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Fundamentos de Sociologia e
Antropologia
1ª Edição
Brasília/DF - 2018
Autores
Haydée Caruso
Produção
Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e
Editoração
Sumário
Organização do Livro Didático........................................................................................................................................4
Introdução...............................................................................................................................................................................6
Capítulo 1
O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências.....................................................................9
Capítulo 2
Teorias e teóricos sociais clássicos........................................................................................................................ 26
Capítulo 3
Indivíduo e sociedade................................................................................................................................................ 46
Capítulo 4
Cultura e sociedade.................................................................................................................................................... 63
Capítulo 5
Temas contemporâneos 1: Globalização, Desigualdades Sociais e Trabalho......................................... 75
Capítulo 6
Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos.................................................................... 87
Referências.........................................................................................................................................................................101
Organização do Livro Didático
Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em capítulos, de forma didática, objetiva e
coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros
recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também,
fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares.
A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização do Livro Didático.
Atenção
Cuidado
Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o
aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado.
Importante
Observe a Lei
Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem,
a fonte primária sobre um determinado assunto.
Para refletir
Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa
e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio.
É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus
sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas
conclusões.
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Organização do Livro Didático
Provocação
Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.
Saiba mais
Sintetizando
Posicionamento do autor
Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o
aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado.
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Introdução
O principal objetivo deste Livro Didático é apresentar os conteúdos centrais da Sociologia
e da Antropologia, a partir de seus autores clássicos e contemporâneos. Nas próximas
páginas, faremos uma instigante caminhada desde a origem histórica destas disciplinas
para chegar a alguns dos temas que mobilizam permanentemente nossa sociedade na
contemporaneidade.
Boa leitura!
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Objetivos
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CAPÍTULO
O SURGIMENTO DA ANTROPOLOGIA E
DA SOCIOLOGIA COMO CIÊNCIAS 1
Introdução
Os seres humanos enquanto espécie têm uma tendência natural a viver em grupo. Desde
os nossos ancestrais primitivos que desenvolveram hábitos sociais convivendo em
pequenos grupos, até as grandes metrópoles contemporâneas que abrigam milhões de
habitantes. Com as mudanças climáticas e o próprio avanço da espécie, que passara agora
a construir estratégias de sociabilidade para manutenção da vida, os pequenos grupos
passaram a evoluir numérica e socialmente. Sendo assim, passamos de pequenos grupos
familiares para tribos, depois vilas e clãs, para, posteriormente, tornarmo-nos sociedades
complexas. Nem todos os grupos sociais se desenvolveram da mesma forma, nos mesmos
moldes, ao mesmo tempo, e são essas diferenças que fazem cada sociedade ser única.
É, também, esta diferença de grupos que chama a atenção de diversos pensadores ao
longo da história da humanidade. Todo este desenvolvimento se deu através de séculos
e despertou nosso interesse; afinal, era preciso entender como nós, enquanto espécie,
conseguimos nos unir, nos organizar e criar tantas instituições, formas de comunicação,
valores, símbolos e signos. Afinal, de formas muito particulares, cada grupo social havia
se desenvolvido a seu modo, construído suas organizações e seus sistemas simbólicos
de forma única. Neste capítulo abordaremos um pouco mais sobre o desenvolvimento
destas sociedades, em especial a sociedade ocidental, e as realidades sociais nas quais
emergiram a Antropologia e a Sociologia, pensando os contextos sociais, econômicos e
culturais que propiciaram seu surgimento.
Objetivos
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CAPÍTULO 1 • O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências
A vida em sociedade
Provocação
Sociedade é, em princípio, uma teia de relações sociais, voluntárias e contratuais, que envolve comunicação,
consenso e diferenças entre os indivíduos e grupos sociais. Estes mantêm laços mediante a língua, a cultura, e o
modo como se relacionam e trabalham. Relações sociais, comunicação e interação são, portanto, componentes
fundamentais da vida social. (ARAÚJO et al., 2013, p. 38).
A espécie humana nem sempre viveu em grandes cidades, rodeada por rodovias, carros
e grandes prédios. Nossa evolução enquanto espécie data de milhões de anos atrás,
mas a históra das sociedades capitalistas, com Estados-Nações e organizações políticas
democráticas é relativamente recente. Para melhor compreendermos como chegamos até
este estágio de desenvolvimento precisamos entender, primeiramente, por que fomos nós
e não outros a avançar nessa direção. Apesar de termos ancestrais comuns com outros
primatas, que também viviam em pequenos grupos parentais, as condições ambientais
e as particularidades cognitivas da nossa espécie foram fundamentais para o nosso
desenvolvimento, que permitiu a formação de grupos sociais para além das relações
familiares. Segundo Barreiros (2018, p. 4), os condicionantes ambientais que ameaçavam a
existência desses grupos familiares foi superada por um “desenvolvimento de instrumentos
cognitivos para cooperação”. Sendo assim, nossos dispositivos cognitivos passam a criar
as ferramentas mentais necessárias para que possamos viver em colaboração uns com os
outros, a luta intragrupal dá lugar à gestão dos grupos e das relações interpessoais. Esta
mudança representa não apenas uma mudança na forma de organização grupal, mas um
passo evolutivo para a espécie, que modifica nossa estrutural biológica.
Surgem assim os “módulos mentais especialmente dedicados ao manejo das relações sociais”
(BARREIROS, 2018, p. 5), saímos, portanto, da condição de primatas primitivos, para indivíduos
sociais. Esta evolução data de milhões de anos atrás e “determina o rito e os limites da luta
pelo poder, reduz o grau de violência interpessoal letal e estabelece os parâmetros para o
fim do conflito” (BARREIROS, 2018,p. 6), tornamo-nos, assim, indivíduos que colaboram e
vivem em grupos maiores, não familiares. Ou seja, deixamos a organização baseada apenas
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O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências • CAPÍTULO 1
em grupos parentais para nos relacionarmos com indivíduos diferentes, de outras “famílias”.
Neste ponto é interessante salientar que a proibição do incesto começa a ser construída, ou
seja, as primeiras restrições para manutenção de relações sexuais entre indivíduos de grupos
específicos. Surgem, assim, os tabus que são:
A sociedade surge, portanto, pela junção destes primeiros grupos familiares, que
posteriormente ampliam suas relações e passam a interagir com outros grupos. Esta
junção de grupos evolui e, assim, vamos formando tribos e clãs, posteriormente, os
conglomerados se ampliam e as necessidades humanas se transformam; assim, os grupos
passam a modificar-se a partir de demandas de produção de alimentos, de moradia, de
mobilidade etc.
Clãs e tribos
Vilas e povoados
Cidades e Estados-nações
Este desenvolvimento social se dá não apenas numa relação entre homens, mas a partir
de uma espécie de “trindade”, onde múltiplos fatores estão envolvidos e relacionados, se
estruturando e sendo estruturados um pelo outro, de forma mútua e contínua. Nas palavras
do sociólogo francês Edgar Morin (2005, pp. 51-52):
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CAPÍTULO 1 • O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências
Inspirados nas palavras de Morin, podemos constatar que desde o século XVIII, passando
pelo XIX e XX, profundas e intensas transformações no modo de viver em sociedade
ocorreram. É justamente no contexto de franco desenvolvimento das sociedades modernas
europeias na virada do século XVIII para o XIX que a Antropologia e a Sociologia surgem
como ciências. Passemos a analisar o contexto de significativas mudanças sociais,
políticas e econômicas ocorridas na Europa Ocidental que culminam com o surgimento
de inquietações sociológicas e antropológicas para explicar o mundo em transformação.
Nossa condição biológica nos permitiu, portanto, viver e trabalhar em conjunto, a fim de
garantir nossa existência enquanto indivíduos e o desenvolvimento de nossos grupos.
Neste contexto, as sociedades começam a se desenvolver, não mais voltadas apenas para a
sobrevivência, mas a convivência entre grupos cada vez maiores e mais complexos dá vazão
ao desenvolvimento intelectual e tecnológico da humanidade. Não somos mais grupos que
apenas sobrevivem, passamos agora a nos organizar politicamente, a criar instituições,
moedas, sistemas de trocas com outros grupos. Começamos a nos questionar sobre nós,
sobre a natureza ao nosso redor e também sobre o outro, o diferente.
Provocação
Faça agora um exercício antropológico e tente encontrar um grupo que se distinga ao máximo do seu grupo familiar
ou do seu grupo de convivência. Quem são essas pessoas? Como elas vivem e se organizam? Quais são as principais
diferenças entre seus grupos e os outros? E quais são as similaridades entre vocês?
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O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências • CAPÍTULO 1
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CAPÍTULO 1 • O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências
O estudo do outro se torna, então, o objeto de análise propriamente dito, e o método adotado
é a análise dos diários de campos destes viajantes. Será apenas no final do século XIX que as
análises desse relatos de viajantes serão encarados de forma antropológica, criando métodos
de pesquisa próprios que superem os problemas advindos da análise não profissional dos
viajantes e missionários, surgem, então, os primeiros trabalhos de campo. Apesar do caráter
de alteridade que estudos antropológicos tem, de apresentar um olhar sobre outro, estas
reflexões antropológicas sofrem grande influência do Tratado de Berlim, onde os países
europeus dividem os territórios africanos e as novas colônias entre si. Isso nos leva a pensar
sobre o caráter imperialista que marca o surgimento da Antropologia enquanto ciência.
Apesar do interesse nesse “outro” desconhecido, os primeiros antropólogos tinham como
parâmetro ou forma de “medir” a outra sociedade a partir dos seus valores eurocêntricos.
Falaremos mais um pouco sobre a Antropologia como ciência.
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O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências • CAPÍTULO 1
Provocação
Compreendemos assim as condições históricas que deram início aos estudos antropológicos. Mas será que os tempos
atuais mantêm os mesmos paradigmas usados séculos atrás? Será que ainda pensamos a evolução das sociedades da
mesma forma? Será que ainda tratamos o outro como o primitivo, exótico?
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CAPÍTULO 1 • O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências
Como vimos nos tópicos anteriores, nós vivemos em sociedades que se desenvolvem,
crescem e se modificam todo o tempo. O surgimento da Sociologia se dá em um contexto
histórico repleto de mudanças e com conjecturas sociais que se modificavam radicalmente,
onde o pensamento científico se solidifica enquanto forma de compreender o mundo,
e o sistema feudal se finda dando lugar ao sistema capitalista, que modifica não apenas
o modo de produção, mas, também, as relações humanas e as classes sociais. Ao longo
dos próximos capítulos, neste Livro Didático, retomaremos esse aspecto por diferentes
perspectivas, teorias e autores. Mas, voltemos agora à ideia inicial da Sociologia. Essa
ciência se estabelece gradualmente, a fim de compreender as intensas mudanças vividas
pela sociedade moderna e, que por sua vez, interferem diretamente na vida dos indivíduos.
Por essa razão, os primeiros estudiosos da área se dispõem a pensar sobre quais são as
mudanças econômicas, políticas e culturais que estavam ocorrendo à época. Sendo assim,
vamos tentar compreender quais foram essas mudanças, seus impactos e as primeiras
abordagens sociológicas que tentam compreender este processo.
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O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências • CAPÍTULO 1
Sendo assim, a Revolução Francesa havia aberto espaço não apenas para o questionamento
das formas tradicionais de dominação política e econômica, ao questionar o Clero e a
Nobreza por seu status de privilégio dentro do sistema feudal, mas, também, modificou
profundamente a forma como os indivíduos pensavam, como produziam conhecimento.
Estas mudanças são fundamentais para entendermos a inquietação que transforma a
sociedade francesa e abre espaço para uma nova forma de organização social, com novas
conjecturas, novas classes e também novos problemas. Este enfraquecimento das classes
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CAPÍTULO 1 • O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências
A Revolução Industrial, por sua vez, também produziu intensas modificações na sociedade,
afinal, não representava apenas uma simples mudança na forma de produção, onde a
manufatura era substituída pela máquina a vapor, pelo contrário, representou o surgimento
de uma nova classe, o rompimento com antigas instituições. As mudanças impactaram em
toda a coletividade, afinal, aqueles que não detinham os modos de produção passaram
agora a vender sua força de trabalho, seu único bem. A Revolução Industrial representou:
São, portanto, as mudanças sociais fruto das revoluções, que modificam drasticamente
as relações sociais que inspiram filósofos e pensadores a se questionar. As conjunturas
políticas e econômicas, frutos das revoluções, serão as primeiras a estimular os pensadores,
e a era do racionalismo, fruto do Iluminismo, que sobrepõe o pensamento mágico
religioso, oferece as ferramentas para questionarmos a sociedade de forma sistemática
e científica, não pensando mais os indivíduos de forma isolada, mas as relações entre
os grupos sociais, principalmente as relações que se modificam e as classes sociais que
surgiram após as revoluções, como é o caso da classe operária, por exemplo.
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O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências • CAPÍTULO 1
Figura 4. Os operários.
Para refletir
Os resultados das revoluções que aconteceram nos séculos XVIII e XIX podem ser percebidos em nossas sociedades
contemporâneas. Pensando nisso, identifique características políticas, econômicas e sociais que foram produzidas na
formação da modernidade ocidental e que você ainda percebe na sociedade atual.
O desenvolvimento da Sociologia
Estudar a sociedade por si só não seria uma tarefa fácil, afinal, os objetos de estudo
da Sociologia não são estáticos e passíveis de total controle, como em outras ciências.
Além disso, os primeiros sociólogos se deparavam com o surgimento de classes sociais, a
substituição de grupos políticos, a modificação das atividades econômicas, o rompimento
de formas de controle tradicionais, conjecturas nunca antes vistas na história da
humanidade. Para além das próprias dificuldades particulares dessa ciência, somava-
se a efervecência destas mudanças sociais. Neste sentido, alguns estudiosos buscavam
estabelecer um método que possibilitasse o estudo da sociedade de forma pragmática
e científica. Um dos precursores desta perspectiva é Auguste Comte (1798-1857), que
se apropria de métodos das ciências naturais para explicar os acontecimentos sociais:
Co m t e a c re d i t a va n ã o a p e n a s q u e a s f o r ç a s s o c i a i s p o d i a m s e r
explicadas através de regras similares às da Física e da Química, mas
que a Sociologia poderia produzir a reforma social do mesmo modo
que as ciências aplicadas levaram aos avanços científicos. ( THORPE
et al., 2016, p. 18)
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CAPÍTULO 1 • O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências
Desensolve-se então a Física Social, uma tentativa de análise que se apropria dos
métodos das ciências exatas. É assim que Auguste Comte (1798-1857) marca o início de
uma ciência que tinha como objeto o estudo do comportamento social. Seguindo nesta
mesma direção, sociólogos como Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber iniciam suas
produções, a partir de métodos de análise próprios, os autores se debruçam sobre os
problemas sociais que emergiram à época. Seja na análise do Estado Moderno, seja na
observação da divisão do trabalho, a Sociologia se torna uma ciência, com seus métodos
e técnicas próprios, seus objetos específicos e sua produção de conhecimento, que em
muito auxilia na interpretação e compreensão da vida social. No capítulo 2 deste Livro
Didático, você terá acesso a uma discussão mais aprofundada da importância desses
autores que ficaram conhecidos como “fundadores da Sociologia”.
A Sociologia na contemporaneidade
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O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências • CAPÍTULO 1
21
CAPÍTULO 1 • O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências
Por isso, é plausível afirmar que a Sociologia está intimamente relacionada ao senso
comum, mas cabe estabelecer uma fronteira entre conhecimento sociológico formal
e senso comum. Os sociólogos Bauman e May (2010) propuseram apresentar quatro
modelos segundo os quais essa diferença tem sido levada em consideração. Vejamos o
quadro a seguir:
Para refletir
Entendendo agora os acontecimentos sociais que deram contexto para a formação da Antropologia e da Sociologia,
vamos refletir sobre o nosso contexto social. No seu cotidiano o que lhe chama a atenção? Existe algo que você
acredita que mereça ser mais bem compreendido? Questione-se sobre quais são as estruturas históricas que
precedem este acontecimento, as relações que os indivíduos estabelecem entre eles neste contexto, as instituições
que controlam estas relações.
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O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências • CAPÍTULO 1
Saiba mais
Um dos primeiros filósofos sociais foi Adam Ferguson (1723-1816), estudioso da Select Society, uma organização
que tentava compreender os avanços da sociedade capitalista, ainda em ascensão, e seus impactos na sociedade.
Ferguson chama a atenção para o fato de que o desenvolvimento do capitalismo estava sendo realizado à custa de
valores tradicionais da sociedade, como os valores grupais de cooperação.
Uma boa dica de filme é a A guerra do fogo, que apresenta um interessante panorama
sobre o cotidiano e os contatos entre grupos primitivos. O filme retrata este contato entre
uma tribo de homens de neandertal e outros grupos de primatas primitivos, todo o filme se
desenvolve a partir da disputa pelo fogo, que representava a sobrevivência dos indivíduos.
O filme dá uma visão interessante sobre os processos evolutivos e as adaptações pelas quais
as espécies passaram.
Sugestão de estudo
A Antropologia Visual é um dos importantes instrumentos utilizados para pesquisa, muitos antropólogos utilizam
essa ferramenta para registrar as diferenças culturais, os aspectos cotidianos da vida dos grupos estudados, além
de apresentar uma visão mais fidedigna da realidade. Neste sentido, o filme Nanook, o esquimó, traz importantes
contribuções, além de mostrar uma realidade completamente apartada da nossa, contando a história de um esquimó
que luta pela sua sobrevivência e de sua família. Muito importante para que possamos questionar nossos próprios
modelos sociais.
As mudanças trazidas pela Revolução Industrial nem sempre são compreensíveis para nós,
afinal, já nascemos na industrialização, onde a maquinofatura determina o modo de produção,
as relações de trabalho já estão estabelecidas. Entretanto, essas mudanças são relativamente
recentes e merecem uma compreensão mais apurada; neste sentido, vale a leitura do livro
Germinal, de Émile Zola. O livro traz a história de uma greve provocada pela redução de
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CAPÍTULO 1 • O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências
salários, além de dar uma imagem de como funcionavam as minas de carvão e as violências
às quais os trabalhadores eram submetidos.
Sugestão de estudo
As relações de trabalho podem ser encaradas como principal vínculo social que temos, é onde passamos a maior
parte dos nossos dias. O clássico filme Tempos modernos traz uma interessante abordagem sobre a vida de um
operário, chão de fábrica, que participa da linha de montagem. Sua função é extremamente monótona e extenuante,
seus patrões querem que ele trabalhe mais e gaste menos tempo no almoço. As relações de trabalho são tratadas de
forma bem humorada por Charles Chaplin.
Sugestão de estudo
As inovações tecnológicas fazem parte do cotidiano das pessoas. Hoje é quase impossível encontrar alguém que não
esteja, de alguma forma, ligado às tecnologias. Celulares, computadores e tablets, começam a fazer parte das nossas
vidas ainda crianças. A entrada desses objetos e das tecnologias não só está presente, como interfere nas nossas
vidas e na forma como nos relacionamos com os outros. Nesta perspectiva, o filme Ela traz uma abordagem muito
particular da tecnologia, da nossa relação com ela e com os outros. O protagonista, que passara por uma recente
separação compra um sistema operacional para seu computador para auxiliá-lo na organização de sua vida, seus
horários e trabalho. Mas a relação que ele estabelece com o programa ultrapassa esta barreira, torna-se afetiva,
amorosa.
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O surgimento da Antropologia e da Sociologia como Ciências • CAPÍTULO 1
Sintetizando
» Nossa espécie tem uma tendência natural a viver em sociedade. Evoluímos ao longo dos anos para viver em grupos.
» As sociedades humanas evoluíram de pequenos grupos familiares para clãs e vilas, tribos e povoados, até nos
organizarmos em cidades e estados-nações.
» A Antropologia surge como uma tentativa de compreender o outro, a partir dos contatos que os europeus começam
a ter com outros povos.
» O começo da Antropologia tem uma visão desenvolvimentista, mas, com o fim do domínio europeu e as
decolonialidades, esta visão muda.
» O desenvolvimento da Antropologia se apresenta como um olhar relacional sobre os outros e sobre nós, ampliando
a compreensão da heterogeneidade e a pluralidade das culturas.
» A Sociologia surge como uma tentativa de compreender as mudanças sociais que aconteciam dentro do continente
europeu durante os séculos XVIII e XIX.
» As Revoluções Industrial e Francesa modificaram não apenas as organizações políticas e a forma de produção, mas
toda a estrutura social.
» O Iluminismo é responsável por modificar a forma como os indivíduos construíam seu conhecimento, este
contexto propicia o surgimento de uma ciência social.
» A Revolução Francesa destituiu antigos grupos dominantes, e este lugar foi ocupado pela classe burguesa que
ascendeu.
» A Revolução Industrial findou a sociedade feudal, dando vazão ao desenvolvimento da sociedade capitalista.
» É no seio da sociedade capitalista que surge a classe operária, que passa a vender sua força de trabalho, o único
bem de que ela dispõe.
» Os avanços tecnológicos produzem mudanças significativas na nossa sociedade. E é sobre esta realidade que os
sociólogos se debruçam na contemporaneidade.
» Como as Ciências Sociais e o senso comum podem se complementar, pois não representam formas excludentes de
compreender a realidade social.
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CAPÍTULO
TEORIAS E TEÓRICOS SOCIAIS
CLÁSSICOS 2
Introdução
Objetivos
26
Teorias e teóricos sociais clássicos • CAPÍTULO 2
Por vezes, nos deparamos com a ideia de que algo é clássico: um jogo de futebol, um “Fla
x Flu”, um “Gre x Nal”, um livro de literatura, como Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski;
um filme como E o vento levou, mas você já se perguntou o que faz de algo um “clássico”?
Contudo, é possível enumerar alguns parâmetros capazes de descrever ou até definir o que
venha a ser um “clássico”.
O escritor Ítalo Calvino (1991) realizou essa tarefa e apontou indícios que podem facilitar
na escolha do que venha a ser um clássico. Segundo ele, um “clássico” atenderia a todos ou
à maioria dos seguintes requisitos:
Como síntese de suas ideias, Calvino imortalizou seu pensamento ao afirmar que “um
clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.
A partir dos parâmetros apresentados, no campo das Ciências Sociais, podemos dizer que
três são os autores constantemente apontados como clássicos: Karl Marx (1818-1883), Max
Weber (1864-1920), e Émile Durkheim (1858-1917). Todos europeus, do sexo masculino, os
dois primeiros alemães e o último, um francês. Os três são contemporâneos entre si, sendo
Marx o pioneiro dos clássicos.
As principais ideias de cada um deles serão trabalhadas a seguir e você terá oportunidade
de refletir sobre elas, pensar suas possíveis aplicações ainda hoje, mas, pelo menos no
campo das Ciências Sociais, você não poderá fugir do diálogo com elas.
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CAPÍTULO 2 • Teorias e teóricos sociais clássicos
As reflexões e conceitos construídos por eles perduram de tal forma que os estudiosos
contemporâneos constantemente com eles dialogam. Eis, então, a importância de resgatar
o pensamento de cada um desses clássicos para adentrarmos o universo do estudo da
sociedade.
Karl Marx
Em seus apenas 64 anos de vida, Karl Marx (1818-1883) desenvolveu uma obra densa. Baseada
em conteúdos econômicos, históricos, jurídicos e filosóficos, ele foi capaz de analisar com
maestria e precisão elementos da recém-surgida sociedade do capital. A reunião dessa base
teórica com uma vasta pesquisa empírica sobre o funcionamento da economia de sua época
e um vigoroso engajamento político na causa socialista, criou uma mistura única, da qual
resultaram enormes mudanças na geopolítica mundial do século XX.
Materialismo histórico
No tempo de Marx, era comum a visão da história humana como uma longa sucessão de sociedades
e culturas, cada vez mais desenvolvidas. Essa perspectiva era chamada de evolucionismo social.
Essa visão tem como um dos principais defensores o filósofo alemão Georg Hegel (1770-
1831), que é também uma das grandes influências do pensamento de Marx. Nos seus
estudos, a partir de um exame cuidadoso da história, Hegel procura encontrar a razão
que guia os acontecimentos históricos.
28
Teorias e teóricos sociais clássicos • CAPÍTULO 2
A partir daí, Hegel observa que o desenvolvimento da história seguiria um padrão dialético
e racional, em que ideias opostas (tese e antítese) dariam origem a uma nova perspectiva
(síntese), a qual reuniria elementos dos pontos de vista anteriormente conflitantes.
Seria por meio desses constantes enfrentamentos que a humanidade teria alcançado
padrões cada vez mais elevados de consciência acerca da sua própria liberdade. Assim,
para Hegel, o objetivo último da história, ou seja, o fio guia da evolução social, seria a
realização plena da liberdade humana, cujo ápice seria precisamente a sociedade moderna,
organizada em torno do moderno Estado burocrático, tão bem descrito por Max Weber,
como se verá mais adiante.
Essa visão dialética e finalística da história foi seguida por Marx, porém com uma
importante modificação. Ao invés de considerar que o motor da história seria o conflito
de ideias, passou a entender que o motor da história seria o enfrentamento entre
forças produtivas, ou seja, entre as forças materiais de uma sociedade, principalmente
as de natureza econômica. Daí porque a sua abordagem do problema é denominada
materialismo histórico.
Dessa maneira, por exemplo, a passagem de uma sociedade feudal para uma sociedade
capitalista moderna não decorreria de inovações no campo das ideias ou da cultura, mas
de mudanças na economia da época. No feudalismo, o principal meio de produção era
a terra, controlada pelos nobres. Já com o crescimento das cidades, o desenvolvimento
do comércio e das atividades financeiras, bem como a aparição de novas técnicas de
produção, a elite dessas cidades, a burguesia, passou a figurar como protagonista das
relações econômicas. Para Marx, mais do que as ideias iluministas, teriam sido essas
modificações nas circunstâncias materiais ou econômicas da sociedade, e os conflitos
que decorrem dessas mudanças, que teriam conduzido à rebelião da burguesia contra a
nobreza, e ao nascimento da modernidade.
É muito importante perceber que, da mesma forma que Hegel, para Marx, o mundo possui
uma racionalidade em si, e, por consequência, a sucessão de etapas históricas segue uma
sucessão necessária, até a sua conclusão última, a sua apoteose, ou o seu granfinale.
Para Marx, a realização dessa última etapa histórica aconteceria com o surgimento do
modo de produção comunista e, por consequência, da sociedade comunista, na qual não
haveria mais a luta de classes, pois os meios de produção seriam de propriedade comum,
e todos estariam livres de qualquer opressão.
Luta de classes
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CAPÍTULO 2 • Teorias e teóricos sociais clássicos
história da luta de classes” (MARX, 1999). Neste segmento, examinaremos, de forma mais
detida, essa que é uma das ideias mais marcantes do pensamento de Marx.
Para esse autor, desde os primórdios da história, desde o primeiro momento em que surge
a propriedade privada, a luta de classes está no centro do processo de desenvolvimento
social. Na antiguidade, essa luta de classes seria entre os escravos e seus mestres; no
feudalismo, entre nobres e camponeses, e no capitalismo, entre burguesia e proletariado.
Mas qual seria a razão da luta de classes? O motivo dessa disputa seriam as contradições
inerentes a cada modo de produção, principalmente os embates trazidos pela divisão da
sociedade entre proprietários e não proprietários. Dessa maneira, seriam essas contradições
a causa última da substituição de um modo de produção por outro, em que uma nova
classe social assume o controle dos meios de produção. Foi também o que aconteceu na
passagem do período feudal para o capitalista, em que a burguesia assumiu o papel que
antes era da aristocracia feudal.
Em suma, o valor de troca do bem, o seu preço, deveria, para Marx, ser proprocional à
quantidade de trabalho investido na sua produção. Assim, um veículo que custou, para
ser fabricado, um mês de trabalho de 10 operários, deveria ser mais barato do que outro
veículo que custou um mês de trabalho de 100 operários para ser completada a sua
construção.
Essa proposição assume uma relevância ainda maior, diante da visão de Marx acerca
da natureza humana. De acordo com esse autor, o que diferencia o ser humano dos
animais é principalmente a sua capapcidade de produzir, por meio de seu trabalho, para
além de suas necessidades imediatas, inclusive como expressão de sua subjetividade,
que não está inteiramente submetida pela escravidão dos instintos. Isso é importante
porque, em razão disso, para Marx, o trabalho tem um significado muito maior do que
o seu aspecto simplesmente econômico, pois é por meio trabalho que o ser humano
expressa e concretiza aquilo que lhe faz especificamente humano. A partir daí, é mais
30
Teorias e teóricos sociais clássicos • CAPÍTULO 2
fácil compreender o porquê de Marx ter escolhido o trabalho como principal parâmetro
para fixar o valor das mercadorias.
Nesse ponto, observa-se que, no sistema capitalista, o trabalhador contribui com o seu
trabalho, e o capitalista, com os meios de produção, para a fabricação das mercadorias,
destinada à venda e à obtenção do lucro. Ora, como o lucro depende do valor da mercadoria,
e o valor da mercadoria, para Marx, é determinado pela quantidade de trabalho que foi
investido na sua produção, é fácil perceber que o trabalhador contribui muito mais que
o capitalista para a formação desse valor.
Assim, seguindo essa lógica, deveria ficar com trabalhador a maior parte do lucro obtido
com a venda dessa mercadoria. Todavia, não é isso o que ocorre, pois, regra geral, a maior
parte desse dinheiro fica com o capitalista. Assim, este se apropria de parte do lucro que
deveria ser distribuído entre os trabalhadores. Marx chama de mais-valia esse valor que
é apropriado indevidamente pelo capitalista.
Observa-se que essa mais-valia é apropriada pelo capitalista, sob o argumento de que o
trabalhador e o capitalista não são sócios, na medida em que este último compra a força
de trabalho do primeiro, em troca de um salário ou outra forma de remuneração, tal qual
compra qualquer outra mercadoria necessária para o seu processo de produção. Por
consequência, como dono dos meios de produção e também da força de trabalho, nada
mais natural do que ele, o capitalista, ficar com a maior parte do lucro obtido com a venda
das mercadorias produzidas. Ou seja, o discurso de justificação da mais-valia é obtido
por meio da separação entre trabalhador e força de trabalho, com graves repercussões
sobre a percepção desse trabalhador sobre si mesmo, como se verá adiante.
Marx chama de burguesia a classe social que reúne esses capitalistas, e de proletariado, a
classe social que agrupa os trabalhadores.
31
CAPÍTULO 2 • Teorias e teóricos sociais clássicos
Cuidado
A partir da teoria marxista não devemos confundir mais-valia com lucro. O lucro é mais-valia menos os gastos para a
produção de determinado produto.
Apesar do seu enfoque em questões mais amplas, Marx também se dedicou a examinar as
consequências do capitalismo sobre a subjetividade humana, principalmente por meio
do processo de alienação.
Esclarecido esse ponto, para Marx, a alienação (termo que foi substituído por fetichismo
da mercadoria na fase madura do autor) é o mecanismo pelo qual se esquece as relações
sociais subjacentes à produção de qualquer bem, material ou imaterial, tanto carros
quanto doutrinas filosóficas. Ela oculta que essa coisa é resultado do trabalho humano. A
alienação faz com que a coisa assuma uma aparência de existência própria, autonôma em
relação a quem lhe deu existência. Aliás, essa independência chega ao ponto de permitir o
estabelecimento da percepção de que as coisas estariam em relação direta entre si, o que
oculta as relações pessoais que lhe são subjacentes. Por exemplo, quando você compra
um sanduíche na lanchonete, você não está trocando um sanduíche por dinheiro, você
está trocando o trabalho que você teve para juntar esse dinheiro pelo trabalho que o
vendedor teve para produzir esse sanduíche.
Essa alienação gera uma sensação de distanciamento e separação entre as pessoas e as coisas
que as cercam, inclusive aquelas que foram produto do seu próprio trabalho.
Esse processo de alienação é típico do capitalismo, pois, nesse modelo de produção, aquilo
que o trabalhador produz não pertence a ele, o que gera uma percepção de separação
entre o seu esforço, o seu trabalho, e o resultado desse trabalho. Aliás, há uma separação
que se dá inclusive entre o trabalhador e sua própria atividade, que é reduzida a uma
mercadoria a ser vendida ao empregador. Além disso, a execução desse trabalho não é
mais dirigida pela sua vontade, pela sua própria percepção de qual seria o melhor caminho
para realizar determinada tarefa, mas, sim, pelas ordens de seu chefe, o capitalista para
quem vendeu a sua força de trabalho. Assim, alienado do seu trabalho e do produto desse
trabalho, grande parte da existência do trabalhador é esvaziada de sentido, na medida
32
Teorias e teóricos sociais clássicos • CAPÍTULO 2
Sugestão de estudo
O filme Tempos modernos (1936), estrelado por Charles Chaplin, ilustra bem a realidade social sobre a qual
escreveram Marx e Weber. Ele conta a história de um vagabundo que busca sem sucesso se adaptar às exigências
de uma moderna sociedade industrial, em condições de vida e trabalho deploráveis, e num contexto em que as
máquinas assumem um papel cada vez mais central na vida de todos.
Sintetizando
Materialismo histórico: expressão que designa o corpo central da concepção materialista da história. Engels, em
1892, na “Introdução” da obra Do socialismo utópico ao socialismo científico no ajuda a compreender a proposta
marxista quando diz:
designa uma visão do desenrolar da história que procura a causa final e a grande
força motriz de todos os acontecimentos históricos importantes no desenvolvimento
econômico da sociedade, nas transformações dos modos de produção e de troca, na
consequente divisão da sociedade em classes distintas e na lutra entre essas classes.
(Dicionário do Pensamento Marxista, p. 260)
Luta de classes: expressa a existência de contradições numa estrutura classista, o antagonismo de interesses que
caracteriza necessariamente uma relação entre classes, devido ao caráter dialético da realidade. Relaciona-se
diretamente à mudança social, à superação das contradições existentes. Para Marx, é por meio da luta de classes que
as principais transformações estruturais seriam impulsionadas, por isso ela é o “motor da história”.
Trabalho: atividade humana básica responsável pela produção e reprodução da vida, e que constitui a história dos
homens (e mulheres). É sua atividade vital consciente que o distingue dos animais.
33
CAPÍTULO 2 • Teorias e teóricos sociais clássicos
Alienação: expressa a ideia de tornar-se estranho a si mesmo, não reconhecer-se em suas obras, desprender-se,
distanciar-se, perder o controle. O fundamento da alienação é o trabalho: o estranhamento entre o trabalhador e sua
produção tem como resultado, segundo Marx, o trabalho alienado. Dito de outro modo: ao vender a minha força de
trabalho, meu trabalho passa a ser estranho a mim; não me reconheço no meu próprio trabalho, nem vejo qualquer
finalidade outra que não seja minha sobrevivência.
Fetichismo da mercadoria: visão “fantástica” ou “enfeitiçada” da mercadoria, como se a troca fosse uma relação
entre coisas e não uma relação social dos homens e mulheres entre si. Não se enxerga, pois, a mercadoria como
materialização do trabalho humano.
Émile Durkheim
Émile Durkheim é considerado um dos pais da Sociologia, pois uma das suas maiores
preocupações teóricas foi estabelecer um método científico próprio para a Sociologia, o qual foi
proposto na sua obra As regras do método sociológico. Contudo, a principal obra de Durkheim
foi A divisão do trabalho social, na qual ele analisa as transformações e características de
uma sociedade primitiva, pré-industrial, de tipo coletivo, para uma sociedade industrial, de
tipo individual e mais complexa.
Mas o que seria esse tal “fato social”? Nas próprias palavras de Durkheim (2003, p. 40):
34
Teorias e teóricos sociais clássicos • CAPÍTULO 2
Da definição acima, podemos retirar as seguintes ideias-chave acerca do fato social: a exterioridade
(algo que se manifesta fora do íntimo do indivíduo), a coercitividade (algo que se obriga, isto
é, impõe-se à ação e vontade individual) e a generalidade (aplica-se a todos os indivíduos na
mesma situação).
O fato social, para Durkheim, está na sociedade, ele é vivido e criado pelos indivíduos, mas ele
se distingue deles, porque é algo exterior, genérico e coercitivo.
Imagine, por exemplo, um bolo de chocolate. Ele é feito de farinha, fermento, leite, manteiga
e chocolate. Cada um desses ingredientes, separadamente, tem características distintas entre
eles, mas, juntos, eles formam outra coisa, o bolo de chocolate. Não podemos dizer que o
bolo de chocolate tem gosto de leite, farinha, ou manteiga apenas. Juntos, esses ingredientes
formam algo diferente, de características, odor e texturas próprios.
Assim seria a ideia do fato social, um todo com textura, cor e sabor diferentes dos
ingredientes que o compõe e que o significam: os indivíduos. Enquanto o fato social
seria objeto de estudo da Sociologia, segundo Durkheim, os indivíduos, considerados
separadamente em seu íntimo, seriam objetos da Psicologia.
A ideia de família, por exemplo, é um fato social. Ela é exterior a você, uma vez que,
independentemente de sua vontade ou não, você nasce em uma família. Ela é coercitiva,
porque novamente, querendo ou não, você tem papéis, direitos e obrigações dentro dessa
família. Finalmente, ela é geral, ou seja, ela é instrumento de comparação com outros
indivíduos que estão em mesma situação, de modo que você pode conversar com seus
colegas dizendo que minha família é tradicional, liberal etc.
Um fato social por excelência é o idioma que você fala, o português. Você pode odiar
todas as regras de gramática, mas até para odiá-lo, você vai estruturar seu desgosto em
“português”, não é? Ele é coercitivo, ele é exterior a você e ele é também geral, para você
se comunicar aqui no Brasil pelo menos, será em português.
35
CAPÍTULO 2 • Teorias e teóricos sociais clássicos
Para refletir
O trabalho, o sistema legal, o sistema educacional, todos são fatos sociais. Que outros exemplos você poderia
imaginar de fatos sociais?
Você pode se perguntar: mas eu posso reagir contra esses fatos sociais, afinal, nunca concordei
com as posturas da minha família? Sim, com certeza você pode. Contudo, lembre-se da
coercitividade do fato social. “Não existe almoço grátis”. Desrespeite o fato social e responda
às consequências sociais de seu ato. Alguns poderão julgá-lo negativamente por agir contra
a sua família, por exemplo. Essa é a sanção social.
A ideia de fato social foi muito importante para consolidar a Sociologia como um ramo
autônomo do conhecimento, na virada do século XIX para o século XX, diferenciando-a da
História, que dependia bastante de casos únicos, e povos particulares; da Filosofia, que se
dedicava a questões abstratas, não empíricas; e da Psicologia, que estudava as ações psíquicas
do indivíduo considerado como uma unidade.
Outra ideia fundamental, que segundo Durkheim, serve para explicar o funcionamento e a
coesão social é a análise da divisão do trabalho na sociedade. Em sua obra de mesmo nome,
ele concluiu que seria ela a fonte principal da solidariedade social, ou seja, uma condição
da existência da vida em comum.
A ideia de divisão do trabalho realmente representa uma boa observação das sociedades,
as quais se constituem com o esforço dos papéis diferenciados pelos seus indivíduos.
Imagine, por exemplo, uma colmeia ou um formigueiro, que são criados pelos esforços
individuais de cada inseto.
Nas sociedades modernas, por exemplo, temos acesso a uma infinidade de bens de
consumo porque há várias pessoas que desempenham atividades diferentes. Sua mesa
de estudos, por exemplo, é o resultado de inúmeros esforços individuais – o cafezinho,
a caneta, o computador, seu celular, seus óculos, seu caderno – tudo isso resultado da
divisão social do trabalho.
36
Teorias e teóricos sociais clássicos • CAPÍTULO 2
Para refletir
Durkheim também se lembrou de que a divisão do trabalho social está em nosso círculo de amigos. Você tem amigos
para conversar sobre o campeonato de futebol, sobre seus estudos de Sociologia, sobre culinária, sobre moda, sobre
carros, enfim, cada um deles exerce um papel diferente na sua vida e todos eles participam da construção do seu eu.
Veja só como Durkheim falou da amizade utilizando a divisão do trabalho social:
Por mais ricamente dotados que sejamos, sempre nos falta alguma coisa, e
os melhores entre nós têm o sentimento de sua insuficiência. É por isso que
procuramos, em nossos amigos, as qualidades que nos faltam, porque unindo-nos
a eles participamos de certa forma da sua natureza e nos sentimos, então menos
incompletos. Formam-se, assim, pequenas associações de amigos em que cada
um tem seu papel conforme o seu caráter, em que há um verdadeiro intercâmbio
de serviços. Um protege, o outro consola; este aconselha, aquele executa, e é essa
partilha de funções, ou, para empregarmos a expressão consagrada, essa divisão do
trabalho que determina essas relações de amizade. (...) Nesse caso, de fato, os serviços
econômicos que ela pode prestar são pouca coisa em comparação com o efeito
moral que ela produz, e sua verdadeira função é criar entre duas ou várias pessoas
um sentimento de solidariedade. Como quer que esse resultado seja obtido, é ela
que suscita essas sociedades de amigos, e ela as marca com seu cunho. (DURKHEIM,
2013, p. 21).
37
CAPÍTULO 2 • Teorias e teóricos sociais clássicos
Sugestão de estudo
Uma dica para refletir sobre esse sentimento de anomia em uma grande metrópole é o filme Encontros e
desencontros. Bob (Bill Murray) encontra Charlotte (Scarlett Johansson), ambos estadunidenses, em um hotel de
luxo de Tóquio, Japão, o Hyatt Regency, onde dividem os sentimentos de encantamento, estranhamento, solidão,
amizade e companheirismo, decorrentes daquela experiência de duas semanas na agitada capital japonesa.
Representações sociais
Depois dos conceitos de fato social e da divisão do trabalho social, já mais maduro em sua
carreira, Émile Durkheim dedicou-se a uma questão bem interessante: Como será que o
indivíduo apreende o significado dos objetos? Assim, depois de muitos estudos, os quais
foram consolidados no livro As formas elementares da vida religiosa, Durkheim desenvolveu
a ideia das representações sociais, conceito a ser bastante trabalhado pelos cientistas sociais
contemporâneos.
38
Teorias e teóricos sociais clássicos • CAPÍTULO 2
Por exemplo, quando falamos na ideia de uma caneta, tenho certeza de que logo vem à sua
mente aquele objeto geralmente que cabe em uma mão, utilizado para escrever. O objeto
caneta já está associado à sua função escrever, que foi construída pelo grupo social. E você
nem tem tanto trabalho em imaginar que caneta é para escrever. Parece óbvio, não é? Mas
é exatamente essa ideia de obviedade que dá sentido à força dessas representações sociais.
Você nem sequer cogita, em uma pergunta rápida, que uma caneta poderia ser usada para
prender os cabelos, ou para furar o saquinho de salgadinhos.
A ideia das representações sociais, segundo Durkheim, não abrange apenas os objetos,
mas, também, ideias abstratas como tempo e espaço, os quais seriam também resultados
de construção social. Como assim? Há várias culturas que percebem o tempo de forma
diferente, uns pelo estilo “flecha do tempo”, havendo uma reta unidirecional apontada para
o futuro, para outros, como na Índia, por exemplo, o tempo é contado de maneira cíclica,
no qual ideias de passado, presente e futuro são estranhas a esse tipo de visão de mundo.
Sintetizando
Vimos até aqui um conceito central do pensamento Durkheimiano: os fatos sociais que representam
maneiras de agir, pensar e de sentir que apresentam a notável propriedade de existir fora das consciências
individuais. Esses tipos de comportamento ou de pensamento são não só exteriores ao indivíduo, como
dotados de um poder imperativo e coercitivo em virtude do que se lhe impõem, quer queira quer não.
(DURKHEIM, 2003, p. 32)
Max Weber
Figura 10. Max Weber.
Apesar de não se intitular como sociólogo, Max Weber (1864-1920) tratou de temas
bastante caros à Sociologia, como poder, Estado, burocracia, relação entre indivíduo
e sociedade, e religião, todos tendo como cenário de fundo, de certa forma, as grandes
transformações sociais promovidas pelo “espírito” do capitalismo. Além disso, para
39
CAPÍTULO 2 • Teorias e teóricos sociais clássicos
Weber parte da ação individual e do sentido que essa ação assume para o sujeito, para,
passo a passo, construir o seu entendimento sobre estruturas sociais mais amplas, como
a religião, o Estado e o sistema econômico. Assim, essas ações e seus sentidos seriam
como pequenos blocos de montar, a partir dos quais seria construída a realidade social.
Ou seja, Weber segue o caminho inverso de Marx e Durkheim, pois esses autores partem
das estruturas sociais mais amplas, para tentar explicar a conduta dos indivíduos.
É por isso, inclusive, que o pensamento de Weber não apresenta o mesmo grau de
sistematicidade dos demais autores clássicos. Weber não tinha a pretensão de formular
leis sociais universais, como Marx, ou de lançar os fundamentos de uma nova área do
conhecimento, como Durkheim.
Saiba mais
Apesar de a presença de Georg Simmel entre os clássicos da Sociologia ser questionada, sua obra atende a todos os
parâmetros da inesgotabilidade e dos efeitos produzidos por um “clássico”, com reflexões referentes à objetivação
das relações pessoais, estudos das diferenças entre cultura objetiva e subjetiva, observações sobre a socialização
nos grandes centros urbanos. Além disso, a leveza e a forma com a qual Simmel apresenta suas ideias faz de seus
estudos uma atividade incrivelmente prazerosa, conseguindo unir forma e conteúdo primorosamente. Ler seus
textos é sentir-se a todo tempo sob os efeitos psicológicos da “intensificação dos estímulos nervosos provocados
pelos aspectos exteriores e interiores da grande metrópole. Recomendamos o texto A metrópole e a vida mental.
Disponível em: <http://www.marcoaureliosc.com.br/03velho_completo.pdf>. Acesso em: 10/8/2018.
Esse cuidado com os pequenos atos que compõem a realidade social está presente em uma
das suas mais importantes ferramentas metodológicas: o tipo ideal. O “tipo ideal” é uma
técnica por meio da qual, para estudar um fenômeno, um fato ou uma categoria, por exemplo,
o pesquisador reúne um conjunto de características de seu objeto observado. Em seguida, ele
leva ao extermo, ou seja, ele exagera essas características observadas em comum, buscando
criar um modelo, ou o que Weber chama de “tipo ideal”.
Esse “tipo ideal” não possui existência no mundo dos fatos, porque ele é resultado de
um truque do pesquisador para melhor entender a realidade. Assim, no mundo dos
fatos, nenhum dos fenômenos, fatos ou objetos do estudo se enquadrará inteiramente
40
Teorias e teóricos sociais clássicos • CAPÍTULO 2
nesse “tipo ideal”. Todos eles apresentam uma sobra, uma individualidade que não
se reduz ao “tipo ideal”.
Para Weber, o tipo ideal é uma ferramenta de descrição e explicação da realidade, e não
uma qualidade dela mesma. Isso é importante porque muitos dos conceitos que serão
apresentados a seguir, como o de dominação e o de racionalização, são tipos ideais,
que nunca são encontradas na forma pura no mundo da vida. Assim, nada impede, por
exemplo, que, em uma sociedade moderna, continuem a existir elementos das sociedades
pré-modernas, sem que, com isso, o termo sociedade moderna perca a sua utilidade.
Muito próxima à ideia de poder é aquela de dominação, que, para Weber (2015, p. 33),
seria a “probabilidade de encontrar obediência a uma ordem”. Assim, dominação é o
poder exercido com o consentimento daquele que é por ele submetido. É o caso, por
exemplo, de um oficial do Exército que, no exercício de suas funções, dá um comando a
um soldado e tem a expectativa de que a ordem seja atendida.
A partir dessa ideia de poder e de dominação, Weber desenvolve três tipos ideiais referentes
às subespécies de dominação: a dominação tradicional, a carismática e a racional-legal.
Por fim, a dominação racional-legal é “na crença de legitimidade das ordens estatuídas
e do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados para
41
CAPÍTULO 2 • Teorias e teóricos sociais clássicos
exercer a dominação” ( WEBER, 2015, p. 141). É a que está presente na autoridade legal,
um governo democraticamente eleito, por exemplo.
Lembre-se de que essas modalidades de dominação legítima são tipos ideais, ou seja,
são caricaturas extremadas da grande variedade de formas de dominação que estão
presentes na realidade social. Dessa forma, nada impede que, por exemplo, no tipo de
dominação que caracteriza a relação de um líder religioso com os seus fiéis estejam
presentes elementos tanto da dominação tradicional quanto da dominação carismática.
Essa ideia de dominação, nas suas diversas modalidades, ganha força quando ela tem
à sua disposição um quadro administrativo, um conjunto organizado de pessoas, cuja
tarefa é impor as normas do sujeito dominador ou grupo dominante. A existência desse
quadro administrativo, que não é necessariamente estatal, aumenta a chance de uma
ação de repressão contra aquele que desafiar o poder dominante.
Weber explorou esse amplo processo a partir de diversas vertentes. Provalvemente, a mais
famosa delas é aquela trazida na sua obra mais famosa: A ética protestante e o espírito
do capitalismo.
Nesse livro, Weber diverge de Marx ao argumentar que o capitalismo moderno não
surgiu em razão apenas de mudanças nos meios de produção, embora tenham sido elas
também muito importantes. Decorreu também de transformações no âmbito cultural,
principalmente por aquelas trazidas por algumas das correntes religiosas da Reforma
Protestante.
Entre elas, Weber destaca os calvinistas, que seriam um dos pioneiros, nos tempos
modernos, do que ele chama de ética ascética intramundana: um estilo de vida que era, ao
mesmo tempo, rigidamente disciplinado, e voltado para atividades cotidianas, inclusive
de natureza profissional. Ademais, esses protestantes não viam o sucesso material, a
aquisição de riquezas, como algo pecaminoso, mas, sim, como um sinal de que aquele
42
Teorias e teóricos sociais clássicos • CAPÍTULO 2
indivíduo fora destinado por Deus para salvação, e, por consequência, beneficiado
com a bem-aventurança já nesta vida. Em suma, esse estilo de vida valorizava de forma
positiva o trabalho duro e disciplinado, bem como o acúmulo de riqueza, como dever
vocacional, e não por simples ganância. Dito de outra forma, esses calvinistas traziam a
ética do monje e do soldado para atividades do dia a dia, como o comércio e produção
das mais distintas mercadorias.
Para Weber, esses valores, que tinham originalmente uma fundamentação religiosa
muito específica, foram ganhando cada vez mais aceitação na sociedade mais ampla,
e, paralelamente, foram se desligando dessas raízes religiosas. Por fim, a disciplina e a
busca do lucro tornaram-se valores em si mesmos, e não mais simples instrumentos na
busca pela salvação.
É importante notar que, para Weber, esses e outros processos sociais que aconteciam na
mesma época não eram causados por um fenômeno de base, como ocorre no pensamento
de Marx, em que a transformação dos meios de produção seria a causa primeira de todas as
demais alterações sociais. Já para Weber, não existe essa causa primeira: o surgimento do
capitalismo racional, da burocracia moderna e de tantos outros fenômenos racionalizantes
correlacionam-se entre si, influenciam-se mutuamente, mas não são seriam causados
uns pelos outros.
Dito isso, Weber possui uma visão pessimista acerca da modernidade, que se aproxima
muito daquela de Marx. Ambos os autores consideram que a modernidade aliena
e despersonaliza. Todavia, ao menos, Marx oferece uma luz no fim do túnel, pois
ele considera inevitável a superação da atual etapa histórica, de modo a alcançar
43
CAPÍTULO 2 • Teorias e teóricos sociais clássicos
Sugestão de estudo
Em uma cidade futurista, caracterizada por uma divisão marcante entre trabalhadores e uma elite burocratica,
os trabalhadores levam uma vida sem sentido e dominada por grandes máquinas, sem perspectiva de, por si só,
alterarem o seu destino. É nesse contexto que o filho do líder administrativo da cidade, o jovem princípe da elite
dominante, se apaixona por uma profeta proletária, que prevê a chegada de um salvador para pôr fim a essa diferença
de classes.
Esse pessimismo de Weber está bem resumido na seguinte passagem do seu mais famoso
livro, Ética protestante e o espírito do capitalismo, em que ele compara a racionalização
da vida trazida pela modernidade a uma jaula de ferro (chamada na versão a seguir de
crosta de ferro):
Ninguém sabe ainda quem no futuro vai viver sob essa crosta e, se ao cabo
desse desenvolvimento monstro hão de surgir profetas inteiramente novos,
ou um vigoroso renascer de velhas idéias e antigos ideais, ou – se nem
uma coisa nem outra – o que vai restar não será uma petrificação chinesa
[ou melhor: mecanizada], arrematada com uma espécie convulsiva de
auto-suficiência. Então, para os “últimos homens” desse desenvolvimento
cultural, bem poderiam tornar-se verdade as palavras: “Especialistas sem
espírito, gozadores sem coração: esse Nada imagina ter chegado a um grau
de humanidade nunca antes alcançado”.
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Teorias e teóricos sociais clássicos • CAPÍTULO 2
Sintetizando
» Que um clássico se refere àqueles conceitos que ainda continuam sendo discutidos e construídos.
» Os três autores da Sociologia clássica são: Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber.
» Em meados do século XIX, Karl Marx (1818-1883) concentrava seus esforços em compreender “os homens
de carne e osso”, movidos por suas necessidades materiais e inseridos no rio da História. Embora sua obra
não possa ser considerada estritamente sociológica, ela lançou as bases para explicar a vida social a partir do
modo como os homens produzem socialmente sua existência por meio do trabalho, e de seu papel enquanto
agentes transformadores da sociedade. Isto trouxe de volta ao centro do debate político e intelectual o tema da
desigualdade social, vinculando-o a processos histórico-sociais. (QUINTANEIRO et al., 2002).
45
INDIVÍDUO E SOCIEDADE
CAPÍTULO
3
Introdução
Em diversos momentos vemos notícias de pessoas que quando estão em grupo agem de
maneira igual. Isso ocorre em momentos de diversão como em jogos de futebol ou até
mesmo em protestos políticos. A pergunta que sempre fica no fundo é: Por que essas
pessoas agiram de maneira coletiva e em alguns momentos até de maneira violenta em
grupo? Essa pergunta nos leva a outro grande questionamento da humanidade que a
Sociologia tenta responder: O que faz de nós humanos seres racionais? O que nos diferencia
dos outros animais? Os sociólogos tentaram responder a essas perguntas considerando
a capacidade do homem de viver em sociedade e produzir cultura. Essa forma como o
indivíduo se relaciona com a sociedade em que vive e que o “torna humano racional” é
um dos objetos de estudo da sociologia.
Como vimos no capítulo anterior, autores como Marx, Weber e Durkheim tentaram entender
a influência que a sociedade exerce sobre o indivíduo e que o indivíduo exerce sobre a
sociedade. Aprofundaremos neste capítulo sobre como os conceitos dos autores clássicos
podem ser vistos na nossa realidade e vamos ver como a Sociologia contemporânea
avançou na análise dessa questão.
Objetivos
» Analisar a partir dos autores clássicos, vistos no capítulo anterior, como é essa relação
na nossa sociedade.
46
Indivíduo e sociedade • CAPÍTULO 3
Sociedade x indivíduos
Como vimos no capítulo anterior, para Durkheim, as pessoas agem de acordo com
o processo de socialização que viveram, ou seja, sua forma de criação e a sociedade
onde vivem estabelecem as normas e os valores que os indivíduos devem seguir de
modo que essa sociedade permaneça em harmonia e integrada. Para Durkheim, essa
influência externa da sociedade modela as pessoas.
A apresentação dos fatos sociais como maneiras de agir, pensar e sentir, externas
ao indivíduo é investido de um poder de coerção. Conseguimos ver isso claramente
quando analisamos as aplicações de leis. Um exemplo da nossa realidade: Todos os
motoristas (generalidade) foram proibidos por uma lei (externalidade) de dirigirem
com qualquer nível de consumo de álcool. Caso façam isso eles são penalizados
(coercibilidade).
Observe a lei
A Lei no 11.705, de 19 de junho de 2008, alterou o Código de Trânsito Brasileiro passando a colocar o ato de dirigir
sob a influência de qualquer quantidade de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine
dependência uma infração gravíssima, além de punir também quem se recusar a fazer o teste.
47
CAPÍTULO 3 • Indivíduo e sociedade
Ao ver a manchete, uma curiosidade que ressalta no texto é que muitos motoristas se
recusam a soprar o bafômetro, ficando claro que o medo de ir preso é algo derivado dos
efeitos da coerção e externalidade das leis.
Além disso, vimos no último capítulo que, para Durkheim, a sociedade funciona a partir
de uma lógica de solidariedade e de coesão que se dá através do estabelecimento dessas
regras. Em momentos que temos ausência de coesão por ausência de regras e normas
sociais comuns podemos ter o que Durkheim chama de anomia. A anomia, para o autor,
levaria o corpo social a entrar em colapso e gerar nos indivíduos sentimentos de não
pertencimento.
Durkheim entende que momentos anômicos podem ser vistos na nossa sociedade,
muitas vezes, por atos como o suicídio. O suicídio é percebido em diversas sociedades
e em diversos momentos históricos.
48
Indivíduo e sociedade • CAPÍTULO 3
Para refletir
A nossa sociedade está preparada para lidar com esse tipo de problema social? Você conhece alguma instituição
governamental que oferece atendimento psicológico para a comunidade?
Sugestão de estudo
Para entender como os fatos sociais estão até mesmo nas nossas relações pessoais, um bom filme para ver é Amor
sem escalas. Além de abordar um contexto de crise econômica nos Estados Unidos que gera um grande número de
desempregos, o filme mostra o reflexo disso na vida dos indivíduos, mas com o formato leve de comédia romântica.
49
CAPÍTULO 3 • Indivíduo e sociedade
Apesar de o nome do filme não chamar tanta atenção (como bem destacado pela crítica do site “Adoro Cinema”),
ele é interessante para analisar as relações indivíduo x sociedade de Durkheim. O filme consegue mostrar como a
sociedade moderna consegue afetar coercitivamente e de maneira externa e geral a vida das pessoas.
Amor sem escalas, péssimo título nacional, (...): a preocupação com o roteiro, em
desenvolver o tema analisando-o com o mundo que o cerca. Aqui Reitman quer
apresentar um pouco do mundo moderno, em especial como ele afeta as relações
humanas. Tudo através do ponto de vista de Ryan Bingham, interpretado com
desenvoltura por George Clooney. (ADORO CINEMA, 2010)
Ainda como vimos no capítulo anterior, para Weber o indivíduo parte da ação social. A
sociedade existe, mas não de forma externa e superior às pessoas, mas como um conjunto
de ações dos próprios indivíduos. A sociedade, para o autor, é composta pelas ações dos
indivíduos através das relações, da comunicação com os outros etc. O termo outros pode ser
tanto um único indivíduo, vários indivíduos e até mesmo desconhecidos. Para o Weber, as
normas, os costumes e as regras sociais estão internalizados nos indivíduos, que escolhem
condutas e comportamentos, dependendo de cada situação.
A seguir, colocamos uma manchete que pode nos ajudar a pensar mais sobre a relação
indivíduo x sociedade para Weber.
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Indivíduo e sociedade • CAPÍTULO 3
Figura 15. Manchete reportagem sobre advogado que recolheu lixo em praia.
Afroz Shah, o advogado que a reportagem cita, começou sozinho a limpar uma praia na
Índia. Após oito semanas de trabalho, dois voluntários se uniram a Afroz e, a partir de
então, conseguiram juntar mais de mil pessoas e retirar cerca de 5,3 milhões de quilos
de lixo. Após esse feito, Afroz ganhou o prêmio da ONU em 2016 de Campeão da Terra e
teve seu projeto classificado como a maior de limpeza de praias.
Saiba mais
Para saber mais do projeto de Afroz entre no site da ONU. Disponível em: <https://www.unenvironment.org/pt-br/
node/21784>.
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CAPÍTULO 3 • Indivíduo e sociedade
Provocação
Qual a relação entre a sociedade e os indivíduos, para Weber? No caso da limpeza da praia, os indivíduos foram
completamente influenciados pela sociedade ou a sociedade foi influenciada pelos indivíduos?
Sugestão de estudo
A influência exercida pelo indivíduo na sociedade pode ser vista de maneira tocante no filme Hotel Ruanda. Esse
filme é de 2004 e se você não viu ainda, é um bom filme para pensar sobre, e se viu, reveja pensando no papel do
gerente Paul naquela comunidade e no conceito de ação social de Weber. Além de tudo, o filme é baseado em fatos
reais, o que nos leva a uma reflexão ainda maior.
O filme se passa em 1994 e trata de um conflito político e social em Ruanda. Aqui vai a sinopse para entender um
pouco do contexto do conflito que tem muitas mortes. Esse filme não é recomendado para crianças.
O conflito levou à morte de quase um milhão de pessoas em apenas cem dias. Sem
apoio dos demais países, os ruandenses tiveram que buscar saídas em seu próprio
cotidiano para sobreviver. Uma delas foi oferecida por Paul Rusesabagina (Don
Cheadle), que era gerente do hotel Milles Collines, localizado na capital do país.
Contando apenas com sua coragem, Paul abrigou no hotel mais de 1.200 pessoas
durante o conflito. (ADORO CINEMA, 2014)
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Indivíduo e sociedade • CAPÍTULO 3
Como vimos no capítulo passado, Marx entendeu que os indivíduos agiam de acordo com
o contexto das situações sociais a partir das relações de trabalho e, além disso: para ele, os
indivíduos são condicionados por situações históricas. Ou seja, não é somente a sociedade
atual em que vivemos que nos influencia, para Marx, essa sociedade também é influenciada
por sua história, por sua forma de produzir bens e sua economia.
A seguir, temos a manchete de um estudo que pode nos ajudar a pensar mais sobre a
relação classe social e condicionantes históricos da sociedade brasileira.
53
CAPÍTULO 3 • Indivíduo e sociedade
O que a pesquisa conseguiu mostrar é que fatores como ancestralidade pode interferir,
de algum modo, na chance de conseguir maior salário. Quando falamos de chance não
significa que isso vai ser completamente determinante e que a pessoa não poderá receber
mais ou que ela vai receber necessariamente menos, mas, sim, que quando se olha para
pessoas com determinados sobrenomes, elas tiveram uma grande distância de outras
pessoas com outros tipos de origem e isso, de algum modo, pode revelar a forma como
Marx via a influência de fatores sociais e históricos na vida das pessoas.
Segundo a pesquisa, além do fator do nome ser uma interessante forma de analisar,
podem existir outras causalidades também para as desigualdades encontradas.
54
Indivíduo e sociedade • CAPÍTULO 3
Saiba mais
Para saber mais sobre a pesquisa, ela está disponível no repositório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=28476>.
Sugestão de estudo
Para melhor entender como as formas de trabalho influenciam nossa vida ao longo da história, um bom filme para
ver (com a família inclusive) é O menino e o mundo. Em um primeiro momento, o filme parece ser infantil e feito
com poucos recursos pelo seu desenho simples e ausência de falas, mas não se engane: Tudo isso foi intencional e o
filme surpreende e ganhou até mesmo o “Oscar da animação”, o prêmio Annie Awards.
A crítica do site “Adoro Cinema” resume bem a simplicidade com que o filme explica e retrata diversas dessas
influências que estudamos.
A história, sabiamente contada sem palavra alguma (algo que pode facilitar a
exportação do filme), mostra uma criança pobre cujo pai abandona a família para
ir trabalhar em algum lugar distante. O cenário familiar é rural, mas o mundo para
onde partem os adultos é o da cidade grande. Estes ambientes – personagens centrais
à trama – ganham uma caracterização expressiva e inteligente: enquanto o campo
é simbolizado por pequenos traços coloridos (referentes à grama, à felicidade), a
cidade é uma mistura cinzenta de pesadelo futurista (com favelas em formas de
cones) e pastiche do capitalismo (outdoors, televisores por todos os lados). O trem
que atravessa a fazenda nada mais é do que um monstro gigantesco, como uma
serpente, que engole os adultos e depois desaparece no espaço branco, sem devolvê-
los mais.’ (ADORO CINEMA, 2016)
55
CAPÍTULO 3 • Indivíduo e sociedade
Após estudar os autores clássicos da Sociologia através de exemplos, vamos ver como dois
importnates autores contemporâneos conseguiram contribuir para o avanço do estudo
dessa complexa relação entre indivíduo e sociedade.
Para avançar nos estudos sobre indivíduo e sociedade, Norbet Elias tentou entender
como a diversidade de pessoas e indivíduos se ralaciona com o pequeno termo indivíduo.
Elias utilizou o termo sociedade dos indivíduos, indo, então, além dos autores clássicos
e juntando os termos, que antes eram tidos como antagônicos.
Saiba mais
Norbert Elias foi um sociólogo alemão judeu que também estudou Medicina, Filosofia e Psicologia. Elias nasceu em
uma Alemanha conflituosa nazista no ano de 1897 e teve que fugir em 1933 para a França e Inglaterra. Trabalhou
com Karl Mannheim e desenvolveu uma abordagem chamada sociologia figuracional, que examina o surgimento
das figurações sociais como consequências inesperadas da interação social. O trabalho mais conhecido de Elias é O
processo civilizador, feito em 1939, em que analisa os efeitos da formação do Estado sobre os costumes e a moral dos
indivíduos. (ELIAS,1994)
56
Indivíduo e sociedade • CAPÍTULO 3
O autor também destaca que existe todo um processo de civilização das pessoas nesse
processo de modelagem: “As pessoas mudam em relação umas às outras através de uma
relação mútua de moldagem e remodelagem. Crianças são exemplos de formas mais
maleáveis.” (ELIAS, 1994). E por serem mais “modeláveis”, as crianças passam justamente
por diversos processos educativos civilizatórios.
57
CAPÍTULO 3 • Indivíduo e sociedade
A forma de educar as pessoas tamb ém foi o foco de estudos de Elias, que analisou esse
processo na história da humanidade e o chamou de o processo civilizador. Para ele, houve
todo um processo na nossa sociedade de modelação civilizatória em que aprendemos
certos modos: os famosos bons modos e regras de etiqueta.
Provocação
Pare para relembrar momentos da infância. Todos nós aprendemos em algum momento como devemos nos vestir,
como devemos nos comportar em determinados lugares, como usar talheres para comer e não comer com as mãos.
Você se lembra de mais momentos que aprendemos regras e comportamentos?
Sugestão de estudo
Com Norbert Elias refletimos sobre certos costumes e regras que aprendemos. No filme O sorriso de Monalisa
podemos entender melhor como essas regras são passadas para determinados indivíduos e como eles conseguem
refletir e mudar certos preceitos. No filme, a professora Katharine Watson se mostra incomodada com certas regras.
O filme conta a história de uma professora de História da Arte que, educada na liberal
Universidade de Berkeley, na Califórnia, enfrenta uma escola feminina, tradicionalista
– Wellesley College, onde as melhores e mais brilhantes jovens mulheres dos Estados
Unidos recebem uma dispendiosa educação para se transformarem em cultas esposas
e responsáveis mães. No filme, a professora irá tentar abrir a mente de suas alunas
as solicitando ao “anticonservadorismo” para um pensamento libereral (ADORO
CINEMA, 2013).
58
Indivíduo e sociedade • CAPÍTULO 3
1. As estruturas são em boa medida mais internas do que externas às atividades dos
indivíduos.
2. A vida social possui uma natureza recursiva pela qual as estruturas sociais recriam-se
a si mesmas através dos próprios recursos que a constituem e por meio das próprias
regras de comportamento e ação que apresentam aos agentes.
59
CAPÍTULO 3 • Indivíduo e sociedade
Provocação
As pessoas que crescem em cidades pequenas geralmente escutam muito a frase: “Fulano é filho ou neto de tal
pessoa”. Em sociedades mais tradicionais, muitas vezes o nome e o parentesco podem dizer muito para aquela
relação que se estabelece. Você já ouviu esse tipo de frase? Conhece alguém que já ouviu?
Saiba mais
Anthony Giddens é um sociólogo inglês que nasceu em 1938. Ele é conhecido pela Teoria da Estruturação. Os
trabalhos mais recentes de Giddens analisam como a modernidade tem impacto na vida social e pessoal dos
indivíduos.
Provocação
Quais influências da modernidade você consegue perceber na sua vida e na vida das pessoas com quem você
convive?
60
Indivíduo e sociedade • CAPÍTULO 3
Sugestão de estudo
Um bom filme para entender como as estruturas sociais se entrelaçam com as mudanças dadas pela modernidade
e pelas diferenças de culturas é o filme Nome de família. Além de ser um filme que foge aos roteiros comuns, ele
consegue mostrar de maneira diferente os choques da tradição x modernidade e a busca de identidade.
Este filme, fugindo ao lugar comum, conta a história de um casal de indianos que
partem de Calcutá e vão morar em Nova York em busca de melhores condições
de vida. Trata do choque entre culturas extremamente diferentes, a aceitação e
resignação da mulher no casamento, seguindo os costumes e as tradições do seu
povo, a negação de suas origens e do seu próprio nome por parte do personagem
Gogol, filho mais velho do casal, do arrependimento, da descoberta brusca de valores
até então ignorados por ele, devido a um fato inesperado. A partir daí, uma mudança
radical e a procura constante de uma identidade própria. (ADORO CINEMA, 2014).
Tudo o que foi visto até aqui nos ajuda a entender um pouco do que a Sociologia conseguiu
avançar e debater sobre a questão sociedade x indivíduo. Quando Durkheim diz sobre os fatos
sociais, Weber sobre a ação social e Marx sobre os condicionantes históricos e sociais, eles
não estão respondendo completamente a essa complexa questão, tampouco nos deixando
sem respostas. Os autores clássicos conseguem, de algum modo, abrir outras possibilidades
de entendimento. Entender os clássicos e estudá-los nos ajuda a ter uma base, um ponto
de partida.
Os avanços dos autores contemporâneos Elias e Giddens sobre essa questão também não
conseguem esgotar a pergunta, mas novamente nos ajudam a repensar as influências
61
CAPÍTULO 3 • Indivíduo e sociedade
sociais e individuais a partir dos novos contextos como a modernidade. O que vimos
neste capítulo, portanto, é uma pincelada sobre importantes perspectivas e teorias para
nos ajudar a avançar no entendimento do objeto de estudo sociológico.
Provocação
Sintetizando
» Que Durkheim analisou a sociedade a partir dos fatos sociais e podemos ver como a coercibilidade, generalidade e
externalidade que ele falou se dão em exemplos como a aplicação de leis de trânsito.
» Que o indivíduo consegue também ter gerência no seu meio social, como no caso do advogado que limpou a praia.
» Que, por vezes, temos influências históricas na chance de alcançar maiores salários através da origem familiar.
» Que Elias avança na análise do indivíduo x sociedade e entende que as pessoas mudam em relação umas às outras
através de uma relação mútua de moldagem e remodelagem.
» Como Giddens avança também no sentido de entender a sociedade como estrutura e que a modernidade
influencia a vida dos indivíduos.
62
CAPÍTULO
CULTURA E SOCIEDADE 4
Introdução
Imaginamos que você já tenha utilizado, por diversas vezes, no seu dia a dia, as palavras cultura
e sociedade. Pense, por um minuto, sobre as circunstâncias em que normalmente você aplicaria
essas duas palavras. O que você quis dizer com elas? Que significados estas duas palavras
agregavam ao que era dito? Em seu uso comum, cultura e sociedade são termos que chamamos
“polissêmicos”, querendo dizer que eles possuem diversos significados derivados da sua aplicação
na linguagem cotidiana. Arriscaremos alguns “palpites” sobre isso para esquentar este nosso
capítulo, em que trataremos das relações entre as estruturas materiais (da sociedade) e morais
(da cultura) da vida das coletividades e comunidades políticas. Vamos começar.
Objetivos
Cultura e sociedade
63
CAPÍTULO 4 • Cultura e sociedade
Fonte: <www.tarsiladoamaral.com.br>.
At é e s s e m o m e n t o, t a l v e z v o c ê t e n h a u t i l i z a d o e s s a s c a t e g o r i a s d e f o r m a s
intercambiáveis, como se fossem termos equivalentes entre si. Mesmo quando
os empregamos na linguagem do dia a dia, no entanto, cultura e sociedade são
palavras que guardam diferenças sutis, porém extremamente relevantes para aquilo
que gostaríamos de dizer por meio delas. Pense, mais uma vez, sobre as situações
em que você empregou essas palavras. A que tipo de “diferenças” estaríamos nos
referindo?
Para começar, arriscaríamos dizer que, quando utilizamos a palavra sociedade, tendemos
a trazer para nossas falas imagens de estruturas observáveis de longa duração: as pessoas
de “carne e osso” e suas relações econômicas, a forma pela qual estas se distribuem em
um território delimitado, seu regime de governo e história sociopolítica, a sua estrutura
jurídico-normativa, dentre outros. Tende a nos vir à mente também a ideia de um sistema.
64
Cultura e sociedade • CAPÍTULO 4
Fonte: <www.escolakids.uol.com.br>.
Muito embora a imagem da “coesão” possa até ser boa para totalizar determinada
experiência da sociedade, não podemos jamais esquecer que a vida social também é
conflito.
Como nos fala Georg Simmel, em seu livro Questões fundamentais de Sociologia,
publicado em 1917, pouco antes de sua morte, o conceito de sociedade, por si só, não
explica as formas concretas assumidas pela vida coletiva. Observando as relações entre
os sujeitos da ação social, Simmel nos fala de suas “paixões” e “interesses”, bem como
das formas pelos quais estes ora colidem, ora cooperam para a formação de um sentido
de unidade, o que o autor chama de “sociedade”.
Na definição anterior, o autor nos fala do convívio entre relações “com o outro e contra
o outro”, da formação de alianças e antagonismos na sociedade. Mas a partir de que
“base comum” são formados estes padrões de relações de conflito e cooperação?
Podemos dizer que essa “comunidade moral” que nos envolve a todos e todas se chama
cultura, um conjunto de valores compartilhados que garante um sentido mínimo
65
CAPÍTULO 4 • Cultura e sociedade
para a compreensão mútua das ações dos sujeitos sociais concretos. E o que seriam
esses tais “valores”?
Para refletir
Os valores são os intermediadores de nossa compreensão do mundo. Bastante próximos ao conceito de “fato social”
durkheimiano (rever no capítulo 2), os valores são formas simbólicas passadas de geração em geração com pequenas
alterações de significado e que funcionam, em seu conjunto, como regras de conduta compartilhadas, significados
comuns para a vida em sociedade.
O antropólogo Clifford Geertz tem um ótimo exemplo sobre essa questão. Em seu
famoso livro A interpretação das culturas, de 1973, o autor fala sobre os significados
possíveis para um ato bastante simples e corriqueiro: a piscadela. Você conseguiria
diferenciar entre uma piscadela “cúmplice” e um “tique-nervoso”, por exemplo, quando
o autor pisca de forma involuntária? Saberia distinguir entre a piscadela que busca
uma proximidade, como no caso da paquera, daquela simplesmente performada para
demonstrar concordância com algo ou alguém? Imaginamos que sim. E você tem
alguma ideia do porquê de isso acontecer?
Sugestão de estudo
Fonte: <https://www.grupogen.com.br/a-interpretacao-das-culturas>.
66
Cultura e sociedade • CAPÍTULO 4
Isso acontece porque os valores culturais atuam como uma ponte entre a ação dos
sujeitos no mundo, suas motivações e a compreensão/interpretação de seus significados
por aqueles que porventura a observam de fora. Façamos um último e breve exercício de
“estranhamento” antes de continuarmos, para que possamos fixar bem a ideia da cultura
como um fenômeno que cria um “ponto de vista” específico sobre as coisas.
Imagine você que viajamos para um lugar distante, com uma cultura totalmente diferente
da nossa, como a Índia. Nas margens do Ganges, o maior e mais famoso rio do país,
vemos um homem banhar-se em suas águas poluídas por séculos de despejo de esgoto
in natura ao longo de todo o seu curso. Possivelmente, olharemos para esse homem –
segundo a nossa cultura, ou seja, o nosso sistema de valores compartilhados – nutrindo
certo desgosto por seus hábitos de higiene. Para nós, visitantes alienígenas, o Ganges
pode ser apenas um rio poluído; entretanto, para a cultura indiana, o Ganges é um lugar
“sagrado”. Para nós, brasileiros e brasileiras, a ação daquele homem evoca uma imagem
de “impureza” corporal; para ele, entretanto, da perspectiva de sua cultura, é exatamente
o oposto: banhar-se no Ganges significa a purificação de sua alma.
Fonte: aummagic.blogspot
67
CAPÍTULO 4 • Cultura e sociedade
Como podemos notar, tomando a definição dada por E. B. Taylor, desde suas origens, o
conceito de cultura esteve muito próximo a outro, o de civilização. Isso, historicamente,
teve seus prós e contras. Talvez o “pró” mais significativo, decorrente dessa proximidade,
tenha sido facilitar a compreensão dos novos contextos de uso da palavra cultura.
Naquela época, final do século XIX, cultura era uma palavra cujo significado estava
dominantemente associado à prática agrícola, como na expressão “cultivo da terra”.
Para refletir
Pare para pensar, dessa vez, nas situações sociais em que você já utilizou a palavra civilização ou civilizado. O que
você queria dizer? Você consegue perceber certo tom de “juízo moral” nas suas colocações? Como se, por detrás
dessas afirmações, houvesse sempre a intenção de estabelecer hierarquia entre condutas consideradas “apropriadas”
e “inapropriadas” em relação a um parâmetro dominante. Pois bem, da associação entre as ideias de cultura e
civilização, surge um terceiro fenômeno, o chamado etnocentrismo. Imaginamos que essa seja uma palavra bastante
nova para você. Vamos começar, então, analisando a sua estrutura.
O radical etno vem de etnia, fazendo referência a um grupo social e cultural delimitado,
uma nacionalidade ou naturalidade comum. Quando adicionado o sufixo centrismo, por
sua vez, formando, então, etnocentrismo, ao radical etno é agregada a ideia de que o
grupo social a qual pertence um observador qualquer é, digamos, o “centro do mundo”.
Em que sentido? Para explicar melhor essa questão, entretanto, precisaremos retornar
ao ponto de associação entre os conceitos de cultura e civilização.
Na época em que isso aconteceu, ao longo dos séculos XVIII e XIX, a Europa já era, há
pelo menos 300 anos, a principal “potência colonial” do Ocidente, expandindo seus
domínios territoriais pelos continentes asiático, americano e africano. Não é preciso muito
esforço para perceber que, inserida nesse contexto histórico, em que os países europeus
se lançavam à conquista de novos territórios, a ideia de civilização era naturalmente
equivalente à de “civilização europeia”. Quando o conceito científico de cultura é cunhado
por E. B. Taylor, nesse sentido, ele acaba recepcionando a ideia de civilização em sua
dimensão etnocêntrica, ou seja, supondo a Europa como parâmetro ideal, como “centro
do mundo”.
68
Cultura e sociedade • CAPÍTULO 4
Fonte: <aummagic.blogspot>.
Desde os primórdios da empresa colonial, nos séculos XV-XVI, o contato com as populações
de terras distantes e seus costumes ditos “exóticos” colocou em xeque toda a estrutura
da vida europeia da época. Costumes, padrões estéticos, formas de fazer e pensar foram
questionados pela descoberta de populações que viviam de modo totalmente distinto.
Como a Europa era, como vimos, o berço da ideia de civilização, esses povos receberam
a alcunha de “primitivos” e “atrasados”. Mas como isso aconteceu?
Fonte: <www.adorocinema.com>.
No final do século XVIII, Mendoza (Robert De Niro), um mercador de escravos, fica com crise de consciência por
ter matado Felipe (Aidan Quinn), seu irmão, num duelo, pois Felipe se envolveu com Carlotta (Cherie Lunghi). Ela
havia se apaixonado por Felipe, e Mendoza não aceitou isto, pois ela tinha um relacionamento com ele. Para tentar
se penitenciar, Mendoza se torna um padre e se une a Gabriel (Jeremy Irons), um jesuíta bem-intencionado que luta
para defender os índios, mas se depara com interesses econômicos. O filme tem a direção de Roland Joffée.
69
CAPÍTULO 4 • Cultura e sociedade
Depois de muitos debates nas sociedades científicas da época, chegou-se a uma conclusão
um tanto perturbadora: sim, aquelas eram pessoas como nós, filhos e filhas do mesmo
“gênero humano”. Era preciso agora, entretanto, oferecer uma explicação minimamente
convincente para as diferenças existentes entre nós. Como explicá-las sem provocar
a ruína total da sociedade europeia da época? Era mais que natural que as pessoas
passassem a se questionar sobre as regras e convenções de sua própria sociedade ao
tomar contato com pessoas que viviam de forma totalmente diferente. A solução foi dada
pelo desenvolvimento de outra ideia, a evolução.
O conceito de evolução, imortalizado por Charles Darwin em seu livro A origem das
espécies, lançado em 1859, decorre diretamente de outra ideia, a de progresso, palavra
popularizada na Europa, por sua vez, entre a Primeira e a Segunda Revolução Industrial
(1800-1850). Expostos ao espetáculo da “modernidade” e suas máquinas engenhosas,
o cidadão europeu comum não podia conter o seu deslumbramento com os feitos
espetaculares de sua própria civilização. Sua resposta ao contato com a diferença não
poderia ser plenamente compreendida fora desse quadro de referência histórico. O
chamado evolucionismo cultural surge nesse período. E no que ele consistia?
70
Cultura e sociedade • CAPÍTULO 4
Para refletir
Você arriscaria listar algumas consequências dessa forma de pensar as diferenças, pensando no que conversamos até
aqui sobre os conceitos de cultura e sociedade? Você já se pegou pensando os costumes e valores de outras pessoas
sobre uma perspectiva que poderia ser dita “evolucionista”?
71
CAPÍTULO 4 • Cultura e sociedade
(quando muito) até as sociedades ditas “primitivas” para coletar objetos de sua “cultura
material”, que eram organizados em exposições e coleções na Europa de modo totalmente
descontextualizado de seus usos e significados culturais originais.
Para a Antropologia praticada nos dias de hoje, isso seria algo absolutamente
aberrativo, como nos fala Roque de Barros Laraia (2006, p. 114):
72
Cultura e sociedade • CAPÍTULO 4
Sugestão de estudo
Fonte: <www.adorocinema.com>.
Em uma cidade africana, Agu (Abraham Attah) é uma criança, que atingida pela guerra, é transformada em
soldado. Após a morte de seu pai, por militantes, ele é obrigado a abandonar sua família para lutar na guerra
civil da África do Sul, instruído por um grande comandante (Idris Elba), que o ensinará os caminhos de um
conflito. O filme foi dirigido por Cary Fukunaga.
Por fim, retomando a pergunta sobre se você já foi “evolucionista”, ou melhor, “etnocêntrico”,
em relação aos costumes e práticas alheios, não se preocupe. O etnocentrismo, muito
embora tenha tido seus desdobramentos negativos, é uma reação absolutamente comum a
qualquer ser humano. Afinal, não podemos “sair” da nossa cultura, do nosso próprio sistema
de valores, para pensar e falar da cultura alheia. Mesmo o antropólogo ou a antropóloga,
especialistas, digamos, no “estudo das culturas”, entendem hoje que o conhecimento que
produzem é fruto de um diálogo entre dois sistemas de valores “nativos”: a teoria nativa do
nativo e a teoria nativa do antropólogo ou antropóloga.
73
CAPÍTULO 4 • Cultura e sociedade
Sintetizando
» Algumas definições para os conceitos de sociedade e cultura. Entretanto, é importante observar que essa
delimitação apenas aparentemente clara entre os dois conceitos, não pode obscurecer a percepção de que, na vida
das coletividades, estas duas dimensões encontram-se intimamente conectadas.
» Que não se pode pensar os valores de um grupo humano, sua cultura, sem referência às suas bases materiais de
reprodução social e vice-versa.
» Que no passado, a associação entre as ideias de “evolução/progresso” e “civilização” produziu uma escola
de pensamento, o “evolucionismo cultural”, cuja vinculação a empresa colonial europeia do século XIX (o
“neocolonialismo” ou “colonialismo de segunda geração”), justificou a destruição do estilo de vida e das tradições
de povos nativos de todo o planeta, considerados como “primitivos”.
» Que qualquer sujeito que tenha um ponto de vista socialmente localizado e culturalmente orientado, como vimos,
pode reagir de forma “etnocêntrica” ao contato com a diferença e o diferente. Entretanto, quando essas diferenças
são transformadas – como no caso dos evolucionistas culturais e colonizadores europeus – em instrumento de
desigualdade e opressão, isso tende a reduzir a diversidade cultural planetária a um punhado de perspectivas
“dominantes”, restritas aos pontos de vista daqueles que detêm o poder político e financeiro para impor seu modo
de vida aos demais.
74
CAPÍTULO
TEMAS CONTEMPORÂNEOS 1:
GLOBALIZAÇÃO, DESIGUALDADES
SOCIAIS E TRABALHO 5
Introdução
Objetivos
75
CAPÍTULO 5 • Temas contemporâneos 1: Globalização, Desigualdades Sociais e Trabalho
Provocação
É impossível pensarmos a vida contemporânea sem pensarmos numa vida global, afinal, estamos conectados com o
resto do mundo a todo instante. Consumimos produtos feitos na China, ouvimos músicas feitas nos Estados Unidos,
vemos filmes feitos na França, andamos em carros feitos no Japão. O mundo está todo conectado. Mas será que
estamos de fato conectados? Será que a participação nesta comunidade global é ofertada para todos os países da
mesma forma?
76
Temas contemporâneos 1: Globalização, Desigualdades Sociais e Trabalho • CAPÍTULO 5
et al., 2016, p. 135). Sendo assim, o sistema capitalista se ampara num sistema global que
vincula todas as relações econômicas e mantém um status de privilégio àqueles que estão
na elite do capitalismo mundial, relegando a países em desenvolvimento um local de
subordinação e dependência.
Para o antropólogo indiano Arjun Appadurai (1949-), este efeito homogeneizador não
é, necessariamente, comum a todas as sociedades. Segundo Appadurai, as mudanças
trazidas pela globalização são incorporadas às sociedades de forma distinta, cada uma
a sua maneira se apropria daquilo que melhor lhe cabe e dispensa aquilo que não lhe
é adequado. Para ele, “as nações estão mais propensas a certas facetas da globalização
do que outras, dependendo de uma série de fatores, como o estado da economia, a
estabilidade política e a força da identidade cultural” (THORPE et al., 2016, p. 167). Sendo
assim, a estabilidade econômica ou mesmo uma identidade cultural mais rígida pode
fazer resistência aos processos uniformizadores da economia global.
Ainda neste sentido, devemos salientar que existem diferentes interpretações a respeito da
globalização e seus impactos na vida contemporânea, nos processos econômicos e na própria
concepção do papel do Estado neste contexto. Para melhor compreender estas abordagens,
Anthony Giddens (1938-) separa-as em três escolas de pensamento, são elas os céticos, os
hiperglobalizadores e transformacionalistas. Cada abordagem apresenta uma representação
dos acontecimentos trazidos pelo avanço da globalização.
77
CAPÍTULO 5 • Temas contemporâneos 1: Globalização, Desigualdades Sociais e Trabalho
A globalização está a
A internacionalização depende
transformar o poder dos
Argumento principal O fim do estado-nação da concordância e do apoio do
governos e a política
governo
mundial
Fonte: Adaptado de Held et al., Global Transformation, 1999, p. 10 apud Giddens, Sociologia, 2008, p. 60.
Existem, portanto, três perspectivas apresentadas por Giddens, cada escola produz
um modelo explicativo para compreender o fenômeno da globalização. Para o
autor, a abordagem que mais se aproximaria de uma descrição dos fatos é a dos
transformacionistas, tendo em vista que os céticos “não t ê m em conta até que
ponto o mundo está a mudar” (GIDDENS, 2008, p. 61) e os hiperglobalizadores
“veem o fenômeno demasiadamente em termos econômicos e como um processo
excessivamente unilateral” (GIDDENS, 2008, p. 61). Sendo assim, o processo de
globalização e seu impacto na vida cotidiana dos indivíduos e nas culturas locais se
apresenta como um complexo emaranhado de questões, pois não existem apenas
forças de homogeneização, mas, também, existem restrições culturais locais. Além de
uma construção de novas formas de organização global, aproximando e distanciando
países, segundo seus interesses e capacidades econômicas.
78
Temas contemporâneos 1: Globalização, Desigualdades Sociais e Trabalho • CAPÍTULO 5
A transição de uma modernidade mais “sólida”, como a que ocorreu na Europa dos
séculos XVIII e XIX (capítulos 1, 2 e 3), para uma modernidade mais líquida, onde
as estruturas de vinculação e construção da identidade individual ocorrem de
maneira muito mais fluida e cambiável, impactou diretamente a vida de todos os
indivíduos. Afinal, as antigas instituições de coerção social não têm mais a mesma
capacidade de vincular e coibir comportamentos, sendo assim, vão sendo trocadas
e modificadas conforme a sociedade avança. Portanto, a formação identitária dos
indivíduos passam por contínuos processos de modificação, de transformação, algo
impensável em sociedades em que a estrutura de formação fosse mais rígida, mas
no mundo contemporâneo global as identidades e as relações fluem.
79
CAPÍTULO 5 • Temas contemporâneos 1: Globalização, Desigualdades Sociais e Trabalho
Há, portanto, uma conexão entre os países em um mundo global, uma rede de comunicação
que interliga a todos. Mas esta conexão não representa, necessariamente, uma livre
participação no desenvolvimento global. Pelo contrário, apesar de esta rede interligar
todos os países, não significa que todos os habitantes terão acesso a ela, nem mesmo
significa que todos os países serão contemplados por ela. Portanto, apesar de ter um
caráter planetário, a economia global não abrange todos os territórios, pelo contrário,
ela exclui sumariamente aqueles que não são desenvolvidos.
Até aqui pudemos perceber que a globalização não é um processo recente, mas seus
impactos na contemporaneidade o são. Tanto na perspectiva da liquidez da vida moderna
como na construção de uma sociedade de rede que interliga todos, mas que não
permite o pleno desenvolvimento global, há de se pensar quais são os impactos dessa
globalização. Um dos aspectos mais problemáticos, que emerge de forma urgente são as
crises migratórias, motivadas por questões relacionadas tanto à desigualdade de renda,
como questões políticas e religiosas.
80
Temas contemporâneos 1: Globalização, Desigualdades Sociais e Trabalho • CAPÍTULO 5
A foto da criança síria morta enquanto tenta atravessar o mar para chegar à Europa
é um dos símbolos da grave crise migratória que vivemos na atualidade. Em um
mundo globalizado, em que países se conectam, se relacionam, as fronteiras estão
fechadas para aqueles que tentam fugir da miséria, da fome, da guerra. Países que
antes costumavam transitar pelo mundo colonizando, hoje se negam a receber os
habitantes dos países que um dia exploraram. Segundo dados da ACNUR, a Agência
da ONU para Refugiados, no final de 2016 existiam 22,5 milhões de refugiados no
mundo. A maior parte destas pessoas, cerca de 5,5 milhões de pessoas fogem da guerra
da Síria, que assola o país desde 2011. Apesar da necessidade de acolhimento destas
pessoas, muitos países se recusam a receber os refugiados, alegando que seus países
não têm obrigação ou mesmo estrutura para receber estas pessoas. Relegando, assim,
milhares de pessoas a se aglomerar em campos de refugiados, tentando sobreviver
em condições extremas.
81
CAPÍTULO 5 • Temas contemporâneos 1: Globalização, Desigualdades Sociais e Trabalho
Para refletir
As crises migratórias são, portanto, produto de uma necessidade global de reavaliar as políticas de fronteira,
principalmente dos países desenvolvidos. Pois, se vivemos em um mundo global, onde mercadorias, valores e
riquezas transitam, por que impedir que pessoas em situação de vulnerabilidade transitem? Além disso, devemos
nos questionar a respeito das próprias políticas que levam estas pessoas a deixar seus países, pois numa economia
globalizada, norteada por interesses capitalistas, por vezes relegamos a países em desenvolvimento todo o prejuízo e
danos de decisões tomadas em nível global, como é o caso da guerra na Síria, que tem participação de países como a
Rússia, os Estados Unidos, além de interesses locais.
Desigualdades sociais
Fonte: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2015-01/reducao-da-pobreza-na-america-latina-ficou-
estavel-aponta-cepal>. Agência Brasil, 2015.
82
Temas contemporâneos 1: Globalização, Desigualdades Sociais e Trabalho • CAPÍTULO 5
Provocação
O mundo produz riquezas, mas a distribuição destas riquezas não é feita de forma igualitária, tampouco considera
as necessidades humanas. Agora, como um exercício de reflexão, pondere sobre a sua região, os lugares onde passa
e as pessoas com quem tem contato. Você acredita que onde mora a distribuição das riquezas é feita de forma mais
igualitária? Será que é possível construir uma sociedade mais igualitária e justa?
O crescimento econômico brasileiro foi notável nos últimos anos, a despeito da retração
econômica dos últimos três anos. Neste sentido, é esperado que o crescimento econômico
tenha impactado diretamente na desigualdade social, afinal, um país mais rico deveria ser
sinônimo de um país mais igualitário. Entretanto, um recente estudo sobre desigualdade
social no Brasil mostra que apesar do crescimento econômico, a desigualdade social
se mantém estável desde 2006. Segundo o estudo “a renda no Brasil é extremamente
83
CAPÍTULO 5 • Temas contemporâneos 1: Globalização, Desigualdades Sociais e Trabalho
Trabalho
O trabalho sempre ocupou um papel central nas análises sociológicas, desde os estudos
clássicos. Autores como Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim que estudamos nos capítulos
anteriores, trazem extensas contribuições para a temática do trabalho, seja interpretando o
trabalho humano como o transformador da vida material e depois compreendendo como este
foi apropriado e transformado pelo capital, seja percebendo o trabalho como construção de
um modelo ético que se adequou ao sistema capitalista e permitiu a ascensão de determinado
grupo social, ou mesmo pela compreensão de que a divisão social do trabalho cria a
solidariedade que mantém a coesão social. Apesar das particularidades, estas abordagens
demonstram a relevância da temática do trabalho para a compreensão da realidade social.
Neste sentido, precisamos compreender qual o lugar do trabalho e do trabalhador na nossa
sociedade contemporânea.
84
Temas contemporâneos 1: Globalização, Desigualdades Sociais e Trabalho • CAPÍTULO 5
Provocação
As relações de trabalho mudaram substancialmente nos últimos anos. As longas carreiras em empresas deram
lugar à alta rotatividade de trabalhadores, além da necessidade de especialização contínua. Pensando nas novas
configurações do trabalho mundial, como você percebe essa mudança em seu cotidiano? Você percebe alguma
mudança entre as suas relações de trabalho e as que seus pais, ou seus avós estabeleceram?
85
CAPÍTULO 5 • Temas contemporâneos 1: Globalização, Desigualdades Sociais e Trabalho
dos trabalhadores. É através do trabalho que o indivíduo adquire seu salário, forma de se
integrar à sociedade do consumo, mas é também no exercício da atividade laboral que os
indivíduos produzem suas identidades e subjetividades.
Saiba mais
Para acessar matéria completa sobre o número de desempregados no Brasil, consultar: <https://g1.globo.com/
economia/noticia/2018/08/16/falta-trabalho-para-276-milhoes-de-brasileiros-aponta-ibge.ghtml>.
Provocação
Sintetizando
» Apesar da globalização, o desenvolvimento econômico não atinge todos os países da mesma forma.
» As mudanças advindas da globalização atingem a vida dos indivíduos, a modernidade líquida toma conta da vida
contemporânea.
» Apesar de as crises migratórias serem um problema crescente, a maior parte dos países se nega a oferecer ajuda e
receber refugiados e migrantes.
» As classes do sistema capitalista são estáticas e oferecem pouca mobilidade, principalmente para os mais pobres.
» O crescimento econômico brasileiro não representou uma distribuição de renda, pelo contrário, há acúmulo de
riqueza na mão de poucos.
86
CAPÍTULO
TEMAS CONTEMPORÂNEOS 2:
ANTROPOLOGIA E DIREITOS
HUMANOS 6
Introdução
A Antropologia é a ciência que estuda os grupos sociais a partir da observação direta de
sua “cultura”, da forma como os sujeitos performam valores e tradições compartilhados,
por meio de rituais sociais, dos mais simples e cotidianos (cuidados corporais, preparação
de alimentos etc.), àqueles mais solenes e complexos (ritos de iniciação, casamentos,
funerais etc.). Essa observação cientificamente orientada, a que chamamos etnografia,
pode ser feita “em casa”, ou seja, na própria sociedade do antropólogo ou antropóloga;
mas, também, com grupos humanos situados “fora” desse universo de coisas familiares,
em outro país, cujos costumes podem ser mais ou menos “próximos” aos seus. Nesse
movimento, a Antropologia, em sua contribuição social mais ampla, para além de
seu campo disciplinar, acaba funcionando também como um tipo de “repositório de
diversidade”. E o que isso significa? Em última instância, isso significa que o acúmulo de
etnografias produzidas pela disciplina, ao retratar a cultura de diversos povos, converte-
se em retrato panorâmico de uma humanidade que é essencialmente diversa em suas
formas de ser e de viver.
Os Direitos Humanos, por sua vez, são garantias de direito que se aplicam universalmente,
independente de especificidades de raça, credo, idioma, nacionalidade etc. A criação
dessa esfera do “direito internacional” é um processo historicamente “datado”, cujas
origens remetem à França do século XVIII. A ideia de um “Direito Humano” é filha,
portanto, das mesmas agitações sociais que deram origem aos ideais iluministas de
“indivíduo” e de “igualdade”. O surgimento de um indivíduo universal na França (o
“cidadão”), portador de direitos iguais, independentes de seu status social (renda,
títulos, nome), quando expandido para uma escala mundial, redundou no surgimento
de um direito que se pretende aplicável a toda a “humanidade”, independentemente
de qualquer diferença observável entre os “seres humanos”.
Como veremos a seguir, o diálogo entre essas duas formas de conhecimento, uma
científica, a outra militante, pode ser extremamente produtivo e enriquecedor.
Para a Antropologia, os Direitos Humanos pressionam a sua tendência filosófica
ao esvaziamento político, sob a forma de um “relativismo cultural” extremo do tipo
“outras terras, outros costumes”. Para o campo dos Direitos Humanos, a Antropologia
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CAPÍTULO 6 • Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos
representa uma lembrança constante de que, por sobre a ideia de um “direito universal”,
podem sempre se esconder formas de opressão sutis, advindas da própria pretensão
de submeter toda a diversidade humana a um parâmetro unitário e dominante de
vida e de direitos.
Objetivos
» Observar a relevância de um diálogo constante entre os Direitos Humanos e a
Antropologia para a promoção da diversidade e proteção contra formas de opressão,
simbólica e material.
Quando tocamos em algum assunto delicado, numa conversa entre amigos, por exemplo,
o silêncio do outro pode significar muitas coisas. Pode ser expressão de dor, medo,
vergonha, preocupação, consentimento; pode significar tanto desconfiança e o anúncio
do fim de uma amizade quanto conivência e a reafirmação de laços entre as pessoas.
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Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos • CAPÍTULO 6
Mas o silêncio pode ser também silenciamento. Você saberia dizer qual a diferença entre
os dois? Comecemos com a principal e mais “gritante” delas. O silenciamento produz um
efeito de silêncio atingido contra a vontade, explícita ou não, daquele ou daquela que
seriam os potenciais portadores de uma mensagem. Em resumo, você teria algo a dizer,
mas foi impedido ou impedida, seja por um constrangimento exterior, totalmente alheio
à vontade, seja interior, quando a exposição prolongada a uma situação de silenciamento
se converte em dispositivo de “autocensura” individual. E o que, em última instância,
isso quer dizer? Isso quer dizer que o silêncio, a omissão da “voz”, é mais que a simples
negação da comunicação, tática individual de ocultamento/revelação. O silêncio tem
uma dimensão política importante. Este não se impõe a todos e todas da mesma forma
e com a mesma intensidade.
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CAPÍTULO 6 • Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos
Mas o que isso tem a ver com a discussão de Direitos Humanos, objeto de nosso capítulo
de hoje? Você arriscaria levantar algumas possíveis relações entre aquilo que conversamos,
até esse momento, sobre silêncio e silenciamento, e a questão dos Direitos Humanos?
Para auxiliarmos nossos alunos e alunas a responderem a essas perguntas, centrais para
a compreensão do tópico deste capítulo, faremos uma pausa nessa discussão para falar
da história do surgimento da ideia de Direitos Humanos como um direito aplicado a
toda a humanidade.
Para refletir
É bom que você tenha sempre em mente que todas essas ideias e conceitos (“direito”, “humanidade”, “cultura” etc.),
trazidos em nossos capítulos, são fenômenos sociais “datados”. E o que isso quer dizer? Falando de maneira bem
simples, isso quer dizer que eles nem sempre “existiram”. A forma que assumem no presente resulta da aplicação
de camadas e camadas de significados historicamente construídos, de sua passagem por lugares, eventos, das
“conversas” com outras ideias e conceitos. Com os Direitos Humanos não seria diferente. Falaremos um pouco sobre
os seus “caminhos” a seguir.
Sugestão de estudo
Figura 42. Imagem do filme História de uma Revolução (A Revolução Francesa) (1989).
Fonte: <www.filmow.com>.
La Révolution française é um filme de duas partes. A primeira, intitulada La Révolution française: les années lumière
foi dirigida por Robert Enrico. A segunda parte, La Révolution française: les années terribles, teve a direção de
Richard T. Heffron. Foi produzido em 1989 para o 200o aniversário da Revolução Francesa, e se propõe a contar uma
história fiel e neutra da Revolução, a partir da decisão do rei Luís XVI de convocar os Estados Gerais (a fim de lidar com
o problema da dívida da França) à morte de Robespierre. Alto orçamento e um elenco internacional.
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Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos • CAPÍTULO 6
que atribuía direitos e distribuía propriedade observando o status social das pessoas,
foi elaborada uma nova “constituição” para a recém-instaurada “República Francesa”.
Esta, além de proclamar a “igualdade de direitos” como princípio, foi a responsável por
cunhar o termo cidadão. Retornaremos a essa discussão mais à frente.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi promulgada naquele mesmo ano
“revolucionário” de 1789. Em seu preâmbulo, o legislador escreveu:
Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional,
tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos
direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da
corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos
naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração,
sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre
permanentemente seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do
Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento
comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso
mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante
fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à
conservação da Constituição e à felicidade geral.
Como você deve ter notado, já em seu preâmbulo, a Declaração deixa clara a intenção do
legislador, em primeiro lugar, de instituir e proteger os direitos do homem igualmente,
colocando a felicidade geral e a própria proteção desse instituto jurídico (a “Constituição”)
como objetivos últimos para a recém-fundada República Francesa e seus cidadãos. Para
sustentar sua intenção de aplicar-se a todos e todas igualmente, a ideia nascente de
um direito universal precisava encontrar uma espécie de unidade de medida comum a
toda a humanidade. Essa medida era a ideia de indivíduo, surgida do chamado “século
das luzes”, do Iluminismo, movimento que valorizava a razão e a figura humana, tomada
como “medida de todas as coisas”, e teve seu auge entre os séculos XVIII-XIX. O indivíduo
viria a se tornar o cidadão da República Francesa (1789).
Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Homem_Vitruviano_(desenho_de_Leonardo_da_Vinci)>.
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CAPÍTULO 6 • Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos
Todos e todas são cidadãos, porque iguais em suas diferenças. Essa medida de igualdade,
o “indivíduo”, refletia a humanidade como uma experiência social diversa, em seus modos
e aparência, mas unida por uma mesma natureza humana. Sobre esse substrato comum,
o legislador francês atrelou os chamados direitos naturais, inalienáveis e sagrados, como
vimos acima. Essas “garantias fundamentais” seriam consideradas essenciais à viabilidade
material e moral da existência humana.
Saiba mais
Necessárias a reprodução da vida e das condições de vida do povo francês, na percepção do legislador da época, os
direitos naturais eram “a liberdade, a propriedade a segurança e a resistência à opressão” (Declaração, Art. 2o).
A partir da França “revolucionária” de 1789, a “capital mundial das luzes”, berço do Iluminismo
(século XVII-XVIII), estas ideias viajaram o mundo, atravessando oceanos e influenciando
gerações. Mais de 150 anos depois, em 10 de dezembro de 1948, a Organização das Nações
Unidas (ONU), em resposta às atrocidades cometidas durante os conflitos planetários do
início do século XX, em especial, na recém-encerrada Segunda Guerra Mundial, edita a
Declaração Universal dos Direitos Humanos que, em seu preâmbulo, coloca:
Depois desse breve passeio pela história da ideia de Direitos Humanos, podemos perceber
dois movimentos fundamentais: o primeiro, feito já no século XVIII, com a Revolução
Francesa, de afirmar a existência de um universal humano, uma matéria comum sobre
a qual se pode supor a existência de “direitos naturais”, como vimos; o segundo, realçado
pelos horrores das “guerras mundiais” do século XX, era o da proteção às chamadas
minorias políticas, grupos mais vulneráveis à opressão e ao extermínio.
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Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos • CAPÍTULO 6
Sugestão de estudo
Fonte: <www.adorocinema.com>.
O filme dirigido por Justin Chadwick foi inspirado na autobiografia de Nelson Mandela, lançada em 1994. O filme
retrata todo o percurso traçado pelo líder sul-africano a partir de seu próprio ponto de vista, desde a sua infância,
vivendo em uma pequena aldeia rural, até a eleição democrática ao cargo de Presidente da República da África do
Sul. Em uma luta constante pelo fim do apartheid no país, Mandela (Idris Elba) chegou a passar 27 anos em cárcere
pelo que acreditava.
A minoria política, nesse sentido, é como uma personagem a quem não é permitida uma
“voz” política própria, sua existência é silenciada, sua perspectiva não é considerada.
Esperamos que, a essa altura de nossa discussão, você já possa compreender a relação
que tentamos estabelecer entre silêncio, silenciamento e Direitos Humanos.
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CAPÍTULO 6 • Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos
Observe a lei
Não podemos esquecer também que a difusão da ideia de Direitos Humanos fundou,
além disso, uma espécie de jurisprudência planetária, vinculando os países signatários
das diversas convenções e protocolos editados pela Organização das Nações Unidas
(ONU), criada em 1945, como, por exemplo, sobre o Estatuto dos Refugiados (Genebra,
1951), sobre crime organizado transnacional (Nova York, 2000) ou contra a tortura e
outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (Nova York, 1984).
Essa legislação, além disso, é resguardada, em nível mundial, por diversas instituições de
direito internacional, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos ou o Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem.
Saiba mais
Conheça um pouco melhor o chamado “Sistema ONU”, a forma de organização da Organização das Nações Unidas
(ONU), o mais importante órgão internacional de proteção aos Direitos Humanos nos dias atuais.
A Assembleia Geral é principal assembleia deliberativa da ONU. Composta por todos os Estados-Membros das
Nações Unidas, a Assembleia se reúne em uma sessão ordinária anual. Ao longo do período de duas semanas, os
representantes de cada nação se reúnem para discutir assuntos que afetam a vida de todos os habitantes do planeta.
Não há, nesse órgão, desigualdade entre os membros, todos os países têm direito a um voto e os principais assuntos
em pauta são: paz e segurança, aprovação de novos membros, eleição dos Secretários-Gerais, questões concernentes
ao orçamento, desarmamento, cooperação internacional, direitos humanos etc. As resoluções, votadas e aprovadas,
funcionam como recomendação, e não são obrigatórias.
94
Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos • CAPÍTULO 6
O Conselho de Segurança é o órgão responsável pela paz e segurança internacionais. É formado por cinco
membros permanentes detentores do poder de veto: Estados Unidos, Rússia, Grã-Bretanha, França e China. Não
coincidentemente, esses países são os quatro vencedores da Segunda Guerra Mundial mais a China, potência que
ascendia à época. Esses países se reuniram no Conselho para dispor no que tange aos acertos pós-guerra e com
a finalidade de evitar que novas atrocidades como as daquele período voltassem a acontecer. Além dos membros
permanentes, há também dez não permanentes, eleitos pela Assembleia Geral a cada dois anos. O Brasil, atualmente,
é uma dessas nações eleitas. As decisões desse órgão, ao contrário das disposições da Assembleia, têm caráter
obrigatório, e devem ser seguidas pelos países-membros da ONU a fim de manter a ordem internacional. Os países
que não cumprem as decisões do Conselho recebem punições tais como barreiras econômicas e isolamento dos
demais países componentes, o que pode levar, em alguns casos, à exclusão da nação rebelde do corpo das Nações
Unidas. As principais funções e atribuições do Conselho de Segurança são: determinar a criação, manutenção e
extinção das Missões de Paz, recomendar métodos de diálogos entre os países, elaborar planos de regulamentação de
armamentos etc.
O único dos órgãos da ONU que não está localizado em território internacional em Nova Iorque, nos Estados Unidos,
na sede principal das Nações Unidas, é o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), que fica em Haia, nos Países Baixos.
A Corte é o principal órgão judiciário da ONU e todos os países (nunca indivíduos) que compõem o Estatuto da Corte
– parte integrante da Carta das Nações Unidas – podem recorrem a ela, pedindo pareceres. Além disso, a Assembleia
e o Conselho de Segurança podem pedir auxílio sobre quaisquer questões jurídicas, bem como os outros órgãos
das Nações Unidas. Sua principal finalidade é dirimir litígios entre os Estados. O tribunal ouve casos relacionados a
crimes de guerra, interferência estatal ilegal, casos de limpeza étnica, entre outros. O TIJ se compõe de 15 juízes, os
“membros”, que são eleitos pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança.
Ademais, há outros dois outros conselhos que merecem destaque entre os mais importantes. O Conselho Econômico
e Social (ECOSOC) é o órgão coordenador do trabalho econômico e social da ONU, das Agências Especializadas e das
demais instituições integrantes do Sistema das Nações Unidas. O ECOSOC formula recomendações e inicia atividades
relacionadas com o desenvolvimento, comércio internacional, industrialização, recursos naturais, direitos humanos,
bem-estar social etc. Sua principal função é promover o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais
por meio do trabalho social que assiste. O Conselho de Tutela foi importante e eficiente há algum tempo; em 1994
seus trabalhos foram suspensos. Segundo a Carta, cabia a esse conselho a supervisão e administração dos territórios
sobre regime de tutela internacional.
Por último, o Secretariado. Esse órgão funciona como um “diretor” dos demais. A Carta das Nações Unidas prevê que
esses instrumentos forneçam estudos, informações e facilidades necessárias ao bom funcionamento das reuniões
dos organismos das Nações Unidas. O Secretariado é chefiado pelo Secretário-Geral, auxiliado por uma equipe de
cerca de 16 mil funcionários no mundo inteiro. O atual Secretário-Geral, Ban Ki-moon, atua como porta-voz e líder da
ONU. Ele assumiu no lugar de Kofi Annan em 2007. Entre os principais trabalhos do Secretariado estão administrar
as forças de paz, analisar problemas econômicos e sociais e repassá-los ao ECOSOC, sensibilizar a opinião pública a
respeito do trabalho da ONU e organizar as conferências internacionais.
Além de todos esses órgãos maiores, há muitas outras organizações e agências das Nações Unidas que tratam sobre
questões específicas, e por meio das quais a ONU realiza a maior parte de seu trabalho humanitário. Algumas das
agências mais conhecidas são a Agência Internacional de Energia Atômica, a Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura, o Banco Mundial, a Organização Mundial da Saúde e a UNESCO.
(Fonte: Info ONU)
95
CAPÍTULO 6 • Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos
96
Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos • CAPÍTULO 6
Para refletir
Seria possível proteger estas mulheres, na condição de minorias políticas, e, simultaneamente, respeitar o direito
universalmente consagrado a “autodeterminação dos povos”, ao cultivo de seus costumes, heranças e modos de vida
ditos “tradicionais”? No campo da Antropologia, disciplina cujos saberes são constantemente mobilizados pelos
debates de Direitos Humanos, esses choques entre valores “universais” e casos “particulares” produziu uma crítica
contundente ao chamado relativismo cultural. Mas o que seria isso?
Fonte: <http://artesvisuaisnaescolaclasse4.blogspot.com>.
97
CAPÍTULO 6 • Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos
Esse ritual, de cunho religioso, baseia-se na percepção de que o prazer sexual feminino
levaria ao “pecado”, não só a própria mulher, mas a sociedade como um todo. Além de
impedir que esta tenha uma vida sexual saudável, as condições de higiene em que são
performadas as intervenções e a própria agressividade do procedimento (em alguns
casos, a vagina da mulher é costurada) trazem consequências física e emocionalmente
muito pesadas para estas mulheres.
Em seu artigo Antropologia e os limites dos Direitos Humanos: o dilema moral de Tashi,
a antropóloga Débora Diniz nos fala dos dramas de uma dessas mulheres. Tashi era uma
mulher Olinka que não se submeteu, na idade prescrita pelas tradições de seu povo, ao
ritual de circuncisão/mutilação feminina.
Sua mãe já tinha perdido uma filha, morta em decorrência de complicações no procedimento,
e decidiu proteger Tashi, temendo que ela tivesse o mesmo destino de sua irmã mais velha.
Por conta disso, Tashi cresceu como uma “estranha” em sua própria cultura, isolada das
demais mulheres, por não ser considerada uma “mulher completa” entre os seus. Tashi
decidiu, então, migrar para longe da África, mas os conflitos emocionais e o sentimento
de inadequação a perseguiram, mesmo longe de seu povo, consumindo-a a ponto de
suscitar nela um desejo de morte.
98
Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos • CAPÍTULO 6
Sugestão de estudo
Fonte: <www.filmow.com>.
O documentário, dirigido por José Manuel Colón, apresenta entrevistas com estrategistas políticos e garotas em
Gâmbia e no Quênia detalham os horrores da mutilação genital feminina e os esforços para acabar com essa prática.
Não podemos esquecer, como nos relembra a antropóloga Regina Novaes, no texto
transcrito acima, que os Direitos Humanos, enquanto fenômeno “datado”, como mostramos
no começo do capítulo de hoje, tem suas origens associadas a uma cultura e a uma
institucionalidade específica, suscetível, portanto, a certo “etnocentrismo” (rever capítulo
4). Mas essa característica “datada”, como vimos também, não é privilégio do discurso
sobre os Direitos Humanos. Toda afirmação que busca estabelecer linhas demarcatórias
99
CAPÍTULO 6 • Temas contemporâneos 2: Antropologia e Direitos Humanos
Provocação
Por fim, podemos dizer que a aproximação entre a proteção dos Direitos Humanos e a Antropologia é uma tendência
muito saudável, tanto para ativistas quanto para antropólogos e antropólogas. De um lado, para os primeiros, os
esforços da Antropologia em documentar formas diversas de viver e pensar, bem como a sua atenção às relações
de poder e desigualdades, cria uma maior “conscientização” quanto ao etnocentrismo e suas formas sutis de
opressão. Por outro, no caso dos antropólogos e antropólogas, o caráter essencialmente militante da ideia de Direitos
Humanos, nos força a um incômodo político constante, afastando da disciplina os perigos do relativismo cultural
extremado e da tolerância como conivência.
Sintetizando
» Que silêncio e silenciamento são processos sociais diferentes e que servem de metáfora para analisarmos a
situação das chamadas “minorias políticas”.
» Que a ideia de Direitos Humanos possui uma história e que essa história remete, originalmente, à Revolução
Francesa de 1879 e ao surgimento dos conceitos de indivíduo, igualdade e cidadania.
» Que essa ideia, a partir da chamada “França Revolucionária” e seus ideais, se espalharam pelo mundo,
desembocando na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
» Que o diálogo entre Antropologia e Direitos Humanos coloca em perspectiva o debate entre a garantia de “valores
universais”, encarnados na ideia de um “direito planetário”, e as formas de vida específicas, nos casos em que
minorias políticas lutam contra a formas de opressão produzidas em sua própria cultura.
100
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