básicos da
produção em série, como a utilização de materiais baratos e de baixa qualidade
pela indústria. Foi um movimento desenvolvido por pensadores, designers,
arquitetos, artistas.

As maiores produções desse movimento estético aparecem no mobiliário, objetos de


decoração (abajures e vasos são peças-chave), cartazes, joias e na arquitetura.

Figura 2. Pingente de libélulas feito de ouro e pedra preciosa.

Fonte: VICAN. Pingente de libélulas feito de ouro e pedra preciosa, [18--?]. Disponível em: http://www.thejewelleryeditor.com/
media/images_thumbnails/filer_public_thumbnails/filer_public/c5/9f/c59f549d-8ea2-4841-885e-bbee8db1a3a7/lot-61-vican-
art-nouveau-glass-and-enamel-pendant.jpg__760x0_q75_crop-scale_subsampling-2_upscale-false.jpg. Acesso em: 23/3/2020.

Tendo sido pensado para representar a modernidade industrializada, acabou por


também representar uma certa fuga da rigidez e dureza da indústria, ao suscitar formas
botânicas, ornamentais, e apresentava traços de leveza nos designs, traços que tinham
como referência a própria natureza.

Relaciona-se ao luxo e à prosperidade da chamada Belle Époque, período de extrema


cultura cosmopolita que antecedeu a Primeira Guerra Mundial e, portanto, manteve-se
restrito à elite e foi um estilo produzido por grandes artistas e designers de renome.

Os países de maior destaque de influência desse movimento estético são França e


Áustria.

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A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE │ UNIDADE III

Cubismo

Foi o estilo desenvolvido em 1907, com o quadro Les Demoiselles d’Avignon, de


Pablo Picasso, que transformava a tridimensionalidade em planos bidimensionais. O
movimento tem como característica fundamental a recusa da ideia da arte como sendo
imitação da natureza. Possui cubos, volumes e planos geométricos como características
das obras, em especial as pinturas. No Brasil, as obras de Tarsila do Amaral, em sua fase
pau-brasil, são exemplos desse movimento.

Figura 3. Obra Cubista “Les Demoiselles d’Avignon”.

Fonte: Pablo Picasso, Les Demoiselles d’Avignon, 1907, óleo sobre tela. (Museum of Modern Art, New York). Disponível em:
<https://www.khanacademy.org/humanities/art-1010/early-abstraction/cubism/a/picasso-les-demoiselles-davignon>. Acesso
em: 18/2/2020.

Ao design, especialmente ao design gráfico, proporcionou novas formas de abstração


geométrica e tipografias. Influenciou movimentos como o The Stijl (Holanda), o
Futurismo e o Construtivismo.

Futurismo

Lançado em 1909 como um manifesto, o futurismo tinha caráter revolucionário


e exaltava a beleza dos movimentos da industrialização, dos automóveis, rapidez,
máquinas e elementos que tivessem relação com o mundo moderno e futurista da
época, alçando-os à superioridade.

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UNIDADE III │ A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE

Figura 4. Obra futurista “O ciclista”.

Fonte: Natalia Goncharova. O ciclista. 1913. Disponível em: <https://www.theartstory.org/movement-russian-futurism-artworks.


htm>. Acesso em: 18/2/2020.

Ao design, contribuiu com a noção de utilizar tipografias, cores e formas para dar a
ideia de movimento, de continuidade e até de sons. Defende a experimentação técnica
e de estilo, ocasionando na quebra do layout simétrico e o sentido de movimento, que
em seguida influenciaram outros movimentos como o The Stijl, Bauhaus, Dadaísmo e
Construtivismo europeus.

Dadaísmo

O Dadaísmo (1912-1922) foi um movimento estético que, diferentemente dos demais,


é considerado ainda, um movimento de crítica social que consistia em quebrar regras
tradicionais não só das artes visuais, mas também de modelos culturais do passado e
presente. Contestou também o racionalismo do presente na mentalidade dos artistas
dos movimentos anteriores. Defende novos estilos de arte, porém coloca-se contra
estilos utilizados anteriormente.

Seus movimentos são pautados no choque e escândalo. Inspirou diversos grupos


literários unidos pelo questionamento crítico e gosto pelas intervenções anárquicas,
sentimentos despertados na sociedade com a chegada da Primeira Guerra Mundial.

Os ready-made, de Marcel Duchamp – conceito que consiste em separar o objeto


de arte de seu contexto, a fim de perceber a alteração de seu significado –, simboliza
os conceitos do dadaísmo. A técnica da dessacralização do objeto de arte, ao utilizar
objetos cotidianos sem função artística nas obras para que com essas intervenções, esses
objetos fossem elevados à categoria de arte, Duchamp faz uma crítica ao sistema da arte
fornecendo ao objeto uma assinatura e um espaço em museu, galeria ou exposição. Seu
objetivo era dar novas interpretações à arte, rompendo com o antigo senso sobre o que

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A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE │ UNIDADE III

era belo, e contestar o que era realmente arte. Para ele, a obra deveria ser analisada pelo
seu conceito.

Figura 5. Mictório Duchamp.

Fonte: Marcel Duchamp. 1917. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2017/03/14/


interna_diversao_arte,580402/voce-sabia-que-um-mictorio-mudou-o-rumo-da-arte.shtml>. Acesso em: 18/2/2020.

No design gráfico, influenciou a ideia cubista e o uso da tipografia como elemento visual
e não apenas como texto; mostrou aos designers que elementos fora do comum podem
ser utilizados nos meios visuais.

Surrealismo

O surrealismo é voltado exclusivamente para o inconsciente, o afastamento da realidade,


o mundo dos sonhos. René Magritte, Salvador Dalí, Joán Miró e Man Ray são alguns
nomes desse movimento que, por meio do onírico e do inconsciente, exploravam as
artes do imaginário e da mente a partir do que defendia Sigmund Freud.

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UNIDADE III │ A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE

Figura 6. Obra de Matisse “La trahison des images”

Fonte: René Magritte. La trahison des images (A traição das imagens). 1929. Disponível em: https://http2.mlstatic.com/poster-
rene-magritte-la-trahison-des-images-29cm-x-42cm-D_NQ_NP_751375-MLB31856532858_082019-F.jpg. Acesso em: 18/2/2020.

Com esse pressuposto da valorização do inconsciente e da fuga da realidade, esse


movimento estético vai no sentido oposto ao racionalismo presente em movimentos
como o construtivismo e o futurismo, tendências racionalistas e estruturalistas
chamadas de “retorno à ordem”.

Por utilizar aspectos do emocional e do inconsciente, esse movimento trouxe mais


liberdade de ideias na comunicação visual e nas formas de ilustração, além de contribuir
com a ideia da aleatoriedade nas colagens e composições fotográficas.

Um dos cases de sucesso de moda e arte no século XX foi a colaboração de Elsa


Schiaparelli e Salvador Dalí, em que a estilista utilizou elementos do surrealismo tanto
nas formas quanto nos materiais de suas criações.

Construtivismo

O construtivismo surgiu na Europa e na Rússia como resposta ao caos causado pelo


Dadaísmo e pelo Surrealismo, pela falta de clareza e racionalidade. A pintura e a escultura
nesse movimento são pensadas como construções e não apenas representações.

A ideologia revolucionária e libertária que impregna as vanguardas em


geral, adquire feições concretas na Rússia, diante da revolução de 1917.
A nova sociedade projetada no contexto revolucionário mobiliza os
artistas em torno de uma arte nova, que se coloca a serviço da revolução
e de produções concretas para a vida do povo (ENCICLOPÉDIA ITAU
CULTURAL, 2019).

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A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE │ UNIDADE III

A proposta era a superioridade das formas geométricas, emprego de cores racionais


para resolver os problemas da comunicação. Ao misturar fontes e imagens, propôs uma
nova forma de influenciar a comunicação de ideias futuramente.

Utilizavam combinações de imagens e textos, e acabaram por tornar populares as


técnicas de fotomontagem, fotograma, colagem e uso de tipografia como elemento de
grande destaque nas artes gráficas. Por meio dessas técnicas, a fotografia tradicional
ganhou novas perspectivas, tornando-se parte da estrutura gráfica. Alguns autores
dizem que o Construtivismo serviu de base para se pensar a diagramação no design.

Figura 7.Obra Construtivista Russa.

Fonte: Aleksandar Rodčenko, Knjige, poster. 1924. Disponível em: < https://citymagazine.rs/clanak/umetnicki-eksperiment-ruska-
avangarda-u-beogradu>.

Art Déco (abreviação do francês “arte decorativa”)

Movimento estético ligado espiritualmente ao Art Nouveau, explora as linhas


assimétricas e sinuosas que têm referência nas formas botânicas. Surge do espírito
modernista das décadas de 1920 e 1930 e, em contrapartida ao estilo anterior, é menos
ornamentado e mais geométrico, mecânico e com sobreposição de planos. Porém, ainda
mantém características como elegância e excesso.

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UNIDADE III │ A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE

Figura 8. Sinclair Building como exemplo de Edifício Art Déco.

Fonte: Wiley, Clarkson; Harry, Friedman. Sinclair Building. 1930. Disponível em: https://i.pinimg.com/originals/90/75/ee/9075ee06
d9be2c08b53909752f41ecaa.jpg. Acesso em: 18/2/2020.

Foi um estilo inicialmente pensado para a elite, pois utilizava materiais de luxo como
jade, marfim e laca. Após alguns anos, passou a se relacionar com a industrialização
e o uso de materiais mais simples de serem reproduzidos em massa. O custo baixo da
produção leva à massificação e popularização do movimento, especialmente no cinema
hollywoodiano nos Estados Unidos.

Na modernidade de estilos, a moda também ganha força com os questionamentos e as


expressões que levaram ao surgimento dos movimentos estéticos. O Art Déco também
possui ecos na moda: a década de 1920, marcada pelos vestidos assimétricos e o corte
de cabelo à melindrosa, os acessórios e até mesmo a maquiagem.

O Grande Gatsby, 2013 – a riqueza do figurino e dos detalhes de design e


arquitetura do período.

The Stijl (ou Neoplasticismo)

Desenvolvido na Holanda em 1917 por Piet Mondrian e Theo Van Doesburg, o


movimento também rejeita a arte como representação, as linhas curvas e as texturas,
tendo como foco a clareza, certeza e ordem, ao criar expressões plásticas por meio de
elementos primários como o uso da linha, cores primárias e retângulos.

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A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE │ UNIDADE III

Figura 9. Red and Blue Chair, ícone do movimento Stijl.

Fonte: Gerrit Rietveld. Red and Blue Chair, 1923. Disponível em: <https://www.theartstory.org/movement-de-stijl.htm>. Acesso
em: 18/2/2020.

Os designers desse movimento o tornaram conhecido e fundamental para a história


do design, pela abstração precisa, divisão dos espaços, muitas vezes contrastando com
linhas pretas. Também pelas formas básicas, mas que traziam equilíbrio, o uso das cores
primárias e pela simplicidade do layout. Os blocos retangulares faziam eco também na
escolha da tipografia, com o uso de fontes sem serifas.

Bauhaus

Formada pela união da academia de belas artes e a escola de artes e ofícios já existentes
em Weimar, na Alemanha industrializada em 1919. Bauhaus se encontrava no meio
da tensão política da Alemanha pós-Primeira Guerra e início dos movimentos de
partidos comunistas. É considerada a mais influente e famosa escola de arte do século
XX. Foi uma tentativa de unir arte e artesanato aos recursos das novas tecnologias: “a
ideia de que o aprendizado e o objetivo da arte se ligam ao fazer artístico, o que evoca
uma herança medieval de reintegração das artes e ofícios” (ENCICLOPÉDIA ITAU
CULTURAL, 2019).

Propôs formas inovadoras sobre o estudo do design, ao procurar estabelecer relação


entre a produção industrial e a arte, por meio de propostas como a simplificação e
limpeza da forma e a racionalidade, a fim de que os protótipos pudessem ser facilmente
produzidos em série.

A Bauhaus, originalmente fundada como uma escola de arte, promoveu


o design a partir do conceito de “arte e técnica”, o que evidencia a
transição da prática profissional do artista/artesão para o designer
industrial, como conhecido atualmente (NICCHELLE, 2011, p.20).

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UNIDADE III │ A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE

Figura 10. The Wassily Chair, a cadeira inspirada no movimento Bauhaus.

Fonte: Marcel Breuer, The Wassily Chair, 1925. Disponível em: <https://www.knoll.com/the-archive?detail=b32>.

O legado da escola para o design é notável, mas também cheio de complexidade, pois
contribuiu para a solidificação de um pensamento sobre o que é design como estilo
específico, especialmente no conceito de que a forma do objeto deveria ser determinada
por sua função – a forma segue a função – e para o distanciamento entre design, arte e
artesanato, apesar da proposta inicial ser justamente a união dos saberes.

Criada sobretudo com um ideário socialista, foi fechada em 1933 com a ascensão ao
poder do partido nazista.

Pop Art

A Pop Art foi um movimento estético cultural que surgiu sobretudo na Inglaterra e nos
Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960. Defendia uma parte mais popular (pop),
em que os símbolos e a estética do movimento seriam retirados do imaginário popular
de massas da sociedade de consumo. É um movimento que se coloca contra a separação
de arte e vida, de fácil acesso, consumível e de baixo custo, que defende o acesso da arte
a todos.

Os artistas desse movimento utilizaram além de histórias em quadrinhos, publicidade,


celebridades e imagens televisivas, elementos do cotidiano, como uma das mais famosas
obras desse movimento, criada por Andy Warhol, que exibe em uma lata de sopa
Campbell’s. Isso envolve a arte no dia a dia, estabelecendo uma relação de proximidade
imediata com o expectador. Muitas obras contêm elementos de crítica e sátira social ao
materialismo da sociedade.

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A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE │ UNIDADE III

Figura 11. Lata de Sopa Campbelle e Marilyn Monroe ambas obras de Warhol.

Fonte: Andy Warhol. Lata de sopa Campbell’s, 1969. Marilyn Monroe, 1967. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/
PopArte/0,,MUL1537673-7084,00-SUPERSTAR+DA+POP+ART+ANDY+WARHOL+E+TEMA+DE+MEGAEXPOSICAO+EM+SP.html>.
Acesso em: 18/2/2020

Esse foi um dos movimentos que influenciou muito tanto as artes gráficas quanto as
imagens comerciais, por apresentar uma gama de cores, técnicas de reproduções e o
simbolismo que os itens da cultura de massa passaram a ter no meio artístico.

Os principais movimentos artísticos de vanguarda abraçaram a mecanização e o


industrialismo, mostrando a aproximação entre arte e indústria, demonstrando que
com o crescimento do consumo de massa, os estilos agem como guias cada vez mais
importantes nas delimitações das identidades urbanas.

Talvez a contribuição mais duradoura desses movimentos reformistas


tenha sido a ideia de que o design possui o poder de transformar a
sociedade e, por conseguinte, que a reforma dos padrões de gosto
e de consumo poderia acarretar mudanças sociais mais profundas
(CARDOSO, 2008, p.85).

A questão do gosto – do belo e não belo – serve o design desde sempre, e é afetado
pelo tempo e pelo desenvolvimento da sociedade em que, assim como estudado
anteriormente, cada período definia o que era aceito no quesito vestuário e no quesito
gosto no geral. As mudanças estéticas e funcionais das coisas são observadas na
sociedade quase que de forma linear, por meio das influências dos movimentos estéticos
no design e na moda.

O “ready-made às avessas” (ARGAN, 2015 apud MARTINS, L.; MARTINS, S., 2013,
p.86) é o design produzido com ares dos objetos de arte, itens de colecionadores –
como os designs de Philippe Starck –, um produto da moda que é feito em quantidades
limitadas e vendidos a preços altos. Nesse sentido, esse conceito se entrelaça com a
alta-costura da moda.

Sua consequente aproximação do campo da arte trouxe uma valorização,


quase que por transferência, ao campo do design que permitiu que em
alguns momentos do design contemporâneo e da moda moderna e

57
UNIDADE III │ A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE

contemporânea o design fosse tratado como obra de arte (MARTINS;


MARTINS, 2013, p. 87).

O desejo do ser humano pós-moderno é o de possuir o belo em seu dia a dia. Por isso,
criações que possam parecer absurdas quando consideradas suas funções – ou a falta
dela, como o espremedor de limão de Philippe Starck –, são ícones desse “ready-made
às avessas”.

Figura 12. Espremedor de Limão de Philippe Starck.

Fonte: Alessi. Espremedor de Limão. Philippe Starck. Disponível em: <https://hivemodern.com/pages/product36/juicy-salif-


juicer-starck-alessi>. Acesso em: 23/3/2020.

O design caiu nas massas e hoje é possível encontrar cópias e releituras dos objetos
mais cobiçados do mundo do design – produzidos em pequena escala, porém vendidos
por grandes preços. A estética cai no gosto popular e é copiada e reinventada até fazer
parte do cotidiano das pessoas que também anseiam por serem “únicas”: “o objeto mais
ordinário se transforma em uma experiência estética da cultura popular” (MARTINS;
MARTINS, 2013, p.93).

Quando moda e design se encontram


A divisão entre a arte e o ofício na antiguidade era mais tênue, passando pela
quase acentuação na fase do século XX. Nos dias de hoje, isso pouco importa: a
interdisciplinaridade das esferas da arte, moda e design impulsiona o consumo. Para
os autores Martins e Martins (2013, p.92), o que muda com essas fusões, é a forma de
se pensar, conceber e usar o design, e sobrepõe o mantra da forma e função do século
passado.

O saber técnico e a arte unem design e moda – áreas do saber criativo, em que
uma passa a interagir com a outra, em uma relação de interdisciplinaridade.
No modernismo, o design sofreu bastante influência de conceitos como forma e

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A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE │ UNIDADE III

funcionalidade, o que acabou por afastá-lo da esfera da moda, está sempre atrelada
à arte. Isso fez com que o design ficasse cada vez mais ligado à industrialização e
produção de objetos. A partir da segunda metade do século XX, o design deixa de
ser totalmente focado à indústria para se atentar ao consumidor e ao sistema de
consumo.

Como sabemos, a moda foi sendo desenvolvida em conjunto com o


desenvolvimento da sociedade e a partir do que era tido como belo. O design
desenvolveu-se em conjunto com a indústria, e tanto ele quanto a moda passaram
a ter pontos identificáveis de convergências, uma vez que vivemos em um mundo
de consumo, e, portanto, o bom gosto ainda é parte essencial da sociedade. As
experimentações artísticas de novos materiais no que tange à produção de moda,
a abertura do leque de produtos confeccionados pelas grandes marcas de moda,
e assim como a arte faz-se presente na moda, o design desde o século XX vem
propondo parcerias entre a funcionalidade e a moda.

A área da moda passou a integrar o processo industrial com a reprodução e a


produção em massa, buscando referências no campo do design e substituindo,
assim, o estilismo pelo projeto (NICCHELLE, 2011, p.11). Ambas as áreas são
cobradas pelo mercado da antecipação de tendências e produtos que satisfaçam
as necessidades e desejos dos consumidores. O pressuposto da novidade presente
na moda faz com que a relação com outras áreas seja tida de forma natural e
essencial, num cenário capitalista que cobra cada vez mais renovação. O design
e a arte proporcionam bases de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos
de moda, intensificando as demandas.

O desejo pelo consumo aumenta conforme aumenta a individualidade dos


sujeitos, a partir da década de 1950. A moda anterior, ditada pela alta-costura,
cede lugar à moda das individualidades, em que muito mais opções são oferecidas
aos novos estilos de vida, gostos e comportamento dos sexos.

Quando a moda é pensada como um fenômeno socialmente amplo,


se estendendo a outros sistemas, ela pode ser pensada como
parte integrante do cenário da arte. Ela exibe o entrelaçamento
indissolúvel das esferas econômica, social, cultural, organizacional,
técnica e estética. Isso quer dizer que, embora a moda esteja
ligada ao belo, ao luxo e ao glamour que aferem a ela um tom de
futilidade, o campo se revela como uma zona de manifestação
visual de atributos que vão além da estética (SANTAELLA, 2004,
apud MARTINS; MARTINS, 2013, p.95).

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UNIDADE III │ A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE

A moda, para Cardoso (2008, p.144), teve importância no sentido de atualidade


e modernidade, sendo ao lado da evolução tecnológica, um elemento influente na
imposição de sentidos para mudanças que sejam visíveis tanto nas formas quanto nos
hábitos culturais. O autor conta que com o desenvolvimento da expansão das mídias –
especialmente as impressas –, como revistas ilustradas e cinema, a moda pôde, ainda
no século XIX, ir conquistando espaço por meio dos últimos lançamentos publicados
nas revistas ilustradas.

Para Nicchelle (2011, p.11), a moda a partir do design tomou seu lugar como parte
integrante da competitividade do mercado, e hoje em dia é possível encontrar no campo
vários estudos e cursos sobre a moda como estratégia mercadológica. O design, como
projeto, auxilia a moda a pensar além do consumo, e até mesmo em pensar formas
diferenciadas de experiências, usos e consumo.

As inovações do design hoje abordam questões culturais e de cunho sustentável,


propondo novas soluções para a produção de vestuário e de recursos de
matéria-prima, ao mesmo tempo em que coloca em primeiro plano as preocupações
culturais das pessoas, fazendo com que a moda precise se adaptar a isso,
transformando seus tradicionais ciclos de produção e tendências em ciclos que
respeitem o planeta e façam sentido aos consumidores. “Em termos históricos, o
grande trabalho do design tem sido ajustar conexões entre coisas que antes eram
desconexas. Hoje em dia chamamos isso de projetar interfaces. [...] a parte de
cada um é encontrar sua parte no todo.” (CARDOSO, 2008, p.44). O design hoje
produz também o imaterial.

A obsolescência programada

A televisão, além de ser um bem de consumo, ainda era o espaço no qual a propaganda
mais influenciou o consumismo nas pessoas: a publicidade era, no final dos anos
1950, um fenômeno cultural. “É em torno da televisão que se cristaliza um dos
conceitos fundamentais do design e do marketing no mundo pós-moderno: o que
foi batizado em inglês de lifestyle, ou estilo de vida” (CARDOSO, 2008, p.205). O
lifestyle consistia em ser uma ideia de que a mercadoria não fosse projetada apenas
para um propósito, como função ou forma, mas sim como algo que pudesse ser
inserido na vida e nas relações sociais das pessoas – e que gerasse uma imagem
do consumidor/usuário.

O design é responsável por desenvolver produtos e serviços para atender


as necessidades sociais. Porém, na teoria de Zygmunt Bauman, vivemos
“tempos líquidos”, movido pelo crescente avanço do capitalismo que faz com

60
A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE │ UNIDADE III

que as necessidades das pessoas sejam momentâneas e o ciclo de vida de


um produto/serviço, curto. Na moda, as favorecidas são as Fast Fashions,
que procuram atender a essa demanda efêmera com produtos com ciclos de
vida limitados, com preços baixos e novidades constantes. Isso resulta num
número muito grande de descarte e acúmulo de material que já excedeu o
tempo de vida útil, ou seja, sua função primária.

Ao se caracterizar pelas tendências, a moda acarreta um ciclo de vida programado que


resulta, por conseguinte, no descarte prematuro de produtos que podem estar em bom
estado ou não, mas que não fazem mais parte da “moda”.

Existe, porém, “um grande envolvimento das pessoas com a moda e a preocupação
ambiental está evoluindo, onde aparece uma forte necessidade por ações no
campo da moda sustentável”, diz Araújo, Broega e Mota-Ribeiro (2014, p.45). O
consumidor deixa de lado a aquisição de produtos apenas por status e passa a
consumir pela identificação com algo e pela estética, e o consumo passa a ser
orientado pelos valores individuais, emocionais e psicológicos.

Compramos objetos que nos proporcionam prazer e dão sentido às nossas


vidas – ainda que por pouco tempo –, produtos que são dotados de contextos
e sentidos que são admirados e imitados (SANT’ANNA, 2009, p. 60). Um objeto
possui algo de espetáculo em nossas vidas pois é produzido para isso, para
tornar-se parte de algo.

“Quanto mais se joga fora, mais oportunidade se gera para produzir de novo o
mesmo artigo, o que ajuda a manter uma taxa positiva de crescimento” (CARDOSO,
2008, p.165). Essa foi a filosofia que levou muitas empresas, na década de 1950
e 1960, a dar início ao processo da obsolescência programada dos objetos:
fabricar produtos que não durariam muito tempo. Dessa forma, aumenta-se o
consumo e abre-se espaço para as novidades, que chegariam sempre como a
última novidade do mercado.

Cardoso (2008, pp.152-154) diz que existem quatro fatores determinantes que
explicam o processo de significação dos artefatos, e seus significados ao longo de
seus ciclos de vida. São eles:

» A materialidade: a construção, forma, configuração.

» O ambiente: o entorno, a situação, o contexto de uso.

» Os usuários do artefato: repertório, gostos, comportamento, intenções.

» O tempo: “o impacto de sua passagem sobre o objeto em questão”.

61
UNIDADE III │ A MODA E O DESIGN EM SOCIEDADE

Dessa forma, vemos que os artefatos refletem o estado de nossa cultura, pois são
expressões dos pensamentos e dos comportamentos das pessoas. Quanto mais eles
agregam e simbolizam valores importantes e conhecidos, mais resistentes eles se
tornam ao esvaziamento de seus sentidos e ao descarte. Mas com a efemeridade dos
produtos que temos hoje, fica difícil estabelecer uma conexão tão forte assim, visto que
na maioria das vezes, como no caso das roupas e eletrônicos, não duram tanto tempo.

O design que conhecemos hoje libertou-se da rigidez e normas que dominaram e


guiaram a área por mais de um século. Hoje também, entende-se que a palavra da
pós-modernidade para o design é pluralidade, pois não existe mais uma busca
pela maneira correta de se fazer design. Aceita-se a complexidade como parte do
sistema social e como meio de se analisar e resolver os problemas de nossa sociedade
contemporânea. O mesmo sistema que alimenta o consumo e o mantém como parte
fundamental da sociedade também é responsável pelos diversos problemas ambientais
que enfrentamos hoje. Os conflitos entre consumo e meio ambiente estão cada vez mais
se tornando algo alarmante e amplamente divulgado nas mídias.

O próximo capítulo vai tratar sobre a questão das novas tecnologias e das diversas
formas de consumo consciente, tema de discussões fundamentais da nova ordem da
moda.

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O CONTEMPORÂNEO: UNIDADE IV
NOVAS LINGUAGENS

CAPÍTULO 1
Os novos discursos na
contemporaneidade

Com a vida cotidiana tornando-se cada vez mais comercializada, buscamos saciar
nossos desejos e necessidades pelo consumo de mercadorias e serviços. Da sociedade
de produção do início da era moderna, em que os indivíduos eram moldados para serem
produtores, hoje somos moldados para sermos consumidores. Somos produtores em
uma parcela da vida, mas somos consumidores do nascimento à morte.

O consumo tornou-se alimento para a construção da identidade, função principal


na vida das pessoas. A ideia de que o consumo serviria para suprir as necessidades
básicas do ser humano hoje não faz mais tanto sentido: além de suprir essas
necessidades básicas, utilizamos o consumo como forma de entretenimento
contra o tédio. O bem-estar e o prazer tornaram-se motivações cada vez mais
fortes ao consumo, especialmente o de moda. A paixão e o desejo estão presentes
nos produtos de moda, e fazem com que os produtos anteriores percam esses
poderes de encantar cada vez mais rápido. O que Barthes chamou de roupa
representada é o que almejamos ao mesmo tempo que só podemos usar a roupa
real. Isso gera decepção e cria o desejo contínuo que serve de combustível para
o consumo.

Lipovetsky (2009, p. 310) diz que a sociedade-moda aniquilou totalmente o peso


do passado, encarnado nas tradições e alterou o investimento no futuro em prol
do presente que é o momento mais importante para o sujeito – o agora que pode
ser aproveitado pelo consumo. Mas isso já não vale mais para a totalidade da
moda nos dias de hoje. Ainda que o passado das tradições não seja mais o objeto
de culto da moda, ele ainda se faz presente nas reutilizações de tendências e
modas passadas. Mas principalmente, a moda hoje se propõe a pensar além do

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UNIDADE IV │ O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS

momento presente, de forma que ao aproveitar o presente com consciência,


exista um espaço para imaginar o futuro.

Nessa unidade, que encerra a apostila sobre teoria da moda, vamos abordar as questões
que rodeiam a indústria e a preocupação com a moda de hoje. O consumo, o poder das
imagens e das mídias e, principalmente, a questão da sustentabilidade são os temas da
moda do novo século. Quase no fim da secunda década, sentimos como se absolutamente
tudo muda todos os dias. E, de fato, isso acontece. Então, como compreender as
preocupações e as transformações que a moda vem sofrendo?

A cultura de massa e as novas tecnologias


As culturas de massa funcionam à base da renovação acelerada de modas, do efêmero e
da soberania das novidades, portanto, vivem o presente. Ainda que algumas tradições
ainda prevaleçam, é o presente que dita a nossa relação com o passado, a partir da
adaptação e da inovação. Ainda que se diga isso tudo de nossa relação com o passado,
não significa que ele seja desvalorizado, apenas que a nossa sociedade funciona a partir
da ordem da obsolescência. Nessa ordem se insere o imediatismo, que ajuda a satisfazer
nossos desejos do agora e nos oferece uma fuga da realidade.

A importância das marcas nos dias de hoje é cada vez mais central no consumo
de massa, visto que se paga pelo logotipo, pela ideia da marca e não só pela
roupa. Um exemplo é o símbolo do crocodilo da Lacoste, que se torna o fator
principal da compra. As marcas agem desde o final do século XX com muito
impacto no mundo da moda, apresentando etiquetas cada vez maiores nas roupas
e acessórios, sendo alvo de cópias baratas para as massas que jamais poderiam
consumir uma peça original. O prestígio acumulado pelas grandes marcas e
maisons ao longo dos anos torna-as presentes no dia a dia da sociedade atual,
fazendo parte do imaginário de todos os consumidores.

Vivemos em um mundo que produz e consome imagens o tempo todo, e nos


tornamos, nesse meio, indivíduos viciados em imagens. Essas imagens podem
tanto criar quanto nos fazer perder a realidade, ao mesmo tempo em que nos
dão algo – mais imagens – que serve de negação e forma de amenizar essa
perda. Lipovetsky diz que a moda nos serve de guia para conseguir viver em
um mundo em que tudo muda o tempo todo, e ela também nos ajuda a criar
uma identidade que não é de jeito algum, algo sólido nos dias de hoje, mas toda
roupa fornece um significado, e as escolhemos por um motivo.

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O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS │ UNIDADE IV

A arte para Svendsen (2010) sempre esteve entre o capital e a arte, por vezes tendo
que ignorar seu lado artístico em prol do financeiro. Ainda que a alta-costura tenha
perdido o seu poder de norma, ela ainda influencia, seja pela publicidade ou de seu
próprio poder de marca, e ainda faz parte da economia, mesmo que não da forma como
aconteceu em seus dias gloriosos. A moda tem se transformado ao longo dos anos, e
hoje é difícil falar sobre moda da mesma forma que falamos na unidade I, por exemplo,
tais são suas mais diversas variações. Mas hoje domina-se o pluralismo estilístico, em
que existe inúmeras opções de modas e estilos a serem consumidos.

Assim como a arte, a moda é uma cultura material que expressa diversos significados
e pode ser observada sob diversas perspectivas. Ambas são geradas e criadas por meio
de uma rede cultural que envolve segundo Crane (2011, p.13) “criadores culturais,
vendedores, compradores e público”, mas que estariam sendo suplantadas pelo advento
da globalização, das multinacionais com imenso recurso econômico que acabaria por
exercer poderosas influências sobre essa forma de cultura.

A arte sempre foi considerada alta cultura, a pintura, teatro, as artes plásticas, a
dança, por exemplo, enquadrar-se-iam nessa classificação em oposição ao cinema de
Hollywood, à televisão, música popular e a moda, partes da cultura popular que possui
interesses comerciais. O termo cultura popular é de certa forma utilizado com sentido
pejorativo, quando se eleva um tipo de cultura – elite – em detrimento de outro –
massas. Hoje, essa cultura é pluralista. A moda e o design do luxo contribuíram ainda
no século passado para que essa linha divisória fosse diluída, quando passam a fazer
parte de ambas as culturas. Não existe mais um padrão universal de qualidade, pois
ambas as culturas são socialmente construídas.

As obras de Marcel Duchamp na virada do século continham uma crítica ao que era
considerado, ainda, alta cultura: ao expor um mictório, um objeto banal como obra de
arte, ele demonstra que a alta cultura é intercambiável com a cultura popular. O debate
nessa época não chegou a uma conclusão específica, apenas deixou claro que o consenso
quanto à natureza da alta cultura contemporânea é algo difícil a se chegar, apenas que
esse tipo de cultura é produzido, mantido e exposto em classes sociais elevadas.

Hoje, a cultura popular que é difundida para a massa não cabe mais no estereótipo
da cultura popular de antes. O uso da tecnologia para a produção de objetos
culturais tornou a cultura popular uma cultura de vanguarda. A alta cultura não é
mais considerada superior e nem as culturas dominantes mais importantes que as
culturas das minorias, devido às mudanças políticas, sociais e culturais entre os
grupos das sociedades, pois todos os diversos tipos de culturas misturam aspectos
e temporalidades de outras culturas.

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UNIDADE IV │ O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS

A pluralidade proporcionou espaço para que diferentes materiais fossem utilizados


na produção do vestuário, dialogando com a criatividade e a inovação dos estilistas
pós-modernos. A tecnologia também proporcionou, especialmente nos dias de hoje,
a criação de novos materiais para a confecção e para a apresentação da moda, ao
alterarem o contexto em qual seu trabalho é exibido. Criam linguagens dentro do
universo da moda.

A cultura midiática forneceu os “bancos de dados visuais”, que são


constantemente redisseminados, e tornam o passado imediatamente
disponível de um modo antes impossível, um fenômeno que permite
aos estilistas pós-modernos tirar proveito dos multissignificados
que ficaram ligados a objetos e estilos do passado distante e recente
(CRANE, 2011, p.76).

Com o processo da globalização, novas marcas surgem a cada dia e, segundo


a autora, o tamanho do negócio influencia muito na inovação produzida pela
marca: grandes marcas tendem a ser administrada por gestores e foquem na
diversificação de seus produtos, deixando de lado a inovação. As pequenas
marcas por outro lado, concentram-se mais nos designs do vestuário em si, tanto
pelo fato de seus criadores estarem mais próximos dos consumidores quanto
pela abordagem mais inovadora em suas criações. A autora explica o declínio da
alta-costura por essa lógica: essas empresas expandiram-se tanto em produção
e diversificação de produtos (perfumes, calçados, acessórios etc.), que a alta-
costura em si se tornou apenas uma das muitas atividades do negócio.

As imagens no mundo contemporâneo possuem muito poder: constroem


mitologias, são transformadas em divindades capazes de transferir desejos às
coisas, contribuindo para que os objetos de consumo detenham significados
simbólicos e se tornem prioridade na vida dos indivíduos. O consumo não se
utiliza da razão, mas sim da emoção dos sujeitos, utilizando sempre o desejo
como alimento insaciável – Sant’anna (2009) diz que o desejo é algo totalmente
antropofágico, pois se alimenta dele próprio em um ciclo que não tem fim.
O marketing e a publicidade surgem para transformar esses desejos em algo
concreto.

A sustentabilidade no design de moda


Existe hoje na sociedade, um movimento de conscientização do consumo, visto por
alguns como uma moda, algo passageiro, mas que também é desconstrução que pode
causar espanto. Esse movimento procura conter a forma de consumo excessivo que

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O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS │ UNIDADE IV

vivemos desde o século passado, pela acumulação de bens e serviços apenas para
satisfazer nossos desejos.

Entram em choque dois mundos: o mundo baseado no eu e na competição com


o outro e o mundo em que colaboração e empatia vão abrindo passagem.

As transformações trazidas pela tecnologia e pela internet abriram espaço para


novas transformações. Afinal, o mundo muda, e nós também. O sistema capitalista
proporcionou em dois séculos incontáveis experiências e inovações. Mas hoje
pode-se ver que, apesar de ser maravilhoso, ele também gera desastres e inúmeros
impactos negativos nas sociedades. Até na moda, existe uma visão de que ela
está se autodestruindo: com um volume cada vez maior e mais rápido, a moda
acaba banalizando seus produtos e suas coleções e suas ações que não possuem
relevância no mundo complexo que vivemos; aniquila o desejo pela moda pois não
é possível atender seus próprios desejos de consumo e realização.

Em meio ao caos, podemos também ver isso como um momento de ruptura, o


encerramento de um período e a transição para outro. O consumo como parte da
vida dos indivíduos também segue essa transição, e é o que vemos hoje: mudaram
as formas de consumir, ou ao menos, procura-se mudar. Somos levados a conhecer
os erros que vivemos cometendo e a mudá-los.

Conectado à ideia de conscientização, encontram-se outros aspectos relevantes


que contribuem para que o tema desperte consciência nas pessoas dos mais
variados estilos de vida, como a sustentabilidade, por exemplo. Que mais do
que apenas preocupar-se com o meio ambiente, preocupa-se com os recursos
humanos e naturais utilizados no processo de produção capitalista, em que ambos
influenciam no próprio meio ambiente. A atenção a esse conceito deve ser levada
a sério, especialmente na esfera da moda, em que ele se abre para mais tópicos.

O conhecimento sobre como chegamos até esse nível de consumo, a preocupação


com o meio ambiente nos processos de produção e confecção dos produtos de
vestuário e da extração de matériaprima, a preocupação com a mão de obra nas
produções, que fizeram com que o debate sobre a escravidão surgisse em termos
contemporâneos a preocupação com a obsolescência programada e o destino
dos produtos após seus “prazos de validade”, a preocupação com a visibilidade e
transparências das marcas com responsabilidades a esses valores a ressignificação
do vestuário em nossas vidas a preocupação com a valorização das roupas, como
a noção do processo pelo qual ela passou e a valorização de cada etapa a fim de

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UNIDADE IV │ O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS

combater a obsolescência: inseridas aqui todas preocupações, mostrando que


todas estão interligadas a fim de compreender como consumimos a moda hoje.

O hiperconsumo

Uma frase de Lipovetsky (2007, p.344) pode ser utilizada para sintetizar esse
momento que vivemos hoje, da conscientização do consumo, que, para ele, “trata-
se de comprar de maneira ‘inteligente’, como um sujeito, não como um fantoche-
consumidor”. A moda, ao longo das décadas, funcionou como um dispositivo de
criação de necessidades e desejos, por meio de seus signos, tornando possível
que o funcionamento do consumo fosse ocorrendo cada vez mais exageradamente.
O enriquecimento econômico das pessoas, trazido pela globalização e pelo
aumento das produções de bens e consumos, trouxe novas formas de desejo e
de necessidades, sempre com prazos de validades. Como vimos anteriormente, o
pressuposto da moda foi a diferenciação, seja pelas classes, seja pelas identidades.
Mas quanto mais se consome, mais se quer consumir. É o ciclo do consumo.

O primeiro momento do capitalismo ocorreu entre o final do século XIX até a


Segunda Guerra Mundial, e a principal característica foi o aumento da produção
industrial e o desenvolvimento de tecnologias. A produção em massa fez com
que o lucro se tornasse mais importante que a qualidade, acabando por formar
o consumidor moderno. Surgem também nesse momento, as marcas e o início de
seus significados, que serviriam até hoje como forma de agregar sentido e sedução
aos produtos.

O segundo momento entra na década de 1950, em que as pessoas passaram a ter


maior poder aquisitivo, o que significava aumento na produção e nos prazos de
validades mais curtos. A individualização do consumo desenvolve-se nessa fase
do capitalismo, e o que importa é a satisfação dos desejos imediatos em função do
status social e da opinião alheia.

O “consumo emocional” dialoga com os sentimentos dos consumidores e, por


intermédio da mídia, produz novas necessidades que se apoiem nos sentimentos.
Esse é o terceiro momento do capitalismo, que marca a hiperindividualização,
em que o sujeito foca em si, em seus desejos e ideais que fazem com que, por
meio das mercadorias, ele vá na busca por si próprio – identidade, como vimos
anteriormente: “numa época em que as tradições, a religião, a política são menos
produtoras de identidade central, o consumo encarrega-se cada vez melhor de
uma nova função identitária” (LIPOVETSKY, 2007, pp. 44-45).

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O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS │ UNIDADE IV

Na sociedade do hiperconsumo – que prega pelos desejos do agora –, existiria um


momento em que novas maneiras de produzir e de se consumir seriam inventadas,
assim como novas formas de avaliação do consumo e da própria felicidade.

O consumo narcísico

A psicologia ajuda na compreensão do que é na verdade, esse desejo de consumo.


Em face a um mundo em que se é bombardeado de informação, seja visual,
informativa, e até mesmo sonora, o sujeito se torna cada vez mais individualizado
e seu desejo ainda continua sendo o de despertar a admiração do outro, mas ainda
mais forte, é sua vontade de suprir seus próprios desejos e preencher seus próprios
vazios existenciais.

O narcisismo pode ser utilizado para explicar o consumo individualista da


contemporaneidade, porém, deve ser diferenciado do narcisismo proposto por
Freud no século passado, que dizia muito mais sobre o autoamor. O narcisismo
contemporâneo parte do sofrimento psíquico do ser humano e age como uma
espécie de mecanismo de defesa e sobrevivência, para Lasch (1983) citado por
Almeida e Held (2018, p.124); na sociedade hostil em que vivemos, com o mal-estar
do sujeito contemporâneo, que necessita suprir seus desejos imediatos em função
da sobrevivência. O sujeito age com indiferença com seus próprios sentimentos,
quando tenta se convencer de que seu bem-estar pode ser conquistado a partir do
consumo. Ele não busca mais o prazer no outro, mas em si próprio, de forma que
essa nova busca pelo prazer se torna algo característico dos sujeitos contemporâneos.

A gratificação imediata que fala Lasch (1983) citado por Almeida e Held (2018,
p.124), importa mais do que o interesse pelo mundo exterior a ele. O consumo
funciona como uma forma de afastar o indivíduo do mundo, oferecendo a ele
“segurança” e felicidade. Mas na verdade, quanto mais se consome, mais o ser
humano experimenta as sensações de incompletude, vazio, solidão e insegurança,
pois ele se afasta do social por uma ilusão da felicidade e do bem-estar. Como
já vimos anteriormente, é a partir da sociedade e da cultura que os sujeitos se
constroem, então, quando o indivíduo se afasta disso tudo por uma ilusão de
completude pelo consumo, esses sentimentos de negatividade surgem e fazem
com que um novo ciclo se projete na vida dele: o do consumo infinito, na ilusão
de preencher os vazios. O consumidor sempre vai desejar um produto que lhe
traga satisfação infinita, mas esse produto não existe. “Haverá sempre um abismo
entre o produto tal como imaginado e o objeto real” (SVENDSEN, 2010, p.131), e
é o que já estudamos anteriormente, quando vimos o vestuário representado e o

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UNIDADE IV │ O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS

vestuário real de Barthes: o desejo sempre será pelo vestuário representado, mas
só poderemos ter o real.

Ainda que não haja uma “lavagem cerebral” nos consumidores, por parte das marcas
e do marketing, uma vez que ele pode sim tomar decisões por conta própria, existe o
consenso sobre o consumo como forma de preencher os vazios existenciais produzidos
pelas sociedades globalizadas.

Dessa forma, o consumo é mais do que apenas econômico, é algo psicológico, e pode ser
visto como um ato social.

O descarte e a escravidão contemporânea

A partir do momento em que objetos passam a ser apenas auxílio para o indivíduo,
uma nova forma de consumo passa a existir e a aumentar cada vez mais, uma em
que os objetos são totalmente descartáveis, possuem prazos pequenos de vida
pois logo serão substituídos por outros, o que alimenta o ritmo da produção de
consumo. O consumidor projeta uma expectativa sobre o objeto cada vez mais
novo, já que o velho perde em pouco tempo seu desejo de encantar.

“Que é que seduz, na compra de produtos não correntes, a não ser, ao menos em parte,
a emoção nova, por mínimo que seja, que acompanha a aquisição de uma coisa?”
(LIPOVETSKY, 2007, p.67). O autor joga a questão e nos faz refletir sobre como tal
emoção é momentânea, visto que por maior que ela seja, vai ser logo esquecida e haverá
outra forte necessidade de ir atrás de tal emoção novamente.

Para Almeida e Held (2018, p.127), o excesso é aliado do lixo, pois as pessoas
esperam que os ciclos regenerativos da Terra deem conta de tanto consumo e
descarte, e que, por meio do consumo, suas situações sociais e emocionais
melhorem, sem prestar atenção ao processo de consumo ao qual dão continuidade.

O ato de descartar objetos, em uma sociedade violenta e de aparências, que


prioriza o agora, o saciar os desejos sempre do agora, faz com que pessoas
também sejam passíveis de serem descartadas por outras pessoas. Tanto como
forma de autopreservação, quanto pela nova significação das utilidades das
coisas, e o corpo sendo cada vez mais transformado em um objeto de consumo.

É nesse cenário que entra um movimento que tem ganhado destaque nos
jornais, canais eletrônicos de notícias e, principalmente, debates sobre moda e
sustentabilidade, em que a questão da produção do vestuário e a sua investigação
agem como forma de conscientizar a população a respeito da negativa forma

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O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS │ UNIDADE IV

como nascem os produtos de moda: a questão da escravidão contemporânea pode


soar como algo novo, mas sempre existiu. Apenas nos últimos anos é que se fala
abertamente sobre isso.

Nunca foi segredo que a indústria da moda, assim como qualquer outra, desloca a
maior parte de sua produção em países emergentes, como China, Camboja, Índia e
Bangladesh. Nunca foi uma preocupação alarmante, no entanto, as situações precárias
e a forma de trabalho a que são submetidos os funcionários da indústria têxtil nesses
países. Com as questões e preocupações a respeito da sustentabilidade e do consumo
consciente de moda, pôde-se tratar do assunto ao expor essas realidades e cobrar as
grandes marcas de suas responsabilidades sociais e ambientais.

Após o desastre de 2013, em Bangladesh, em que um edifício que abrigava confecções


da indústria têxtil desabou, matando mais de mil funcionários e expondo as situações
análogas à escravidão, utilização de mão de obra escrava e infantil que as grandes
marcas bancavam, amplia-se o debate sobre as situações de produção da moda, e sobre
o real valor da moda nos dias de hoje.

A pobreza, a mão de obra barata e as leis favorecem o desemprego e o desespero,


fazendo com que pessoas se submetam a esse tipo de trabalho, não possuindo meios
de negociações e sendo exploradas por tão pouco. Muitas vezes, uma peça que custa
R$50,00 gerou um lucro microscópico para quem a produziu, numa dessas inúmeras
fábricas chinesas, por exemplo. A moda barata e colonizadora, segundo Lee (2009,
p.15), é o que mais atrai os consumidores, que ignoram o preço real da peça, que conta
com jornada excessiva de trabalho, salários baixíssimos e degradantes situações de
trabalho sem intervalos para ir ao banheiro ou comer. Isso sem mencionar o trabalho
escravo. Sai mesmo barato, no final das contas?

Segundo a pesquisa de Almeida e Held (2018, pp. 127-128), a plataforma Walk Free
Foundation (Fundação Internacional que luta contra a escravidão moderna) revelou
que até 2017, 40 milhões de pessoas no mundo trabalhavam em regimes análogos à
escravidão e, constitui-se por escravidão contemporânea o tráfico de pessoas, trabalho
forçado, trabalho sem remuneração, servidão por dívida, e casos em que os filhos
dos funcionários tornam-se “propriedades” dos empregadores, casamento forçado,
retenção de salários, trabalho infantil, péssimas condições de trabalho.

A escravidão contemporânea tornou as pessoas descartáveis. O


desemprego e o desespero fazem com que homens e mulheres sejam
escravizados por poucos reais, aliciados por “gatos” que os levam para
regiões distantes de sua origem, onde não se veem em condições de sair
dessa situação (OLIVEIRA, 2010 apud ALMEIDA; HELD, 2018, p.128).

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UNIDADE IV │ O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS

No Brasil, o Ministério do Trabalho e Empregos (MTE) apurou que, a partir de 2013,


os casos de escravidão contemporânea eram encontrados majoritariamente na zona
urbana dos grandes centros econômicos do país, em setores da construção civil e têxtil.

Por muito tempo, houve a neutralização dessas práticas, pois em primeiro plano sempre
esteve o desejo de consumir mais e mais, e a imagem social que esse consumo ajudava a
criar sobre a identidade dos consumidores. A individualidade e o narcisismo levaram o
indivíduo a nem sequer se perguntar se haveria algo de errado por trás de seus desejos
imediatos para o meio ambiente e para a sociedade. O diálogo e a exposição de tantos
casos envolvendo a exploração da mão de obra na moda e o tráfico de pessoas abriu
espaço para se pensar a sustentabilidade por completo e permitiu ao designer agir
responsavelmente.

A organização Repórter Brasil desenvolveu, em conjunto com o Ministério do Trabalho,


um aplicativo chamado Moda Livre, que exibe um ranking das empresas de moda ao
analisar as denúncias que já receberam e suas posturas e dados de forma transparente.

Para Carvalhal (2016, p.26), nós “deixamos de nos ver como parte da natureza e do
outro”, pois perdemos o propósito com o planeta para nos satisfazer com nossos
próprios interesses.

O documentário The True Cost (2016, disponível na Netflix) expõe como a


indústria da moda está envolvida com a exploração tanto de pessoas quanto de
meio ambiente, atentando aos discursos das marcas para mascarar ou neutralizar
esses atos e denunciando o consumo no ocidente. Dialoga sobre a pressão dos
consumidores por produtos de baixo custo e a exploração dos trabalhadores nas
fábricas têxteis.

O documentário River Blue (2016) traz uma abordagem sob o ponto de vista do
ecossistema e como ele é afetado pela indústria têxtil, mostrando a degradação
dos principais rios desses países pobres que recebem toda a produção têxtil, e
a forma com que as pessoas passam a ter que viver em meio à tanta poluição
química despejada pelas fábricas têxteis.

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O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS │ UNIDADE IV

A sustentabilidade no design de moda e o ciclo de


vida do produto

Você sabe quais são as etapas do ciclo de vida de um produto?

1. Pré-produção.

2. Produção.

3. Distribuição.

4. Uso.

5. Descarte.

E quanto ao significado de sustentabilidade? Ao contrário do que se imagina, o termo


sustentabilidade não favorece apenas e somente o meio ambiente: a sustentabilidade
baseia-se em 3 pilares:

» o social;

» o ambiental;

» e o econômico.

Você consegue traçar a relação entre os pilares da sustentabilidade e as etapas de vida


de um produto? Consegue perceber que dentro da sustentabilidade, um pilar influencia
o outro e vice e versa? E que todos os pilares interferem em cada etapa do ciclo de vida?
É assim que a sustentabilidade deve ser pensada.

O conceito do Desenvolvimento Sustentável apareceu pela primeira vez em 1987,


exposto no Relatório de Brundtland, organizado pela ONU, e foi definido como “aquele
que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras
gerações de satisfazer suas próprias necessidades” (BRIAN, 2008, p.20). Com o passar
do tempo, esse conceito foi sendo incorporado na sociedade e, então, definido a partir
dos três pilares.

A preocupação do design e a forma com que ele deve ser pensado hoje, está relacionado
aos processos da sustentabilidade, pois algo sustentável deve possuir como requisito
básico: a utilização de recursos renováveis, otimizar o emprego de recursos não
renováveis e acima de tudo, não acumular lixo.

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UNIDADE IV │ O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS

Para Cardoso (2008, p.125), “O design tem exercido historicamente a tarefa de criar
objetos de uso. [...] a falha trágica do design é que todas as formas são efêmeras, em
maior ou menor grau.”

O design está diretamente ligado à questão da sustentabilidade para atender às


demandas sem deixar de se preocupar com o destino que os produtos terão após o
descarte. Isso torna extremamente importante que análises acerca do ciclo de vida de
um sistema-produto sejam realizadas para o desenvolvimento de qualquer projeto.
Não adianta produzir e não se importar com o descarte, só porque você não vê onde
esse descarte se dá. Quase não existe mais lugar para tanto descarte material. O lixo é
enviado a países pobres, é “exportado” para fora como uma mercadoria. Até quando?

A inovação tornou-se a principal premissa no campo do design, que busca por novas
soluções para os problemas que a sociedade enfrenta e possa vir a enfrentar. O
consumo consciente pode ser considerado uma forma de inovação, em que as marcas
assumirão o mesmo compromisso na hora da produção. A questão ambiental, social
e econômica se tornou um dos principais desafios ao designer nos dias de hoje. Não
basta apenas criar. Deve-se ter a responsabilidade pelo serviço-produto até o fim.

O Ecodesign tem como função diminuir o impacto do ser humano no planeta. Trata
também da redução do impacto de um produto, ao conservar suas qualidades de
uso, funcionalidade e desempenho. Para a eco concepção de um produto por meio
do design, considera-se o ciclo de vida de um produto e pode-se atribuir ao serviço/
produto um destino sustentável após a perda de sua função inicial, de uma forma
que não prejudique o meio ambiente.

A questão principal com relação à sustentabilidade na moda é a oposição entre as


duas: a moda cria tendências e efemeridade, causando desejo desenfreado pelo
consumo e gerando prejuízos ao meio ambiente, seja utilizando recursos naturais
ou produzindo a partir de mão de obra escrava. A preocupação com a vida limitada e
obsoleta dos produtos é a premissa da sustentabilidade. Uma forma de tentar alterar
esse cenário de consumo é aumentar o tempo de vida do produto, que não mais
necessariamente exista apenas para ser incluído em uma temporada, ou tendência.

Quando adquirem novos usos, os artefatos ganham uma sobrevida às vezes muito
maior do que à “vida útil” que lhes foi atribuída por seus fabricantes. É nisso que
se insere o diálogo sobre o ciclo de vida dos produtos. O ciclo de vida do produto
é realmente um ciclo. De nascimento e renascimento. Ou deveria ser. Atualmente,
os designers buscam alternativas de reaproveitamento dos objetos após o descarte,
apesar da dificuldade em fechar o ciclo. O que compõe o ciclo de vida vai desde a

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O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS │ UNIDADE IV

fabricação até o descarte do objeto, mas ele não desaparece no mesmo instante. E
vivemos uma gravíssima crise ambiental.

Cardoso (2008) cita algumas formas de reverter o fim de um produto, e a primeira delas
é a reversibilidade, que consiste em aproveitamento imediato de peças de produtos
que possam ser desmontados, diminuindo o acúmulo de lixo. É o caso do design para
o desmonte, utilizado na indústria automobilística. Compreende como parte desse
sistema ainda, o sistema modular do design.

É aí que o consumo consciente passa a atuar na nossa relação com as roupas, nos novos
significados que elas terão para nós e para o mundo. É por isso que cada vez mais vêm
se notando uma crescente preocupação em mudar isso.

De fato, verificamos que a moda pode, sim, adotar práticas de


sustentabilidade, criando produtos que demonstrem sua consciência
diante das questões sociais e ambientais que se apresentam hoje em
nosso planeta, e pode, ao mesmo tempo, expressar as ansiedades e
desejos de quem a consome. Afinal, a moda não apenas nos espelha –
ela nos expressa (BERLIM, 2012, p. 13).

Ruptura no sistema de moda e a transparência de


marcas que dialogam com ideologias e causas

Para André Carvalhal (2014), os consumidores pós-modernos escolhem as marcas


não mais apenas pela qualidade ou preço, mas sim pelo significado simbólico que elas
carregam e pelo poder de representação que elas possuem. O sucesso está ancorado
na capacidade que as marcas possuem de significar algo para as pessoas, que as ajude
a alimentar sua identidade não somente vendendo um produto, mas um estilo de vida
com imaginários, ideais, valores que desencadeiem afetividade com o sujeito.

Por isso mesmo que hoje as pessoas estão mais à procura de saber o que existe por trás
das marcas, como uma forma de buscar conexões e como uma busca por marcas que
sejam “reais” para se relacionar. É muito importante, portanto, que a própria marca
tenha plena consciência de sua existência, seus conceitos, e principalmente, suas
responsabilidades e causas. Assim como as pessoas, as marcas também têm seu papel
no mundo. Tudo o que ela criar, deve conter o que ela acredita e defende.

Pensando nos erros, quem consome algo vai querer participar mais do
processo de melhorias, levando em conta que as empresas têm uma
força de imposição cada vez menor. Praticar a autocrítica e a retratação

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UNIDADE IV │ O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS

pública é uma força perceptível aos olhos de quem consome (LAFA,


2018).

As marcas nos últimos anos têm passado por transformações muitas vezes radicais, em
seu discurso sobre valores morais que não necessariamente, são os valores apenas de
seu nicho mercadológico. Os novos consumidores esperam posicionamento de todas
as marcas no geral, visto que as causas sociais, econômicas e políticas são diversas.
Não consumimos mais as marcas estampadas nas roupas e acessórios como status.
Procuramos na moda coisas que nos representem e representem nossas ideias, e que
dialoguem com as nossas vivências e ética. Questionamos o papel social das marcas. O
status não é mais financeiro, ele é ideológico, e as marcas já começaram a se alinhar
com as principais causas da atualidade.

O termo transparência vem aparecendo com muito mais frequência nos nossos dias
hoje; queremos transparência em tudo, até mesmo nas empresas. Antes não sabíamos
de onde vinham e como eram produzidos nossos produtos. Era muito bom permanecer
na ignorância, não é mesmo? Mas hoje, a transparência nos ajuda a compreender
melhor esse mundo complexo e a nos conscientizar com as causas. A relação entre
marca e consumidor também evoluiu para a transparência. O consumidor quer saber o
que se passa na cadeia produtiva dos produtos, e as marcas cada vez mais têm tido que
se adaptar a isso.

A política de transparência é um índice desenvolvido pelo movimento Fashion


Revolution (2018) que consiste em uma análise das grandes marcas e suas formas de
informar aos seus consumidores suas cadeias produtivas de fornecimento da moda
como forma de conscientizar sobre as responsabilidades e o impacto socioambiental
das empresas do setor.

Ainda hoje as grandes marcas seguem “escondendo o jogo”, tornando quase impossível
encontrar alguma informação sobre a sua produção têxtil em seus produtos, websites ou
relatórios imensos, isso quando estão mesmo disponíveis. O projeto procura despertar
uma consciência maior sobre a questão da transparência e das responsabilidades que a
marca evita ter com relação ao meio ambiente e à sociedade, ajudando-as a serem vistas
como aliadas e aos consumidores a fazer escolhas conscientes no que consomem.

Algumas marcas analisadas no ano de 2018 mostraram crescimento no índice de


transparência, o que já é algo bom, significando que a pressão dos consumidores e dos
movimentos sobre essas marcas de alguma forma funciona.

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O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS │ UNIDADE IV

Segundo o movimento Fashion Revolution, é a partir da transparência que as marcas


prestam contas e pode-se mudar algo nesse ciclo destrutivo. Permanecer às escuras não
ajuda ninguém, só às próprias marcas.

O projeto conta com cinco tópicos fundamentais de análise:

» Políticas e compromissos.

» Governança.

» Rastreabilidade.

» Conhecer, comunicar, resolver.

» Tópicos em destaque.

O combate a situações análogas à escravidão, políticas relativas aos direitos humanos,


rastreabilidade dos produtos, salários justos, emissões de carbono, redução do nível de
energia, projetos de proteção à biodiversidade, tudo é fator a ser analisado dentro das
marcas. Isso desperta a consciência de consumo dos consumidores e impulsiona uma
nova era para as marcas, em que elas estejam mais próximas das causas realmente
importantes enquanto ainda sejam partes do sistema capitalista global.

Conceitos do consumo consciente

O consumidor que emerge diante desse cenário é o consumidor que se posiciona e


considera as consequências de seu consumo, utilizando a compra para promover alguma
mudança social, seja consumindo de empresas e marcas responsáveis ou deixando de
consumir – boicotando aquelas que não possuem um comportamento que dialoguem
com seus ideais. Eles buscam informações sobre as roupas que usam, e a transparência
surge para que as marcas comecem a expor essas informações.

As pessoas nascidas a partir de 1980 (os millennials) têm maus


consciência e preocupação em relação a meio ambiente, questões sociais
e, principalmente, o que estão ingerindo. Nasceram num mundo mais
acelerado e valorizam desacelerar (CARVALHAL, 2016, p.51)

O conceito de autoconhecimento que vem sendo difundido na cultura contemporânea,


também é um fator que influencia na decisão de compra e pela adoção de um consumo
mais consciente, fazendo que a moda se torne mais leve e a sua difusão, menos
publicitária, pois não é o marketing que vai dialogar com as pessoas: existe muita
marca por aí que adora estampar em suas campanhas que apoia tal questão, que produz

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UNIDADE IV │ O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS

de forma sustentável mas muitas vezes esses discursos entram em conflito com alguma
outra característica da marca. São os valores incorporados nas práticas das marcas que
vão conseguir dialogar com os indivíduos.

As coisas que conquistamos por meio do autoconhecimento acabam por transformar


círculos pessoais e despertar para uma valorização da consciência enquanto marcas e
indivíduos.

Alguns conceitos e propostas de comportamento surgidos na última década nos ajudam


pensar sobre a forma como consumimos as modas e as roupas, que inspiram a moda
dos próximos anos.

Slow Fashion

Derivado do Slow Design, que destaca que o papel do design deve ser fundamentado
em três aspectos: o individual, o sociocultural e o bem-estar ambiental. A produção
é feita de forma lenta e reflexiva, levando em conta os resultados a serem alcançados
pelo produto. Eleva o design para além da fabricação para o consumo. Não se trata
mais de só produzir, vender e lucrar. Deve-se pensar no futuro do meio ambiente e
da sociedade. O Slow Fashion, então, “conjuga prazer em criar, inventar e inovar com
prazer em consumir” (BERLIM, 2012, p. 54), resultando num despertar consciente com
o consumo desenfreado da moda, utilizando-se da criatividade para desenvolver algo
sem pressa, mas com qualidade para assim encontrar a sustentabilidade na moda.

Armário Cápsula

Surgiu lá na década de 1970, mas foi trazido de volta em meados de 2015, por uma norte-
americana chamada Caroline Rector e consistia em um armário com 37 peças de roupas
versáteis para serem usadas em todas as estações do ano. “A ideia era consumir menos
e com mais consciência, já que durante três meses as mesmas roupas seriam usadas
e na mudança de estação apenas se compraria o que fosse essencial. Dessa forma, as
peças seriam atemporais e duráveis” (ALMEIDA; LOURENZO; HELD, 2017, p. 99).

Lowsumerism

Baixo consumo, menos é mais, ou até mesmo, consumo equilibrado (BIZ, 2015) –
tornou-se famoso em 2015, quando a empresa especializada em pesquisas e conteúdo
de tendências Box1824, por meio de um vídeo na plataforma Youtube, apresentou
de maneira clara a autodestruição que os processos do consumo vem causando ao
planeta. A ideia de viver com o necessário desperta a curiosidade e a consciência
de um consumo que respeite os ritmos do planeta e das pessoas. Mas o consumo

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desenfreado faz parte da nossa cultura, então, como consumir menos e de forma
consciente?

O vídeo, ao propor o questionamento sobre nossos hábitos de consumo, também


nos faz pensar que não adianta procurar por culpados na história, só o que podemos
fazer é contribuir para que essa autodestruição seja revertida, ou até mesmo parada.
O Lowumerism diz que hábitos individuais importam, pois pequenas atitudes geram
impactos. É fugir dos poderes dominantes. E o ano de 2010 proporcionou uma série de
narrativas que ajudaram esse conceito a ser aceito pela sociedade: ocorreu o boom da
chamada economia compartilhada, que tornou possível novas perspectivas das pessoas
sobre esse tipo de consumo.

Ideologias podem ser sazonais, mas elas se constroem a partir de um processo evolutivo


que se apoia nos erros do passado para transcender o presente rumo a um futuro mais
próspero. A noção da redução do consumo logo estará tão enraizada que dificilmente
voltaremos a aplaudir o excesso (BIZ, 2015).

No Noise Branding

O conceito de branding do silêncio (No Noise Branding) surge com uma proposta
de clarear e minimalizar o excesso visual contido nas identidades visuais das marcas,
desde o conteúdo gráfico – materiais – ao conteúdo digital. Afinal,

“Vive-se em um mundo caótico em que resgatar a quietude é um resgate


também ao equilíbrio e ao pensamento. Consome-se muita informação
em todo lugar, a todo momento. E essa quietude passou a influenciar
também as relações de consumo e de comunicação” (ALMEIDA;
LOURENZO; HELD, 2017, p.100).

Em prol de uma comunicação mais simples e menos invasivo, as marcas têm optado
por adotar essa postura mais minimalista, que preza pela experiência mais simples.

Jardim Secreto Fair

Foi idealizado em 2013 e propõe o consumo consciente de produções nacionais e


artesanais. A feira realizada em São Paulo possui 4 edições anuais e reúne mais
de 200 expositores de pequenas produções, que trabalham de alguma forma
com alguns dos pilares da sustentabilidade, do empoderamento, do artesanal, da
economia colaborativa e coletiva e do consumo consciente.

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UNIDADE IV │ O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS

Fashion Revolution

É um movimento global que faz campanha a favor de uma moda mais consciente e mais
transparente em sua cadeia de produção. No Brasil, há 5 anos, a ideia é conscientizar
sobre os impactos socioambientais, procurando mudar a forma como pensamos a
moda, com perguntas do tipo: “Quem faz minhas roupas?” – é a campanha atual do
movimento, que nos leva a questionar como funcionam as produções da peça de roupa
em todo o ciclo da cadeia. Incentivam a transparência nas marcas e realizam eventos
como o Fashion Revolution Week.

Figura 13. Movimento Fashion Revolution, transparência na Moda.

Fonte: Fashion Revolution Brasil/divulgação. 2018. Costureira segurando a placa do movimento “Quem faz minhas roupas?”.
Disponível em: https://www.fashionrevolution.org/brazil-blog/transparencia-e-tendencia-indice-de-transparencia-da-moda-
brasil/. Acesso em: 18/2/2020.

Zero waste

Zero waste, ou lixo zero, é um movimento que promove a não produção de lixo, ou pelo
menos, a redução e a produção consciente do lixo, ao fazer com que o indivíduo pense e
repense sobre o descarte dos produtos que consome. Isso acaba por se tornar um estilo
de vida, pensar sobre as funções e os usos de um produto que não necessariamente
precisa ter um tempo programado de descarte. O vestuário se inclui nesse movimento
também, de acordo com Cannalonga (2015). Isso mostra como o consumo, nos dias
de hoje, promove uma abordagem em que ele se alinha com os valores das pessoas a
respeito da sociedade.

Banco de tecido

É um espaço físico que reúne retalhos, sobras e cortes de tecido que qualquer pessoa
pode comprar ou até mesmo depositar tecidos. É uma alternativa ao material de
descarte das confecções, que não são reutilizados e iriam para o lixo. Funciona como
compra/venda e troca. E o melhor é que os tecidos voltam para o ciclo de consumo
sem gerar prejuízo para quem vende e sem impacto no meio ambiente!

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O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS │ UNIDADE IV

Reaproveitamento de resíduo têxtil e fibras recicladas

Algumas empresas têxtis já contam com a tecnologia para a utilização de resíduos que
antes era descartado e com as fibras recicladas para a produção de novos tecidos e
matérias-primas.

Upcycling

É uma técnica que reaproveita objetos para a criação de novos produtos. É conhecido
especialmente na moda, que nos últimos anos possui inúmeros adeptos e marcas que
investem na técnica como uma solução para os problemas do consumo e do descarte
de peças “ultrapassadas”. Reaproveitam resíduos têxteis para a composição de novos
designs.

Brechós

A conscientização sobre o consumo de moda propiciou o tempo e o espaço perfeito


para a volta dos brechós, especialmente os brechós on-line, em que uma curadoria e
garimpo são feitas em prol de restaurar itens antigos ou esquecidos. É uma alternativa
aos produtos que “saem de moda” e que não necessariamente precisam ir para o lixo.

Roupateca

É o primeiro guarda-roupa compartilhado do Brasil, oferece planos mensais que


permite acesso ao acervo. A pessoa paga uma mensalidade e tem direito a emprestar
x peças de roupas por vez por até 15 dias. É uma forma de diversificar o guarda-roupa
sem necessariamente comprar a peça e sem produzir descarte.

Moda Limpa

É uma plataforma colaborativa que funciona como um catálogo de fornecedores de


moda que trabalham utilizando os pilares da sustentabilidade: hoje são mais de 400
fornecedores em todo o território brasileiro. Por ser colaborativo, funciona também
como forma de indicar o trabalho de alguém que trabalhe nesse segmento sustentável.

Bio couture

Materiais e tecidos desenvolvidos a partir de organismos vivos como as bactérias,


gerando peças sustentáveis e autodegradáveis.

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Roupa Livre

Estúdio criativo que desenvolve soluções que promovem o consumo consciente de


roupas. Oferece ações para marcas e empresas, consultorias, cursos e workshops,
produção de conteúdo e pesquisas sobre a área e desenvolveu um aplicativo, o Roupa
Livre App, que funciona como um Tinder para troca de roupas. It’s a match!

Cartilha do consumo consciente

A MALHA é um empreendimento de moda do Rio de Janeiro – prestes a abrir um espaço


em São Paulo – que serve de espaço para repensar a moda da atualidade, oferecendo
espaço de coworking, escola, comunidade e laboratório de experimentação e lançou,
em 2018, uma cartilha de consumo consciente, que pode ser baixado gratuitamente em
sua plataforma lhama, no site do empreendimento: malha.cc/lhama.

“Minimalism: A documentar about the importante things” – fala sobre os hábitos


de consumo.

O valor simbólico do novo consumo


Claro que o valor simbólico dos objetos supera o valor de utilidade, porém, cada vez
mais isso deve ser repensado quando percebemos que “todas as mercadorias foram
transformadas em símbolos – e todos os símbolos foram transformados em mercadorias”
(SVENDSEN, 2010, p.138). O acúmulo de símbolos só tende a crescer, à medida
em que nós mesmos vamos mudando e mudam nossos desejos de individualidade
e diferenciação no mundo, sendo o valor simbólico das coisas fundamental para a
identidade e a autorrelização social. Não é que o consumo não vá aumentar, é que ele
está sendo praticado em um ritmo extremo. Isso significa que o consumo não está mais
totalmente ligado à satisfação das necessidades.

Com o consumo consciente, constrói-se novos símbolos e valores simbólicos


com os produtos adquiridos, e ocorre também o resgate ao valor de utilidade do
produto em prol da redução do descarte. Os termos apresentados anteriormente
contém elementos simbólicos de novas perspectivas sobre o vestuário e sobre
o consumo, de forma a permitir a reflexão do consumidor sobre a compra
e a criação de novas relações com o consumo. É muito bom ver que algumas
atitudes já estão em andamento, não é?

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O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS │ UNIDADE IV

Sabemos que os critérios de empresa ou de pessoa bem-sucedida mudaram, e hoje o


sucesso não é medido economicamente como era há alguns anos. Isso diz muito sobre
as novas formas de consumo.

Carvalhal (2016) diz que ainda existem poucas marcas que parecem interessadas
no que as pessoas vivem e estão sentindo. Mas também existem novos mercados
que entendem como as marcas se constroem e os consumidores também se
tornam cientes disso, o que facilita na cobrança de um consumo mais humano.
E, não foi apenas o consumidor que mudou: características como idade, gênero
e classe social não determina mais um tipo de público nem comportamento.
A fluidez atinge também os consumidores contemporâneos que possuem à
disposição informação sobre qualquer coisa.

Entendemos que fazemos parte de um sistema capitalista e que as marcas


precisam vender para sobreviver. Também sabemos que existem formas
menos nocivas e mais humanas de permanecer nesse ciclo global. O lucro
pode ser visto como consequência, como motivação para fazer o bem. Quanto
mais responsabilidades as empresas assumem e se propõem a corrigir os
erros do passado, mais elas vão faturar. Estamos, como sociedade cultural e
consumidora, ressignificando a moda e os produtos/serviços que consumimos
e que decidimos tornar-se parte de nossas vidas.

A moda é a segunda indústria do mundo que mais polui o meio ambiente - perdendo
apenas para a indústria do petróleo – poluindo rios com dejetos químicos, infertilizando
solos com pesticidas e fertilizantes, emissões de gases estufa no ar.

Mas é também a indústria que mais produz empregos. A que mais empodera mulheres,
ainda que esteja na transição de vincular imagens de mulheres reais. Possui o poder
de criar e disseminar tendências e comportamentos que afetem outras esferas da
sociedade. Isso é muito poder.

A veiculação de padrões negativos pela moda também está com os dias


contados. A moda daqui para frente, deve ser pensada com propósito, pois ela
é uma grande instituição na sociedade. E, como toda instituição, passa por
períodos de rupturas. Essas rupturas tendem a fazer as pessoas pensar. Preciso
ou simplesmente desejo? Qual o custo real?

Se antes as organizações contribuíam para a sociedade por meio do lucro e


do fornecimento de empregos que produzia renda para o consumo, hoje esse
panorama não funciona e não é visto com os mesmos olhos: contribuir para
a sociedade hoje, significa olhar ao redor e tentar ajudar de alguma forma na

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UNIDADE IV │ O CONTEMPORÂNEO: NOVAS LINGUAGENS

redução dos impactos e nas desigualdades econômicas, sociais e culturais. As


marcas devem contribuir, apoiando as pessoas.

Graças à internet, o conhecimento está ao alcance geral. As marcas de moda podem ter
acesso às mesmas tecnologias de produção, de criação e de gestão que as concorrentes.
O que vai diferenciar, tornar o produto valioso e fidelizar as pessoas é a forma pela qual
elas escolhem utilizar esse conhecimento.

As ações listadas anteriormente nos fazem repensar no tanto que consumimos e na


forma como consumimos, e nos leva a ressignificar esses nossos consumos e nossos
desejos. As mercadorias e os serviços passam a ter outro tipo de valor para cada um de
nós.

Ao falar menos sobre a roupa em si, abrimos espaço para pensar sobre nós mesmos.

Para a moda mudar (o mundo) é preciso mudar a forma como ensinamos, aprendemos
e trabalhamos. É preciso mudar a nossa relação com a política. E até mesmo a forma
como nos alimentamos, nos organizamos e vivemos (CARVALHAL, 2018, p.61).

A situação da moda nos dias de hoje é que não existe mais um padrão. Temos nossas
vidas nas mãos para fazer o que quisermos. A moda não é mais a única saída para a
nossa construção ou uma forma de entrada em algo. Não existe mais a dependência dos
padrões. Você consegue notar isso, em seu círculo social/familiar/de consumo?

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42cm-D_NQ_NP_751375-MLB31856532858_082019-F.jpg

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