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MÍDIA E DISCURSO

A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS
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MÍDIA E DISCURSO
A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS

1ª Edição
Copyright© Autor(es)
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proprietário(s) do Direito Autoral.
Capa Afra de Medeiros
Poiesis Editora 2018
Todos os direitos comerciais reservados pela Poiesis Editora, sendo
proibida qualquer reprodução de partes ou de todo o conteúdo dessa
publicação sem a autorização prévia da Editora.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C955d CRUZ, Adriano Charles Silva.


Mídia e Discurso: a construção de sentidos (livro
eletrônico). – Marília : Poiesis Editora, 2018.
102 p.: 634 Kb.
Formato: e-Book e PDF.
ISBN 978-85-61210-76-2
1. Análise do discurso. 2. Semiótica discursiva. 3.
Cultura midiatizada. I. Cruz, Adriano Charles Silva. II.
Título.
CDD – 401.41

Índice para catálogo sistemático:


1. Análise do discurso – 401.41
À memória de Dalvanir Avelino
Ao Itamar Nobre
À Cristina, Nona e Nilma
À turma da 6, amigos de uma vida
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO • 8
CONSIDERAÇÕES INICIAIS • 10
1 A ANÁLISE DE DISCURSO • 13
2 OS SENTIDOS NA FOTOGRAFIA • 18
3 OS SENTIDOS NO DOCUMENTÁRIO • 29
4 OS SENTIDOS NAS REVISTAS SEMANAIS • 44
5 OS SENTIDOS NOS MEMES • 66
6 OS SENTIDOS NAS INSCRIÇÕES URBANAS • 83
CONSIDERAÇÕES FINAIS • 97
POSFÁCIO • 100
SOBRE O AUTOR • 102
APRESENTAÇÃO

O
professor e pesquisador Adriano Cruz nos oferece atra-
vés desta obra, que já se mostra perspicaz em seu título
Mídia e Discurso: a construção de sentidos, a oportunida-
de de adentrarmos na análise do discurso de abordagem francesa,
porém, com a marca dos pesquisadores brasileiros que seguiram
essa corrente, fundamentalmente a pesquisa de Eni Orlandi.
Este livro representa um “olhar para dentro” do próprio cami-
nhar e, ao mesmo tempo, uma mirada instigante enquanto à telha
discursiva em diversas esferas que priorizam discursos textuais e/
ou imagéticos.
O autor faz uma retrospectiva da sua própria pesquisa dis-
cursiva, considerando alguns dos textos que foram divulgados
durante os últimos anos em diversos espaços científicos. Apesar
de se apresentar, num primeiro momento, como um percurso ec-
lético, o livro tem uma coesão intrínseca ao evidenciar a ideologia
como uma teia que perpassa toda manifestação discursiva.
Cruz constrói uma trilha que atravessa diferentes paisagens
semióticas, materializadas neste trabalho, num olhar para a foto-
grafia, o documentário, as revistas semanais, os memes e as ins-
crições urbanas. A arriscada intenção de colocar linguagens di-
versas na mesma arena, ainda que separadas em capítulos, acaba
se transformando numa oportunidade para o leitor de vivenciar
o discurso como uma entidade dinâmica, dialógica e onipresente
nas mais diversas formas de expressão características da moderni-
dade multimodal na qual estamos imersos.
Um dos pontos mais contundentes da abordagem do autor é a
sensibilidade para vincular suas análises a questões que interagem
no nosso cotidiano, tais como: a representação de atores sociais
publicamente notórios, o caso de Lula e Marina Silva; a materia-

8
Adriano Charles Silva Cruz

lidade da arte, mediante a análise da fotografia de Philip-Lorca


diCorcia e do documentário Elena e o envolvimento cidadão nas
manifestações populares nos muros das cidades.
A leitura desta obra é recomendável para aqueles que já nave-
gam na análise discursiva, e também para quem deseja se aproxi-
mar a essa perspectiva dos acontecimentos.
Vale a pena aceitar a provocação do autor e atentarmos aos
processos envolvidos na construção de sentidos, na multiplicida-
de de discursos que, mediante disfarçadas intencionalidades de
naturalização, nos atingem no nosso dia a dia.

Letícia Beatriz Gambetta Abella


Professora Doutora na Faculdade de Humanidades e Ciências
da Educação e na Faculdade de Informação e Comunicação, da
Universidade da República (UDELAR), no Uruguai.

9
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Sabemos que todos temos ou que possuímos imagens, que elas


vivem em nossos corpos ou em nossos sonhos e esperam para
serem convocadas por nossos corpos a aparecer.

Hans Belting

E
ste livro contém um conjunto de textos escritos entre 2008
e 2018, frutos de minhas pesquisas acadêmicas. Inseridos
em formato de livro, os textos sofreram modificações e
atualizações. Acredito que, nesse formato, produzem um efeito
de continuidade temática, as ideias se repetem e se atualizam nas
variações dos fenômenos e dos objetos.
O leitor verá que alguns temas perpassam as análises: a re-
tomada de discursos anteriores, os efeitos da memoria e da ide-
ologia e a construção de subjetividades. Pretendo demonstrar o
potencial analítico da teoria discursiva na análise de produtos da
mídia. Embora, desde os anos de 1980, ocorra um direcionamen-
to para análise de imagens, é comum as pessoas associarem a teo-
ria apenas à análise de textos verbais.
No primeiro capítulo, procuro apresentar os principais con-
ceitos discursivos mobilizados: discurso, ideologia, interdiscurso
e formação ideológica e discursiva. Tais conceitos não esgotam
o arsenal teórico da “disciplina”, em movimento e atualizações
constantes. Recomendo, para aqueles que quiserem uma intro-
dução mais detalhada, a leitura do livro Introdução à Análise de
Discurso, de Eni Orlandi e do meu A charge no governo Lula.
Nos capítulos seguintes, diferentes questões discursivas são
abordadas por meio da análise de objetos da mídia: a relação entre
invisibilidade e visibilidade na fotografia de Philip-Lorca diCor-
cia, a formação da identidade e da subjetividade no documentário

10
Adriano Charles Silva Cruz

Elena, o papel da memória na construção da imagem de Marina


Silva (REDE) pelas revistas jornalísticas, a discursivização do cor-
po de Lula (PT) nos memes e as modalidades discursivas encon-
tradas em pichações e graffiti.
Proponho uma forma de olhar a mídia por meio do discur-
so, alinho essa discussão com a intersecção de três eixos funda-
mentais: história, imagem e sujeito. Como significam as imagens
midiáticas? Como são produzidos sentidos? São as questões que
norteiam este trabalho.
Ressalto que imagens, vídeos e textos não são transparentes,
ao contrário, ambíguos. Estão sujeitos à construção de sentidos a
partir de condições específicas e a partir do lugar social de quem
os produz e de quem os consome.
Os discursos são produzidos em uma cultura midiatizada em
que as esferas sociais são estruturadas e ambientadas pela comu-
nicação. Também, estão inseridos no contexto do capitalismo
financeiro e volátil. Dentro de um quadro de mudança da mo-
dernidade “líquida”, as transformações tecnológicas interferem
na comunicação que, por conseguinte, alteram a cultura da socie-
dade de acordo com as novas potencialidades comunicacionais. O
alcance global dos conteúdos, a interatividade e a mobilidade dos
meios têm dinamizado o fluxo de conteúdos e produtos. Novas
formas de sociabilidade são calcadas pelas tecnologias e relações
em rede, desde o namoro em aplicativos como o Tinder ao riso
irônico produzido pelos memes.
O consumo das mídias se tornou um processo coletivo na
construção de uma “cultura da convergência”, participação mais
intensa do público, especialmente, nas redes sociais. Os leitores
compartilham, editam e produzem conteúdos com um simples
smartfone. Assim, espectadores assumem um papel importante
na propagação e circulação discursiva.
Embora tenha privilegiado os produtos midiáticos tradicio-
nais, há espaço para uma reflexão sobre a comunicação alternati-
va encontrada nos muros das cidades andinas.

11
Mídia e Discurso

Não há discursos sem alteridade. Este livro foi tecido em con-


versas, discussões e leituras de inúmeras vozes. Entre essas, agra-
deço a Ci Ramos, Ruy Rocha e Williane Silva pelos comentários
e sugestões.

12
1 A ANÁLISE DE DISCURSO

‘As palavras e as coisas’ é o título – sério – de um problema;


é o título – irônico – do trabalho que lhe modifica a forma,
lhe desloca os dados e revela, afinal de contas, uma tarefa
inteiramente diferente, que consiste em não mais tratar os
discursos como conjuntos de signos (elementos que remetem
a conteúdos ou a representações ), mas como práticas que
formam sistematicamente os objetos de que falam.

Michel Foucault

O
leitor já deve ter percebido que há inúmeras escolas ou
orientações de análise discursivas. A que trabalhamos foi
desenvolvida, na França, a partir dos estudos do filósofo
Michel Pêcheux (1938-1983) e do linguista Jean Dubois (1926-
2015), no final dos anos sessenta. Mas foi, no Brasil, com as pes-
quisas de Eni Orlandi (1942 -), que a Análise de Discurso (AD)
de linha franco-brasileira se consolidou e proporcionou ressigni-
ficações às matizes e formulações iniciais.
Em princípio, delimito o que seria “discurso”: ele não se res-
tringe a uma troca de informações ou a uma mensagem; esse con-
ceito possui uma dimensão não somente comunicativa ou ima-
gética, mas também ideológica. O discurso é um efeito de sentido
que brota do cruzamento entre história, sujeito e ideologia.
Assim, a teoria discursiva não esgota as análises no espaço das
imagens e textos, mas considera o contexto amplo denominado
de condições de produção, ou seja, o quadro sócio-histórico e ide-
ológico que está imbricado em todo o fazer humano. A ideologia1

1 Segundo Orlandi, a “ideologia não se define como o conjunto de representa-


ções, nem muito menos como ocultação de realidade. Ela é uma prática signi-
ficativa; sendo necessidade da interpretação, não é consciente – ela é efeito da

13
Mídia e Discurso

é percebida como um efeito necessário para a geração de signifi-


cados.
Dessa forma, a noção de formações ideológicas perpassa o tra-
balho analítico, porque são desses lugares sociais que os sujeitos
interpretam os sentidos.
É nesse encontro entre um sujeito historicamente situado e
a sua formação ideológica que são gerados os efeitos de sentido;
logo, o discurso é algo dinâmico, mutável e suscetível às relações
sociais e históricas. Por conseguinte, essa teoria não propõe mo-
delos estanques de análise, mas mobiliza os conceitos a partir da
natureza dos fenômenos.
Outro aspecto é o que considera a heterogeneidade que com-
põe a produção na mídia e fora dela2. A teoria advoga que há uma
necessária interação entre discursos, em razão dos movimentos
da memória. De fato, o leitor, certamente, concordará que não
existe produção imagética isolada da cultura, da história e desco-
nectada do mundo.
O interdiscurso3, conforme Pêcheux, diz respeito ao movi-
mento da memória e à retomada de discursos já proferidos. Em

relação do sujeito com a língua e com a história em sua relação necessária, para
que se signifique”. ORLANDI, Eni. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do
trabalho simbólico. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 48.
2 Pêcheux denomina o “primado teórico do outro sobre o mesmo”, ou seja, o
primado da interdiscursividade. PÊCHEUX, Michel. A Análise do Discurso:
três épocas. In: GADET, Françoise; HAK, Tony. (Org.). Por uma análise au-
tomática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas:
Unicamp, 2001, p. 315.
3 Segundo Orlandi, o interdiscurso é o “saber discursivo que torna possível
todo dizer e que retorna sob forma de pré-construído, o já dito que está na base
do dizível, sustentando cada tomada da palavra”. ORLANDI, Eni. Análise de
discurso: princípios e procedimentos. 7. ed. Campinas: Pontes, 2007, p. 31. Se-
gundo Pêcheux, o interdiscurso ou memória discursiva “seria aquilo que, face
a um texto que surge como acontecimento a ler, vem estabelecer os ‘implícitos’
[...] de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio
legível”. PÊCHEUX, Michel. Papel da Memória. In: ACHARD, Pierre et. al.
Papel da memória. 2. ed. Campinas: Pontes, 2007, p. 52.

14
Adriano Charles Silva Cruz

outras palavras, pode-se dizer que o interdiscurso é um princípio


constitutivo da linguagem, marcado pela presença da “alteridade”,
já que não existe discurso adâmico, sem gênese na história. Assim,
todo discurso retoma, refuta, rememora, contradita ou silencia ou-
tros discursos.
Às vezes, é possível reconhecer a presença dessa interdiscur-
sividade pelas marcas materiais nos textos e imagens, tais como:
citações, discurso direto, ironia, refutações, paródia, paráfrase,
entre outros. É, em razão do movimento dessa “memória” que
nós produzimos sentidos no interior de formações ideológicas.
O discurso perpassado pela heterogeneidade não se restrin-
ge apenas aos textos. Há uma “prática intersemiótica4” que se re-
laciona a outros domínios semióticos como as imagens, os sons,
entre outros. Essa interpenetração de imagens, via memória, é
denominada de intericonicidade 5.
Em outras palavras, as significações são produzidas segundo a
formação ideológica do sujeito6. A partir da perspectiva althusse-
riana7, a Análise de Discurso defende que ideologia não opera no

4 MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Curitiba: Criar Edi-


ções, 2005.
5 Arbex parte da constatação de que o processo de “leitura”, ligado ao signo
verbal, também, pode ser aplicado ao signo plástico, às imagens. Entende que
nos textos sincréticos ou híbridos, sobretudo no processo de colagem, se pode
verificar um caráter intericônico: “esse cruzamento de “enunciados” encontra-
se pois nas colagens pictóricas, que se constituem da interferência de uma mul-
titude de outras imagens, de um mosaico de imagens. Mais à frente, conclui:
“para designar o caráter ‘intertextual’ das colagens, sugerimos então o neologis-
mo ‘intericonicidade’” . ARBEX, Márcia. Intertextualidade e intericonicidade.
In: I Colóquio de Semiótica da UFMG, 2000, Belo Horizonte. Anais... Belo Ho-
rizonte: UFMG, 2000, p. 1-12, p. 6.
6 Daí que o interdiscurso pode ser pensado como o conjunto de todas as forma-
ções discursivas que permite aos sujeitos falarem e silenciarem.
7 A representação de mundo ideológica é para Althusser uma representação de
mundo determinada pelas condições de existência. Essa “relação imaginária é
em si mesma dotada de uma existência material”. ALTHUSSER, Louis. Apare-
lhos Ideológicos de Estado São Paulo: Cortez, 1987, p. 90.

15
Mídia e Discurso

mundo como um espectro, e sim de maneira concreta nos sujeitos


e em sua relação com o mundo. Em outras palavras, a ideologia
se materializa para os homens por meio das práticas humanas, ou
seja, está entre o sujeito e as atitudes deste.
Nesse sentido, defendo o papel coesivo da ideologia na so-
ciedade e sua maneira de naturalizar os processos discursivos. A
ideologia e o inconsciente se inter-relacionam e marcam a subje-
tividade. A ideologia se materializa nas marcas dos textos e das
imagens a partir de suas condições de produção. Os sujeitos assu-
mem posicionamentos discursivos distintos; logo, é por intermé-
dio das formações discursivas que a ideologia se faz presente nas
materialidades visuais e linguísticas. Em síntese, as palavras e as
imagens significam a partir das formações ideológicas.
Desde sua origem, essa teoria discursiva articulou saberes de
outros campos. No final da década de 1960, o grupo pecheuxtiano
articulou no interior da “disciplina” as leituras althusseriana do
marxismo e a lacaniana da psicanálise com a linguística saussure-
ana8. Mais à frente, nos anos de 1980, houve a entrada da arque-
genealogia foucaultiana, em razão das pesquisas de Jean-Jacques
Courtine.
Com o início da midiatização da sociedade, naquela época,
houve um redirecionamento para análise das “línguas de vento”,
metáfora para as metamorfoses do discurso político à época, que
já se imbricava com a linguagem publicitária9. Dessa forma, as

8 Em 1975, no artigo escrito com Catherine Fuchs, Pêcheux apresenta essa


relação entre as disciplinas, nos termos: “o materialismo histórico como teo-
ria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria
das ideologias; - a linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos
processos de enunciação ao mesmo tempo; - a teoria do discurso como teoria
da determinação histórica dos processos semânticos [...] essas três regiões são
atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psica-
nalítica)”. PÊCHEUX, Michel; FUCHS, C. À propósito da AAD: atualização e
perspectivas. In: GADET, Françoise; HAK, Tony. (Org.). Por uma análise au-
tomática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas:
Unicamp, 2001, p. 163-164.
9 Conforme explica Courtine: “Certamente, trata-se de um recobrimento das

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Adriano Charles Silva Cruz

pesquisas se deslocaram dos grandes discursos, materializados


em textos, para o formigamento do dia a dia, materializados em
imagens, quase sempre mediadas pela mídia.
Até hoje, essa diversidade epistemológica compõe às análises
e as formulações teóricas. A análise discursiva da mídia, confor-
me emprego neste livro, dialoga profundamente com as ciências
sociais e com as teorias da comunicação10.

discursividades políticas tradicionais pelas formas breves, vivas e efêmeras do


discurso publicitário. Elas dotavam a fala pública de uma volatilidade da qual
as línguas de madeira estavam, sem dúvida, desprovidas”. COURTINE, Jean-
Jacques. Discurso e imagens: para uma arqueologia do imaginário. In: PIOVE-
ZANI, Carlos; CURCINO, Luzmara; SARGENTINI, Vanice. (Org.). Discurso,
semiologia e história. São Carlos: Claraluz, 2011, p. 147.
10 A AD no Brasil mantém uma ancoragem na história e nas relações sociais.
De maneira alguma, a disciplina pode ser encarada como uma Linguística
Aplicada, pois a relação pecheuxtiana com a linguística é sempre agônica, já
existiam inúmeras rupturas entre o pensamento do filósofo e o de Saussure na
constituição da teoria. Para Pêcheux, a língua é uma materialidade de natureza
linguística, mas também histórica. Nas palavras de Pêcheux e Fuchs, a língua
é o “lugar material onde se realizam os efeitos de sentido”. PÊCHEUX, Michel;
FUCHS, Catherine. À propósito da AAD: atualização e perspectivas. In: GA-
DET, Françoise; HAK, Tony. (Org.). Por uma análise automática do discurso:
uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 2001, p. 172.

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2 OS SENTIDOS NA FOTOGRAFIA11

A data faz parte da foto: não porque ela denote um estilo, mas
porque ela faz erguer a cabeça, oferece ao cálculo da vida, a
morte, a inexorável extinção das gerações: é possível que
Ernest, jovem, estudante fotografado em 1931 por Kertész,
ainda viva hoje em dia (mas onde? Como? Que romance!).
Sou o ponto de referência de qualquer fotografia, e é nisso
que ela me induz a me espantar, dirigindo-me a pergunta
fundamental: “por que será que vivo aqui e agora?”.

Roland Barthes

A
fotografia é uma das mais significativas expressões da cul-
tura ocidental. Durante anos, a relação com o referente foi
o paradigma que sustentou sua onipresença no cotidia-
no. Todavia, verifica-se uma crise e um tensionamento dessa sua
função indicial ou mimética da realidade a partir da “moderni-
dade líquida”. Fotógrafos refutam essa pretensão com trabalhos
destoantes do realismo, afastando-se do ideal de verossimilhança.
Imagens míticas, como as de Che Guevara, acompanham o
imaginário do homem apontando para a sua reprodução inces-
sante no atual estágio da modernidade. Por outro lado, a foto-
grafia compõe novos “lugares de memória” 12 que formarão os
quadros da “memória coletiva13” Nesse sentido, pululam imagens
que tangenciam a dor e apontam para outras alhures, num jogo

11 Uma versão deste texto foi publicada na revista Razón y Palabra.


12 Segundo Nora, a memória não tem uma natureza espontânea, mas é pro-
duzida em “lugares” que possuem os sentidos material, simbólico e funcional.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista
do Programa de pós-graduação em História da PUC, 10, 7-28, 1993.
13 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 2004.

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Adriano Charles Silva Cruz

de eterno diálogo com o passado.


Se, mesmo hoje, o desejo do real acompanha a produção fo-
tográfica, importantes movimentos estéticos descentraram essa
perspectiva, produzindo metáforas e alegorias imagéticas. Entre
essas imagens, estão as do fotógrafo americano Philip-Lorca di-
Corcia e os sentidos de nostalgia e solidão no cotidiano produzi-
dos em algumas de suas obras.
O fato é que inimaginável as nossas sociedades sem a presença
da fotografia. Utilizada nos mais diversos momentos, ela se pre-
sentifica no início ao fim da existência humana.
A imagem fotográfica é mais que um objeto, constitui-se em
uma “magia” na visão barthiana, capaz de tangenciar o real, per-
petuar a vida ou apontar a morte. A fotografia torna-se então um
fascinante objeto de estudo; além de ser uma das mais significati-
vas expressões artísticas da contemporaneidade.
Neste capítulo, mostro como a obra de Philip-Lorca diCorcia
está imersa na discussão sobre os efeitos do real14, a construção
de mitos e a redescoberta do cotidiano. O meu objetivo é trazer
provocações e questionamentos sobre a fotografia e a crise da re-
presentação, visando desautomatizar o olhar para esse objeto.

Do desejo do real às mitologias imagéticas


Desde o seu surgimento, a fotografia atrai a admiração dos ho-
mens. Um dos motivos desse fascínio seria a íntima relação da
foto com aquilo que denominamos de “realidade”, ou seja, seu
valor indicial. Ainda hoje, não poucos defendem que a foto te-

14 O próprio diCorcia entra no debate: “Há, nas minhas fotografias, uma si-
tuação artificiosa que resulta de uma construção minha, em que uso estas e
outras pessoas para representar determinadas narrativas. O que daqui se infere,
portanto, é tão intenso quanto seria se nada construísse ou nada encenasse, e
me propusesse a uma reportagem de natureza documental”. DICORCIA, Phi-
lip-Lorca. Notícias recentes do sonho americano. Disponível em: http://5dias.
net/2004/04/30/noticias-recentes-do-sonho-americano-republicando-a-mi-
nha-entrevista-ao-fotógrafo-philip-lorca-dicorcia-a-pedido-do-ezequiel/.
Acesso em: 20 jun 2004.

19
Mídia e Discurso

ria a função de registrar o mundo. “Mas será verdade? Se assim


for, como explicar que existam fotografias em preto-e-branco e
fotografias coloridas? Haverá, lá fora no mundo, cenas em preto-
-e-branco e cenas coloridas?”, questiona-nos Flusser15.
Advogo que o efeito de realidade da câmera fotográfica ou, em
outras palavras, de transparência ou espelhamento do mundo, é
um efeito ideológico, um apagamento das condições de produção,
conforme a teoria marxista de Althusser.
Todavia, essa é uma relação necessária e constitutiva, esta-
belecida a priori com o objeto fotografia. A aparelhagem técnica
constituída ao longo da história favoreceu esse “efeito ideológico”
de evidência do mundo lá fora, conforme defende Dubois: “A fo-
tografia [...] é considerada como a imitação mais perfeita da rea-
lidade. E de acordo com os discursos da época, essa capacidade
mimética procede de sua própria natureza técnica, de seu proce-
dimento mecânico, que permite fazer aparecer uma imagem de
maneira ‘automática’, ‘objetiva’, quase ‘natural’ (segundo tão-so-
mente as leis da ótica e da química), sem que a mão do artista
intervenha diretamente” 16.
A “ilusão especular da fotografia” tem sido refutada pelo atual
estado da arte: a maioria dos autores afirma que a fotografia não
é uma mera transcrição da realidade. As escolhas do fotógrafo,
desde a forma ao sentido, impõem limites e configura o objeto
representado.
No fotojornalismo, essa é uma questão-problema quando se
evocam os critérios de objetividade e a “vontade de verdade” que
norteiam a prática. Em uma perspectiva discursiva, as construções
fotográficas estão imbricadas no quadro contextual sócio-históri-
co e de uma cultura de visualidade: pululam imagens arquetípicas
ou mitológicas mediadas pelo aparato tecnológico. Assim, há um
trabalho de intervenção na construção da imagem, que desmoro-

15 FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ensaios para uma futura filosofia
da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985, p. 22.
16 DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 2001, p. 27.

20
Adriano Charles Silva Cruz

na o sonho da mimese total.


Nesse sentido, no espaço das cidades americanas, é possível
enquadrar imagens arquetípicas, como testemunha Philip-Lorca
diCorcia: “[...] os personagens fotografados desempenham deter-
minados papéis, ou representam, nas ruas, determinados arqué-
tipos”.
Ao fotografarmos, realizamos, por motivos óbvios, determi-
nadas escolhas, ou seja, damos um corte no tempo-espaço. O
momento do clique é a conclusão das nossas escolhas e, parafra-
seando Barthes17, o momento da morte. Por isso, reitero que, ape-
sar das tentativas do realizador, a fotografia não consegue senão
reproduzir uma parte do que denominamos de “real”.
Ora, se a reprodução do real tornou-se um sonho irrealizável,
esse desejo não foi arrefecido – o homem, por trás das câmeras,
não cessará de desejá-lo. Frustração e impossibilidade, na vida e
na técnica, posto que o “real é impossível”.
A fotografia segue onipresente e irresistível pelo século XXI,
no tempo da proliferação das imagens digitais. Seria apenas o re-
alismo que nos atrai? Se percebermos suas limitações na reprodu-
ção do “objeto mundo”, ainda assim, tem poder de nos emocionar
ao produzir certa imortalidade do objeto fotografado.
Dentre as imagens reproduzidas e propagadas na internet, o
Guerrilheiro Heroico de 1960 não perdeu a sua eloquência. Uma
das imagens mais conhecidas do mundo foi tirada por Alberto
Korda, quando Guevara tinha 31 anos, durante uma manifestação
pelas vítimas do atentado que explodiu o navio francês La Coubre
no porto de Havana.
O olhar longínquo, os cabelos longos, o figurino utilizado,
tudo isso contribui para despertar o interesse pela imagem. Essa
obra é mítica: Guevara remete a Cristo, com seus cabelo e barba
longos e o semblante sereno. Mas as condições históricas e dis-
cursivas de sua vida e de sua morte levaram o leitor a sentimentos

17 BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: 70, 1981.

21
Mídia e Discurso

não sentidos antes. A prova disso é que a foto foi somente publi-
cada seis anos depois do clique. Esse gap temporal foi necessá-
rio para a discursivização do revolucionário em mito, no qual as
imagens técnicas colaboraram de forma considerável. “Apesar do
Che ter negado a imagem de Cristo como ícone de sua vida [...]
essa imagem representa o destino aonde seus passos o conduzi-
ram, quando se transformou em um célebre christomimétés18 do
século XX” 19.
Figura 1: O guerrilheiro heroico, Alberto Korda, 1960.

Fonte: https://focusfoto.com.br/che-guevara/

Que imagens construímos de uma fotografia como aquela?


O que ela nos diz? Quem é o retratado? Quem sou eu? No jogo
imaginário de espelhos20, construímos sentidos para o objeto re-

18 “Um signo icônico de Cristo, uma figura quase divina, mas não por nature-
za e sim pela graça. Para adotar essa noção histórica à nossa época midiática
proponho o conceito de corpo icônico pela tecnologia midiática da imagem”.
ANDACHT, Fernando. Uma proposta analítica da imagem da celebridade na
mídia. Tecnologia e Sociedade. Curitiba, 2005, p. 127-150, p. 147.
19 Idem, p. 146.
20 PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, Françoise;

22
Adriano Charles Silva Cruz

presentado. Há os que verão nela a prefiguração do herói; outros,


a do Messias. Um deus ou um ateu, a fotografia de Guevara será
evocada em outros momentos históricos e lidas a partir das con-
dições históricas em circulação.
O Guerrilheiro Heroico é alguém que não está mais entre nós
– mas que já esteve. Eis a questão inquietante. Da mesma forma,
Barthes se admira ao contemplar uma foto, porque tem certeza
que a pessoa representada esteve ali, mas que agora não mais está.
Ou seja, a fotografia, ao mesmo tempo em que perdura o obje-
to representado, negação do tempo e da morte, paradoxalmen-
te, aponta-nos o fim, parafraseando Barthes o esteve ali, mas não
mais está21.

Imagens do cotidiano e da solidão


Se o interesse dos fotógrafos pelos mitos não se esvaiu com o tem-
po, a procura por assuntos do cotidiano ganhou força nos últi-
mos anos. Trata-se de lançar novas perspectivas para o homem
comum, “todo mundo e ninguém” na expressão de Michel de
Certeau. É esse o interesse do fotógrafo analisado, a banalidade do
cotidiano, expressa nesses termos: “quando comecei a desenvol-
ver trabalho em 1976, o que intentei foi reduzir o nível em que o
assunto, por si só, seria o critério do interesse da obra, propondo-
me, por isso, fotografar imagens tão banais quanto a de alguém
olhando para dentro de um frigorífico” 22.
É nesse campo do cotidiano que a ênfase no realismo se so-
bressai: fora do estúdio, na rua, nas cidades se flagra o homem em
sua vida ordinária. Mais uma vez, a fotografia realiza seu sísifo

HAK, Tony. (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à
obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 2001.
21 BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: 70, p.119.

22 DiCORCIA, Philip-Lorca. Notícias recentes do sonho americano. Disponí-


vel em: http://5dias.net/2004/04/30/noticias-recentes-do-sonho-americano-
-republicando-a-minha-entrevista-ao-fotógrafo-philip-lorca-dicorcia-a-pedi-
do-do-ezequiel/. Acesso em: 20 jun. 2004.

23
Mídia e Discurso

trabalho: aspira a ser reflexo do mundo.


As resistências a esse paradigma pode ser observada nas fo-
tografias e no discurso de Philip-Lorca diCorcia: “parto, efetiva-
mente de uma representação truncada da realidade, mas esta frag-
mentação não obsta que se conheça o que está representado” 23.
O trabalho com a luz, tornando-a um elemento estético, o
enquadramento dos personagens e um estranhamento na com-
posição fotográfica marca a obra do fotógrafo americano. Os per-
sonagens são dirigidos para conseguir a oposição ideal, aspirada
pelo fotógrafo. Paradoxalmente, as imagens constroem um efeito
de realidade, um realismo poético que deforma o objeto para pro-
duzir efeitos metafóricos. “O resultado é o de um realismo estra-
nho à fotografia analógica transportando-nos para o imaginário
de um ‘isto não foi’” 24.
A partir da década de 1970, desponta com seus trabalhos na
fronteira da realidade com a arte conceitual. Em muitas de suas
obras, as pessoas foram pagas para posar. O fotógrafo se interessa,
sobretudo, por temas destoantes do sonho americano: pobreza,
marginalidade e prostituição. “O que pretendo que ressalte com
clareza dos meus trabalhos é o facto concreto de que as figuras
aí reveladas estão presentes como indivíduos privados dos seus
direitos. Trata-se sempre de alguém que está excluído do espaço
desse tal ‘sonho americano’ — um espaço que irremediavelmente
jamais lhes será acessível, se é que para eles alguma vez o foi25”.
Esses temas não são retratados de forma documental, mas no
jogo de metáforas produzido pela encenação da realidade. “Penso

23 Idem.
24 FLORES, Victor. Questões emergentes das atuais negociações entre as cren-
ças da imagem analógica e da imagem digital. Disponível em http://www.por-
talseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/3434/ 2501.
Acesso em: 20 jan. 2018.
25 DiCORCIA, Philip-Lorca. Notícias recentes do sonho americano. Disponível
em: http://5dias.net/2004/04/30/noticias-recentes-do-sonho-americano-re-
publicando-a-minha-entrevista-ao-fotógrafo-philip-lorca-dicorcia-a-pedido-
do-ezequiel/. Acesso em: 20 jun. 2004

24
Adriano Charles Silva Cruz

antes que aquilo que se pode ver nestes trabalhos é uma repre-
sentação de várias tipologias, ou arquétipos, das classes baixas da
sociedade. Muitas destas pessoas provêm de famílias dissolvidas,
de instituições assistenciais ou de prisões” 26.
Ora, dessa forma, o olhar do fotógrafo se dirige ao cotidiano
americano e dá espaço a representação da “vida dos homens in-
fames27” em sua maioria, composta por prostitutos que trazem as
marcas de sua profissão inscritas na imagem: em cada foto há um
preço, registro do uso de seus corpos.
Figura 2: Catherine, 1980.

Fonte: https://www.moma.org/artists/7027?locale=pt&page=1&direction=

As paredes, a porta e o cobertor da cama são cor-de-rosa, o


contraste se dá com a figura de uma pessoa deitada, vestida com
calça azul e camisa preta. Que estranha fotografia! Seria mais co-
mum aproximar-se do corpo na cama. Por que o fotógrafo es-
colheu esse e não outro ângulo? Não saberemos responder. Essa
intenção ficará perdida para o sujeito receptor e, talvez, seja o me-
nos importante; interessa-nos o efeito construído pelas escolhas

26 Idem.
27 FOUCAULT, Michel. La vida de los hombres infames. La Plata: Altamira,
1996.

25
Mídia e Discurso

do fotógrafo. Portanto, o que se abre como perspectiva, nessa foto,


é o efeito de sentido de isolamento.
O personagem está só, apesar do olhar onisciente da câmera.
Ele pode ter sido fotografado em casa, num quarto de um motel
ou mesmo à espera do fim em um leito hospitalar. “Por que será
que ela vive ali e agora?28”, retomamos a pergunta de Barthes.
É esse movimento discursivo que, ao mesmo tempo, se vin-
cula com o real, constrói o efeito de sentido de solidão na ima-
gem. Nas fotografias de Philip-Lorca diCorcia29 não importa dar
todas as informações do personagem inscrito na tela: muito não
é dito, silenciado para constituir e intensificar o jogo de projeções
imaginárias do receptor. “O que se pode apreender a partir destas
fotografias não é muito menos que aquilo que se retiraria delas se
eu mostrasse tudo, ou se eu conhecesse estes indivíduos pessoal-
mente muito bem. Mesmo que tivesse passado dias consecutivos a
fotografá-los, procurando documentar os mais diversos aspectos
da sua vida, não estou certo de que com isso se ficasse a saber
mais acerca destas pessoas do que passando apenas uma hora a
fotografá-las”30.
Na tela, tem-se um personagem masculino, sem camisa, a
olhar do exterior para uma janela de uma provável lanchonete,
na qual se encontram alguns elementos típicos do ambiente: um
hambúrguer, um copo de refrigerante, um aparelho − elementos
metonímicos da cultura americana. A luz recorta o quadro, incide,
em ângulo de cerca de 70 graus, sobre o lado esquerdo do perso-
nagem, à direita da imagem. Essa iluminação provoca um contor-
no áureo, semelhante aos usados nas pinturas de santos medievais.
Essa figura é um paradoxo: ao mesmo tempo em que verossímil,
se apresenta na escolha imagética como surreal.
28 BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: 70, 1981.
29 As próximas fotografias integram a série Hustlers (1990-1992).
30 diCORCIA, Philip-Lorca. Notícias recentes do sonho americano. Disponível
em: http://5dias.net/2004/04/30/noticias-recentes-do-sonho-americano-repu-
blicando-a-minha-entrevista-ao-fotógrafo-philip-lorca-dicorcia-a-pedido-do-
-ezequiel/. Acesso em: 20 jun 2004.

26
Adriano Charles Silva Cruz

Figura 3: “Eddie Anderson; 21 years old; Houston, Texas; $20”, diCorcia,


1990.

Fonte: https://www.moma.org/artists/7027?locale=pt&page=1&direction

Os efeitos de sentido de solidão se agudizam pelos contrastes:


fotógrafo e representado estão de lados distintos da janela. Ade-
mais, tem-se o jogo de claro escuro e a contraposição dos objetos
e alimentos, embalados e organizados, com o corpo desnudo do
rapaz. Há outros gestos interpretativos possíveis: entendo que a
denúncia da exploração dos corpos, transformados em produtos,
e da desigualdade social estaria nas bordas da imagem, a partir
da interseção do tema, sujeito retratado e o macrocontexto social.
A noite absorve a claridade natural do sol. De braços cruzados,
vestindo uma camisa verde à mesa, encontra-se um jovem com ar
de tristeza. A luz e a sombra novamente inscrevem a imagem em
um barroquismo, produzido pelo fotógrafo, tais elementos cons-
troem os sentidos de dramaticidade. Uma imagem de embalagem
de Pepsi Cola denuncia um modo de vida, centrado no consumo
de produtos monopolizados por conglomerados capitalistas. So-
litário, a personagem parece refletir sobre algo que jamais pode-
remos saber.

27
Mídia e Discurso

Figura 4: “Brent Booth; 21 years old; Des Moines, Iowa; $30”, diCorcia,
1990.

Fonte: https://www.moma.org/artists/7027?locale=pt&page=1&direction

Essas imagens de gente simples são perpassadas pelo poder do


fotógrafo que os tornam “estranhas fulgurações31”. Esses homens
à margem do american way of life entram na esfera da visibilidade,
a partir das construções semiodiscursivas estabelecidas pelo apa-
rato e pelas determinações do fotógrafo. Dessa forma, essas vidas
breves se tornam, como denomina Foucault, “singulares, torna-
das, por obscuros acasos, estranhos poemas” 32.
Envolto no silêncio da noite e na ausência do movimento,
essa última imagem sintetiza a construção imagética de um su-
jeito-fotógrafo, inserido em uma formação ideológico-discursiva,
que rompe com o sistema de restrições imagético e hegemônico
que silencia os homens às margens sem, contudo, aderir a uma
ordem discursiva do espetáculo.

31 FOUCAULT, Michel. La vida de los hombres infames. La Plata: Altamira,


1996.
32 Idem, p. 121.

28
3 OS SENTIDOS NO DOCUMENTÁRIO33

Somos incessantemente forçados a torcer e moldar nossas


identidades, sem ser permitido que nos fixemos a uma delas.

Zygmunt Bauman

N
o capítulo anterior, observamos os efeitos de sentido em
imagens circunscritas no quadro fotográfico e na imo-
bilidade. Analiso, agora, as questões sobre identidade e
subjetividade à luz dos jogos da memória discursiva. E me dete-
nho sobre a articulação entre imagens e enunciados verbais.
A identidade está em crise, a solidez moderna se liquefez no
hibridismo contemporâneo. As grandes certezas e os fundamen-
tos sociais mais permanentes se dissolvem em uma época propícia
às transformações. E mais: as identidades, agora cambiantes, se
constroem a partir de uma perspectiva da visibilidade midiática.
Nos jogos de memória dos sujeitos e do aparato técnico constro-
em-se discursividades de si e do outro, ou seja, processos identitá-
rios. Ao rememorar acontecimentos, pensamentos, sentimentos e
emoções, os indivíduos vão se afirmando enquanto sujeitos sin-
gulares.
Tateando essa era de hipervisibilidade e espetacularização,
identifico no documentário contemporâneo pistas simbólicas
para se compreender a formação identitária por meio do discurso.
Elegi como norteador desta reflexão uma narrativa documen-
tal calcada no relato da vida de uma mulher, uma história encena-
da em frente às câmeras. O documentário brasileiro Elena (2012),
de Petra Costa, é marcado pelo hibridismo entre o real e o ficcio-

33 Uma versão desse texto foi publicada na revista Rebecca, Revista Brasileira
de Estudos de Cinema e Audiovisual.

29
Mídia e Discurso

nal e pela enunciação de mulheres, protagonistas desses discursos.


A questão-problema pode ser elaborada nos seguintes termos:
como a identidade das “personagens” é construída sob a instabili-
dade da memória na modernidade líquida?
Entendo que as imagens no aparato cinematográfico são re-
cortes de um construto de realidade ou uma ficcionalização de
elementos que buscam parecer verossímeis, sobretudo, no docu-
mentário.
A partir da definição desse problema, delineio como objetivo
a análise da construção identitária da narradora-personagem e di-
retora no filme em tela. Para isso, discutirei algumas enunciações
e cenas nas quais Petra Costa atualiza e reconstrói a memória fa-
miliar no processo fílmico34.
Em Elena, primeiro longa-metragem da diretora, temos a
carta de uma irmã viva para uma morta, narrativa recriada com
imagens reais e antigas de uma câmera caseira e sons em fita, gra-
vados ao longo dos anos pela irmã mais velha, que se suicida em
1990. Essa tragédia, também desenvolvida com imagens cinema-
tográficas profissionais, é o fio condutor da narrativa que mescla
elementos ficcionais com a jornada real de três mulheres, costu-
radas pelo destino e pela pulsão de morte: as irmãs Elena, Petra e
mãe delas.
Analiso como se desenham as identidades femininas a partir
da construção dessas memórias autobiográficas ou autoficcionais.
Ao estudar as identidades femininas na “modernidade líqui-
da”, à luz de um documentário híbrido, resvalo na questão fulcral
do cinema como um sistema de representação de mundo e de
construção da realidade.
O termo repraesentare significa, etimologicamente, tornar

34 A singularidade reside na narrativa autobiográfica e nos múltiplos papeis


desenvolvidos por Petra Costa (diretora, narradora, atriz e roteirista do filme).
Ela estreou como diretora de cinema, em 2009, com o curta Olhos de Ressaca,
onde, também, utiliza a história de familiares como fio da narrativa.

30
Adriano Charles Silva Cruz

presente uma abstração em um objeto ou por meio dele. Ao emer-


gir como tentativa de representação da realidade, o cinema docu-
mental, a partir dos Lumières, minimizou os efeitos da morte. Se
a fotografia representava o instante final, parafraseando Barthes35,
as imagens em movimento mobilizariam a roda da memória, per-
petuando a presença dos representados36.
A adoção da estética ficcional afronta a barreira do documen-
tário. Essas fronteiras deslocadas e errantes tornam cada vez mais
verdadeira a afirmação de que o cinema é um construto complexo
de representações, conforme afirmou Godard “nem arte, nem téc-
nica, um mistério”37.
Se as identidades são cambiantes, o gênero documentário as-
sim também se apresenta em Elena. No documentário, com sua
vontade de verdade, as fronteiras entre o representado e imaginá-
rio fílmico se confrontam e promovem questões de ordens filosó-
ficas, estéticas e existenciais. Ao permitir a encenação, Petra Cos-
ta desestabiliza o efeito mimético documental, recurso possível e
executável no contexto histórico da modernidade líquida.
O rompimento das fronteiras clássicas entre ficcional e real
se consolidou no documentário brasileiro a partir de uma série
de realizadores. A estética ficcional como afronta às normas do
documentário tem em Eduardo Coutinho38 o mais contundente
representante. Em Jogo de Cena (2006), o hibridismo entre a fic-
ção e a realidade forma um jogo cênico que combina elementos
ficcionais a partir de histórias reais e desconstrói o gênero, pro-
blematizando os seus limites e as suas fronteiras. Elena herda essa
filiação histórica, os jogos narrativos levam a um processo de es-

35 BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: 70, 1981.


36 Em Elena esse simulacro da presença provoca uma expectativa de que a pro-
tagonista ainda estaria viva.
37 GODARD, Jean-Luc. Histoire(s) du cinema. Paris : Gallimard-Gaumont ,
1998, p. 182.
38 O autor se destaca pelos documentários Santo Forte (1999), Babilônia 2000
(2001), Edifício Master (2004) e Jogo de Cena (2007).

31
Mídia e Discurso

tranhamento do documentário, lembro as questões feitas na pri-


meira vez que o assisti: como essas imagens reais foram gravadas?
Qual o sentido de se encenar a vida no cinema?
Esse procedimento estético nos permite extrapolar a máxima
de Zizek, quando desvela a construção do realismo nos reality
shows: “ainda que se apresentem como reais para valer, as pes-
soas que neles aparecem estão representando – representam a si
mesmas39”.
Em Elena (2012), essa autorrepresentação se exacerba na tes-
situra da narrativa: imagens filmadas em vida pela irmã morta se
mesclam com a narrativa em off e a representação de seu drama
familiar. O papel da mãe, personagem central do documentário,
se amalgama com a encenação de atrizes na cena final. A dança
nas águas mistura bailarinas profissionais com as personagens do
documentário produzindo um efeito palimpsesto e intericônico40.
Para Ramos, essas narrativas documentárias que se revelam
“ardilosamente” ficções não invalidam as definições do que é
documentário, stricto sensu41. Concordo com a afirmativa, mas
pressuponho que, nesses momentos, estamos próximos à noção
de acontecimento42, entendido como a irrupção de uma singu-
laridade única e aguda, no lugar e no momento de sua produção.
Esse acontecimento documental nos permite adentrar na análise
da identidade feminina.

Identidades costuradas
A crise da identidade é um acontecimento da “modernidade lí-

39 ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de


setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 26.
40 Nesse processo de diálogo e ressignificações das imagens, via memória, é
impossível não se evocar a pintura Ofélia de John Everett Millais.
41 RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal...o que é mesmo documentário? São Pau-
lo: SENAC, 2008.
42 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004.

32
Adriano Charles Silva Cruz

quida”. Segundo Bauman, o estágio atual da modernidade é mar-


cado por instabilidade de todas as ordens; ele alude à metáfora
do Manifesto Comunista para explicar esse processo: “‘Dissolver
tudo que e sólido’ tem sido a característica inata e definidora da
forma de vida moderna desde o princípio; mas hoje, ao contrário
de ontem, as formas dissolvidas não devem ser substituídas (e não
o são) por outras formas sólidas – consideradas ‘aperfeiçoadas’,
no sentido de serem até mais sólidas e ‘permanentes’ que as an-
teriores, e portanto até mais resistentes à liquefação. No lugar de
formas derretidas, e portanto inconstantes, surgem outras, não
menos – se não mais – suscetíveis ao derretimento, e portanto
também inconstantes”43.
Em obra anterior, Bauman44 defende que, durante séculos,
as relações sociais se mantiveram no domínio da proximida-
de. A construção artificial dos territórios permitiu um senso de
pertença à localidade que dava sentido aos habitantes. Naquelas
condições históricas, a identidade era evidente demais para ser
um problema, posto que calcada na proximidade geográfica, nos
domínios da localidade; todavia, quando o poder aglutinador da
vizinhança se reduz, a identidade emerge como desafio.
A identidade na contemporaneidade não seria mais essa “coi-
sa concreta”, mas, nem por isso, inexistente. É possível pensá-la
na construção narrativa de Elena como elemento aberto e em for-
mação, como revela a diretora Petra Costa que, após ler os diários
da irmã na adolescência, se identifica com as memórias escritas.
“Ali decidi um dia fazer um filme sobre este tema da crise de iden-
tidade entre as irmãs45.”.

43 BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro:


Zahar, 2013, p. 16, grifos do autor.
44 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
45 COSTA, Petra. Entrevista exclusiva. Petra Costa fala sobre o documentá-
rio Elena. Disponível em: http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noti-
cia-102960/. Acesso em: 20 de março de 2014.

33
Mídia e Discurso

Nessa modernidade líquida46 há uma série de “identidades”


inventadas ou à disposição dos sujeitos. Esse processo se constrói
antes do nascimento e perpassa os espaços e dispositivos sociais.
Bauman advoga que a identidade é um “conceito altamente con-
testado” 47. Essa afirmação nos leva a pressupor que a construção
de uma persona social e o reconhecimento de si como parte de um
grupo se dá no enfrentamento com a alteridade, como no caso do
filme em análise. É somente ao investigar as memórias de e sobre
Elena que Petra Costa consegue se desidentificar com a irmã.
Essas proposições refletem a importância da análise da cons-
trução identitária no documentário Elena. E mais: as narrativas
são elementos inquietantes para se compreender os atores numa
época de descentramento, hibridismo, paradoxos e mal-estar, ca-
racterística destes tempos.
Todo processo identitário é construído nos espaços da me-
mória e da lembrança. Halbwachs48 advoga que, por meio da me-
mória, o passado vem à tona, misturando-se com as percepções
imediatas, deslocando-as, ocupando todo o espaço da consciência.
Se a lembrança é de ordem subjetiva, a memória é social, forma-
da por pensamentos e experiências coletivas imbricadas. Dessa
forma, as lembranças de Petra Costa são assomadas a elementos
construtores de memória: os arquivos escolares e médicos, os di-
ários da irmã, o testemunho dos familiares, o retorno aos lugares
em que ela viveu.
Entendo que as lembranças dos indivíduos são construídas,
reconfiguradas, encenadas dentro do grupo social de seus atores e
do momento histórico de sua produção. E nem sempre esse pro-
cesso é pacífico, há lutas e resistências para os discursos memo-
rialísticos. Sarlo nos lembra que o passado é sempre conflituoso
e que é impossível reprimi-lo; enquanto existirem os sujeitos que
viveram os acontecimentos, as lembranças pessoais e coletivas

46 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.


47 Idem, p. 83.
48 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 2004.

34
Adriano Charles Silva Cruz

persistem: “É possível não falar do passado. Uma família, um Es-


tado, um governo podem sustentar a proibição; mas só de modo
aproximativo ou figurado ele é eliminado, a não ser que se elimi-
nem todos os sujeitos que o carregam [...]. Em condições subjeti-
vas e políticas “normais”, o passado sempre chega ao presente”49.
Esse conflito se evidencia quando a família de Petra Costa
tenta apagar as memórias da irmã o que, paradoxalmente, corro-
bora com o processo de investigação da diretora. O percurso de
construção de sua identidade/alteridade levará a narradora-cine-
asta a reconstruir tais fragmentos interditados a partir dos objetos
pessoais, discursos e imagens de Elena. Assim, esse exemplo nos
aponta a força do passado que, segundo Sarlo, “continua ali, longe
e perto, espreitando o presente como a lembrança que irrompe
no momento em que menos se espera ou como a nuvem insidiosa
que ronda o fato do qual não se quer ou não se pode lembrar”50.
A partir da “modernidade líquida” houve um ressurgimento
do “espetáculo do passado”, conforme aponta Sarlo, com a ênfa-
se na criação de objetos culturais (filmes, livros, espetáculos etc.)
e monumentos que tencionam construir passagens históricas.
Antes, era impensável a produção de um documentário, com fi-
nanciamento público e privado, sobre a história de uma mulher
anônima, posto que os grandes acontecimentos e temas sociais
eram privilegiados: “Esses sujeitos marginais, que teriam sido
relativamente ignorados em outros modos de narração do pas-
sado, demandam novas exigências de método e tendem à escuta
sistemática dos discursos de memória: diários, cartas, conselhos,
orações”51.
Toda história de vida está inscrita em corpos de sujeitos de-

49 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva.


São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 10, grifos
da autora.
50 Idem, p. 9.
51 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva.
São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 17, grifos
da autora.

35
Mídia e Discurso

sejantes, partidos pela fragmentação existencial de si. O incons-


ciente, como linguagem e processo, aponta a falta como condição
da subjetividade humana. Nesse sentido, através da arte, Petra
ressignifica a sua relação com a irmã, conforme declarou em en-
trevista: “ao longo do filme, Elena foi virando um ser humano, de
carne e osso, com diversas características. O processo era como se
eu constantemente estivesse ganhando uma irmã para em seguida
perdê-la de novo” 52.
Defendo que a palavra no documentário funciona como phár-
makon e mobiliza a ação das depoentes. O perder e reencontrar a
irmã produz efeitos dolorosos, mas ressignifica a lacuna do “ou-
tro”, conforme declarou a diretora na referida entrevista: “Foi
uma mistura de prazer e dor. A parte prazerosa foi que ganhei
uma irmã neste processo, já que tinha poucas lembranças da
Elena por ser muito pequena e a via meio como uma lenda. Ao
mesmo tempo, a dor foi muito grande porque tinha muito mais
consciência para entender o que realmente aconteceu e o quão
trágico foi” 53.
É no jogo da memória, calcado na configuração social e cole-
tiva, com a lembrança, pessoal e subjetiva, traduzido no falar das
personagens, construção simbólica, que o processo identitário vai
se conformando.

No emaranhado da memória
A identidade construída e encenada é produto relativo e provi-
sório da história de vida e das condições históricas e sociais. Em
frente às câmeras, os sujeitos ressignificam suas falas e produzem
discursividades distintas do cotidiano, seja pela exploração dos
recursos técnicos (closes, câmera na mão, imagens desfocadas, sa-
turação das cores, planos abertos, iluminação impressionista) ou

52 COSTA, Petra. Entrevista exclusiva. Petra Costa fala sobre o documentá-


rio Elena. Disponível em: http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noti-
cia-102960/. Acesso em: 20 de março de 2014.
53 Idem.

36
Adriano Charles Silva Cruz

por outros elementos dramatúrgicos (flashback, narração em pri-


meira pessoa, depoimentos, inserção de imagens reais, fotografias
e documentos) que promovem uma atmosfera memorialística e
poética à narrativa.
Acerca desse aspecto, Petra declarou que Elena se aproxima
do curta Olhos de Ressaca (2009), primeiro trabalho dela como
diretora de cinema: “onde (eu) havia descoberto esta estética mais
onírica e poética, (de) que havia gostado bastante. É também uma
forma de falar da memória e do sonho, usando bastante material
em Super 8, película, 16 mm e VHS” 54. Fica explícita a adoção
de uma estética híbrida que explora as reminiscências pessoais
de maneira realística, a partir de imagens não profissionais, e a
estética poética, evidenciada na direção de arte, na sonoplastia e
na fotografia.
A identidade, sempre dinâmica, precisa de um sujeito que
represente para si e para o outro uma maneira de se colocar no
mundo, seja por suas atividades, discursos e/ou memórias recon-
tadas. Há diferentes maneiras dessas “personagens” construírem
seus lugares de fala e suas apropriações da memória. Em Elena a
narração subjetiva evoca pertencimento e produz efeitos de pro-
ximidade e intimidade, ouvimos as memórias de Petra como se
lêssemos os seus pensamentos e sondássemos suas emoções. Se
rememorar no documentário é sempre ocasião de escolhas, cortes
e supressões, a memória no filme está, como as irmãs, fraturada
no limite do campo cinematográfico.
O postulado da alteridade como estruturante da identidade é
ponto pacífico numa perspectiva discursiva, mas é sempre bom
reafirmar que o sujeito sempre negocia com o “outro” suas identi-
ficações e desidentificações. É o que ocorre no processo de redes-
coberta e reconstrução das memórias de Elena.
O caráter dinâmico de identidade/alteridade leva-nos à análi-
se das personagens de Elena. Quem, afinal, são Petra e Elena Cos-
54 COSTA, Petra. Entrevista exclusiva. Petra Costa fala sobre o documentá-
rio Elena. Disponível em: http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noti-
cia-102960/. Acesso em: 20 de março de 2014.

37
Mídia e Discurso

ta? Como elas se constituem em diferentes subjetividades, apesar


dos mesmos desejos profissionais, amor à atuação, doença mental
e desejo de morte?
Só temos acesso a esses sentidos a partir da fala como materia-
lidade da memória e das rememorações. É nesse plano do simbó-
lico que empreendo a análise do funcionamento dessas imagens
documentais. Dessa forma, fiz um recorte no plano das falas das
personagens, embora reconheça que outros elementos narrativos
(música, enquadramentos, edição, luz, etc.) cooperam na produ-
ção de sentidos. Há um efeito narrativo a ser esclarecido: Petra
sempre se dirige à irmã no presente como se ela pudesse ouvi-la.
Para o espectador, isso gera uma expectativa de que Elena está
viva até o momento da revelação do seu suicídio.
A construção narrativa do filme da diretora-enunciadora
permite um discurso que reforça o amálgama identitário das per-
sonagens, ao rememorar uma fala do pai — talvez, o primeiro a
identificar (ou construir) tais semelhanças: “Na verdade, o nosso
pai sempre disse que eu e você herdamos esse sonho de fazer cine-
ma da nossa mãe. E no meio dessas fitas de vídeo, achei esse filme
que ela nunca me mostrou. É um filme mudo em que ela interpre-
ta a protagonista no tempo em que ela ainda sonhava em ser atriz
de Hollywood e beijar o Frank Sinatra. Assim se sentia mulher e
tentava escapar de um mundo em que se via desadaptada, incom-
preendida. Filha de uma tradicional família mineira, ela não viu
um lugar para si. A não ser casada, mulher, society”.
A identidade é sempre uma negociação entre o que os “outros”
nos atribuem e aquilo que reconhecemos como nosso. Petra não
apenas rememora o discurso paterno como também se identifica
com ele, mais à frente no filme, ela enuncia: “Hoje eu ando pela
cidade ouvindo sua voz e me vejo tanto em suas palavras que co-
meço a me perder em você”.
O deslocamento, o sentido de incompletude e vazio existen-
cial marcarão passagens relevantes do discurso das três mulheres.
A mãe, como Elena, deseja frustradamente ser atriz de cinema.
Tais desejos também não se realizam na vida da protagonista, ape-

38
Adriano Charles Silva Cruz

sar de convocada para vários testes em Nova Iorque, onde mora-


va, a efetivação do sonho não ocorre. Em off, Petra conta como a
irmã contactava os produtores, levava fotos, currículo, entrevistas,
mas não obtinha êxito: “os dias passam e ninguém te dá notícia.
Ninguém liga de volta. Você liga muitas vezes, mas te dizem para
esperar. Você não suporta esse tempo. Essa espera...”.
Sem conseguir lidar com a frustração profissional e existen-
cial, a personagem sucumbe ao suicídio.
Em diversos momentos, o documentário põe em destaque os
elementos biográficos que aproximam as duas irmãs. No início,
Petra narra um sonho recorrendo à metáfora do emaranhado,
nele, podemos observar profundas identificações das duas irmãs:
“Elena, eu sonhei com você esta noite. Você era suave. Andava por
Nova Iorque com uma blusa de seda. Procuro chegar perto. En-
costar. Sentir seu cheiro, mas quando vejo você está em cima de
um muro. Enroscada em um emaranhado de fios elétricos. Olho
de novo e vejo que sou eu que estou em cima do muro, mexendo
nos fios tentando levar um choque. E caio de um muro bem alto
e morro”.
No universo onírico, linguagem inconsciente por excelência,
a autoria das ações é dividida entre Petra e Elena, como elemento
indicativo das identidades móveis e em construção. A narração
de Petra agudiza a dramaticidade da narrativa, aos poucos o es-
pectador percebe os sentimentos envolvidos nas relações: a mor-
te precoce da irmã deixa a pequena Petra, então com sete anos,
perturbada, por isso, será levada ao acompanhamento médico
para diagnóstico e tratamento. Os sintomas neuróticos da filha
mais nova surgem a partir da consciência efetiva da efemeridade
humana e, com isso, o medo da perda da mãe. “Começo a fazer
promessas constantes. Que não vou comer mais sal, que vou su-
bir todas as escadas do nosso décimo nono andar de joelhos, que
nunca mais vou me olhar no espelho para ela não morrer”.
O caminho de Petra, treze anos mais nova que a irmã, é o
da identificação especular, quando adolescente, aspira ao sonho
interditado pela família: torna-se atriz. De certa maneira, esse

39
Mídia e Discurso

“sonho” fora construído por Elena, conforme depreendemos do


fragmento: “minha mãe disse que você, desde os quatro anos, sa-
bia que queria ser atriz. E parece que você sempre dava um jeito
de me pôr para contracenar com você” e “[...] me treina para ser
atriz”, conclui a rememoração.
Novamente, a identidade das duas se conecta: duas irmãs,
duas atrizes. Entre elas, o pesadelo da depressão e o medo mater-
no de que a filha mais nova se encaminhe para a autodestruição.
“Nossa mãe sempre me disse que eu podia morar em qualquer lu-
gar do mundo, menos Nova Iorque. Que eu podia escolher qual-
quer profissão, menos ser atriz”.
Contrariando a interdição materna, Petra ingressa no curso
de teatro em Nova Iorque. A proteção familiar tenta construir um
apagamento da imagem da irmã morta, mas o resultado é inócuo.
A filha caçula encaminha-se aos EUA, com os pertences da irmã,
para lhe reconstruir uma memória, enturvada pelo tempo: “que-
riam que eu te esquecesse, Elena, mas eu volto para Nova Iorque
na esperança de encontrar você nas ruas. Trago comigo tudo que
você deixou no Brasil”.
Petra não se mata, torna-se atriz e diretora de cinema, e cons-
trói pelo discurso uma ponte entre Elena e si. É nesse processo que
se dá o afastamento das duas e a consolidação de outra identidade
para a irmã mais nova, rompe-se o emaranhado e Petra se conso-
lida como “outra”. Esse processo de busca de investigação da voz
da irmã possibilita a transformação da realizadora-narradora: “O
medo de seguir seus passos começou a se desfazer. Eu comecei a
perceber que você, Elena, estava dentro de mim, querendo estar
em mim. Deixei de sentir isso, a começar a te buscar. Você foi,
ganhou forma e corpo renascendo para mim, mas para morrer
de novo. E eu com muito mais consciência para sentir sua morte
dessa vez, imenso prazer acompanhado da dor. Eu me afogo em
você e em Ofélias”.
Ao fim da narrativa, a diretora-realizadora realiza o grande
desejo da visibilidade, transforma a irmã e a mãe em personagens
do próprio documentário. Na tomada final, há um rio onde dan-

40
Adriano Charles Silva Cruz

çarinas profissionais, ao lado de Petra e mãe, encenam o suicídio


de si e da mãe. Num mar, um balé de Ofélias. Ao reconstruir os
desejos de vida e morte, Petra transforma a memória distante de
Elena num ritual de renascimento, ao que conclui: “Eu enceno.
Enceno a nossa morte. Para encontrar ar. Para poder viver. Pouco
a pouco as dores viram água, viram memória”. Em seguida, des-
taca indelevelmente a ação da memória: “As memórias vão com
o tempo. Se desfazem. Algumas não encontram consolo. Apenas
um alívio. Encontram brecha na poesia. Você é minha memória
inconsolável. Feita de sombra e pedra. E dela que tudo nasce e
dança”.
E termina o filme com o “sob o som” da música Dedicated
To The One I Love, do Mamas e Papas, cujo fragmento, diz: “toda
noite, antes de você ir para cama, baby/ Sussurre uma oração
por mim, baby/E diga a todas as estrelas acima:/essa é dedicada
a quem eu amo”.
Encenar as memórias enturvadas pelo tempo é reconstruir a
si mesma pelo fazer fílmico, como o faz a cineasta, antropóloga
de formação. Petra realiza uma etnografia de si mesma e de seu
entorno, conectando-se com os “espíritos” que povoam o ima-
ginário familiar. Ela exorciza o espectro do “outro” a partir da
constituição fílmica, pública e hiper-real. A vida na era da midia-
tização não pode ser apenas vivida, é preciso publicizá-la para os
outros. Para contar esse drama “verdadeiro”, à semelhança das
contadoras de histórias, a diretora recorre ao ficcional e à recons-
trução poética, desafiando limites dos gêneros fílmicos.
Desde a sua gênese, por meio do legado dos precursores como
Mèlies e Griffith, o cinema já se constrói um campo de experi-
mentações entre a ficção e o real. Essas experimentações chegam
às imagens hiper-realistas – cujas câmeras perscrutam toda a vida,
pensamento e ação das personagens – do final do século passado
e à ruptura da estética clássica do cinema documental que tem em
Elena um expoente. O que torna o filme singular é o foco subjeti-
vo da narradora-personagem e tom autobiográfico, autoficcional
e memorialístico.

41
Mídia e Discurso

A recepção favorável da crítica – foram mais de nove prêmios


em festivais – e do público – foi o documentário mais visto no
Brasil em 2013 – se ancora nas mudanças históricas de produção
e circulação dos produtos culturais. Nas últimas décadas, houve
uma revalorização do interesse pelas micronarrativas do cotidiano.
E, nesse esteio, volta-se a atenção para as histórias de vidas. Nessa
“guinada subjetiva55” processo de enriquecimento da memória na
reconstrução do passado, valorizam-se os relatos, o testemunho e
os discursos dos sujeitos que viveram in loco os acontecimentos.
Os discursos em Elena podem nos levar ao equívoco de pen-
sar que as relações de identidade/alteridade das personagens são
um processo apenas subjetivo e biográfico. Acredito que os pro-
cessos históricos – condições de existência – permitiram a ressig-
nificação dos sujeitos em tela. Entendo que há três grandes pro-
cessos intrínsecos à narrativa: a ênfase na subjetividade, ou seja, o
fortalecimento individual dos protagonistas da história, indepen-
dente de sua posição no grupo social; a aceitação da ruptura das
normais clássicas formais e a hipervisibilidade contemporânea e
o esgarçamento da construção da realidade.
Só foi possível produzir um documentário sobre uma biogra-
fia de uma anônima graças ao processo contemporâneo de esteti-
zação do cotidiano, como apontam os reality shows, homens co-
muns rompem a barreira da invisibilidade e encenam suas vidas
diante das câmeras. Já se defendeu que, a partir do atual estágio
da modernidade, os grandes mitos e as grandes narrativas abrem
espaço para as falas do dia a dia, para os discursos menores e para
a celebração do indivíduo.
É sintomático que o filme enfoque a vida e o desejo de uma
atriz profissional que, em tempo da hegemonia das mídias, so-
bretudo nos anos de 1980, quando se passa a história, tem como
grande meta o desejo de entrar no star system. As questões de
história de vida tocam o seio da sociedade capitalista, o sonho
hollywoodiano de Elena também é comungado por inúmeras ou-

55 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva.


São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

42
Adriano Charles Silva Cruz

tras ao redor do mundo.


As narrativas autoficcionais pululam no cotidiano: blogs, re-
des sociais, livros e filmes popularizam a publicação dessas his-
tórias. O voyeurismo e o narcisismo complementam esse suces-
so. Continuamos a olhar pelas frechas das fechaduras, sejam elas
construídas em madeira ou pixels.
Outra questão importante a se ponderar: na sociedade midia-
tizada, o hiper-realismo suplanta o real e se coloca como pres-
suposto da verdade; por exemplo, não importa a informação da
morte de Elena, é preciso ouvir os depoentes, exibir o laudo médi-
co, detalhar as reações da mãe em planos, zoom e câmera lenta. A
partir do pressuposto que vivemos uma era de vigilância de todos
com todos, num panóptico em rede, podemos generalizar a hipó-
tese de Aumont “todo filme é um filme de ficção” 56.

56 AUMONT, Jacques. Esthétique du film. Paris: Nathan, 1999, p. 70.

43
4 OS SENTIDOS NAS REVISTAS SEMANAIS57

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas


condições de produção se apresenta como uma imensa
acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido
diretamente tornou-se uma representação.

Guy Debord

D
epois do trágico acidente que vitimou o candidato à Pre-
sidência da República, Eduardo Campos, pelo Partido
Socialista Brasileiro (PSB), no dia 13 de agosto de 2014,
a então vice na chapa, Marina Silva (REDE), atrai os holofotes
midiáticos. Com a confirmação de seu nome como presidenciá-
vel, ela se torna capa de revista.
A partir desse acontecimento, delineio meu objetivo princi-
pal: analisar o processo de construção midiática da candidata da
“nova política”, nas três principais publicações semanais brasilei-
ras: revistas Época, Isto É e Veja, em agosto de 2014, quando Ma-
rina se tornava oficialmente candidata à Presidência.
As trilhas da história nos permitem perceber melhor a disputa
entre “formações ideológicas” distintas que se encontra em dis-
puta na “arena discursiva58” das reportagens. Em 2009, depois de
anos no Partido dos Trabalhadores (PT), Marina Silva se filia ao
Partido Verde (PV) e se candidata à Presidência da República pela
primeira vez em 2010. Considerada o grande destaque da eleição,

57 Uma versão deste texto foi apresentada no Congresso Ibero-americano de


Pesquisa em Comunicação em 2017 e teve financiamento da Secretaria de Re-
lações Internacionais da UFRN.
58 BAKHTIN, Mikhail. (Voloshinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São
Paulo, Hucitec, 1992.

44
Adriano Charles Silva Cruz

a ex-ministra do Meio Ambiente59 em boa parte dos dois gover-


nos do petista Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), alcança o
terceiro lugar nas pesquisas de opinião pública, com quase 20%
dos votos válidos, sendo uma alternativa à polarização histórica
entre o principal partido do governo (o PT) e o da oposição (o
PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira).
Em 2014, sem conseguir viabilizar a aprovação do seu novo
partido (Rede de Sustentabilidade), a candidata aceita ser vice na
chapa do PSB, ao lado do socialista Eduardo Campos. O amál-
gama dessa composição já apresentava divergências de posicio-
namentos ideológicos que se tornaram públicos após a morte do
socialista.
Para viabilizar a nova candidatura, era preciso pensar uma
nova estratégia. O marketing construiu, dessa forma, um ethos
inovador: Marina se apresentava como a candidata da “nova po-
lítica”, se contrapondo às práticas tradicionais da “velha política”
brasileira (patrimonialismo, apadrinhamento, política de alianças
pela governabilidade são algumas dessas práticas postas em sus-
peição).
Dentro dessas condições de possibilidade, analiso as relações
interdiscursivas60, a partir das seguintes questões: que imagens de
Marina Silva foram construídas? Que jogos de significações são
estabelecidos naqueles textos midiáticos?
Defendo, como hipótese, que o discurso da “nova política” em
confronto com polêmicas no interior da coalização PSB e Rede de
Sustentabilidade foi o acontecimento mais relevante a gerar um
discurso de suspeição à candidatura.
Relembro que o discurso é um “efeito de sentidos entre in-

59 Foi ministra do Meio Ambiente de 2003 a 2008.


60 “Este (o interdiscurso) é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar,
independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber
discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-cons-
truído”. ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7. ed.
Campinas: Pontes, 2007, p. 31.

45
Mídia e Discurso

terlocutores61”. Inseparável do conceito de ideologia, o discurso é


um de seus aspectos materiais. Em outras palavras, o discurso é o
locus no qual se articula a língua e a ideologia.
Analiso as matérias principais, enunciadas nas capas. Destaco,
ainda, três62 fotografias em que Marina Silva aparece.
Não há separação estanque entre as descrições das materiali-
dades (imagens e textos) e das análises, posto que a descrição e a
categorização dos fenômenos são práticas discursivas63.
A escolha do corpus da pesquisa se justifica pela relevância
que as revistas semanais ainda apresentam no contexto do jor-
nalismo brasileiro64. Segundo estudo do Instituto Verificador de
Circulação, em 2016, a Veja saltou de 260 mil assinantes digitais,
em dezembro daquele ano, para 345 mil, em fevereiro de 2017. A
Época, nesse período, passou de 50 mil para 94 mil assinantes on-
line. O instituto não apresenta dados atualizados das outras duas
publicações. Os últimos coletados foram os de 2014, naquele pe-
ríodo, a circulação total de revistas semanais foi de 3,65 milhões
de exemplares65. A pesquisa total não foi divulgada, apenas um
ranking parcial que apontava a revista Veja com a mais lida, entre
as semanais.
Em 2013, foram produzidas uma média de 1,08 milhão de

61 PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.


4. ed. Campinas: Unicamp, 2009.
62 Duas delas formam um campo de significação comum.
63 Para Orlandi “a construção do corpus e a análise estão intimamente ligadas:
decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursi-
vas”. ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7. ed.
Campinas: Pontes, 2007, p. 63.
64 Cf. MALAN, Mauro. Circulação das revistas em queda. Observatório da
Imprensa. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/
view/circulacao_das_revistas_em_queda. Acesso em: 17 setembro 2014.
65 Houve uma pequena retração, em 2012, a circulação foi de 3,75 milhões.
Disponível em: http://www.meioemensagem.com.br/home/midia/noti-
cias/2014/03/17/Circulacao-das-semanais-cai-2-7--.html#ixzz3DaXgUlyH.
Acesso em: 08 de junho de 2017.

46
Adriano Charles Silva Cruz

exemplares por edição. A diferença entre as outras é abissal:


a Época, segunda colocada, teve circulação de 392 mil e, a Isto É,
331 mil exemplares por edição.
No Brasil, as revistas semanais investem em produção gráfica
e de conteúdo, proporcionando o surgimento de discursos que
superam as premissas da objetividade jornalística. Ao lado dos
textos, as capas, as fotografias, os infográficos emitem posiciona-
mentos ideológicos e cooperam no processo de discussão pública.
Em 2014, os debates e os embates políticos promoveram um am-
biente propício para a circulação de dizeres e visualidades agonís-
ticas que se cruzaram nas imagens das revistas.

Narrativas, imagens e heterogeneidade nas revistas


A premissa de base defende que as narrativas jornalísticas, como
todos os discursos, são perpassadas pela heterogeneidade. O dis-
curso das revistas sobre Marina Silva é construído dentro do jor-
nalismo e, ao mesmo tempo, é atravessado por outros campos
como o religioso, o literário e o pedagógico, evidenciando, dessa
forma, a sua “tessitura palimpsesta”.
De acordo com Pêcheux, os discursos se constroem por ou-
tros: “algo fala (ça parle) sempre antes, em outro lugar e indepen-
dentemente” 66. O processo interdiscursivo é, pois, o gerador da
produção de sentidos. Ele opera por meio dos “já ditos”, enun-
ciados produzidos pela memória ou nas enunciações possíveis de
serem produzidas.
Dessa forma, diálogos e duelos entre campos distintos são
costurados nas narrativas jornalísticas. Citações, discursos indire-
tos, ironias, dados estatísticos são algumas das formas em que se
materializa a heterogeneidade nas reportagens.
Ressignifiquei67 o conceito de intericonicidade na análise de

66 PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.


4. ed. Campinas: Unicamp, 2009, p. 149.
67 CRUZ, Adriano Charles. A charge no governo Lula. Natal, EDUFRN, 2014.

47
Mídia e Discurso

imagens jornalísticas e tenho observado o papel fulcral da me-


mória na produção de sentidos: traços de outras imagens, ges-
tos, movimentos, cores, luzes e sombras emergem atualizados e
constroem um discurso a partir de outros “já vistos”. Há que se
considerar o papel da cultura da visualidade que nos permite re-
conhecer os códigos, indícios e sinais entre as imagens.
No mundo dominado pela mídia impressa e eletrônica, nosso
senso de realidade é estruturado por narrativas, conforme defen-
de Fulton68. Entendo que o jornalismo constrói discursos sobre
o mundo através de histórias e por uma série de procedimentos
comunicacionais e antropológicos (os mitos da objetividade e im-
parcialidade, o papel heroico do jornalista, os critérios de noti-
ciabilidade etc.) que pretendem ser verdadeiros. Não raro, essas
narrativas são edificadas a partir de simplificações (estereótipos,
clichês e mitos) que recontam os acontecimentos.
A narrativa, conforme Guilhaumou, Maldider e Robin, é um
tipo de discurso que não segue uma ordem cronológica de acon-
tecimentos. Há sempre “retrospecções, antecipações, rupturas
múltiplas da linearidade temporal” que produzem “a ordem fic-
cional da narrativa” 69.
Por fim, a partir de Silverstone70, defendo que não é possível
pensar a cultura ocidental sem considerar a ubiquidade das ima-
gens jornalísticas, notadamente na esfera da política e do espaço
público.
Ao lado de outras das mídias tradicionais e das sociais, as re-
vistas “agendam” 71 o surgimento dos debates públicos em tor-

68 FULTON, Helen Elizabeth et al. Narrative and media. New York: Cambrid-
ge University Press, 2005.
69 GUILHAUMOU, Jacques.; MALDIDIER, Denise; ROBIN, Regine. Discurso
e arquivo: experimentações em análise do discurso. Campinas: Editora da Uni-
camp, 2016, p. 29.
70 SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia?. 3. ed. São Paulo Loyola,
2011.
71 MCCOMBS, Maxwell E. A teoria da agenda: a mídia e a opinião pública.

48
Adriano Charles Silva Cruz

no dos temas veiculados. Os discursos, por seu turno, constroem


narrativas sobre o mundo produzindo sentidos, posicionamentos
e explicações sobre os fenômenos.

As imagens nas capas das revistas


A primeira pesquisa Datafolha realizada, apenas cinco dias da
morte de Eduardo Campos, mostrava Marina Silva, ainda pro-
vável substituta do ex-governador de Pernambuco, com 21% das
intenções de voto. Na pesquisa anterior do mesmo instituto, em
15 de julho daquele ano, Campos tinha apenas 8%, portanto hou-
ve uma guinada da candidatura do PSB.
A produção das capas é um dos principais artifícios para se
conquistar os leitores. Expostas nas bancas, nos anúncios, na web
e nos outdoors, elas atraem os potenciais compradores e constro-
em significações que podem ou não ser confirmadas nas matérias
a que se referem.
Figura 5: mosaico das capas das revistas semanais.

Fonte: elaborado pelo autor.

A maioria de nós, leitores, fica, em algum momento, absorta


na leitura de uma capa de revista. Por conseguinte, as estratégias
comunicacionais e de marketing são dirigidas, com afinco, a essas
imagens, capazes de não apenas “vender o produto”, mas con-

Petrópolis: Vozes, 2009.

49
Mídia e Discurso

quistar posições, segundo Scalzo72.


Duas revistas (Época e Veja) trazem questionamentos dire-
tos à candidata: “Até onde ela vai?” e “Marina presidente?”. Já a
revista Isto É enuncia um claro posicionamento destacando suas
“contradições”.
As capas de Época e Veja são visualmente semelhantes, cons-
truídas por retratos bem aproximados que se diferenciam apenas
pelo fechamento do quadro. Aqui se opera um efeito da interico-
nicidade, a memória de outras capas de revistas, que constroem
maior visibilidade para o rosto e o olhar73. Têm-se, nas duas, um
close da candidata, a câmera é posicionada em contraplongé – de
baixo para cima – há um esboço de sorriso.
Na revista Veja, a luz incide da esquerda para a direita em
toda a extensão da cabeça e do pescoço, o cabelo está preso sem
fios revoltos. No lado oposto, há um efeito de sombreamento. As
sobrancelhas estão levantadas e olhar se dirige ao céu, construí-
do um efeito de aura mística, por vias intericônicas, tem-se uma
construção comumente usada na figura dos santos e imagens reli-
giosas. Já na revista Época inverte-se a direção da luz. Em comum,
há construção de uma atmosfera solene em torno de Marina, pro-
duzida por operações da memória discursiva.
A personagem não parece posar para as fotos, constrói-se um
efeito de naturalidade, embora, maquiada e sem grandes imper-
feições no rosto, tratamento digital realizado por softwares espe-
cíficos. A verticalização da imagem e os focos luminosos produz
altivez e chama atenção para o rosto. Há um equilíbrio entre foco
e desfoco nos hemisférios do quadro.
A aura etérea “photoshopada” é cindida pelo texto que ques-
tiona o percurso da candidata: “Com a entrada da ex-senadora
como um furacão na corrida eleitoral, o Brasil tem pouco tempo

72 SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. São Paulo: Contexto, 2003, p. 62.


73 Cf. CRUZ, Adriano Charles. “A construção da insegurança econômica nas
capas da revista Veja”. BOCC, Biblioteca Online de Ciências da Comunicação
[online]. 2008.

50
Adriano Charles Silva Cruz

para saber se ela é apenas uma miragem ou opção política de ver-


dade” complementa o texto da Veja. Enquanto a revista Época
apresenta “As ideias, as chances e os limites da candidatura de
Marina Silva à presidência”. O termo “limite” reforça a suspeição
discursiva à candidata, reforçada no interior do texto, como ve-
remos.
Em Isto É, há outra construção imagética: a personagem está
enquadrada de perfil, encoberta em penumbras e sombras, só ve-
mos nitidamente a boca, o contorno do nariz e um dos olhos. Não
há pose, o olhar se volta ao nada, para o extraquadro. A constru-
ção intericônica é barroca, contrastiva, se agudiza com a manche-
te em branco, escrita em caixa alta e com variações no estilo e no
tamanho da fonte: “As contradições de Marina” preenchem mais
da metade de um dos hemisférios do quadro. A superfície escura
se sobressai, predominam os tons escuros, evocando, via memó-
ria discursiva, os efeitos de mistério e medo.
Essa construção discursiva é intensificada pelas adjetivações
e advérbios que se seguem: “Ela sempre teve ideias radicais, posi-
ções intolerantes e falta de clareza nas propostas. Com sua volta à
corrida presidencial, já provoca rachas entre os aliados e desperta
mais dúvidas e receios que certezas”. O advérbio “sempre” apaga
o movimento histórico, cristalizando as ideias de Marina. A revis-
ta destaca, em amarelo, os termos “posições intolerantes” e “racha
entre os aliados”. Ora, se até os aliados discordam dessa “intole-
rância”, conseguiria ela então se tornar a presidente da República?
É, por vias parafrásticas, o que essa construção jornalística indaga.
Opera-se um discurso de suspeição da candidatura de Marina,
embora modalizado em Época, pois, também, apresenta “ideias”
e “chances” e, na Veja, Marina pode ser “uma opção política de
verdade” e não um engano ou um “furacão”.
Essa primeira aproximação do discurso das revistas já nos
permite concluir que os jogos imagéticos e as relações intertextu-
ais e intericônicas provocam uma atmosfera negativa e de descon-
fiança a Marina Silva. Vejamos como as reportagens aprofundam
essa discursivização.

51
Mídia e Discurso

A desconfiança em torno de Marina


Conforme indiquei, a revista Época apresenta duas reportagens
sobre a candidata: “Até onde ela pode ir?”, por Aline Ribeiro e
Alberto Bombig74 e “Será que ela é amiga dos negócios?”, de José
Fucs75. Em diálogo intratextual, logo depois das matérias, apre-
senta uma entrevista76 com a senadora Kátia Abreu (PMDB), uma
das principais representantes da chamada “bancada do boi”, o se-
tor do agronegócio. Entre aspas, há um destaque para a fala da
senadora “Marina fez da questão ambiental uma religião” 77.
Do conjunto de textos de Veja , o último, “No labirinto sonhá-
tico”78, de André Pety, traz uma caricatura de Marina Silva, com
traços grotescos, entrando em um labirinto. Como o próprio títu-
lo enuncia, a narrativa jornalística põe em dúvida as propostas da
candidata que “está num labirinto, mas é cedo para dizer se está
perdida ali dentro” 79.
Apesar das especificidades e das escolhas enunciativas dos jor-
nalistas, há pontos comuns entre as matérias analisadas: os recur-
sos às narrações, às descrições, às paráfrases e aos “julgamentos”
se amalgamam na tessitura palimpsesta das reportagens. Citações,
discurso indireto são modalidades que os repórteres utilizam para
promover efeitos de “objetividade”.
Os efeitos de objetividade mascaram o recurso da retomada

74 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir?. Época. Rio de
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 26-31.
75 FUCS, José. Será que ela é amiga dos negócios? Época. Rio de Janeiro: Globo,
edição. 846, 25 agosto 2014, p. 33-34.
76 FUCS, José. Entrevista com Kátia Abreu. Época. Rio de Janeiro: Globo, edi-
ção. 846, 25 agosto 2014, p. 36-38.
77 Idem, p. 36.
78 PETY, André. No labirinto sonhático. VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388,
27 agosto 2014, p. 66-67.
79 Idem, p. 67.

52
Adriano Charles Silva Cruz

de ideias, nomes e acontecimentos. Assim, conforme defendi80,


inexiste sinonímia perfeita. A nomeação é um processo perpas-
sado pela ideologia, ou seja, as palavras significam por relação de
transferência na qual “o sentido é sempre uma palavra por uma
expressão ou proposição por uma outra palavra, expressão ou
preposição”81.
Figura 6: caricatura de Marina Silva.

Fonte: Veja (2014b)

Pêcheux denomina esse processo de efeito metafórico, “um


fenômeno semântico que consiste na substituição contextual de

80 CRUZ, Adriano Charles. A charge no governo Lula. Natal, EDUFRN, 2014.


81 ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7. ed.
Campinas: Pontes, 2007, p. 44.

53
Mídia e Discurso

dois elementos que compartilham sentidos um com outro” 82.


Entre as diversas nomeações encontradas (candidata, cabo
eleitoral, evangélica, entre outras), há um efeito metafórico que
nos chama a atenção: a figura mitológica da esfinge: a presiden-
ciável é “uma esfinge83”, para a Veja, ou uma “esfinge política84”,
para a Isto É. Recorrendo à memória do discurso literário-dra-
matúrgico, sabemos da dificuldade dos heróis em lidar com esse
ser: em Édipo Rei, de Sófocles, era preciso decifrar um enigma
para não ser “devorado” pelo monstro. Portanto, estamos diante
de um segmento de julgamento negativo.
Outro processo discursivo eivado de julgamento axiológico é
o da adjetivação, ao atribuir sentidos e valores às coisas e às pesso-
as, os jornalistas constroem relações parafrásticas e metafóricas
sobre a candidata85. Dentro do léxico de adjetivações, elegi alguns
que dialogam com o discurso de desconfiança à candidata: “Aura
mítica”, em Época86, “comportamento quase messiânico”, na Isto
É87 e “Pentecostal para lá de devota”, em Veja88. Em comum, as
três adjetivações giram em torno do universo mítico-religioso. Na
82 PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, Françoise;
HAK, Tony. (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à
obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 2001, p. 96.
83 BARROS, Mariana; CEOLIN Adriano; COURA Kaleo. Quão sustentável ela
é? VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388, 27 agosto 2014, p. 60.
84 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina? Isto
É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 37.
85 Segundo Orlandi, existem de dois movimentos de produção de sentidos: a
“paráfrase” e a “polissemia”. A primeira é da ordem do repetível, porque está
ligada à memória. Já o processo polissêmico desloca os sentidos, é o espaço da
ruptura e da transformação dos enunciados. Cf. ORLANDI, Eni. Discurso e
leitura. São Paulo: Cortez, 1988.
86 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 30.
87 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina? Isto
É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 37.
88 PETY, André. No labirinto sonhático. VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388,
27 agosto 2014, p. 67.

54
Adriano Charles Silva Cruz

Isto É, há um período textual que aprofunda essa desconfiança, já


que a candidata oculta traços de sua personalidade: “A evangéli-
ca fervorosa de aparência frágil esconde uma personalidade forte,
geralmente inflexível e com escassa capacidade de articulação” 89.
Segundo Guilhaumou, Maldidier e Robin90, entre outras mo-
dalidades, “os segmentos de julgamentos” podem ser marcados
por advérbios, adjetivos e determinados verbos. Nesse sentido, se
constrói um “deve ser”, como nos extratos seguintes da revista
Época. Neles, os jornalistas constroem expectativas e direciona-
mentos para as ações e falas da candidata: “Marina precisa domar
suas convicções para não se tomar vítima delas” 91 e “Marina pre-
cisa apresentar no mínimo disposição para esse tipo de atitude, já
durante a campanha” 92.
Ou ainda, no julgamento acerca do discurso da “nova políti-
ca”, como no fragmento da revista Veja: “Toda essa contenda não
cai bem a uma política que tem como estratégia manter o tom
emocional contra o lamaçal partidário, encarnada as tão ansiosas
mudanças” 93.
Por outro lado, Época abre a matéria principal “Até onde
ela pode ir?”, a partir de um narrador onisciente, aos moldes do
discurso literário. “Na madrugada do dia 30 de agosto de 2009,
Marina Silva despertou num quarto de hotel em São Paulo e não
dormiu mais” 94. O narrador perscruta até os sentimentos dela

89 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina? Isto


É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 37, grifos meus.
90 GUILHAUMOU, Jacques; MALDIDIER, Denise; ROBIN, Regine. Discurso
e arquivo: experimentações em análise do discurso. Campinas: Editora da Uni-
camp, 2016, p. 35.
91 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 28, grifos meus.
92 Idem, grifos meus.
93 GASPAR, Malu. Casamento em crise. VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388,
27 agosto 2014, p. 65.
94 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de

55
Mídia e Discurso

“sentiu-se sozinha em meio a uma multidão de desconhecidos” 95


e constrói a imagem de uma candidata desequilibrada emocional-
mente: “O descontrole era tanto que uma de suas filhas saltou da
cama e seguiu em sua direção” 96. As sequências das ações da per-
sonagem são descritas, passo a passo, como numa cena cinema-
tográfica: “Na tentativa de se recompor, Marina levantou, tomou
um banho e fez uma oração” 97. Apenas cinco páginas depois, vem
a explicação: os fragmentos são trechos do livro Marina, a vida
por uma causa, escrito por Marília Camargo César.
Figura 7: O sistema solar marineiro.

Fonte: Época (2014)

Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 26.


95 Idem.
96 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 26.
97 Idem.

56
Adriano Charles Silva Cruz

A revista apresenta ainda um infográfico em forma espiralada,


“O sistema solar marinheiro” 98, em que ela aparece ao centro –
como estrela – a iluminar os planetas – os seus 12 aliados, em ma-
tizes da cor amarela. Os corpos celestes estão divididos em graus
de importância e influência: os planetas classe C são “os marinei-
ros que deverão ganhar relevância até as eleições”, a classe B estão
“nomes que ganharam poder com a nova estrutura da campanha”
e, em A, “conselheiros políticos e econômicos de Marina Silva”.
Entre esses planetas, estão nomes socialistas (Luíza Erundi-
na-PSB), marineiros, mas também nomes ligados a setores con-
servadores e ao mercado: Walter Feldman “ex-deputado tucano”;
André Lara Resende “ex-presidente do BNDES no governo Fer-
nando Henrique” e Maria Alice Setúbal, “acionista do Banco Itaú
e coordenadora do programa de governo de Maria”. Esse amálga-
ma de posicionamentos ideológicos e discursivos intensificaram
os movimentos críticos à presidenciável.
Em diversos momentos nos textos, o discurso de desconfian-
ça emerge posto que “Marina tem fama de intransigente99” e “per-
sonalidade forte” 100. A mudança para um novo partido (Rede de
Sustentabilidade) também gera inquietação: “Essa possibilidade
lança muitas dúvidas em relação às relações (sic) institucionais
de uma eventual gestão Marina”, continua a revista na página se-
guinte.
Com relação ao mercado, o discurso construído também é o
de suspeição. “Apesar da reação positiva dos investidores à esca-
lada de Marina, ainda parece cedo para afirmar se ela será ‘ami-
ga’ de verdade do mercado” 101. No final dessa segunda matéria, a
expectativa é que ao terminar a campanha, Marina possa mostrar

98 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 30.
99 Idem.
100 Idem, p. 31.
101 FUCS, José. Será que ela é amiga dos negócios? Época. Rio de Janeiro: Glo-
bo, edição. 846, 25 agosto 2014., p. 33, grifos originais.

57
Mídia e Discurso

efetivamente como se consolidará sua condução econômica: “Isso


a tornaria uma candidata ‘confiável’ para os negócios” 102.
É interessante observar que, para a revista Veja, o mercado
“esse ser diáfano e implacável que precifica tudo, mas sem o qual
não se descobriu ainda uma maneira de se viver, aprovou Mari-
na” 103. Uma das razões para isso foi quando “começou a acenar
para o mercado financeiro com a promessa de um Banco Central
autônomo” 104.
Portanto, ungida pelo capital, a reprovação maior dela é por
defender as novas formas de representação popular. Para os jor-
nalistas, a adesão de Marina a esses novos arranjos políticos é um
“terreno movediço, capaz de desestabilizar todas as convicções
sadias” 105 da candidata. Por fim, o discurso jornalístico constrói
uma reação negativa à democracia, conforme lemos no fragmen-
to do mesmo texto: “as democracias morrem pelo excesso de de-
mocracia”.
Os jornalistas de Veja enfatizam os aspectos cronológicos e
biográficos da presidenciável. Apresentam quatro fotografias an-
tigas mostrando fragmentos da história de vida: imagens da então
jovem em Xapuri (Acre), ao lado de Chico Mendes e com Lula e
outros políticos nas eleições de 1994.

102 Idem, grifos originais.


103 PETY, André. No labirinto sonhático. VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388,
27 agosto 2014, p. 66.
104 Idem, p. 67.
105 Idem, p. 66.

58
Adriano Charles Silva Cruz

Figura 8: imagem de Marina no Acre.

Fonte: Veja (2014)

Em preto e branco, a imagem mostra Marina em posição de


liderança, caminhando com o rosto taciturno e a cabeça levemen-
te abaixada. A memória nos remete a uma gestualidade ligada ao
trabalho, à luta. É a Marina trabalhadora rural que retornará na
foto ao lado do operário Luiz Inácio Lula da Silva.
Figura 9: conjunto de imagens em linha do tempo.

Fonte: Veja (2014)

59
Mídia e Discurso

Esse conjunto de imagens intitulado “Onde ela estava em…”


busca reconstruir trajetórias, ideias e temas da candidata ao longo
de sua vida. Partes importantes da história recente do país (Gol-
pe Militar, Diretas, Morte de Tancredo Neves, Confisco do Plano
Collor, Impeachment de Fernando Collor, Plano Real, 11 de se-
tembro, Eleição de Lula e Escândalo do mensalão) se cruzam com
a vida de Marina. O que ela pensava, agia e fazia nesses aconteci-
mentos? São as questões norteadoras do quadro.

As polêmicas sobre Marina


As articulações políticas foram costuradas para tornar Marina Sil-
va a “cabeça de chave”, apesar da desconfiança de parte do PSB.
A imprensa não deixou de veicular essa polêmica, apontando os
jogos políticos entre os grupos rivais. Outro aspecto que causou
tensão foram as resistências históricas de Marina ao agronegócio.
Além de descrever os pontos de tensões, as narrativas trazem um
receituário sobre como melhorar: são prescrições (deve ser/pre-
cisa ser) e segmentos de julgamentos que marcam uma posição
ideológica das revistas.
No dia 20 de agosto, a executiva nacional do PSB oficializou
a candidatura, antes da definição, dirigentes do partido e Marina
discutiram os papéis no processo. Ao assumir, Marina Silva ins-
tituiu uma nova equipe para coordenar a campanha eleitoral, o
que causou reações no grupo político. O então coordenador geral
da campanha de Eduardo Campos e secretário geral do partido,
Carlos Siqueira, foi substituído pela deputada Luíza Erundina,
também do PSB, a pedido da candidata.
A narrativa desse acontecimento se presentifica nas três revis-
tas. As citações diretas e indiretas constroem uma tessitura hete-
rogênea que reforça a desconstrução da candidata, nomeada por
antigos aliados como “hospedeira”, conforme a Época106 e a Isto

106 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014.

60
Adriano Charles Silva Cruz

É107, e aquela que “não representa o legado de Campos” 108.


Marina também “toma as decisões sozinhas, fechada em co-
pas”109, continua a revista, “decide lentamente” 110, segundo a Veja
e, ainda por cima, tem uma “postura autoritária, continua a ma-
téria. Portanto, o eco das polêmicas na mudança da equipe coor-
denadora intensificou ainda os movimentos de desconstrução da
imagem pelos jornalistas.
A revista Veja foi a mais enfática em tencionar essa relação.
Trago dois excertos que explicitam a polêmica em torno das mu-
danças:

Seus parceiros de aliança se insurgiam contra o que consideram


uma postura autoritária. E escancararam as críticas que antes lhes
faziam à boca miúda. Eles precisam de Marina tanto quanto ela
depende deles, mas isso não refreou o ímpeto da guerra por po-
der que arrisca fissurar a costura cuidadosamente construída por
Campos ao longo dos últimos meses – e ainda macular a imagem
da ex-senadora representante de uma “nova forma de fazer políti-
ca”, com a qual pretende ancorar sua estratégia eleitoral111.

Toda essa contenda não cai bem a uma política que tem como es-
tratégia manter o tom emocional e se lançar como uma líder alheia
ao lamaçal partidário, encarnando assim as tão ansiadas mudanças.
[...] Afinal, ter o nome arrastado para o centro de uma disputa de
poder típica da velha política só vai fazer Marina soar como uma
candidata igual aos outros112.

107 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina?


Isto É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 40.
108 Idem.
109 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina?
Isto É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 39.
110 BARROS, Mariana; CEOLIN Adriano; COURA Kaleo. Quão sustentável
ela é? VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388, 27 agosto 2014, p. 60.
111 GASPAR, Malu. Casamento em crise. VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388,
27 agosto 2014, p. 64.
112 Idem, p. 65.

61
Mídia e Discurso

O léxico adotado transpõe termos próprios do discurso bélico (in-


surreição, guerra e estratégia) para o jornalismo, o que intensifica
os efeitos de sentido de tensão e negatividade.
Além dos segmentos de julgamentos, identifico, especialmen-
te em Época, um discurso normativo para a candidata: “candida-
tos de verdade precisam ser agregadores e ter propostas realistas”
113
. E, mais à frente, continuam os jornalistas: “Marina precisa
apresentar no mínimo disposição para esse tipo de atitude, já du-
rante a campanha. Ela tem de mostrar que é a terceira via do diá-
logo e da união, não a terceira via da exclusão”.
A preocupação com o futuro do agronegócio numa possível
vitória de Marina também se presentifica nas três revistas. Em ou-
tro momento, mostrei a força do discurso neoliberal114 no jorna-
lismo brasileiro e os pontos de tensão entre resistência e poder115.
Para obter um contraste entre os discursos de Marina e a pro-
dução do agronegócio, as três revistas mostram dados numéricos
sobre o potencial produtivo para a economia: 23% do PIB, diz
a narrativa da Isto É116, 25% afirma a senadora Kátia Abreu, em
entrevista à Época117, e “60% acima da média” da produção ame-
ricana, afirma a revista Veja118.
Em oposição, é fácil identificar a construção de uma atmos-
fera de medo: caso eleita, por sua histórica defesa ao meio am-
113 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 28, grifos meus.
114 No contexto brasileiro, a hegemonia neoliberal na mídia é denunciada por
KUCINSKI, Bernardo. Jornalismo na Era Virtual: ensaios sobre o colapso da
razão ética. São Paulo: Unesp, 2005.
115 Cf. CRUZ, Adriano Charles. A charge no governo Lula. Natal, EDUFRN,
2014.
116 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina?
Isto É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 40.
117 FUCS, José. Entrevista com Kátia Abreu. Época. Rio de Janeiro: Globo, edi-
ção. 846, 25 agosto 2014.
118 BARROS, Mariana; CEOLIN Adriano; COURA Kaleo. Quão sustentável
ela é? VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388, 27 agosto 2014, p. 61.

62
Adriano Charles Silva Cruz

biente, Marina poderá se opor às práticas do agronegócio, setor


que financia muitas campanhas eleitorais no Brasil119 e um dos
grandes anunciadores de publicidade nas revistas. E não é apenas
uma simples desconfiança, pois “o agronegócio nutre ojeriza por
Marina”, conforme a reportagem da Época120.
Ora, o “agronegócio, que representa 23% do PIB, é o maior
vilão do meio ambiente” nas ideias da candidata, isso, “apavora os
empresários do setor”, segundo a Isto É121. Como se vê, a estraté-
gia das hipérboles são os recursos discursivos usados para intensi-
ficar a suspeição de Marina Silva.
A receita para melhorar essa desconfiança é dada pela própria
revista:

Um ponto fulcral para quem se dispõe a governar o Brasil é dizer


com clareza o que pensa sobre nossa maior fonte de divisas, um
orgulho tecnológico e científico com produtividade 60% acima da
média dos Estados Unidos: o agronegócio 122.

Por outro lado, as contradições de Marina também emergem, pos-


to que o vice Beto Albuquerque (PSB) é “amigo do agronegócio e
defensor da soja transgênica” 123 e, continua a reportagem, “nesse
campo, tudo o que Marina combate”. Assim, a narrativa aponta
a política de alianças e governabilidade típica da “velha política”.
Na reportagem da Isto É, Marina é construída como intransi-
119 Segundo reportagem da BBC Brasil, o agronegócio mostrou sua força em
2014 investindo em inúmeros candidatos. Disponível em: http://www.bbc.
com/portuguese/noticias/2014/09/140910_eleicoes2014_agronegocio_salaso-
cial_jf. Acesso em: 08 de outubro de 2017.
120 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 32.
121 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina?
Isto É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 39.
122 BARROS, Mariana; CEOLIN Adriano; COURA Kaleo. Quão sustentável
ela é? VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388, 27 agosto 2014, p. 61.
123 PETY, André. No labirinto sonhático. VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388,
27 agosto 2014, p. 67.

63
Mídia e Discurso

gente com o setor, pois “os empresários do agronegócio não en-


xergam Marina com bons olhos, e ela não se esforça para encon-
trar um ponto de diálogo com o setor” 124.

A produção da dúvida e da desconfiança


Neste capítulo, procurei demonstrar que a análise de imagens
pode ser articulada com a dos textos verbais no grande amálgama
das revistas. Vimos que, após a morte de Eduardo Campos, hou-
ve uma intensa midiatização de Marina Silva, os jogos políticos e
ideológicos emergiram na construção discursiva das revistas. Em-
bora, apresentem peculiaridades, as três revistas semanais promo-
veram um debate sobre os projetos e falas da presidenciável.
Na revista Época, construção da imagem de Marina se assenta
num confronto entre o perfil da candidata e um deve ser/precisa
ser da revista. Há uma desatualização da voz de Marina. As falas
delas são de outros momentos, não se confrontam os posiciona-
mentos da revista com entrevistas diretas à candidata sobre os
temas abordados. Há escassez de outras vozes e discursos, sendo
uma construção mais subjetiva dos jornalistas a partir da inter-
pretação dos acontecimentos e discursos da presidenciável.
Na Isto É, há críticas ainda mais diretas, numa crescente de
adjetivações elencadas, uma após outras, no parágrafo de abertu-
ra. Da mesma forma, não há entrevista com a candidata e as cita-
ções indiretas são extraídas de momentos diversos à construção
da reportagem.
As matérias construíram uma imagem negativa de Marina Sil-
va, a partir dos efeitos de sentido de dúvida e desconfiança. Para
isso, utilizaram como principais estratégias discursivas o questio-
namento; o confronto entre a biografia e o cargo pretendido e, por
fim, a contraposição entre os discursos da candidata e de outros
entrevistados.
As revistas mostram as rusgas da coalização socialistas/mari-
124 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina?
Isto É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 40.

64
Adriano Charles Silva Cruz

neiros cujo objetivo pragmático era a vitória na eleição. Havia o


receio que a “hospedeira” rompesse a aliança no pós-pleito.
Os jornalistas apontaram as contradições de quem pretendia
ser a “nova política”, mas apresentava alianças com as forças rea-
cionárias do mercado e com um candidato a vice-presidente que
é historicamente ligado ao agronegócio.
Outros trabalhos poderão questionar em que medida também
o medo das convicções religiosas da candidata pode ter interfe-
rido nessa construção negativa. As construções de sua imagem,
com aura beatífica, e a referência à “evangélica de posições con-
servadoras” já indica que esse seria um ponto interessante na aná-
lise.
Por fim, concluo que as revistas puseram em relevo as polêmi-
cas ao questionar o discurso da “nova política”, construído pelo
marketing, em meio a práticas já usadas por outros candidatos: a
política de coalizão e governabilidade e as contradições dos dis-
cursos da candidata no passado e no período eleitoral, velhas co-
nhecidas dos brasileiros.

65
5 OS SENTIDOS NOS MEMES

A medusa é quiçá o outro imunológico em sua forma extrema.


Constitui uma alteridade radical, que nem sequer se pode
olhar, sem sucumbir.

Byung-Chul Han

N
o capítulo anterior, mostrei como as revistas semanais
desconstruíram a candidata Marina Silva. De maneira
análoga, uma teia de dizeres semelhantes foi tecida so-
bre o ex-presidente Lula (PT). Pretendo discutir essa discursivi-
zação negativa nos memes na internet.
Luiz Inácio Lula da Silva é dono de uma biografia cinema-
tográfica: criança pobre, nascido no sertão pernambucano, o ex-
metalúrgico, após um período de lutas no sindicato e na políti-
ca partidária, ocupou a Presidência da República por oito anos
(2003-2010), elegeu sua sucessora, Dilma Rousseff (PT), por duas
vezes, e se tornou um dos políticos brasileiros mais conhecidos
no mundo.
As notícias de escândalos de corrupção envolvendo políticos,
de diversos partidos, e o enquadramento seletivo da mídia cons-
truíram uma imagem bem adversa do petista.
Em março de 2016, ex-presidente Lula foi submetido a um
mandado de condução coercitiva no âmbito da Operação Lava
Jato. Ele foi depor “sob vara” para prestar depoimento à Polícia
Federal, no Aeroporto de Congonhas/SP. O ex-presidente, por
sua vez, prometeu resistir e anunciou, em discurso após o depoi-
mento, na sede do Partido dos Trabalhadores em São Paulo, que
seria novamente candidato à Presidência.
Lula fora acusado de obter propinas do esquema de corrup-

66
Adriano Charles Silva Cruz

ção da Petrobras, que envolveria grandes empreiteiras do Brasil.


O ministério público e a polícia federal atribuíram a ele a posse de
um apartamento triplex no Guarujá/SP, que teria sido reformado
com essas vantagens ilícitas, e um sítio em Atibaia/SP.
Esse acontecimento foi intensamente mediado pela imprensa
e levou a conflitos nas ruas, entre apoiadores e opositores; dis-
cussão entre políticos e até a desaprovação de um ministro125 do
Supremo Tribunal Federal.
Mais tarde, as ações da Lava Jato contribuíram para a corro-
são do governo Dilma Rousseff (2016) e culminaram com a con-
denação e prisão de Lula (2018).
A operação Lava Jato segue a lógica de produção da mídia.
Com mais de duzentas pessoas investigadas e cerca de uma cen-
tena condenada, entre políticos e empresários, a investigação foi
construída como um símbolo de combate à corrupção. O juiz fe-
deral Sérgio Moro se tornou uma celebridade internacional, sen-
do incensado como “herói” pela grande imprensa.
Longe de ser consensual, a Lava Jato provocou polêmicas gra-
ças à “teatralização” dos processos penais: interceptação telefôni-
ca, vazamentos seletivos, gravação e exibição dos interrogatórios
e manifestação constante dos juízes e promotores no Twitter e
no Facebook: “algumas decisões tomadas pela 13.ª Vara Crimi-
nal Federal de Curitiba definiram o roteiro para o Big Brother da
Justiça 126”.
A seletividade nas condenações e nas investigações e os méto-
dos midiáticos do aparato jurídico-investigatório foram objetos
de debate. Os corpos dos investigados eram expostos à mídia, pré-
125 O ministro Marco Aurélio do STF criticou publicamente a medida em en-
trevista ao Estado de S. Paulo. É dele a expressão “sob vara”. Disponível em:
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,para-marco-aurelio--preocupa-
-ex-presidente-depor-sob-vara,10000019703 . Acesso em: 2 jun. 2018.
126 GOMES, Marcus. Alan de Melo. Crítica à cobertura midiática da Opera-
ção Lava Jato. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/do-
cumentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_bo-
letim/bibli_bol_2006/122.09.PDF . Acesso em: 20 jun. 2018.

67
Mídia e Discurso

julgados pela opinião pública. Exibiam as “imagens de investiga-


dos e réus presos, em regra (desnecessariamente) algemados, sen-
do transportados em veículos da Polícia Federal, ou até mesmo
em gravações de depoimentos que constituirão objeto de acordos
de colaboração premiada” 127.
Em janeiro de 2016, um grupo de mais de cem juristas pu-
blicou, em diversos jornais, uma carta aberta com críticas à Lava
Jato. No documento, o grupo criticava os vazamentos seletivos
à imprensa128 e as violações dos “direitos e garantias fundamen-
tais dos suspeitos”. Em outro momento, denunciava o chamado
“massacre midiático” para pressionar a Justiça a manter prisões
provisórias que fazem parte de uma “engrenagem fundamental
do programa de coerção estatal à celebração de acordos de dela-
ção premiada” 129.
De fato, nesse recente reality show político-jurídico, “a priva-
cidade de investigados, ainda que nada tenham a ver com os fatos
apurados, é exposta ao público sem qualquer propósito útil para
a persecução penal” 130.
Em agosto de 2017, a revista Exame trouxe uma matéria sin-
tomática desses tensionamentos: “Por que Moro e Lava Jato não
são unanimidades entre juristas?”, perguntava o título da matéria,
que enumerava os argumentos dos críticos.
Apesar das críticas, os principais atores da “República de
Curitiba” estabeleceram um liame intenso com a grande impren-

127 Idem.
128 Quando se fala em vazamento seletivo, diz-se que há um favorecimento
para a negativação pública da imagem de políticos específicos, mais notada-
mente os pertencentes a partidos de esquerda.
129 PRADELLA, Thiago. Leia o manifesto dos Advogados que comparam
Lava Jato à inquisição. Disponível em: https://pradella.jusbrasil.com.br/noti-
cias/297190364/leia-o-manifesto-dos-advogados-que-comparam-lava-jato-a-
-inquisicao. Acesso em: 20 jul. 2018.
130 Idem.

68
Adriano Charles Silva Cruz

sa. A midiatização131 da Lava Jato foi determinante para a sua per-


manência na agenda pública, pautando inclusive as propostas das
candidaturas presidenciais em 2018.
Figura 10: capa de Veja, 2016.

Fonte: revista Veja.

Fotografias, textos e outras imagens sobre a condução coer-


citiva proliferaram no jornalismo e nas redes sociais. Em capa 12
de março de 2016, a revista Veja trouxe a polêmica e o discurso
de resistência de Lula, mas o transfigurou intericonicamente em
131 HJARVARD, Stig. A midiatização da cultura e da sociedade. São Leopoldo:
Unisinos, 2014.

69
Mídia e Discurso

uma medusa. A cara de raiva e o enunciado verbal132 complemen-


tam a desconstrução do petista.
Imagens, como essa, serão ressignificadas a partir de estraté-
gias irônicas e por movimentos derrisórios nos memes que proli-
feram no ciberespaço. Como no exemplo a seguir:
Figura 11: meme Lula/Jararaca

Fonte: https://bit.ly/2OJuJ2u

A partir de uma perspectiva discursiva, a luta de classes e


as microlutas133 se materializam em ideologias que, por sua vez,
emergem em práticas sociais e discursivas. Esses discursos são
práticas ideológicas que tentam manter ou transformar as rela-
ções de poder no interior das formações sociais.
As duas imagens monstruosas, da revista e do meme, são ma-
132 A referência à cobra foi uma autonomeação de Lula durante o discurso
dele na sede do PT: “se tentaram matar a jararaca, não bateram na cabeça, ba-
teram no rabo”. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noti-
cia/2016/03/se-tentaram-matar-jararaca-nao-bateram-na-cabeca-bateram-no-
-rabo-diz-lula-em-discurso.html. Acesso em: 24 set. 2018.
133 Um conjunto de tensionamentos dentro de uma mesma classe social, ou
seja, jogos de poder e resistência nas questões de gênero, sexualidades, raças,
etnias, entre outras.

70
Adriano Charles Silva Cruz

terializações de discursos provenientes de formações ideológicas


antagônicas ao do lulopetismo.
É dentro desse quadro, onde se digladiam formações ideológi-
cas antagônicas, que procuro analisar as significações produzidas.
Evidencio, agora, as condições de produção que proporcionaram
a circulação dos memes.

Os memes na cultura da interação


A interatividade e a convergência dos meios estão à disposição no
toque no smartfone. As interações em redes pontuam o dia a dia
dos sujeitos, surgem novos emissores: a dinâmica da comunica-
ção se complexifica na era do Whatsapp e dos youtubers.
Há uma nova cultura do compartilhamento134, com a forma-
ção de comunidades virtuais, segmentação dos públicos, e a mu-
tabilidade do papel consumidor/produtor. É possível curtir, co-
mentar, compartilhar e, sobretudo, produzir conteúdo e “jogá-lo
na rede”.
Essa possibilidade de tecer novas interações em rede é apenas
uma das faces da sociedade em midiatização. A velocidade de pro-
pagação das mensagens, o excesso da informação e de fake news
são marcantes.
Longe de proporcionar laços permanentes, a modernidade
líquida se caracteriza por instabilidade de todas as ordens. Esse
tempo de “perigosas incertezas135” se alicerça também no indivi-
dualismo e na transitoriedade.
A “cultura participativa” 136 insere-se num contexto de con-
vergências, de produção e distribuição de conteúdos em diversas
mídias e plataformas. Assim, um vídeo produzido por um usuário
do Facebook pode estar no site do jornal local como um “furo” de
134 JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009.
135 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
136 Idem.

71
Mídia e Discurso

reportagem; analisado por especialistas em um programa de TV


ou replicado em memes.
O meme é definido como uma unidade de informação cultu-
ral transmitida entre indivíduos ou de uma geração à outra. O ter-
mo deriva de uma comparação ao gene biológico, emerge como
uma analogia explicativa da propagação dos genes e das ideias137.
Esses dizeres eram originalmente “histórias, canções, hábitos,
habilidades, invenções e maneiras de fazer coisas que copiamos
de uma pessoa para outra através da imitação” 138. Já na internet
os memes serão constituídos predominantemente por mensagens
com tons humorísticos ou irônicos de caráter replicador.
Os memes podem ser textos, músicas, vídeos e outras imagens
que circulam na internet e produzem um discurso condensado,
apelativo e, na maioria das vezes, humorístico. É importante res-
saltar o caráter opinativo e normativo dessas imagens que virali-
zam na web, há sempre um discurso de um “deve ser” do meme
sobre o mundo 139. Por vezes, esses enunciados perdem a autoria,
sendo replicados a exaustão.
Na fronteira entre ficção e referencialidade, os memes podem
apresentar imagens absurdas, risíveis ou grotescas. O importan-
te para a construção de sentidos é sua relação com o contexto e
com os acontecimentos a que se referem. Dessa forma, a hetero-
geneidade discursiva transborda em estratégias derrisórias, como
a ironia e a paródia.
As imagens foram encontradas por meio da pesquisa no Goo-
gle a partir da inclusão dos termos “memes” e “condução coerci-
tiva Lula”, no dia 03 de setembro de 2018. O site gerou 62.100 re-

137 Segundo Dawkins, “a transmissão cultural é análoga à transmissão gené-


tica, no sentido de que, apesar de ser essencialmente conservadora, pode dar
origem a uma forma de evolução”. DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 235.
138 BLACKMORE, Susan. The meme machine. Oxford: Oxford University
Press, 2000, p. 65.
139 SHIFMAN, Limo. Memes in digital culture. Cambridge: MIT, 2014, p. 120.

72
Adriano Charles Silva Cruz

sultados, distribuídos em diversas páginas, entre textos, imagens


e outras citações ao tema. Recolhi apenas as imagens linkadas nos
sites encontrados na primeira página da busca, os links estão indi-
cados em cada imagem.
Identifiquei um movimento interdiscursivo que desconstrói
Lula a partir da derrisão sobre a ausência do dedo mínimo. Defen-
do que existe uma discursivização sobre o corpo que falta, a mão
mutilada carrega uma memória de uma anormalidade.
Entendo que a derrisão está ancorada em um processo dis-
cursivo de desconstrução da alteridade. Dessa forma, ela se cons-
titui numa estratégia enunciativa que não se limita ao riso, mas
na “combinação do humor e da agressividade que a caracteriza e
a distingue, em princípio do puro insulto” 140.
A derrisão se aproxima, pois, da zombaria: “traz consigo uma
dimensão de contestação, desafiar a ordem estabelecida ou os
princípios amplamente aceitos em uma sociedade ou grupo” 141.
Portanto, instauram-se, nos memes¸ jogos irônicos em que são
desconstruídos ou ressignificados o acontecimento e a sua me-
mória.
Nas sociedades midiatizadas, os corpos dos políticos são
submetidos a inúmeras tecnologias que os tornam atrativos aos
eleitores. Em 2002, quando se elegeu presidente pela primeira vez,
houve uma série de intervenções no corpo e no discurso de Lula
à luz dos ditames do marketing político. Submetido a transforma-
ções estéticas, o corpo do ex-sindicalista pôde, enfim, ser aceito
socialmente.
Entretanto, as marcas de sua origem operária serão retomadas
em discursos desconstrutores, já que Lula “se limita a maltratar a
língua, engolindo os esses, violentando a sintaxe, forçando erros

140 BONNAFOUS, Simone. L’arme de la dérision chez J.-M. Le Pen. Hèrmes,


Paris, v. 29, p. 53-63, 2001, p. 53.
141 MERCIER, Arnaud. Pouvoirs de la dérision, dérision des pouvoirs. (Intro-
duction) Hermés, Revue. Dérision, contestation, CNRS, n. 29, p. 9-18, 2001, p.
10.

73
Mídia e Discurso

de concordância” 142, segundo artigo do jornal Estado de S. Paulo,


de 2005. Essa sua origem na classe operária seria a receita para
atrair a atenção do povo, mas também, roubar a cena em eventos
internacionais: “O presidente que cometeu mais gafes na história
do Brasil”, categoriza a revista Época. A “sua voz rouca, com erros
de português, metáforas de futebol e piadas do povão, era o elo
com a massa, na versão do sindicalista exaltado ou do lulinha paz
e amor” 143, continua a articulista Ruth de Aquino.
É preciso entender que todo discurso é um lugar de memó-
ria: os acontecimentos são lembrados ou esquecidos a partir dos
tensionamentos e das lutas sociais. Os deslizes da norma culta
gramatical apontam uma origem não burguesa, além disso, Lula
carrega na carne os estigmas de uma deformidade.

A desconstrução de Lula nos memes


A partir de uma genealogia da anormalidade, Courtine144 apon-
ta que, no século XIX, houve um intenso interesse pelos corpos
monstruosos. No imaginário, tudo o que escapava à normatiza-
ção, seja por falta, excesso, mistura ou separação era considerado
desviante.
Essa corporeidade transgressora figurava nos freaks shows,
oferecia um espetáculo de diversão das massas, entre homens ele-
fantes, anões, gêmeos siameses e mulheres barbadas. Dessa for-
ma, se estabelecia um olhar voyeurista e categorizador dos corpos,
como explica Courtine: “as festas de feiras do século XIX regurgi-
tavam verdadeiros ou falsos ‘selvagens’ a exibir para o prazer de
multidões ‘civilizadas’ o grotesco das aparências, a animalidade
das funções corporais, a crueza sangrenta dos costumes, a barbá-
142 KUJAWSKI, Gilberto de Mello. O linguajar de Lula. O Estado de São Paulo,
17/02/2005, Espaço Aberto, p. A2.
143 Época, Ruth de Aquino, 30 de março de 2012. Disponível: http://revistae-
poca.globo.com/Mente-aberta/ruth-de-aquino/noticia/2012/03/voz-de-lula.
html. Acesso em: 20 jun 2018.
144 COURTINE, Jean- Jacques. Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Petró-
polis: Vozes, 2013.

74
Adriano Charles Silva Cruz

rie da linguagem145”.
É com o auge da biologização que as deformidades humanas
serão identificadas e pesquisadas. Dessa forma, se reconhece que
tais monstros eram “horrivelmente humanos” 146. Esses corpos
transgressores foram incorporados a um saber médico-biológico
e os zoológicos humanos foram interditados.
Essa foi, para Courtine, uma mudança de sensibilidade147, pois
lá onde se via apenas monstruosidade se começou a perceber uma
enfermidade. A partir do discurso médico-jurídico era preciso
explicar as raízes patológicas e os desvios dos seres humanos. Em
síntese: identificar, corrigir e normatizar.
Entretanto, era preciso saciar o desejo de ver e contemplar os
seres abjetos. Relegado às imagens ficcionais, o “espetáculo da de-
formidade” tornou-se mediado pelo aparato técnico, cinema e a
TV. Frankenstein, Drácula, Freaks, King Kong, Medusas, imagens
partidas, os “outros” de nós mesmos. Essa estética da monstruosi-
dade também será retomada, via memória, em diversos produtos
da mídia: anúncios publicitários, memes, capas de revistas etc.
Em Os anormais148, Foucault buscará investigar a mudança da
transgressão monstruosa ao domínio da conduta, ou seja, a esfera
da justiça e do direito penal.
É nessa “sociedade disciplinar” que os indivíduos estarão
sujeitos à vigilância constante, os seus corpos e suas almas são

145 COURTINE, Jean-Jacques. O corpo anormal: história e antropologia cul-


turais da deformidade. In: CORBIN, A.; ______.; VIGARELLO, G. História
do corpo: as mutações do olhar. O século XX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p.
256, grifos do autor.
146 COURTINE, Jean-Jacques. O corpo anormal: História e antropologia cul-
turais da deformidade, p. 300. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques;
VIGARELLO, Georges (Org.). História do Corpo: 3. As Mutações do Olhar: O
Século XX. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 253-340.
147 COURTINE, Jean-Jacques. Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Petró-
polis, RJ: Vozes, 2013, p. 118. .
148 FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

75
Mídia e Discurso

examinados e normalizados por meio das instituições como as


escolas, fábricas, hospitais e prisões.
Em outros momentos, como no nazismo, o poder/saber mé-
dico construiu teorias eugênicas e racistas que buscaram medi-
calizar e exterminar os corpos transgressores. A “massa de des-
viantes”, vagabundos, homossexuais, prostitutas, será submetida
à violência dos fascismos e ao controle de um biopoder.
Na passagem da sociedade disciplinar para a de “controle149”,
a discursividade estética levará também às práticas de transfor-
mações corporais, desde o body bulding nas academias às cirur-
gias plásticas. Tarefa sisífica, pois a falha é constitutiva da vida,
apesar da tecnologia, o corpo insiste em envelhecer e a definhar.
Embora, o preconceito com os “corpos diferenciados” persista
e, por vezes, se materialize na linguagem, as sociedades democrá-
ticas promoveram mudanças na ordem discursiva: não se aceita a
verbalização do olhar discriminatório, sem sanções, numa escala
de reprimendas virtuais à prisão. Dessa forma, nas palavras de
Courtine: “onde quer que se pouse o olhar, a deformidade deve
passar despercebida” 150. Nesse contexto, emergem dizeres e ima-
gens que afirmam o respeito à diversidade e à diferença.
Essa nova ordem de discurso é quebrada em momentos de
tensionamento político, especialmente a partir da circulação de
discursos apócrifos, que silenciam a autoria, como nos memes e
nas “correntes” que circulam nas redes sociais. Por conseguinte,
proliferam discursos estigmatizadores e de ódio, germinados em
tempos de intensa polarização político-partidária.
É nesse contexto histórico que emerge a discursivização con-
traria a Lula. Entendo que isso é apenas um nó em uma rede de di-

149 DELEUZE, Gilles. Post Scriptum sobre as sociedades de controle. In:


______. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
150 COURTINE, Jean-Jacques. O corpo anormal. História e antropologia cul-
turais da deformidade. In: CORBIN, A.; ______.; VIGARELLO, G. História
do corpo: as mutações do olhar. O século XX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p.
256, grifos do autor.

76
Adriano Charles Silva Cruz

zeres negativos, como os exibidos nos textos jornalísticos citados.


Se recorrermos à memória é possível recuperar também uma
série discursos que circulam sobre a mutilação do dedo de Lula.
Entre esses, o boato de que o acidente foi autoprovocado para ga-
rantir uma aposentadoria por invalidez.
Em 2010, a revista Trip publicou a reportagem “Um dedo de
discórdia” 151 recuperando a história da lesão trabalhista. A tragé-
dia ocorreu quando Lula trabalhava como metalúrgico, em São
Paulo, em meados dos anos sessenta. “Uma noite quebrou o pa-
rafuso de uma prensa. Eu fiz o parafuso e, quando fui colocar, o
companheiro prensista que estava cochilando distraiu-se, largou
o braço da prensa, que fechou, e eu perdi o dedo”. Após o aci-
dente, ele recebeu apenas uma indenização “de 350 mil cruzeiros,
suficiente para comprar móveis para a mãe e um terreno”. A re-
portagem explica que o Lula deixou a fábrica no ano do aciden-
te, depois de discutir por aumento de salário e que foi admitido
como “torneiro” em outra, também na capital do estado.
As marcas do sofrimento permaneceram na subjetividade de
Lula: “No hospital, o médico olhou o meu dedo e cortou o res-
to. Fiquei preocupado com a minha mão. Passei alguns anos com
complexo por estar sem dedo. Eu tinha vergonha”152.
A discursivização sobre essa ausência é retomada interdicursi-
vamente no meme a seguir:

151 SILVA, Marcos Sérgio. Um dedo de discórdia. Disponível em: https://revis-


tatrip.uol.com.br/trip/um-dedo-de-discordia. Acesso em: 10 agosto 2018.
152 SILVA, Marcos Sérgio. Um dedo de discórdia. Disponível em: https://revis-
tatrip.uol.com.br/trip/um-dedo-de-discordia. Acesso em: 10 agosto 2018.

77
Mídia e Discurso

Figura 12: meme CC 1

Fonte: https://bit.ly/2DIyiVt

O ingresso de Lula na vida pública aconteceu justamente na


filiação aos sindicatos onde se tornou um líder na resistência à ex-
propriação do trabalhador por um sistema que impõe “docilidade
aos corpos”.
O discurso do meme é calcado no enunciado verbal, os efei-
tos derrisórios são causados pela quebra de expectativa: o que se
espera encontrar em uma investigação são provas ou indícios de
autoria. A ausência do dedo não é representada por imagens, des-
sa forma, silencia qualquer sentido ligado à origem da mutilação.
Ao entrar na política e na esfera da hipervisibilidade, algumas
características corporais de Lula se tornaram símbolos identitá-
rios: a imagem da mão espalmada com apenas nove dedos é um
desses, que retorna na imagem seguinte.

78
Adriano Charles Silva Cruz

Figura 13: meme CC 2

Fonte: https://glo.bo/2xPj4ZH

Por vias da memória, é facilmente identificado o referente da


imagem. As mãos do presidente, envoltas em algemas, seriam
transformadas em um emoji, ideograma esquemático usado em
mensagens eletrônicas, especialmente, nos aplicativos de mensa-
gem para celular. Dessa forma, a ausência do dedo mínimo, me-
tonímia do ex-presidente, se tornará um vetor gráfico, ou seja,
apenas uma imagem.
Reina a zombaria, silencia a trágica história de resistência que
a mutilação de um operário provoca normalmente em outras ma-
terialidades da mídia, fotografias e reportagens, por exemplo. É
uma imagem sem impacto, higienizada e sem os vestígios da de-
formidade.

79
Mídia e Discurso

Em certa medida, retoma-se a discursivização presente no


século XIX sobre o monstruoso como inerente à esfera da diver-
são. Para isso, apaga-se a humanidade, não é uma mão, mas um
símbolo. Por conseguinte, constrói-se um efeito de separação da
alteridade: esse é o “outro”, diferente de “nós”. E não há motivos
para apreensão, ele está aprisionado, dominado por uma institui-
ção disciplinar.
Figura 14: meme CC 3

Fonte: https://bit.ly/2DIyiVt

Ao silenciar os sentidos de dor e sofrimento provocados por


um acidente de trabalho, é possível rir de um corpo que falta.
Nessa terceira imagem, há uma suavização da estética grotes-
ca, já que o dedo ausente não aparece, em seu lugar há o espaço
vazio, a lacuna, que denuncia a incompletude, uma deformidade
não aparente, nos jogos de visibilidade/invisibilidade da imagem.
Efeito diametralmente oposto tem a próxima imagem, em
que a estética do grotesco se presentifica. O enunciado verbal iro-
niza a condução coercitiva e desconstrói a imagem de Lula, por
vias intericônicas.

80
Adriano Charles Silva Cruz

Figura 15: meme CC4

Fonte: https://bit.ly/2P1LSo8

Identifico o efeito de despersonalização das ações, os sujeitos


que o encontram não são localizáveis. No texto verbal, há um efei-
to de suavização, estratégia de silenciamento da memória: Lula
não teve o dedo amputado no ambiente de trabalho, o que evo-
caria significações polêmicas no contexto da luta de classes, mas
o “perdeu”.
Esse silenciamento de um passado já distante ocorre nos mo-
vimentos da historicidade As mãos de Lula passaram por muta-
ções no tempo, as imagens do operário e do sindicalista deram
lugar às de um líder carismático capaz de seduzir as massas com
“sua voz rouca, com erros de português”.

81
Mídia e Discurso

De fato, a voz, os gestos e a mão mutilada compõem uma


identidade e uma imagem reconhecível e reproduzível.
O dito e o não dito coexistem na superfície das imagens e
constroem significações a partir dos jogos de mostrar e ocultar.
No movimento discursivo dos memes analisados, observo o fun-
cionamento de uma das máximas da teoria discursiva: os enun-
ciados adquirem novos sentidos a partir das posições sociais dos
que os empregam.
Os memes desconstroem a imagem de Lula graças às suas filia-
ções a formações discursivas opostas ao petista, o campo simbóli-
co das imagens torna-se, dessa forma, uma arena para a confron-
tação ideológica e disputa de sentidos.
Os acontecimentos históricos são, por vezes, recortados no
tempo emergindo em novos enunciados, cabe aos leitores e ana-
listas o reconhecimento desse passado, com todas as suas fratu-
ras, heterogeneidades e costuras nas malhas dos dizeres. Veremos
como esse cruzamento acontece nas paredes das cidades.

82
6 OS SENTIDOS NAS INSCRIÇÕES URBANAS

As campanhas políticas, os movimentos religiosos, a mais


simples propaganda comercial – valem-se do veículo mural,
numa utilização que, entre nós, vem de longe, da pré-história,
com homens e raças desconhecidas deixando inscrições em
pedras.

Luiz Beltrão

N
o capítulo anterior, identifiquei o papel da heteroge-
neidade discursiva na produção de sentidos nos memes.
Agora, mostro um processo comunicativo popular que,
embora, não esteja mediado pela tecnologia contemporânea é
um dos meios de manifestação dos sujeitos mais antigos da hu-
manidade: a inscrição mural.
Nesse sentido, a cidade é uma mídia (do latim medium, “meio”
ou “instrumento mediador”) na qual os autores podem escrever
seus textos e se posicionar discursivamente a partir de um macro-
contexto sócio-histórico. Por outro lado, podemos ampliar essa
compreensão e encarar a urbe como geradora/produtora de iden-
tidades.
De fato, o homem tem-se modificado em sua constituição sub-
jetiva ao habitar e conviver nesses territórios complexos. Desde a
década de 1950, os muros ganham destaque nas manifestações de
protesto de grupos sociais sem acesso à veiculação nos meios de
comunicação tradicionais (rádio, TV e impressos). Esse espaço
de politização urbana esteve associado à configuração política da-
quela geração em seu modus operandi do fazer político. Esse meio
de propagação de discursos políticos ainda mantém importância
ao lado de outros discursos ligados ao cotidiano.

83
Mídia e Discurso

Durante os meses de junho e julho de 2010, percorri algumas


cidades da América Andina153 onde identifiquei, além desses tex-
tos, outras escrituras que manifestam relações afetivas cotidianas,
que marcam subjetivamente o espaço urbano. Encontrei diferen-
tes discursos nessas materialidades fotográficas que navegam en-
tre o político e as relações intersubjetivas, compondo um mosaico
complexo de discursividades.
Ao analisar essas práticas linguageiras e urbanísticas, ressaltei
três discursos recorrentes que, por ora, categorizo como: subver-
sivo, educativo e afetivo. Esta proposta de categorização facilita o
trabalho de análise, porém, está sujeita às inter-relações possíveis
de serem localizadas. Segundo Guatarri, o espaço construído in-
terpela o indivíduo, produzindo subjetividades154.
Elegi as imagens mais significativas para ilustrar as reflexões
sobre o discurso e a heterogeneidade de sentidos no espaço da
cidade. Ressalto que o ato de categorizar não é algo natural, mas
um trabalho do analista, a partir das questões colocadas pelo pro-
blema de sua pesquisa, de suas hipóteses, de seu referencial teó-
rico-metodológico e, por fim, de suas imbricações como sujeito.
Neste sentido, parece-me oportuno retomar uma observação de
Orlandi quando afirma que “a construção do corpus e a análise
estão intimamente ligadas: decidir o que faz parte do corpus já é
decidir acerca de propriedades discursivas155”.

Memória da transgressão nos muros


A década de 1960 e suas intensas revoluções nos legaram imagens
memoráveis que atravessariam os anos marcando nosso imagu-
nário sobre o fazer político. Dessa forma, 1968 foi um “ano que
153 As imagens são autorais e foram feitas durante a Ruta Inka: al encuentro de
los mayas (2010), em La Paz, Cuzco, Lima, Trujillo, Lambayeque, Loja, Cuenca,
Ingapirca, Otavalo e Quito.
154 GUATARRI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo:
Editora 34, 1992.
155 ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7. ed.
Campinas: Pontes, 2007, p. 63.

84
Adriano Charles Silva Cruz

não acabou”, sobretudo na França, porque, relembrado e citado


em diversos produtos das indústrias culturais (filmes, camisas,
novelas etc.), ainda gera efeitos na memória de um tempo-espaço
marcado pela luta política, como a Photo d’un graffiti, de maio de
1968 de Edouard Boubat.
Figura 16: Foto de um grafite de Edouard Boubat.

Fonte: http://effetpapillon.free.fr/depart1.htm

“A vida acima de tudo” é uma escrita de protesto, com tons


poéticos, que inspirou grafiteiros em todo o mundo. Nessa pers-
pectiva, o espaço urbano é o lugar de manifestação das lutas e das
resistências de classe, conforme aponta Carlos: “pensar o espaço
também como produto de lutas, fruto de relações sociais contra-
ditórias, criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do capital”
156
. Também podemos entendê-lo como meio de manifestação de
outras lutas operadas no cotidiano (raciais, religiosas, estéticas, de
gênero etc.), muitas delas distantes dos holofotes midiáticos, mas
presentes nas escrituras das paredes.
Esse discurso subversivo, entendido como resistência às or-
dens discursivas dominantes do capitalismo contemporâneo,
tem permanecido como elemento central nos estudos e pesqui-

156 CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. São Paulo: Contexto, 2003, p. 71.

85
Mídia e Discurso

sas sobre pichações e grafites. Essa preponderância tem gerado


uma associação quase direta entre essas formas de arte urbana e
o discurso político. Entretanto, Canevacci lembra que os espaços
comunicacionais das metrópoles são múltiplos e fluídos, “parti-
cularmente, aquele tipo de comunicação fortemente inovadora
que sai das lógicas tradicionais, dos espaços institucionais, das
práticas sociais, de objetivos universais” 157.
Nessa pesquisa, deparei-me com materialidades que revelam
a constituição de sujeitos insatisfeitos com os sistemas regradores
(políticos, econômicos e ideológicos). Dessa forma, verifico que a
forma de inscrição política dos anos 1970 − legível, centrada no
conhecimento escolar e na grafia desse sistema − ainda marca sua
presença como contestação158.
Todavia, por vezes, o foco do macropolítico se desloca para as
lutas contra outros sistemas de interdição, conforme os estudos
foucaultianos já apontaram.
É nesse sentido que encaminho a interpretação da primeira
fotografia.
Se na imagem de Boubat a vida deve estar acima de tudo, a
liberdade é a tônica do discurso dessa fotografia, encontrada na
cidade de Loja, no Equador. Tem-se a figura de uma jovem com
cabelos esvoaçantes e chapéu na cabeça. O rosto da moça ocupa
quase a metade do quadro. À sua direita tem-se o enunciado “an-
tes de tudo… igualdade”. O mais interessante é que o muro da
imagem não pertence a nenhuma instituição (escola, igreja, as-
157 CANEVACCI, Massimo. Culturas extremas: mutações juvenis nos corpos
das metrópoles. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 46.
158 “Nos anos 70 éramos pichadores alfabetizados. Nossas reivindicações
se faziam com letras tradicionais de uma escrita (que se queria) bem legível:
‘Fora a Ditadura!’ para quem fosse alfabetizado. E os que não eram também
entendiam, pelo modo como as palavras apareciam nos muros ou em outros
lugares inusitados, ou pelas cores (vermelho, preto), que se tratava de um gesto
de contestação ou reivindicação política. Hoje, a pichação é já nos seus sinais
indecifráveis para muitos, a própria manifestação da reivindicação e da contes-
tação política e, mais claramente que a pichação de 70, social.” ORLANDI, Eni.
Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004, p. 107.

86
Adriano Charles Silva Cruz

sociação).
Figura 17: Fachada de um muro em Loja, Equador.

Fonte: fotografia do autor

O sentido do enunciado – igualdad – pode ser múltiplo, po-


rém a imagem feminina e a forma de representação limitam as
possibilidades interpretativas. A igualdade requerida deve ser lida
na perspectiva da luta política de gênero. Ecoa na imagem a me-
mória histórica das lutas de todas as mulheres e homens que re-
cusam a perspectiva sexista e excludente das sociedades machistas
contemporâneas.
O sujeito-autor, cuja autoria é silenciada na imagem, rechaça
o discurso sexista e propõe a primazia da igualdade. O discurso,
por outro lado, é construído em uma perspectiva afirmativa, pos-
to que a mulher está com uma leve expressão de sorriso, por con-
seguinte, não há conotações de violência, indignação ou revolta.
Ao mesmo tempo, o discurso na fotografia produz o sentido
de protesto: a própria escritura na parede denota certo margea-
mento das condições artísticas tradicionais (pintura em tela e ex-
posição em museus, galerias, revistas etc.).

87
Mídia e Discurso

Figura 18: Fachada de um muro em Cuzco, Peru.

Fonte: fotografia do autor

A escrita de protesto, em algumas ocasiões, transgride os limi-


tes da compreensão dos leitores não pertencentes aos movimen-
tos urbanos, tornando-se, por vezes, indecifrável. Nessa fotografia,
registrada na cidade de Cuzco, no Peru, tem-se um exemplo da
mescla de imagens e símbolos não reconhecíveis: há predominân-
cia das cores verde, amarelo e azul em imagens de seres imaginá-
rios pintados e/ou grafitados, sobrepondo-se, em alguns lugares,
às pichações; mas inexistem frases e palavras reconhecíveis.
O “não se fazer compreender” é também um posicionamen-
to ideológico significativo: marca um lugar de resistência ao ou-
tro, apenas os “iniciados” poderão decodificar a mensagem. Esse
mecanismo discursivo gera identidade, ao produzir um reconhe-
cimento e um posicionamento do sujeito em um dado lugar na
estrutura social; em outras palavras, sua inscrição numa formação
ideológica por meio do simbólico.
Para Orlandi, o ininteligível constrói sentidos para os grupos
segregados em outra formação ideológica que não a da “informa-
ção-comunicação”. Por conseguinte, “escrevem invertendo a ra-

88
Adriano Charles Silva Cruz

cionalidade urbana do jogo de quantidade (poucos são os leitores


e muitos são da periferia, ou são a periferia)” 159.

Das marcas da afetividade ao discurso educativo


Os muros das cidades registram, também, o encontro amoroso
dos sujeitos. Segundo Garcia, o discurso amoroso é caracteriza-
do pela “reafirmação constante da afeição, por meio de palavras
carinhosas, murmúrios e códigos específicos e por entonações
próprias” 160.
Neste sentido, por letras e símbolos pintados com tinta bran-
ca, o sujeito-autor da escrita declara seu amor pelo esposo. As re-
ticências, a repetição de palavras, o uso do diminutivo, as estreli-
nhas e o desenho de sorriso denotam uma escrita emotiva.
Figura 19: Fachada de um muro em Quito, Equador.

Fonte: fotografia do autor

“Eu te amo maridinho, você é a melhor coisa que me acon-

159 ORLANDI, Eni. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004, p. 104, gri-
fos da autora.
160 GARCIA, Afrânio. Tipos de discurso. Rio de Janeiro: O Autor, 2003, p. 10.

89
Mídia e Discurso

teceu. Obrigada por alegrar a minha vida… eu te amo… te amo…


te amo… não esqueças.” Numa tradução livre e incompleta, re-
gistra uma homenagem ao “sujeito-esposo”. Podemos visualizar
ainda a assinatura das inicias “M.L”. A autoria está inscrita no
muro, ou seja, presente na imagem.
Se o sujeito é interpelado pela ideologia e individualizado pe-
las instituições do Estado161, ele constrói sua identidade também
por meio da escrita.
Ao contrário do visto nas imagens anteriores, o texto não tem
uma preocupação política contestatória, porém, marca um gesto
de afetividade.
Com isso, não digo que não há marcas da ideologia presentes
em todo o fazer humano. Esclareço: o conceito de discurso polí-
tico que defendo opera uma divisão entre os grandes discursos
estabilizados e os discursos da ordem do cotidiano.
É esse discurso do cotidiano que marca a imagem em tela, re-
velando os modos das relações afetivas e os desejos de expressão
da subjetividade, pois, segundo Foucault: “escrever é, portanto,
‘se mostrar’, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do
outro162”.
Ademais, defendo que há uma relação ideológica reveladora
dos papéis de gênero estabelecidos cultural e historicamente. To-
davia, defendo que não se observa uma ruptura à ordem vigente,
ou seja, não há um movimento contestatório político do sujeito-
-autor. O aspecto ideológico que, porventura, identificamos, é
fruto dos gestos interpretativos do analista a posteriori.
Essas falas, por vezes anônimas ou irreconhecíveis, inscre-
vem-se na materialidade, a fotografia de um muro em La Paz, Bo-
lívia. Vemos as assinaturas na imagem, mas quem seria “Janase”

161 Conforme defende ORLANDI, Eni. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes,
2004.
162 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004, p. 156, grifos do autor.

90
Adriano Charles Silva Cruz

ou “kloonger”? São as marcas dos “homens ordinários”, heróis do


dia a dia, “todo mundo e ninguém”, conforme nomeia Certeau163.
Neste sentido, a escrita nos muros é uma um processo comuni-
cacional acessível a todas as classes, sobretudo aos excluídos do
acesso às mídias massivas.
Figura 20: Fachada de um muro em La Paz, Bolívia.

Fonte: fotografia do autor

Na imagem, a transgressão se coloca do ponto de vista formal:


a pichação nos muros é interditada aos indivíduos, em nome dos
padrões de higienização. Todavia, o enunciado “a primeira namo-
rada escolhida, mas o primeiro amor” revela a perspectiva de um
sujeito-autor envolvido em uma relação amorosa, inscrito em ou-
tra perspectiva ideológica que não a do fazer político stricto sensu.
O desejo de expressar sentimentos e emoções foi o que moti-
vou esses sujeitos-autores à pichação. Ora, esse traço identitário
da afetividade, colocado em segundo plano em muitas análises, re-
vela nossa constituição humana, nosso “estar-no-mundo”, como

163 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópo-


lis: Vozes, 1994.

91
Mídia e Discurso

seres emocionais, conscientes e também inconscientes, conforme


defende Morin: “O ser humano é um ser racional e irracional, ca-
paz de medida e desmedida; sujeito de afetividade intensa e instá-
vel. Sorri, ri, chora, mas sabe também conhecer com objetividade;
é sério e calculista, mas também ansioso, angustiado, gozador,
ébrio, extático; é um ser de violência e de ternura, de amor e de
ódio; é um ser invadido pelo imaginário e pode reconhecer o real,
que é consciente da morte, mas que não pode crer nela; que se-
creta o mito e a magia, mas também a ciência e a filosofia; que é
possuído pelos deuses e pelas Ideias, mas que duvida dos deuses e
critica as Ideias; nutre-se dos conhecimentos comprovados, mas
também de ilusões e quimeras” 164.
Figura 21: Fachada de um muro em Quito, Equador.

Fonte: fotografia do autor

“Amigos para sempre”, escrito em inglês, revela o poder de


penetração do idioma estrangeiro nas cidades latino-americanas,
metonímia da influência dos Estados Unidos. Essa questão ideo-
lógica perpassa a construção do texto, como aponto nesses gestos
interpretativos, porém o efeito de sentido preponderante é o da

164 MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo:
Cortez, 2001, p. 59.

92
Adriano Charles Silva Cruz

afetividade, o clima de confidências entre amigos, perenizado na


pedra.
Na fluidez das “metrópoles comunicacionais165” tem-se os
discursos educativos, que visam disciplinar os sujeitos, subme-
tidos ao poder disciplinar, que segundo Foucault: é “um poder
que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior
‘adestrar’: ou sem dúvida adestrar para se retirar e se apropriar
mais e melhor166”.
Nas duas fotos capturadas em Otavalo, no Equador, podemos
ver o funcionamento dos discursos normalizadores dos compor-
tamentos à luz dos ideais escolares. São imagens de um discurso
permitido, inscritas em fachadas institucionais e em códigos ima-
géticos regulares, aproximando-se do ideal de realismo.
A ideologia oficial se manifesta na estética e na técnica dos
desenhos, pintados aos moldes tradicionais. As crianças repre-
sentadas são todas brancas, num país de maioria mestiça, estão
bem-vestidas, sem vestígios de sujeiras ou fora dos padrões da
“normalidade” das sociedades disciplinares, nas quais a loucura, a
doença e a transgressão devem ser combatidas.
Figuras 22 e 23: Fachadas de uma escola em Otavalo, Equador.

Fonte: fotografia do autor

165 CANEVACCI, Massimo. Culturas extremas: mutações juvenis nos corpos


das metrópoles. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
166 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 30. ed. Petrópo-
lis: Vozes, 2005, p. 143.

93
Mídia e Discurso

Quando as classificações falham


Se a escola é uma instituição reguladora de comportamentos,
também o serão as instituições militares, como o exército. Nes-
ses espaços, espera-se a emergência de textualidades educativas
e de incentivo aos valores tradicionais da sociedade, sob pena de
punição.
Figura 24: Fachada de instituição militar em Trujillo, Peru.

Fonte: fotografia do autor

Foucault, em sua famosa aula no Collège de France, advertia-


nos para os mecanismos de controle discursivo das sociedades
contemporâneas. Não se pode dizer tudo; as instituições sociais
também são operadoras de limitações e silenciamentos das ma-
terialidades discursivas. “Suponho que em toda sociedade a pro-
dução do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,
organizada e redistribuída por certo número de procedimentos
que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materia-

94
Adriano Charles Silva Cruz

lidade”167.
Submetidos à vigilância, a uma “tecnologia do poder”, con-
forme define Foucault168, as instituições militares incidem sobre
os corpos dos indivíduos, controlando seus gestos e suas ativida-
des. Dessa maneira, disciplinado, “o corpo humano entra numa
maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recom-
põe169”. Essa prática de poder dociliza os sujeitos e submete-os às
relações normativas.
Espera-se que as inscrições dos muros militares, tais como
as da escola de Otavalo, produzam efeitos de sentido educativos/
disciplinadores. Entretanto, os mecanismos de poder abrem es-
paço para as estratégias de resistência, conforme mostra a obra
foucaultiana.
As rupturas com as interdições foram capazes de se materiali-
zar em um acontecimento singular no corpus desta pesquisa.
Vemos uma fachada de um alojamento militar em Trujillo, no
interior do Peru. Chama-nos a atenção a expressão popular “ca-
rajo!” que nem sempre tem a conotação negativa do português,
mas ainda assim é considerada uma palavra à margem da escrita
do padrão culto. Diferentemente da língua portuguesa, o carajo
espanhol, com acento de exclamação, pode indicar uma boa sur-
presa, uma alegria ou mesmo ensejar o riso e o humor.
Foucault170 entende os enunciados inscritos num processo de
descontinuidade histórica. O movimento de regularidade e dis-
persão abre espaço para a noção de “acontecimento” como algo
que escapa à estrutura, irrompendo no solo da história.

167 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 13. ed. São Paulo: Loyola, 2006,
p. 8-9.
168 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 30. ed. Petró-
polis: Vozes, 2005.
169 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 30. ed. Petró-
polis: Vozes, 2005, p. 127.
170 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004.

95
Mídia e Discurso

No muro peruano, vemos que a “originalidade” está no retor-


no de um enunciado corriqueiro, mas interditado às instituições
militares, no local mesmo de sua proibição.
Ademais, o acontecimento discursivo da parede de Trujillo
mostra-nos que as ideias e os textos circulam socialmente e que
há espaço para a quebra da expectativa e das classificações estan-
ques.
Dessa forma, essa reflexão abre espaço para repensar os dis-
cursos políticos no interior dessa tradicional comunicação alter-
nativa, levantando questões sobre essas imagens tão corriqueiras.
Por fim, acompanhando os sinuosos movimentos do (dis)curso,
nos jogos de visibilidade e invisibilidade dos “invólucros dos sím-
bolos”, identificam-se as redes heterogêneas de sentidos e as posi-
ções dos sujeitos-autores ao comunicar seus afetos, seus desejos e
suas contestações no espaço fluido e infindo das cidades.

96
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando um rio corta, corta-se de vez


o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

O curso de um rio, seu discurso-rio,


chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.

João Cabral de Melo Neto

A
análise dos discursos que circulam na sociedade pode
contribuir para entender os jogos de poder e resistência
que se encontram em disputa. É possível ainda identificar
os múltiplos processos de produção social dos sentidos, sempre
negociados a partir dos lugares de fala e de silêncio.

97
Mídia e Discurso

Tentei mostrar que linguagem não é transparente e os signos


não são inocentes, às vezes, imagens e textos ocultam sujeitos e
ideologias, mas põem em evidência outros. Nesse sentido, a ex-
plicação matemático-informacional da codificação e decodifica-
ção de mensagens não é suficiente para entender os processos de
construção de sentidos.
Desde a primeira conformação da teoria nos anos sessenta,
houve uma série de mudanças epistemológicas na Análise de Dis-
curso. Entre deslocamentos e reposicionamentos, a concepção de
um discurso fechado em si abriu espaço às análises das formações
discursivas e dos processos de negociação em seu interior.
Tal como um rio, as imagens, textos, vídeos estão em relação a
outros. É preciso observar ainda a natureza da produção, circula-
ção e consumo das mídias. Assim, o analista se debruça na análise
da materialidade discursiva em sua relação com o macrocontexto,
as condições de produção.
Ao pensar a linguagem em sua relação com a história, enten-
do que não somos donos exclusivos de “nossos” discursos, mas
que estamos inscritos em formações ideológicas que interferem
na maneira que falamos, produzimos e silenciamos. Todo discur-
so é interdiscurso, porque está atravessado por outros. Há sempre
margens, brechas e negociações de toda sorte.
Nesse sentido, os indivíduos usam a linguagem a partir da
formação ideológica, cultural e política em suas relações com a
sociedade.
É preciso interpretar as imagens e textos a partir das estru-
turas institucionais e da cultura. Em outras palavras: quem fala?
De que lugar fala? E de que maneira? São questões que ajudam a
reconstruir os fios de uma teia, sempre heterogênea.
Jornalistas, fotógrafos, diretores, criadores de memes falam de
um lugar social e, por vezes, mudam de posições discursivas. Dito
de outro modo, os sujeitos podem se identificar plenamente com
uma formação discursiva, podem romper com ela ou negociar vá-
rias posições em seu interior. Dessa forma, emergem polêmicas,

98
Adriano Charles Silva Cruz

identificações e contradições.
Se a comunicação nos anos sessenta ainda era calcada nos im-
pressos, hoje, é impensável não considerar a mediação das redes
sociais e das tecnologias móveis. De fato, a consolidação das tec-
nologias digitais e das novas formas de comunicação mediadas
pela internet reconfiguraram práticas sociais e discursivas e, tam-
bém, põe em destaque o papel dos receptores.
A capacidade de edição, produção e divulgação relativiza, em
certa medida, o poder da mídia massiva e abre a mirada para os
processos de reconfiguração das mensagens, sobretudo nas redes
sociais.
No Brasil, as culturas são híbridas, convivem o pós-moderno
e o arcaico. Nessas intrincadas fronteiras, surgem novas materia-
lidades, como os memes, ao lado das tradicionais imagens, como
as revistas e o cinema, e dos processos comunicacionais alternati-
vos, como os muros das cidades.
Entendo que é preciso observar os múltiplos processos de
discursivização, entre imagens, dizeres e não ditos no interior de
uma cultura midiatizada, em que todas as esferas sociais seguem
a lógica das mídias.
O discurso é fluido, pois as relações sociais são construídas
nos movimentos descontínuos da história. Assim, os sentidos são
também cambiantes, nos fios a fios da memória, se constrói a mo-
vência de discursos na liquidez da modernidade.

99
POSFÁCIO

O
s enunciados. As linguagens. As manifestações e as ora-
ções. Nas instituições, nas representações e atores sociais,
nas subjetividades, nas políticas e nas culturas; como não
pensarmos nos discursos?
Mídia. Meios, suportes, mensagens e difusão. Como não pen-
sarmos nos discursos na mídia? Para nos auxiliarmos nessa tarefa
reflexiva, o livro do pesquisador e professor potiguar, Adriano
Charles Cruz, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, de-
monstra essa sempiterna necessidade de compreendermos a luz
da “construção de sentido”.
O pesquisador nos presenteia e nos atualiza com os notá-
veis pensadores no campo do discurso para interpretarmos essas
construções nos diversos suportes: fotografia, documentário, re-
vistas semanais, memes e muros das cidades, recortando, empi-
ricamente, e no rigor metodológico, exemplos que avançam no
entendimento da mensagem.
A publicação é uma ótima oportunidade para investigadores
no campo da Comunicação e dos Estudos da mídia, sobretudo,
alunos de graduação e pós-graduação que possuem na Análise de
Discurso (AD) uma das principais teorias, métodos e técnicas nos
seus trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses. Cruz,
especialista destacado na UFRN, lança seu olhar perscrutador e
astuto à emergência dos fenômenos atuais que cada vez mais es-
tão capturados e encadeados pelos discursos.
Muitas dessas afirmativas dos fenômenos expostos aqui, em
especial atenção às declarações nos muros das cidades latino-a-
mericanas por onde passou o pesquisador, nos remetem aos fun-
damentos de Luiz Beltrão que cita o cumprimento das expressões
folkcomunicacionais como meios informais de comunicação,

100
Adriano Charles Silva Cruz

utilizados por grupos marginalizados “justamente os que contes-


tam a cultura dominante e estes que compreendem e reconhecem
como grupos sociais que observam e vivem suas diferenças cul-
turais”171.
Cruz nos indica que “linguagem não é transparente” e os
“signos não são inocentes”; “imagens e textos ocultam sujeitos e
ideologias” [...] nunca foi tão hodierno essas afirmações! Num
contexto cada vez mais midiatizado, tecnológico e fake, de dis-
cursos polarizados e truculentos ao redor do mundo ocidental,
o livro Mídia e Discurso reproduz e descreve himeneu longe de
uma cisão, pois não conseguiremos deixar de ver, ler ou ouvir a
mídia sem os distintos discursos, nem tão pouco, discursos não
estarem presentes na mídia. É nessa comunhão e des (h)armonia
dos fenômenos que Adriano Cruz lança e convida-nos o desafio e
a provocação desta agradável leitura!

Maria Érica de Oliveira Lima


Jornalista. Professora Associada do curso de Jornalismo e do
Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade
Federal do Ceará (UFC). Conselheira e ex-presidente (2013-2016)
da Rede de Estudos e Pesquisa em Folkcomunicação. Coordenado-
ra do GP Folkcomunicação, Mídia e Interculturalidade – INTER-
COM e DTI – Folkcomunicação – IBERCOM.
Fortaleza, 07 de outubro de 2018.
Eleições gerais no Brasil

171 BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: teoria e metodologia. São Bernardo do


Campo: Umesp, 2004.

101
SOBRE O AUTOR

É
graduado em Comunicação e especialista em Jornalismo
Econômico pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, mestre em Comunicação pela Universidade Fede-
ral de Pernambuco, doutor em Letras pela Universidade Federal
da Paraíba, com intercâmbio na Universidade de Paris X e na
Universidade Distrital Francisco José de Caldas (Colômbia). Re-
alizou estágio de pós-doutorado em Comunicação na Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Contato:
adrianocruzufrn@gmail.com

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