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FERNANDA SANSÃO RAMOS MATTOS

Sociologia da Educação

1ª Edição

Brasília/DF - 2018
Autores
Fernanda Sansão Ramos Mattos

Produção
Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e
Editoração
Sumário
Organização do Livro Didático....................................................................................................................................... 4

Introdução.............................................................................................................................................................................. 6

Capítulo 1
Sociologia e Educação................................................................................................................................................. 7

Capítulo 2
Em busca de uma ciência para entender a sociedade...................................................................................28

Capítulo 3
Max Weber e a ação social....................................................................................................................................... 45

Capítulo 4
Émile Durkheim e os fatos sociais.........................................................................................................................58

Capítulo 5
Karl Marx e a educação transformadora.............................................................................................................74

Capítulo 6
Dos clássicos ao pensamento contemporâneo.................................................................................................90

Referências ..................................................................................................................................................................... 104


Organização do Livro Didático
Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em capítulos, de forma didática, objetiva e
coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros
recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também,
fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares.

A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização do Livro Didático.

Atenção

Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a


síntese/conclusão do assunto abordado.

Cuidado

Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o
aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado.

Importante

Indicado para ressaltar trechos importantes do texto.

Observe a Lei

Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem,
a fonte primária sobre um determinado assunto.

Para refletir

Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa
e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio.
É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus
sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas
conclusões.

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Organização do Livro Didático

Provocação

Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.

Saiba mais

Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões


sobre o assunto abordado.

Sintetizando

Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o


entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

Sugestão de estudo complementar

Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo,


discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso.

Posicionamento do autor

Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o
aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado.

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Introdução
A Sociologia da Educação pode ser entendida como uma área específica de estudo em que o
olhar sociológico é utilizado como forma de melhor compreender as dinâmicas da vida social,
as relações que se estabelecem no processo educativo e as disputas de força pertinentes ao fazer
educacional enquanto aspecto político da vida em sociedade.

Para estabelecer com segurança esta discussão, nosso estudo está dividido em seis capítulos.

No primeiro, justificaremos a presença da disciplina Sociologia da Educação na grade curricular


de formação docente, apresentando, de forma ampla, as contribuições das reflexões sociológicas
para o fazer cotidiano do professor.

No segundo capítulo, definiremos Sociologia enquanto estudo das sociedades, que prima pela
observação objetiva, sistemática e metódica dos fenômenos sociais, em sintonia com o tipo de
construção de conhecimento proposto pelas ciências da natureza.

Posteriormente, iniciaremos o estudo teórico dos autores clássicos da Sociologia, que se estenderá
ao longo de três capítulos. No capítulo 3 estudaremos o sociólogo alemão Max Weber; no 4 a obra
do funcionalista francês Émile Durkheim e, por fim, no capítulo 5 analisaremos a sociologia de
Karl Marx.

A compreensão do pensamento desses três autores será fundamental para que no capítulo 6
possamos analisar as correntes mais contemporâneas da Sociologia da Educação, aquelas que,
nos dias de hoje, vêm dando sustentação à reflexão teórica e metodológica a respeito da prática
docente e dos demais aspectos das relações de ensino e aprendizagem.

Esperamos que ao final deste material você tenha compreendido a importância da reflexão
sociológica para o fazer do professor, e que se sinta estimulado a desenvolver suas próprias
investigações e reflexões sobre o tema.

Objetivos
» Justificar a importância da Sociologia na grade curricular dos cursos de licenciatura,
apresentando a educação enquanto uma instituição social que precisa ser compreendida
de acordo com o contexto em que está inserida.

» Relacionar o surgimento da Sociologia com o contexto das grandes transformações da


modernidade.

» Apresentar as teorias sociológicas de Weber, Durkheim e Marx, para fundamentar todas


as reflexões posteriores sobre a educação.

» Investigar as correntes contemporâneas da Sociologia da Educação, em especial o


neocolonialismo, os estudos culturais e a Nova Sociologia da Educação.

6
CAPÍTULO
SOCIOLOGIA E EDUCAÇÃO 1
Introdução

Neste primeiro capítulo, justificaremos a presença da disciplina Sociologia da Educação na sua


grade curricular de formação docente, apresentando, de forma ampla, as contribuições das
reflexões sociológicas para o fazer cotidiano do professor.

Esperamos que, através desta discussão, você seja capaz de contextualizar a educação enquanto
uma instituição social, que precisa ser compreendida dentro dos contextos específicos em que
está inserida. Veremos ainda, que a prática cotidiana do professor precisa estar alinhada com
os desafios sociais para a educação, e que o referencial teórico da sociologia pode auxiliá-lo a
situar-se em relação a estas questões.

Objetivos

» Refletir a respeito dos fatores que fazem com que um aprendizado possa ser considerado
significativo.

» Justificar a inclusão da Sociologia da Educação nas grades dos cursos de licenciatura.

» Analisar a educação enquanto instituição social.

» Refletir a respeito dos objetivos determinados juridicamente para a educação nacional.

» Definir os conceitos de etnocentrismo, violência simbólica e relativismo cultural.

» Refletir sobre os dilemas contemporâneos da educação e a necessidade de o professor


estar preparado para lidar com eles.

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CAPÍTULO 1 • Sociologia e Educação

Por que estudar Sociologia da Educação?

Ao nos aproximarmos de uma nova temática de estudo, é comum, e inclusive desejável, que
nos indaguemos a respeito da necessidade e importância deste conhecimento, habilidade ou
competência a ser desenvolvido.

Devemos sempre tentar responder à pergunta “por que eu preciso saber sobre isso?”, pois ao
termos consciência dos usos e aplicações que poderemos fazer daquele novo conhecimento
em nossa atividade prática, estaremos muito mais engajados no processo de aprendizagem,
que deixará de ser um ato mecânico de mero cumprimento formal de uma grade disciplinar
predefinida e passará a ser significativo.

De acordo com Carl Rogers (2001), a aprendizagem significativa é aquela que vai muito além
da simples acumulação de fatos e conceitos, realmente penetrando todas as esferas da vida do
indivíduo. Este é o tipo de educação em que ocorre uma verdadeira modificação no aprendiz,
seja ela no comportamento, na personalidade, nas atitudes ou na forma como ele orientará as
suas ações futuras.

Segundo, ainda, Rogers (2001), uma das tendências mais básicas da educação, aquela em que
podemos sempre confiar, é a de que o aluno possui um desejo natural de aprender, descobrir
e aumentar seus conhecimentos e suas experiências. No entanto, esse desejo muitas vezes é
neutralizado pelo sistema educacional, que não compreende que para que uma aprendizagem
seja significativa, a matéria de estudo precisa ser percebida pelo aluno como algo relevante para
que ele atinja seus objetivos.

A pessoa aprende significantemente apenas aquilo que ela percebe como

envolvido na manutenção e engrandecimento do seu próprio eu (tendência à

autorrealização). Rogers dá como exemplo dois alunos em um curso de estatística:

um deles desenvolvendo um projeto no qual necessita usar o conteúdo, e o outro

fazendo-o apenas porque é obrigatório. Indiscutivelmente, as aprendizagens

serão diferentes. Além disso, quando o aluno percebe que o conteúdo é relevante

para atingir certo objetivo, a aprendizagem é muito mais rápida. (MOREIRA,

1999, p. 142).

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Sociologia e Educação • CAPÍTULO 1

Saiba mais

Carl Rogers foi um psicólogo americano que desenvolveu uma abordagem terapêutica que recusava a visão do paciente
como um doente que necessitava de cura, mas, sim, como um ser autônomo que precisaria
reencontrar seu próprio equilíbrio natural.

Este pensamento foi adaptado também para a educação, baseando-se na premissa de que o
aluno possui um desejo natural para o aprendizado, que se concretiza quando reduzimos os
fatores de ameaça do contexto educacional.

Algumas de suas principais obras são:


» Tornar-se pessoa (1961).
» Sobre o poder pessoal (1977).
» A pessoa como centro (1977).
» Um jeito de ser (1980).

Fonte: <https://medium.com/@dan.musashi/uma-defini%C3%A7%
C3%A3o-de-empatia-por-carl-rogers-acb7386cbfbf>

Imagine que no primeiro dia de aula no ensino superior você recebe de presente uma caixa de
ferramentas vazia e, ao longo do curso e das disciplinas, você vai equipando esta caixa com todas
as habilidades, competências e conceitos que serão, no futuro, as suas ferramentas de trabalho,
aquelas que serão utilizadas para solucionar os desafios da prática profissional. Essa caixa de
ferramentas é preciosa e, por isso, deverá ser tratada com carinho e respeito, sendo atualizada
de acordo com a transformação dos problemas a que elas se propõem a solucionar.

Iniciaremos, então, esta conversa sobre Sociologia justificando a presença dela na sua grade
curricular. Por que um professor competente precisa entender de Sociologia da Educação?
Isso é necessário, mesmo que futuramente ele vá lecionar disciplinas de outras áreas, como
Matemática ou Ciências? Por que a Sociologia da Educação merece um espacinho na minha
caixa de ferramentas?

A resposta para estas perguntas se encontra nos seguintes fatores:

» A educação é uma instituição social, portanto não pode ser compreendida separadamente
do contexto social, e a Sociologia nos ajuda a compreender este contexto.

» A Sociologia nos dá o suporte necessário para refletir criticamente sobre a prática


docente, questionando nosso papel enquanto educadores e desnaturalizando tudo o
que fazemos cotidianamente.

» A Sociologia nos auxilia a lidar com os desafios sociais contemporâneos, com os quais
o professor precisa lidar em sua prática profissional.

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CAPÍTULO 1 • Sociologia e Educação

Ao analisar esses três fatores, esperamos que fique claro para você o porquê de a compreensão
dos conceitos e reflexões da Sociologia fazerem desta disciplina uma ferramenta valiosa para
estar na sua caixa de ferramentas.

A educação enquanto instituição social

De acordo com Reinaldo Dias (2010), instituições sociais podem ser definidas como sistemas
abstratos e complexos que incorporam os valores fundamentais adotados pela sociedade,
estabelecendo um conjunto de normas, padrões de comportamento e relações sociais que deverão
ser seguidos em prol da satisfação de uma necessidade básica específica. Por se relacionarem
a temas fundamentais da vida social, são relativamente duradouras e qualquer modificação
significativa em um destes sistemas provavelmente afetará os demais.

Muito complicado? Não se preocupe, pois vamos entender cada uma das partes desta definição
utilizando como referência a instituição social da Educação, que é a que nos interessa neste
momento.

Figura 1. Exemplos de instituições sociais básicas.

Família

Economia

Instituições sociais básicas Religião

Educação

Política

Fonte: Adaptado de Dias (2010, p. 239).

Como vimos na imagem acima, existem diferentes tipos de instituições sociais, e cada uma delas
se organiza a partir de uma necessidade coletiva fundamental.

Todas as sociedades humanas possuem, por exemplo, a necessidade de transmitir às novas


gerações os conhecimentos acumulados pelas gerações anteriores, bem como de preparar seus
indivíduos mais jovens para desempenhar os papéis sociais que são esperados deles. Nenhum
de nós nasce sabendo viver em sociedade, é preciso que sejamos socializados para que passemos
a nos comportar da maneira vista como adequada.

Na tentativa de atender a esta demanda, surge a educação enquanto instituição social, um


sistema, que como afirma a definição anterior, é complexo e abstrato.

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Sociologia e Educação • CAPÍTULO 1

O primeiro ponto a ser esclarecido diz respeito à caracterização da instituição social enquanto
um sistema. Isso quer dizer que ela é composta por um conjunto de elementos que atuam de
forma integrada para o seu bom funcionamento.

Figura 2. Elementos da instituição social

Fonte: Desenvolvida a partir dos conceitos de Dias (2010, p. 239).

A complexidade deste sistema está no fato de que todos os seus elementos interagem entre si,
influenciando uns aos outros e criando, através da sua relação, algo novo, que vai além da simples
soma das partes. Imagine, por exemplo, os grandes projetos que podem ser concretizados quando
um bom professor tem acesso a recursos materiais de ponta; ou quando a secretaria de educação
consegue trabalhar de verdade em parceria com as escolas e as famílias.

No que diz respeito à abstração, queremos dizer que a instituição social existe enquanto ideia,
mas não é tangível fisicamente, sendo os elementos que a compõem responsáveis por garantir a
sua materialidade. Você sempre pode visitar o prédio da escola, cumprimentar seu professor ao
encontrá-lo na rua, segurar os livros que utiliza para estudar, mas a educação em si é algo que
você não pode enxergar ou tocar. Ela é uma ideia que organiza todos estes elementos concretos.

Prosseguindo com a análise de nossa definição inicial, temos a afirmação de que as instituições
incorporam valores que são compartilhados pela sociedade, ou, ao menos, pela sua maioria.

No caso da educação, podemos assinalar como exemplo valores como o respeito à pessoa,
a universalização da educação, a lisura na gestão dos recursos destinados às escolas, etc.
Estes valores são tão relevantes para a sociedade, que mesmo aqueles indivíduos que não se
beneficiam diretamente deles reconhecem a sua importância. Como no caso de um indivíduo
adulto, já escolarizado e sem filhos, que, ainda assim, se revolta diante de um caso de desvio
de dinheiro da merenda, de crianças em comunidades rurais que caminham horas para chegar
à escola mais próxima, etc.

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CAPÍTULO 1 • Sociologia e Educação

Estes valores servem de base reguladora para o estabelecimento do conjunto de normas,


padrões de comportamento e relações sociais a partir dos quais a instituição social buscará
atender a sua finalidade.

Figura 3. Organização das instituições sociais

Normas
Auxiliam o objetivo a ser
cumprido, sem
desrespeitar os valores

Necessidade Valores sociais Comportamentos


fundamental a ser Determinam e orientam as estratégias Auxiliam o objetivo a ser
atendida coletivas que serão usadas para o cumprido, sem
atendimento das necessidades. desrespeitar os valores

Relações
Auxiliam o objetivo a ser
cumprido, sem
desrespeitar os valores

Fonte: Desenvolvida a partir dos conceitos de Dias (2010).

A educação tem como função atender à necessidade básica de formar as novas gerações para
viver em sociedade e dominar os conhecimentos, valores e condutas acumulados pelas gerações
anteriores. A realização deste objetivo será perseguida a partir de normas, comportamentos e
relações sociais padronizadas, que jamais poderão ir contra os valores daquela sociedade.

Todos esperamos, por exemplo, que a escola seja um espaço de socialização onde os indivíduos
aprendam a controlar suas vontades individuais de acordo com as regras coletivas. A disciplina,
neste contexto, será um valor norteador para a educação, sendo criadas estratégias que nos levem
à finalidade inicial de socializar para a convivência.

Em determinado momento histórico, as punições físicas eram vistas como estratégia legítima para
atingir este valor, mas com a mudança social e a inclusão de novos valores, como o de respeito
à dignidade humana e o repúdio à tortura, as escolas precisaram se reorganizar para continuar
servindo ao seu propósito sem, contudo, ferir os valores da sociedade.

E esta é uma transformação que, normalmente, não se restringe apenas a uma das instituições
sociais, visto que estes valores perpassam toda a vida social. Há entre as instituições um alto
grau de interdependência, que faz com que as transformações ocorridas em uma delas se
multipliquem nas demais.

As instituições exercem tal influência que suas atividades ocupam um lugar central
dentro da sociedade; uma mudança drástica em uma instituição provavelmente
provocará mudanças em outras.

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Sociologia e Educação • CAPÍTULO 1

Por exemplo, as mudanças econômicas de um modo geral afetam enormemente


as outras instituições. Elas influenciarão a estabilidade da família, a capacidade
de o governo atender às demandas por seus serviços, podendo afetar até mesmo a
qualidade da educação. As mudanças que ocorrem na educação podem influenciar
os relacionamentos familiares, as instituições religiosas e o desenvolvimento
econômico. (DIAS, 2010, p. 242).

Vale destacar, no entanto, que ainda que os valores de uma sociedade eventualmente se
transformem, fazendo com que as normas, comportamentos e relações precisem ser revistas, a
finalidade básica a que se destina a instituição social é permanente, não sendo modificada com
o passar do tempo ou de acordo com os diferentes contextos sociais.

Para que haja continuidade e previsão nas relações sociais, deve haver uma certa
rotina nos procedimentos e meios aceitos de lidar com os problemas que surgem.
Cada nova geração não precisa inventar seus próprios métodos e crenças para
lidar com tais problemas; as gerações anteriores já criaram as instituições. Essas,
por sua vez, permanecerão por bastante tempo. É certo que sofrerão algumas
alterações, mas, em sua essência, elas continuaram a suprir aquelas mesmas
necessidades para as quais foram criadas. (DIAS, 2010, p. 239).

De acordo com Reinaldo Dias (2010, p. 243), esta função básica das Instituições Sociais é
composta por diferentes tópicos, que podem ser gerais – quando se aplicam a todas as Instituições
Sociais – ou específicos – quando se aplicam a apenas uma ou algumas Instituições.

No caso da educação, Dias (2010, p. 243) apresenta a seguinte relação de objetivos:

» Gerais (se aplicam a todas as instituições sociais)

› Contribuir para o processo de socialização, pois as pessoas aprendem com maior


facilidade a diferenciar a forma certa e errada de agir em um contexto institucional.

› Estabelecer um grande número de papéis sociais atrelando a eles modelos de


comportamento tidos como adequados.

› Dar estabilidade e consistência aos membros da sociedade através do


comportamento institucionalizado.

» Específicos da Educação

› Familiarizar os indivíduos com os diversos papéis sociais existentes na sociedade;

› Preparar os alunos para desempenharem os papéis sociais esperados deles,


especialmente os ocupacionais e profissionais;

› Transmitir às novas gerações a herança cultural acumulada pelas gerações


anteriores;

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CAPÍTULO 1 • Sociologia e Educação

› Estimular a adaptação pessoal e aprimorar os relacionamentos sociais.

Através da leitura cuidadosa destes objetivos, percebemos que a educação enquanto instituição
social está diretamente relacionada à compreensão pelo indivíduo da sociedade em que vive.
Devemos, portanto, permitir ao aluno utilizar os conhecimentos, habilidades e competências
curriculares para, através deles, agir no mundo; ser membro consciente e participativo na
sociedade. Por este motivo, é impossível pensar a educação desatrelada do contexto social
em que ela acontece.

Afirmamos, desta maneira, que mesmo que um professor esteja em sala de aula ensinando
conceitos puramente teóricos da Matemática, ele deverá estar o tempo todo consciente dos
usos sociais da Matemática na vida cotidiana dos alunos. Ele deverá também estar atento,
enquanto ensina Matemática, para todos os fatores socioculturais envolvidos no processo,
que podem estar contribuindo ou dificultando a aprendizagem.

Ser professor implica, portanto, saber ler o contexto social e se posicionar diante dele. E a
Sociologia é a ciência que nos ensina a fazer isso.

Sociologia e atividade docente

Ainda que a função social da educação enquanto instituição social seja bem delimitada, como
vimos na anteriormente, existe, ainda, muita disputa com relação aos significados, valores e
delimitações destes objetivos, especialmente no que diz respeito à educação que acontece dentro
dos muros da escola.

Existem grupos sociais que defendem a participação da escola no desenvolvimento global dos
sujeitos, enquanto outros acreditam que a escola deve se ater apenas a transmitir conteúdos
disciplinares para o preparo do aluno para exercer seus papéis sociais relacionados ao trabalho.
Esta é uma discussão longa, baseada em diferentes formas de entender o mundo, mas muito
produtiva, uma vez que é através do debate de ideias que somos capazes de nos aprimorar tanto
como indivíduos quanto como sociedade.

Não podemos deixar de considerar, contudo, que ao assumir um cargo docente, estamos
assumindo, como em qualquer outra atividade profissional, um compromisso legal e ético de agir
de acordo com o que determina a nossa legislação, que nada mais é do que a vontade popular
concretizada democraticamente através do Poder Legislativo.

Por mais que discutamos o papel da educação, investigando diferentes aspectos de diferentes
correntes de pensamento social e político, existe no ordenamento jurídico brasileiro uma definição
clara e precisa do papel da educação em nossa sociedade, com base na qual todo professor deve
orientar a sua prática docente.

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Sociologia e Educação • CAPÍTULO 1

A Constituição Federal de 1988, que é o ponto mais alto do ordenamento jurídico brasileiro e,
portanto, se sobrepõe a qualquer tipo de legislação estadual ou municipal, define o seguinte:

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e


incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento
da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho. (BRASIL, 2016, p. 123).

Como vimos, a Constituição Federal afirma especificamente que cabe à educação não só
apresentar ao aluno os conteúdos específicos das disciplinas curriculares, mas, também,
contribuir para que ele se desenvolva plenamente, ou seja, em seus aspectos intelectual, físico,
emocional, cultural e social. Cabe a ela ainda preparar o indivíduo para exercer a sua cidadania
e estar pronto para ingressar no mercado de trabalho.

Durante a formação profissional para lecionar, você está se preparando para fazer parte deste
sistema da educação, desempenhando um papel importantíssimo que é o de professor. Portanto,
é fundamental que não perca de vista que estas recomendações deverão ser o norte em direção
ao qual caminha a sua prática, seja ela na educação infantil, no ensino médio, na educação de
jovens e adultos ou em qualquer outro espaço em que se desenvolvam práticas educativas.

É um desafio e tanto! Mas é um desafio possível!

E é justamente para nos ajudar a enfrentar este desafio que se justifica a presença desta disciplina
de Sociologia na sua grade de formação docente, ainda que muitos alunos ainda se mantenham
resistentes quanto ao seu estudo.

Isto se dá pelo fato de a Sociologia ser uma ciência incômoda, que tende a nos tirar da nossa
zona de conforto ao nos fazer refletir a respeito de temas complexos da realidade, como
sexualidade, religiosidade, ideologia, identidades, entre tantas outras temáticas polêmicas.

Ela nos propõe, a partir destes temas, um olhar o mundo com outros olhos, tentando se colocar
no lugar do outro para buscar compreender a realidade a partir do ponto de vista dele. Isso é
assustador! Faz com que, mesmo que por um minuto, eu precise me afastar das minhas certezas
para dar uma oportunidade à compreensão das certezas do outro. E, com isso, passo a refletir
não só sobre ele, mas, também, sobre mim mesmo.

De acordo com Rogers (2001), toda aprendizagem que envolve uma mudança na percepção que
o indivíduo tem de si mesmo tende a suscitar resistência, por ser compreendida por ele como
algo ameaçador, que está ali para eliminar as certezas sobre as quais organiza o seu próprio eu.

Para a maioria das pessoas parece que na medida que outros estão certos, elas
estão erradas. Então, a aceitação de valores externos pode ser profundamente
ameaçadora aos valores que a pessoa já tem, daí a resistência a este tipo de
aprendizagem. (MOREIRA, 1999, p. 142).

15
CAPÍTULO 1 • Sociologia e Educação

Tomemos um exemplo simples. No Japão, o feijão é regularmente consumido pela população


como uma iguaria doce. O anko é uma pasta que serve de recheio para diversas sobremesas
populares nos países asiáticos e é feita à base de feijão vermelho e açúcar ou mel. Nós brasileiros,
por outro lado, consumimos o feijão salgado diariamente e tendemos a ver com estranheza o
costume oriental. É como se a mera existência de uma forma diferente de comer feijão ameaçasse
a sacralidade da nossa maneira de fazê-lo. Quem está certo? Eles ou nós? Será que provar que os
japoneses estão errados me ajuda também a provar que eu estou certo?

É este tipo de reflexão incômoda que Rogers (2001) caracteriza como ameaçadora e, portanto,
dificultadora do processo de aprendizagem, uma vez que o aluno passa a não estar mais
predisposto a aprender.

A Sociologia, neste sentido, nos auxilia a ver que aceitar que é certo para os japoneses comer o
feijão doce não faz com que seja errado para nós comer o feijão salgado. São apenas duas formas
diferentes de comer feijão e eu nem preciso passar a comer anko, apenas tenho que respeitar o
direito dos japoneses de apreciar essa iguaria.

Esse olhar específico das Ciências Sociais, que nos ajuda a tentar colocar as lentes do outro para
entender como ele percebe o mundo, é denominado relativismo e deve ser analisado como uma
oposição direta ao etnocentrismo.

Etnocentrismo

Consiste na atitude de julgar as práticas, crenças e valores de determinada cultura ou grupo social,
tomando como base os critérios da cultura do próprio observador, ou seja, quando julgamos o
outro a partir de nós mesmos.

Este comportamento, como define Allan de Paula Oliveira (2018, p. 73), não é inscrito em um
momento histórico específico ou mesmo restrito a apenas algumas sociedades:

A história das relações entre as sociedades humanas é, em grande medida,


uma história do etnocentrismo. Quando os gregos [...] classificaram os povos
que não falavam a sua língua como bárbaros, havia nisso um componente
etnocêntrico. O ponto de vista central nesse julgamento era a própria cultura
grega. Nessa perspectiva, bárbaros eram os outros. Da mesma forma, quando os
europeus, no século XVI, chegaram às Américas e julgaram as práticas de muitas
sociedades americanas como bestiais e selvagens ou, ainda, negaram o estatuto
de humanidade aos indígenas, seus posicionamentos foram marcados por um
caráter etnocêntrico.

Em ambos os casos, tratava-se de julgar a alteridade, as diferenças, a partir dos


valores da própria sociedade. É interessante observar que o contrário também

16
Sociologia e Educação • CAPÍTULO 1

é verdadeiro: os índios da América do Sul duvidavam do caráter humano dos


europeus. [...] Lévi-Strauss evidencia, em um texto célebre, relatos do século
XVI sobre como os indígenas americanos mantinham submersos os corpos de
espanhóis (vistos como seres estranhos) mortos para descobrir se eram sujeitos
a putrefação. Na mesma época, do outro lado do Atlântico, teólogos e juristas
espanhóis travavam discussões intermináveis para determinar se os indígenas
americanos tinham alma.

Nesses exemplos, o etnocentrismo aparece como uma forma de julgamento das


diferenças e de autoconfirmação das sociedades. Os gregos se consideravam
superiores aos bárbaros, assim como os europeus, no século XVI, viam-se como
o centro do mundo diante dos indígenas americanos.

Estas relações entre sociedades ou grupos estabelecidos com base no etnocentrismo, ou


seja, na crença de que a cultura do observador é superior à do observado, pode causar sérias
repercussões, como guerras, preconceitos, segregação e, até mesmo, o extermínio daqueles
considerados diferentes.

Pensamos, automaticamente, em casos extremos, como os campos de concentração na


Alemanha nazista, as guerras constantes entre grupos étnicos nos Balcãs, as disputas entre
judeus e mulçumanos na Palestina, a segregação dos negros na África do Sul durante a vigência
do Apartheid. E, por isso, você pode estar se perguntando: mas o que tem o etnocentrismo
e estes grandes conflitos e situações de violência a ver com a prática docente?

O etnocentrismo ocorre também em situações cotidianas, no interior de uma mesma sociedade,


quando a incompreensão diante de comportamentos diferentes ao do nosso próprio grupo nos
fazem criar uma linha hierárquica que tende sempre a colocar a nós mesmos em situação de
superioridade.

Oliveira (2018) apresenta o exemplo do uso da palavra religião, que costuma ser utilizada para
designar alguns conjuntos de práticas, enquanto outros são tratados como crenças ou cultos.
Temos, assim, um discurso no qual se fala sobre religião católica, religião budista, religião
protestante e crenças indígenas e cultos afro-brasileiros. A utilização dos termos culto e crença,
como defende o autor, são “formas de diminuir as práticas e as concepções sagradas daqueles
considerados outros” (2018, p. 77).

Pense ainda no exemplo de uma escola pública dentro de uma comunidade carente, em que o
professor que leciona – muitas vezes pertencente à classe média e morador de bairros considerados
mais abastados – propõe uma atividade aos alunos com base em uma música. Ele escolherá para
a atividade uma música que esteja de acordo com o gosto de sua própria classe, em detrimento,
por exemplo, do funk, que pode ser uma predileção daquela comunidade escolar. Muitas vezes,
este estilo musical é, inclusive, tratado pelas elites como “barulho” e não como música.

17
CAPÍTULO 1 • Sociologia e Educação

Estes dois exemplos, como vimos, não implicam necessariamente a violência física contra o
outro. No entanto, concretizam um tipo de violência igualmente perigosa, a violência simbólica.

Violência simbólica

De acordo com Pierre Bourdieu (1992 e 2007), a socialização do indivíduo às normas da sociedade
em que vive consiste na construção de seu habitus, ou seja, na apreensão pelos indivíduos –
de maneira mais ou menos consciente – dos esquemas de percepções, de apreciação e ação
específicos daquela sociedade.

Figura 4. Socialização.

Esquemas de
Maneiras de perceber o mundo
percepção
Habitus

Esquemas de
Maneiras de julgar o mundo
apreciação

Maneiras de comportar-se no
Esquemas de ação
mundo

Fonte: Desenvolvida a partir dos conceitos de Jourdain e Noulin (2017).

Este processo ocorre ao longo de toda a vida do indivíduo e divide-se nas seguintes etapas de
socialização:

» Socialização primária: que acontece durante a infância, quando o sujeito é apresentado


pela primeira vez aos significados atribuídos aos diversos aspectos da vida social. É,
portanto, mais profunda e mais difícil de ser modificada.

» Socialização secundária: que acontece já na vida adulta, quando o sujeito modifica


seus esquemas de percepção, apreciação e ação.

Sendo assim, temos mais enraizados aqueles esquemas adquiridos na família e na escola, e os
utilizaremos no futuro em outras situações sociais, como o mercado de trabalho. Isso implica dizer,
por exemplo, que um indivíduo aprende ainda na infância a respeitar as figuras de autoridade
como os pais e os professores, e isso vai orientar futuramente a forma como ele se comportará
diante do chefe.

Vale ressaltar, no entanto, que os habitus dentro de uma sociedade não são uniformizados, eles
variam de acordo com as condições de vida de cada sujeito e a sua trajetória social. Imaginemos
um grupo de crianças que vivam na mesma cidadezinha rural. Todas construirão um mesmo
habitus, uma vez que as condições socioeconômicas em que vivem são as mesmas. Bourdieu
(1992 e 2007) chama isso de habitus de classe. Imaginemos, no entanto, que uma destas crianças,

18
Sociologia e Educação • CAPÍTULO 1

já na vida adulta, se mude para um grande centro urbano, ou que outra delas seja eleita prefeito
daquela cidade. Estas trajetórias de vida individuais trarão diversas modificações em seu habitus
em relação àquelas que se mantiveram de forma inalterada dentro do mesmo contexto de sua
socialização primária.

Podemos dizer, assim, que:

As disposições do habitus são duráveis à medida que, sendo enraizadas nas


pessoas, elas tendem a se perpetuar e a resistir à mudança. Salvo uma mudança
radical nas condições socioeconômicas do entorno, os indivíduos tendem a
conservar as disposições adquiridas ao longo de sua socialização. (JOURDAIN
e NOULIN, 2017, p. 51).

Bourdieu salienta ainda que toda sociedade se divide internamente entre dominantes e dominados,
sendo o primeiro grupo formado pela elite intelectual e econômica, e o segundo pelas camadas
populares. Estas classes dominantes, segundo ele, possuem o poder para definir o valor que será
atribuído a cada prática ou aspecto da vida cultural. São elas que determinaram a legitimidade
da cultura, criando com isso uma divisão entre aquilo que é de “bom gosto” ou de “mal gosto”,
sendo o primeiro sempre aquele que se refere às práticas das classes dominantes e o segundo
às práticas das classes dominadas.

Bourdieu apresenta, assim, que a hierarquia socioeconômica cria uma hierarquia cultural
a medida que as classes mais abastadas impõem o seu próprio habitus de classe sobre as
demais, pois a cultura não possui valor em si mesma, mas, sim, aquele que é atribuído pela
sociedade.

Cabelo, por exemplo, é apenas cabelo, mas aprendemos desde que somos muito jovens que
existe uma distinção social muito bem delimitada entre o que é um “cabelo bom” e um “cabelo
ruim”. O cabelo bom é liso, enquanto o cabelo ruim é crespo, mas ninguém nos explica que em
sua origem esta distinção tinha um objetivo muito específico de desclassificar a ancestralidade
africana do possuidor do cabelo. Negros ocupam historicamente no Brasil as posições mais baixas
na hierarquia social e, portanto, aquilo que faz parte do seu habitus específico é desqualificado: o
cabelo, as músicas, a religião, etc. E isso continua sendo reproduzido até os dias de hoje, disfarçado
de senso comum, de bom gosto ou mesmo como sinônimo para pessoas bem ou mal-educadas.

De acordo com Bourdieu estes esquemas de dominação consistem em um tipo de violência


simbólica, pois eles submetem a própria vontade do dominado em perpetuar a dominação, uma
vez que o habitus das classes dominantes é ensinado dentro do processo de socialização como
única cultura legítima. Sendo assim, o indivíduo apreende aqueles valores, comportamentos e
formas de ver o mundo como corretos e desejáveis, reproduzindo-os sem os questionar.

Pense, por exemplo, em quantas meninas negras alisam seus cabelos crespos para se sentirem
de acordo com a norma, para conquistarem melhores empregos, para serem levadas a sério

19
CAPÍTULO 1 • Sociologia e Educação

e respeitadas em diversos contextos sociais. Isso ocorre porque a socialização a que somos
submetidos diz que o cabelo crespo é ruim, sujo, malcuidado, e que a pessoa que o tem é
desorganizada, descuidada, descomprometida.

Novamente, cabelo é apenas cabelo e os significados culturais que atrelamos a eles são construídos
pela sociedade, tendo como referência as classes dominantes.

Vale destacar ainda, que, de acordo com Bourdieu,


Saiba mais
uma das principais ferramentas desse processo
de dominação é a escola, quando ensina a cultura Para uma reflexão mais aprofundada a respeito deste
das classes dominantes como única cultura tema, escute o programa 173 do podcast Mamilos, onde
é abordada a questão do racismo e toda a violência
legítima. Para este autor, a escola é reprodutora
simbólica a que é submetida a cultura negra.
do status social vigente justamente por perpetuar
O programa está disponível gratuitamente em www.
as relações de dominação.
b9.com.br/100487/mamilos-173-eu-nao-sou-racista/.

Re t o m e m o s o exemplo a p re s e n t a d o
anteriormente de uma atividade proposta em sala de aula tendo uma música como referência.
A música utilizada na atividade proposta será escolhida de acordo com o gosto do professor
que, independentemente de sua classe econômica, é membro de uma elite intelectual, e estilos
musicais como o funk ou o rap, que são típicos das periferias e das camadas mais populares da
população, usualmente são classificados como música de “mau gosto” ou de “má qualidade”,
não havendo, portanto, espaço para eles dentro do contexto escolar.

Perceba que, neste caso, o professor atua como reprodutor das relações de poder, muitas vezes
sem sequer ter consciência disto. O aluno, da mesma forma, aceita a dominação ao não se
questionar sobre a legitimidade da música erudita em detrimento da música popular.

Este é um ciclo cruel de manutenção das desigualdades e a consciência de sua existência ajuda
o professor a retirar-se da equação, dando aos seus alunos maiores chances de entenderem
também o seu papel nestas relações.

Falamos sobre o exemplo do cabelo e da música, mas poderíamos nos alongar a respeito das
próprias expectativas relacionadas à educação popular, como as ideias de que nas escolas públicas
as famílias não se importam, os alunos são fracos, desinteressados, acomodados, sem ambições
para o futuro. E estes preconceitos, em alguns casos, acabam sendo absorvidos pelo professor,
que passa a nortear sua prática profissional com base neles.

Quem gosta de perder tempo com causas perdidas? Quem deseja investir tempo e esforço em um
projeto em que os bons resultados são impossíveis? Pra que vou chamar a família para participar
do processo educativo se ela não vai comparecer mesmo?

20
Sociologia e Educação • CAPÍTULO 1

Assim, quando assumimos o discurso de que os alunos não são capazes, simplesmente paramos
de tentar, de estimular, de buscar novas estratégias, e, com isso, a profecia se autorrealiza, os
alunos de fato não progridem e a violência simbólica se perpetua.

Tomemos como exemplo o experimento desenvolvido na década de 1960 pelos pesquisadores


Rosenthal e Jacobson:

O objetivo dos autores era testar a hipótese de que, em situação escolar, aquelas
crianças das quais os professores esperam um maior crescimento intelectual,
realmente mostram tal progresso.

Como justificativa para o estudo foi dito às professoras que havia necessidade
de avaliar a eficiência de um novo tipo de teste, planejado para predizer o
progresso intelectual das crianças. Utilizou-se o Teste de Capacidade Geral de
Flanagan (TOGA), que é um teste padronizado de inteligência e desconhecido
pelas professoras na época, por ser relativamente novo. Este teste é formado por
dois subtestes relativamente independentes, destinados a avaliar a capacidade
verbal (compreensão da língua) e o raciocínio.

O teste foi aplicado a todas as crianças da escola pelas professoras. Em cada uma das
18 classes cerca de 20% das crianças foram aleatoriamente escolhidas e indicadas
a suas professoras como potencialmente capazes de rápido desenvolvimento
intelectual, a partir dos resultados obtidos no teste. A apresentação dos nomes
das crianças para as professoras foi intencionalmente informal. O tratamento
experimental constituiu-se, pois, apenas em indicar os nomes de algumas crianças
a suas professoras como sendo crianças das quais se poderia esperar progressos
intelectuais rápidos no ano que se iniciava. Portanto, a diferença entre as crianças
do grupo experimental e as crianças do grupo controle (todas as outras que não
foram indicadas), estavam apenas na mente das professoras.

Todas as crianças responderam novamente aos testes 4 meses depois do início


das aulas e ao fim do ano escolar.

Os resultados, de maneira geral, indicaram que as crianças de quem as professoras


esperavam melhores resultados intelectuais mostraram tais progressos. (BRITTO
e LOMONACO, 1983, p. 60).

Não se pretende com isso atribuir a responsabilidade pelo fracasso escolar apenas ao professor,
pois sabemos que ele é causado por uma complexa rede de fatores sociais, culturais, históricos,
econômicos e culturais. No entanto, precisamos entender que somos também parte do problema,
e que, ao termos consciência disso, somos capazes de refletir criticamente e buscar maneiras
de modificar este quadro.

Uma estratégia fundamental para o combate à violência simbólica nas escolas é a adoção,
especialmente por parte dos professores, da atitude relativista.

21
CAPÍTULO 1 • Sociologia e Educação

Relativismo cultural

O relativismo cultural consiste em compreender a cultura do outro a partir dos seus próprios
termos, buscando entender os significados que as pessoas que fazem parte daquele grupo
atribuem aos fatos e valores de sua cultura. Deixa-se, assim, de julgar os costumes e valores
do outro com base nos do próprio observador e aquilo que, para o senso comum, poderia ser
classificado como irracional ou carente de sentido passa a ser encarado como algo significativo
para aquele grupo específico de pessoas.

Vejamos o exemplo a seguir:

O francês Loïc Wacquant (2002) realizou um trabalho de campo em uma academia


de boxe em um bairro pobre de Chicago. Se, para muitos, o boxe é um ritual de
violência gratuita, sem sentido algum, Wacquant revela a importância desse
esporte para muitos jovens do bairro. Para eles, o boxe é fonte de disciplina moral,
corporal e estética, além de oferecer projetos de vida em um contexto marcado
por segregação e exclusões sociais. (OLIVEIRA, 2018, p. 93).

As aplicações deste conceito para a realidade educacional e a violência simbólica nas escolas
são inúmeras. No que diz respeito à postura do professor, representa uma modificação moral
no comportamento com relação aos estudantes, pois, antes de julgar e condenar certas práticas,
deve tentar compreendê-las de acordo com o contexto em que estão inseridas.

Podemos refletir sobre esta possibilidade partindo do exemplo hipotético de um aluno muito
comunicativo, desenvolto na forma de falar, mas que utiliza muitas gírias e comete muitos erros
de concordância. Para um professor de Língua Portuguesa etnocêntrico, esta conduta pode ser
julgada como desinteresse e falta de competência, pois se baseia na utilização da forma culta
da língua enquanto único marco de referência para o “falar bem”. A conduta deste professor, em
consequência, será normatizada por este valor e o aluno será tratado como fraco, punido com
notas baixas, ou mesmo ignorado por não manifestar qualquer tipo de inclinação especial para
o estudo de línguas.

Um segundo professor de Língua Portuguesa, no entanto, compreende que este aluno vem de um
contexto social em que as pessoas falam desta forma, que ele foi socializado desde que nasceu
nesta estrutura linguística e com aquele tipo de vocabulário. Percebendo a fala do aluno a partir
dos seus próprios critérios, ele percebe um desempenho acima da média na comunicação do
aluno, na forma como organiza seu pensamento e transmite suas ideias. A partir daí, o que antes
foi visto como deficiência será tratado como potencialidade e o aprendizado da norma culta
será apresentado ao aluno como uma nova estratégia de comunicação que se acredita que ele é
completamente capaz de dominar.

22
Sociologia e Educação • CAPÍTULO 1

Qual professor você imagina que obterá os melhores resultados no desempenho deste aluno na
disciplina de Língua Portuguesa? O que apresenta a norma culta como resolução para um defeito
ou o que a trabalha como forma de aprimorar uma qualidade?

No mesmo sentido, no exemplo da música utilizada como motivador para uma atividade em
sala de aula, um professor que relativize o contexto sociocultural de seus alunos escolherá
uma música que se adéque ao tema a ser trabalhado, mas que igualmente seja interessante e
faça sentido para os alunos. Este é um ponto de partida, no qual o aluno se identifica, sente o
seu próprio saber valorizado e, posteriormente, se interessa em saber mais sobre o assunto. O
professor pode, então, com muito mais sucesso, apresentar outras propostas musicais.

Trata-se, neste sentido, de ampliar o conhecimento e não de substituir. Não é necessário


desqualificar aquilo que o aluno entende, gosta e identifica como seu, para apresentar a ele
novas formas de ver o mundo. Tampouco significa permitir que os alunos se mantenham em
sua zona de conforto, com o repertório limitado àquilo que ele traz de casa e da comunidade
para a escola.

O que estamos propondo é um diálogo entre os referenciais já utilizados pelo aluno e aqueles
novos referenciais que serão apresentados pela escola.

Cuidado

Tratar com respeito e empatia os referenciais do outro não equivale a aceitar qualquer coisa com a justificativa da
diversidade cultural. Não é uma questão de vale-tudo!

A proposta é não criar generalizações do tipo “tudo neste universo é bom” e “tudo naquele universo é ruim”. No entanto,
qualquer conteúdo cultural que faça alusão a crime, violência ou a desrespeito aos direitos humanos deverá ser questionado
e, por isso mesmo, o processo é orientado pelo professor. Cabe a ele decidir pedagogicamente as estratégias a serem
adotadas para trabalhar diferentes conteúdos culturais e a adequação de cada um deles de acordo com as turmas em que
serão trabalhados.

Sociologia e os desafios contemporâneos da educação

Por fim, a Sociologia da educação justifica a sua presença nos cursos de licenciatura por nos
oferecerem os conceitos teóricos e metodológicos que nos permitam lidar com os inúmeros
desafios sociais que se apresentam no cotidiano da sala de aula.

Não é possível que o professor se mantenha vendado para as transformações sociais, acreditando
que a escola seja uma espécie de Ogígia, ilha mitológica afastada de toda a realidade exterior,
onde o tempo não passa e nenhuma influência externa pode penetrar. Este posicionamento,
fundado num saudosismo romantizado de que “no meu tempo tudo era melhor”, não traz
qualquer contribuição para a prática docente, apenas rancor e nenhuma motivação.

23
CAPÍTULO 1 • Sociologia e Educação

A educação, como vimos, é uma instituição social e, portanto, a escola, os alunos, os conteúdos, as
metodologias e qualquer outro referencial atrelado a ela não podem ser entendidos isoladamente.

O preço a pagar por esta tentativa de afastamento do docente entre a sua prática e a realidade
é aos poucos ele ir deixando de ser um professor e transformar-se no que Celso Antunes (2007)
define como um “professauro”, ou seja, aquele professor que pretende a qualquer custo fazer
com que os novos tempos se adéquem a ele, e não o contrário.

Como defende o autor, é impossível desejar, nos dias de hoje, os mesmos resultados alcançados
com uma aula planejada há 30 anos:

Há trinta anos não havia o celular, os computadores não eram o que hoje são e
uma simples viagem de São Paulo a Ubatuba não demorava menos que seis horas.
Nesses trinta anos o mundo mudou, a medicina evoluiu, a tecnologia avançou,
os transportes se aceleraram. Mas ainda existem aulas em que o professor é o
centro do processo de aprendizagem. Nem todos os dinossauros foram extintos.
(ANTUNES, 2007, p. 16)

O autor prossegue deixando claro que a utilização do vocábulo dinossauro, neste contexto, não
tem a intenção de ser ofensiva, mas designa aqueles profissionais que insistem em conduzir
a sua prática segundo procedimentos e expectativas de uma escola que não existe mais. O
mundo muda, as sociedades se transformam e a educação precisa acompanhar este processo.
Se definimos no início deste capítulo que o objetivo da educação enquanto instituição social é
formar os indivíduos para a vida em sociedade, precisamos entender que sociedade é essa, ou
estaremos falhando em nossa missão.

Sendo assim, podemos estabelecer os seguintes itens como principais características da sociedade
de nossos tempos a causar impacto sobre a realidade das salas de aula:

» Diversidade: as escolas contam com uma diversidade de pessoas nunca anteriormente


vistas e precisa estar pronta para lidar com ela. No contexto crescente de imigrantes e
refugiados, temos escolas cujos alunos sequer dominam o uso mais básico da Língua
Portuguesa; com os programas de inclusão, as pessoas com deficiência deixaram de ser
segregadas e passaram a fazer parte do cotidiano escolar. Temos, ainda, diversos grupos
que se organizam em torno de identidades coletivas compartilhadas, que coexistem
dentro da escola, sejam estas identidades religiosas, étnicas relacionadas à sexualidade,
a estilos de vida e tantos outros, que possuem valores e comportamentos expectativas
tão diferentes umas das outras que transformam a escola em um grande exercício de
convivência e tolerância.

» Sociedade tecnológica: o mundo conheceu, nas últimas décadas, uma série de avanços
tecnológicos, especialmente nas áreas de informação e conectividade, que reconstruíram
completamente aquilo que esperamos da educação. Se antes chamávamos de sociedade

24
Sociologia e Educação • CAPÍTULO 1

da informação o contexto em que o possuidor de determinado conhecimento era


altamente valorizado, hoje o conhecimento está largamente difundido e disponível
a qualquer um apenas com um clique. O diferencial, portanto, é formar o aluno para
saber fazer bom uso desse recurso inesgotável de informações disponíveis. Parte deste
processo inclui a preparação do professor para falar a mesma língua dos alunos, pois é
impossível o diálogo entre um sujeito que no ensino fundamental já consegue programar
e um professor que mal sabe ligar o próprio computador.

» Conectividade: os alunos que entram hoje no ensino formal nunca conheceram o


mundo analógico. Eles já nasceram conectados à internet e toda a sua forma de lidar
com o mundo real está diretamente associada à relação estabelecida como virtual. Estes
indivíduos possuem uma noção de intimidade e privacidade completamente diferente
das gerações anteriores, bem como as relações estabelecidas com as pessoas, o tempo
e o espaço são completamente diferentes e mais aceleradas.

» Novo mercado de trabalho: era comum no passado que um indivíduo planejasse e


desejasse, ao longo de toda a sua carreira escolar, atingir futuramente uma carreira
específica. Alunos e suas famílias organizavam suas expectativas e habilidades em
torno de profissões tradicionais como advogados, médicos e engenheiros. Atualmente,
no entanto, o mercado de trabalho sofre modificações tão rápidas para acompanhar
as transformações sociais que o professor Jorge Luis Nicolas Audy, superintendente de
Inovação e Desenvolvimento da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), estima que setenta por cento dos alunos que estão concluindo o ensino médio
e ingressando no ensino superior, no futuro trabalharão em atividades que hoje ainda
nem foram inventadas (G1 RS, 2018).

Considerando que um dos maiores desafios da escola sempre foi o de formar os alunos para se
integrarem ao mercado de trabalho, podemos dizer que este desafio aumenta enormemente
quando nos referimos a um mercado de trabalho que não entendemos e que sequer existe ainda.

Estes são apenas alguns entre os tantos fatores que um docente precisa considerar ao organizar
a sua prática de forma reflexiva e contextualizada no Brasil contemporâneo. E, com isso, sequer
nos aproximamos dos tantos desafios locais e regionais que se apresentam ao professor.

No entanto, podemos garantir que o estudo da Sociologia lhe ajudará a lançar uma boa luz sobre
estes temas, o que faz desta disciplina uma ferramenta indispensável na sua caixa de ferramentas
docente.

25
CAPÍTULO 1 • Sociologia e Educação

Para refletir

Professores & professauros (um exercício de ficção)


Que se imagine outra galáxia e, nesta, um planeta habitado. Com civilização bem mais antiga que a da Terra, apresenta
progresso material e moral bem mais avançado que o nosso. Nesse planeta, um pesquisador resolve conhecer um pouco
sobre como se desenvolve a educação em outro mundo habitado, agora bem mais atrasado, e que se chama Terra. Valendo-
se da notável tecnologia que sua avançada cultura alcançou, disfarça-se em estudante terráqueo e, após muitas aulas que
observa, prepara seu relatório, destacando que no planeta visitado encontrou dois tipos de ensinantes que, trabalhando
com as mesmas dificuldades e regalias no mesmo espaço, apresentam significativas diferenças entre si. Para diferenciar
profissionais assim tão dispares, chama o primeiro de professores e os outros de professauros, por identificar, nestes
últimos, formas de pensamento comuns ao período Cretáceo, dominado pelos grandes dinossauros. Segue, extraído deste
original relatório, algumas diferenças essenciais entre os dois.

Quanto ao ano letivo que se inicia:

Para os professores, uma oportunidade ímpar de aprender e crescer, um momento mágico de revisão crítica e decisões
corajosas; para os professauros, o angustiante retorno a uma rotina odiosa, o eterno repetir amanhã tudo quanto de certo e
de errado se fez ontem.

Quanto aos alunos que acolhem:

Para os professores, a alegria de percebê-los cada vez mais sabidos e curiosos e a vontade de fazê-los efetivos protagonistas
das aulas que ministrarão. A certeza de que não os ensinarão, mas poderão contribuir de forma decisiva para iluminar suas
inteligências e afiar suas muitas competências. Para os professauros, nada mais que chatíssimos clientes que transformados
em espectadores pensarão sempre mais na indisciplina que na aprendizagem, na vagabundice que no crescimento interior.

Quanto às aulas que deverão ministrar:

Para os professores, um momento especial para propor novas situações de aprendizagens pesquisadas e através das mesmas
provocar reflexões, despertar argumentações, estimular competências e habilidades; para os professauros, nada além que a
repetitividade de informações que estão nos livros e apostilas e a solicitação de esforço agudo das memórias para acolher o
que se transmite, ainda que sem qualquer significação e poder de contextualização ao mundo em que se vive.

Quanto aos saberes que se trabalhará:

Para os professores, um volume de informações que necessitará ser transformado em conhecimentos, uma série de veículos
para que com eles se aprenda a pensar, criar, imaginar e viver; para os professauros, trechos cansativos de programas
estáticos que precisam ser ditos, ainda que não se saiba por que fazê-lo.

Quanto à vida que se vive e os sonhos que se acalenta:

Para os professores, desafios a superar, esperanças a aguardar, conhecimentos para cada vez mais se aprender, a fim de se
fazer da arte de amar o segredo de viver; para os professauros, a rotina de se trabalhar por imposição, casar por obrigação,
fazer filhos por tradição, empanturrar-se para depressa se aposentar e quanto antes morrer.

O relatório do pesquisador espacial prossegue, mas não é objetivo desta crônica pelo mesmo avançar. O que com a mesma,
efetivamente, se pretende são duas singelas interrogações. Você descobre em colegas que conhece quem pertence a uma e a
outra categoria? E você, prezado amigo, com sinceridade, a que categoria pertence?
(ANTUNES, 2007, p. 13-14).

26
Sociologia e Educação • CAPÍTULO 1

Sintetizando

Vimos até agora:

» Para que uma aprendizagem possa ser considerada significativa, o aluno deve compreendê-la como relevante para a
obtenção de seus objetivos.

» A presença da Sociologia da Educação nos cursos de formação de professores pode se justificar pelos seguintes motivos:

A educação é uma instituição social, que, portanto, não pode ser compreendida separadamente do contexto social, e a
Sociologia nos ajuda a compreender este contexto.

A Sociologia nos dá o suporte necessário para refletir criticamente sobre a prática docente, questionando nosso papel
enquanto educadores e desnaturalizando tudo o que fazemos cotidianamente.

A Sociologia nos auxilia a lidar com os desafios sociais contemporâneos, com os quais o professor precisa lidar em sua
prática profissional.

» Instituições sociais podem ser definidas como sistemas abstratos e complexos que incorporam os valores fundamentais
adotados pela sociedade, estabelecendo um conjunto de normas, padrões de comportamento e relações sociais
que deverão ser seguidos em prol da satisfação de uma necessidade básica específica. Por se relacionarem a temas
fundamentais da vida social, são relativamente duradouras e qualquer modificação significativa em um destes sistemas
provavelmente afetará os demais.

» A educação é uma instituição social que visa atender à necessidade básica de formar as novas gerações para viver em
sociedade e dominar os conhecimentos, valores e condutas acumulados pelas gerações anteriores.

» De acordo com a Constituição Federal, cabe à educação não só apresentar ao aluno os conteúdos específicos das
disciplinas curriculares, mas, também, contribuir para que ele se desenvolva plenamente, ou seja, em seus aspectos
intelectual, físico, emocional, cultural e social. Cabe a ela, ainda, preparar o indivíduo para exercer a sua cidadania e estar
pronto para ingressar no mercado de trabalho.

» O conceito de etnocentrismo consiste na atitude de julgar as práticas, crenças e valores de determinada cultura ou grupo
social, tomando como base os critérios da cultura do próprio observador, ou seja, quando julgamos o outro a partir de nós
mesmos.

» A violência simbólica ocorre quando os esquemas de dominação submetem a própria vontade do dominado em perpetuar
a dominação, uma vez que o habitus das classes dominantes é ensinado dentro do processo de socialização como única
cultura legítima.

» O relativismo cultural consiste em compreender a cultura do outro a partir dos seus próprios termos, buscando entender
os significados que as pessoas que fazem parte daquele grupo atribuem aos fatos e valores de sua cultura.

» As transformações na sociedade implicam também transformações no campo da educação, com relação às quais o
professor precisa manter-se atualizado.

27
CAPÍTULO
EM BUSCA DE UMA CIÊNCIA PARA
ENTENDER A SOCIEDADE 2
Introdução

Neste capítulo, definiremos a Sociologia enquanto estudo das sociedades, que prima pela
observação objetiva, sistemática e metódica dos fenômenos sociais, em sintonia com o tipo de
construção de conhecimento proposto pelas Ciências da Natureza.

Veremos que o pensamento científico não é a única forma através da qual os seres humanos
explicam a sua própria realidade e analisaremos as transformações sociais desenroladas a partir
do século XV que levaram à valorização deste tipo de saber.

Com base nesta contextualização, localizaremos também o surgimento da Sociologia e


apresentaremos o pensamento de Auguste Comte, um dos principais fundadores da disciplina.

Objetivos

» Apresentar as quatro principais formas de pensamento através das quais os indivíduos


constroem conhecimento a respeito do mundo.

» Definir a Sociologia como forma de investigação da realidade, que surge ancorada na


valorização do pensamento e da metodologia científica.

» Contextualizar o surgimento da Sociologia, deixando clara a sua relação com as


transformações advindas da passagem da Idade Média para a Modernidade.

» Apresentar o Positivismo e o pensamento de Auguste Comte.

28
Em busca de uma ciência para entender a sociedade • CAPÍTULO 2

Como conhecemos o mundo

Quando falamos sobre Sociologia, a primeira imagem que vem à mente da maioria das pessoas
é a de um campo de estudos que pensa sobre a sociedade, buscando entender e explicar de que
forma ela funciona. O propósito do sociólogo seria, portanto, responder a perguntas como:

» Por que os indivíduos em sociedade fazem o que fazem?

» Por que os indivíduos em sociedade fazem o que fazem da maneira que fazem?

» Por que os indivíduos em sociedade fazem o que fazem no momento em que fazem?

» Por que os indivíduos em sociedade fazem o que fazem nas condições que fazem?

» Por que os indivíduos em sociedade fazem o que fazem com as pessoas que fazem?

Certamente, uma infinidade de pessoas em lugares e épocas diferentes se fizeram perguntas


como estas. Será possível afirmar então que a Sociologia sempre existiu? Será que podemos,
por exemplo, dizer que o homem sentado no interior de uma caverna a sessenta mil anos atrás,
que se perguntava por que todos as pessoas se abrigavam em suas cavernas quando começava
a chover, já era um sociólogo? Ora, ele estava justamente tentando entender o comportamento
coletivo do grupo em que vivia!

Na verdade, este ato de se perguntar a respeito do mundo é o que nos torna diferentes de todos
os outros animais. O ser humano não só pensa, como é capaz de utilizar este pensamento para
interpretar o mundo, analisar seus próprios atos, planejar, criar e transmitir o conhecimento
acumulado através das gerações.

No entanto, é preciso compreender que existem diferentes tipos de conhecimentos que podem
ser construídos através do pensamento, cada um deles partindo de uma premissa diferente
para responder a um questionamento. Sendo assim, não é a pergunta em si que nos leva a uma
resposta, mas o tipo de pensamento que utilizamos para abordar esta pergunta, que nos levará
a um resultado entre muitos possíveis.

Vejamos a seguir os quatro principais tipos de conhecimentos e as premissas a partir das quais
cada um deles busca analisar os fatos:

29
CAPÍTULO 2 • Em busca de uma ciência para entender a sociedade

Figura 5. Tipos de conhecimento.

Fonte: Elaboração da autora.

» Conhecimento empírico ou de senso comum: produzido a partir da experiência


cotidiana do indivíduo, sem aprofundamento ou verificação. É também aquele
transmitido através da tradição de uma geração para a outra, quando os mais jovens
repetem o que fazem os mais velhos sem se questionar ou tentar refutar aquele
comportamento.

» Conhecimento teológico: tipo de saber fundamentado na crença em um universo


sobrenatural, com seres – deuses, espíritos, etc. – capazes de agir sobre a realidade e
a vida dos indivíduos. Estão incluídos neste tipo de conhecimento todos os pontos de
vista baseados em mitos, ou nas mais diversas religiões, cabendo ao indivíduo apenas
ter fé e acreditar, sem questionar ou tentar refutar.

» Conhecimento filosófico: aquele que tem como fundamento a reflexão racional a


respeito do mundo, fazendo uso da observação e da reflexão para responder tanto sobre
as questões materiais quanto imateriais da vida humana. Nele, a cada descoberta, novas
problemáticas e indagações são geradas, fazendo com que o indivíduo continue sempre
refletindo e questionando suas próprias respostas.

» Conhecimento científico: tipo de conhecimento que busca analisar os fatos


objetivamente, com base em evidências coletadas e testadas através de uma
rigorosa metodologia. O cientista deve considerar apenas os fatos, baseando suas
conclusões exclusivamente nos resultados de seus experimentos e não em valores,
predileções ou crenças pessoais.

30
Em busca de uma ciência para entender a sociedade • CAPÍTULO 2

Qualquer evento da vida cotidiana pode ser Saiba mais


analisado através destes diferentes tipos de
Para visualizar as principais características de cada
abordagens e qualquer pergunta que nos façamos um dos quatro tipos de conhecimento estudados
pode ser respondida utilizando um destes quatro neste capítulo, convido você a pausar sua leitura
e visitar a Trilha de Aprendizagem da primeira
tipos de conhecimentos, gerando provavelmente
estação da disciplina, onde está disponibilizado um
respostas completamente diferentes para uma quadro comparativo para complementar e fixar o
mesma indagação. conhecimento construído até aqui.

Imagine, por exemplo, que você está se preparando


para ir ao cinema com os amigos e, ao abrir a porta para sair de casa, se depara com um céu
carregado de nuvens escuras. Imediatamente você se pergunta: Será que vai chover? Devo ir ao
cinema ou ficar em casa?

Vamos imaginar algumas respostas possíveis para estes questionamentos:

» Tenho certeza de que vai chover! Esse céu preto não me engana. Toda vez que fica assim
cai um baita temporal. É melhor levar um guarda-chuva e, antes de sair, vou cobrir o
espelho da penteadeira, pois minha avó sempre me disse que espelho descoberto em
dia de temporal atrai raio. Não sei se isso é verdade, mas é melhor não arriscar.

» Ah, não! Vai cair o maior temporal! É Deus me castigando porque eu disse pra minha
mãe que ia ficar em casa estudando. Pode ser também um aviso divino de que se eu sair
de casa uma coisa terrível vai acontecer, como um acidente ou um assalto. É melhor
ficar em casa. Vou ligar pro pessoal e dizer que eu não vou.

» Sempre que o céu está cheio de nuvens negras a probabilidade de que chova aumenta
consideravelmente. Está tarde; o céu está cheio de nuvens negras, portanto é lógico
afirmar que a probabilidade de que chova aumentou consideravelmente. Deixar de ir
ao cinema, nesta situação, seria uma ação sábia, mas será que tal comportamento não
seria antiético, uma vez que meus amigos já podem ter saído de casa e, portanto, estão
expostos às consequências da chuva acreditando que eu honrarei a minha palavra e me
encontrarei com eles na entrada do cinema?

» Essa quantidade de nuvens negras no céu me leva a crer que vai chover, pois as nuvens
de chuva normalmente são mais espessas por estarem carregadas de gotículas de água,
o que dificulta a passagem dos raios de sol, explicando, assim, a coloração escura. No
entanto, a mera aglomeração de nuvens e a sua coloração não me fornecem dados
suficientes para determinar as chances de chover. Vou consultar a previsão do site do
Instituto Nacional de Meteorologia, pois eles utilizam dados confiáveis coletados por
satélite e uma metodologia de cálculo da possibilidade de chuva com uma alta taxa de
acertos. Vou fazer esta pesquisa antes de tomar uma decisão sobre ir ou não ao cinema.

31
CAPÍTULO 2 • Em busca de uma ciência para entender a sociedade

Você consegue identificar a que tipo de conhecimento se relaciona cada uma das respostas
apresentadas acima?

No primeiro caso, temos um exemplo de conhecimento empírico ou de senso comum, pois a


avaliação sobre a chuva se deu apenas através da experiência cotidiana do indivíduo. Ele percebeu
que em diversas situações anteriores um grande temporal foi precedido por um céu coberto de
nuvens negras e usou essa comparação para concluir que choveria. Percebemos também, nesta
resposta, a menção a uma crença popular, de que cobrir espelhos durante um temporal impede
que eles atraiam raios, mesmo que as pessoas que ainda mantêm este costume não saibam
explicar o porquê.

Já na segunda resposta, a questão sobre o mau tempo foi respondida com base no pensamento
teológico, pois a possibilidade de chuva foi associada a um ato divino. Deus estaria punindo o
sujeito por um mau comportamento ou enviando um presságio para protegê-lo de um infortúnio
iminente. Neste caso, o conhecimento sobre a chuva se fundamenta estritamente na fé do
indivíduo de que Deus tem o poder de transformar o tempo de acordo com a sua vontade, e não
cabe ao devoto questionar este fato.

No terceiro caso, o conhecimento utilizado para refletir sobre o tempo foi o filosófico. Perceba
que o sujeito parte da observação racional e lógica para determinar que a chuva se aproxima
e, partindo desta informação, conclui que a melhor ação a tomar seria não se arriscar saindo
de casa. No entanto, esta conclusão o leva a uma nova reflexão, que diz respeito às implicações
éticas atreladas ao seu não comparecimento ao cinema.

Por fim, temos uma resposta fundamentada no conhecimento científico, pois o sujeito associa
sua observação objetiva do tempo aos conhecimentos já testados e verificados a respeito da
formação das nuvens de chuva. Complementando esta análise, ele decide verificar uma fonte
de dados confiável, da qual ele conhece o método rigoroso de coleta e análise de informações,
para chegar a uma resposta a mais próxima possível da realidade. Apenas quando todos estes
fatores forem devidamente analisados será possível passar à próxima pergunta, que diz respeito
a ida ou não ao cinema.

Tanto no pensamento filosófico quanto no pensamento científico, percebemos pelos exemplos


que a razão é o fundamento de partida para a construção do conhecimento, o que pode criar
algumas dúvidas na diferenciação dos dois. O que distingue, afinal a filosofia da ciência?

As principais diferenças entre esses dois tipos de conhecimento têm a ver com
o objeto e o método de estudo. O objeto de estudo do conhecimento científico
são dados materiais, que podem ser percebidos pelos sentidos e observados
com a ajuda do método experimental. Já o objeto do conhecimento filosófico
é bem diferente. A filosofia está interessada em temas que vão além do que os
sentidos podem captar: ela parte da experiência material para a reflexão abstrata.

32
Em busca de uma ciência para entender a sociedade • CAPÍTULO 2

Aqui, usamos a reflexão para pensar sobre nós mesmos e sobre a realidade.
(MASCARENHAS, 2012, p. 23).

Da mesma forma, é possível argumentar que tanto a ciência quanto o senso comum podem partir
da observação de um fato e da experimentação para construir um conhecimento. No entanto,
a ciência precisa ser objetiva, e restringir as suas conclusões apenas àquilo que se pode avaliar
e concluir através dos dados analisados, enquanto o senso comum é subjetivo e, portanto, abre
espaço para a imaginação, as predileções, valores e afetos.

Considere que um estudo conduzido cientificamente conclui que o chá de camomila e o chá
de erva cidreira contêm um elemento em sua composição que possui propriedades calmantes.
Uma pessoa que escute os conselhos da avó poderá chegar à mesma conclusão simplesmente
tomando o chá em um dia estressante e sentindo-se mais calma depois disso.

Se perguntarmos ao cientista qual dos dois chás é mais eficiente, sua resposta estará vinculada
à composição química das ervas e de sua reação na bioquímica do corpo. Ele deverá ainda
apresentar junto com suas conclusões o exato processo através do qual testou e investigou as
propriedades calmantes das duas ervas, para que outro pesquisador, se desejar, possa reproduzir
o experimento para comprovar ou refutar a sua hipótese.

A pessoa que simplesmente toma o chá recomendado pela avó, por outro lado, poderá dizer
que um deles é melhor porque é mais gostoso ou porque tem uma recordação afetiva da avó
preparando o chá. E se fizermos a mesma pergunta a outro bebedor de chás, seu veredito pode
ser exatamente oposto baseado nas mesmas justificativas.

Você agora deve estar pensando: então, se a ciência me garante maior precisão nas respostas,
posso dizer que o conhecimento científico é melhor do que todos os outros!

Não necessariamente.

Dentre os quatro tipos de conhecimento apresentados, o científico é o único que se baseia


exclusivamente na análise dos fatos, sem permitir a utilização da subjetividade para modificar
os seus resultados. Valores, ideais, predileções, opiniões e afetos variam de uma pessoa para
outra, por isso não podem ser considerados para um resultado científico.

Contudo, o que definirá o quão “melhor” será um tipo de conhecimento, será o contexto em
que ele será necessário, seus objetivos e a utilização que será feita dele. Se você deseja construir
uma ponte, aconselho que utilize o método científico; para decidir que sapato usar na festa de
aniversário do seu irmão, o senso comum poderá ser mais indicado; no caso da perda de um ente
querido, o conhecimento religioso pode ser capaz de trazer o conforto que nenhum dos outros
trará; e o conhecimento filosófico pode ser essencial para que você analise todas as implicações
envolvidas em contar para sua melhor amiga que o marido dela está tendo um caso extraconjugal.

33
CAPÍTULO 2 • Em busca de uma ciência para entender a sociedade

Mas o que tudo isso tem a ver com a Sociologia? Como toda esta distinção entre tipos de
conhecimento nos ajuda a saber se nosso amigo das cavernas, há sessenta mil anos, refletindo
sobre as pessoas se abrigando da chuva já era um sociólogo?

Estou certa de que, depois de discutirmos os diferentes tipos de conhecimentos, você pode imaginar
que a resposta a que aquele sujeito chegou sobre o dilema da chuva foi baseada na reflexão religiosa
ou do senso comum. A utilização da racionalidade na construção de conhecimento surgiu apenas
na Grécia do século VI a.C., quando a insatisfação diante das respostas fornecidas pelos mitos
fez com que os primeiros filósofos buscassem uma nova forma de explicar o mundo, não mais
centrada no sobrenatural, mas, sim, na observação e na reflexão racional a respeito da realidade.

Com o passar do tempo, esta observação racional da filosofia a respeito dos fenômenos da natureza
foi se tornando cada vez mais metódica e especializada, dando origem, assim, a ciências como
Biologia, Física, Química, etc.

Entretanto, é apenas no século XV, com o final da Idade Média e o início da Idade Moderna, que
a ciência se tornará, como aponta Alessandro Paixão (2012), a forma dominante e aceita como
verdadeira para explicar a realidade. Este, para nós, é um dado importante, pois foi apenas quando
atribuímos à ciência a primazia enquanto forma de explicação da realidade, que estabelecemos
o contexto propício para o surgimento da Sociologia.

O contexto histórico para o surgimento da Sociologia

Para de fato compreendermos o que é a Sociologia, seu objeto de estudo e o método através do
qual ela se dedica a explicar a sociedade, é fundamental compreendermos o contexto histórico e
social em que se dá o nascimento desta disciplina. Como apontado por Bomeny (2016), a Sociologia
é uma filha da modernidade, criada na Europa no século XIX, mas herdeira das transformações
sociais que se iniciaram a partir do século XV.

Os “tempos modernos” se iniciaram no século XV, quando uma série de mudanças


afetou as sociedades europeias e a vida urbana foi impulsionada, como reflexo
das Grandes Navegações e do desenvolvimento do comércio no continente
europeu e no ultramar. A nova maneira de viver e de ver o mundo contrastava,
cada vez mais, com a da sociedade medieval, caracterizada por estratificação
rígida e imobilidade social. A estratificação era reforçada pelo dogma cristão
que atribuía à vontade de Deus o lugar que cada um ocupava na sociedade. A
igreja também se encarregava de definir o que era certo ou errado nos campos
político, econômico e cultural. Com isso, por muito tempo, as atividades ligadas
ao comércio não tiveram a mesma importância social das atividades agrícolas.

O século XVIII se destacou no processo de mudanças que caracterizou os


“tempos modernos” porque foi berço de importantes revoluções: a Revolução

34
Em busca de uma ciência para entender a sociedade • CAPÍTULO 2

Industrial e a Revolução Francesa. A primeira trouxe, para as cidades, novos


contingentes originários das vilas rurais, o que gerou um profundo impacto social;
a segunda buscou assegurar direitos da nova população que havia se instalado
no ambiente urbano. A cidade foi o espaço privilegiado para transformações
sociais, econômicas e políticas na Era Moderna. O ritmo urbano acelerado e as
mudanças econômicas e políticas, bem como o desenvolvimento da ciência e da
tecnologia, alimentaram a ideia de que a vida em sociedade é fruto do trabalho e
da invenção humana. Essa nova mentalidade contribuiu para o desenvolvimento,
em meados do século XIX, de um campo de estudos dedicado a compreender
o sentido das transformações sociais e como os indivíduos reagiam a elas. Com
essa promessa, nasceu a sociologia. (BOMENY et al.., 2016, p. 23).

Vejamos a seguir mais detidamente a contribuição de cada uma destas grandes transformações
sociais para o surgimento da Sociologia:

» Urbanização – a partir do século XV, a Europa, até então predominantemente rural,


experimenta um grande fluxo de pessoas saídas do campo para povoar as cidades, que
se viam cada vez mais populosas sem estarem devidamente preparadas para o novo
contingente de habitantes. Esta proximidade constante entre vizinhos, muitas vezes de
diferentes etnias, religiões e até mesmo classes sociais, fez aflorar uma série de novas
problemáticas sociais.

» Grandes Navegações – movimento de exploração marítima que se iniciou a partir do


século XV, quando os avanços tecnológicos na área da navegação, como a caravela e
bússola, permitiram aos europeus, especialmente portugueses e espanhóis, buscar através
dos oceanos Atlântico e Pacífico, novas rotas de comércio. Com isso, o europeu, tão
acostumado consigo mesmo, passou a ter contato com povos e culturas completamente
diferentes da sua, seja a dos povos da América e da Oceania, até então desconhecidos,
ou das populações da Ásia e da África com quem se tinha um contato muito reduzido.
Este é também o primeiro passo para a colonização pela Europa do restante do mundo.

» Humanismo – movimento intelectual iniciado no século XV, que marcou a passagem


da Idade Média, em que a organização da vida girava em torno dos desígnios de Deus e
do dogma religioso (teocentrismo), para a Idade Moderna, onde o centro das reflexões
e interesses tornou-se o homem (antropocentrismo). Neste contexto de valorização da
ação humana, a sociedade deixa de ser entendida como a representação imutável da
vontade de Deus e passa a ser vista como uma construção dos próprios homens, que,
portanto, pode ser modificada. Se antes um camponês se comportava de acordo com
sua classe por acreditar que esta era a vontade de Deus para a sua vida, por exemplo,
com o movimento humanista abre-se a possibilidade do desejo por mobilidade social.

» Revolução Científica – com o advento do movimento Humanista, que contestava os


dogmas religiosos a respeito do mundo e incentivava uma reflexão mais crítica e reflexiva

35
CAPÍTULO 2 • Em busca de uma ciência para entender a sociedade

a respeito do universo, aconteceu a partir do século XVI, uma valorização do pensamento


científico e a reformulação de sua abordagem, focando-se na rigorosidade do método de
coleta de dados, avaliação e comprovação de leis e teorias universais. Desenvolveram-
se, assim, grandes avanços em áreas como a Medicina, a Física e a Astronomia, mas,
também, na produção de novas tecnologias a serem utilizadas pela nova sociedade
urbana e industrializada que aflorava neste período.

» Revolução Industrial – iniciada a partir do século XVIII, trata-se do conjunto de


transformações que levaram a Europa de um continente rural em que o povo produzia
aquilo que consumia para uma Europa urbana, com a população empregada, em sua
maioria, nas fábricas, que exploravam a mão de obra assalariada. O advento da fábrica e
da produção e comercialização de bens em grande escala modificou definitivamente não
só os padrões de produção e consumo, mas, também, a própria estrutura da sociedade
europeia, em especial no que diz respeito à relação do homem com o trabalho.

» Revolução Francesa – iniciada em 1789, foi um período de grandes transformações


políticas e sociais na França, que culminou com o fim do Absolutismo e dos privilégios
da nobreza e do clero. Com base nos ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade”, a
Revolução Francesa foi a grande responsável pela obtenção de direitos para as massas
recentemente transferidas do campo para o ambiente urbano, sendo definida como
marco histórico que finaliza a Modernidade e dá início à Idade Contemporânea.

A união de todos estes fatores constrói um retrato bastante preciso de como era a vida no final
do século XVIII e início do século XIX.

Não temos mais a autoridade religiosa nos dizendo que a vida é como é por desígnio divino e
precisamos encarar a nossa própria responsabilidade pelas condições sociais em que vivemos;
lidamos agora com cidades populosas que apresentavam problemas sociais em escalas nunca
antes vistas; o contato com povos e culturas completamente diferentes da europeia criavam um
estranhamento crescente e suscitavam o incômodo de se perguntar como lidar com este “outro”
que é tão diferente de mim. Por fim, temos a ciência a todo vapor, utilizando seu método de
investigação para refletir sobre todas as áreas da vida humana e para solucionar toda sorte de
problemas que ela pudesse apresentar.

É neste contexto que surge o seguinte questionamento: e se nós utilizássemos o método científico
para estudar a sociedade e solucionar, com isso, os seus problemas?

36
Em busca de uma ciência para entender a sociedade • CAPÍTULO 2

Saiba mais

Para visualizar as condições sociais conturbadas no início do século XIX, temos duas boas dicas de filme:

Germinal

França: 1993 – Direção de Claude Berri

Baseado no romance de Émile Zola, o filme apresenta as condições precárias e de exploração em


que viviam os trabalhadores das minas de carvão na França do século XIX, retratando também a
mobilização destes trabalhadores em busca de melhoria nas suas condições de trabalho.

Fonte: <filmow.com/germinal-t5082/>

Os miseráveis

Reino Unido: 2013 – Direção de Tom Hooper

Baseado no romance de Victor Hugo, este filme musical é ambientado em plena Revolução Francesa
e, a partir da história de vida do personagem Jean Valjean, retrata as condições de exploração da
classe operária no século XIX.

Fonte: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-190788/fotos
/detalhe/?cmediafile=20369586>

A Sociologia e o estudo científico da sociedade

Ao longo da história da Sociologia, muitas definições foram atribuídas a esta disciplina, cada
uma delas associada a uma corrente de pensamento específica, na tentativa de deixar claro o seu
próprio ponto de vista a respeito da particularidade de sua abordagem, de seu foco de estudo e
de suas interpretações. É admissível, desta forma, afirmar que a Sociologia pode ser entendida
como “a ciência dos fatos sociais”, “a ciência da ação social”, “a ciência das relações sociais”, “a
ciência dos fenômenos sociais”, entre tantas outras definições corretas, mas não necessariamente
completas ou consensuais dentro do próprio campo da Sociologia.

De acordo com Nildo Viana (2011), existe, no entanto, uma definição mais simples a que podemos
recorrer para entendermos com clareza o que significa a Sociologia. Esta definição proposta por
ele é interessante não só por simplificar o entendimento, mas por ser tão abrangente que todas
as definições complexas apresentadas anteriormente cabem dentro dela:

37
CAPÍTULO 2 • Em busca de uma ciência para entender a sociedade

A sociologia é a ciência da sociedade

Esta definição é um excelente ponto de partida para nossa reflexão, pois deixa evidentes os dois
pontos fundamentais de todo o fazer sociológico:

» Seu objeto de estudo primordial é a sociedade.

» Seu método de investigação é rigoroso e inspirado no fazer científico.

A própria formação do termo sociologia revela a importância destes dois pressupostos para a
compreensão do que significa esta disciplina:

Figura 6. Etimologia da palavra sociologia.

Fonte: Elaborada pelo autor.

Torna-se claro, desta forma, que o sociólogo não é aquele que simplesmente se questiona a
respeito da vida em sociedade, mas, sim, aquele que busca respostas para estes questionamentos
através da investigação científica, cujos principais aspectos são:

» Ser objetiva, pois suas conclusões são baseadas exclusivamente nos fatos e não em
valores, crenças ou experiências pessoais do investigador, que deve ser manter o mais
neutro possível para não influenciar os resultados obtidos.

» Ser metódica, visto que o conhecimento é produzido através de regras e técnicas


específicas de investigação, que garantem a precisão dos resultados encontrados.

» Ser verificável, pois os experimentos que levaram a determinado resultado podem ser
reproduzidos para avaliar a sua autenticidade.

A transposição destas características para o estudo das sociedades, no entanto, apresenta ao


pesquisador alguns dilemas bastante desafiadores.

Imagine, por exemplo, que um cientista da área da Física estuda a velocidade atingida por um
projétil ao ser arremessado de determinada altura. Para desenvolver esta experiência, ele seguirá
uma metodologia rígida, em que sejam devidamente registradas e controladas variáveis como

38
Em busca de uma ciência para entender a sociedade • CAPÍTULO 2

o peso do projétil, a altura e a força do arremesso, o atrito com o ar, etc. Depois de concluída a
análise, um segundo pesquisador, que tenha tido acesso aos dados da primeira pesquisa, poderá
reproduzir o mesmo experimento, partindo das mesmas variáveis, para verificar se o resultado
apresentado anteriormente está correto ou não.

Pensemos, agora, em um experimento que se dedique a analisar cientificamente uma instituição


social, como a família. Em primeiro lugar, é importante destacar que este pesquisador não
estará investigando um projétil, com o qual dificilmente se identificará pessoalmente, mas
outros seres humanos, em relação aos quais ele poderá sentir empatia ou repulsa, com os quais
compartilhará ou não valores, ideais e afetos que deverão ser constantemente relativizados para
garantir a objetividade.

Outro ponto complexo diz respeito à metodologia, pois se no exemplo inicial o experimento era
conduzido em um laboratório com as variáveis devidamente controladas, a vida social não pode
ser retirada de seu contexto ou reproduzida em ambiente estéril. Isso faz com que a Sociologia
precise construir seus próprios métodos de investigação da realidade, que se aproximam das
Ciências da Natureza na rigorosidade, mas devem possuir suas próprias estratégias de análise.

Por fim, ainda que o registro metodológico me forneça todas as variáveis e circunstâncias nas
quais determinada pesquisa sociológica foi desenvolvida, a capacidade de reprodução desta para
verificação nunca será tão precisa quanto nas Ciências Naturais. Mesmo que eu vá ao mesmo
local, converse com as mesmas pessoas e observe os mesmos costumes e práticas, o simples fato
da passagem de tempo pode ser suficiente para alterar meus resultados.

Figura 7. As características do cientista social.

Fonte: Dias (2010, p. 54).

39
CAPÍTULO 2 • Em busca de uma ciência para entender a sociedade

Auguste Comte e a fundação da Sociologia


Figura 8. Auguste Comte.

Fonte: <https://novaescola.org.br/conteudo/186/auguste-comte-pensador-frances-pai-positivismo>

O pensador francês Auguste Comte foi o responsável, em 1839, por cunhar o termo sociologia
para se referir a esta nova disciplina, que era vista por ele como a verdadeira ciência para
compreender a natureza humana. De acordo com este autor, caberia à Sociologia utilizar os
métodos das Ciências Naturais – observação, experimentação e comparação – para analisar de
forma positivista todas as leis fundamentais dos fenômenos sociais (FERRÉOL e NORECK, 2007).

O Positivismo desenvolvido por Comte postulava que o método científico aplicado ao estudo
da sociedade seria capaz não só de compreender o seu funcionamento como de construir
uma linha evolutiva das sociedades, onde estivesse claro o seu passado e pudéssemos prever
também o seu futuro. Desta forma, ao conhecer as leis que regeriam a sociedade, seria possível
reorganizar a vida social para progredir, fazendo com que a sociedade alcançasse o seu ponto
máximo de desenvolvimento.

Da mesma forma que o químico poderia prever como se dariam as reações entre
elementos químicos depois de descobrir as leis de funcionamento dessas reações,
o sociólogo seria capaz também de identificar leis invariáveis de funcionamento
da coletividade e prever os acontecimentos com base no entendimento dessas
leis. (PAIXÃO, 2012, p. 49).

Com base neste ideal positivista, Comte elabora a “lei dos três estados”, na qual defende que o
pensamento humano teria se desenvolvido em fases ou estágio bem definidos.

» Estado teológico – marcado pelo pensamento mítico em que todas as explicações para
o mundo recorrem à religiosidade e ao sobrenatural.

» Estado metafísico – momento de transição em que o pensamento mítico é substituído


pela reflexão abstrata e a imaginação dá lugar a argumentação.

» Estado positivo – etapa final da evolução das sociedades, em que a imaginação e a


argumentação são substituídas pela observação e a análise científica.

Esta teoria evolutiva da sociedade foi utilizada inclusive para justificar a colonização e opressão
das populações de todo o globo pelos europeus, que, de acordo com o esquema proposto por

40
Em busca de uma ciência para entender a sociedade • CAPÍTULO 2

Comte, estariam no ponto mais alto da evolução social. Uma vez que se acreditava que todas
as sociedades evoluiriam da mesma forma, seria, inclusive, um ato de bondade e justiça que os
colonizadores impusessem sobre os colonizados o seu próprio modo de vida com o intuito de
acelerar este processo evolutivo.

Posteriormente, esta teoria da evolução social foi duramente criticada, por não considerar a
pluralidade das sociedades e das suas culturas. No entanto, como destaca Nildo Viana (2011, p.
25), não podemos desconsiderar a importância de Comte para o estabelecimento da Sociologia
como uma ciência particular.

Sociologia clássica

Anteriormente, analisamos a importância do pensamento positivista de Auguste Comte para


a fundação da Sociologia e vimos que suas teorias, apesar de serem um marco na história
da disciplina, foram largamente criticadas e, com isso, perderam a capacidade de explicar os
fenômenos sociais. Como indicado por Viana (2011, p. 29):

as primeiras tentativas [da formação de uma ciência da sociedade], tais como


as de Saint-Simon, Proudhon, Comte e Spancer, entre outros, ainda não haviam
conseguido desvencilhar-se da influência do pensamento filosófico. A maioria
dos pensadores até então produziram “filosofias da história”, e o embasamento
empírico, muitas vezes anunciado e exaltado, manifesta-se extremamente
deficiente.

É apenas no final do século XIX, no entanto, que despontam os três pensadores que de fato
conseguiram lançar as bases teóricas para o estudo da sociedade enquanto ciência. São eles:
Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber.

Como indicado por Paixão (2012), estes autores possuem reflexões teóricas que ainda nos dias
de hoje são capazes de suscitar questionamentos interessantes e de propor respostas para eles.
Trata-se de pensadores que, pela amplitude de suas elaborações teóricas, são considerados como
clássicos, e suas obras continuam sendo estudadas como bases do pensamento sociológico.

Cuidado

Fundadores da disciplina ≠ Clássicos da disciplina

↓ ↓
Autores, como Comte, que contribuíram historicamente Autores que, além da contribuição histórica, possuem
para a constituição da disciplina, mas cujas teorias teorias que, apesar da passagem do tempo, não perderam
perderam seu valor explicativo. seu valor enquanto explicações da realidade. Ainda hoje,
estes autores clássicos são utilizados para fundamentar
teoricamente as reflexões sociológicas.

41
CAPÍTULO 2 • Em busca de uma ciência para entender a sociedade

A relação entre indivíduo e sociedade

Desde a origem da Sociologia, uma das principais indagações teóricas a mobilizar a reflexão e
investigação de inúmeros pensadores diz respeito à relação existente entre indivíduo e sociedade.
Trata-se, como sintetiza Afrânio Silva et al. (2016, p. 41), da tentativa de responder aos seguintes
questionamentos:

Como é possível que os indivíduos, com suas peculiaridades e diferenças, convivam em


sociedade de maneira organizada? Quem é o responsável pelo fundamento e pela maneira como
se apresentam as diferentes instituições sociais, como a família, a escola e o Estado? Serão os
indivíduos capazes de rebelar-se contra as regras sociais e transformá-las? Ou, ao contrário, as
regras sociais exercem uma força que restringe a capacidade de ação dos indivíduos?

Para melhor compreender esta inquietação teórica, imagine que a sociedade é marcada pela
existência de um grande cabo de guerra. De um lado, estaria puxando o indivíduo e seu
comportamento particular. Do outro lado, estaria a sociedade e seu comportamento coletivo.
Quem venceria esta disputa?

Figura 9. Disputa de forças entre indivíduo e sociedade

Fonte: superpsicoeducador.blogspot.com

Ainda segundo Silva (2016), o pensamento sociológico produziu três propostas de resposta
para este questionamento e cada uma delas está atrelada a uma das três principais correntes de
pensamento clássicas da Sociologia, que não só fundamentaram esta discussão historicamente,
como ainda hoje dialogam e servem de ponto de partida para diversas interpretações
contemporâneas que continuam a se debruçar sobre esta questão.

Retomando a metáfora do cabo de guerra, podemos dizer que estas três matrizes de resposta para
o dilema da relação entre indivíduo e sociedade divide os autores entre aqueles que apostam na
vitória do indivíduo, os que acreditam na vitória da sociedade e os que entendem que o resultado
desta disputa seria um empate.

Em termos formais, as apostas podem ser apresentadas de acordo com o seguinte esquema:

42
Em busca de uma ciência para entender a sociedade • CAPÍTULO 2

I. a sociedade determina os indivíduos;

II. os indivíduos determinam a sociedade; e

III. a sociedade e os indivíduos determinam-se reciprocamente, de acordo com


os limites estabelecidos pelas condições materiais de existência em um dado
período histórico. (SILVA et al., 2016, p. 41).

Analisaremos, a seguir, cada uma destas proposições teóricas e estudaremos, com isso, aqueles
que são considerados os principais autores da Sociologia clássica: Émile Durkheim, Max Weber
e Karl Marx.
Para refletir

Duvidar é preciso: “Só sei que nada sei”!


Millôr Fernandes, arguto inquiridor das aparentes obviedades, tem frase que nos provoca a reflexão: “Se você não tem
dúvidas é porque está mal informado”.

O impacto da frase vem da nossa percepção usual (muitas vezes equivocada) de que a presença da dúvida é caminho
para a ignorância; quando, especialmente em Ciências, é quando ela se apresenta que começamos a abandonar o
desconhecido.

Cautela com gente que não tem dúvidas! Gente assim não inova, não avança, não cria; só repete e redunda. Claro que não
podemos ser alguém que só tem dúvidas, pois, se assim for, qualquer ação e intervenção fica impossibilitada; no entanto,
não ter algumas delas em alguns momentos é sinal de tolice e reducionismo mental.

A ciência só se renova quando seus praticantes são capazes de colocar sob suspeita algumas das certezas que não
expõesm. Será que isto é assim mesmo? Será que não há outro modo de fazer? Será que isto não resulta mais de hábito

do que de verdade? Será que aceito o argumento pela autoridade que o proclama em vez de buscar os fundamentos da
veracidade do proclamador? Será?

Os “serás”, quando metódicos e sistemáticos, ajudam-nos a dar vigor às certezas e conhecimentos que nossas teorias
e práticas devem ter; em todas as situações nas quais não admitimos a presença de indagações e questionamentos,
aproximamo-nos do dogmatismo, e este sempre foi o principal veículo de degradação do saber científico.

Um pessoa inteligente, com humildade e sabedoria, é aquela que consolida as certezas do que deve fazer a partir da
capacidade de não supor que estas são imutáveis e invulneráveis. Afinal, sabemos, a melhor maneira de ficar vulnerável é
pensar-se como invulnerável...

Em 399 a.C., em Atenas, Sócrates foi condenado à morte, acusado de desprezo aos deuses do Estado; sua defesa frente
ao tribunal, registrada por Platão no diálogo Apologia de Sócrates, inclui, logo no início, uma profunda reflexão sobre a
sabedoria humana.

Como alguns amigos afirmavam que o oráculo de Delfos houvera dito que Sócrates era o mais sábio dos homens – e isso
compôs parte da acusação –, o filósofo rebate a soberba de um adversário dizendo que “Aquele homem acredita saber
alguma coisa sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber”.

A ideia é bastante inteligente e complexa e, mesmo resumido no clássico: “Só sei que nada sei”, permanece demonstrando
sabedoria. É evidente que Sócrates não está afirmando que nada sabia no sentido literal, mas, isso sim, que nada sabia por
completo, exceto o conhecimento que tinha sobre as suas próprias ignorâncias.

43
CAPÍTULO 2 • Em busca de uma ciência para entender a sociedade

Poderíamos chamar esta postura – saber que não se sabe tudo, o tempo todo, de todos os modos – de “sábia ignorância”,
ou, como denominada em obra de Nicolau de Cusa no século XV (antecipando a dúvida metódica de Descartes), a douta
ignorância.

Ainda vale! A consciência dos nossos desconhecimentos e, portanto, a procura incessante por uma formação continuada,
não é só sinal de necessária humildade; é, antes de tudo, poderoso antídoto às eventuais arrogâncias que vitimam mais os
seus praticantes do que certos algozes involuntários.

Um poço de ignorância? Precisamos, vez ou outra, entender a máxima popular, e citá-la de novo: “Quando estiver no fundo
do poço, a primeira coisa a fazer para sair dele é parar de cavar”.

Saber e admitir que não sabe interrompe a escavação... (CORTELLA, 2014, p. 121).

Sintetizando

Vimos até agora:

» Existem quatro tipos de pensamento através dos quais os seres humanos buscam explicar o mundo em que vivem:

› Conhecimento empírico ou de senso comum é aquele que se constrói a partir das vivências cotidianas e das referências
herdadas das gerações anteriores. É um tipo de conhecimento superficial, que não busca investigação, comprovação ou
aprofundamento;

› Conhecimento teológico, que se define pela explicação dos fatos através da ação de seres sobrenaturais. Com relação a
estes conhecimentos, não cabe refutação pois sustentam-se na fé daqueles que os utilizam;

› Conhecimento filosófico, que se baseia na utilização da racionalidade para explicar a realidade. Este tipo de pensamento
fundamenta-se na reflexão crítica, na abstração e na construção de argumentos;

› Conhecimento científico, que tem como fundamento a investigação objetiva, sistemática e metódica dos fatos.

» A partir do século XV, com o final da Idade Média e o início da Idade Moderna, uma série de transformações sociais
acontecem na Europa, sendo as principais delas:

› Migração da população rural para as cidades, criando, assim, novas problemáticas, demandas e formas de organização
da sociedade;

› Ampliação do contato do europeu com novas populações e diferentes culturas;

› Transposição do teocentrismo (centralidade de Deus) para o antropocentrismo (centralidade do homem);

› Valorização do pensamento científico.

» Este novo contexto histórico justifica a criação de uma nova ciência que tenha como objeto de estudo a sociedade e suas
problemáticas.

» Auguste Comte é considerado fundador da Sociologia, responsável por cunhar esta palavra e por desenvolver o
pensamento positivista, segundo o qual a sociedade poderia ser compreendida e transformada através da investigação
científica.

44
MAX WEBER E A AÇÃO SOCIAL
CAPÍTULO
3
Introdução

Neste capítulo, analisaremos a teoria de Max Weber, um dos pensadores definidos como um
clássico da Sociologia, que ainda hoje serve de referencial para muitos trabalhos desenvolvidos
em diferentes áreas do conhecimento.

Esperamos que ao longo desta reflexão você seja capaz de compreender os principais conceitos
da obra deste autor para relacioná-los posteriormente com o campo da educação.

Objetivos

» Apresentar a visão weberiana de que a relação entre indivíduo e sociedade se dá através


da ação dos sujeitos.

» Definir as ações sociais enquanto objeto de estudo definido por Weber para a Sociologia.

» Apresentar o método compreensivo definido por este autor como específico das ciências
sociais.

» Analisar os quatro tipos ideais nos quais Weber classifica a ação social.

» Diferenciar os conceitos de agir em comunidade e agir em sociedade.

» Investigar os tipos ideais em que se classificam as formas de dominação legítima;

» Analisar a relação estabelecida por Weber entre a educação e o processo de racionalização.

» Definir os tipos ideais de educação estabelecidos pelo autor.

» Refletir sobre a relação existente entre racionalização, educação especialidade e criticidade.

45
CAPÍTULO 3 • Max Weber e a ação social

Max Weber (1864-1920)

Max Weber foi um intelectual alemão, nascido em 1864, que além de suas contribuições como
um dos pais fundadores da Sociologia, dedicou-se ao estudo de disciplinas como Economia,
História, Direito e Filosofia.

Segundo indica Reinaldo Dias (2014, p. 31), Weber pode ser considerado um dos mais relevantes
pensadores do século XX, especialmente no que diz respeito ao estudo da burocracia, da religião,
das questões relativas à autoridade e dos sistemas de estratificação social.

Suas obras mais importantes foram:

» A ética protestante e o espírito do capitalismo moderno (1905).

» A ciência como vocação (1917).

» Economia e sociedade (publicado postumamente em 1922).

Figura 10. Max Weber

Fonte: brasilescola.uol.com.br

Objeto de estudo

O olhar de Weber para o estudo das sociedades se distingue dos demais por não partir da
apreciação do todo para compreender as partes. Ele faz o caminho inverso, defendendo que é
a partir da compreensão daquilo que motiva o indivíduo que poderemos entender a estrutura
da sociedade.

Com isso, Weber afirma que os indivíduos orientam conscientemente a sua conduta a partir de
um número variado de motivadores. Diferente do sujeito coagido pela sociedade que vimos em
Durkheim, para Weber as pessoas decidem o que fazer e a partir destas decisões agem de forma
individual ou social.

46
Max Weber e a ação social • CAPÍTULO 3

» Ações individuais: são aquelas que ocorrem quando o sujeito toma uma decisão
considerando apenas a sua própria agência. Como quando você decide comprar um
chocolate para comer depois do almoço, sentado sozinho na sua mesa de trabalho
enquanto revisa os e-mails do dia. É uma ação solitária, que depende apenas de você
mesmo.

» Ações sociais: são aquelas em que a decisão tomada pelo indivíduo está diretamente
relacionada à expectativa de ação de outros sujeitos. Como o cafezinho das três horas
no escritório, quando você se levanta da sua mesa na expectativa de que a funcionária
da copa tenha acabado de passar o café, expectativa esta que você compartilha com
outros colegas, que também se levantarão no mesmo momento, não só para tomar café,
mas para relaxarem juntos por um momento, discutindo amenidades e colocando o
papo em dia.

Neste caso, sua decisão estava diretamente relacionada à expectativa de que todos os envolvidos
se comportassem de uma maneira determinada: que a funcionária da copa passasse o café e
que todos os colegas de trabalho tomassem a mesma decisão de se levantar naquele momento.

É importante destacar, contudo, que ação social não é meramente uma ação coletiva, ou seja,
praticada simultaneamente por vários indivíduos. É necessário que nesta ação compartilhada
exista a expectativa de ação do outro.

Imagine, por exemplo, que você está no alto de um prédio e comece a chover. Olhando para a rua,
você nota que todos os pedestres começam, ao mesmo tempo, a abrir os seus guarda-chuvas. Esta
ação, no entanto, apesar de coletiva, não pode ser considerada como uma ação social, mesmo
que ao olhar de cima seja esta a impressão. Isso ocorre, pois cada pessoa abre o seu guarda-chuva
para proteger a si mesmo, sem se importar em saber o que farão as outras pessoas.

Se analisarmos, no entanto, a partir da visão da rua, a forma como estas pessoas se deslocam
pela cidade com seus guarda-chuvas abertos, pode fornecer indícios de ação social. Imagine,
por exemplo, duas pessoas vindo ao encontro uma da outra, e ao se aproximarem e trocarem um
breve olhar, uma delas suspende o guarda-chuva e a outra o abaixa para evitar que eles colidam.
A ação de desviar, neste caso, foi mútua e, portanto, pode ser considerada uma ação social.

Para Weber, as ações sociais devem ser o objeto de estudo da Sociologia. Cabe ao sociólogo,
segundo este autor, compreender as motivações que levam os sujeitos a se comportarem de
determinada maneira.

Vale ressaltar, neste sentido, que a ação do indivíduo, mesmo sendo social, pode ser motivada
por diferentes fatores, ou seja, várias pessoas podem se engajar em uma ação social partindo de
estímulos diferentes.

47
CAPÍTULO 3 • Max Weber e a ação social

Imagine, por exemplo, que um grupo de pessoas se reúna para organizar uma grande festa junina
na praça de uma cidade. Todos os indivíduos trabalham em parceria para que a festa aconteça.
No entanto, cada um deles foi levado a se voluntariar para a organização da festa por motivos
específicos:

» Maria vem de uma família católica muito devota de São João e, por isso, é uma tradição
familiar fazer parte da organização da festa em homenagem a este santo.

» Miguel se voluntariou na esperança de supervisionar a organização da quadrilha e, a


partir da determinação dos pares, conseguir uma oportunidade de dançar com Aline,
por quem está apaixonado.

» Ricardo gosta muito de comer pamonha, e ingressa na organização da festa para se


certificar de que esta iguaria será servida.

» Marcos deseja o status de organizador para ser visto pela mídia na companhia do prefeito,
com quem pretende estabelecer uma aliança política.

Perceba que a ação praticada pelos quatro indivíduos é a mesma: participar da organização da
festa junina na praça da cidade. E, mesmo que estejam engajados na organização por motivações
distintas, a atuação de cada um dos participantes possui a expectativa de que os demais membros
façam a sua parte para garantir que tudo esteja pronto no dia do evento.

Estes são, para Weber, os elementos fundamentais que compõem o objeto de estudo da
Sociologia:

Figura 11. Pressupostos da ação social.

Decisão individual e consciente para agir


Ação social

Motivada por questões que podem ser particulares ao


indivíduo

Baseada na expectativa de que outros indivíduos também


decidirão agir.

A decisão de um sujeito pode ser motivada por questões


diferentes das dos demais.

Fonte: Elaborada pela autora.

48
Max Weber e a ação social • CAPÍTULO 3

Metodologia e principais conceitos

Weber, assim como Durkheim, dedicou-se a desenvolver uma metodologia de estudo específica
para a sociologia. No entanto, enquanto Durkheim acreditava na maior proximidade possível
com os métodos das Ciências da Natureza, Weber defendia que a Sociologia, pela especificidade
de seu objeto de estudo, necessitaria de um método próprio.

Segundo ele, o método das Ciências da Natureza se adéqua ao fato de elas investigarem as
regularidades dos fenômenos, enquanto a Sociologia precisaria trabalhar com a multiplicidade
de sentidos atribuídos pelos sujeitos às suas ações.

Partindo deste pressuposto, Weber desenvolve o método compreensivo, centrado na tentativa


de compreender as motivações por trás das ações dos indivíduos, levando em consideração que
isso é tudo o que o pesquisador pode, de fato, observar. O papel do sociólogo, neste contexto,
seria o de descrever os comportamentos e compreensões das pessoas a respeito da própria
agência, para, a partir disso, interpretá-los.

Vale ressaltar, no entanto, que:

Não há [...] um sentido único que possa ser captado para sempre pelo investigador,
uma vez que os agentes podem estar motivados por um número variado de
sentidos. Portanto, conclui-se que uma interpretação sociológica de uma realidade
humana jamais poderá ser tomada como exata ou como a única verdadeira, já
que os motivos dos indivíduos variam muito e acaba ocorrendo de um sociólogo
julgar que um motivo é o mais relevante, quando, para outro pesquisador, de
acordo com as informações de que dispõe, a explicação pode ser completamente
diferente. Por isso, Weber acredita ser o pesquisador quem atribui o significado
que julga como explicativo de um fenômeno social. (DIAS. 2004, p. 36)

Retomando nosso exemplo da festa junina, isso equivaleria a dizer que, além de ser devota de
São João, Maria pode também gostar de pamonha, estar apaixonada por alguém com quem
gostaria de dançar, ou desejar propor uma aliança política ao prefeito. Todas estas motivações
atuam simultaneamente para fazer com que ela participe da organização da festa e é uma
escolha do observador estabelecer a devoção como a principal delas. Outro pesquisador, que
tenha presenciado a voracidade com que ela come pamonhas talvez tivesse definido este outro
fator como determinante para a ação de Maria. Podemos considerar ainda uma hipótese em
que nenhum observador seja capaz de compreender a real motivação que o levou a se oferecer
para participar da organização da festa.

Para a reflexão de Weber a realidade social é infinita, uma vez que são infinitos os sentidos que os
indivíduos podem atribuir à ação social. Isso faz com que seja impossível para o sociólogo captar
toda a realidade, pois apenas alguns aspectos dela estão disponíveis para a sua observação. Além

49
CAPÍTULO 3 • Max Weber e a ação social

disso, os próprios valores pessoais do investigador estão envolvidos neste processo de escolha
das partes da realidade que serão observadas e investigadas.

Este processo weberiano de investigação da realidade deve ser considerado como subjetivo, ainda
que isso não comprometa necessariamente a objetividade do conhecimento produzido por ele.
É fundamental, para tanto, que ao interpretar as ações e suas relações, o investigador leve em
consideração os valores que o próprio ator que executa a ação atribui a ela, e não os valores que
ele, investigador, lhes atribui.

Para Weber, a sociedade não é superior ao indivíduo, como em Durkheim, ou


uma estrutura que se impõe, como em Marx. A realidade social aparece como
uma “teia”, formada pelas relações entre os indivíduos. Não é possível descobrir
as “leis gerais” que orientam as intenções sociais, simplesmente porque essas
leis não existem. O que o sociólogo pode descobrir e estudar é o sentido que o
indivíduo confere à ação que empreende. Assim, podemos afirmar que, para
Weber, a sociedade é uma “teia”, que se forma pela interação de vários indivíduos.
(PAIXÃO. 2012, p. 120).

Esta dificuldade percebida pelo autor na forma como o sociólogo investiga as ações do indivíduo,
fez com que ele estabelecesse como estratégia metodológica a definição de tipos ideais de acordo
com os quais deveriam ser classificadas todas as ações sociais em relação aos motivos que as
levaram a existir.

Os tipos ideais em que Weber organiza as ações socias são os seguintes:

» Ação tradicional é aquela em que a motivação para agir é um hábito ou costume,


diante do qual o indivíduo apenas executa a ação sem muito refletir.

Exemplo: Cariocas se cumprimentam trocando dois beijinhos na face, enquanto


mineiros trocam três beijinhos, ambos agindo automaticamente e sem pensar antes da
ação quantos beijinhos serão trocados durante a saudação. Daí decorrem as situações
de embaraço relativas à quantidade de beijinhos quando brasileiros de diferentes
partes do País precisam se cumprimentar, resultando, inclusive, no mapa do beijinho,
desenvolvido pelo Ministério do Turismo.

50
Max Weber e a ação social • CAPÍTULO 3

Figura 12. Mapa do beijinho.

Fonte: <www.facebook.com/MinisteriodoTurismo>.

» Ação afetiva é aquela em que o indivíduo reage motivado com base nos afetos ou em
estados emocionais específicos.

Exemplo: Um torcedor no estádio de futebol que xinga o juiz diante de um lance


polêmico; um pai que se atira na frente de um carro para salvar a vida do filho ou uma
pessoa que se comporta com agressividade ao ser demitida. Em todos estes casos não
existe reflexão para agir, a reação dos sujeitos é automática e motivada por um estado
emocional muito forte.

» Ação racional orientada a valores é aquela em que a ação do indivíduo é executada


conscientemente na defesa de determinado ideal ou valor que seja importante para o
indivíduo e do qual ele não possa abrir mão. Mesmo que o sujeito seja capaz de calcular
as possíveis consequências de seus atos, ele não pode deixar de fazer aquilo que está de
acordo com seus ideais, mesmo que as consequências sejam negativas.

Exemplo: Um pai que denuncia o paradeiro do filho criminoso para a polícia. Mesmo
sabendo que sua atitude poderá acarretar a prisão do filho, ele não pode abrir mão de
seus valores éticos e morais.

» Ação racional orientada a fins é aquela em que o sujeito possui um objetivo específico
e organiza a sua ação como estratégia para atingir aquele fim.

Exemplo: O político que visita as comunidades carentes de sua região no período das
eleições, visando, com isso, angariar votos.

Para exemplificar a divisão destes tipos ideais proposta por Weber, Alessandro Paixão (2012, p.
123) apresenta o seguinte exemplo:

51
CAPÍTULO 3 • Max Weber e a ação social

Vamos supor que uma garota queira comprar uma calça nova. O fim desejado por ela é comprar a
calça. Se ela agir racionalmente com relação a fins, terá de escolher o melhor meio para conseguir
a calça. Poderá economizar dinheiro e de posse dele fazer uma pesquisa para efetuar a compra
no lugar mais barato. Isso é uma ação social com relação a fins. Por outro lado, se ela se guiar
por um valor estético, poderá não comprar a calça mais barata, mas, sim, a mais barata entre
as que mais lhe agradarem, segundo o valor estético que utiliza. Essa é uma ação racional com
relação a valores. Ela também poderá agir de maneira emotiva e deixar-se levar pelo impulso,
adquirindo a calça na primeira loja que vir e praticando uma ação afetiva. Se a jovem comprar
a calça em uma loja em que sua família sempre faz compras, ela estará seguindo um costume,
uma tradição. Nesse caso, sua ação será tradicional.

Vale ressaltar que, como defende Paixão (2012), estes tipos ideais estabelecidos por Weber não
existem de forma pura na sociedade, sendo apenas uma construção mental do pesquisador com
base em dados históricos e sociais que facilitam a sua compreensão e análise dos fatos. Uma
vez que a ação de um mesmo indivíduo pode ser motivada por diferentes fatores, não podemos
deixar de considerar a possibilidade de que estes estejam inscritos em diferentes tipos ideais.

Retomando o exemplo de Maria, que vem de uma família católica que tradicionalmente participa
da organização da festa de São João, podemos dizer que sua ação estaria inscrita no tipo de ação
social tradicional. No entanto, pode ser que ela também deseje comer pamonha, o que revelaria
uma ação racional orientada a fins, ou que a sua devoção ao santo homenageado faça com que
sua participação na festa seja pautada em uma ação racional baseada em valores.

Outro ponto a considerar na teoria de Weber, é o de que apesar da centralidade atribuída por
ele ao papel da escolha individual, esta decisão dos sujeitos não está completamente descolada
das normas, leis, tradições e convenções estabelecidas pela sociedade. Sendo assim, ao agir, o
indivíduo considera não somente a ação do outro, mas, também, as determinações da própria
sociedade. Segundo Paixão (2012, p. 124), “é o mesmo que dizer que os indivíduos fazem as
normas e também são feitos por elas”.

Figura 13. Influência mútua entre indivíduo e sociedade.

As normas e regras
As decisões
predefinidas pela
tomadas pelos
sociedade são
indivíduos
consideradas pelo
influenciam a
indivíduo no
estrutura da
momento de
sociedade.
decisão

Fonte: Adaptada de Paixão (2012).

52
Max Weber e a ação social • CAPÍTULO 3

Partindo deste pressuposto, Weber distingue ainda entre duas maneiras possíveis de agência do
indivíduo:

» Agir em comunidade: quando o indivíduo age na expectativa de ação de outro indivíduo,


como quando você cumprimenta um amigo na expectativa de que ele também o
cumprimente.

» Agir em sociedade: quando o indivíduo age de acordo com as normas e leis vigentes
na expectativa de que os outros indivíduos também nortearão a sua conduta de acordo
com estas leis, como quando você atravessa a rua quando o sinal está vermelho para os
carros confiando que os motoristas também se comportarão de acordo com a legislação
de trânsito.

Esta maneira de agir em sociedade, descrita por Weber está diretamente relacionada a sua visão
a respeito da distribuição do poder, ou seja, nas razões pelas quais alguns sujeitos detêm o poder
e, por isso, impõem sua vontade sobre a dos demais que, em contrapartida, submetem-se a este
poder e o obedecem.

Segundo a teoria weberiana, existem três tipos ideais entre os quais se dividem os tipos puros
de dominação legítima, aquelas em que há aceitação pelos dominados sobre o poder de mando
do dominador (SOUZA, 2015):

» Dominação tradicional: tipo de liderança que se baseia no respeito consagrado pela


tradição às relações senhoriais. Trata-se de uma relação de mando e obediência constituída
com base na tradição e assegurada pelos laços de fidelidade entre senhor e súditos. Este
poder é também passado de uma geração para a outra, em um ciclo tradicional no qual
os herdeiros dos dominados reconhecem o poder dos herdeiros dos dominantes.

Exemplo: O poder dos reis, ou aquele que se atribui aos coronéis no Brasil, desde os
tempos coloniais.

» Dominação carismática: tipo de liderança que se fundamenta na devoção afetiva à pessoa


do senhor e de seu carisma, tratado quase como um dom sobrenatural. Weber indica
ainda que este tipo de liderança é comum em momentos de crise, quando é minado o
poder tradicional e surgem os líderes carismáticos, vistos como extraordinários, dotados
de qualidades excepcionais e/ou sobrenaturais. Vale ressaltar também que este tipo de
dominação só se sustenta enquanto todos acreditam na autenticidade do líder e de sua
missão. Por isso, não é um tipo de poder que possa ser transmitido de uma pessoa para
outra, a não ser que esta segunda também seja dotada de carisma.

Exemplo: É o caso de figuras religiosas como Jesus Cristo, Maomé ou Gautama Sidarta,
que possuem seu poder fundamentado em atributos religiosos. Podemos relacioná-lo

53
CAPÍTULO 3 • Max Weber e a ação social

também a lideranças populistas centradas em figuras como a de Perón, na Argentina,


e Getúlio Vargas, no Brasil.

» Dominação racional-legal: tipo de poder que se baseia na legitimidade atribuída às


leis e aos indivíduos responsáveis por elaborar estas leis. Nestes casos, a obediência
se fundamenta na crença racional de que o líder ocupa uma posição bem definida no
sistema burocrático no qual se organiza a sociedade.

Exemplo: É o caso de vereadores, senadores, deputados, prefeitos, governadores e


presidentes da República, todos eleitos pela população em um sistema racional e legal
de organização social.

Esta tipologia da dominação legítima é um ponto fundamental para o pensamento sociológico


de Weber e é justamente nela que se sustentam as reflexões que se associam a este autor no
campo da educação.

Contribuição para a educação

Dentre os três pensadores clássicos da Sociologia, Weber é o único que não possui uma reflexão
específica e mais sistemática sobre o papel da educação na sociedade. No entanto, é possível
aproximar esta temática de sua reflexão sobre o processo de racionalização da sociedade
moderna, através do qual os indivíduos baseiam cada vez mais as suas condutas de acordo com
uma tomada de decisão racional.

As pessoas estariam utilizando-se cada vez mais de elementos racionais para


guiar e organizar sua vida. Elas estariam escolhendo os meios mais adequados,
avaliando as consequências futuras, tendo como base o conhecimento técnico
e o desenvolvimento da ciência. Assim, a tradição, as concepções mágicas e
religiosas estariam perdendo lugar para o conhecimento técnico na organização
da vida das pessoas. A sociedade estaria passando, então, por um processo que
Weber chama de racionalização. (PAIXÃO, 20012, p. 126).

Este processo é denominado também de desencantamento do mundo na medida em que as


explicações para a realidade baseadas na tradição, na magia e nas religiões perdem cada vez mais
espaço para aquelas leituras da realidade fundamentadas na racionalidade. Trata-se do triunfo
da ciência e da técnica como formas privilegiadas de organização da vida.

Juntamente com o crescimento desta tendência à racionalização, Weber identifica uma tendência
maior dos indivíduos a organizarem a sua ação social com relação a fins e a legitimarem a
dominação a partir de processos racionais-legais. Com isso, aumenta consideravelmente o
número de normas e leis a que se sujeitam os indivíduos, fazendo com que o agir em comunidade
vá sendo cada vez mais substituído pelo agir em sociedade. Com isso, Weber indica que o

54
Max Weber e a ação social • CAPÍTULO 3

comportamento das pessoas passa a se fundamentar menos na expectativa pela ação individual
do outro e mais na expectativa à obediência coletiva nas normas e leis estipuladas.

Por um lado, como indica Paixão (2012), este processo é vantajoso, pois torna o mundo mais fácil
de ser compreendido, uma vez que possuímos as normas para organizar nossa conduta e saber
exatamente o que é esperado de nós. Por outro lado, no entanto, esta racionalização exacerbada
através da criação de leis faz com que percamos um pouco do sentido e da liberdade, uma vez
que não interpretamos mais ou refletimos sobre o mundo, apenas cumprimos ordens como se
a elas estivéssemos presos.

Para ilustrar este ponto de vista, vejamos o exemplo a seguir, que se relaciona diretamente com
a educação:

Vamos pensar na chamada que é feita em todas as escolas para verificar quais
alunos estão presentes na aula. A lista ou o livro de chamada é um procedimento
criado com o pressuposto de que todo aluno deve chegar no horário e de que todo
aluno deve assistir a um número mínimo de aulas para garantir seu aprendizado.
Isso é uma norma, uma regra burocrática, que orienta o comportamento dos
indivíduos em busca de um fim, que é a aquisição de conhecimentos ou a
capacitação. Entretanto, essa norma pode se transformar em um fim em si
mesma quando os alunos ou o professor vão à aula unicamente tendo em vista a
presença no livro de chamada. Nesse caso, o fim se perde, e o que era apenas um
meio se transforma em fim. Não se comparece à aula pelos conteúdos a serem
aprendidos ou ministrados, mas pela presença que todos devem ter segundo o
que a lei orienta ou estabelece. (PAIXÃO, 20012, p. 131).

Neste contexto, da mesma forma que a sociedade moderna burocratizada transforma


profundamente os tipos de ação social e dominação legítima predominantes, modifica-se
também a educação, que apesar de não ter sido foco principal das reflexões de Weber, foram
tipificadas em seus escritos sobre a religião na China.

Como aponta Carlos Eduardo Sell (2015), neste trabalho estão definidos os três tipos ideais
relacionados à educação que, por sua vez, estão diretamente relacionados à tipologia da
dominação que analisamos anteriormente.

Temos, então, as seguintes tipificações da prática educacional:

» Educação carismática: relacionada à dominação carismática, é aquela em que


os educadores tentam simplesmente despertar no educando um tipo místico de
característica, que já deve pertencer ao sujeito, uma vez que não se pode preparar ou
ensinar a alguém o carisma. Ele é um dom pessoal do indivíduo.

Exemplo: A educação a que se submetem os heróis guerreiros ou os mágicos e feiticeiros.

55
CAPÍTULO 3 • Max Weber e a ação social

» Educação humanística: relacionada à dominação tradicional, refere-se a um tipo de


educação voltada ao cultivo de uma conduta de vida, na qual são considerados os aspectos
interior e exterior do indivíduo para a formação de um homem culto de acordo com o
referencial social em que ele vive.

Exemplo: A educação para a formação de um lorde inglês ou dos guerreiros japoneses.

» Educação especializada: relacionada à dominação racional-legal, é um tipo de


treinamento que pode ser aplicado a qualquer pessoa na tentativa de prepará-la para
executar atividades úteis para a administração.

Exemplo: Formação de médicos, engenheiros, advogados, etc.

De acordo com Weber, no contexto das sociedades modernas, a educação vai sendo cada vez
mais racionalizada, se afastando de seus elementos religiosos e metafísicos para atender à
necessidade burocrática de treinar os sujeitos que possibilitarão a manutenção da organização
social. Com isso, da mesma forma como ocorre na sociedade de forma mais ampla, ganhamos
no sentido de especializar a atuação dos indivíduos para as atividades que irão desempenhar,
mas perdemos o conteúdo ético e reflexivo da educação Apreende-se ainda deste texto, a
relação estabelecida por Weber entre a educação ocidental e o processo de racionalização
(SELL, 2015, p. 214).

Esta é uma discussão bastante atual na educação, ainda nos dias de hoje. Pensemos, por exemplo,
nos tantos alunos que percebem enquanto finalidade da educação escolar não a construção de
conhecimentos e o exercício da reflexão crítica, mas, sim, o treinamento objetivo para a realização
das provas do vestibular que lhes permitirão acesso nas universidades onde especializarão seus
saberes de acordo com a prática profissional escolhida.

Despertar o interesse destes alunos para questões que vão além das métricas, classificações e
certificações é um desafio constante, mas, ainda assim, válido, visto que é refletindo a respeito de
sua própria realidade que os indivíduos se tornam atores de suas próprias vidas e não somente
expectadores passivos, que cumprem sem questionar as regras e normas que lhes são impostas.

Isto não implica, segundo o pensamento de Weber, uma incitação à desobediência, visto que este
autor entende que a dominação legítima é aquela em que existe um acordo entre dominantes
e dominados de que o poder lhes pode ser imposto. Mas não se pode admitir, no entanto, o
obedecer por obedecer, sem compreender de fato os motivos pelos quais o indivíduo está
conduzindo a sua ação.

56
Max Weber e a ação social • CAPÍTULO 3

Sintetizando

Vimos até agora:

» A visão weberiana de que a relação entre indivíduo e sociedade se dá através da ação dos sujeitos.

» As ações sociais enquanto objeto de estudo definido por Weber para a sociologia.

» O método compreensivo definido por este autor como específico das Ciências Sociais.

» Os quatro tipos ideais nos quais Weber classifica a ação social.

» Os conceitos de agir em comunidade e agir em sociedade.

» Os tipos ideais em que se classificam as formas de dominação legítima.

» A relação estabelecida por Weber entre a educação e o processo de racionalização.

» Os tipos ideais de educação estabelecidos pelo autor.

» Sobre a relação existente entre racionalização, educação especialidade e criticidade.

57
CAPÍTULO
ÉMILE DURKHEIM E
OS FATOS SOCIAIS 4
Introdução

Ao longo deste capítulo, você conhecerá os principais conceitos da Sociologia funcionalista


desenvolvida por Émile Durkheim, dando importante destaque à metodologia desenvolvida por
este autor para a Sociologia e ao objeto de estudo definido por ele para a disciplina: os fatos sociais.

Veremos, ainda, as contribuições do pensamento de Durkheim para a reflexão sobre o papel


da educação, destacando a característica socializadora e reprodutivista que ele identifica nesta
instituição social.

Objetivos

» Apresentar a metodologia de estudo desenvolvida por Durkheim para a Sociologia.

» Definir o conceito de fato social.

» Diferenciar os tipos de solidariedade e seu papel na manutenção da vida social.

» Apresentar o conceito de anomia enquanto um tipo extremo de patologia social.

» Compreender o caráter reprodutivista da escola.

58
Émile Durkheim e os fatos sociais • CAPÍTULO 4

Émile Durkheim (1858-1917)

O sociólogo francês Émile Durkheim nasceu em 1858, em uma família judia, e dedicou-se no
início de sua carreira a lecionar Pedagogia e Ciências Sociais na Universidade de Bordeaux e,
posteriormente, na Sorbonne.

No campo das Ciências Sociais, foi o primeiro a de fato desenvolver a Sociologia enquanto uma
disciplina acadêmica, tendo dedicado seus maiores esforços a definir o objeto de estudo da
Sociologia e estabelecer um método de investigação verdadeiramente científico para explicar
os fenômenos sociais. Por este motivo, é considerado por muitos o verdadeiro fundador da
Sociologia e sempre figura entre seus autores clássicos.

Seus principais escritos foram:

» Da divisão do trabalho social (1893).

» As regras do método sociológico (1895).

» O suicídio (1897).

Figura 14. Émile Durkheim.

Fonte: <paradigmas-sociais.blogspot.com>

Objeto de estudo

Na busca por compreender a relação existente entre indivíduo e sociedade, Durkheim


identificou no contexto social um conjunto de normas e regras estabelecidas coletivamente,
que condicionam a ação dos indivíduos, permitindo, assim, a existência e manutenção da
sociedade. Trata-se de formas específicas de agir, sentir e pensar que se impõem sobre a vontade
individual, forçando o sujeito a se comportar de uma maneira específica, mesmo quando ele
acredita estar agindo por determinação própria.

59
CAPÍTULO 4 • Émile Durkheim e os fatos sociais

Para esse estudioso, a sociedade pode ser definida como um conjunto de crenças, sentimentos,
representações e práticas que associam os homens entre si. A sociedade, assim, não é composta
pela soma dos indivíduos, isto é, de suas consciências individuais, mas sim pela presença de
uma consciência coletiva (ou comum). Essa consciência coletiva é responsável pela formação
dos valores morais e, dessa forma, ela exerce uma pressão externa aos indivíduos no momento
de suas escolhas, em maior (nas sociedades pré-industriais) ou menor (na sociedade industrial).
(DIAS, 2014, p. 23).

Durkheim denomina estes elementos fatos sociais e determina que o seu estudo deve ser o
objetivo da Sociologia. No entanto, nem todos os comportamentos e ações observadas em
uma sociedade podem ser denominados fatos sociais, sendo fundamental que, para isso, sejam
observados os seguintes critérios:

» Exterioridade, pois existem de forma externa e anterior ao indivíduo e atuam sobre o


comportamento dele independentemente da sua vontade ou de sua reflexão.

» Coercitividade, pois existe uma obrigação implícita ou explícita para que as normas
sejam seguidas, e o não cumprimento delas acarreta para o infrator um tipo de punição::

› Sanções legais, quando existe um ordenamento específico na forma de leis ou


regulamentos que ao serem descumpridos acarretam uma pena específica definida
pela sociedade.

› Sanções espontâneas, quando o comportamento descumprido não está estabelecido


em lei, mas no costume, nas tradições e no consciente coletivo daquela sociedade.
A ação, apesar de não ser ilegal, é vista como inadequada ou inapropriada e será
coibida pela reação espontânea das pessoas, que recriminarão o comportamento
do indivíduo.

» Generalidade, pois uma vez que os fatos sociais são coletivos, eles existem e se aplicam
a todos os indivíduos de determinada sociedade.

Um exemplo óbvio destes critérios é o cumprimento das leis. Ao dirigir, somos obrigados a nos
manter dentro do limite de velocidade estabelecido em lei para cada uma das vias públicas,
norma esta que não é decidida por nós. Ela existe para além de nossa vontade e nos obriga a
seguir certo comportamento, pois a infração nos acarretará multa ou mesmo a perda do direito
de dirigir. Podemos dizer, com isso, que o cumprimento das leis é um fato social, que por ter uma
norma expressa e uma punição juridicamente estabelecida é facilmente identificado como tal.

Analisemos, então, uma situação menos óbvia, como uma festa de aniversário para a qual
sejamos convidados. Não existe qualquer legislação que estabeleça a obrigação de oferecermos
um presente ao aniversariante. No entanto, nossa sociedade compartilha este princípio de que
ao comparecer a uma festa de aniversário você deve levar um presente.

60
Émile Durkheim e os fatos sociais • CAPÍTULO 4

Antes mesmo de você nascer, este costume já existia, portanto, a vontade de presentear não é
algo que simplesmente aflora de você, mas, sim, um comportamento externo e anterior a sua
própria existência que os indivíduos aprendem no convívio em sociedade e sentem-se compelidos
a cumprir independente de sua vontade (exterioridade).

No caso de chegarmos a uma festa de aniversário de mãos abanando, não existe também uma
punição formal para o não cumprimento da norma. No entanto, a sociedade punirá o infrator
através dos olhares de reprovação dos outros convidados, da fofoca, do desapontamento do
aniversariante, da perda de prestígio, da alcunha de “mão de vaca”, “sovina” ou “muquirana”, bem
como o próprio sentimento de vergonha sentido pelo sujeito, que buscará justificar a ausência
do presente e passará a se sentir em dívida com o aniversariante até retificar o comportamento
inadequado (coercitividade).

Por fim, a normatização de que se presenteie o aniversariante em uma festa, se aplica a todos
os membros da sociedade, não importando sexo, religião, nível de escolaridade, classe social,
etc. Não importa se o presente dado será um carro zero ou um par de meias, mas a expectativa
social pelo presente estará sempre lá (generalidade).

Metodologia e principais conceitos

O método de investigação desenvolvido por Durkheim foi o funcionalismo, também denominado


método comparativo, que, de acordo com Silva et al. (2016, p. 26), consistiria em aplicar ao
estudo da realidade social uma adaptação do método experimental utilizado pelas Ciências
da Natureza. Segundo o autor:

O método experimental é constituído de etapas: a observação de um fenômeno, a formulação de


hipóteses e as experiências controladas, com o objetivo de comprovar as hipóteses. A pesquisa
experimental analisa um fenômeno qualquer com o objetivo de chegar a leis (regularidades) que
permitam elaborar generalizações e teorias explicativas do fenômeno observado.

A palavra funcionalismo baseia-se na premissa durkheimiana de que toda sociedade possuía


visão de que qualquer prática social tem uma ordem, através da qual todos os indivíduos seriam
conduzidos a cumprir suas funções. Para ele, não existiria qualquer tipo de instituição ou mesmo
comportamento individual que não possua um significado específico para aquela sociedade e
que não cumpra função determinada na manutenção dela.

Para visualizar esta teoria, imagine que sobre uma mesa você encontra, de um lado, um relógio
montado e funcionando perfeitamente, e ao lado estão dispostas todas as peças necessárias
para a montagem de um relógio semelhante ao primeiro. Podemos afirmar que sobre a mesa
encontram-se dois relógios?

61
CAPÍTULO 4 • Émile Durkheim e os fatos sociais

Durkheim afirmaria objetivamente que temos sobre a mesa um relógio e um conjunto de peças,
pois, assim como na sociedade, o todo do relógio é diferente da mera soma de suas partes. O que
configura o relógio não é o fato de termos todas as suas engrenagens, mas, sim, a ocorrência de
todas estas peças estarem conectadas na ordem correta, cada uma executando a sua função e
todas dependendo umas das outras para que o relógio cumpra o seu objetivo de marcar as horas.

O corpo humano também nos fornece uma boa analogia, pois nele, mesmo que cada um dos
órgãos possua sua função específica, eles dependem que o todo esteja funcionando de forma
harmônica para a manutenção da vida. Não importa que o sujeito, depois de um acidente
automobilístico, esteja com o baço, os rins e os pulmões funcionando perfeitamente; se o coração
parar, todo o sistema se desequilibra e o corpo tende à morte se o funcionamento do coração
não for normalizado.

O método comparativo desenvolvido por Durkheim fundamenta-se nesta compreensão de


que todos os elementos de um sistema, inclusive do sistema social, obedecem a uma ordem
predeterminada e funcionam em interdependência com as demais partes. Sendo assim, os
fenômenos particulares da vida em sociedade devem ser estudados levando em consideração
a função que eles cumprem e a forma como se integram ao funcionamento geral da sociedade.

Para que este funcionamento adequado da sociedade se concretize, todos os seus elementos
precisam estar agindo em harmonia, de forma coesa. Por isso, Durkheim desenvolve o conceito
de coesão social, que resulta da ação solidária de todas as partes. A solidariedade social é dividida
da seguinte forma:

» Solidariedade mecânica: típica de sociedades mais simples, com menor divisão


do trabalho, em que todos os indivíduos desempenham atividades semelhantes e
compartilham dos mesmos valores e costumes.

Exemplo: A tradição e os valores compartilhados pelos moradores do pequeno bairro


pesqueiro de Jurujuba, na cidade de Niterói, faz com que todos cooperem para a
organização da procissão marítima anual em homenagem a São Pedro, pois este santo
católico é considerado padroeiro dos navegantes.

» Solidariedade orgânica: típica de sociedades mais complexas, com maior divisão do


trabalho, em que não é possível que um único indivíduo desempenhe todas as funções
necessárias para a manutenção da vida social e de sua própria subsistência. Os indivíduos,
desta forma, são menos semelhantes entre si no que diz respeito a crenças e valores,
mas são mais dependentes da ação ordenada uns os outros.

Exemplo: O engenheiro constrói prédios de moradia sem se preocupar em aprender a


curar suas próprias doenças, pois quando ele necessitar de atendimento recorrerá ao

62
Émile Durkheim e os fatos sociais • CAPÍTULO 4

médico, que só tem onde morar porque um engenheiro construiu o prédio em que ele
habita.

Quadro 1. Solidariedade social.

Solidariedades
Mecânica Orgânica
Sociedades simples Sociedades industriais
Indivíduos semelhantes Indivíduos diferentes
Funções iguais Função especializada e interdependente
Sem divisão do trabalho Com divisão do trabalho
Consciência social menor Consciência social maior
Mecanismos de coerção exercidos de forma imediata, Mecanismos de coerção mais formalizados e exercidos
violenta e punitiva de forma mediata
Direito repressivo (prevenções) Predomínio do direito restitutivo (reparação)
Pouco desenvolvidas Bem desenvolvidas

Fonte: Dias (2004, p. 25).

Uma vez que a solidariedade social esteja funcionando adequadamente para manter ordenada
a conduta dos indivíduos, Durkheim considera que esta comunidade possui uma vida social
saudável. Por outro lado, quando os indivíduos deixam de agir de forma solidária, comportando-
se em desacordo com suas funções sociais, esta sociedade perde a coesão e passa a estar em
estado de anomia.

A anomia é tratada por Durkheim como um caso extremo de patologia social, ou seja, uma espécie
de doença da sociedade que se manifesta em situação em que os laços sociais que prendem o
indivíduo ao grupo estão enfraquecidos e, com isso, a sociedade perde ou tem diminuída a sua
capacidade de determinar a conduta individual.

Quando experimentamos, por exemplo, um grande aumento no número de alunos de uma escola
que chegam atrasados ou faltam ao primeiro tempo de aula, isso pode significar que as regras
relativas ao horário não são mais suficientes para manter a coesão dos alunos.

Como vimos anteriormente, Durkheim defende que os fatos sociais são gerais, pois se aplicam
a todos os membros de uma sociedade de forma igual. Se, no entanto, as regras começam a ser
burladas ou relativizadas, dando a sensação de que se aplicam mais a uns do que a outros, isso
pode colocar em risco a sua eficiência no condicionamento dos comportamentos.

Imagine, seguindo o exemplo anterior, que a direção da escola comece a permitir a entrada dos
alunos atrasados que morem longe da escola. Inicialmente, os alunos que se atrasaram por terem
tido problemas ao longo do trajeto serão beneficiados, mas logo se darão conta de que a regra,
que anteriormente os coagia a chegar no horário, agora não é mais tão rígida, e passam a se
atrasar simplesmente porque estão incluídos na nova exceção à regra. Os alunos que moram nos
arredores se sentirão tratados de forma desigual e isso diminuirá seu nível de solidariedade. Aos

63
CAPÍTULO 4 • Émile Durkheim e os fatos sociais

poucos, estes também começarão a descumprir a sua função (chegar no horário), comprometendo,
assim, todo o funcionamento da escola.

Para refletir

Leia com atenção a notícia a seguir, na qual vemos a exemplificação de uma situação de anomia, em que o não cumprimento
da função de uma parcela da sociedade inviabiliza diversas outras funções.

Sete dias de caos na República Federativa das Rodovias

Os caminhoneiros provaram ser a única categoria capaz de converter o Brasil em um refém do tamanho de um continente.

Figura 15.

Fonte: <brasil.elpais.com/brasil/2018/05/28/politica/1527459606_634917.html.>

É sexta-feira ao meio-dia no centro do Recife, uma cidade de mais de um milhão e meio de habitantes, capital de
Pernambuco, mas poderia ser a primeira hora de um domingo, a julgar pelo ambiente desértico. No que deveria ser o ápice
do horário comercial, as ruas estão quase vazias, pelas vias quase não passam carros e há várias lojas fechadas. Claudenilson
Carlos da Silva, de 34 anos, conta as mesas que estão sem ninguém no restaurante em que trabalha. “Se continuar assim
vamos fechar mais cedo”, calcula. “Agora é hora do almoço, era para isso estar cheio.”

Isso é o que se passa por uma cena normal no Brasil dos últimos dias. O País inteiro passou ao menos uma semana imerso
em uma greve de caminhotneiros que paralisou boa parte de sua vida pública, quando não transformou o dia a dia em
seus 26 Estados em um pesadelo logístico. Postos de gasolina, supermercados, hospitais e aeroportos foram ficando
desabastecidos com o passar dos dias e suspenderam alguns de seus serviços: os portos ficaram sem nada para exportar e os
cidadãos e governos locais ainda buscam desesperadamente fórmulas para resolver a situação.
Disponível em: brasil.elpais.com/brasil/2018/05/28/politica/1527459606_634917.html.

Contribuição para a educação

A educação, para Durkheim, está diretamente ligada ao conceito de socialização, ou seja, ao


processo através do qual as gerações mais jovens aprendem com as gerações mais velhas a viver
em sociedade. A educação possuiria, assim, um sentido moral, uma vez que caberia a ela, através
da socialização, fortalecer as normas e regras que sustentam a coesão social (PAIXÃO, 2012).

64
Émile Durkheim e os fatos sociais • CAPÍTULO 4

Saiba mais

Os livros da série Harry Potter, da autora inglesa J. K. Rowling, retratam um mundo fantástico
em que coexistiria com a nossa sociedade uma comunidade de indivíduos dotados de poderes
mágicos. Nesta sociedade fictícia, todas as crianças que apresentem a propensão para realizar
magia – tenham nascido em uma família bruxa ou não – devem frequentar a Escola de Magia
e Bruxaria. Neste local ela será educada tanto para controlar os seus poderes quanto para
aprender a se comportar em sociedade.

Harry Potter, o personagem principal da série, apesar de famoso na comunidade bruxa, cresceu
sem saber de sua existência e, por isso, o livro nos fornece uma visão interessante do processo
de socialização a que ele é submetido ao ingressar na escola.

Ler os livros tentando mapear este processo pelo qual ele passa de um indivíduo externo para
um membro integrado àquela sociedade, é uma dica interessante!

Fonte: ROWLING, J. K. Harry Potter e a Pedra Filosofal.


Rio de Janeiro, Rocco, 200.

Se, como estabelecemos anteriormente, a sociedade se assemelha a um corpo humano, em


que cada órgão possui a sua função específica, podemos afirmar que a educação é a esfera
privilegiada na qual o indivíduo será instruído a cumprir a sua função social, ou seja, a entender
o local que ocupará na várias profissões sociedade e aprender as formas de agir, sentir e pensar
correspondentes a ele.

Fica claro, desta forma, o papel homogeneizador da educação, uma vez que ela se presta a
transmitir às novas gerações as “maneiras de ser” típicas daquela sociedade, com suas crenças e
valores em comum. No entanto, em uma sociedade complexa, em que as pessoas não são mais
tão semelhantes entre si, a educação cumpre também um papel de diferenciação, transmitindo
ao jovem as “maneiras de ser” específicas do grupo ao qual ela pertence.

A sociedade moderna (...) é muito diferenciada por causa da alta divisão do


trabalho. Existem várias formas de pensar, várias profissões, inúmeros interesses
de grupos e pessoas diferentes. Ora, se ela é muito diferenciada, existem vários
meios morais e várias “maneiras de ser” que os indivíduos precisam “aprender”.
Assim, não é possível um único tipo de educação para todas as pessoas. Cada
grupo deve ter uma educação adequada ao seu meio moral. Meio moral refere-se
àquele conjunto de regras, normas, modos e maneiras de agir, de ser, de pensar
que identificam um grupo dentro da sociedade. Dessa forma, o indivíduo vai
aprender a pertencer ao seu grupo, à sua classe, à sua profissão. Para Durkheim,
aprender a ser médico ou professor, ou qualquer outra profissão não é somente
aprender uma técnica ou uma teoria, mas aprender a agir como a sociedade
espera que essas pessoas ajam. (PAIXÃO. 2012, p. 69).

Na teoria de Durkheim, portanto, a educação cumpre um papel de mantenedora da ordem


social, tendo o objetivo de formatar o comportamento dos indivíduos para que eles se adéquem à
expectativa social. Os sujeitos aprendem na escola a reconhecer as funções que desempenharão
na vida adulta, o que serve também para a reprodução da ordem social tal como é: filhos de ricos

65
CAPÍTULO 4 • Émile Durkheim e os fatos sociais

frequentando escolas de ricos e aprendendo a ser ricos; filhos de pobres frequentando escolas
de pobres e aprendendo a ser pobres.

Como destaca Nery (2013), a pedagogia moderna, denominada conservadora, surge a partir do
pensamento funcionalista de Durkheim, baseado na premissa de que a sociedade é composta por
um aglomerado de indivíduos que precisam ser preparados através do processo educativo para se
adequarem à vida em sociedade. Estas correntes pedagógicas denominam-se conservadoras por
não conceberem a educação enquanto espaço de transformação da realidade, mais especificamente
da lógica capitalista.

As correntes pedagógicas tradicionais podem ser divididas da seguinte forma:

» Pedagogia conservadora tradicional: Tem como objetivo fazer com que o indivíduo
assimile a maior quantidade possível de conhecimentos construídos historicamente
pela humanidade para, com eles, desenvolver, no futuro, funções úteis para a sociedade.
Neste tipo de pedagogia o aluno é mero receptor de informações e o professor, enquanto
proprietário do saber a ser transmitido, é o centro do processo educativo.

» Pedagogia conservadora nova: parte do princípio de que o aluno precisa conhecer as


formas e métodos que permitiram à humanidade construir e acumular todo o arcabouço
de conhecimento que possuímos. Entende-se, com isso, que o professor deve ensinar o
aluno a produzir conhecimento em vez de simplesmente memorizá-lo para reproduzi-lo.

No contexto da pedagogia nova, a relação professor-aluno, no que concerne


ao processo de ensino-aprendizagem, teria um cunho mais democrático. Mas
essa democracia que se supõe existente acaba por não se referir, segundo
Maksenas (2005), à igualdade de oportunidade para todos, ou seja, não envolve o
questionamento da realidade presente nas sociedades capitalistas marcadamente
desiguais. Isso porque a democracia que se faz envolve a liberdade de ascender
socialmente e a manutenção da competição, que não é questionada, mantendo-
se de forma camuflada o princípio da adaptação do indivíduo à sociedade, sem
que seja construída uma consciência crítica que leve à sua transformação. (NERY,
2013, p. 59).

» Pedagogia conservadora tecnicista: relaciona-se diretamente com o mercado de


trabalho da sociedade capitalista, estando diretamente relacionada ao treinamento
dos indivíduos para fornecer as respostas corretas quando expostos a determinados
estímulos. O professor, neste contexto, é apenas um treinador de alunos, de acordo com
os programas de ensino estabelecidos pelos especialistas da educação.

66
Émile Durkheim e os fatos sociais • CAPÍTULO 4

Figura 16. Educação como forma de reprodução social.

Fonte: <www.marcelo.sabbatini.com/educacao-em-charges-2>.

A educação como mantenedora da ordem social

A visão de que a educação seria uma forma de domínio sobre os indivíduos, através da qual a
sociedade se manteria inalterada é uma interpretação possível, mas não a única a respeito da
educação, um fenômeno complexo que dificilmente poderia ser explicado ou definido de forma
tão simples.

Como defende Piletti (2003, p. 138),

(...) a educação é paradoxal: ao mesmo tempo que é instrumento de controle


social, ela contribui para a modificação das condições existentes; ao mesmo
tempo que oprime, liberta. No Brasil (...), a grande maioria d população não
chega a concluir o ensino fundamental, o que contribui para manter a situação
de injustiça e de controle social em que vivemos.

Os que enfatizam o controle social são os que se beneficiam diretamente da


situação existente, aos quais se aliam aqueles que esperam algum dia beneficiar-
se, através da ascensão social. Por isso, insistem em consertar a ordem vigente.
Se não podem conservá-la, pretendem ao menos controlar o próprio processo
de mudança, para que ele não leve à destruição dos seus privilégios. Lutam pela
mudança aqueles que não encaram a ordem social como garantia de privilégios
para uns poucos, às custas da maioria, mas como garantia de igualdade de direitos
e deveres de vida digna para todos.

No entanto, para seguir o fio condutor de raciocínio que o estudo das teorias de Durkheim nos
proporcionou, analisaremos a partir deste ponto, e de forma isolada, esta potencialidade da
educação como ferramenta de opressão. Faremos isso com base na proposição de Piletti (2003)
de que existem seis processos específicos através dos quais a educação exerce o controle social:

67
CAPÍTULO 4 • Émile Durkheim e os fatos sociais

Reprodução

Ocorre quando todos os processos dentro da escola são planejados para reproduzir o sistema
social em que a escola está inserida, ou seja, o objetivo da educação é transmitir aos alunos as
informações, comportamentos e valores exatamente da mesma forma como eles foram recebidos
pela geração anterior, sem nenhuma modificação ou acréscimo.

Sendo assim, não haverá inovação nas metodologias ou nos materiais didáticos, os professores
serão formados para simplesmente transmitir o conhecimento da mesma forma como foi
transmitido a eles, seja no que diz respeito aos conteúdos ou às técnicas de ensino utilizadas com
este fim. A própria estrutura da escola, com salas de aula separadas por série e idade, onde os
alunos são organizados em carteiras individuais, que dificultam a troca de ideias e a criatividade,
todas elas enfileiradas e voltadas para o professor, que atua como único agente ativo no processo
de ensino e aprendizagem.

Os alunos, neste cenário, comportam-se como meros receptores das informações transmitidas,
que no dia da prova deverão ser replicadas exatamente da mesma maneira como foram
apresentadas em sala de aula ou no material didático.

Este tipo de educação foi classificado por Paulo Freire (2011) como educação bancária, pois o
aluno se comporta como se fosse uma conta, em que o professor faz depósitos regulares ao longo
do período letivo e ao final do processo utiliza a avaliação como uma espécie de estrato para
verificar o saldo da transação, certificando-se de que tudo quanto foi depositado permanece
inalterado dentro da conta.

Figura 17. O professor fala e os alunos escutam.

Fonte: Charges e Livros - Webnode

No que diz respeito à reprodução, Piletti (2003) indica ainda a existência de três áreas específicas
da vida escolar em que ela mais se manifesta:

» Condições econômicas são reproduzidas quando a escola contribui para a manutenção


das desigualdades econômicas existentes na sociedade. Esta realidade pode ser facilmente

68
Émile Durkheim e os fatos sociais • CAPÍTULO 4

verificada pela disparidade de condições e recursos existentes entre as escolas que


recebem os filhos das classes dominantes e aquelas em que estudam os filhos das classes
mais baixas.

» Condições sociais são reproduzidas pela escola quando se estimula a competitividade


entre os alunos, valorizando os melhores desempenhos sem encorajar aqueles que
necessitam de maior estímulo. Neste contexto, são reproduzidas também as relações
autoritárias vigentes na sociedade, que separa os indivíduos entre aqueles que mandam
e aqueles que são mandados, sem estimular o diálogo e a cooperação.

» Condições culturais são reproduzidas quando os conteúdos culturais valorizados são


aqueles trazidos pela classe dominante, que possui a chancela para dizer o que é de
bom ou de mau gosto. O professor é visto como detentor da cultura enquanto os alunos
seriam destituídos de qualquer cultura e, por isso, deveriam aceitar com resignação
aquilo que lhe for transmitido.

Saiba mais

O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1992 e 2007) analisou longamente as formas através das quais as classes dominantes
utilizam o monopólio dos bens culturais para manter o seu domínio sobre as classes menos privilegiadas. Este autor foi
responsável também por um longo estudo a respeito da escola reprodutora.

Figura 18. Pierre Bourdieu.

Fonte: New York Times. h<ttps://www.nytimes.com/2017/07/18/opinion/inequality-pierre-bourdieu.html>

Repetição

Através do processo de repetição, os hábitos vistos como desejáveis são internalizados pelos
indivíduos. Esta rotina escolar, em que tudo é feito de acordo com uma ordem específica e
permanentemente inalterada, busca condicionar o comportamento dos alunos até que se
transforme em hábito.

69
CAPÍTULO 4 • Émile Durkheim e os fatos sociais

É importante salientar que a rotina não é um problema em si, podendo ser benéfica no processo
de ensino e aprendizagem. No entanto, quando ela não abre espaço para a espontaneidade, a
criatividade e a curiosidade do aluno, acaba transformando o cotidiano escolar em mera repetição
monótona de procedimentos, que não é atrativa aos alunos.

Segregação

Segregar quer dizer separar, afastar alguém do convívio com os demais ou com outras realidades.
Sendo assim, como aponta Piletti (2003), a segregação em sala de aula acontece todas as vezes
que o aluno é levado a desconectar-se, seja da vida real, dos conteúdos estudados ou das pessoas
que fazem parte do próprio processo.

» A segregação da vida ocorre quando a escola não dialoga com a comunidade em que está
inserida e a própria arquitetura destas tende a transmitir esta sensação claustrofóbica de
que o que está dentro deve ser mantido dentro e o que está fora deve ser mantido fora.
O mundo real, com suas notícias, dilemas e problemáticas é mantido do lado de fora,
e o aluno, em vez de ser preparado para lidar com estas questões e agir na sociedade,
torna-se cada vez mais alienado.

» A segregação dos conteúdos se dá quando a escola apresenta as questões conceituais sem


relacioná-las com a vida real, mantendo um modelo de aprendizagem abstrato e estéril,
que não estimula o aluno a buscar a aplicabilidade dos conhecimentos construídos. A
segregação ocorre ainda na separação disciplinar, em que os conteúdos dificilmente
transitam de uma disciplina para a outra, como se, no mundo, a solução de um único
problema não envolvesse habilidades e competências variadas.

» A segregação das pessoas acontece quando o sistema classificatório, que rotula os


alunos em notas, conceitos e coeficiente de aproveitamento, agrupa os indivíduos de
acordo com o seu desempenho e não abre espaço para a troca de ideias e a identificação
pautada em outros referenciais. Além disso, neste sistema em que os mais capazes são
glorificados e os menos capazes rechaçados, os alunos são incentivados a serem sempre
os melhores, aprendendo, com isso, a competir em vez de cooperar.

Condicionamento

A escola é estruturada com base em um sistema de punições e recompensas no qual os alunos


condicionam seu comportamento para obter os benefícios, sem sofrerem as sanções. Assim
como na sociedade externa, o comportamento normatizado é festejado e o desviante condenado.

Um aluno, por exemplo, com grande talento artístico e baixo rendimento em Matemática, neste
modelo de escola, não receberá os elogios e recomendações atribuídos àquele aluno que se sai

70
Émile Durkheim e os fatos sociais • CAPÍTULO 4

bem nas matérias que a autoridade social considera mais importantes. Ao contrário, ele será
punido pelo baixo rendimento ou simplesmente terá seu desempenho global ignorado.

Com esta estratégia, os alunos serão condicionados a buscar aqueles comportamentos que a
sociedade estabelece como desejáveis.

Repressão

Processo através do qual, em nome da disciplina e do bom desempenho, vai sendo tolhida a
iniciativa, a curiosidade e a espontaneidade que o aluno naturalmente traz consigo quando
ingressa na escola. Certamente, a disciplina, enquanto entendimento das regras de convivência
e dos limites, mas ela não pode ser confundida com a repressão, que consiste em conter, impedir
e punir a ação do indivíduo. A repressão, em regra, possui dois efeitos possíveis:

» A formação de um indivíduo passivo, dependente e sem iniciativa.

» A incitação a rebeldia, a desobediência ou a indisciplina.

Exclusão

De acordo com Piletti (2003) este é o nível mais alto e mais violento de controle social através
da escola, que é aquele em que o aluno é levado de fato a abandonar os seus estudos. Como
defende o autor:

Grande parte dos alunos já são preparados, desde os primeiros dias da escola,
para conformar-se com um fato que se apresenta como imutável, um “destino”
contra o qual nada se pode fazer: ficar à margem de tudo, na periferia da sociedade.

Muitas crianças nem chegam a entrar na escola, sendo excluídas de imediato.


Outras conseguem iniciar os estudos, mas são excluídas já nos primeiros anos.
A grande maioria não chega ao fim do ensino fundamental, apesar do preceito
constitucional que torna esse grau de ensino obrigatório. (PILETTI, 2003, p. 146).

Percebe-se, desta forma, que o próprio sistema – ao reprimir, segregar, coibir, rotular – está criando
um projeto de seletividade, em que aqueles considerados aptos são aceitos e formatados para
serem entregues à sociedade, enquanto um contingente enorme de indivíduos considerados
inaptos ou inadequados são postos à margem da educação e de todas as possibilidades de
transformação e desenvolvimento oferecidas por ela.

Últimas palavras

Ao longo deste capítulo, analisamos o pensamento de Émile Durkheim e o peso atribuído por este
autor à ação da sociedade sobre a conduta individual. Vimos que os indivíduos são condicionados

71
CAPÍTULO 4 • Émile Durkheim e os fatos sociais

a agir de maneiras específicas, ainda que acreditem que o estão fazendo por escolha própria ou
uma inclinação pessoal.

Provocação

Quem escolheu a roupa que você está usando?


Respondendo sem refletir, estou certa de que você dirá que foi você mesmo quem escolheu com base na sua predileção
pela cor, na atratividade do preço, na aproximação dela ao seu estilo pessoal. No entanto, a verdade é que a indústria da
moda foi quem escolheu essa roupa para você, pois foi ela quem definiu os cortes, cores e estilos que estariam em alta nesta
temporada e, portanto, seriam produzidos para consumo.

Você tem a sensação de que a sua escolha é puramente subjetiva quando, na verdade, mesmo que você não seja um
aficionado por moda ou um seguidor de tendências, a sua decisão está atrelada às possibilidades de escolha definidas pela
indústria.

Neste cenário, a escola é vista por Durkheim como espaço privilegiado para a socialização dos
indivíduos às suas funções sociais futuras, sendo papel da educação formatar os comportamentos
para que as formas de agir, pensar e sentir daquele grupo sejam reproduzidas de forma inalterada
na próxima geração.

Estou certa de que o quadro que desenhamos desta instituição, com todos os seus instrumentos
de controle e achatamento da vontade individual, devem ter sido, inclusive, incômodos de ler.
Quem em sã consciência manda um filho estudar num lugar como esse?

Nós mandamos!

E, com isso, não me refiro apenas aos indivíduos das classes populares, que certamente sentem
com mais violência a força coercitiva do sistema. Mas o jovem das classes mais privilegiadas sofre
também com essa necessidade constante de se encaixar em um modelo de alto desempenho e
produtividade, muitas vezes irreal, em que os não adaptados são excluídos do processo.

Nas últimas décadas, certamente, a mera discussão deste paradigma e as constantes tentativas
de substituição da escola reprodutiva por uma escola mais transformadora, já foram capazes de
transformar em parte este cenário. Mas é preciso que estejamos atentos para não nos permitir
naturalizar estas estratégias de dominação.

Enquanto docentes, somos uma engrenagem fundamental deste sistema e, portanto, precisamos
estar atentos para pensar criticamente sobre o nosso próprio comportamento, bem como sobre
aquilo que esperamos dos nossos alunos.

72
Émile Durkheim e os fatos sociais • CAPÍTULO 4

Sintetizando

Vimos até agora:

» Para Durkheim os fatos sociais são o objeto de estudo da sociologia;

» A solidariedade, orgânica ou mecânica, é responsável pela manutenção da ordem social;

» A sociedade em estado de anomia é aquela em que a solidariedade social é ineficiente;

» O papel da escola para Durkheim é moldar os indivíduos de acordo com a sociedade em que vivem;

» O modelo de escola defendido por Durkheim é reprodutivista, ou seja, tem como objetivo manter a sociedade como ela é.

73
CAPÍTULO
KARL MARX E A EDUCAÇÃO
TRANSFORMADORA 5
Introdução

Neste capítulo, apresentaremos a teoria sociológica de Karl Marx, o último dos fundadores da
Sociologia clássica a ser estudado neste material. Por meio dele, faremos uma reflexão a respeito
da observação da sociedade a partir das relações sociais e da luta de classes.

Veremos, também, no pensamento deste autor, a visão da educação como ferramenta


indispensável para a transformação da realidade social.

Objetivos

» Definir a análise das relações de produção como preocupação da Sociologia.

» Apresentar o materialismo histórico e dialético como método de estudo da Sociologia.

» Analisar os principais conceitos teóricos da Sociologia marxista.

» Compreender a contribuição da Sociologia marxista para as correntes pedagógicas


progressistas no Brasil.

74
Karl Marx e a educação transformadora • CAPÍTULO 5

Karl Marx (1818-1883)

Karl Marx foi um pensador alemão que passou a maior parte de sua vida na Inglaterra, durante a
segunda metade da Revolução Industrial. Nesse momento, consolidava-se o modo de produção
capitalista, temática que ocupou a maior parte das suas preocupações científicas e ideológicas.

Vale destacar que este autor antecede historicamente o pensamento de Weber e Durkheim que,
ao iniciarem, cada um à sua maneira, a sistematizar a Sociologia enquanto disciplina, já o fizeram
tendo os trabalhos de Marx como interlocutores.

Pouco depois da morte de Marx, no período em que a sociologia se estava


consolidando como disciplina acadêmica, teve início uma relação estreita embora
frequentemente antagônica, entre a teoria marxista da sociedade e a sociologia,
relação essa que vem se desenvolvendo até hoje. O marxismo foi, sem dúvida,
um estímulo importante para afirmação da própria sociologia. (BOTTOMORE,
2001, p. 359).

A produção escrita de Marx é extensa e bastante variada em suas formas de divulgação. Ele
escreve desde textos científicos minuciosos e complexos como O capital até textos mais curtos e
de leitura simples para a divulgação ideológica, como O manifesto do partido comunista. Estes
dois trabalhos caracterizam muito bem duas facetas distintas deste autor, na primeira, temos
um cientista materialista, preocupado em observar a realidade do mundo para compreendê-la;
enquanto no segundo caso temos o Marx revolucionário, ativista na causa proletária.

É importante destacar que, neste trabalho, estamos preocupados com a produção científica deste
autor, aquela que deu profundidade à reflexão da Sociologia enquanto disciplina ao observar
metodologicamente o contexto social. É difícil, no entanto, separar completamente estes dois
aspectos do autor, visto que a sua participação política foi fundamental para a forma como se
construiu sua reflexão sobre o mundo.

Muito se discutiu a questão de saber se a obra de Marx forma um corpo de


doutrinas homogêneo e coerente. Se buscou encontrar uma explicação total
para a sociedade nascente, sua vontade de conhece-la não pode ser separada
do desejo de transformá-la. (FERRÉOL e NORECK, 2007).

Suas obras mais importantes foram:

» A questão judaica (1843).

» A ideologia alemã (1846).

» Manifesto comunista (1848).

» A miséria da filosofia (1847).

75
CAPÍTULO 5 • Karl Marx e a educação transformadora

» O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852);

» O capital (1867).

Figura 19. Karl Marx.

Fonte: <www.infoescola.com>

Objeto de estudo

Ao analisarmos o objeto de estudo definido por Marx para a Sociologia, percebe-se um claro
afastamento dele com relação às duas teorias mais clássicas para a explicação da relação entre
indivíduo e sociedade. A teoria de Marx é marcada pela recusa tanto ao subjetivismo, que
posteriormente será caracterizado pelo pensamento de Weber, quanto do objetivismo, que
ficaria conhecido mais tarde pelo trabalho de Durkheim. Sendo assim, para ele, o homem não
seria nem autor absoluto da realidade, nem um mero produto das circunstâncias.

Para ele, os homens, ao serem observados pelos cientistas, jamais poderão ser corretamente
conhecidos se forem reduzidos a “fatos”, a “dados” ou a “coisas”.

O homem é o sujeito da práxis, existe se inventando a si mesmo, num movimento


incessante, sempre condicionado – necessariamente – pela situação em que se
encontra no ponto de partida; mas sempre capaz de tomar iniciativas e projetar
sua ação, impondo – até certo ponto livremente – limites ao condicionamento
necessário. (KONDER, 2002, p. 16-17).

Em outras palavras, podemos dizer que na Sociologia de Marx o homem é entendido como
sujeito às forças sociais do contexto em que vive, que o forçarão a agir de maneira específica.
No entanto, o indivíduo possui o poder de controlar a sua atuação com relação a esta força
impositiva. Ao afirmar que o homem é um sujeito da práxis, Marx indica que os indivíduos
transformam a si mesmos, bem como à sua realidade material e histórica, através das
atividades livres, universais e criativas a que se dedicam. A práxis é, portanto, uma atividade

76
Karl Marx e a educação transformadora • CAPÍTULO 5

exclusivamente humana, que nos distingue de todos os outros seres, e o trabalho seria a mais
importante destas atividades.

A reflexão de Marx, neste sentido, volta-se de forma muito específica para as condições de vida
impostas aos operários das fábricas pela estrutura da sociedade capitalista. Estes trabalhadores
seriam submetidos a longas horas de trabalho, em precárias condições, mal remunerados
e alienados da sua produção. Seria possível, no entanto, organizar-se enquanto classe para
rebelar-se diante desta situação, o que comprova a capacidade do indivíduo de agir com relação
às determinações sociais.

Podemos definir, portanto, que as relações de produção são o objeto de estudo a que se dedicará
Marx em sua análise da sociedade.

Metodologia e principais conceitos

A metodologia de investigação da sociedade elaborada por Karl Marx é o materialismo histórico


e dialético, caracterizado por uma combinação entre a interpretação materialista da história
e a análise dialética da realidade social (SILVA et al., 2016, p. 29).

Como vimos, Marx está preocupado em observar as relações de produção, para, desta forma,
compreender a sociedade. Ele estabelece, por conseguinte, a necessidade de que voltemos
nosso olhar para a história, pois ela é o plano no qual os indivíduos agem e fazem suas escolhas,
expressando assim de forma mais significativa a sua práxis.

Diante disso, é importante deixar clara a oposição de Marx com relação à percepção então
vigente das transformações históricas, que se fundamentavam no idealismo. Para esta corrente
de pensamento, na relação entre o observador e a realidade, o foco de investigação deveria
sempre recair sobre o próprio investigador, uma vez que a realidade, em suas nuances e variáveis,
é impossível de ser plenamente capturada pelo entendimento humano e, portanto, só existe a
partir das ideias que fazemos delas. No que diz respeito à história, o idealismo identifica que
são as ideias e a consciência dos atores sociais os únicos responsáveis pelas transformações.

Marx defende, no entanto, a posição materialista de que para a compreensão da realidade,


há que se olhar para a própria realidade, pois ela é material e, portanto, observável a despeito
das subjetividades do observador. O autor não buscava, com isso, desconsiderar toda a força
explicativa das ideias e da consciência na observação da realidade, apenas o lugar de destaque
quer era atribuído a ela. Defendia ele que de um ponto de vista materialista, até mesmo as ideias
eram construídas a partir das relações sociais que se desenvolvem historicamente.

77
CAPÍTULO 5 • Karl Marx e a educação transformadora

Quadro 2. Idealismo e materialismo

Idealismo ≠ Materialismo
↓ ↓
Parte do pressuposto de que a base de tudo são as Compreende que a matéria é o princípio de tudo
ideias e a consciência e, portanto, a matéria teria aquilo que possibilita a própria consciência e as
importância secundária na análise do mundo. Trata- ideias. É um tipo de pensamento concreto e objetivo,
se de um pensamento abstrato e objetivo, centrado centrado no ser humano e na realidade material
naquilo que não se pode ver, tocar ou medir. palpável. Tudo que existe é matéria ou depende dela.

Fonte: <Adaptado de http://filosofandoparaelmundo.blogspot.com>

Para compreendermos melhor os conceitos da teoria marxista apresentados até aqui, imagine
uma pessoa que observa um rio, tentando explicar o que ele é. Depois de observá-lo a partir
de variados ângulos e de perceber que em diferentes momentos e circunstâncias ele apresenta
características diferentes e às vezes até contraditórias com o observado anteriormente (rápido
e devagar; escuro e claro, etc.); o observador conclui que é impossível explicar o que de fato é o
rio. A realidade do rio é inatingível para ele em todas as suas dimensões. O que ele pode fazer é
discorrer sobre o próprio pensamento sobre o rio, a ideia de rio que surge de sua consciência.
Neste primeiro caso, estamos diante de um observador idealista.

Em um segundo exemplo, o observador descreve o rio enquanto matéria em movimento, que


independe do que eu penso a respeito dele. Para além das minhas ideias sobre o rio, ele existe
enquanto realidade material, concreta e passível de ser observada objetivamente. Neste segundo
observador temos um exemplo de pensador materialista.

Esta preocupação materialista é aplicada por Marx a dois elementos específicos que darão
sustentação ao seu método de estudo e, consequentemente, à sua teoria: a história e a dialética,
cada uma destas vertentes do materialismo possuindo um objeto de investigação específico.

O materialismo histórico é aquele que investiga o trabalho e, mais especificamente, o modo como
as pessoas trabalham e produzem em determinado momento histórico. A partir desta forma
de produção construída historicamente, constroem-se também as ideias, que serão objeto de
estudo do materialismo ideológico.

Figura 20. O materialismo histórico e dialético


histórico e dialético

Trata da constituição dos modos de


Materialismo

Materialismo
produção, de seu financiamento e de suas
histórico
transformações

Materialismo Trata da história da produção do


dialético conhecimento

Fonte: Adaptado de Amaral e Mühl (2017, p. 89).

78
Karl Marx e a educação transformadora • CAPÍTULO 5

Esta visão da realidade centrada no materialismo histórico e dialético será utilizada por Marx
para compreender a sociedade capitalista de seu tempo e, através desta reflexão, o autor define
os seguintes conceitos:

Luta de classe

Segundo a teoria marxista, existem na sociedade diferentes grupos de pessoas, agregadas por
possuírem as mesmas condições dentro do processo produtivo e por compartilharem de afinidades
políticas e ideológicas. A estes grupos, Marx atribuirá a denominação classe social.

Na sociedade capitalista, em que os papéis assumidos pelos indivíduos dentro da estrutura de


produção são desiguais, Marx identifica uma divisão clara entre a classe dominante, que é aquela
que possui os meios de produção, e a classe dominada. Esta segunda, por não possuir os meios
para a produção, precisa vender a sua força de trabalho, ou seja, a capacidade que possui para
trabalhar, para a classe dominante. Em troca, receberá um salário, que corresponde ao valor do
trabalho desempenhado.

De acordo com Marx, a partir do momento em que uma única classe social (burguesia) toma
posse dos meios de produção e através disso passa a explorar outra classe (proletariado) para
fazer uso da sua força de trabalho, cria-se uma situação de luta de classes, que se fundamenta
nesta constante disputa de interesses opostos entre burguesia e proletariado.

O Manifesto do partido comunista, de Marx e Engels se inicia com a frase: “A história de toda
sociedade até hoje é a história da luta de classes” (2014, p. 39), e no prefácio à edição alemã deste
mesmo livro, Engels, já após a morte de Marx, complementa esta afirmação da seguinte maneira:

(...) em cada época histórica a produção econômica e a estrutura social que dela
necessariamente decorre constituem a base da história política e intelectual dessa
época; que, consequentemente (desde a dissolução da antiga posse em comum
da terra), toda a história tem sido uma história de lutas de classe, de lutas entre
classes exploradas e classes exploradoras, entre classes dominadas e classes
dominantes, nos diferentes estágios do desenvolvimento social; que essa luta,
porém, atingiu atualmente um estágio em que a classe explorada e oprimida
(o proletariado) não pode mais se libertar da classe exploradora e opressora (a
burguesia) sem libertar ao mesmo tempo e para sempre toda a sociedade da
exploração, da opressão e das lutas de classe. (ENGELS, 2014, p. 19)

É a partir desta luta de classes, também, que surge o conceito de consciência de classe, que nada
mais é do que o sentimento de pertencimento que determinado indivíduo possui a respeito da
classe em que ele está inscrito. Ele passa a ser solidário aos demais membros daquela classe
por compreender que todos compartilham os mesmos valores e estão lutando pelos mesmos
interesses.

79
CAPÍTULO 5 • Karl Marx e a educação transformadora

Saiba mais

Deus e o diabo na terra do sol

Brasil: 1964 – Direção de Glauber Rocha

Este filme brasileiro é uma indicação interessante de análise da luta de classes fora do contexto urbano
da Revolução Industrial apresentado por Marx.

O filme narra a história do vaqueiro Manuel que, revoltado pela exploração que sofria, assassina em
uma briga o coronel Moraes e passa a levar uma vida de fugitivo junto com a esposa, Rosa.

Fonte: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra67136/cartaz-
do-filme-deus-e-o-diabo-da-terra-do-so>l

Estrutura social

Dentro da sociologia de Marx, a estrutura social deve ser compreendida como dividida em duas
partes: a infraestrutura e a superestrutura.

A infraestrutura está diretamente relacionada ao aspecto econômico da vida social, ou seja,


às bases materiais através das quais os indivíduos produzem e organizam a produção. Estão
incluídas neste aspecto tanto as forças produtivas quanto as relações sociais de produção.

Quadro 3. A diferença entre forças e relações produtivas.

Forças produtivas ≠ Relações sociais de produção


↓ ↓
Formadas pelos meios de produção e o trabalho Abrangem as relações de propriedade e de
humano utilizados para que sejam produzidos todos distribuição dos bens em determinada sociedade.
os bens materiais necessários para a sobrevivência
Ex.: No Brasil escravista, os escravos, apesar de serem
dos indivíduos.
parte da força produtiva, não tinham qualquer posse
Ex.: No Brasil escravista, a força produtiva era sobre os bens, ficando tudo de posse do seu senhor.
composta por energia animal e a mão de obra era Na Revolução Industrial a burguesia possuía os
escrava. meios de produção e o proletariado possuía apenas
a sua própria força de trabalho, que ele alugava ao
Na Revolução Industrial o meio de produção era a
burguês em troca de um salário.
energia a vapor e a mão de obra era assalariada.

Fonte: Adaptado de Paixão (2012, p. 85).

A superestrutura, por outro lado, representa a construção ideológica da sociedade, ou seja,


todo o conjunto de ideias e instituições que compõem a realidade social. Estão incluídos na
superestrutura o Estado, bem como todos os fenômenos jurídicos, ideológicos, políticos, religiosos,
artísticos, culturais, intelectuais e educacionais daquela sociedade.

Sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as condições sociais de existência


ergue-se toda uma superestrutura de sentimentos, de ilusões, de modos de

80
Karl Marx e a educação transformadora • CAPÍTULO 5

pensamento e de concepções filosóficas cujas expressões são infinitamente


variadas. A classe inteira os cria e os molda a partir de seus fundamentos materiais
e das condições sociais correspondentes. O indivíduo isolado, que os adquire
através da tradição e da educação, pode certamente imaginar que eles são os
verdadeiros motivos e o fundamento de sua conduta. (MARX, 2011, p. 60).

É importante destacar, ainda, que a infraestrutura e a superestrutura coexistem em uma


intensa relação de autodeterminação, em que as modificações em uma delas tendem a gerar
transformações também na outra. A infraestrutura determina a superestrutura, que, por sua
vez, justifica a infraestrutura.

Figura 21.

Determina

Infraestrutura Infraestrutura
(aspectos econômicos) (aspectos ideológicos)

Justifica

Fonte: Elaborada pela autora.

Para ilustrar esta relação, pense no nosso próprio modelo produtivo, em que existe uma ligação
direta entre a produção e o tempo trabalhado. Você é contratado pelo seu empregador para
trabalhar determinado número de horas em troca de um salário específico. Esta relação faz
parte da infraestrutura, ou seja, da forma como organizamos nosso sistema produtivo. A partir
daí, termos uma série de ditados populares afirmando que “Deus ajuda quem cedo madruga”
ou que “tempo é dinheiro”. As pessoas comprovam o seu status social a partir do valor da sua
hora trabalhada e existe um glamour em torno do “não ter tempo para mais nada”. Todos estes
elementos fazem parte da superestrutura, ou seja, das ideias relacionadas especificamente a
nossa sociedade.

O que Marx está sugerindo com esta teoria de interconexão da infraestrutura e da superestrutura
é que você acha mesmo que trabalha muito porque acredita que “tempo é dinheiro”. Você
acredita nesta frase por viver em uma sociedade que organiza a sua produção na lógica do tempo
relacionado ao dinheiro.

Sendo assim, podemos dizer que em Marx a estrutura social é economicamente determinada e,
portanto, é impossível compreender a sociedade sem analisar o seu sistema de produção.

81
CAPÍTULO 5 • Karl Marx e a educação transformadora

Mais-valia

O conceito de mais-valia definido por Marx está diretamente associado à relação desigual existente
entre o valor gerado pelo trabalho e o valor atribuído ao trabalho.

Vejamos um exemplo prático:

Imagine, por exemplo, que em uma linha de produção de sapatos cada operário receba 25 reais
por hora trabalhada. Em uma hora, cada um destes operários produz 25 sapatos, logo o valor
que ele recebe para cada sapato produzido equivale a um real. Ao final da produção, no entanto,
cada um destes sapatos é vendido às lojas por 150 reais.

Sendo assim, temos:

Quadro 4.

Valor gerado pela hora de trabalho do operário da Valor atribuído à hora de trabalho do operário da
x
fábrica de sapatos fábrica de sapatos
↓ ↓
R$ 3.750,00 R$ 25,00
Em uma hora foram produzidos 25 sapatos, cada um Valor da hora de trabalho do funcionário
vendido às lojas por R$ 150,00

Esta diferença entre o valor gerado na produção e o


que o operário recebe é a mais-valia

Fonte: Elaborada pela autora.

Alienação (fetichismo da mercadoria)

O princípio da alienação proposto por Marx fundamenta-se na ideia de que as relações de


produção e de consumo capitalistas corrompem de tal forma a essência do trabalho que afasta os
indivíduos daquilo que os torna humanos. O trabalho, anteriormente visto como fonte de liberdade
e realização, torna-se uma prisão. Os homens passam a ser medidos por aquilo que possuem e
não mais pelo que são. O homem deixa de dominar o trabalho e passa a ser determinado por ele.

A alienação é uma relação social entre um ser humano proprietário, que


está preocupado em acumular mais propriedade privada, e um ser humano
trabalhador, que se submete à realização de um trabalho que o mutila, porque
essa é a condição para a sua sobrevivência na condição de não proprietário. Os
seres humanos pervertem, portanto, o relacionamento social ao se transformarem
em meros objetos diante dos produtos criados por eles próprios. (PILETTI e
PRAXEDES, 2010, p. 53).

Imagine, por exemplo, um artesão sapateiro que, em sua pequena oficina, produz sapatos
utilizando o seu próprio equipamento e recursos. Ao final do dia, ele terá partido da matéria-

82
Karl Marx e a educação transformadora • CAPÍTULO 5

prima bruta e feito surgir dela um sapato, fruto de seu trabalho e, portanto, realizador de sua
própria existência.

Em uma linha de montagem de uma fábrica de sapatos, por outro lado, este mesmo sapateiro, agora
transformado em operário responsável por costurar as solas, participa apenas de uma pequena
parte do processo de produção. Sendo assim, ao final do dia, mesmo que tenha costurado a sola
de dezenas de sapatos, não reconhece nestes o fruto de seu trabalho. Desta forma, o trabalhador
é afastado da própria produção e passa a se ver como mero costurador de solas e não mais como
produtor de sapatos.

É este afastamento que tira o significado do mundo que o “jovem Marx” chama de alienação. Como
destaca Sell (2015), em obras escritas por Marx já na maturidade o termo parece ser substituído
pela ideia de fetichismo da mercadoria, que indica o mesmo pensamento de mundo em que o
valor está nas coisas e não mais nas pessoas. As relações interpessoais tornam-se relações entre
coisas.

Ainda segundo Sell (2015), através da obra de Marx podemos dividir o princípio da alienação
nas quatro seguintes formas.

Alienação do produto do seu próprio trabalho: o produto do trabalho não pertence ao


trabalhador, mas, sim, ao dono dos meios de produção. Desta forma, ele não se reconhece
mais no fruto do seu próprio trabalho. Ao final do processo de confecção de um sapato, o
artesão sapateiro possuía um sapato, que ele poderia vender da forma que lhe conviesse,
pelo valor que achasse adequado e no momento mais oportuno. Já na fábrica, o operário
que produz o sapato não tem qualquer propriedade sobre o sapato ou ingerência no que
será feito dele. O sapato é do dono da fábrica que alugou a força de trabalho do operário.

Alienação do processo de produção: o trabalhador não possui qualquer controle sobre a


atividade produtiva e seus processos. Retomando nosso exemplo, o artesão sapateiro poderia
decidir, da forma que melhor lhe conviesse, por onde começar a produção do seu sapato, se
seria cortando o couro, moldando a sola, encerando os cadarços. Na fábrica, no entanto, o
operário precisa seguir o plano de trabalho desenvolvido por outra pessoa, não tendo qualquer
interferência na decisão de como a produção será realizada.

Alienação de sua própria natureza humana: como vimos anteriormente, Marx acredita que o
trabalho é o que nos diferencia de todas as outras espécies. É o que nos humaniza e nos torna
únicos. Na produção capitalista, no entanto, o trabalho deixa de estar a serviço do homem e
os dois passam a estar submetidos ao sistema de produção capitalista. Se antes o nosso amigo
sapateiro sentia orgulho de ser um produtor de sapatos, agora ele é apenas um costurador de solas.

Alienação com relação à sua própria espécie: na visão de Marx, as relações de produção
e consumo do capital fazem com que o valor deixe de estar nas pessoas e passe a estar nas

83
CAPÍTULO 5 • Karl Marx e a educação transformadora

mercadorias. Este é o processo que ele denominou de mercantilização da vida, e através do


qual os seres humanos acabam se afastando dos demais seres humanos, interessados apenas no
valor atribuído aos bens materiais. As relações humanas deixam de ser relações entre pessoas e
passam a ser relações entre coisas.

Para refletir

Eu, etiqueta
Em minha calça está grudado um nome Com outros seres diversos e conscientes
Que não é meu de batismo ou de cartório De sua humana, invencível condição.
Um nome... estranho Agora sou anúncio
Meu blusão traz lembrete de bebida Ora vulgar ora bizarro.
Que jamais pus na boca, nessa vida, Em língua nacional ou em qualquer língua
Em minha camiseta, a marca de cigarro (Qualquer, principalmente.)
Que não fumo, até hoje não fumei. E nisto me comprazo, tiro glória
Minhas meias falam de produtos De minha anulação.
Que nunca experimentei Não sou ─ vê lá ─ anúncio contratado.
Mas são comunicados a meus pés. Eu é que mimosamente pago
Meu tênis é proclama colorido Para anunciar, para vender
De alguma coisa não provada Em bares festas praias pérgulas piscinas,
Por este provador de longa idade. E bem à vista exibo esta etiqueta
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, Global no corpo que desiste
Minha gravata e cinto e escova e pente, De ser veste e sandália de uma essência
Meu copo, minha xícara, Tão viva, independente,
Minha toalha de banho e sabonete, Que moda ou suborno algum a compromete.
Meu isso, meu aquilo. Onde terei jogado fora
Desde a cabeça ao bico dos sapatos, meu gosto e capacidade de escolher,
São mensagens, Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Letras falantes, Tão minhas que no rosto se espelhavam
Gritos visuais, E cada gesto, cada olhar,
Ordens de uso, abuso, reincidências. Cada vinco da roupa
Costume, hábito, premência, Sou gravado de forma universal,
Indispensabilidade, Saio da estamparia, não de casa,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante, Da vitrine me tiram, recolocam,
Escravo da matéria anunciada. Objeto pulsante mas objeto
Estou, estou na moda. Que se oferece como signo de outros
É duro andar na moda, ainda que a moda Objetos estáticos, tarifados.
Seja negar minha identidade, Por me ostentar assim, tão orgulhoso
Trocá-lo por mil, açambarcando De ser não eu, mar artigo industrial,
Todas as marcas registradas, Peço que meu nome retifiquem.
Todos os logotipos do mercado. Já não me convém o título de homem.
Com que inocência demito-me de ser Meu nome novo é Coisa.
Eu que antes era e me sabia Eu sou a Coisa, coisamente.
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
(Carlos Drumond de Andrade – 1984)

84
Karl Marx e a educação transformadora • CAPÍTULO 5

Contribuições para a educação

Karl Marx não foi um pensador dedicado especificamente a refletir sobre a questão da educação.
No entanto, a partir de seus textos podemos compreender a visão que ele possuía tanto da
educação como ela vinha se desenvolvendo no sistema de produção capitalista como aquela
que ele via como própria do sistema de produção socialista, que viria a seguir.

Para ele, a educação não pode ser analisada enquanto algo que existe para além da sociedade em
que está inserida, como se fosse um fato externo, superior e imutável, que possuiria, portanto,
uma existência própria e independente do sistema de produção. De acordo com Marx, a educação
faz parte da superestrutura e, assim sendo, está diretamente ligada à forma como a sociedade se
organiza em sua consciência e com a forma como os indivíduos se organizam.

Ainda partindo deste pertencimento da educação à superestrutura, é importante destacar que


ela seria diretamente influenciada pelo sistema econômico (infraestrutura) e teria como parte de
suas atribuições auxiliar no desenvolvimento da ideologia necessária à manutenção e justificativa
do sistema de produção capitalista.

Os trabalhadores reproduzem a sua força de trabalho gerando, alimentando e


educando filhos que ocuparão os seus lugares no futuro. O crescimento econômico
pressupõe a reprodução ampliada tanto da maquinaria (capital fixo) quanto da
força de trabalho (capital variável que assume a forma de salários). A educação
torna-se, assim, um modo de preparar as novas gerações de proprietários e de
não proprietários para as posições que irão ocupar na hierarquia do processo
de produção (...).

A concepção segundo a qual a escola é um local de democratização do saber


encobre a contradição fundamental da sociedade capitalista, escondendo que
a escola classista é mais um dos espaços destinados à reprodução da hierarquia
econômica, entre proprietários e não proprietários; da hierarquia social, entre
burgueses e proletários; e da hierarquia política, ente governantes e governados.
(PILETTI e PRAXEDES, 2010, p. 55).

Este ponto de vista da escola como estratégia de reprodução da sociedade aproxima-se da visão de
educação que analisamos em Durkheim, ainda que neste autor não houvesse qualquer alusão a
esta manutenção da ordem vigente enquanto estratégia de reprodução das desigualdades sociais.

Para Marx, no entanto, a escola destinada a receber os filhos da burguesia serão aquelas escolas
de elite, interessadas em formar seus alunos para serem burgueses, detentores dos meios de
produção e ponto mais alto da hierarquia social. Os filhos do proletariado, da mesma forma,
estariam destinados a frequentar as escolas populares, condizentes com a sua posição na
hierarquia social e destinadas a formar mais força de trabalho.

85
CAPÍTULO 5 • Karl Marx e a educação transformadora

Assim, as escolas “de rico” formam ricos enquanto as escolas “de pobre” formam pobres,
fazendo com que a ordem social capitalista se mantenha inalterada. Esta distinção se baseia
importantemente na valorização polarizada presente nestes dois tipos de instituição entre o
trabalho intelectual e o trabalho manual.

A escola, portanto, é vista por Marx como parte da superestrutura capitalista, que tem como
objetivo a manutenção da estrutura de classes bem delimitadas, bem como o processo de
dominação. No entanto, para este autor os sujeitos podem ser autores da história através da sua
mobilização e pela luta pela emancipação.

(...) a educação, a formação de quadros, constitui um campo de batalhas


importante, onde se pode inculcar hábitos conservadores, cultivar tendências
conservadoras, acomodatícias, resignadas ou meramente pragmáticas, mas onde
se pode também fortalecer disposições críticas, estimular o inconformismo e a
inadequação, incentivar o desenvolvimento da capacidade questionadora. Nas
instituições educacionais pode prevalecer tanto a formação de súditos como a
formação de cidadãos. (KONDER, 2002, p. 21).

Ainda que o próprio Marx tenha feito reflexões muito pontuais a respeito da escola e da educação
dentro do processo de alienação e/ou emancipação do homem, diversos foram os autores, como
Gramsci (1981), que partiram de sua reflexão a respeito da ordem social e da luta de classes nela
existentes para construir as bases de uma Sociologia da Educação de caráter marxista.

De acordo com Bottomore (2001, p. 122), este tipo de educação é aquele que se fundamentado
nos seguintes ideais:

Educação pública, gratuita, compulsória e uniforme para todas as crianças, para que, desta
forma, todos tenham o mesmo acesso à cultura e ao conhecimento.

Educação que inclua tanto o trabalho intelectual quanto o trabalho manual, para que, assim, todos
os indivíduos conheçam a totalidade do processo de produção da vida material da sociedade.

Educação que assegure o desenvolvimento integral da personalidade, incluindo, assim, todas as


esferas de sua vida social, como cultura, consumo, lazer e a interação com o outro.

Educação em que a relação entre professor e aluno parte do princípio da colaboração e não
da competição, para que, desta forma, sejam transformadas as relações dos diferentes grupos
sociais dentro da escola.

Esta reflexão marxista a respeito da educação fundamentou o surgimento das correntes


pedagógicas progressistas, ou seja, aquelas que partem da análise crítica da realidade social e
pressupõem a necessidade de transformação das relações sociais desiguais a partir da educação.
Esta tendência pedagógica se subdivide da seguinte maneira:

86
Karl Marx e a educação transformadora • CAPÍTULO 5

» Pedagogia progressista libertária: compreende que apenas os conteúdos que o indivíduo


constrói pela vivência e a experiência prática são verdadeiramente assimilados e
aplicados de forma prática. Para os teóricos desta corrente pedagógica o aluno deve ser
responsável pela autogestão do seu próprio aprendizado e o professor deve participar do
processo como um conselheiro que acompanha, sem, contudo, direcionar a caminhada
de aprendizagem do estudante.

» Pedagogia progressista libertadora: desenvolvida por Paulo Freire (2011), esta corrente
pedagógica fundamenta-se na busca pela transformação social através da consciência
crítica desenvolvida pelo próprio indivíduo a partir da percepção da realidade em que
vive. Para Freire (2011), quando o sujeito compreende sua própria situação de oprimido,
pode agir no mundo para libertar-se e, neste processo, o professor atua em parceria com
o aluno, aprendendo e ensinando mutuamente.

» Pedagogia progressista crítico-social dos conteúdos: também conhecida como


pedagogia histórico-crítica, esta corrente de pensamento busca priorizar a aquisição
de conteúdos e na socialização, através dos quais o aluno poderá participar no processo
de real democratização da sociedade. Neste caso, o aluno é o centro do processo de
ensino e aprendizagem, sendo o professor um mediador entre ele e os conteúdos.

De acordo com Nelson Piletti (2003), a respeito dos processos existentes na escola que contribuem
para a transformação social, podemos elencar os seguintes:

» A descoberta: mesmo que a escola proponha o contato com conhecimentos já existentes


na sociedade, é interessante que se estimule a criatividade e a curiosidade dos alunos,
permitindo que eles redescubram estes saberes para que a experiência seja significativa.
Para isso, o professor, em vez de apresentar ao aluno o conceito pronto, deve levar o
aluno a refazer o trajeto do primeiro descobridor.

» A invenção: a invenção ocorre na combinação entre um conhecimento já existente e o


desejo ou necessidade de a partir dele desenvolver algo novo, associando-se, desta forma,
com a realidade e a prática. Sendo assim, quanto mais inventivas e menos repetitivas
forem as propostas escolares, maior será a contribuição da escola na formação de
indivíduos comprometidos com a transformação social.

» A visão de conjunto: a escola e a comunidade devem ser entendidas como partes


integrantes de um mesmo todo, pois será a sua atuação coordenada que contribuirá
para a formação de indivíduos participativos e conscientes de seu papel transformador
da sociedade.

» A espontaneidade: a pluralidade de comportamentos que ocorrem espontaneamente


dentro da escola podem ser uma ferramenta para o diálogo e a transformação da

87
CAPÍTULO 5 • Karl Marx e a educação transformadora

sociedade. No entanto, a escola tradicional com a sua necessidade de padronização inibe


este tipo de atitude, especialmente através do seu sistema de punições e recompensas.

» A liberdade: o indivíduo verdadeiramente livre é aquele que consegue compreender


criticamente a sua realidade e tomar suas decisões de forma consciente e informada.
No entanto, só é possível educar indivíduos para serem livres em um ambiente em que
a liberdade seja um valor. Trata-se de compreender que o debate sobre liberdade em
um contexto repressor não é significativo para os alunos.

» A participação: formar para a participação significa estimular o aluno a se interessar


pelo que acontece ao seu redor, seja nas relações interpessoais vivenciadas dentro da
escola ou mesmo na definição dos conteúdos estudados. No futuro, este tipo de postura
diante do mundo fará com que o aluno participe também da vida social, portando-se
de forma crítica e cidadã.

Para refletir

Não nascemos prontos!


O sempre surpreendente Guimarães Rosa dizia: “O animal satisfeito dorme” . Por trás dessa aparente obviedade está um
dos mais profundos alertas contra o risco de cairmos na monotonia existencial, na redundância afetiva e na indigência
intelectual. O que o escritor tão bem percebeu é que a condição humana perde substância e energia vital toda vez que se
sente plenamente confortável com a maneira como as coisas já estão, rendendo-se à sedução do repouso e imobilizando-se
na acomodação.

A advertência é preciosa: não esquecer que a satisfação conclui, encerra, termina; a satisfação não deixa margem para a
continuidade, para o prosseguimento, para a persistência, para o desdobramento. A satisfação acalma, limita, amortece.

Por isso, quando alguém diz “Fiquei muito satisfeito com você” ou “Estou muito satisfeita com seu trabalho”, é assustador.
O que se quer dizer com isso? Que nada mais de mim se deseja? Que o ponto atual é meu limite e, portanto, minha
possibilidade? Que de mim nada mais além se pode esperar? Que está bom como está? Assim seria apavorante; passaria a
ideia de que desse jeito já basta. Ora, o agradável é alguém dizer “seu trabalho (ou carinho, ou comida, ou aula, ou texto, ou
música etc.) é bom, fiquei muito insatisfeito e, portanto, quero mais, quero continuar, quero conhecer outras coisas”.

Um bom filme não é exatamente aquele que, quando termina, nos deixa insatisfeitos, parados, olhando, quietos, para a
tela, enquanto passam os letreiros, desejando que não cesse? Um bom livro não é aquele que, quando encerramos a leitura,
permanece um pouco apoiado no colo e nos deixa absortos e distantes, pensando que não poderia terminar? Uma boa festa,
um bom jogo, um bom passeio, uma boa cerimônia não é aquela que queremos que se prolongue?

Com a vida de cada um e de cada uma também tem de ser assim; afinal de contas, não nascemos prontos e acabados. Ainda
bem, pois estar satisfeito consigo mesmo é considerar-se terminado e constrangido ao possível da condição do momento.

Quando crianças (só as crianças?), muitas vezes, diante da tensão provocada por algum desafio que exigia esforço (estudar,
treinar, emagrecer, etc.), ficávamos preocupados e irritados, sonhando e pensando: “Por que a gente já não nasce pronto,
sabendo todas as coisas?” Bela e ingênua perspectiva. É fundamental não nascermos sabendo nem prontos; o ser que nasce
sabendo não terá novidades, só reiterações. Somos seres de insatisfação e precisamos ter nisso alguma dose de ambição;
todavia, ambição é diferente de ganância, dado que o ambicioso quer mais e melhor, enquanto o ganancioso quer só para si
próprio.

88
Karl Marx e a educação transformadora • CAPÍTULO 5

Nascer sabendo é uma limitação porque obriga a apenas repetir e, nunca a criar, inovar, refazer, modificar. Quanto mais
se nasce pronto, mais se é refém do que já se sabe e, portanto, do passado; aprender sempre é o que mais impede que nos
tornemos prisioneiros de situações que, por serem inéditas, não saberíamos enfrentar.

Diante dessa realidade, é absurdo acreditar na ideia de que uma pessoa, quanto mais vive, mais velha fica; para que alguém
quanto mais vivesse, mais velho ficasse, teria de ter nascido pronto e ir se gastando...

Isso não ocorre com gente, mas com fogão, sapato, geladeira. Gente não nasce pronta e vai se gastando; gente nasce não
pronta e vai se fazendo. Eu, no ano 2000, sou a minha mais nova edição (revista e, às vezes, um pouco ampliada); o mais
velho de mim (se é o tempo a medida) está no meu passado, não no presente.

Demora um pouco para entender tudo isso; aliás, como falou o mesmo Guimarães, “não convém fazer escândalo de começo;
só aos poucos é que o escuro é claro”...
(CORTELLA, 2015, p. 11).

Sintetizando

Vimos até agora:

» A centralidade das relações sociais para a análise feita por Marx a respeito da sociedade capitalista, dando especial
destaque à luta de classes, que para este autor é a mola-mestra para a transformação social.

» A especificidade da sociedade capitalista e a sua relação com o tipo de produção que a fundamente, baseada na oposição
entre aqueles que são os detentores da posse dos meios de produção e aqueles que precisam vender sua força de trabalho
como forma de subsistência.

» A importância de entender a sociedade como um espaço marcado pelas disputas e não pela uniformidade. A preocupação,
portanto, deve ser avaliar historicamente as formas como os homens utilizam esta potencialidade de disputa para a
transformação social.

» A contribuição da Sociologia marxista e de seus princípios para a formação do pensamento pedagógico progressista
brasileiro que se divide entre as correntes libertária, libertadora e crítico-social dos conteúdos.

89
CAPÍTULO
DOS CLÁSSICOS AO PENSAMENTO
CONTEMPORÂNEO 6
Introdução

Neste último capítulo, partiremos da base construída através do estudo da Sociologia clássica
representada por Weber, Durkheim e Marx, para analisar as teorias contemporâneas da Sociologia
da Educação.

Analisaremos de que forma o movimento multidisciplinar do pós-colonialismo influenciou os


estudos culturais desenvolvidos na área da educação, desconstruindo o olhar que vem de fora da
sociedade como forma de subordinar e uniformizar as culturas das ex-colônias. Investigaremos
também a forma como a Nova Sociologia da Educação desenvolveu uma nova abordagem para
o estudo dos currículos escolares, tratando-os enquanto produção social e não como verdades
absolutas.

Objetivos

» Resumir a contribuição dos clássicos da Sociologia, estudados nos capítulos anteriores,


para a educação.

» Destacar a importância de que a leitura dos clássicos seja contextualizada.

» Apresentar o conceito de pós-colonialismo e suas contribuições para a análise da


sociedade.

» Discutir a importância da educação em espaços não escolares.

» Analisar a contribuição dos estudos culturais para a Sociologia da Educação.

» Investigar a contribuição da Nova Sociologia da Educação para o estudo dos currículos


escolares;

» Reafirmar a importância do estudo da Sociologia na formação de professores.

90
Dos clássicos ao pensamento contemporâneo • CAPÍTULO 6

Os clássicos como ponto de partida

Nos capítulos anteriores, analisamos o referencial teórico de três pensadores considerados


como clássicos da Sociologia por terem reflexões que fundamentaram a disciplina e até os dias
de hoje influenciam aquilo que é pesquisado nas Ciências Sociais, bem como em outras áreas
do conhecimento como Filosofia, Economia, Direito e Educação, entre outras.

Atenção

As Ciências Sociais são consideradas aquelas disciplinas emergentes no século XIX, que tentavam dar sentido às
transformações advindas da modernidade e da sociedade capitalista que tomava forma.

» Sociologia: estudo das interações sociais e da estrutura das sociedades em seus diversos aspectos.

» Antropologia: estudo das culturas, seus significados e manifestações.

» Ciência Política: estudo das relações de poder, de forma mais geral, e dos diversos tipos de sistemas políticos.

Compreender a relação entre indivíduo e sociedade é uma questão motivadora para os três
autores. Partindo dela, chegam a discussões completamente diferentes a respeito da estrutura
da sociedade e das relações sociais. Através do quadro a seguir tornam-se claros os principais
pontos de divergência no pensamento de Marx, Weber e Durkheim.

Quadro 5. Comparativo entre o pensamento de Marx, Weber e Durkheim

Característica Durkheim Weber Marx


Objeto de estudo da Fatos sociais Ação social Sistema de produção
Sociologia capitalista
A sociedade determina os Os indivíduos determinam a A sociedade e os
Relação entre indivíduo e
indivíduos sociedade indivíduos determinam-se
sociedade
reciprocamente
Método de análise da Funcionalismo ou método Método compreensivo Materialismo histórico e
sociedade comparativo dialético
Reprodução da ordem já Formar para o mundo Na sociedade capitalista
estabelecida na sociedade burocrático sem perder a ela é reprodutivista, mas
Papel da educação
criticidade tem potencial para a
transformação
Inspirou as correntes Discutir o papel do professor Inspirou as correntes
Principais contribuições para
pedagógicas tradicionais e a importância do pedagógicas progressistas
a educação
pensamento crítico

Fonte: Elaborado pela autora.

É importante destacar, no entanto, que ao trabalharmos com os conceitos sociológicos


dos autores clássicos é preciso ter o discernimento de que estes indivíduos não são em si
transcendentais. São sujeitos históricos, olhando para as sociedades de seus tempos e refletindo
a respeito delas. Sendo assim, julgar os conceitos e reflexões dos clássicos, por mais atuais que
eles ainda sejam, sem as devidas adequações e adaptações à realidade social em que vivemos
seria injusto com eles e improdutivo para nós.

91
CAPÍTULO 6 • Dos clássicos ao pensamento contemporâneo

Outro ponto a considerar sobre o estudo dos clássicos para a Sociologia da Educação, é que,
com exceção de Durkheim, que possui uma reflexão específica a respeito da educação, os outros
dois autores não tinham este aspecto da vida social como ponto focal de seus estudos. O que
apresentamos a respeito da visão de Marx e Weber sobre a educação não está sistematizado em
suas obras, mas pode ser captado de forma pontual ao longo de sua produção.

Destaca-se, ainda, que estes três autores não estão produzindo suas teorias em diálogo direto, o
que dificulta certas aproximações e padronizações da análise. Marx, apesar de alemão, produz
também na França e na Inglaterra. Durkheim é um acadêmico francês e Weber alemão. Na linha
do tempo proposta a seguir, podemos ver também que Marx é anterior ao pensamento de Weber
e Durkheim, permitindo que os dois últimos autores tenham tido contato com os escritos de
Marx, sem, contudo, que o contrário tenha sido possível.

Figura 22.

Fonte: Adaptado de Silva et al. (2016, p. 40)

Provocação

Você consegue imaginar a reação de Marx, Weber e Durkheim se conseguíssemos trazê-los para analisar o sistema
educacional de nossa sociedade e nosso tempo? Quais você imagina que seriam as considerações que estes três autores
fariam a respeito das nossas práticas docentes?

Os filmes indicados abaixo brincam com esta ideia de um indivíduo do passado que consegue vir para o presente. São boas
dicas para imaginarmos a problemática do “estar fora de contexto”.

Kate e Leopold
EUA: 2001 – Direção de James Mangold

A comédia romântica Kate e Leopold brinca com a ideia de um indivíduo do século XIX que
consegue viajar no tempo e se depara com a sociedade do século XXI. Neste filme podemos ver
Fonte: <https://pt.wikipedia.
org/wiki/Kate_%26_Leopold> a forma como a adaptação de valores de um momento histórico para outro não é simples.

92
Dos clássicos ao pensamento contemporâneo • CAPÍTULO 6

Ele está de volta


Alemanha: 2015 – Direção de

Nesta comédia, o ditador nazista Adolf Hitler acorda completamente perdido na Alemanha de
2011, sem nenhuma informação sobre o que aconteceu depois do fim da guerra em 1945.

Fonte: <http://www.
adorocinema.com/filmes/
filme-225657/>

Tendo concluído nosso estudo a respeito dos clássicos da Sociologia e estabelecido, com isso,
as bases que sustentam a Sociologia da Educação, passemos agora a analisar as teorias que vêm
sendo utilizadas contemporaneamente para o estudo da educação e sua relação com a sociedade.

Atenção

Na Trilha de Aprendizagem da Estação 6 da sua sala de aula virtual, você encontrará uma discussão interessante sobre a
forma como a Sociologia do século XX apropriou-se dos conceitos clássicos de Marx, Weber e Durkheim.

Não deixe de visitar a Trilha e aproveitar todo o conteúdo disponível!

Pós-colonialismo

Como vimos no segundo capítulo deste livro, a Sociologia tem origem em um momento histórico
em que o europeu é colocado em contraste direto com outras populações através da expansão
comercial que aumentou as distâncias percorridas na África e na Ásia, bem como desbravou os
novos continentes da Oceania e da América. Neste contexto, criou-se uma disciplina em que
o nós (homens brancos europeus) dedicava-se a estudar o eles (homens e mulheres de outras
culturas, vistas como selvagens ou primitivas).

Esta narrativa que colocava o europeu e sua “civilização” como centro do mundo, ponto de
desenvolvimento humano a ser alcançado por todas as demais sociedades, foi usada durante
muito tempo como justificativa para a dominação colonial pela Europa do restante do mundo.

Com a globalização, no entanto, e a circulação crescente de pessoas e conhecimentos, temos


cada vez mais “nativos exóticos” chegando aos grandes centros de pesquisa, não mais enquanto
objeto de estudo, mas, sim, enquanto pesquisadores, detentores da legitimidade da ciência e de
seu método, que passam a refletir a respeito de suas culturas e sociedades de origem.

Da mesma forma, as ex-colônias por todo o mundo começam a construir seus próprios centros
de pesquisa, suas universidades e a utilizar o discurso acadêmico, anteriormente visto como uma
ferramenta da dominação, enquanto estratégia para questionar estas narrativas eurocêntricas
que por tanto tempo foram apresentadas enquanto modelo civilizatório universal.

93
CAPÍTULO 6 • Dos clássicos ao pensamento contemporâneo

O movimento pós-colonial foi responsável, desta forma, por superar as leituras feitas de fora
a respeito da África, da Ásia, da Oceania e da América Latina, dando, assim, lugar de fala aos
pesquisadores e pensadores destas localidades para refletirem sobre si mesmos e para evidenciarem
as relações de poder envolvidas na construção do conhecimento.

Neste processo, autores como o palestino Edward Said (2003), o jamaicano Stuart Hall (2009) e
o indiano Homi Bhabha (2007) foram fundamentais.

No que diz respeito à educação, não podemos


Atenção
desconsiderar o papel da escola na perpetuação e
manutenção do discurso de dominação colonial. Os Você conhece o conceito de diáspora?
estudos pós-coloniais inserem-se nas reflexões sobre Este termo é utilizado para se referir à
educação, portanto, questionando os reflexos do período dispersão de uma etnia ou povo ao redor

de dominação que ainda nos dias de hoje podem ser do mundo. Pode ser aplicada, portanto, a
diferentes populações, como os judeus, os
vistos nas instituições de ensino das ex-colônias.
armênios e os povos africanos, que estão
presentes em sociedades por todas as partes
Piletti e Praxedes (2010, p. 116), destacam os seguintes do globo.
tópicos como norteadores deste processo de
desconstrução do saber colonial:

» Qual é a contribuição da herança colonial presente na educação e nos currículos escolares


para a manutenção de preconceitos étnicos e raciais?

» Até que ponto podemos afirmar que o conceito de raça elaborado pelo pensamento
europeu nos séculos XVIII e XIX ainda influencia a construção das identidades dos
alunos e dos educadores?

» Como a soberania do sujeito imperial europeu ainda é celebrada nos materiais didáticos,
nas narrativas literárias e nos textos científicos e filosóficos?

» De que forma os padrões culturais europeus ainda influenciam as subjetividades de


alunos e educadores de diferentes grupos étnicos e raciais?

» Como é possível, na sociedade brasileira, transformar a escola em um espaço democrático


de convivência entre os diferentes segmentos étnicos e raciais?

Todas estas indagações nos levam a refletir a respeito da viabilidade de desconstruirmos o


olhar colonial quando ainda somos tão influenciados por ele em nossas práticas cotidianas.
Os estudos culturais, apresentados a seguir, podem ser compreendidos como uma tentativa
de buscar as respostas para estas indagações.

94
Dos clássicos ao pensamento contemporâneo • CAPÍTULO 6

Para refletir

Neste processo de os países periféricos refletirem sobre si mesmos e apresentarem ao mundo suas próprias narrativas pós-
coloniais, o cinema assumiu papel importante.

Os filmes a seguir são boas indicações de obras pós-coloniais:

» Central do Brasil (Walter Salles, 1998, Brasil);

» O balão branco (Jafar, Panahi, 1995, Irã);

» Amores brutos (Alejandro Gonzalez Inarritu, 1999, México);

» Nove rainhas (Fabian Bielinsky, 1999, Argentina);

» Amor à flor da pele (Wong Kar-Wai, 2000, Hong Kong).

Estudos culturais

Os estudos culturais são apresentados por Renato Ortiz (2004) como um processo de renovação
das Ciências Sociais, no qual se rompem as fronteiras disciplinares formalmente construídas nos
departamentos das universidades em prol de uma visão multidisciplinar a respeito da cultura e
de suas mais variadas expressões.

A assunção da centralidade da cultura no plano do pensamento e da produção


do conhecimento nas diferentes áreas disciplinares e interdisciplinares implica,
assim, uma escolha que extrapola, ou melhor, que é anterior à escolha de possíveis
interlocuções teóricas, conceitos centrais ou enfoques disciplinares. (GABRIEL,
2013 p. 220).

No campo da educação, de acordo com Piletti e Praxedes (2010), os estudos culturais possuem
uma análise crítica e política dos processos educativos, buscando, com isso, a transformação da
realidade social em que esses processos se desenvolvem. Para tanto, é fundamental questionarmos
e desnaturalizarmos a visão da produção acadêmica e das práticas escolares como calcadas em
conhecimentos produzidos de forma neutra, científica, racional, universal e, portanto, legítima.

A educação, representada neste caso pela escola e a universidade, consiste em um campo de


disputa em que coexistem propostas de manutenção da dominação e intervenções críticas e de
resistência que buscam a superação das relações sociais desiguais existentes.

Ainda segundo estes autores, o discurso eurocêntrico dominante baseia-se no estabelecimento


de distinções binárias hierarquizadas, que legitimam as relações de dominação e exclusão através
da associação de determinados grupos com os polos positivos ou negativos destas oposições.

95
CAPÍTULO 6 • Dos clássicos ao pensamento contemporâneo

Na ação educativa restringimos nossos juízos às maneiras de pensar permitidas


pelas oposições como mente ou corpo, teórico ou empírico, inteligível ou obscuro,
consistente ou inconsistente, certo ou errado, bonito ou feio, aluno bom ou aluno
ruim, decente ou indecente etc. Raciocinamos de maneira dicotômica e assim
perdemos a capacidade de captar a diversidade do real nas representações que
elaboramos sobre “nós” próprios, professores, e sobre os alunos, seus pais e a
comunidade externa à escola, transformados em “outros”. (PILETTI e PRAXEDES,
2010, p. 117).

Esta tentativa de captar a diversidade do real nas diversas representações elaboradas a respeito da
educação, do ambiente escolar e dos atores sociais que fazem parte dele, pode ser exemplificada
especialmente pelo questionamento da escolarização da educação, a neutralidade do currículo
e da uniformidade da escola.

Para refletir

Entre os muros da escola

França: 2008 – Direção de Laurent Cantet

O filme Entre os muros da escola narra a história do professor francês François Marin, que leciona
em uma escola marcada pela intolerância, que está situada na periferia de Paris e possui um corpo
estudantil multicultural, formado por alunos asiáticos, africanos, árabes e francês. O longa apresenta a
luta do professor para se conectar com seus alunos.

Fonte: <pt.wikipedia.org/wiki/Entre_les_murs>

A Nova Sociologia da Educação (NSE)

O termo nova sociologia da educação, como destacam Piletti e Praxedes (2010) foi atribuído na
década de 1970 à abordagem crítica da educação que via os currículos e as práticas pedagógicas
como processos sociais que permanecem constantemente em construção. A proposta da NSE é,
portanto, desconstruir o olhar teórico sobre o currículo, bem como o de que tudo o que é feito na
escola deve ser entendido como algo neutro e cristalizado, dado a priori e jamais questionado.

Tente se lembrar, por exemplo, de quantas vezes você ouviu dizer que Matemática e Português
são as disciplinas mais importantes do currículo, o que lhes garante uma carga horária mais
ampla, um local central nos programas de avaliação do rendimento dos alunos, políticas
públicas de valorização dos seus saberes, etc.

Este valor do estudo da Matemática e da Língua Portuguesa, no entanto, não é um dado imutável
da natureza. Não é por que é. Ao dizermos que algo é importante, estamos automaticamente
afirmando que aquele algo é importante para alguém, em algum momento, em algum lugar e
por alguma razão específica.

96
Dos clássicos ao pensamento contemporâneo • CAPÍTULO 6

Como destaca Basil Bernstein (apud PILETTI e PRAXEDES, 2010, p. 110) , é fundamental termos
a consciência de que:

(...) o modo como uma sociedade seleciona, classifica, distribui, transmite e


avalia os saberes destinados ao ensino reflete a distribuição do poder em seu
interior e a maneira pela qual aí se encontra assegurado o controle social dos
comportamentos individuais.

Reflita, por exemplo, a respeito de todas as implicações sociais, culturais e políticas da Lei nº 10.639,
de 2003, que inseriu a história e cultura afro-brasileira e africana como conteúdos obrigatórios
do currículo escolar e da Lei nº 11.645, de 2008, que, posteriormente, incluiu também a história
e cultura dos povos indígenas brasileiros.

Ao decidir que a história e a cultura destes povos devem ser ensinadas a todos os alunos das
escolas brasileiras, estabelecem-se como importantes estas mesmas culturas. É uma afirmação
oficial de que saber sobre estas pessoas e a contribuição delas para a fundação e desenvolvimento
da sociedade brasileira importa.

O mesmo pode ser dito sobre o debate a respeito da exclusão ou não das disciplinas Filosofia e
Sociologia da grade curricular do ensino médio. Paralelo a isso, cresce a presença no currículo
das instituições de ensino, especialmente as privadas, de disciplinas como empreendedorismo
e robótica.

Não se pretende, com isso, afirmar que o estudo da Filosofia e da Sociologia seria mais
importante do que o estudo da robótica e do empreendedorismo. São dois tipos distintos de
saberes, que importam para parcelas da população de forma diferente, sem que, com isso, haja
uma hierarquia preexistente que afirme a primazia de uma disciplina sobre a outra.

É ingênuo acreditar, contudo, que a decisão de acrescentar ou retirar uma disciplina da grade
curricular é meramente burocrática ou não possui intencionalidade. Tudo o que é feito com
relação ao currículo – nos dirão os pensadores da nova Sociologia da Educação – é um ato político.

A “nova sociologia da educação” propõe um novo programa, introduzindo novas


preocupações teóricas e políticas na pesquisa educacional, para investigar o
complexo processo em que a estruturação de uma sociedade – com desigualdade
entre as classes sociais e entre os dominantes do poder político e os dominados
– influencia e é influenciada pela organização dos currículos, consideradas a
seleção e legitimação dos saberes e as relações e práticas dos agentes no processo
escolar. (PILETTI e PRAXEDES, 2010, 109).

A desconstrução das relações de poder até então naturalizadas deve ocorrer ainda dentro das
próprias salas de aula, na interação que ocorre entre professores e alunos. Isto se deve ao fato
de que, em dadas circunstâncias, o preconceito do professor, esteja ele relacionado a uma visão

97
CAPÍTULO 6 • Dos clássicos ao pensamento contemporâneo

demasiadamente otimista ou pessimista a respeito do desempenho do aluno, podem ter efeitos


diretos no rendimento deles.

Em uma situação hipotética, tomemos uma professora de Química que lecione para três turmas
do primeiro ano do ensino médio, que foram organizadas de acordo com o rendimento dos alunos
no ano anterior. A turma um tem os alunos com as melhores notas, a dois tem os alunos com
rendimento mediano, e a turma três reúne os alunos com as menores médias no ano anterior.

Partindo desta análise antecipada, a professora prepara as suas aulas com níveis distintos de
profundidade na abordagem dos conteúdos, pois a sua expectativa é de que a turma considerada
mais fraca não tenha a capacidade de “acompanhar o assunto” da mesma forma que os alunos
das outras duas turmas. Na turma um, inclusive, ela pretende ir um pouco além do conteúdo
curricular obrigatório, para que os alunos estejam mais bem preparados para o vestibular.

É importante destacar que no nono ano do ensino fundamental, quando as avaliações para
nivelamento e classificação das turmas foram feitas, a disciplina de Química sequer era ministrada
a estes alunos que, portanto, estão sendo apresentados ao conteúdo de Química com diferentes
níveis de dificuldade com base em seu desempenho em outras disciplinas. Um aluno, da mesma
forma, que esteja na turma número três por ter apresentado baixo rendimento nas disciplinas
da área de Humana também estará sendo limitado por fatores arbitrários.

Consideremos ainda, que dentro desta lógica de estimular mais aqueles com melhores rendimentos,
certamente a previsão de sucesso e fracasso relacionada às três turmas se concretizará, não pelo
desempenho dos alunos, mas pela decisão pedagógica do docente a respeito de como ministrar
o currículo.

Vemos, assim, que toda decisão pedagógica, seja ela de longo alcance, tomada pela gestão do
sistema educacional; ou mais pontual e aplicada diretamente às salas de aula, não podem ser
analisadas sem a consideração de seus reflexos políticos sobre os resultados que serão obtidos.

Cuidado

É de fundamental importância compreendermos que o conceito de política é diferente do conceito de partidarismo político.

Qualquer ação, reflexão ou debate que esteja relacionado à nossa vida civil e coletiva são atos políticos. Já os atos partidários
são aqueles em que além de se considerar a ação com relação à vida civil e coletiva, estão incluídos também os valores
associados a um partido político específico.

Sendo assim, todo ato partidário é político, mas nem todo ato político é partidário.

Ações como matricular um filho na escola, alfabetizar uma criança, participar de uma campanha de vacinação, tirar carteira
de motorista, votar, comprar verduras diretamente do produtor local, todos estes atos podem ser entendidos como políticos.

Quando nos referimos às escolhas pedagógicas e ao currículo escolar como instrumento político, não se defende, com isso,
que eles estejam atrelados a uma corrente partidária específica, mas, sim, que a sua execução está diretamente relacionada à
cidadania e à vida coletiva dos indivíduos.

98
Dos clássicos ao pensamento contemporâneo • CAPÍTULO 6

Desconstruindo e reconstruindo a educação escolar

Ao considerarmos a cultura em sua multiplicidade de significados e aspectos, é preciso nos


questionarmos inicialmente a respeito da visão da escola como espaço único em que se constroem
os saberes necessários para a prática da cidadania e a inclusão no mercado de trabalho, visão
esta comprometida tanto no espaço quanto no tempo.

Queremos dizer que, em diferentes espaços e tempos, coexistem, confrontam-se


e redefinem-se diferentes possibilidades e limite de humanização. É uma relação
social marcada pela contradição e, assim, reveladora das múltiplas respostas e
sinais dos indivíduos, que, como sujeitos, são capazes de criar movimentos para a
construção de projetos alternativos, visando à formação de cidadãos democráticos
e emancipados. A realidade muda a todo instante e o saber que é construído
sobre ela precisa ser revisto e ampliado constantemente. Temos consciência da
provisoriedade dessa construção teórica. A ideia é que se (re)pense a tarefa da
educação nesse cenário do século XXI. (SCHMITZ, et al., 2012, p. 168)

No que diz respeito ao espaço, é importante considerarmos a contribuição dos espaços não
escolares para a formação integral dos indivíduos, servindo de suporte ao sistema formal de
ensino e garantindo, ainda, a multiplicidade de olhares. Sendo assim, a Sociologia da Educação
passa a ter que analisar de forma crítica todas as práticas pedagógicas e processos de construção
de conhecimento desenvolvidos dentro e fora da escola.

No que se relaciona ao tempo, é importante considerarmos ainda que a construção de


conhecimentos e a própria socialização não se restringirem à infância e, portanto, à vida escolar
do sujeito. Ao longo de toda a vida nos defrontamos com novos saberes a serem construídos; nos
relacionamos com pessoas ou grupos de pessoas que nos apresentam novos valores e formas
de olhar o mundo; nos colocamos em situações e contextos sociais em relação das quais não
possuímos os códigos de significados necessários para a sua compreensão.

Os exemplos são inúmeros!

Imagine uma pessoa que inicia um novo emprego e precisa aprender tudo sobre aquela instituição
e as formas como são conduzidos os procedimentos; um indivíduo que se descobre diabético na
idade adulta e precisa aprender a respeito de conceitos como células betas e índice glicêmico;
um indivíduo que desenvolve como hobby a corrida de rua passa a conviver com novos conceitos
relacionados aos treinos e à alimentação prescrita para aprimorar o desempenho; uma pessoa
que converta-se a uma nova religião e tenha que ser socializada àquela nova forma de agir, sentir
e pensar.

Sendo assim, ao falarmos de educação, temos que ter em mente que não estamos falando
exclusivamente de escolas e universidades, mas, também, de:

» Empresas.

99
CAPÍTULO 6 • Dos clássicos ao pensamento contemporâneo

» Museus.

» Hospitais.

» Organizações não governamentais (ONGs).

» Igrejas.

» Projetos sociais.

» Associações de classe, entre outros.

Vale ressaltar também que a própria escola, espaço ainda privilegiado para a formação e
socialização dos indivíduos, não pode ser vista como algo único e homogêneo, especialmente em
um país que possui a extensão territorial, a diversidade cultural e social do Brasil. Neste contexto,
é fundamental nos indagarmos se ainda é possível falar sobre a escola no singular.

Será que realmente existe esta instituição única, padronizada e imutável que convencionamos
chamar de escola ou seria mais adequado nos referirmos a ela no plural, valorizando todos os
diferentes contextos e significados que ela abarca?

Ainda que possuamos uma normatização nacional, que organiza e estabelece um limite mínimo
comum compartilhado entre todas as instituições formais de educação do País, é importante
estarmos atentos para as especificidades dos contextos educacionais em que nos inserimos, para
que possamos adaptar o conteúdo e as próprias metodologias de acordo.

» Escola em comunidades rurais.

» Escolas quilombolas.

» Escolas indígenas.

» Escolas urbanas.

» Escolas urbanas em áreas periféricas.

» Escolas técnicas.

Poderíamos nos deter aqui analisando de forma pormenorizada cada um destes ambientes de
aprendizagem: os diferentes espaços não escolares e as diversas facetas da escola. Certamente,
as especificidades de cada um deles são inúmeras e, justamente por isso, um livro didático que
se dedicasse inteiramente a esta temática não seria capaz de esgotá-la ou garantir que o docente
em formação estará 100% preparado para lidar com todos os dilemas da escola, esteja ela no
contexto em que estiver.

100
Dos clássicos ao pensamento contemporâneo • CAPÍTULO 6

O importante da discussão que travamos aqui é que você tenha em mente o aspecto múltiplo e
mutável da educação, que exige que o professor esteja sempre atento para as suas transformações
e atualizado com relação aos debates teóricos e metodológicos que envolvem a sua prática.

Os estudos culturais, oriundos da inquietação pós-colonial, são uma ferramenta interessante


para que você fundamente sua prática específica. Leia produções desta área do conhecimento
que discutam os dilemas específicos da escola ou outro ambiente educacional em que estiver
atuando. Desta forma, você se mantém em constante processo de formação e aprimoramento
juntamente com a realidade social.

Últimas reflexões

O objetivo deste material foi apresentar, da forma mais rica possível, as inúmeras possibilidades
oferecidas pela Sociologia da Educação para o professor que se interesse em refletir criticamente
sobre sua prática, sem aceitar de forma passiva que as coisas são como são e, portanto, devem
permanecer como estão.

E esta é uma postura que independe de alinhamentos políticos, filiações partidárias, devoções
religiosas ou qualquer outro traço identitário ou sistema de valores com o qual você se identifique.
Aqueles que acreditam que tudo vai mal precisam se mobilizar para mudar esta realidade. Aqueles
que acreditam que tudo vai bem precisam se mobilizar para que tudo fique ainda melhor.

Devemos sempre considerar que a aprendizagem, tanto a do aluno quanto a do professor,


acontece fora da zona de conforto, quando nos deparamos com o desconhecido e o questionamos
e investigamos com curiosidade, interesse e dedicação. Educação, portanto, é fluxo. É movimento
constante, impulsionado pelo aluno, pelas famílias, pelo Estado, pela comunidade e, sem dúvida
nenhuma, pelos professores. Desejar que os alunos continuem como eram antigamente constitui
uma luta impossível, visto que a vida social muda e, junto com ela, tudo e todos mudamos também.

Além disso, a aprendizagem significativa tem melhores resultados do que a aprendizagem


mecânica, baseada apenas na abstração e memorização. Quando os conteúdos estão ancorados
no concreto, em significados que o próprio aluno compreende por fazerem parte da sua realidade,
os conhecimentos construídos fazem sentido e são aplicados na prática com mais facilidade.
Mas planejar e ministrar uma aula como esta sem conhecer e entender o contexto sociocultural
do aluno é simplesmente impossível!

Com esta reflexão, concluímos o nosso estudo sobre a sociologia da educação, com a esperança
de que esta conversa se prolongue ao longo de toda a sua vida docente. Mantenha sempre suas
lentes sociológicas diante dos olhos e não tire jamais a sociologia da educação da sua caixinha
de ferramentas!

Um abraço e até breve!

101
CAPÍTULO 6 • Dos clássicos ao pensamento contemporâneo

Para refletir

Ensinar exige criticidade


Não há para mim, na diferença e na “distância” entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e o
que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação e não a ruptura se
dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se
criticiza. Ao criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosidade epistemológica, metodicamente “rigorizando-
se” na sua aproximação ao objeto, conota seus achados de maior exatidão.

Na verdade, a curiosidade ingênua que, “desarmada”, está associada ao saber do senso comum, é a mesma curiosidade
que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna
curiosidade epistemológica. Muda de qualidade, mas não de essência. A curiosidade de camponeses com quem tenho
dialogado ao longo de minha experiência político-pedagógica, fatalistas ou já rebeldes diante da violência das injustiças,
é a mesma curiosidade, enquanto abertura mais ou menos espantada diante de “não eus”, com que cientistas ou filósofos
acadêmicos “admiram” o mundo. Os cientistas e os filósofos superam, porém, a ingenuidade da curiosidade do camponês e
se tornam epistemologicamente curiosos.

A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou
não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não
haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não
fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos.

Como manifestação presente à experiência vital, a curiosidade humana vem sendo histórica e socialmente construída e
reconstruída. Precisamente porque a promoção da ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente, uma das
tarefas precípuas da prática educativo-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita,
indócil. Curiosidade com que podemos nos defender de “irracionalismos” decorrentes ou produzidos por certo excesso de
“racionalidade” de nosso tempo altamente tecnologizado. E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente
humanista de negação da tecnologia e da ciência. Pelo contrário, é consideração de quem, de um lado, não diviniza a
tecnologia, mas, de outro, não a diaboliza. De quem a olha ou mesmo a espreita de forma criticamente curiosa. (FREIRE,
2011, p. 32-33).

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Dos clássicos ao pensamento contemporâneo • CAPÍTULO 6

Sintetizando

Vimos até agora:

» Os estudos clássicos da Sociologia elaborados por Marx, Weber e Durkheim até os dias de hoje contribuem para a reflexão
sobre educação, no entanto, devemos ter sempre em vista o contexto em que estes pensadores produziram seus trabalhos
e os pontos de reflexão a que eles se dedicaram.

» O conceito de pós-colonialismo está diretamente ligado à necessidade de desnaturalizar os saberes construídos sobre as
colônias a partir do olhar dos colonizadores, que ainda hoje influenciam a forma como pensamos e agimos.

» O conceito de diáspora se refere aos grupos étnicos e raciais dispersos pelo mundo por motivos como guerras, preconceito
e a escravidão. Os pensadores da diáspora são os intelectuais oriundos de países periféricos que refletem sobra a própria
cultura nos grandes centros coloniais.

» A educação acontece não só nas escolas, mas, também, em ambientes não escolares.

» A educação escolar não pode ser vista como algo único, pois a escola assume aspectos distintos de acordo com o contexto
em que está inserida.

» Os estudos culturais buscam compreender as especificidades da educação e da escola através de um olhar crítico e
político.

» A Nova Sociologia da Educação consiste em uma corrente de pensamento que desnaturaliza os currículos e práticas
escolares, analisando-os de forma crítica e investigando seus significados.

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Referências
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