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SÉRIE MEMÓRIA
E PATRIMÔNIO
UNILASALLE 10
Memória social:
revisitando autores e conceitos
Zilá Bernd
Cleusa Maria Gomes Graebin
Organizadoras
Canoas, 2018
SUMÁRIO
Memória social:
revisitando autores e conceitos (apresentação) .............................................. 7
Zilá Bernd e Cleusa Maria Gomes Graebin
7
esse campo de estudos. Com o artigo Memória [...] Superfícies, contextos sentidos, as
colegas brindam os leitores com mapas discursivo-conceituais de autores como Paul
Ricoeur, um dos mais férteis pensadores da área, e Franz Fanon, um dos grandes
artífices do movimento da Negritude dos anos 30. O artigo apresenta ainda um novo
olhar sobre as obras de Maurice Halbwachs, Henri Bergon e Israel Rosenfield, além
de originais mapas da Memória e Instituição (fig, 6) e Memória e contextos (figura 7).
Tais mapas correspondem a possíveis interligações dos conceitos “como uma trama
que poderia representar a lógica categorial” dos discursos teóricos apresentados no
presente artigo.
No segundo artigo trazemos aos leitores importante contribuição aos
estudos literários iluminados pelas teorias da Memória Social. Trata-se do artigo da
pesquisadora da University of Winnipeg (Canadá), Adina Balint, intitulado Écriture,
mémoire et « non-savoir » chez N. Huston, C. Mavrikakis et A. Ernaux. Mantivemos
o artigo no original em francês por ser o corpus composto por escritoras de língua
francesa de diferentes contextos: Nancy Huston, nascida no Canadá e residente na
França há mais de 30 anos, tendo livros publicados em muitas línguas inclusive em
português; Catherine Mavrikakis, do Quebec, e Annie Ernaux, consagrada escritora
francesa.
Na sequência Zilá Bernd (Unilasalle) e Kelley Baptista Duarte, da Universidade
Federal do Rio Grande, retrabalham o valioso conceito de Memória Cultural,
embasado pela prolífica pesquisadora quebequense Régine Robin que já teve um de
seus livros traduzidos para o português: A memória saturada (Unicamp). Trata-se
de, ao mesmo tempo revisitar o conceito de Memória Cultural e de prestar uma justa
homenagem a esta infatigável pesquisadora nas áreas da Análise do Discurso, da
História e da Memória Social.
Lucas Graeff e Cleusa Maria Graebin (Universidade LaSalle) retomam a obra
do incontornável precursor dos estudos em Memória Social, Maurice Halbwachs, em
artigo intitulado Maurice Halbwachs: dos quadros sociais à memória coletiva. Trata-se
de importante contribuição, na medida em que a análise parte do livro de Halbwachs
menos estudado em nosso meio acadêmico: Les cadres sociaux de la mémoire, cuja
primeira edição é de 1925, estabelecendo um link entre o primeiro livro do autor –
que podemos considerar o fundador dos estudos da memória - e o livro que o tornou
famoso: La mémoire collective, cuja primeira edição póstuma é de 1950.
A reconciliação como um caminho para libertação das memórias feridas
(violentas): Trauma e Testemunho, é o título do alentado estudo apresentado por
Euler Renato Westphal e Luana de Carvalho Silva Gusso, ambos do Mestrado em
Patrimônio e Sociedade da Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE,
Joinville-SC. A temática que abordam que associa Memória e Trauma é uma das
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mais férteis correntes dos estudos em Memória Social da atualidade. O artigo se
constitui como uma criteriosa reflexão interdisciplinar: ele doutor em teologia e ela
com doutorado em Direito.
O atualíssimo tema que associa Memória, imagem, fotografia e arte é abordado
em três importantes contribuições: a primeira, de Sérgio Luiz Pereira da Silva, da
UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) intitulada O lugar da
Arte na Memória Social e na Identidade Cultural; a segunda de Elisa Maria Amorim
Vieira, da Universidade Federal de Minas Gerais, Doorway to Brasilia e Brasilia vive!:
imagens da utopia, cujo objetivo é observar a ideia da cidade utópica e a presença
conflitiva dos elementos naturais em meio à construção da nova capital do Brasil,
tanto em Doorway to Brasilia (1959), livro dos artistas Aloísio Magalhães e Eugene
Feldman, quanto no fotolivro Brasília vive!, de Peter Scheier e John Konx; e a terceira
de Cláudio de Sá Machado Jr. UFPR (Universidade federal do Paraná) que recupera a
temática das Coleções fotográficas, museus imaginários, com acuradas reflexões sobre
a relação fotografia-memória na pesquisa histórica.
Tamára Cecilia Karawejczyk Telles, da Universidade LaSalle inova a disciplina
de Memória Social, abordando-a pelo viés da memória institucional e organizacional
com capítulo intitulado Potencialidades dos estudos sobre memória organizacional,
com ênfase para a construção teórica e as perspectivas metodológicas.
Dóris Bittencourt Almeida (Pós-doutoranda UDESC) e Lucas Costa Grimaldi
(Doutorando PPGEDU-UFRGS) trazem de modo muito oportuno à nossa proposta
de revisitação de grandes autores e conceitos em Memória Social, o tema das relações
entre as sensibilidades e a educação com o artigo: Na esteira das memórias estudantis:
diálogos entre a História das Sensibilidades e História da Educação.
O derradeiro artigo do grupo de pesquisa do Programa de Pós-Graduação
em Patrimônio Cultural e Sociedade e do Departamento de História da Universidade
da Região de Joinville – UNIVILLE, constituído pelos pesquisadores João Pacheco
de Souza, Roberta Barros Meira, Dione da Rocha Bandeira, Mariluci Neis Carelli,
Tatiane Andaluzia Kuss da Silveira, Jessica Ferreira e Vitor Marilone Cidral da Costa
do Amaral, os quais se debruçaram sobre a temática da paisagem em artigo intitulado
O fazer e o refazer da paisagem: diálogos com os centros históricos e os lugares de
memória ligados ao patrimônio baleeiro.
Muito felizes com os resultados deste esforço coletivo, que reuniu
pesquisadores de sete Universidades brasileiras e de uma universidade canadense,
que se empenharam em trazer atualizadas reflexões sobre autores e conceitos em
Memória Social, convidamos os leitores a compartilhar desse diversificado painel
de temáticas clássicas da área que foi iluminado pelo olhar contemporâneo de
9
pesquisadores que são também, em sua maioria, professores atuantes em diferentes
programas em Memória Social do Brasil e no exterior.
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Memória [...]1
Superfícies, contextos e sentidos
Fonte: as autoras
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era eurocêntrica e, portando, euroepistêmica. Naturalmente fomos formadas nesse
contexto epistêmico, mas compreendemos que o pós-colonialismo, por exemplo,
é um movimento global, entre outras ações relativas à imigração para os países
colonizadores, que tem a memória como um seus embates mais violentos. Assim,
introduzimos no programa da disciplina MSI um autor negro, médico e psiquiatra
que, ao lado de sua participação no Movimento de Libertação Nacional na Argélia,
ainda encontrou tempo para relatar as estruturas sociais daquela colônia francesa.
Seu discurso sobre a família argelina foi mapeado e o autor Frantz Fanon passou
a fazer parte do plano de aulas. A aquisição recente das leituras sore a memória
individual no funcionamento do cérebro nos incentivou a construir uma conversa
entre Israel Rosenfield e Henri Bergson.
A título de exercício reflexivo sobre os discursos ‘imaginados’ que constam,
ainda que não mapeados explicitamente, do quadro (plano de disciplina) a ser
discutido no próximo item, construímos aqui uma possível conversa entre Halbwachs/
Fanon (memórias coletivas) e entre Bergson/Rosenfield (memória individual) além
de outros pensadores do campo da memória que não aparecem ainda em nosso
quadro discursivo-conceitual, mas podem dele vir a fazer parte a qualquer momento.
Paradoxalmente, dois entre os mais relevantes autores com teses importantes para
a compreensão do estatuto da memória no campo individual, social e acadêmico-
científico - Maurice Halbwachs e Henri Bergson - não constam diretamente do
programa da disciplina. Bergson (memória individual) e Halbwachs (memória
coletiva) são estudados com maior aprofundamento nas disciplinas “Memória Social
I e Memória Social II que são disciplinas obrigatórias, assim como Memória Social e
Instituição. As três disciplinas formam a base dos estudos sobre memória que serão
aprofundados nas quatro disciplinas optativas das linhas de pesquisa do programa:
Patrimônio, Espaço, Linguagem e Subjetividade.
13
De acordo com Ingold (2015, p. 153), “o meio ambiente é, em primeiro lugar,
um mundo no qual vivemos, e não um mundo para o qual olhamos. Habitamos o nosso
meio ambiente: somos parte dele; e através desta prática de habitação, ele também
se torna parte de nós.” Nesse sentido, o meio ambiente deve ser experimentado e
não apenas descrito. Esse ambiente, ou a vida, podemos afirmar, é o conjunto de
possibilidades de representação não apenas do objeto em si mas de seu constante e
infindo movimento.
Consideramos, aqui, o fio da narrativa como um objeto em movimento que
construirá a ‘malha’ da memória. Um exemplo é o conceito de ‘superfície’ discutido
por James Gibson em sua obra A abordagem ecológica da percepção visual, conforme
indica Ingold (2015, p. 53-54) e do qual nos apropriamos neste texto, no que diz
respeito a três componentes do ambiente habitado: o meio, a substância e a superfície.
Na interface entre o meio e as substâncias estão as superfícies. Superfícies são, então,
o movimento entre mente e matéria e podem ser, no nosso entender, aproximadas ao
‘conceito’ de um objeto.
Que experiência ambiental podemos vivenciar para estudar um conceito
como o de ‘memória social’? Uma proposta seria a de pensar o contexto em que
as experiências singulares e coletivas se dão, considerando sempre, como Ingold
(2015), que a vida não se desenrola sobre um plano inanimado, um mundo pronto.
Os conceitos são tão variados e móveis, ao mesmo tempo em que são amarrados e
soltos (rede, trama, tessitura, malha), que podemos pensá-los como fios de narrativas
(de Penélope?) circunstanciadas por modos animados de vidas de seres (objetos e
animais). Nesse sentido, é importante identificar a contribuição que cada estudioso
da memória pode oferecer ao campo, ou domínio, para criar uma malha ou rede de
contextos circunstanciados no tempo e no espaço.
Escolhemos para esta demonstração dois possíveis diálogos entre Maurice
Halbwachs e Frantz Fanon, no solo da memória coletiva, ao lado de Henri Bergson e
Israel Rosenfield no que concerne à memória individual, embora haja atravessamentos
de narrativas entre autores.
************
Maurice Halbwachs
Maurice Halbwachs (1994, 1997, 2004) nos deixou textos importantes para a
compreensão do conceito não só de memória coletiva mas, mais importante ainda,
foram seus estudos sobre os quadros sociais da memória, onde as ideias de indivíduo
e coletivo foram discutidas. Com os estudos de Halbwachs sobre a memória de
14
famílias, o sociólogo encoraja futuras discussões sobre a história oral, além de sua
pesquisa sobre a memória de comunidades religiosas ter acentuado os aspectos
topográficos da memória, antecipando, assim, a noção de ‘lugares de memória’ de
Pierre Nora (1993).
Para Gérard Namer, prefaciador do livro de Maurice Halbwachs “La mémoire
collective”, o texto organizado naquela edição crítica de 1997, no original em francês,
pauta-se na releitura dos manuscritos deixados àquela época há mais de 50 anos,
pelo sociólogo e, segudo Namer, o resultado da edição aproxima seu conteúdo
em importância à obra Les cadres sociaux de la mémoire do próprio Halbwachs.
Sugere Namer que a leitura de Memória Coletiva deva ser considerada como uma
continuação, um complemento a Quadros sociais. Nessa edição, o primeiro capítulo
- La mémoire collective chez les musiciens era, na verdade, um artigo publicado na
Revue Philosophique , n. 3 e 4 de 1939 e que Halbwachs teria comentado seu desejo
de incluí-lo na obra Memória Coletiva, lançada após sua morte, em 1945.
Para quem conhece apenas a edição de 1968 da Presses Universitaires de
France, ganha em densidade com a leitura da edição crítica, justamente por conta
das narrativas sobre o autor e sua obra, além do deslocamento do último texto para
o primeiro - A memória coletiva nos músicos. Embora existam dúvidas sobre esta
questão, Halbwachs talvez tivesse encontrado, no exemplo da memória musical,
uma substancial defesa de sua tese sobre a necessidade do grupo, comunidade ou,
simplesmente, do outro ser como uma espécie de contexto necessário para que
as lembranças pudessem ser criadas no cérebro dos indivíduos. Recortamos um
parágrafo, da edição brasileira (bem fiel à edição crítica em francês), que exemplifica
essa nossa suposição (HALBWACHS, 1997 [ed. francesa, p. 21]; 2004, [ed. brasileira,
p. 170) :
Chegamos aos sons musicais. Se, para fixá-los em nossa
memória e lembrá-los, apenas pudéssemos ouví-lo [sic], o
maior número de notas ou de conjuntos de sons musicais
que ferem nossos ouvidos, rapidamente nos escaparia.
Berlioz contou em suas memórias que uma noite compôs
mentalmente uma sinfonia que lhe parecia admirável.
Ia anotá-la, quando pensou que para executá-la seria
necessário perder tempo e dinheiro em diligências, quando
decidiu renunciar a isto e nada anotou. Na manhã seguinte
não lhe restou nenhuma lembrança daquilo que se lhe
apresentara e do que ouvira anteriormente, algumas horas
antes, com tal nitidez. Isto acontece e com mais razão entre
aqueles que não aprenderam nem a decifrar, nem a executar.
Quando saem de um concerto em que ouviram uma obra
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pela primeira vez, não resta em sua memória quase nada.
Os motivos melódicos se separam e suas notas se espalham
como as pérolas de um colar cujo fio se rompeu. Certamente,
podemos, mesmo quando somos ignorantes da transcrição
musical, reconhecer e lembrar desta ou daquela sequência de
notas (uma suíte), árias, temas, melodias, e mesmo acordes,
e partes de uma sinfonia. Mas, então, ou se trata daquilo
que ouvimos várias vezes, ou que aprendemos a reproduzir
vocalmente. Os sons musicais não se fixaram na memória
sob a forma de lembranças auditivas, mas aprendemos a
reproduzir uma sequência de movimentos vocais. Quando
encontramos uma ária, nos reportamos para um desses
esquemas ativos e motores dos quais fala Bergson que, ainda
que estejam fixados em nosso cérebro, permanecem fora de
nossa consciência. Ou então trata-se de sequências de sons
que seríamos incapazes de reproduzir nós mesmos, mas que
reconhecemos quando outros a executam e somente nesse
momento.
************
Frantz Fanon
16
violência do processo colonial, Fanon se uniu à resistência argelina, participando
posteriormente de maneira ativa na política africana pós-colonial.2
Fanon elucida a relação pai e filha sendo esta colocada a um grau abaixo da
figura masculina e que conhecia apenas duas realidades: a da infância-puberdade e
a do casamento. Entretanto, com o movimento, há uma identificação da liberdade
do povo à libertação da mulher. A seguir Fanon aborda a relação entre os irmãos. Se
antes do movimento de libertação o primogênito era o sucessor natural do pai, tendo
então tratamento privilegiado na família, após a luta ter início essas relações dão
lugar a novas: o irmão mais velho não tem necessariamente sempre razão e cada um
define seus novos valores.
2
Fanon, Frantz. Wikipédia. https://pt.wikipedia.org/wiki/1961
17
Figura 2 - Mapa discursivo-conceitual sobre a ‘família argelina’ de Frantz Fanon (1976)
************
Henri Bergson
3 [1]
Afunção do cérebro seria a de escolher a todo momento, por entre as lembranças,
aquelas que iluminam a ação iniciada, de excluir as demais. (tradução livre)
18
sobre memória individual e memória coletiva alcançaram uma quase revolução do
pensamento em diversos campos. Bergson escreve no alvorecer do século XX, em
meio a um debate científico que reverbera as questões do evolucionismo, das teorias
freudianas, da teoria da relatividade, da emergência dos estudos antropológicos na
França. Seu livro Matéria e Memória, de 1897, antecede a Interpretação dos Sonhos,
de Freud, publicado em 1900, e Evolução criadora aparece em 1907, um ano depois
do ensaio de Marcel Mauss Esboço de uma teoria geral da magia. Em 1905, Einstein
publicava sua Teoria da relatividade especial. Naquele momento, Bergson (2005,
p. 17) está dedicado a desfazer as oposições que separam realismo de idealismo e a
construir um caminho que as atravesse. Este caminho se desenhará através de sua
concepção da memória como tempo contínuo, acumulativo e irreversível, constituído
do processo vivo propriamente dito de movimento e criação. Entre o corpo/realismo
e o espírito/idealismo está a memória (DODEBEI; ANDRADE, 2018).
************
Israel Rosenfield
4
A base biológica dessa abordagem da memória e do funcionamento do cérebro acha-
se descrina teoria do darwinismo neural de Gerald Elman. Ver Neural Darwinism: The
Theory of Neuronal Group Selection (Basic Books, New York 1987). Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/Gerald_Edelman. Acesso em 18 julho, 2018.
19
primeira refere-se à ‘doutrina da localização funcional’ (séc. XIX), das simulações
em computador, em que o mundo é processado em percepções que são comparadas
às imagens previamente armazenadas no cérebro ou informações codificadas
na memória dos computadores para que ocorra a aprendizagem; a segunda tese
refere-se à afirmação de que a percepção e o reconhecimento são funções cerebrais
independentes. Nesse sentido, o “cérebro categoriza os estímulos de acordo com a
experiência passada e com as necessidades e desejos pessoais, e essa categorização
constitui a base da percepção e do reconhecimento” (ROSENFIELD, 1994, p. 8).
Na defesa da segunda tese (holista), Rosenfield lembra que o mundo está sempre
em movimento e muda constantemente por isso devemos estar preparados para o
novo e o inesperado. Segundo o autor não precisamos de imagens armazenadas,
mas de “procedimentos que nos ajudem a manipular e compreender o mundo”
(ROSENFIELD, 1994, p. 08).
Quer nos parecer que os discursos sobre a memória aqui recortados nos
levam, de um lado, a pensar ainda na dicotomia da natureza individual e coletiva
da memória. Nesse sentido, Bergson e Rosenfield mantêm o diálogo vivo do olhar
interior e do olhar exterior como bem ressalta Ricœur (2007). Por outro lado, as
pesquisas de Fanon e Halbwachs se aproximam dos discursos sobre a instituição
‘família’ como em Engels, Weber, Diana Taylor e outros já incorporados em nosso
programa de disciplina.
20
terminológicas, metodológicas e da tradição. Em contrapartida, compreendemos o
‘contexto’ ou espaços de pesquisa, como sendo mais dinâmico que ‘campo’ pois que
naquele há uma riqueza de olhares e perspectivas de abordagens circunstanciais aos
problemas.
O objetivo da disciplina Memória Social e Instituição é o de oferecer um
amplo leque de opções discursivas em um recorte autoral que discuta a relação
memória social e instituição. A tabela 1 representa a síntese do programa da disciplina
Memória Social e Instituição, em sua versão atual, organizado por discursos, focos,
autores e conceitos-chave.
Figura 3 - Programa de disciplina - Memória Social e Instituição
Discursos Focos específicos Autores/ Conceitos teóricos
principais Bibliografia
Natureza Clifford Geertz Cultura
Ecologia, Cultura,
individual e Norbert Elias Balança nós/outros
Contracultura
coletiva da Luís Britto Garcia Contracultura
Sociedade
memória **Tim Ingold Meio ambiente
Ética Protestante/
Natureza
Capitalismo
político- Max Weber
Família/Propriedade e
econômica da Religião e família Engels
Estado
memória *Frantz Fanon
Família/Colonialismo/
Revolução
Justa memória
Paul Ricœur
Natureza sócio- Imaginação/Criação
**Israel Rosenfield
histórica da História e Cultura Documento/
JacquesLe Goff
memória Monumento
Erll & Nünning
Memória Cultural
Gilberto Velho Sociedades complexas
Otavio Ianni Globalização
Sociologia e
Natureza Renato Ortiz Cultura Nacional
Antropologia
multicultural Berger & Sociologia do
Identidade
das identidades Luckmann conhecimento
Nacional
Erving Goffman Instituição total
Stuart Hall Estudos Culturais
* Autores com entrada recente no plano da disciplina Memória Social e Instituição - MSI
** Autores que farão parte em 2019.
21
(continuação)
Lugares de memória
Pierre Nora Instituições de
Memórias Gérard Namer memória
Preservação da externas e Diana Taylor Memória do corpo/
memória memórias do Aleida Assmann performance
corpo Antonio Garcia Arquivo e repertório
Gutiérrez Desclassificação e
exomemórias
Fonte: as autoras
22
escritor imaginar como o cérebro poderia categorizar objetos por imagens mentais e
encontrar a melhor palavra para descrevê-la.
Ao lado da informação visual sobre diversas estruturas que têm nos invadido
nas redes sociais, os mapas visuais veem recentemente surgindo no campo das Artes.
Podemos citar o trabalho do arquiteto e artista italiano Pietro Ruffo - ‘Constelações
Migrações’ (2018), que está em exposição neste agosto de 2018 no Instituto Italiano
de Cultura do Rio de Janeiro, com o apoio do Centro Cultural dos Correios. Essa
tendência de cercar-se de mapas, principalmente no campo das artes, nos conforta
não somente pela beleza plástica mas, como toda obra de arte de maneira crítica, visa
alertar o mundo sobre suas mazelas.
Figuras 4 e 5 – “Constelações Migrações” Africa e Africa (detalhe)
23
Figuras 6 e 7 - Mapas Memória e Instituição.
Fonte: as autoras
24
mas, tão somente, uma proposta possível de pensar o conceito de ‘memória e
instituição’.
Referências
25
KARPELES Manuscript Library. Roget’s Thesaurus manuscript archives. Disponível
em: <http://www.Bartley.com>.
MICHAUD, P-A. Aby Warburg e a imagem em movimento. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2013.
NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História.
Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de
História. n. 10, 1993, p. 1-78.
RICŒUR, P. Memória, história e esquecimento. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2007.
ROSENFIELD, I. A invenção da memória: uma nova visão do cérebro. Rio de janeiro:
Nova Fronteira, 1994.
RUFFO, P. Constelações Migrações. Rio de Janeiro: Centro Cultural dos Correios,
2018. (Exposição).
26
Écriture, mémoire et « non-savoir »
chez N. Huston, C. Mavrikakis et A. Ernaux
Adina Balint
Paul Ricœur a souvent soutenu l’idée que le sens du texte excède les subjectivités
de l’auteur et du lecteur, et que les intentions de l’auteur ne pourraient à elles seules
propulser le texte au bout de sa signification. Si le philosophe thématise peu la création
littéraire envisagée comme projet, il offre néanmoins la possibilité de réconcilier
deux grands paradigmes dans ce domaine : l’un fondant l’esthétique de l’expression,
où beaucoup de place est accordée à la voix, à la présence et au génie du créateur ;
l’autre, plus formaliste, qui conduit à la « mort de l’auteur » (BARTHES, 1968, p. 12)
ou à son effacement, sa « neutralisation » (BLANCHOT, 1954, p. 66). Dans chacun
de ces cas, Ricœur n’est pas en faveur des postures absolues. Le discours poétique ne
procèderait pas uniquement de l’individu créateur ni, au contraire, seulement d’un
langage autonome : « L’œuvre pure », comme dirait Mallarmé (1954, p. 366), le génie
pur, seraient des fantasmes, des lubies, car il n’y aurait de discours que mixtes, en
interaction avec le monde, tous investis de « métaphoricité » (RICŒUR, 1975, p. 382).
En outre, le texte « est beaucoup plus qu’un cas particulier de la communication
interhumaine, il est le paradigme de la distanciation dans la communication […] une
communication dans et par la distance » (RICŒUR, 1984, p. 114). Ricœur évoque
donc les théories du discours : comme Émile Benveniste, il souligne que le langage
n’est pas la langue et que, s’effectuant temporellement comme discours, il constitue un
événement ; mais le discours n’est pas qu’événement, il est surtout signification, grâce à
ses différents niveaux de sens. Dans cette perspective, l’action de dire, comme jeu entre
événement et sens, est une médiation, une distanciation avec le dit. Si le discours parlé
effectue pour ainsi dire le langage en médiatisant des intentions, le discours de l’œuvre
restructure le langage en médiatisant l’intentionnalité à un degré encore plus distancé :
poétique, stylisé. Parce que l’écriture n’est pas la parole, elle fixe le discours à l’extérieur
des paramètres du dialogue où l’intentionnalité de chacun viendrait contraindre la
signification. Libéré des intentions psychologiques de l’auteur, le « monde du texte »1
peut déployer l’être-au-monde qu’il recèle pour d’autres individus.
À un autre niveau, du point de vue psychanalytique, Julia Kristeva envisage la
création littéraire comme une aventure du corps et des signes qui portent témoignage
de l’affect. Le processus créateur transpose ainsi l’affect dans des rythmes, des
signes et des formes. Selon Kristeva, « le sémiotique » et « le symbolique » (1974,
p. 22-23, p. 41-42) deviennent les marques communicables d’une réalité affective
présente, sensible au lecteur – qui pourrait s’identifier avec le récit (auto)fictionnel,
par exemple, et affirmer « j’aime ce livre » ou « je ne l’aime pas » – mais néanmoins,
cette réalité reste diffuse, difficilement rendue par les mots. Cette hétérogénéité de la
genèse du sens suggérant le processus, le mouvement, advient donc au croisement
de deux modalités qui la constitue et qui sont : les pulsions (le sémiotique) et leur
articulation (le symbolique) dans le langage.
Pour revenir à Ricœur : celui-ci soutient que le rôle de l’écrivain serait de
mettre en forme une œuvre qui soit non seulement sensible et expressive, mais aussi
intelligente et sensée, qui fasse figure pour soi et pour d’autres. L’écrivain devrait à
cette fin appliquer des techniques, des stratégies de l’effet qui agissent sur lui-même
avant d’agir sur l’autre. Ricœur ajoute : « [L]e texte est le lieu même où l’auteur
advient. Mais y advient-il autrement que comme premier lecteur ? La mise à distance
de l’auteur par son propre texte est déjà un phénomène de première lecture » (1984,
p. 158) au cours duquel se déroule une sorte d’« appropriation », un « rendre propre
ce qui d’abord était étranger » (RICŒUR, 1984, p. 171). S’engager dans le processus
de création d’une œuvre, ce serait donc se composer une individualité à partir de
l’inconnu, pour mieux la rendre à l’étranger et l’étrangère, ensuite.
1
Ricœur traite de cette notion, notamment, dans Temps et récit 1 (Paris : Seuil, 1983), p. 17,
103, 146-155 et dans Temps et récit 3 (Paris : Seuil, 1985), p. 286-288.
28
RE-COMMENCER : FRAGILE NON-SAVOIR
Il est évident chez Ricœur qu’« exister, c’est [d’abord] ne pas savoir, au sens fort
du mot ; toujours la singularité renaît en marge du discours. Il faut un autre discours
qui le dise » (1999, p. 43). Cette exigence du non-savoir qui revient sans cesse motiver
ou heurter l’écrivain, nous la retrouvons également dans l’œuvre du philosophe et
essayiste québécois Pierre Bertrand (2007). On écrit pour dépasser un empêchement,
estime Bertrand, pour transformer les impasses de la vie en nouvelles possibilités.
Dans sa démarche, l’écrivain devrait retrouver un visage nu, un visage qui ne sait pas
; passer du savoir au percevoir. La perception consiste à « participer d’un mouvement
qui dépasse tout savoir et toute maîtrise, mouvement toujours déjà en cours et qui ne
cesse de se produire » (BERTRAND, 2007, p. 120). On évoque ici, certes, la vie dans
son insaisissable instant, l’irréfutable individualité. Dans un premier chapitre de son
essai L’intime et le prochain, intitulé « L’identité », Bertrand montre avec justesse que le
rapport à l’autre se fait habituellement par les signes visibles qui sont associés à l’identité,
lorsqu’on ignore des mouvements invisibles, « infinitésimaux » :
Si c’est une identité que nous voyons, qu’elle soit ethnique,
religieuse, culturelle, professionnelle, sexuelle, personnelle,
nous regardons de trop loin et ne voyons par conséquent
que de grandes lignes immobiles, là où il existe pourtant une
multiplicité de mouvements infinitésimaux (2007, p. 9) .
Selon Bertrand, pour créer : « Il faut atteindre un niveau de soi où l’on est semblable
aux autres. C’est quand nous touchons ce niveau que nous créons, aussi bien dans un art
particulier que dans la vie » (2007, p. 123). Dans l’écriture, Bertrand éprouve l’union de
l’universel et du particulier, cristallisée dans la formule rimbaldienne « Je est un autre »,
mais au sens d’une impossible connaissance de soi2 : « On a beau tenter de se connaître
par l’écriture, on écrit précisément parce qu’on ne peut pas se connaître. […] L’écriture est
une forme de parcours – je me déroule, me dévoile, me construis et m’invente sans que je
puisse savoir qui je suis, car je le deviens » (BERTRAND, 2000, p. 58).
Écrire, ce serait donc reconnaître avec Ricœur que la singularité de l’écrivain
renaît à travers l’altération de la temporalité : l’ipse ébranle l’idem. Cette singularité
le pousse, revient affolante en marge de ce qu’il écrit. Toujours, il lui faut un autre
discours pour dire ce débordement, ce récit fragmentaire, parce qu’en devenir. Cette
impossibilité de « totalisation » du « je » rappelle « l’inachèvement ‘narratif ’ de la
vie »3, entrevu par Ricœur. La vie d’une personne est éparse, « un mixte instable entre
2
« Connaissance de soi » entendue comme « transparence du sujet à lui-même » - voir
Paul Ricœur, Du texte à l’action, p. 35.
3
Paul Ricœur, Soi-même comme un autre (Paris : Seuil, 1990), p. 191, où il discute de l’exigence
d’une « unité narrative de la vie » chez McIntyre, pour la « projection de la ‘vie bonne’ » (p. 190).
29
fabulation et expérience vive [bien que nous ayons besoin] de la fiction pour organiser
cette dernière » (RICŒUR, 1991, p. 191) en une sorte d’identité narrative, l’altérité
radicale du soi reste inénarrable. De fait, le soi ne serait pas qu’agent actif, maître de
son histoire dans les mises en scène qu’il organise. Il serait aussi « patient passif » : sujet
à qui manquera toujours une parfaite transparence à lui-même. Or, le processus de
création – pas plus que la vie – n’est pas que pure action : il comporte aussi une part de
passivité, d’altération, de langueur dans l’expérience du corps, de l’autre et de la pensée.
Aussi faut-il sans cesse chercher une voie pour dire cette distension du monde sous
l’empoigne du langage, cet éparpillement des êtres et des choses sous l’effort du logos
afin de créer du nouveau savoir, ne serait-ce que sous la forme « faible », de ce qu’on va
appeler « non-savoir ».
30
se confronte aux mêmes impasses logiques que celles qui se posent dans le rapport
entre l’entendement et la chose en soi. « La nature intime de l’inconscient nous est
aussi inconnue que la réalité du monde extérieur » (Freud cité dans BRETON, 1955,
p. 21), écrit Freud. L’homme ne peut plus se connaître en soi qu’il ne peut connaître
la limite de l’univers. Et c’est justement sur le sentiment d’identité qui intervient
paradoxalement entre des infinis aussi distincts que « le ciel étoilé au-dessus de
moi et la loi morale en moi » (KANT, 1984, p. 212), que se fonde la possibilité du
sublime ; l’inconnu relie les deux espaces de non-savoir que sont la réalité intérieure
de l’homme (activité affective et contenus de représentation inconscients) à celle de
l’extérieur (le réel impossible de la chose en soi).
Autrement dit, le non-non-savoir comme retour d’un contenu de non-savoir
vers le savoir se veut cette récupération de la littérature comme espace de dialogue
où s’articulent les liens entre la conscience et le monde extérieur. En effet, il s’agit
dans la littérature d’une volonté d’ouverture du savoir à tout ce qui peut le guider
dans une remise en question de ses automatismes. À une époque où l’on ne peut
que constater la violence pratique d’un développement des sociétés qui s’engagent
dans des instrumentalisations de plus en plus efficaces et inhumaines, la volonté de
résistance passe aussi par l’écriture littéraire. Et cette écriture devrait parvenir à se
« connecter » à l’affect comme moyen de résister à la pure fonctionnalité de l’homme
et de son environnement.
D’autre part, dans la littérature, la dimension éthique de la création ne prend
son sens qu’en rapport avec les recherches formelles menées par l’écrivain.e. Par-
delà la thématique, le trajet de la création est recherche de formes : formes du dire,
du discours, de la tonalité stylistique. On y décèle l’attention au singulier qui n’est
pourtant pas réductible à l’individualité du sujet écrivant. Cela ne veut pas dire que
l’auteur.e est « mort.e » ou effacé.e, mais que son discours est plus résonnant quand
il s’adresse « intimement au prochain »4. Cela signifie aussi que dans le discours
poétique, une place est faite aux singularités : du sujet, du monde et de l’autre.
Cette fragile mise ensemble des voix, Ricœur la nomme « identité narrative »
(1985, p. 11). Accueillant toutes les instances appelées par le texte, elle n’épuise pas
pour autant l’ipseité de chacune. Cet « échec » à tout raconter, il faut le voir comme
la chance de tous les possibles, comme la reconnaissance du devenir. C’est là la
force du re-commencement toujours permis, toujours pensable et praticable. Un
re-commencement qui est chaque fois vivification plutôt que retour, répétition ou
mortification. Un « je » commence à nouveau, dans une configuration existentielle
des possibles qui n’est pas – ne peut jamais être – la même d’un instant à l’autre. Un
« je » se lance à nouveau dans le tourbillon des savoirs et du non-savoir.
4
Nous évoquons le titre de Pierre Bertrand, L’Intime et le prochain.
31
ÉCRITURE, MÉMOIRE ET « NON-SAVOIR »
À cette discussion sur la création littéraire, nous aimerions joindre les voix
contemporaines de Nancy Huston, Catherine Mavrikakis et Annie Ernaux. Lorsque
l’on demande à Huston pourquoi elle écrit des romans « alors que la réalité est
déjà tellement incroyable » (2008, p. 11), elle répond que cette réalité, construite et
fondée sur des « Arché-textes » (2008, p. 79) fourmillant de « fables guerrières »
(2008, p. 113) et de « fables intimes » (2008, p. 135), amoureuses, mérite que l’on
s’attarde à sa complexité en inventant des récits qui échappent aux dichotomies du
bien et du mal, du savoir et du non-non savoir, du visible et de l’invisible. Le rôle
éthique du roman se jouerait dans son pouvoir d’évocation de mondes et d’êtres
tout en nuances et dans l’espoir qu’il parvient à dire le monde autrement, à le faire
miroiter sous différents éclairages, en d’innombrables variations. Car, nommer le
monde, c’est chaque fois l’investir d’une manière qui pourrait engager des conduites
et une agentivité : « mon espoir est dans le langage, confie Ricœur, l’espoir qu’il y
aura toujours des poètes, qu’il y aura toujours des gens pour réfléchir sur eux et des
gens pour vouloir […] que cette philosophie de la poésie, produise une politique »
(1992, p. 72).
Si nous avons choisi de nous pencher sur Huston, Mavrikakis et Ernaux,
c’est qu’elles répliquent à notre temps – avec des esthétiques dissemblables – dans
une tonalité féminine ou transpersonnelle. Nancy Huston rappelle l’oubli historique
et métaphysique de la temporalité féminine, son déploiement dans la vie du corps,
dans le rythme de la procréation, comme on le lit dans Journal de la création5. Les
désirs successivement réprimés puis abandonnés par les écrivaines sont ressentis par
Huston comme des mutilations. Selon elle, le corps d’une femme rend plus concret
le passage du temps que celui d’un homme, son corps à elle mesure la vie en cycles,
« elle est, de l’homme, la mortalité visible » (1990, p. 16). En refusant les femmes-corps,
explique Huston, c’est la mort que l’ordre patriarcal a cherché à éloigner d’une sphère
langagière où les hommes pouvaient prétendre à l’immortalité. « Les institutions
patriarcales ont privé non seulement les femmes de leur âme, mais les hommes
de leur chair [...] » (HUSTON, 1990, p. 295). Cette injonction met en lumière les
imbrications du savoir et du non-savoir, des préjugés visibles et invisibles promus par
les institutions patriarcales sous forme de clichés, censures ou oublis.
Le rappel du temps vécu au féminin est aussi présent chez Catherine
Mavrikakis, particulièrement dans Ventriloquies, sa correspondance avec Martine
Delvaux. Sur la quatrième de couverture de l’édition de 2003, chez Leméac, on lit :
5
Voir : Nancy Huston, Journal de la création (Paris : Seuil, 1990), p. 16 ; Professeurs de désespoir
(Arles : Actes Sud, 2004), p. 36-39. Cela dit, cette question d’une temporalité spécifiquement
féminine ne va pas de soi et pourrait faire l’objet d’un nouvel article.
32
L’écriture est affaire de ventre car le ventre des femmes reste
le lieu de la transmission essentielle, celle de la vie autant
que celle de la mort. Ainsi, laisser passer la vie ou ne pas
y parvenir, décider d’avorter ou d’accoucher, renvoient
fondamentalement à la même question : celle de la filiation,
du lien d’une génération à une autre, de ce que l’on a reçu
vers ce que l’on en restitue. (MAVRIKAKIS et DELVAUX,
2003, quatrième de couverture)
L’écriture, pour Ernaux, n’est donc pas une simple copie du réel qui garderait
la trace du « je » écrivant, mais une version éclaircie de ce qu’on a réussi à sauver de
ce réel. Cette idée chère à Marcel Proust, dont le nom revient dans les entretiens, se
retrouve dans plusieurs de ses textes, et surtout dans Les Années (2008), récit qui a
connu une très longue gestation. La voix narrative y laisse entrevoir la dialectique de
l’Histoire et de la mémoire telle que perçue par un « je transpersonnel » (1994, p. 219)
se donnant comme objectif de sauver de l’oubli la vérité d’un présent vite englouti par
le passé. En outre, il s’agit pour l’écrivaine de s’engager dans le processus de création
d’une œuvre où il est possible de se composer une « identité narrative », comme dit
Ricœur, et où le « je » transgresse les frontières du personnel pour s’ouvrir au collectif.
Chez Ernaux, ce « je » n’est pas simplement « personnel », il est « transpersonnel ».
Dans un autre texte, Professeurs de désespoir, Nancy Huston réfléchit à
l’Histoire et au passage du temps par le biais de la fiction. Elle y analyse les œuvres
de trois générations d’écrivains européens – œuvres écrites avant, pendant et après la
Seconde Guerre mondiale. Huston tente de saisir le nihilisme de ces auteurs, qui –
comme elle le remarque – n’advient historiquement qu’après les phénomènes sociaux
et culturels du désenchantement, des deux Guerres Mondiales et du mouvement de
33
libération des femmes (2003, p. 23). Or, selon Huston, le discours de la littérature
nihiliste contemporaine en Europe – à cause de son mépris de la temporalité terrestre
et de la vie – persiste à survaloriser un principe de permanence aussi abstrait que
traditionnellement métaphysique et misogyne, et ainsi à propager la haine des
femmes et des mères, toujours déjà engagées dans le soin de l’altérité de par leur
cycle reproducteur. Ces idées mériteraient d’être discutées plus longuement. Pour le
moment, contentons-nous de souligner que la pertinence de Professeurs de désespoir
réside dans son souci de ne pas altérer la mémoire collective une fois de plus à la
faveur d’un universalisme philosophique ignorant les contributions des femmes. Ce
souci d’une mémoire juste, on ne peut que le rapprocher de celui de Ricœur.
Pour sa part, Catherine Mavrikakis – dans des récits comme Fleurs de crachat
ou Ventriloquies, par exemple – met en lumière une violence, une colère flamboyante,
assumées jusqu’au bout dans ce paradoxe d’esthétisation de soi et la mise en forme de
ce qui semble a priori imprononçable, indicible. Mavrikakis soutient écrire non pour
« tuer quelque chose », ni non plus pour en faire naître d’autres, mais pour embaumer
la mort :
Une exposition des corps, un prolongement vain et artificiel
de la vie… Mais il faut cela. […] L’écriture ne nous sauvera
de rien. […] Je n’aime que la communauté qui terrorise, qui
permet de se désinscrire comme sujet, qui empêche tout
arrimage du moi. (MAVRIKAKIS et DELVAUX, 2003, p. 60)
34
dans ses entretiens avec Michelle Porte. La mémoire n’est donc jamais uniquement
individuelle chez Ernaux, car l’intime et le social sont indissociables dans ses écrits.
À titre d’exemple, La Honte, récit dans lequel l’énumération des traces matérielles
de l’année 1952, année si souvent évoquée dans son journal d’avant écriture, se
transforme en une mémoire matérielle collective, capable d’éclairer la mémoire
charnelle de celle qui a dû cacher pendant de longues années la honte d’apartenir à
une modeste famille de commerçants, éprouvée à l’âge de douze ans. Cette stratégie
d’écriture est également mise en œuvre dans Les Années, récit dans lequel le passage
des années, ses années à elle, mais aussi celles de toute une génération, est saisi à la
croisée d’une mémoire à la fois individuelle et collective :
Je n’ai jamais eu envie que le livre soit une chose personnelle.
Ce n’est pas parce que les choses me sont arrivées à moi que je
les écris, c’est parce qu’elles sont arrivées, qu’elles ne sont donc
pas uniques. […] Il faut qu’elles soient transpersonnelles,
c’est ça. D’être heureux aussi. La littérature peut rendre
heureux. (ERNAUX, 2008, p. 107)
CONCLUSION
7
Il s’agit de son premier roman refusé par les Éditions du Seuil en 1963, dans lequel, écrit
Ernaux, « l’idéal consistait pour moi à exprimer dans la totalité d’un roman cette sensation
que donne la contemplation d’une trace de soleil le soir sur le mur d’une chambre » (L’écriture
comme un couteau, p. 76).
35
possibles et des filiations entre des voies uniques et souvent opposées. Nous aimerions
croire que l’art de l’écrivain.e – et de tout créateur ou créatrice – consisterait au
fond dans cet acte fort de donner à voir et à entendre l’infime, l’insignifiant et ce
qui risque de rester silencieux dans les plis de l’inconnu et de la mémoire. Dans ce
sens, dans l’œuvre de Ricœur s’inscrivent, en filigrane, non seulement des réflexions
« vivifiantes » sur l’existence, sur soi-même et les autres, sur le langage et la vie, mais
aussi des considérations interdisciplinaires sur le non-savoir comme envers du savoir
rationnel, et sur la création littéraire – considérations qu’il est fructueux de mettre en
rapport avec l’œuvre et les propos des écrivain.e.s contemporain.e.s.
En effet, le non-savoir reconfigure les questions connues, leur découvre de
nouveaux points de vue ou leur propose de nouvelles dimensions. Rappelons que
l’irrationnel, en général, trouve dans le non-savoir de quoi se débarrasser de son
axiologie négative. Il ne se construit plus tant comme « l’opposé de la raison que
comme son résidu » (PIC et al., 2012, p. 232), incessamment en devenir. Et ce n’est
plus une pure altérité qui se présente au sujet créateur, mais un cheminement et une
quête qui motivent et mobilisent son processus de création. Après tout, le non-savoir
n’épuise pas la littérature, ni notre rapport à la littérature, ni le rapport de la littérature
aux discours philosophique ou psychanalytique. Il joue plutôt comme un point de
vue sur la pratique de la création littéraire, conscient de sa particularité et tirant sa
force de la possibilité de transgresser des frontières de signification, de discours et
d’interprétation.
BIBLIOGRAPHIE
36
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ERNAUX, A. Les Années. Paris: Gallimard, 2008.
ERNAUX, A. L’écriture comme un couteau. Entretiens avec Frédéric-Yves Jeannet.
Paris: Stock, 2003.
ERNAUX, A. La Honte. Paris: Gallimard, 1997.
ERNAUX, A. Le vrai lieu. Entretiens avec Michelle Porte. Paris: Gallimard, 2014.
ERNAUX, A. « Vers un je transpersonnel ». R.I.T.M., n° 6 (1994): 219-22.
FREUD, S. Psychopathologie de la vie quotidienne. Traduction S. Jankélévitch.
Paris: Payot, 1975.
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Aubier, 1941.
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Paris : Gallimard, 1985.
KRISTEVA, J. Révolution du langage poétique. Paris: Seuil, 1974.
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coll. Bibliothèque de la Pléiade, 1945.
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MAVRIKAKIS, C. Le Ciel de Bay City. Montréal: Héliotrope, 2008.
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Non-savoir et littérature. Nantes: Cécile Defaut, 2012.
RICŒUR, P. Du texte à l’action. Paris: Seuil, 1986.
RICŒUR, P. L’Unique et le Singulier. Montréal/Bruxelles: Stanké/Alice éditions,
1999.
RICŒUR, P. La Mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2001.
RICŒUR, P. La Métaphore vive. Paris: Seuil, 1975.
37
RICŒUR, P. Lectures 2. Paris : Seuil, 1999.
RICŒUR, P. Soi-même comme un autre. Paris : Seuil, 1990.
RICŒUR, P. Temps et récit, vols. I et III. Paris : Seuil, 1983, 1985.
38
Da Memória cultural à Memória saturada :
revisão dos conceitos na perspectiva de Régine Robin
Régine Robin, ainda pouco conhecida no Brasil, pois somente em 2006 uma
de suas principais obras – A memória saturada - é traduzida ao português pela editora
da UNICAMP, nasceu em 1939 de pais judeus poloneses que acabavam de emigrar
para Paris. Depois de realizar seus estudos universitários (incluindo doutorado na
Sorbonne), torna-se professora do departamento de Sociologia da Université du
Québec à Montréal – UQAM. Instalada em Montreal, no bairro de Outremont, torna-
se uma grande admiradora da cidade que será o cenário de seu primeiro romance La
Québécoite, de 1983, dedicando o livro a seus alunos da UQAM, da Université Mc
Gill (Montreal), Laval (Quebec) e Sherbrooke (Sherbrooke, província do Quebec).
Tendo conhecido e convivido com Régine Robin em diversos períodos em que
fui bolsista de pós-doutorado na Université de Montréal (1992) e posteriormente, na
1
Se a memória é tão convocada hoje talvez seja porque um fundo memorial faça falta e
porque a amnésia está tomando conta do social.
condição de professora convidada do departamento de Estudos Literários da QUAM,
em 1997, pude aquilatar a intensa atividade intelectual de caráter multidisciplinar
desenvolvida por essa professora/pesquisadora franco-canadense. Em 2007, retomo
o contato com sua produção enquanto orientadora da tese de doutorado de Kelley
B. Duarte.
Pensamos que Régine Robin não gostaria da expressão que usamos acima
“franco-canadense”, pois essa vinculação territorial não é de seu agrado na medida
em que quando a utilizamos deixamos de lado suas raízes judaicas tão importantes
para sua obra e, além do mais, ela gostava de dizer que “mon pays c´est ma langue”.
Era, portanto, pela pertença à língua francesa que ela gosta de ser associada vivendo
intensamente as culturas judaica, francesa e quebequense pelo viés da língua que
amava: a língua francesa.
Neste entre-lugar entre uma ancestralidade judaica, uma nacionalidade
francesa e uma opção por viver em um país do Novo Mundo, seria natural que um
dos temas de predileção de Robin fosse o do identitário. Em quase todos os seus livros
e artigos a reflexão sobre as identidades volta constantemente. Para ela, haveria dois
eixos nas identidades: o eixo da fixação das identidades (Hitler, por exemplo) e o eixo
da explosão identitária cujo paradigma seria Michael Jackson (a pele torna-se branca,
cabelos alisados, voz neutra, nem masculina nem feminina). Em seu conceito, a
identidade não estaria na obsessão do enraizamento nem na anulação total dos traços
identitários, mas em um entre-lugar, isto é, um centramento, “em um espaço onde há
jogo, vai-e-vem entre uma origem assumida da qual conseguimos nos desprender e o
tornar-se outro, mudança que não leva necessariamente à pulverização” (ROBIN, 1994,
p. 229).2
Por isso, em determinados momentos, Robin torna-se crítica de uma tendência
nacionalista e separatista quebequense que pretendeu levar o Quebec a tornar-se
independente do Canadá. Admiradora da defesa pelos quebequenses da língua e
da cultura francófonas, ela passa a ser crítica quando percebe uma radicalização que
leva uma parte da população à utilização da apelação “nous autres, les québécois” ou
“pure laine” (pura lã, que significaria, sem mestiçagem), denominações nas quais ela
via uma tendência à exclusão dos recém chegados, ou seja, dos imigrantes.
Essa crítica a leva a escrever La Québécoite, criando esse neologismo já
que o patronímico de Quebec é québécois/québécoise. É como se sentia ao chegar:
ao mesmo tempo dentro e fora da cultura de acolhida, portanto “québécoite”. O
romance se constitui como uma proposta de escritura sobre uma “micromemória do
estranhamento”: é como se sente o imigrante que tenta inserir-se, mas está sempre a
2
dans un espace où il y a du jeu, du va-et-vient entre une origine assumée dont on arrive à se
déprendre et le devenir autre, le changement qui ne mène pas à la pulvérisation.
40
evocar reminiscências e lembranças do país de origem. Na tentativa de integrar-se
à cidade de Montreal, a narradora elabora listas: de estações de metrô, de nomes de
restaurantes, de lojas, de pratos da cozinha quebequense, de nomes de bancos e de
bairros, etc... tudo na tentativa de armazenar o estranho e o diferente para que se
tornassem familiares.
Vinte e seis anos mais tarde, Robin escreve Mégapolis: les derniers pas du
flâneur (2009) onde as flâneries, as deambulações pela cidade de Montreal, são
reencenadas “muito além do espaço urbano de Berlin e contemplam mais uma de
suas viagens ontológicas em reflexões teóricas sobre a história, o discurso social que
ajudam a pensar os limites e as transformações da memória na pós-modernidade”
(DUARTE, 2010, p. 202). As mobilidades espaciais e culturais, características da obra
de Robin revelam aqui seu “amour des villes”, título do capítulo introdutório da obra,
que revela sua intenção de construir - através de sua incessante deambulação pelas
grandes capitais do mundo – o que ela chama de “geopoética do sentimento”:
Eu sonho às vezes com uma cidade, de uma praça onde
seriam reunidos todos os bistrôs que foram importantes para
mim, em qualquer país e que se encontrem. Eles estariam
presentes lado a lado, em seu cenário em seu tempo, mas
nem tempo nem espaço contariam mais. Eles estariam todos
copresentes. Fabrico para mim mesma deste modo um
teatro da memória pessoal, uma cidade de sonho que só tem
valor para mim mesma (ROBIN, p. 13).3
A mobilidade cultural, o amor pelas grandes cidades com seus sons, suas cores
e seus segredos fascinam a autora que já havia se proposto, em 2003, a escrever sobre
Berlin oriental e Berlin ocidental colocando-se dolorosas questões como a do luto
impossível, a do trabalho da memória durante o período em que Berlin foi cidade
dividida, como as dúvidas entre a denegação, o recalque e o silêncio impossível e
também sobre o trabalho de memória e de transmissão dos traumas das vítimas
da Shoah. Esse livro foi intitulado Berlin chantiers: un essai sur les passés fragiles
(Stock, 2003). Um vasto painel sobre as questões memoriais é elaborado nesta obra
que investigará os procedimentos de apagamento de memórias incômodas e os de
construção do que a autora gosta de chamar de “roman mémoriel”, ou seja, a narrativa
que, por vezes, atinge a saturação, sobre a construção de uma nova Alemanha, sobre
a “fábrica de esquecimento” e a dificuldade maior de lidar com a impossibilidade de
ultrapassar a culpabilidade dos alemães.
3
Je rêve parfois d´une ville, d´une place où seraient rassemblés tous les bistrots qui ont comptés
pour moi, dans quelque pays qu´ils se trouvent. Ils seraient présents côte à côte dans leur décor,
en leur temps, mais ni temps ni espace ne compteraient plus. Ils seraient tous coprésents. Je me
fabrique ainsi un théâtre de la mémoire personnelle. Une ville de rêve qui ne vaut que pour moi.
41
Se recentemente é o deslocamento através de mega cidades como Berlin,
Tóquio, Paris, Buenos Aires e Los Angeles que a move, no sentido de desvendar a
polissemia dos discursos sociais que aí se criam com as vagas migratórias de diferentes
origens, ousamos afirmar que os livros fundamentais para o estudo das relações
entre linguagens e memória cultural, entre memória e trauma, entre o memorial e o
imaginário, entre a história e o “fora do lugar”, serão abordados neste artigo, sendo
eles: Le cheval blanc de Lénine ou l´histoire autre (1979/1995); Le roman mémoriel; de
l´histoire à l´écriture du hors-lieu (1989) e La mémoire saturée (2003)/A memória
saturada (2016).
Passamos a examiná-los, a partir de agora, pela importância de seu legado aos
estudos da Memória, mas também como uma homenagem a essa incrível figura de
intelectual, insaciável frequentadora de bibliotecas, arquivos e museus, e infatigável
viajante.
Memória cultural
42
A Shoah é o marco inicial de um exercício que se faz simultâneo a um
compromisso: o exercício da memória pelo compromisso de não esquecer. Estamos
falando do “dever de memória” assumido por todos aqueles que sobreviveram e que
ainda podem transmitir.
Régine Robin, assim como outros escritores judeus – pertencentes à minoria
dos que ficaram para contar – assume o dever de memória através da escrita.
Escrever torna-se o espaço para reunir os restos, reconstituir o que a guerra tratou de
fragmentar. Por isso, convencida de seu compromisso, ela declara:
Eu compreendi bem mais tarde que tudo saía da guerra,
estando a guerra inscrita como tema ou não. Na verdade,
em raras exceções, eu não escrevo sobre a guerra, mas com
a guerra. Em minha escrita de ficção, recorro às formas da
colagem, da montagem, da assemblage, a tudo que range
as temporalidades. Eu falo de um passado insuficiente
de significação, de uma história que perdeu sua sombra e
que não pode dizer mais nada. Nem romance, nem grande
narrativa, eu escrevo no espaço da fratura e da coleta dos
pedaços, dos estilhaços, dos fragmentos e dos rastros
(ROBIN, 2003, p. 15).4
4
Tradução livre do original: J’ai compris bien plus tard que tout sortait de la guerre, que la
guerre fût inscrite comme thème ou non. En fait, sauf exception, je n’écris pas sur la guerre, mais
avec la guerre. Dans mon écriture de fiction, j’ai recours aux formes du collage, du montage, de
l’assemblage, à tout ce qui permet de faire grincer les temporalités. Je parle d’un passé en mal de
signification, d’une histoire qui a perdu son ombre et ne peut plus rien dire. Ni roman, ni grand
récit, j’écris sur fond de cassure et collecte des bribes, des éclats, des fragments et des traces.
43
obra, se recompõe no amalgama entre o imaginário de um homem, de uma família,
de um grupo de judeus poloneses e aquele de uma filha, herdeira da micro história
familiar e historiadora.
44
Belleville e Belleville, Kaluszyn. (1979, p. 17-18)5
5
Kaluszyn, (...) Je l’imagine à la lumière des épiceries qui autrefois animaient la rue de
Couronnes, à l’angle de la rue Vilin. Chez Rana, l’épicière, j’étais fascinée par deux tonneaux,
l’un de harengs, l’autre de cornichons. (...) Cette épicerie était comme un monde à part, un
monde réinventé, mon roman familial prolongé, l’envers de l’école aux assimilations féroces.
On y parlait Yiddish et c’était Kaluszyn. (...) Kaluszyn c’était Belleville et Belleville, Kaluszyn
(1979, p. 17-18).
6
(...) dès que j’ai pris la plume, c’est Kaluszyn qui s’est imposée, les vieilles photos de famille,
les lettres que mon père écrivait de captivité, Stalag XI-B (...). (contracapa / p. 20)
45
Anunciada no fora-do-lugar de uma possível classificação, essa produção
também está inscrita, na concepção da autora, como “itinerário” intelectual (p.9) ou
“viagem” existencial, ambos iniciados sob influência de um modelo historiográfico
tradicional que se transmutou ao longo desses percursos. Assim, o subtítulo “de
l’histoire à l’écriture du hors-lieu” [da história à escrita do fora-do-lugar], volta a
apontar – tal como a proposta do subtítulo de Le cheval blanc – para as fragilidades e
limites de se pensar a história unicamente a partir da “grande” História (ou História
oficial). Sua inquietação recai sobre a impossibilidade de existir memória coletiva ou
memória individual sem haver “romance memorial”, ou seja, sem a recomposição
e hibridação de formas, sem o sincretismo de um real já referenciado na ordem da
representação (1989, p. 48).
Em Le roman mémoriel, Robin percorre os trabalhos e pesquisas realizados
ao longo de sua carreira, no âmbito da historiografia, linguística e literatura, em um
processo itinerante que, para ela, resulta no encontro de novas formas narrativas,
de reapropriação do passado e da cultura judaica (ROBIN,1989, p.16). Na tentativa
de romper as fronteiras que separam as disciplinas de uma formação intelectual, ela
também impõe, através dessa escritura híbrida, a inscrição cultural heterogênea de
uma francesa, herdeira do judaísmo:
A partir de 1975, eu também me vejo confrontada ao
problema das representações, do heterogêneo que tem
relação com o memorial e com aquilo que comecei a chamar
de “o romance memorial”, em uma problemática do rastro
e do resto, na qual o passado está imóvel, regrado, regido,
na qual ele é remanejado, reescrito, na qual ele é fantasiado
e suporte de um novo imaginário, na qual ele se torna
sintoma e constelação emblemática de uma nova conjuntura
intelectual7 (ROBIN, 1989,p. 46).
Seu “romance memorial” se constrói, portanto, a partir dos rastos e restos
que permitem a reapropriação de uma identidade e de uma cultura que, para ela,
são remanejadas e reescritas imbricando o documental e o ficcional. No artigo sobre
“Memória cultural”, referenciado anteriormente, mencionamos Le roman mémoriel
como produção incontornável no estudo da memória cultural, pois nele a autora
“tematiza em ensaios e em contos ficcionais, as narrativas de vida de grupos da
população que foram obrigados a silenciar, a esquecer e a reprimir para sobreviver,
com ênfase na comunidade judaica a qual pertence” (BERND, 2017, p. 247).
7
À partir de 1975, moi aussi, je me trouve confrontée à ce problème des représentations,
à de l’hétérogène qui a trait au mémoriel et à ce que je commence à appeler “le roman
mémoriel”, dans une problématique de la trace et du reste, où le passé est fixe, gère, régi, où
il est réaménagé, réécrit, où il est fantasmé et support d’un nouvel imaginaire, où il devient
symptôme et constellation emblématique d’une nouvelle conjoncture intellectuelle.
46
Após dedicar a abertura de sua obra às demarcações de um percurso
intelectual, Robin se volta ao memorial e às diferentes reapropriações do passado que
podem recriar o que a História oficial petrificou. Uma das possibilidades anunciadas
pela autora está na memória cultural, por ser ela a mais desenvolvida no plano da
ficção. Junto da memória coletiva, a memória cultural se torna indispensável na
construção do “romance memorial” (1989, p. 58).
O cruzamento entre história e literatura recai, em Le roman mémoriel, sobre
a forte crítica atribuída à postura arcaica de historiadores que refutam as obras de
ficção como fontes de pesquisa. Para Régine Robin, Flaubert, Balzac, Zola e Hugo,
por exemplo, são insubstituíveis na leitura que visa à reconstituição de traços da
memória cultural de determinado grupo social, pois, enquanto observadores de seu
tempo, esses escritores apresentam a descrição de cidades, de conflitos e de ideologias
de suas épocas (ROBIN, 1989, p. 37).
Nesse processo de desconstrução das formas absolutas, surge uma proposta
heterogênea de inscrição de uma memória cultural que, para ela, ocorre através de
seu itinerário pessoal e intelectual. Em uma formação que perpassa grandes teóricos,
Robin contraria a formação tradicional e revela ter dedicado grande parte de seus
estudos à produção ficcional de Franz Kafka, através do qual ela diz ter conhecido o
contexto sócio histórico de Praga.
Judeu assimilado, porém no constante movimento de retorno às origens
culturais pelo texto de ficção, Kafka é, para Robin, a representação do heterogêneo,
da inquietante estranheza e esquizofrenia cultural (ROBIN, 1989, p. 30-42); figura
emblemática da alteridade e cuja escrita é caracterizada pela fragmentação, pela
desarticulação, pelo texto curto, e pelo inacabamento (1989, p. 42).
Kafka é, assim como fora o pai em Le cheval blanc de Lénine, mais uma
possibilidade de recuperação da memória cultural através do biográfico. E para
pensar a funcionalidade da memória cultural e explicar sua importância, Robin
justifica, em Le roman mémoriel, a importância do trabalho sobre Kafka – escritor
que, há muito tempo, teria cruzado seu itinerário intelectual de leituras.
Kafka é então o último termo provisório de um trabalho
que, em mim, também foi criador da heterogeneidade, que
pulverizou as certezas identitárias, que definivamente colocou
fim às tentações da getoisação e da folclorização, que me
trouxe de volta o caminho do universal e de uma racionalidade
a ser construída ou reconstruída, na história ou no campo da
literatura, mais precisamente nas fronteiras, nas bordas, nas
formas não aceitas, não legitimadas (...).8 (1989, p. 168).
8
Kafka est donc le dernier terme provisoire d’un travail qui, chez moi aussi a été créateur
47
Na recomposição de uma memória cultural, Kafka representaria outra
possibilidade de “retorno ao judaísmo” (1989, p. 159). Além de ser ele um de seus elos
com a recuperação da língua iídiche e a ele ter dedicado uma obra na íntegra,9 Kafka
é fonte documental e também perpassa a construção de muitas de suas produções.
Identidade e cultura, memória e ficção são elementos que norteiam uma
nova produção que se coloca à frente da História, enquanto disciplina e enquanto
registro factual. A proposta de escrever um “passado fantasiado”, conforme a própria
Robin define no segundo capítulo de Le roman mémoriel, corresponderia a uma nova
conjuntura sociocultural que, para ela, marca as particularidades da modernidade na
literatura (1989, p. 83-84).
Escrever no “fora-do-lugar” ou escrever uma “outra história” – com o auxílio
de mecanismos literários que ficcionalizam o passado pelo retorno ao sujeito, às
narrativas biográficas – representa, na obra robiniana, o compromisso da transmissão
de uma identidade reelaborada em uma nova estética da memória cultural. Em tese
de doutorado, Duarte argumenta:
Certamente isso justifica a presença dos relatos familiares, do
passado dos pais, uma apropriação de discurso e de histórias
de vida para recompor a memória da origem e da cultura
que lhe foram negadas ou arrancadas pela Segunda Guerra
Mundial. Se tivesse nascido na Polônia e não na França, o
comprometimento de voltar ao passado não seria o mesmo.
No texto, esse retorno se faz necessário pela questão interna
do sujeito, pela compreensão da não-pertença identitária e
cultural (DUARTE, 2010, p. 132).
48
concentração e as câmaras de gás que levaram ao extermínio de milhões de judeus,
o trauma das vítimas foi de tal amplitude que a primeira geração se calou, sendo
incapaz de testemunhar sobre os degradantes atos de que foram vítimas. Mas isso de
modo algum se confunde com amnésia, mas configura o que Michael Pollack chama
de silêncio como forma de resistência ou de “memórias subterrâneas” (POLLACK,
1989, p. 3-15).
Pode-se também denominar tal fenômeno de pós-memória que acontece
após o silêncio das vítimas quando a segunda e a terceira gerações – filhos e netos –
se põem a narrar as atrocidades de que eles próprios não foram vítimas, mas cujos
fragmentos narrativos ouviram de seus pais e avós e se dispuseram a narrá-los. Nesse
sentido, a transmissão - interrompida, no primeiro momento, em que o trauma das
vítimas as impedia de dizer o indizível e o impronunciável - é retomada na voz de
seus descendentes.
Robin menciona ter tomado a expressão pós-memória de empréstimo
a Marianne Hirsch que, em seu livro Family frames. Photography Narrative and
Postmemory (1997), propôs o termo “para designar a especificidade da transmissão
de traumas da guerra e do genocídio àqueles que não viveram a experiência da guerra
ou que eram muito jovens para compreender a gravidade dos acontecimentos”
(Robin, 2016, p. 314).
No dizer de Hirsch, a pós memória
é separada da memória por uma distância de geração e
da história por uma relação de emoções pessoais. A pós-
memória é uma forma muito poderosa e muito particular de
memória, especificamente, porque sua relação com objetos
e com fontes não é mediada por lembranças, mas sim, por
um investimento imaginário e pela criação. O que não quer
dizer que a memória não seja por si só mediada; contudo
ela está mais diretamente ligada ao passado. A pós-memória
caracteriza a experiência daqueles que cresceram envolvidos
em narrativas, em acontecimentos que precederam seus
nascimentos, como se a hostória pessoal tivesse sido
esvaziada pelas histórias das gerações precedentes que
viveram os acontecimentos e as experiências traumatizantes
(HIRSCH, Apud ROBIN, p. 314).
49
escritos autoficcionais ela testemunha acontecimentos não vivenciados como outros
artistas e escritores que, embora não tenham sofrido propriamente a experiência
do trauma, carregam o mal dentro de si como uma ferida, fazendo o trabalho do
luto que não lhes coube vivenciar, a não ser através de relatos. Assim, Robin irá
testemunhar, inclusive em textos teóricos, no intento de realizar a “transmissão difícil
e frágil”, como ela mesma denominada em A Memória saturada (2016, p. 314), sobre
experiências traumáticas vividas por seus ancestrais.
Nesse sentido, conforme refere a autora, para a pós-memória o passado não
se transforma em “puro passado”:
As obras criadas constituem um espaço transicional no
qual esse passado é revivido, “reexperimentado”, e no qual
essa nova representação permite não mais ficar fascinado,
alucinado por ele, mas dele fazer parte na consciência do
distanciamento (2016. p. 315).
Saturação
50
Seriam muitas, na visão de Robin, as formas de saturação da memória como o
fantasma do “tudo guardar” “que acompanham nossa imersão no mundo do virtual.
Congelamento geral, patrimonialização de tudo, de si mesmo, de seu corpo, de seus
órgãos, de seus objetos. Paixão pelo arquivamento e pela conservação. Estocamos,
queremos tudo sedimentar” (ROBIN, 2016, p. 22). A autora acrescenta ainda outras
formas de memória saturada entre as quais:
a) a “saturação por histerização” da relação com o passado, que acaba não
distinguindo origem real e imaginária como ocorre “em certos discursos
mantidos em Isael” (216. p. 22);
b) a saturação por divergências na compreensão da Shoah, “entre uma
memória fundamental que recusa fazer o luto do acontecimento” e uma
memória kitsch, correspondendo a formas de representação hollywoodianas
que pensam poder assegurar a transmissão dos acontecimentos ligados à
Shoah depois do desaparecimento das últimas testemunhas.
Na esteira de Henri-Pierre Jeudy (em seu livro La machinerie patrimoniale,
2001), Robin critica a ânsia de reconstituições museais, na França, de bairros antigos
como o povoado de Soulaines-Dhuys na região de Aube, que foi objeto de uma
restauração patrimonial extravagante, do tipo Disneyworld. Assim, o “vilarejo tornou-
se decoração teatral artificial”, [ ] “o povoado está petrificado: parado no tempo o que
é o contrário da memória e da transmissão” (ROBIN, 2016, p. 436). A autora critica a
perda do controle do que é digno de conservação e de patrimonialização, mas que cede
aos imperativos do turismo ou de interesses imobiliários. O que haveria de mau nessa
patrimonialização generalizada seria o fato de que, no futuro, ao invés de lembrarmos
dos vestígios do passado, vamos nos lembrar dessa reconstituição teatralizada, o
que prejudica a transmissão da memória de acontecimentos históricos que passa
a ser mediada por essa espécie de clonagem artificial. Isto equivaleria a manipular a
transmissão, a fabricar uma transmissão programada.
Aleida Assmann também teoriza sobre a memória saturada, explicando em seu livro
Espaços da recordação; formas e transformações da memória cultural (2011), que haveria duas
formas de memória: a) memória funcional habitada; b) memória armazenadora inabitada.
Por outro lado, explica que os espaços de recordação surgem de uma iluminação parcial
do passado, estando assim a recordação associada a um suporte individual ou coletivo.
Com a escrita, a possibilidade de se produzir mais material do que a memória pode conter
provocou um desequilíbrio na memória cultural: nessas sociedades marcadas pela escrita
“não é mais a preservação da memória, mas a escolha dos valores de recordação que ocupa
a posição central” (2011, p. 438). Enquanto a memória funcional (habitada) tende a ser
transmitida à geração seguinte, a memória de armazenamento (inabitada) “compõe um
espaço de recordação antes insensitivo” (p. 438).
51
Se os arquivos que constituem os armazenadores culturais por excelência
são capitais em um estado de sociedade na medida que eles contêm nossa “herança
cultural” a qual cada geração tem o dever de transmitir às próximas, eles trazem
também a pergunta que não quer calar: “O que pode ou deve ser armazenado
da cultura do rádio, da televisão e da internet?” (2011, p. 382). Sem responder a
essa questão e sem falar propriamente em saturação memorial, Aleida Assmann
evoca a questão crucial da preocupação com a seleção no que tange ao problema
do armazenamento e da preservação da memória cultural em todas as suas
manifestações: escritos, jornais, revistas, gravações, filmes, imagens, objetos, enfim
todo material produzido diariamente hoje estocado no que chamamos de nuvem. A
autora nos lembra que rastros, vestígios ou lixo cultural podem ser tão importantes
estruturalmente para o arquivo quanto o esquecimento para a lembrança (cf p. 27). E
que os rastros permanecem e reaparecem de um modo ou de outro.
Esse tema do armazenamento e da saturação memorial é amplo demais para
ser esgotado e nem Régine Robin nem Aleida Assmann, duas das mais vibrantes
pensadoras da memória da atualidade, pretendem trazer respostas definitivas. O
fato de trazê-los à discussão de todos aqueles que pensam sobre a memória e sua
importância cada vez mais aguda na contemporaneidade, já é por si só relevante e
certamente ainda nutrirá a reflexão de muitos pensadores. Se somos o que lembramos,
então a memória é temática inevitável hoje e sempre.
Conclusões
Associamos Aleida Assmann e Régine Robin pela preocupação comum com
os armazenadores de memória na atualidade, mas poderíamos também associá-las
pela utilização das teorias de Walter Benjamin. Muitas das teses de Walter Benjamin
iluminam o pensamento de Robin sobretudo no que tange a seu conceito de memória
cultural como sendo aquela “feita de pequenos nadas”, ou aquela ligada ao sensível e ao
simbólico, trafegando muitas vezes na contramão dos relatos históricos grandiloquentes
e na maioria das vezes manipulados. Reconhecemos aí a valorização de vestígios,
rastros memoriais, imagens do passado que relampejam no presente e que fazem com
que a memória seja considerada não como um simples estoque memorial, mas como
a nossa capacidade de ressignificar no presente elementos que ocorreram no passado.
Walter Benjamin lê a obra de Marcel Proust consciente de que na construção
de seu monumental livro Em busca do tempo perdido, o autor não está em busca de um
tempo tal como ele ocorreu no passado, mas em busca de centelhas do passado que
possam iluminar o presente. Do mesmo modo trabalha Régine Robin, reconstruindo
a partir de fragmentos memoriais a trajetória do pai em Le cheval blanc de Lénine e
reconstituindo, através de rastros culturais, extraídos de diferentes fontes, a memória
52
coletiva e as origens da identidade de sua família. A autora não despreza nada em seus
escritos, atenta que está às impressões mnemônicas, aos vestígios de sua infância na
França que, ao serem resgatados iluminam não só sua memória familiar como toda
a sua trajetória intelectual onde se nota esse “relampejar” de cenas do passado que a
levam a uma melhor concepção das teorias que manipula, já que o ato da rememoração
está na base da tessitura teórica que constrói.
A leitura que Walter Benjamin faz da figura do flâneur em Charles Baudelaire,
inspirará muitos escritos de Robin desde seu Roman mémoriel (1989) até Mégapolis,
les derniers pas du flâneur (2009). A lição benjaminiana se faz presente, pois ao trazer
para os tempos da cibercultura a figura do flâneur, Robin está consciente de que
compreender o passado é necessariamente reencontrá-lo no tempo presente, uma das
grandes lições de Benjamin.
Pretendemos com esse estudo contribuir com os processos de transmissão
memorial tão caros a Régine Robin que afirmava só existir memória se existir
transmissão. Foi nossa intenção trazer a obra de Régine Robin para mais perto dos
leitores brasileiros, transmitindo uma parte ínfima de suas reflexões. Assim como a
autora se empenhou - ao longo de seus incansáveis e numerosos escritos - em realizar
o trabalho de transmissão dos fragmentos memoriais da cultura judaica, que carregou
sempre consigo em suas incontáveis deambulações por muitos países, por diferentes
línguas, linguagens e culturas, queremos nós também contribuir para uma maior
divulgação da obra de sua obra. Esperemos que seja uma “transmissão geradora de
sentido”, para tomar de empréstimo a bela expressão de Paul Ricoeur, que acreditava
que na transmissão devesse haver “troca entre o passado interpretado e o presente
interpretante” (1985, p. 320).
Referências
53
filosofia, 2017. Universidad nacional de La Plata, Argentina. <http://www.memoria.
fahce.unlp.edu.ar/trab_eventos/ev.2889/ev.2889.pdf>.
DUARTE. K. B. A escrita autoficcional e híbrida de Régine Robin: mobilidades nos
percursos a memória. Porto Alegre: UFRGS, 2010. Tese de doutorado apresentada ao
PPG -Letras da UFRGS.
POLLACK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Revista da Associação de Pesquisa
e documentação histórica. v. 3, n. 2, p. 3-15, 1989.
RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: editora UNICAMP,
2007. Trad. de Alain François et al.
ROBIN, R. A memória saturada. Campinas: UNICAMP, 2016.
ROBIN, R. Kafka. Paris: Pierre Belfond, 1989.
ROBIN, R. Le deuil de l´origine: une langue en trop, la langue en moins. Paris:
Presses universitaires de Vincennes, 1993.
ROBIN, R. La Québécoite. Montréal: Québec/Amérique, 1983.
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1979.
ROBIN, R. L´immense fatigue des pierres. Montréal: XYZ, 1999.
ROBIN, R. L´amour du yiddish: écriture juive et sentiment de la langue. Paris:
Sorbier, 1984.
ROBIN, R. Le roman mémoriel: de l´histoire à l´écriture du hors lieu. Montréal: le
Préambule, 1989.
ROBIN, R. Berlin chantiers: un essai sur les passés fragiles. Stock, 2003.
ROBIN, R. Mégapolis: les derniers pas du flâneur. Editions Stock, 2009.
ROBIN, R. Défaire les identités fétiches. IN: LETOURNEAU, J.; ROGER, B (Orgs.)
La question identitaire au Canada francophone: récits, parcours, enjeux, hors-lieux.
Québec: Presses de l´Université Laval, 1994. P. 215-240.
ROBIN, R. Memória coletiva, memória cultural e romance memorial. IN: BERND,
Z.; KAYSER, P. V. M. (Orgs.). Memória cultural, herança e transmissão. Canoas:
UnilaSalle Editora, 2017. Trad. Zilá Bernd. (Coleção Memória e linguagens
culturais,1)
RICOEUR, P. Temps et récits III. Paris: Seuil, 1985.
TODOROV, T. Les abus de la mémoire. Paris: Arléa, 1995.
54
Maurice Halbwachs:
dos quadros sociais à memória coletiva
Apresentação do estudo
1
Na sua 13ª edição em 2013.
obra completa; a segunda, uma compilação de escritos realizados pelo autor entre
1925 e 1944 e organizados pela filósofa Jeanne Halbwachs Alexandre, irmã do autor.
Publicado originalmente em 1948 com o título de Mémoire et Société, na revista
L´Année Sociologique, os escritos foram republicados em 1950, desta vez em formato
de livro e com o título La Mémoire Collective (BECKER, 2003; CORDEIRO, 2015).
Para os fins de nossa exposição, vale sublinhar que Les Cadres Sociaux de
la Mémoire não dispõem de uma tradução em português. No caso de La Mémoire
Collective, temos duas traduções: uma de Laurent Léon Schaffter (1990), pela Editora
Vértice, e outra de Beatriz Sidou (2006), pela Editora Centauro. Para além dessas
duas obras, Maurice Halbwachs dispõe de uma longa lista de publicações, das quais
destacamos os livros Les Causes du Suícide [1930], Morphologie Sociale [1938] e La
topographie légendaire des Évangiles en Terre Saint [1941].
Este capítulo está organizado em três seções: na primeira, apresentamos
alguns dados biográficos de Maurice Halbwachs. A ideia é familiarizar o leitor e a
leitora com o percurso do sociólogo francês. Em seguida, discutimos a obra Les Cadres
Sociaux de la Mémoire, a primeira obra sistemática do autor visando à definição da
memória em termos sociológicos. Por fim, retomamos o livro La mémoire Collective
a fim de esclarecer a frase mais conhecida do autor: “nunca estamos sozinhos”.
Como veremos, nunca estamos sozinhos porque incorporamos os quadros sociais
da memória e, sobretudo, porque o ato de lembrar se dá sempre no presente e em
interlocução com nossas relações e preocupações sociais imediatas.
56
A seguir, trazemos alguns dados biográficos sobre Maurice Halbwachs,
coletados de Mucchielli e Pluet-Despatin (2001), Becker (2003) e Grandmougin
(2011). Halbwachs nasceu em 11 de março de 1877, em Reims. Estudou no Liceu
Henrique IV (Paris), onde foi aluno de Henri Bergson. Nasceu aí sua inclinação para
a filosofia, na qual graduou-se em 1901, na Escola Normal Superior, também em Paris
onde, novamente, teve Bergson como professor. Na École, fez amizade com o Diretor
da Biblioteca - Lucien Herr -, o qual foi pioneiro no movimento socialista francês e
mentor da nova geração de políticos, escritores e líderes da época. Por sua influência,
Halbwachs aderiu ao socialismo.
Em 1904 foi para a Universidade de Göttingen continuar seus estudos, desta
vez em filosofia alemã. Ali, trabalhou na catalogação do acervo do filósofo Gottfried
Leibniz, publicando obra sobre seus estudos em 1907.3 Sua carreira abrangeu diferentes
áreas do conhecimento: Psicologia, Sociologia, Direito, Matemática, Letras e Ciências
Políticas e Econômicas. Os estudos empreendidos para a sua tese de doutoramento
em Direito, Classe Ouvrière et les niveaux de vie (1912), levaram-no a refletir sobre os
problemas da classe operária e, em obra decorrente (1933), Halbwachs apontava sobre
a importância do viver em grupo, pelos operários, salientando a família, os grupos de
rua e aqueles relacionados ao trabalho.
Halbwachs foi professor em vários pequenos colégios e, no ano de 1908,
exerceu a docência no Liceu de Reims. Entre 1919 e 1935 lecionou na Faculdade de
Sociologia e Psicologia na Universidade de Estrasburgo. Junto com outros intelectuais,
também professores, reformularam a universidade, na época em território ocupado
pelos franceses, conquistado da Alemanha durante a Primeira Guerra. Foi ali que se
relacionou intelectualmente com Lucien Febvre, Marc Bloch e Charles Blondel (estes
dois últimos foram seus críticos em relação à noção de memória coletiva). Neste
processo, professores lecionavam cursos em parceria, o que favoreceu um diálogo
interdisciplinar, bem como assistiam às aulas ministradas por seus colegas. Halbwachs
auxiliou os historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre, na criação da revista Annales
d’histoire économique et sociale em 1929.
Foi a partir desse ano que se colocou em campanha para concorrer ao Collège de
France. Em seu “Diário Íntimo” (op. cit.), revelou uma rede de relações com intelectuais
e amigos, analisa a carreira destes, como também dos seus adversários, sem economizar
na crítica a uns e outros. Em 1930, foi professor visitante da Universidade de Chicago e,
em 1935, lecionou na Sorbonne, trabalhando com Marcel Mauss. Presidiu o Instituto
Francês de Sociologia e foi diretor da L´Année Sociologique (revista fundada por
Émile Dürkheim). Só conseguiu obter a tão sonhada cátedra de Psicologia social no
57
Collège de France em 1944, mas não chegou a assumir, tendo em vista sua prisão e
deportação para Buchenwald.
58
Consciências individuais isoladas
não se comunicam a não ser por
Les formes elementaires meio de símbolos, que são gerados
DURKHEIM (1912)
de la vie religieuse e mantidos em momentos de
efervescência coletiva (sagradas) e
interações cotidianas (profanas).
Trata-se de um livro que busca
solucionar o problema das relações
entre corpo e alma. A memória, em
Bergson, será a mediadora dessas
Matiére et Mémoire:
duas dimensões do humano. A
BERGSON (1914) essai sur la relation du
memória-lembrança é a própria
corps a l´esprit
fonte do espírito, enquanto que
a memória-hábito reúne os
automatismos necessários para o
agir no mundo.
Debate ideias de Bergson e de
Ribot. Em Bergson, Russel aceita
RUSSEL (1921) The analysis of mind
a proposta da dupla memória
(lembrança e hábito).
Eine reise durch Caráter universal da memória;
das Geblet der transmissão de símbolos
WARBURG (1922)
Puebro indianer in expressados em obras de arte;
Nordamerika ontologia simbólica.
A partir de estudos de casos
L´evolution de la
clínicos individuais de afasia, faz
JANET (1928) memóire et de la notion
assunção sobre o caráter social da
du temps
memória.
Fonte: Produzido pelos autores (2018), a partir de Becker (2003).
59
compreender como se processa a aprendizagem e, ao mesmo tempo, como o ponto de
vista de cada indivíduo se projeta na - e ajuda a projetar a - sociedade em que vive. Em
uma frase, o contexto histórico em que Maurice Halbwachs se insere é pautado pela
emergência e problematização das relações entre subjetivismo e objetivismo, entre a
ação e a natureza humanas, entre os humanos e o planeta que passaram a domesticar.
60
Les Cadres Sociaux de la Mémoire / Os quadros sociais da memória
Em sua obra Les Cadres Sociaux de la Mémoire [1925], Halbwachs afirma pela
primeira vez sua posição contra o subjetivismo bergsoniano. Para ele, por mais que
nossas lembranças pareçam estar plenas de sentimentos e formas de pensar estritamente
individuais, elas não existem fora dos contextos sociais em que se produzem. Como
se sabe, o projeto da criação de uma escola de Sociologia por Émile Durkheim, que
contou com intensa colaboração de Maurice Halbwachs, visou, antes de tudo, à
criação de um objeto de pesquisa próprio - o que implicou em uma contraposição à
Psicologia, que se institucionalizava na França em torno do nome de Théodule Ribot
(MUCCHIELLI, 2001). Os tratados de psicologia da época operavam a passagem
tipicamente moderna da ideia de alma para a de indivíduo (HACKING, 1998), o que
implicava em uma diferenciação fundamental entre o indivíduo e seu contexto social.
Mais ainda: em meados do Século XIX, na França, Alemanha e Inglaterra, a memória já
se impunha como um conceito científico fundante das novas teorias da personalidade.
As patologias da memória traziam à tona a discussão sobre possessões, experiências
extra-corpóreas, traumas de guerra, hipnose, relações corpo-alma e personalidades
múltiplas (HACKING, 1998). Portanto, afrontar a tese do caráter eminentemente
individual da memória pode ser considerado como um desafio último para a fundação
de uma ciência da sociedade e das configurações sociais.
É nesse contexto que Halbwachs escreve que “é em sociedade que, normalmente,
o homem adquire suas lembranças, que ele se recorda delas e, como se diz, ele as
reconhece e as localiza” (1998[1925], p. 6).4 A ênfase no normal, aqui, remete à
oposição entre o normal e o patológico, de um lado, e entre a vida isolada e a vida em
sociedade, do outro. No que se refere ao normal e ao patológico, Halbwachs evita temas
como o trauma, a histeria e a psicose, que conformavam o domínio da Psicologia e da
Psiquiatria nascentes. Quanto à vida isolada e à vida em sociedade, os estudos sobre o
suicídio feitos por Halbwachs e Durkheim exemplificam a importância das relações e
instituições sociais para a constituição de indivíduos ou cidadãos plenos.
Aliás, é por isso que o diálogo - e, em muitos casos, a confrontação - com
a Psicologia deve ser considerado de primeira importância quando se trata de
compreender Les Cadres Sociaux de la Mémoire. Tomemos por exemplo a passagem
em que Halbwachs convoca Ribot para apresentar os quadros como um “ponto de
4
“Cependant c’est dans la société que, normalement, l’homme acquiert ses souvenirs,
qu’il se les rappelle, et, comme on dit, qu’il les reconnaît et les localise.” Na edição
eletrônica, tradução e grifo nossos).
61
referência” para as lembranças. Citando o psicólogo francês, lemos em Halbwachs
que esses pontos de referência são “estados de consciência que, por sua intensidade,
lutam melhor que outros contra o esquecimento ou [que], por sua natureza complexa,
suscitam diversas relações e aumentam as chances de reavivamento [de lembranças].
Eles não são escolhidos arbitrariamente, mas se impõem a nós” (RIBOT apud
HALBWACHS, [1925], p. 94).
O funcionamento dos quadros sociais é semelhante a esses “pontos de
referência” descritos por Ribot. Mas as semelhanças da reflexão de Halbwachs com as
de Ribot terminam aí. Em Halbwachs, os quadros sociais são muito mais que pontos
de referência para as lembranças: eles são a própria condição da vida em sociedade,
consistindo nas categorias de entendimento que enquadram toda a experiência
humana: a linguagem, o tempo e o espaço. Um exemplo: Halbwachs sugere que, ao
recordarmos, a lembrança é organizada e sustentada por grupos de pertencimento
(2018, [1925], p. 175-210): a família, o grupo religioso, a classe social. É na família que,
segundo Halbwachs, os indivíduos se vinculam pelo nome e parentesco (linguagem)
e eventos memoráveis e comemorações (tempo e espaço). No grupo religioso, os fiéis
organizam suas recordações a partir dos ritos (tempo e espaço), dogmas, doutrinas e
verdades fundantes (linguagem).
Em Halbwachs, a realidade é reconstruída a partir desses três quadros
fundamentais. É sobre o real - a matéria - que a sociedade representa para si a sua própria
realidade. Mas esse processo é bilateral: das representações coletivas se instalam novas
realidades materiais, que por sua vez conformam novamente as relações linguísticas,
espaciais e temporais. Então, os quadros sociais não são da ordem do “espírito” ou da
memória lembrança, como queria Bergson, mas das interações sociais.
A reconstrução da realidade por meio dos quadros sociais da memória,
portanto, se inscreve no presente. Essa é uma das teses fortes de Halbwachs, que implica
em desfazer a ideia de memória como um fundo de imagens passadas que são revividas
em momentos de devaneio ou de busca intencional de informações. Há imagens do
passado que vem ao espírito, reconhece Halbwachs, mas elas não são a substância da
memória coletiva ou da memória individual. A memória organiza-se por meio de toda
a realidade: das relações com os outros, com as coisas, com os marcos temporais, com
os movimentos e com as palavras e sons. As imagens do passado se conformam a essas
dimensões da realidade; elas são enquadradas socialmente pelo espaço, pelo tempo e
pela linguagem.
Nesse sentido, os quadros sociais da memória - espaço, tempo e linguagem -
são categorias a priori no sentido kantiano. Eles impõem-se aos indivíduos e definem
os contornos de suas experiências sensíveis e de sua percepção. Diferentemente de
Immanuel Kant, porém, os quadros não são naturais, mas sociais. Isso significa dizer
62
que operam por meio de processos sociais e que são incorporados inconscientemente
pelos indivíduos. Em nossos dias, essa tese ainda não está bem definida, ainda que
haja uma tendência de considerar as categorias de espaço, tempo e linguagem como
próprias ao aparato sensório-cognitivo humano. Isto é: pode-se dizer hoje, com
Halbwachs, que os conteúdos do espaço, do tempo e da linguagem variam conforme
as interações e instituições sociais, mas não que elas têm origem em processos sociais;
porém, é mais difícil defender, na sequência do sociólogo francês, a tese da formação
social das categorias do entendimento.5
5
A referência mais forte da hipótese de uma formação social das categorias de entendimento
ainda é a obra clássica de Émile Durkheim, as formas elementares da vida religiosa (DURKHEIM,
2003). Para o leitor ou leitora interessada pelo campo da memória social, uma leitura atenta
dessa obra é fundamental para compreender como se dá, para Halbwachs, a formação dos
quadros sociais da memória. Aproveitamos a oportunidade para recomendar a leitura do livro
A Antropologia do Tempo, de Alfred Gell (2014), que desconstrói a tese da construção social da
categoria tempo em Durkheim. Lucas Graeff (2016) faz uma resenha dessa obra importante e
ainda pouco conhecida do público brasileiro.
63
Vargas Mangan (2017), lê-se no verbete Memória Coletiva:
Nos dois livros clássicos de Halbwachs sobre memória,
o conceito de memória coletiva jamais é enunciado. Por
vezes, o autor remete a uma corrente de experiências que,
do exterior, atravessam o pensamento dos indivíduos; por
outras, ele se refere a quadros – que são representações
coletivas, no sentido durkheimiano – que influenciariam
a memória individual. No primeiro caso, não haveria
memórias individuais, cabendo ao grupo armazenar e
recordar; no segundo, as relações atuais, “enquadradas”
pelas representações coletivas, operariam como gatilho
das lembranças individuais. Logo, a memória coletiva seria
o conjunto de lembranças individuais compassadas pelas
representações coletivas. (GRAEFF, 2017, p. 106).
64
que os quadros sociais não são algo construído pelos indivíduos, mas incorporados por
eles. Como escreve Halbwachs,
Era preciso mostrar, por outro lado, que os quadros
coletivos da memória não se constituem a posteriori, por
combinações de lembranças individuais, e que eles não são
tampouco simples formas vazias nas quais as lembranças,
vindas de fora, viriam se inserir. Ao contrário, eles são
precisamente os instrumentos dos quais a memória se utiliza
para recompor uma imagem do passado de acordo com cada
época e com os pensamentos dominantes de cada sociedade
(HALBWACHS, 2018[1925], p. 7, tradução nossa).6
65
pesquisador ou pesquisadora em Memória Social se interessa por um acontecimento
passado e deseja compreendê-lo a partir de depoimentos de pessoas que os viveram
diretamente ou “por tabela” (POLLAK, 1992), esse acontecimento será significado
tanto pelos quadros sociais - tempo, espaço e linguagem - quanto pela perspectiva
particular de cada uma das pessoas pesquisadas. E, em todos os casos, a memória é
coletiva - no sentido halbwachsiano - porque ela resulta do protagonismo particular
de cada um dos indivíduos pesquisados e da incorporação, por parte desses mesmos
indivíduos, de categorias de entendimento: o tempo, o espaço e a linguagem.
É nessa esteira o trabalho de evocação, de lembrar, nunca é individual em
Halbwachs: uma pessoa não lembra de algo por um desejo subjetivo ou uma inclinação
espiritual, mas porque os quadros sociais e a sua condição em sociedade convocam
suas lembranças. Portanto, se as lembranças de cada indivíduo não são e não podem
ser idênticas, não é porque a imaginação ou a vontade de se lembrar tal ou tal coisa são
idiossincráticas, mas fundamentalmente porque a posição que cada indivíduo ocupa em
sociedade é única e particular. Posto que essa posição não é dada independentemente
de suas relações em sociedade e dos quadros sociais - tempo, espaço e linguagem -,
a memória individual é um ponto de vista particular que expressa as “correntes de
memória coletiva” (HALBWACHS, 1990).
Ilustração 3. Mapa mental “A Memória Coletiva”
66
A Ilustração 3 sintetiza as relações entre a consciência (intuição sensível)
e as categorias de entendimento (espaço, tempo e linguagem). Acima, à esquerda,
percebe-se o papel das relações sociais para o ato de lembrar, que é tanto um “acordo
preliminar” a respeito do sistema de signos (linguagem), quanto uma reiteração
desse sistema, que se espacializa e se inscreve no tempo em cada ato de lembrar.
Portanto, se o depoimento ou testemunho individual não cessa de concordar com
os depoimentos ou testemunhos de outros indivíduos, isso se dá pelo fato que
nossa capacidade de lembrar é sempre um ponto de vista sobre a memória coletiva
enquadrado pelos quadros sociais da memória.
Conclusões e encaminhamentos
67
Mas é como base de um campo de estudos e de uma maneira de fazer pesquisa
que a memória nos apaixona e encaminha questões; questões que vão muito além do
“passado”, do “acontecimento”, das “representações” ou das lições que cada um desses
termos pode trazer para as pessoas no presente. Para nós, a memória nos faz questionar:
por que as pessoas lembram do que lembram e esquecem o que esquecem? Como os
grupos fazem circular suas lembranças e como rompem a circulação e promovem o
esquecimento? Qual o papel das mídias e dos suportes no armazenamento, transferência,
transformação e reconstrução significados, valores e práticas individuais e coletivas?
Em que medida os ritmos sociais e os marcos temporais concatenam a vida coletiva e
como eles se implicam na construção do mundo e das coisas que nos rodeiam? Quais as
relações entre as recordações e a percepção do mundo ou entre depoimentos e tomadas
de decisão? Como a memória se distingue da cultura? Qual o papel das organizações e
instituições sociais para a lembrança e o esquecimento?
Referências
68
DUARTE, L. F. D. A pulsão romântica e as Ciências Humanas no Ocidente. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 55, p. 5–18, 2004.
GRANDMOUGIN, A-C. Lucien Herr bibliothécaire. DCB 19, Mémoire d’étude, janvier
2011. Disponível em: <https://core.ac.uk/download/pdf/12437908.pdf>.
69
POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992. Disponível em: <http://www.pgedf.ufpr.br/memoria%20
e%20identidadesocial%20A%20capraro%202.pdf >.
GELL, A. A antropologia do tempo: construções culturais de mapas e imagens
temporais. Tradução de Vera Joscelyne. Petrópolis: Vozes, 2014.
WEBER, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo.
70
A reconciliação como um caminho para libertação
das memórias feridas (violentas): Trauma e Testemunho
Introdução
72
Memória e Violência
1
ATLAS DA VIOLÊNCIA 2018. IPEA & FBSP. Rio de Janeiro: junho de 2018.
73
políticas públicas, ao invés de primarem pela inclusão e igualdade social, se afirmam
como instrumentos estatais de controle, convertendo-se em programas punitivos das
populações mais vulneráveis às ordens de violência. Não se trata apenas de instituir
programas de encarceramento em massa, mas de construir diversos instrumentos
de controle social investidos a partir de um discurso de “guerra”, de perpetuação
da violência como estratégia social, como exemplo: “Combate à Miséria; Guerra às
Drogas; Criminalização e estigmatização da juventude marginalizada”.2
Em sentido correlato, nota-se um aumento expressivo de novas leis e atos
normativos, bem como o número de projetos de lei que buscam criar cada vez “tipos
penais e penas” (GUSSO, 2018, p.60). Aliás, esta tem sido uma constante nas políticas
penais instituídas pelo Estado brasileiro nos últimos anos: novos crimes e novas
penas. Segundo estudo publicado constatou-se que, “em 29 anos da Constituição
Federal foram editadas quase 5,7 milhões de normas, uma média de 798 normas
editadas por dia útil.” (REVISTA GOVERNANÇA TRIBUTÁRIA, 2017). Segundo
Sinner e Westphal, o excesso de leis e de normas poderia ter um efeito contrário
do desejado, pois ao elaborar as leis parte-se do pressuposto de que o estado pode
controlar os desejos, a maldade e a contradição humana, que, muitas vezes, se
mostra na cordialidade e na violência em uma mesma pessoa. A atuação do Estado é
necessária e legítima. Entretanto, mesmo quando exercida de forma apropriada, não
consegue romper com a espiral da violência. É nesse sentido que resgatamos o “relato
de um julgamento” de Eichmann e, diante do mal-estar de Arendt, problematizar
a importância de compreender a potencialidade destrutiva da banalidade do mal,
em que violência não pertence ao outro, ao poder ou ao Estado, mas a perda. É
na ilegitimidade, é na ruptura da Civita, na perda de nossa capacidade de agir em
2
Como exemplo desse fenômeno do processo de policialização e controle por meio das políticas
públicas, importante trazer as contribuições de GUSSO (2013): “O fenômeno da criminalidade
juvenil, como uma espécie desta violência, estrutura discursos e práticas sobre a ordem social e as
formas de controle do conflito. É mediante tais discursos que as expectativas sociais e as relações
de poder devem ser interpretadas, assim como as políticas públicas e, em particular, aquelas
relacionadas à diminuição da violência. A criminalidade juvenil fundamenta a existência de
dispositivos de poder realizados pelo agir estatal em dois campos: a política criminal repressiva
(polícia) e as políticas de proteção social. Tais campos confundem-se nos procedimentos de controle
provenientes das instituições públicas. Mediante tal confusão, o controle social pela penalização e
pela policialização do social torna-se a regra geral e o mais fácil mote a ser proposto e seguido.
Os jovens residentes nas periferias das grandes cidades, membros das classes excluídas social e
economicamente, passam a ser vistos como classes perigosas, e, por conseguinte, alvos de políticas
públicas policializadas. Tal postura camufla-se sob os discursos humanísticos da integração e da
reinserção social, mas esconde a prática perversa da criminalização da marginalidade. O jovem
tido como “vulnerável” ou “em situação de risco social” é categorizado como o inimigo que precisa
ser controlado, agora não mais por um dever moral relativo à proteção social, mas sim porque são
ameaças ao establishment que os torna, pelo medo que infundem, em componentes eleitorais de
projetos políticos”.
74
conjunto que a violência se instaura. O que o julgamento de Eichmann também
pode mostrar que até mesmo os princípios de justiça são vulneráveis ao banal. Que
até o testemunho pode ser vulnerável ao banal. Para isso, basta compreender que a
banalidade do mal está em produzir e reproduzir o mal, pelo banal.
Uma situação que foi muito bem descrita por Helder Camara nos anos 60,
em sua espiral de violência. Ao refletir sobre a condição social latino americana
do período, Camara constrói a imagem de uma espiral que suga para si algozes e
vítimas, criminosos e vítimas, culpados e inocentes, de modo que a existência de um
promove a existência do outro. Uma lógica que valoriza a vingança, a desesperança e
que conduziria a mais violações de direitos humanos. O fim da espiral só produziria
mais morte, para Camara. Seria preciso um atuar diferente, uma postura diferente
e, sobretudo, estratégias que valorizassem experiências jurídicas-sociais-humanas
diferentes. Apoiadas em uma teologia de amor ao próximo, Camara propõe a
ruptura da espiral da violência a partir de uma resposta de não-violência, do perdão,
do respeito ao próximo e da valorização do testemunho como um caminho para a
alteridade.
As dinâmicas da violência estão incrustadas nas camadas profundas da
memória e dos sentimentos humanos. Não pretendemos analisar dimensões
psicológicas da memória e do inconsciente humano. A partir da problemática da
violência intentamos trazer à luz aspectos discutidos sobre a reconciliação, memória
e perdão no contexto cultural e político, a partir de Ricoeur, Le Goff, Arendt e
Derrida. Talvez, estas sejam reflexões ainda muita apressadas, todavia, necessárias,
pois convidam à um deslocamento teórico importante e necessário para novos
encontros e novas oportunidades, ainda distantes do mundo jurídico, mais possíveis
para aqueles que pensam a vida humana.
O perdão e a vingança
75
determinar pela ação do mal.
Assim, pelo perdão as pessoas são libertadas dos grilhões da vingança, que as
prende ao passado e as prende pelas memórias ao outro. Tanto o que ofendeu quanto
o ofendido são prisioneiros das memórias condicionadas pelos atos maus. O perdão
“liberta tanto o que perdoa quanto o que é perdoado” e não há mais a necessidade de
vingança. Ambos são livres da prisão da vingança que os mantém prisioneiros aos
atos maus (ARENDT, 2008, p. 253).
Nesse sentido, nas reflexões arendtianas, Jesus inaugurou algo completamente
novo na história da humanidade, pois o perdão é dirigido à pessoa que fez algo e quem
foi perdoado muito também ama em gratidão pelo perdão que recebeu. Segundo
Jesus, “Perdoados lhe serão os muitos pecados, porque amou muito; mas ao que
menos perdoa, menos ama”, e, por consequência, somente quem ama está disposto
a perdoar. A pessoa que é perdoada é amada com suas qualidades, bem como com
seus defeitos e imperfeições e transgressões. Essa incondicionalidade do perdão, que
inclui as idiossincrasias do outro, vem da palavra de Jesus que Arendt traduz do texto
grego assim (Lucas 17.4), “E se ele transgredir contra ti... e... procurar-te, dizendo:
Mudei de ideia, deves desobrigá-lo” (ARENDT, 2008, p. 252).
Desse modo, percebe-se que o amor e o perdão carregam em si forças
políticas e a visão de Jesus tem impactos nos negócios humanos. Arendt destaca que,
“assim, a perda do respeito nos tempos modernos, ou melhor, a convicção de que
só se deve respeito ao que se admira ou se preza, constitui claro sintoma a crescente
despersonalização da vida pública e social” (ARENDT, 2008, p. 255).
Negar o perdão ao outro é viver nos grilhões da memória aprisionada aos atos
do passado e perder a perspectiva escatológica de construção de novas possibilidades
de vida. A memória que celebra é substituída pela memória aprisionada à vingança e
a (à ) amargura, que recorda atos maus acontecidos no passado. O perdão da própria
culpa não seria possível, pois o perdão concedido ao outro, liberta para perdoar a si
mesmo. Arendt ressalta que, “encerrados em nós mesmos, jamais seríamos capazes de
nos perdoar por algum defeito ou transgressão, pois careceríamos do conhecimento
da pessoa em consideração à qual se pode perdoar.” (ARENDT, 2008, p. 255).
Nesse sentido, para Arendt, o perdão é algo de natureza cristã, pois, para
ela, Jesus inaugurou uma nova cultura que proporciona o perdão entre as pessoas e
rompe com as amarras da vingança. À medida que se distancia da tradição abraâmica
de Jesus, o perdão precisa ser regulamentado e precisa ser institucionalizado por
meio de políticas públicas. A dimensão do religioso é substituída pelo Estado, que
assume o papel da consciência.
Ricoeur critica essa apropriação do perdão da herança abraâmica pelo Estado.
76
Após a abordagem sobre as origens da reconciliação seria desnecessário frisar que ele
se fundamenta em textos do Novo Testamento, as cartas de Paulo, e as discute com
Derrida. Não se pode ignorar aqui que Ricoeur foi um dos principais expoentes da
hermenêutica bíblica contemporânea. A hermenêutica bíblica é o referencial teórico
para a sua filosofia da memória e do perdão (RICOEUR, 2006; RICOEUR, 1990,
p. 27-37). Ricoeur parafraseando Derrida e, em parte, citando-o, diz assim:
Derrida nota que a linguagem que se tenta ajustar ao
imperativo pertence “a uma herança religiosa, digamos
abraâmica, para nela reunir o judaísmo, os cristianismos e
os islamismos” Ora, essa tradição, complexa e diferenciada,
e até mesmo conflituosa, é ao mesmo tempo singular e,
em via de universalização. Ela é singular, pois é produzida
pela “memória abraâmica das religiões do Livro e numa
interpretação judaica, mas sobretudo cristã do próximo e do
semelhante (RICOEUR, 2007, p. 474).
3
“Si, en consecuencia, el crimen contra la humanidad es un crimen contra lo más sagrado
de lo viviente, y por lo tanto contra lo divino en el hombre, en Dios-hecho-hombre o el
hombre-hecho-Dios-por-Dios (la muerte del hombre y la muerte de Dios denuncian aquí
el mismo crimen), entonces la “mundialización” del perdón semeja una inmensa escena de
confesión en curso, por ende una convulsión-conversión-confesión virtualmente cristiana,
un proceso de cristianización que ya no necesita de la Iglesia cristiana” (DERRIDA, 2003,
p. 4). Tradução do Autor.
77
O perdão institucionalizado
Nessa linha, realiza uma crítica à anistia como uma forma secularizada do
sacramento da penitência na tradição católico-romana. O perdão é uma dimensão
de outra ordem daquela imposta pelo Estado. A reconciliação está inserida no
desligamento da lembrança e da recordação das memórias feridas, que prendem a
vítima e o culpado. Segundo Ricoeur (2007, p. 498), “o perdão é capaz de desligar
a vítima da escravidão das memórias feridas aos atos do culpado”. Ricoeur discute a
questão dos alcances e limites do perdão com Derrida e, segue:
Para fazer justiça a esse último ato de confiança, não há
outro recurso senão assumir um último paradoxo que as
religiões do Livro propõem e que vejo inscrito na memória
abraâmica. Ele se enuncia na forma de um acoplamento que
ainda não mencionamos e que opera num grau de intimidade
que nenhum dos acoplamentos evocados até aqui alcança: o
do perdão e do arrependimento. (RICOEUR, 2007, p. 498)
78
celebradas no culto, nas festas e no convívio familiar. Em vista disto, segundo Le Goff,
a tradição cristã constrói a sua identidade a partir da recordação, como na imagem
da Última Ceia, quando Jesus toma o pão e o vinho com seus discípulos, a memória é
vivida e celebrada. Nesse sentido, revive-se na memória da celebração, a redenção de
Deus, que proporcionaria perdão ao seu povo (Lucas 22.19) (LE GOFF, 2003, p. 439).
A repetição das palavras e dos atos de Jesus garante a memória da história
da salvação vivida e celebrada na memória das palavras e dos atos do perdão. A
celebração da memória acontece no culto. No ensino, transmite-se a memória
vivida no passado com vistas a um futuro escatológico (LE GOFF, 2003, p. 438-
440). Memória, salvação e história se condicionam na tradição judaico-cristã. Le
Goff corrobora isso da seguinte forma: “Podemos considerar que a salvação tanto se
realizará fora da história, por meio da recusa da história, como através da história e
pela história” (LE GOFF, 2003, p. 65; LE GOFF, 2011, p. 9-15). O passado é revivido
e reinterpretado pelo tempo litúrgico com vistas para “um futuro, “que é parte
integrante da história” (LE GOFF, 2003, p. 25).
Nessa concepção de história, “o tempo da humanidade começa, como se
sabe, pelo aparecimento do homem om Adão, mas o Cristo é precisamente o centro
do tempo” (LE GOFF, 2014, p. 49). A memória acontece no processo da história
da salvação como reconciliação, que é vivida no tempo pelo perdão, como fonte
inesgotável para que a vida humana e as relações interraciais e a manutenção da vida
na criação sejam possíveis, a exemplo do ano sabático (SCHMITZ, 2006, p. 345-366).
Há o tempo do descaminho da vontade de Deus, que necessita do arrependimento
e o tempo da reconciliação. O tempo é marcado pela história da salvação como
processo de redenção. “O tempo do descaminho, que vai de Adão a Moisés; o tempo
da renovação ou da convocação, que vai de Moisés à natividade do Cristo; o tempo da
reconciliação, entre a Páscoa e o Pentecostes” (LE GOFF, 2014, p. 48).
Na modernidade, ao contrário da história da salvação presente na memória
abraâmica, segundo Arendt, o ser humano vive do labor e do consumo para que o
ser humano necessite fabricar e atenuar a suas dores e seus sofrimentos. O consumo
e o labor tornam-se meios de redenção. “A redenção da vida, mantida pelo labor, é a
mundanidade, mantida pela fabricação” (ARENDT, 2008, p. 248). O homo faber ou o
animal laborans da modernidade precisa de redenção para os seus atos de labor e de
consumo. Entretanto, o consumo não lhe traz perdão dos atos do passado. A única
solução para os atos irreversíveis do passado é a faculdade de perdoar. O perdão
do passado é a perspectiva da promessa do futuro, em Ricoeur, Arendt e Derrida,
e memória e escatologia, em Le Goff. Sem o perdão, ficaríamos presos à culpa do
passado que não pode ser desfeita e se não pudéssemos cumprir nossas promessas de
superar os erros e de não cometer mais os erros do passado.
79
Se não houvesse perdão para os nossos atos, seríamos vítimas e prisioneiros
de um único ato do qual jamais seríamos libertados, “limitada a um único ato do qual
jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas de suas consequências”
e não haveria “remédio para desfazer o que foi feito” (ARENDT, 2008, p. 249-250).
Arendt mostra que a culpa é semelhante ao feitiço que o aprendiz de feiticeiro não
consegue desfazer. A pessoa não consegue sair dessas amarras da dinâmica de vítima
e algoz, “sem os remédios inerentes à ação, passa inevitavelmente a subverter e a
destruir, não o próprio homem, mas as condições nas quais a vida lhe foi dada”
(ARENDT, 2008, p. 495-497).
Arendt, que também era teóloga, e não se considerava cristã, aponta para
a dimensão teológica, no contexto das dinâmicas políticas e sociais da culpa e do
perdão. Ela destaca que, “descobridor do papel do perdão na esfera dos negócios
humanos foi Jesus de Nazaré. O fato de que ele tenha feito esta descoberta num
contexto religioso e a tenha enunciado em linguagem religiosa não é motivo para
levá-la menos a sério num sentido estritamente secular“ (ARENDT, 2008, p. 250).
O perdão como possibilidade das políticas públicas no pensamento de
Hannah Arendt é tomado a partir de Jesus. Para ela, a incondicionalidade do perdão
foi inaugurada por Jesus, a partir de quem temos as referências para abdicar da
vingança. Hannah Arendt trabalha os textos exegeticamente, a partir de análises
linguísticas, etimológicas e literárias do texto grego, fazendo referência ao hebraico
do cânone judaico, que ela conhecia (ARENDT, 2008, p. 248-255; RICOEUR, 2007,
p. 493-495).4
Assim, o ato de perdoar tem como finalidade “desfazer os atos do passado,
cujos ´pecados´ pendem como espada de Dâmocles sobre cada nova geração” que
pode se romper a qualquer momento e suscitar em nós um processo de amargura e
de vingança e, assim, ficamos desamparados e desnorteados (ARENDT, 2008, p. 249).
Sem o perdão a pessoa permanece presa às memórias do passado e não consegue se
libertar para a construção de sua escatologia, pois o que move a história de vida é sua
força escatológica, ou seja, suas utopias (LE GOFF, 2003, p. 328).
O que move a cultura é sua força para a felicidade e a superação das amarras
que a vingança impõe. Le Goff fala da escatologia como condição e necessidade para
que o ser humano tenha perspectivas de futuro (LE GOFF, 2003, p. 323-371). A partir
de Arendt e Ricoeur poderíamos dizer que o perdão liberta do passado e com Le
Goff, a memória feliz impulsiona o agente e a vítima para um novo eschaton.
A partir da discussão com Arendt, Ricoeur afirma:
4
Neste contexto Ricoeur (2007, p. 493-495) chama atenção para o empenho de Arendt em
aprofundar os textos bíblicos pela análise exegética e etimológica.
80
obviamente, o perdão tem esse efeito de dissociar a dívida
de sua carga de culpabilidade e, de algum modo, desnudar o
fenômeno de dívida, enquanto dependência de uma herança
recebida. Mas ele faz mais. Pelo menos, deveria fazer muito
mais: desligar o agente de seu ato (RICOEUR, 2007, p. 497).
De fato, a ideia do Jom Kipur, que é a festa do perdão dos judeus, é assumida
em Cristo. Na obra de reconciliação de Cristo há uma transformação do evento do
dia do perdão do Jom-Kippur na reconciliação e no ato de perdão de Deus em Jesus.
Cristo é que proporciona a participação do ser humano na vida de Deus por meio
da sua presença na eucaristia e por meio de sua graça (SCHMITZ, 2006, p. 348 e
p. 365-36).
81
memória.” (RICOEUR , 2007, p. 502). A recordação como memória e reconhecimento
está livre da culpabilidade, assim, dos grilhões da culpa. Essa é a memória feliz pelo
desligamento do agente dos seus atos, que está inscrita na tradição hebraica do Salmo
4. 7 “Mais alegria me puseste no coração do que a alegria deles, quando lhes há fartura
de cereal e de vinho.”
Na interpretação de Ricoeur, para Derrida, é necessário perdoar o culpado,
sem, contudo, deixar de condenar a sua ação. Perdoa-se o pecador, mas se condena o
pecado. Assim, o culpado está livre da “espada de Dâmocles”, para falar com Arendt,
da condenação que paira sobre o culpado. Deve se crer no pecado e também no
perdão, tirando sobre o culpado a condenação atroz. Essa possibilidade somente é
possível a partir da incondicionalidade do perdão.
Segundo Derrida, “Jankélévitch tinha sido mais favorável a ideia de um
perdão absoluto. Reivindicava então uma inspiração judia e sobre tudo cristã.
Falava inclusive de um imperativo de amor e de uma ‘ética hiperbólica’”
(DERRIDA, 2003, p. 8).5 É possível falar de uma memória feliz, mas não é possível
falar de um esquecimento feliz. Não é possível esquecer os crimes da Schoah, do
Holocausto, nos campos de concentração. A anistia é uma caricatura do perdão, que
é uma institucionalização do esquecimento. E não é possível uma política pública
do perdão, pois esse acontece como milagre, pois o ser humano não é capaz de
perdoar (RICOEUR, 2007, p.504-512). Novamente Arendt e Ricoeur apontam para
Jesus de Nazaré como boa nova e como possibilidade de perdão. A vinda da criança
prometida, Jesus de Nazaré, coloca a natalidade como milagre que anuncia a força de
se perdoar e criar uma nova realidade para os negócios humanos (RICOEUR, 2007,
p. 495-497, p. 508-512).
Ricoeur aponta para o apóstolo Paulo, que fala em 1 carta aos Corintios 13
de que o maior dos dons é o amor. Segundo ele, ainda que se tenham experiências
extraordinárias e capacidades inacreditáveis, o que conta é o amor, que não se vinga,
não se alegra na injustiça, que perdoa, que espera e suporta e que age com misericórdia
e perdoa incondicionalmente, porque Cristo perdoa incondicionalmente o pecador.
Há uma desproporção entre um ato imperdoável e o perdão, pois são dois infinitos
extremos se fizermos uso da concepção de extremos da geometria (RICOEUR, 2007,
p. 473-474; JANKÈLÈVITCH, 2008, p. 75). Segundo Ricoeur,
É de encontro a esse esquecimento que a memória trabalha,
não qualquer memória, não a memória guardiã do passado,
a rememoração do acontecimento decorrido, do passado
5
“Jankélévitch había sido más favorable a la idea de un perdón absoluto. Reivindicaba
entonces una inspiración judía y sobre todo cristiana. Hablaba incluso de un imperativo
de amor y de una “ética hiperbólica” (DERRIDA, 2003, p. 8).
82
terminado, mas essa memória que confere ao homem o
poder de cumprir suas promessas, de se manter; memória
de ipseidade, diríamos, memória que, ao regular o futuro
sobre o compromisso do passado, torna homem “previsível,
regular, necessário “ e assim capaz de “responder por si
mesmo como por vir’ (RICOEUR, 2007, p. 495).
Esta justiça formal entende que a simples coação legítima (oriunda do Estado)
e procedimental é o instrumento jurídico capaz de delimitar e defender a ordem
social, afastando, segundo Ruiz, quaisquer potencialidades éticas ou, quiçá, mais
83
humanitárias. Um estado burocratizado construiu para si uma justiça burocratizada.
Eis que o mal-estar do relato do julgamento de Eichmann soa ainda mais claro. Sob a
premissa de uma justiça a qualquer custo, algozes e vítimas foram atraídos para uma
espiral na qual não houve espaço para a possibilidade de um pensar crítico ou ético
de uma justiça para além de um mero procedimento. Na grande cena do julgamento
de Eichmann descrito por Arendt, os princípios formais e procedimentais de justiça
dividiram espaço com o testemunho das vítimas de um crime terrível. Encontraram
a banalidade do mal nos atos de uma vida. A resposta jurídica possível foi a punição.
Desta forma, a violência do ato e o seu testemunho foram atraídos para esta
espiral de violência tão bem descrita por Camara. Uma espiral em que algozes e
vítimas apenas se enxergam em lados opostos, como antagonistas nunca conciliáveis.
Mas será que a tradição política do Estado moderno e, da nossa forma de
fazer justiça, poderia possibilitar caminhos para as pessoas pensar–se mais fraternas
e solidárias, e, quem sabe, diminuir a violência?
Teria o Estado a capacidade e o direito de interferir nas consciências das
pessoas exigindo a prática do perdão?
Como você pode então resolver o conflito entre o algoz de
um crime e a possibilidade de perdão de um criminoso em
um caminho que não banalize o perdão e reconciliação?
Culpa e reconciliação certamente precisam ser reconhecidas
para que o perdão possa ser experimentado entre o sujeito da
ofensa e a vítima. Libertação das cadeias do passado rompe
com o círculo vicioso da vingança e violência no contexto
social e político (SINNER;WESTPHAL, 2018, p. 54-55).6
6
“How might one then resolve the conflict between the perpetrator of a crime and the
possibility of forgiveness for a criminal in a way that does not banalize forgiveness and
reconciliation? Guilt and reconciliation certainly need to be acknowledged so that forgiveness
can be experienced between the subject of the offence and the victim. Liberation from the
chains of the past breaks the vicious circle of revenge and violence in the social and political
context.” (SINNER; WESTPHAL, 218, p. 54-55). Tradução do autor.
84
O amor tem a mesma extensão que a justiça. Ele é sua alma,
seu impulso, sua motivação profunda; confere-lhe sua visada
que é o outro, cujo valor absoluto ele atesta; acrescenta a
certeza do coração àquilo que corre o risco de tornar-se
jurídico, tecnocrático, burocrático no exercício da justiça.
Em compensação, porém é a justiça a realização efetiva
institucional, social do amor (RICOEUR, 2008, p. 173).
Referências
85
LE GOFF, J. Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada. Trad.
Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al.
Campinas: Unicamp, 2007.
RICOEUR, P. Liebe und Gerechtigkeit – Amour et Justice. Tübingen: J.C.B. Mohr.
1990.
RICOEUR, P. A hermenêutica bíblica. Trad. Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 2006.
RICOEUR, P. Hermenêutica e Ideologias. Trad. Hilton Japiassu. Petrópolis: Vozes
2008.
RUIZ, C. B. (Org.). Justiça e Memória. Para uma Crítica ética da violência. São
Leopoldo: Editora Unisinos, 2009.
SCHMITZ, B. Vom Tempelkult zur Eucharistiefeier: Die Transformation eines
Zentralsymbols aus religionswissenschaftlicher Sicht. Berlin: LIT Verlag, 2006.
SINNER, R. V.; WESTPHAL, E. R. Lethal Violence, the Lack of Resonance and the
Challenge of Forgiveness in Brazil. International Journal of Public Theology, v. 12 ,
p. 38-55, Leyden: Brill, 2018.
REVISTA GOVERNANÇA TRIBUTÁRIA. https://ibpt.com.br/noticia/2626/%20
Excesso-de-legislacao-provocaconflito-entre-os-poderes-nos-29-anos-da-
Constituicao-de-1988-afirma-IBPT,%20[accessed%20on30%20October,%202017.
Publicado em: 05 de outubro de 2017.
86
O lugar da arte na memória social
e na identidade cultural
Introdução
Se toda memoria tem uma estética da identidade podemos com isso nos
aproximar de uma relação profícua com a arte e seu campo de variação igualmente
plural e difuso. A firmamos com isso que arte e memória tem em si o elemento
ontológico nas suas formações e origens. A arte assim como a memória, tem uma
variação de valores estéticos que a torna ontologicamente determinada pela sua
singularidade e autenticidade. A ontologia da arte é assim, como afirma Heidegger,1
uma fundamentação do humano abstrato em obra, no caso obra de arte como criação
ontológica e tecnicamente livre.
Liberdade como ato de criação e a estética como ato de percepção, são dois
dos elementos que nos permitiria aproximar a arte como elemento da memoria. O
quadro Guernica, obra realizado por Pablo Picasso em forma de painel é um bom
exemplo desse processo formado entre liberdade criativa e estética perceptiva de uma
memoria política.
A obra de arte tem sua aura e sua autenticidade, como afirma Benjamin
cultivada em sua originalidade e singularidade. Ela nasce como identidade estética
demarcada por essa singularidade aurática e com isso se eterniza na memória cultural
1
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. In: Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2004.
88
das sociedades. Nesse sentido a obra de arte já nasce como um ícone, que serve como
valor de cultuo e valor de exposição, também como afirma Walter Benjamin, com
base em suas leitura sobre arte grega da antiguidade.
Os gregos foram obrigado, pelo estágio de sua técnica, a
produzir valores eternos. Devem a essa circunstância o seu
lugar privilegiado na historia da arte e sua capacidade de
marcar, com seu próprio ponto de vista , toda a evolução
artística posterior (BENJAMIN, 1996 p. 175).2
89
processos culturais, quando compartilhados numa sociabilidade coletiva.
Na visão de Jaques Le Goff (1984)3 uma das preocupações dos grupos sociais
e culturais na história é tornarem-se senhores da memória e do esquecimento, pois o
processo de construção e domínio da memória coletiva funda uma estruturação de
uma identidade de poder.
Já para Paul Ricoeur (2000)4 as dimensões da memória se inscrevem nas
relações das formas de reconhecimento, individualidade e coletividade dentro das
culturas. Ele afirma que a memória está diretamente ligada a linguagem e ao conteúdo
do conhecimento que é produzido socialmente, sobretudo o conteúdo das riquezas
culturais das sociedade. A memória, nesse sentido, é pensada em bases coletivas e
demanda o entrecruzamento entre relações individuais e coletivas, naquilo que lhe
é particular e que está próximo de forma comum na sociedade compartilhada pela
arte e pela cultura.
Dentro desse contexto, a memória é um dispositivo que é ativado como
mecanismo de afirmação identitária no campo cultural mediado pela arte. Esse
dispositivo funciona como um modo de auto-reconhecimento, disponibilizando
elementos do passado para atuar no presente e criando, formas de representação
social dos valores da tradição que podem ser emblemáticos para a difusão das
culturas e dos saberes locais nos processos futuros. Com isso, a memória além de
ser um mecanismo de auto referência, também permite que o conteúdo histórico e
testemunhal recuperado pelos grupos sociais seja valorizado culturalmente, sendo
assim apresentado para fora de seu círculo social, como um símbolo de identidade.
Numa perspectiva mais antropológica, Gilberto Velho (1994)5 afirma
que memória, identidade, formam-se num contexto de projeto e são assim, faces
singularizadas de um mesmo prisma que reflete realidades de processos individuais
e sociais dentro da cultura, sobre a qual as formas de arte são fundamentais. Os
três elementos, memória, identidade e projeto estão articulados de modo seminal
e a partir deles a memória constitui uma forma de identidade e encerra um projeto
de futuro com base numa configuração cultural. Da mesma forma toda formação
identitária se alicerça em bases de memórias coletivas e negocia com a realidade
por meio de projetos afirmativos. Nesse sentido há, para Gilberto Velho, uma retro-
alimentação entre identidade e memória que leva às formas de expressões culturais,
nas quais as artes de uma maneira geral servem como elemento de afirmação histórica.
3
LE GOFF, Jacques. “Documento/monumento”. In Memória e História. SP: Ed. Unicamp,
1984.
4
RICOEUR, Paul. La mémoire. L’histoire. L’oubli. Paris: Seuil, 2000.
5
VELHO, Gilberto. “Memória, identidade e projeto.” Projeto e metamorfose. Antropologia das
sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994
90
Vemos com isso uma aproximação entre a perspectiva antropológica de Gilberto
Velho com a perspectiva filosófica de Benjamin, anteriormente citado.
Com base nessas referências sobre a relação entre memória coletiva e
identidade argumentamos que a construção de artefatos culturais e visuais fundados
na memória coletiva transcende uma representação estética dos grupos e adquire
um caráter político de afirmação e reconhecimento identitário. Uma vez que a
construção dos conjuntos simbólicos da identidade tem se expressado cada vez mais
através desses elementos de diversidade visual, defendemos que se torna necessário
investigar sociologicamente o desenvolvimento desse processo de publicização da
imagem da cultura e do saber local, através das artes.
A ideia de conjuntos simbólicos relativos à imagem, expressa uma ratificação
dos símbolos mais fortes, ou seja, os símbolos com maior poder significante no
espaço cultural, tornando possível a caracterização dos ícones da identidade dessa
cultura. Se observarmos o quadro Guernica de Picasso, obra prima do pintor, que atá
hoje serve de ícone simbólico da diversidade política e cultural espanhola, a partir
de seus variado elementos identitários, veremos que o conjunto simbólico presente
nesse painel, exposto no museu reina Sofia em Madri, tem um caráter agregador
de uma identidade em processo, com ícones simbólicos e representações visuais de
elementos identitários, como pode ser visualizado pela foto do quadro abaixo,6
91
Se o poder da liberdade é constitutivo tanto da arte como da memória, o lugar
de sua conservação tem inevitavelmente que atender esse mesmo critério, sob pena
de perder a identidade igualmente constitutiva a arte e a memória.
O que é identidade dentro desse contexto? Definimos por identidade o valor
epistemológico que caracteriza um projeto, um reconhecimento ou uma afirmação,
na busca do seu próprio locus em relação ao reconhecimento outro. Nesse sentido
a noção de identidade empregada aqui compreende o valor da alteridade. Ou seja,
o valor do outro, do diferente, do que não se limita ao uno, e sim ao múltiplo e ao
diverso.
Na arte, o papel da vanguarda é o de delimitar o locus estético da sua própria
indentidade em relação ao contexto cultural vigente. Nesse sentido, a estética e a
diversidade identitária da arte tem um papel fundamental na valorização do
processo de se reconhecer no presente os elementos valorativos do futuro. A arte de
vanguarda, projeta uma identidade futura, com elemento do passado, vejamos por
exemplo o modernismo brasileiro e sua estética vanguardista presente nos anos vinte,
onde sua recepção foi um tanto quanto revolucionaria no contexto da identidade
cultural e artística brasileira. Vejamos os impressionistas franceses e todo contexto
de incompreensão inicial da crítica europeia, quanto as inovações estéticas que eles
propuseram.
A identidade estética da arte está a frente do tempo, mas se constitui no seu
presente olhando o seu passado. Um quadro representativo desse movimento entre
futuro, presente e passado, é o Angelus Novus, pintado pelo artista, Paul Klee. No qual
a imagem de um anjo se precipita para o futuro, empurrado por uma tempestade
muito forte que prende suas asas, mas ele mantém um olhar fixo para o passado,
no qual vê a destruição da qual ele é afastado pela tempestade que o empurra para
a frente. O anjo contempla a destruição histórica e a memória dos processos da
modernidade. Uma espécie de testemunho de memória projetada através da pintura
moderna.
Com isso arte e memória tem suas sínteses contidas nas suas mudanças, e
no valor que cada qual ao seu modo permite transformarem-se em novas coisa a
cada interpretação crítica. O crítico nomeia, classifica e identifica, o que a arte ao seu
modo, transforma e liberta. A memória cristaliza o que a experiência testemunhou
e a imaginação criou. Os processos de liberdade em ambos é fundamental para suas
existências ontológicas.
A questão importante a esse respeito é saber se as instituições formais,
como galerias, museus, bibliotecas, arquivos, e outros dispositivos de preservação e
conservação, estão aptos a ambientarem a liberdade da arte e da memória viva em forma
92
de expressões simbólica, abstratas ou materiais. Creio haver uma indeterminação
contemporânea relativas ao conceito de “preservação” e “conservação”, pois cada vez
mais conservar e preservar está associado a não mudar. Ou seja, negar o “Devir” das
coisas.
Dentro desse contexto, uma das preocupações dos grupos institucionais,
seja do ponto de vista social, cultural, histórico ou político é tornarem-se senhores
da memória, pois o processo de construção e domínio da memória, se funda numa
estruturação de poder. O domínio de memória é em certa medida o domínio dos
registros da experiência e da busca relativa ao reconhecimento dessa experiência
alheia, ou própria.
Nas artes visuais isso é fundamentalmente verdade e na fotografia esse aspecto
fica ainda mais evidente.
A afirmação de que a fotografia como uma forma de arte não tem nenhuma
função a priori a isenta, por um lado, de um essencialismo funcional que a acompanhou
durante o século XIX e início do século XX, e, por outro lado, lhe confere liberdade
para se valer de qualquer sentido artístico estabelecido a posteriori.
A fotografia em si se presta a expressar através de uma linguagem artística o
conteúdo de uma imaginação visual livre. Com isso, a fotografia pode se tornar um
documento social com os mesmos critérios estéticos de um documento de arte, um
documento/monumento com diria Le Goff (1984, op. cit.), na medida em que passa
a ocupar um espaço público nos periódicos, jornais e nos arquivos e bibliotecas, se
valendo de um certo poder de formação e informação cultural e política da opinião
pública e da memória social.
Da mesma forma que a literatura contribuiu para o imaginário ficcional
dos séculos XIX e XX, a fotografia e as artes visuais, de uma maneira geral, vêm
contribuindo para a construção do imaginário visual no século XXI, sobretudo
as artes digitais presentes no contexto contemporâneo. Sem dúvida esse processo
serve ainda para a formação de memória social compartilhada, que hoje se encontra
digitalizada e disponível na WEB e na páginas sociais ou exposta nos muros da
cidades em forma de arte grafite.
Quando pensamos numa tomada das artes através da imagem, estamos
querendo nos referir também a modos alternativos de exposição e circulação da
experiência artística, no qual se insere a experiência de produção e divulgação de
imagens feitas pelos diferentes protagonistas de artes, divulgadas através das diversas
redes sociais, (twitters, instagrams, flickrs, vimeo, youtubes, facebooks), numa situação
e conjuntura que lhes conferem um caráter de autenticidade, autonomia e de
circunstancialidade, promovida pelas artes visuais em particular a fotografia.
93
Conforme Gisele Freund (2011),7 no século XIX a fotografia, como um
documento social, foi uma forma de expressão e comunicação artística que
possibilitou a representação da realidade política, social e de classe pelo caráter de
engajamento que os artistas deram às suas expressões fotográficas. Segundo Freund:
“Con los inícios de la conciencia de classe de los trabajadores y el acenso de las capas
pequeno burguesas, se formaba una generacion de artistas que figura en los inícios
de una critica social consciente”. (2011, p. 68).
Nesse contexto histórico, a fotografia se prestou a agir como instrumento
de luta política e a arte fotográfica deu os primeiros passo no contexto do
engajamento político e social. Esse é um dos fatores que Freund (2011) advoga para o
reconhecimento da fotografia com documento social e histórico de arte.
A documentação fotográfica organizada em forma de narrativa imagética
nos convida a sentir a experiência do olhar através dos registros fotográficos que
testemunharam a história e, ao mesmo tempo, colaborar no entendimento dos
significados de determinados fatos ou processos importantes historicamente.
Segundo Lowy (2009),8 as fotos relativas a processos revolucionários “revelam
ao olhar atento do observador uma qualidade mágica, ou profética, que as torna
sempre atuais, sempre subversivas. Elas nos falam sempre de um passado e de um
futuro possível” (p. 19).
É dessa forma que podemos entender as fotografias de guerra, por exemplo,
como um gênero fotográfico da história que visa interpretar um contexto de conflito
bélico e transportar o leitor para o momento retratado pelo exercício da imaginação
histórica.
Sem entrarmos em termos comparativos, mas apresentando um caráter de
significação das artes visuais, poderemos afirmar que através da arte testemunho, o
Quadro Guernica, feito por Picasso para retratar sua posição frente a Guerra Civil
Espanhola e o conjunto de documentação fotográfica de Robert Capa, Chim e Gerda
Taro, sobretudo constituído pelo conjunto de 4500 negativos fotográficos perdido
por mais de setenta anos na maleta mexicana, como esses abaixo, feitos em Cierro
Murano, durante a ofensiva dos milicianos contra o exército franquista em 1936.
7
FREUND, Gisele. La Fotografia como Documento Social. Editorial Gustavo Gili.
Barcelona, 2011.
8
LOWY, Michael. (Org.) Revoluções. São Paulo, Bointempo. 2011
94
São expressões testemunhais de uma documentação visual de vanguarda,
através dos quais se afirmam um projeto de identidade política para a Espanha dos
anos trinta através de uma guerra. Essas fotos em seu conjunto expressam o início de
uma estética fotográfica de guerra, produzindo não só imagens mais também uma
estética de memória testemunhal de um período sombrio da modernidade europeia.
O testemunho dramático das fotografias de guerra, como expressão artística,
busca provocar no observador uma explosão de sentimentos e o convencimento
coletivo acerca do absurdo que envolve a guerra. A documentação fotográfica
organizada em forma de narrativa imagética nos convida a sentir a experiência do
olhar através dos registros fotográficos que testemunharam a história e, ao mesmo
tempo, colaborar no entendimento dos significados de determinados fatos ou
processos importantes historicamente. É dessa forma que podemos entender as
fotografias de guerra, por exemplo, como um gênero fotográfico que visa interpretar
um contexto de conflito bélico e transportar o leitor para o momento retratado pelo
exercício da imaginação histórica
Todas essas obras de arte visuais são patrimônios artísticos e culturais
guardados como artefato visual de memória, no Museu Reina Sofia, em Madri e no
Center International of Photography em New York.
95
As artes visuais são formas de representação e identificação dos conteúdos
simbólicos das sociedades e através das quais os ícones de significação culturais ganham
um valor de exposição acentuado. Segundo Barthes (1989),9 a ideia de conjuntos
simbólicos relativos à imagem expressa uma ratificação dos símbolos mais fortes, ou
seja, os símbolos com maior poder significante no espaço cultural, tornando possível a
caracterização dos ícones da identidade dessa cultura. É com base nisso que as imagens
das formações identitárias ganham força política e, assim, de representação ideológica,
solidificando-se a partir da memória coletiva dos grupos culturais.
Nesse sentido há uma gramatica visual nesse contexto de arte e essa serve
muitas vezes para apresentar um conteúdo ideológico através do discurso estético.
A fotografia é, indiscutivelmente, uma forma de expressão no campo da arte
visual, universalmente acessível e relativamente fácil em sua dimensão prática, mas
seguramente a sua forma de estruturação estética e o seu processo de interpretação
imagético se inscrevem dentro do campo simbólico da arte. Esse campo é
estruturado pelo processo de representação e significação da realidade na produção
de determinados tipos de saberes estéticos e valores críticos.
Segundo Bourdieu,10 a fotografia, em sua dimensão prática, é acessível como
bem cultural, universalmente consumido; complemento essa assertiva afirmando
que tal prática cultural proporciona a constituição de um banco de memória visível,
disponível no campo das artes visuais e em particular na cultura visual.
Há algo que tangencia a fotografia e a memória; ambas são um processo de
edição em que a escolha do que vamos ver e memorizar é definida por um esquema
de seleção. No caso da fotografia, esses critérios são definidos a partir do que se quer
mostrar com base na ação social do olhar; percebo, escolho, faço a medição da luz,
componho e registro fotograficamente em forma de arte. No ato fotográfico, há uma
relação dialética entre realidade e representação na qual a síntese é quase sempre a
representação da representação, ou seja, no processo de ancoragem da percepção
fotográfica, a escolha do recorte do real imagético registra uma representação
esteticamente instrumentalizada que descontextualiza o real a partir da experiência
da luz, através do claro/escuro. A imagem fotográfica é uma criação cultural das
formas sociais do olhar.
A construção social da imagem e da imaginação são fenômenos próximos
à construção social da memória; em todos esses casos, há aquilo que chamamos
anteriormente de processo de seleção (escolha) e edição (corte); tanto um como
9
BARTHES, R. 1989. Mitologias. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
10
BOURDIEU, Pierre. 1979. La definicion de la fotografia, em Bourdieu, P. (org.), La
Fotografia: Um Arte Intermédio. México, Editorial Nueva Imagem.
96
outro irão compor a percepção (estética) da coisa a ser vista dentro de um suporte
físico (imagem fotográfica) ou imaginada (projeções mentais).
Se memorizar é criar um registro de imagem, fotografar é memorizar um
momento em forma de presença e ausência de luz, ou seja, registrar com luz e
sombras uma imagem em um suporte físico, seja esse um filme, um sensor eletrônico
ou mesmo diretamente um papel fotossensível, como se faz na fotografia pinhole.
Isso faz com que a fotografia assim como a memória sejam resíduos
imaginados da realidade e ao mesmo tempo, afirmação visual e imaginativa da
própria realidade criada.
Uma vez que a construção simbólica da identidade tem se expressado cada
vez mais através desses elementos de diversidade visual, defendemos que se torna
necessário investigar de forma transdisciplinar o desenvolvimento desse processo
cultural da imagem e da identidade através das artes.
Considerações Finais
97
Referência
98
Doorway to Brasilia e Brasilia vive!: imagens da utopia
100
Eis-nos no cume de uma dessas grandes cordilheiras
paralelas, tendo às nossas costas apenas a desolação de
escavadeiras, às quais se prende o barro vermelho do ninho
das formigas. As formigas são os habitantes nativos do
Planalto Central Brasileiro; formigas e uma ou outra ema,
caminhando desdenhosamente, a passos largos, entre os
arbustos.
A nosso lado uma capela branca e pontiaguda. Esta capela,
explica o jovem engenheiro saído da Universidade de Miami,
foi a primeira construção no local de Brasília. É em memória
a um bispo, missionário italiano, canonizado recentemente,
que, cem anos atrás, profetizou a grande civilização que se
estabeleceria nestas altas paragens do interior. No Brasil é
conhecido por Dom Bosco.
Sua estátua contempla um vale cheio de sombras, que se
estende na mesma direção das faixas de poeira, suspensas
no ar da tarde, sobre as montanhas do lado oposto. Ali,
já surgem milhas de construções. Se prestarmos atenção,
ouviremos o ranger das engrenagens, rolos compressores,
plainos: toda espécie de removedor de terra nivelando a área
da nova capital do Brasil.
O sol se põe, purpúreo, além das serras distantes. (1959, s∕p).
101
carvão. Um torso nervoso e escuro aparece sob seus míseros
farrapos. Olha para nossos rostos e volta-se para a efígie de
Dom Bosco, esmaecida na pouca luz da capela. Adivinhara
o assunto da nossa conversa. Pedimos, então, ao engenheiro
para indagar por que ele está ali.
Seus dentes brilham num sorriso branco e bonito. Responde
com alegria e orgulho na voz. É um cortador de madeira
de Mato Grosso. Está cortando árvores para carvão, no vale
que será inundado, quando terminem a represa: as árvores
pequenas para carvão, as grandes para construções. Mora
ali, diz ele.
Gostaríamos de visitá-lo. Sorrindo com modesto orgulho
como se estivesse assinalando uma mansão, aponta, lá em
baixo no vale, a cabana pequenina que é a sua morada.
Mas não é este o lugar planejado para o fundo do lago?
Pergunta o engenheiro.
O homem sorri e assente com a cabeça. É verdade, ele mora
no fundo do lago. A ideia parece deliciá-lo.
A noite aproxima-se rápida. As estrelas cintilam no céu. Os
vales se afogam no escuro.
O engenheiro mostra com a mão os sulcos deixados pelo
trator nos flancos das colinas, indicando o futuro nível do
lago. Como o cortador de madeira, ele sorri. Comprou para
si mesmo um lote na zona residencial, diz ele, do outro lado
do lago, de quem vem da cidade. Seu sorriso é também
orgulhoso e cheio de esperança. Poderá ir para seu escritório
de lancha a motor. (1959, s∕p).
Ao reproduzir uma cena vivida por ele mesmo em visita à cidade ainda em
construção, o escritor norte-americano nos leva a intuir não só a destruição da
natureza como também um dos graves aspectos sociais gerados pela construção da
nova capital. De todos os textos do livro, sem dúvida o de Dos Passos é o único que
se refere, ainda que sutilmente, à ameaça que paira sobre a paisagem natural e que
observa a contradição social implicada na construção de Brasília. As imagens que
o seguem vão desde um ponto de vista que fixa o detalhe (os galhos das árvores),
como que buscando a singularidade de determinado elemento natural, até ampliar a
perspectiva sobre a floresta prestes a desaparecer. Em seguida, vemos a fotografia do
trator e dos homens que cortam as árvores, removem a terra e aplainam o terreno,
passando depois para a de um detalhe da máquina e, por último nesta série, a imagem
do prédio do futuro Congresso Nacional cercado por andaimes. Parece, portanto,
não haver dúvidas quanto à empatia do escritor e dos dois artistas com respeito aos
elementos naturais e ao cortador de madeira.
102
O encadeamento de imagens e textos construído no livro de Magalhães e
Feldman sugere o que Amir Brito Cadôr identifica como montagem sintática, ou seja,
aquela que ordena os elementos por justaposição ou parataxe. Percebe-se, portanto,
que o sentido, ou sentidos, da obra vai se formando por contiguidade e que há uma
sucessão temporal, dada principalmente pelas metamorfoses que se observam nas
imagens, que passam dos galhos e florestas aos andaimes, construções e, por fim, à
imagem sugerida do Congresso Nacional. Por sua vez, os textos que abrem o livro – o
de JK e o prefácio de Dos Passos – são os únicos que mencionam os elementos naturais
e sua transformação, enquanto o último, de Oscar Niemeyer, explica os propósitos
perseguidos pelo arquiteto ao elaborar o conjunto arquitetônico de Brasília: a busca
da correspondência entre os elementos plásticos e a função de cada edifício, assim
como a criação de formas puras, simples e equilibradas. Cada elemento do livro, de
forma metonímica, remete à ideia de transformação, edificação e concretização de uma
cidade imaginada. A figura humana é mencionada apenas no texto de John Dos Passos
enquanto que, nas imagens, surge como parte do cenário da capital em construção. A
única exceção é o retrato em primeiro plano de um trabalhador, cujo rosto é indefinido.
Percebe-se novamente aqui a intenção metonímica do obra: a silhueta que representaria
o conjunto dos trabalhadores que construíam a nova cidade.
Ao analisar Kriegsfibel,1 de Brecht, Georges Didi-Huberman observa que essa
obra nunca toma partido. O pensador demonstra como o fato de se apresentar as
coisas numa determinada ordem, ou desordem, torna possível a expressão de uma
posição sem necessidade alguma de se fazer apologias unívocas ou apresentar um
determinado quadro ideológico. Em Kriegsfibel, a Segunda Guerra Mundial surge em
imagens de Hitler, Churchill, Pétain e do povo em situações de emergência: “Veem-
se imagens da política e não ícones políticos. Leem-se poemas à moda antiga em
contraponto às legendas factuais acompanhando os documentos fotográficos, mas
não se lê discurso sobre a história” (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 110). Diria que, de
forma semelhante, a montagem interna do discurso de John dos Passos, aliada à da
que se constrói entre seu texto e as imagens dos dois artistas, é uma tomada de posição,
sem ter de tomar partido. Surge daí uma dúvida – a nova cidade reproduziria a velha
ordem vigente? – muito mais incômoda e provocativa que um discurso sociológico.
É possível, no entanto, que as primeiras recepções de Doorway to Brasilia
tenham se fixado apenas no heroico desbravamento do Planalto Central, imbuídas
pelo tom messiânico das palavras de Juscelino e das intenções legítimas de Lúcio
Costa (1959, s∕p): “Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao
mesmo tempo viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz
1
Durante seu exílio na Dinamarca, entre 1933 e 1939, Brecht coletou fotos de jornais e escreveu
poemas curtos para essas imagens. Segundo Didi-Huberman, o Kriegsfibel, publicado em
1955, é um “resumo poético de uma guerra “exposta” por um homem no exílio”. (2017, p. 44).
103
de tornar-se com o tempo, além de centro do governo e da administração, num foco
de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país”. Brasília, como se sabe, fazia parte
do Plano de Metas de JK, que tinha como objetivo permitir o ingresso do país na
modernidade. Como observam Lilia Schwarz e Heloísa Starling, em Brasil: uma
biografia,
a chave para construir esse novo país chamava-se
“desenvolvimentismo” e defendia a ideia de que nossa
sociedade, defasada e dependente dos países mais
avançados, repartia-se em duas: uma parte do Brasil ainda
era atrasada e tradicional; a outra já seria moderna, e estava
em franco desenvolvimento. Ambas, o centro e a periferia,
conviveriam no mesmo país, e essa era uma dualidade que se
deveria resolver pela industrialização e pela urbanização. A
confiança que Juscelino depositou nesse projeto de Brasil foi
contagiosa, e não é muito difícil entender por quê. O projeto
de JK sustentava-se na crença de que a construção de uma
nova sociedade dependia da vontade do Estado e do desejo
coletivo de um povo que, enfim, teria encontrado seu lugar e
destino. (2015, p. 417).
104
refletir sobre a história do urbanismo ocidental, Mário Pedrosa afirmava, em artigo
publicado em 16 de setembro de 1959, no Jornal do Brasil, que a cidade moderna não
se adequava à centralização militar do poder, como no período barroco, nem ao gosto
pequeno-burguês do subúrbio, nem ao desenvolvimento aleatório do liberalismo.
(PEDROSA, 2004, p. 410). “Ela quer – afirmava o crítico – uma estrutura humana
através da qual possam expandir-se e restaurar a coesão social perdida. Sonha por
isso em conciliar a ordem, a técnica urbanística mais avançada, um desenvolvimento
planejado, com o calor humano e o convívio social direto de seus habitantes, como na
época da comuna”. (Idem). Apesar do entusiasmo com relação à nova capital brasileira
e de vê-la como uma obra de arte, Pedrosa não deixa de duvidar de suas possibilidades
de êxito: “Brasília, última e maior das cidades modernas em construção, tenta ser a
realização desse ideal moderno. Conseguirá? Depende isso de muitos fatores, mas
também, certamente, da atual geração brasileira”. (Idem). Quase seis décadas depois
de sua construção, não há dúvidas de que o ideal da comuna a que se referia Pedrosa
não foi nem minimamente alcançado. Voltar aos primeiros registros em torno de
Brasília implica, portanto, na descoberta de todo o imaginário de esperança que a
rodeou, dos discursos que buscavam justificá-la, assim como nos impele a pensar
sobre sua trajetória até os nossos dias.
Utilizando uma técnica distinta a de Doorway to Brasilia, o fotolivro Brasília
vive!, publicado em 1960, junto com o próprio nascimento da novíssima capital do
Brasil, traz fotografias de Peter Scheier,2 um texto de John Konx, além de algumas
legendas. Como observa Horacio Fernández, em Fotolivros latino-americanos, trata-
se de um ensaio de utopia destinado a convencer os céticos por meio de imagens
significativas e poucas palavras. (2011, p. 83). A maior parte das fotografias se detém
nos aspectos arquitetônicos, buscando ressaltar a monumentalidade das obras de
Oscar Niemeyer a o traçado urbano de Lucio Costa. A primeira delas, no entanto,
nos mostra uma estrada que atravessa uma região árida, tendo ao fundo apenas um
carro, em que se percebe a ideia de desbravamento que acompanhou a aventura
da construção da cidade em meio ao planalto central do país. Em seguida, tem-se
uma fotografia de um trompetista de banda militar, anunciando uma significativa
cronologia que, na página ao lado, busca enfatizar a predestinação da construção
da capital no local escolhido e o esforço em levar a cabo essa tarefa: desde 1789, os
inconfidentes teriam tido uma antevisão, ao inscrever em seu programa a localização
da capital do Brasil no interior; as constituições de 1891, 1934 e 1946 ordenavam
a mudança para o centro do país; em 1955, o candidato à presidência, Juscelino
Kubitschek, assume o compromisso de erguer no planalto a nova capital; em 1956,
2
Fotógrafo alemão, de origem judaica, que se mudou para o Brasil em 1937, fugindo da
ascensão do nazismo em seu país. Naturalizou-se brasileiro em 1951. Peter Scheier voltou para
a Alemanha em 1975, mas o seu acervo permanece no Brasil, a cargo do Instituto Moreira Sales.
105
já eleito, JK remete ao congresso a promessa feita anteriormente; em 2 de outubro do
mesmo ano, Juscelino visita o local escolhido e, finalmente, em 21 de abril de 1960,
o presidente da República entrega ao país a nova capital. (1960, p. 5) Nessa última
parte, destacam-se as palavras “destemor”, “sacrifício” e “determinação”.
Com relação às imagens com pessoas, vemos mais adiante, nas páginas 14
e 15, um curioso contraponto: de um lado, os dragões da independência levando
bandeiras de diversos países; de outro, uma grande fila de candangos. A contiguidade
das duas imagens enaltece a bravura dos defensores da nova cidade e a de seus
construtores. Ao olhar a imagem dos trabalhadores, talvez Barthes indicasse como
punctum3 a ponta de cigarro na mão do primeiro operário e a mão na cintura do
terceiro. Difícil não relacionar esses dois detalhes com a expressão de enfado ou
impaciência que se percebe em seus rostos. Numa publicação de tom laudatório,
dificilmente encontraríamos qualquer menção às difíceis condições de trabalho a
que foram submetidos os operários que construíram Brasília. Ao contrário, outras
duas imagens de candangos estão cuidadosamente construídas com a intenção de
dar uma forma democrática e igualitária às imagem do mandatário e do trabalhador.
Na primeira delas, só é possível analisar sua carga simbólica, se a consideramos
junto à fotografia da página contigua: do lado esquerdo, a foto da cabeça de um
candango com chapéu de palha tomada de cima para baixo, tendo ao fundo o palácio
da Alvorada; do lado direito, o chapéu coco do presidente em primeiro plano e, ao
fundo, Juscelino visto de baixo para cima. A carga ideológica das duas imagens pode
ser percebida tanto no ponto de vista a partir do qual as fotografias são feitas − o
rebaixamento de um e o engrandecimento do outro −, quanto no apagamento do
rosto do operário, de sua individualidade, sendo ele representado apenas por seu
chapéu. A outra fotografia de trabalhadores nos mostra dois candangos em repouso,
como se estivessem admirando sua própria obra. Imagem estudada, porém, o cenho
levemente franzido do mais jovem dá uma dimensão de profundidade que talvez a
encenação não tenha previsto.
Brasília vive! também não deixa de buscar representações da nascente vida
cotidiana da nova cidade. Sem qualquer menção a hábitos e costumes, uma vez que se
tratava de um território sem tradição a que fazer referência, a vida das pessoas comuns é
mostrada em ambientes externos, como feira de roupas, supermercados, restaurantes,
praças. Algumas dessas cenas são mais singulares, talvez pela espontaneidade e
pela carga afetiva que denotam: a moça pobre e sorridente sendo fotografada por
3
Para Roland Barthes, o punctum é o detalhe que desconserta, que punge, fere. Tudo aquilo
que, na imagem, não está codificado. Em “A imagem pensativa”, último ensaio de O espectador
emancipado, Jacques Rancière contesta a teoria de Barthes, argumentando que a ideia de punctum
pretende afirmar a singularidade da imagem, mas acaba por deixar de lado essa especificidade
quando identifica o efeito da imagem fotográfica com a forma como a morte nos atinge.
106
um fotógrafo ambulante; três mulheres que leem atentamente o jornal ou o pai que
leva os filhos em meio ao canteiro de obras que ainda era a cidade naquele momento.
Essas imagens, especialmente, constroem a ideia de que a utopia é possível, já que a
cidade monumental dá lugar à vida cotidiana das pessoas comuns, mas em meio a
uma paisagem do devir, de uma promessa sempre por realizar. As fotografias de Peter
Scheier, hoje, possuem uma densidade que certamente não tinham quando o livro foi
publicado. Se, a princípio, Brasília vive! é uma obra de propaganda, ideologicamente
marcada pela ideia do progresso, mas também pelo sonho de uma arquitetura que
promoveria uma vida urbana mais igualitária e democrática, atualmente a vemos
como um registro da promessa que não se realizou. Cercada por cidades satélites
que testemunham a enorme desigualdade social que se formou ao longo dos anos,
Brasília também condensa uma história política de profundas ameaças à democracia.
É nesse contexto que as fotos de Scheier acabam por exacerbar o fracasso da cidade
planejada, sonhada a modo de Amaurota.
O estreito intervalo entre a publicação de um livro e outro se torna bastante
significativo, uma vez que no primeiro os elementos naturais ainda ocupam um lugar
na paisagem, enquanto no segundo o que predomina são os elementos urbanos e
as expressões do cotidiano em formação. Pode-se afirmar que, em 1960, a cidade já
possuía o que Kevin Lynch denominava de imaginabilidade, ou seja, a capacidade de
evocar uma imagem forte em qualquer observador. As fotografias de Peter Scheier
coincidem com as imagens mentais que temos de Brasília e as reforçam, já que a
própria configuração da cidade e de seus monumentos criam o que o urbanista
norte-americano também chama de visibilidade. De forma dialética, o fotolivro se
vale dessa característica do espaço que representa e, ao mesmo tempo, a reforça.
“Uma cidade altamente “imaginável”, nesse sentido específico (evidente, legível ou
visível), pareceria bem formada, distinta, digna de nota; convidaria o olho e o ouvido
a uma atenção e participação maiores” (LYNCH, 2010, p. 11). É possível afirmar
que as representações de uma cidade assim aumentariam e aprofundariam essas
percepções sensoriais. Temos imagens mentais bem nítidas de Brasília, ao contrário
do que acontece com as cidades satélites que a rodeiam, relegadas ao inimaginável e
ao invisível tão recorrentes na maior parte das cidades brasileiras.
Considerações finais
107
possibilidade de apreendê-los, de traduzir os impulsos ópticos em imagens. Nesse
sentido, o texto literário – dentre os casos analisados aqui, o de John Dos Passos
é exemplar – seria capaz de relevar e potencializar a imagem mental que forma a
visualidade de uma realidade representada. Pode-se observar, portanto, visualidades
distintas nas duas obras analisadas, embora ambas convirjam para o mesmo objeto.
Enquanto em Doorway to Brasilia, a paisagem natural ainda ocupa um espaço
significativo, ressaltando o processo de construção que irá modificá-la; em Brasília
vive!, percebe-se a ausência dos elementos naturais, por um lado, e, por outro, a
presença do tom laudatório em torno da conquista realizada. No primeiro livro, o
texto de Dos Passos, apesar de nos remeter a uma paisagem utópica, abre uma brecha
para a dúvida em torno do projeto grandioso da edificação da nova capital, ao relatar
a fala do cortador de madeira do Mato Grosso e, em seguida, a do engenheiro. A
montagem combina a ambiguidade do texto literário às imagens turvas produzidas
por Aloísio Magalhães e Eugene Feldman, criando uma visualidade que nos remete
aos sonhos e às dúvidas de uma geração.
Em O espectador emancipado, Jacques Rancière destaca a ideia da “imagem
pensativa”, que seria aquela que se encontra em uma “zona de indeterminação” entre
arte e não arte e que marcaria uma distância tanto da noção de imagem enquanto
representação de alguma coisa quanto da imagem concebida como operação da
arte. O filósofo identifica essa imagem com a fotografia, com a tensão entre os vários
modos de representação. Para definir o que entende por pensatividade da imagem,
Rancière retorna à literatura para indicar um novo estatuto da figura, que conjugaria
dois regimes de expressão: o aurático e o interpretativo. Adiante, ao analisar a obra
do fotógrafo norte-americano Walker Evans, o filósofo se detém na contaminação
da literatura e da fotografia: “o excesso literário, o excesso daquilo que as palavras
projetam sobre aquilo que designam vem habitar a fotografia de Walker Evans, assim
como o mutismo pictórico habitava a narração literária de Flaubert” (2012, p. 118).
São justamente a contaminação, a combinação e o entrecruzamento dos regimes
de expressão – termo também utilizado por Rancière – que definem aquilo que
identificamos nas obras aqui analisadas, especialmente Doorway to Brasilia. A análise
das infiltrações de fotografias em textos literários torna-se, portanto, um exercício
necessário de decifração das imagens enquanto símbolos abstratos e não apenas
como testemunhos incontestáveis de um referente externo.
Além desse aspecto da contaminação entre texto literário e fotografia, o
estudo das relações entre escritura e imagem nos fotolivros publicados na década
de 1960 revela estratégias de apresentação do cotidiano urbano a partir dessas
intercessões, assim como nos permite observar a potencialização ou transgressão do
discurso mimético, que podem ser produzidos, especialmente, através dos processos
de montagem. Nesse sentido, o estudo das representações da nascente capital ou
108
das práticas de simbolização da vida cotidiana – sendo, ela própria, heterogênea e
hierárquica, segundo Agnes Heller – (2016, p. 36), nos leva necessariamente a inferir
o quanto tais simbolizações estão perpassadas por aspectos históricos e ideológicos.
Então, que cidade é essa na qual se entra através desses textos e imagens pensativas?
Para perceber seus “simulacros de reflexos”, como dizia Julio Cortázar em Buenos
Aires, Buenos Aires, certamente é preciso considerar o quanto nosso olhar, totalmente
imerso na contemporânea cultura da imagem, foi também modificado.
Referências
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Fronteira, 1984.
CADÔR, A. B. O livro de artista e a enciclopédia visual. Belo Horizonte: Editora
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Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2017.
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Sudamericana, 1968.
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HELLER, A. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 2016.
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Martins Fontes, 2012.
SCHEIER, P. Brasília vive! Rio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora, 1960.
109
SCHØLLHAMMER, K. E. Além do visível: o olhar da literatura. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2016.
SCHWARCZ, L.; STARLING, H. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015.
110
Coleções fotográficas, museus imaginários: reflexões para a
relação fotografia-memória na pesquisa histórica
percepção de leitores mais jovens, que herdaram no cotidiano a migração quase que total da
cultura fotográfica à cultura digital. A permanência de um mesmo termo para paradigmas
diferentes, a fotografia, por vezes não provoca este estranhamento.
3
Para Sandra Pesavento (2008, p. 43), o debate epistemológico em torno do conceito de
imaginário acompanhou a própria emergência dos estudos da História Cultural. Segundo
a autora, com base em Backzo, “o imaginário é histórico e datado, ou seja, em cada época
os homens constroem representações para conferir sentido ao real. Essa construção de
sentido é ampla, uma vez que se expressa por palavras/discursos/sons, por imagens, coisas,
materialidades e por práticas, ritos, performances”.
4
O livro Histoire de l’histoire de l’art, do historiador da arte Germain Bazin, continua sendo
uma excelente referência para se saber mais a respeito.
112
preterida para atender a essa demanda. Com o surgimento da fotografia, no entanto,
a partir da segunda metade do século XIX, mudanças importantes aconteceram neste
processo. O desenvolvimento da criação fotográfica passou a se tornar praticamente
inseparável de uma crescente cultura de produção de imagens, no qual a fotografia, em
suas variadas formas de manifestação, seria apenas uma delas.
Se a fotografia passa a ser um produto da cultura, especialmente com a sua
difusão entre o fim do século XIX e início do século XX, seus usos e funções se
caracterizam como um vetor de influência para a modificação de uma cultura que foi
gradativamente reapropriada e ressignificada. A relação entre cultura e fotografia pode
se estabelecer desde a mera efemeridade do pós-fotográfico contemporâneo, altamente
difundido pelas inúmeras e eficientes redes sociais, até à sobrevivência que se atesta ao
longo de anos, ao longo de décadas. A sobrevivência de uma imagem fotográfica, neste
caso, depende não somente da sua preservação física, que a atesta como um documento,
mas também de um olhar ativo que nela identifica pessoas, lugares e objetos que já não
existem mais. Não à toa Roland Barthes (1984) lembrou que contemplar a fotografia
era, de certo modo, contemplar a morte, mirar para algo que já não está lá e que, por
algum motivo, dentre esses o próprio enunciado característico do tempo, já se foi.
Enquanto documento, a fotografia exerce determinadas funções na sociedade
que dela faz uso. É o que André Rouillé - sim, o mesmo que incitou Lemagny à produção
de Collection et musée imaginaire - determina como valor utilitário das imagens
considerando aquelas que acompanharam o desenvolvimento da expansão industrial no
ocidente. Numa operação não necessariamente imaginária, mas de certo modo operada
por ela, já que não se desvincula das práticas sociais, os documentos nos auxiliam,
segundo as concepções de Rouillé, a arquivar, ordenar, modernizar os saberes, ilustrar
e, por fim, mas não somente, informar através dos códigos implícitos em seu conteúdo.
Isso se considerarmos que uma dada legitimidade cultural e artística da fotografia foi algo
convencionado de forma relativamente recente, dado o próprio tempo de existência da
fotografia, dadas as apropriações feitas pelos segmentos sociais que passaram a considerá-
la algo muito mais importante do que seu mero caráter utilitário.
Historiador e teórico da fotografia, professor na Université Paris 8 Vincennes-
Saint-Denis, André Rouillé contribuiu com duas importantes obras para o estudo da
história da fotografia, L’Empire de la photographie : photographie et pouvoir bourgeois
1839-1870 e Photographie en France 1816-1871, textes et controverses : une anthologie,
publicadas respectivamente pelas editoras parisienses Le Sycomore (1982) e Macula
(1989). Mais tarde foi responsável pela publicação das correspondências de Félix
Nadar,5 reunidas no livro Nadar: correspondance 1820-1851, pela sul-francesa
5
Félix Nadar (1820-1910) foi um destacado fotógrafo, caricaturista e jornalista francês,
um dos principais nomes da chamada era de ouro da fotografia francesa, tendo feito o
113
Jacqueline Chambon (1999). A reflexão que se remete a refletir sobre as funções
da fotografia enquanto documento fazem parte do livro La Photographie, entre
document et art contemporain, publicado originalmente pela Gallimard (2005).
A versão traduzida para a língua portuguesa chegou ao Brasil através da Editora
SENAC, apenas quatro anos depois de seu lançamento na França.
No que diz respeito à função de arquivar, a fotografia foi responsável por
servir de ferramenta social para a realização de um verdadeiro inventário das coisas,
estivesses os registros reunidos sob a forma de álbuns fotográficos ou mesmo como
integrantes de partes de extensos arquivos documentais. Deriva-se daí uma espécie de
processo de tesaurização, capaz de apreender a imagem de inúmeros lugares, objetos
e pessoas que de registros de um dado tempo presente viriam a se constituir suportes
para o desenvolvimento da memória a respeito de um dado passado. Com o auxílio
de álbuns fotográficos foi possível reunir uma quantidade significativa de imagens
por temáticas afins, caracterizando-se como “a primeira grande máquina moderna a
documentar o mundo e a amealhar suas imagens” (ROUILLÉ, 2009, p. 98).
Da fotografia de álbuns aos cartão-postais, observou-se ainda no século XIX
uma verdadeira transformação da cultura visual com o advento deste tipo específico de
imagem. Segundo Boris Kossoy (2009, p. 64), em menção a um levantamento realizado
por Ados Kyros, no livro L’Age d’or de la carte postale, publicado pela parisiense Andre
Balland (1966), no final do século XIX a Alemanha “produziu 88 milhões de unidades,
seguida pela Inglaterra com 14 milhões, Bélgica: 12 milhões e França: 8 milhões” de
cartões postais. Na França de 1910 este número já chegaria próximo da casa dos 123
milhões de unidades, convencionando aquilo que alguns estudiosos convencionaram
como a efetiva alavanca para a afirmação de uma civilização pautada pelas imagens. E
eis aqui o importante papel da fotografia neste processo, naquele período, conforme
indicado anteriormente por Jean-Claude Lemagny.
No que diz respeito aos arquivos, André Rouillé lembra que já em 1856,
a coleção do Musée du Louvre, realizada por Edouard Baldus,6 contava com
aproximadamente 1.200 clichês, sendo responsável pela realização de uma espécie
114
de sumário fotográfico reduzido, exaustivo e fracionado. Segundo Rouillé (2009,
p. 99), “todos esses procedimentos de inventário, de arquivamento e, finalmente, de
submissão simbólica obedecem a uma verdadeira compulsão de exaustividade, a uma
veleidade de registro total do real”. Registros que posteriormente se empenharam em
realizar registros familiares, étnicos, de fauna e flora e diversas regiões do mundo,
algumas, até então, desconhecidas visualmente de um público mais significativo.
Percebe-se, desta forma, uma grande expansão de uma denominada área do visível,
que causaria grandes repercussões em outras esferas da vida social, seja, por exemplo,
no âmbito das reações de mercado, seja pelas estratégias e intenções militares.
Sobre o visível, Ulpiano Bezerra de Meneses (2005, p. 36) o inscreve nas
representações de domínio do poder e do controle, do ver e do ser visto, tendo
como seu oposto, logicamente, a invisibilidade. Daí a contribuição importante para
historiadores por parte de sociólogos e antropólogos que introduziram, sob outros
aspectos, a problemática da visibilidade/invisibilidade como componentes da vida
social: “a etiqueta como sistema visual (Norbert Elias); as relações em público e a
teatralidade das práticas sociais (Erwin Goffmann, Victor Turner); as marcas visíveis
de identidade, status e crenças (Richard Sennet)”, além da “observabilidade da
interação social (Georg Simmel); o Panopticum, o controle dos loucos, criminosos,
pobres, do corpo feminino, da identidade, a dominação patriarcal (Foucault), as
expressões visuais da proxemística (Edward Hall)”, entre outros. Pelo seu contrário, a
invisibilidade, temos uma espécie de desaparecimento das coisas, que foge à memória
de gerações futuras, mas que nunca deixou de estar lá.
Se dar a ver pode, de certa forma, estar relacionado à existência das coisas,
o que se vê neste inventário do real é uma espécie de transformação-imagem do
mundo. E no processo de ordenação das fotografias, confunde-se o próprio processo
de ordenação da sociedade. Segundo André Rouillé (2009, p. 101), a reunião de
fotografias em um álbum, por exemplo, “não agrupa, não acumula, não conserva
nem arquiva sem classificar e redistribuir as imagens, sem produzir sentido, sem
construir coerências, sem propor uma visão, sem ordenar simbolicamente o real”. Se
por um lado a fotografia fragmenta, o álbum e o arquivo recompõem determinados
conjuntos, ordenando-os. É o caso das mais de 87 mil tiragens em preto e branco (130
mil negativos e 1.600 dispositivos Kodachrome) que compõem o arquivo fotográfico
da Farm Security Administration (FSA),7 entre o fim da década de 1930 e início
7
A Farm Security Administration (FSA) foi um órgão criado nos Estados Unidos durante o
governo do democrata Franklin D. Roosevelt caracterizado como uma das políticas adotadas
para o levantamento da situação social e econômica, com a finalidade de promoção de iniciativas
de recuperação decorrentes da Grande Depressão enfrentada pelo país especialmente a partir
de 1929. New Deal foi o termo empregado para o conjunto destas medidas de recuperação
econômica e, teoricamente, social.
115
da década de 1940, sob guarda e conservação da Library of Congress, em Washington,
Estados Unidos. Trata-se simultaneamente tanto de uma obra quanto de uma coleção
fotográfica.
Figura 1 - Tengle children, Hale County, Alabama. Fotógrafo: Walker Evans (1903-1975).
116
o seu brinquedo, de higienizar ou coçar o nariz em contraste a nobres convenções
sociais.
Retomando Lemagny (2016, p. 155), não podemos pensar o museu
imaginário como uma alternativa de negação da história. Pelo contrário, um olhar
aguçado sobre estas imagens permite explicar e compreender uma possível realidade
das obras, em sua materialidade objetiva, agregando a história, em sua perspectiva
não visual, uma dimensão mais ampla e suplementar, refletindo sobre uma história
das formas, das coisas, das pessoas como tais em sua representação fotográfica.
Assim, como segue indicando André Rouillé, a fotografia – em sua materialidade
ou abstração imaginária – é responsável pela modernização de diferentes saberes,
sendo ao mesmo tempo instrumento de criação da cultura e de intervenção social
que pode modificar em maior ou menor grau essa mesma cultura. Influencia o
conhecimento sobre as ciências, sobre a natureza e sobre os corpos, de acordo com
seus usos e funções sociais, seja no seu tempo presente, seja em diferentes tempos
posteriores, caracterizados como dispositivos específicos de dadas memórias. Assim,
de uma perspectiva ainda mais usual, a fotografia também ilustra, considerando
que “o universo da ilustração mobiliza apenas as capacidades médias da fotografia,
seja nos planos da técnica e dos assuntos representados, seja nos planos das formas”
(ROUILLÉ, 2009, p. 124).
Logicamente, considerando as condições de um paradoxo fotográfico,
conforme apontou Roland Barthes (1990, p. 14), de que a fotografia “não é apenas
percebida e recebida, é lida, vinculada, mais ou menos conscientemente, pelo
público que a consome, a uma reserva tradicional de signos”, e que esta dubiedade
“consistira, então, na coexistência de duas mensagens: uma sem código (seria o
análogo fotográfico) e a outra codificada (o que seria a ‘arte’ ou o tratamento, ou
a ‘escritura’ ou a retórica da fotografia)”. Seu alcance pode ser potencializado
dependendo do meio de difusão, e, consequentemente, seus efeitos de intervenção na
cultura, e nas experiências sociais, podem ser ainda mais significativos. Neste sentido
que a fotografia informa, o que para Rouillé (2009, p 126) “terá sido, sem dúvida, a
função mais importante atribuída à fotografia documento”. Num primeiro momento
o importante papel de difusão das imagens pela imprensa, e em especial pelas
revistas ilustradas, e que passa na contemporaneidade a uma experiência líquida,
compartilhada pelas transformações informáticas, pela metamorfose em pixels das
imagens, e pela difusão em internet através de web jornais e redes sociais, entre
outras possibilidades. Mesmo que presentes em acervos físicos, as coleções vão se
tornando online (vide o próprio exemplo do qual trago a respeito de Walker Evans).
Se para André Rouillé a função de informar é de significativa importância,
conectá-la, com a permissão do verbo, com alguns aspectos da memória é
117
fundamental para tentarmos compreender algumas das extensões propostas na
reflexão sobre imagens imaginárias de Jean-Claude Lemagny partindo das reflexões
de André Malraux. Para o historiador francês Jacques Le Goff8 (2003, p. 419), por
exemplo, “a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-
nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem
pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como
passadas”. Na busca pelas informações criam-se estes museus imaginários, que não
são exatamente memórias, mas fomentam estas como espécies de dispositivos, de
elementos referenciais ou não que se constituem na forma de se conceber o mundo e
na forma de que os diferentes segmentos sociais concebem a si próprios.
Do universo das imagens físicas para as imagens mentais, numa relação
dissertativa sobre a memória, Le Goff (2003, p. 465) retoma Henri Bergson, e seu
Matière et mémoire, obra em que podemos perceber como se “considera central a
noção de ‘imagem’, na encruzilhada da memória e da percepção”. Para Lemagny (2016,
p. 156), por sua vez, o problema da entrada da fotografia em nossa cultura espiritual é
o mesmo de sua entrada no museu imaginário proposto por Malraux. A abundância
e a diversidade das imagens fotográficas, assim como a multiplicidade dos centros de
interesse, constituem-se numa experiência única sobre a autonomia e a coerência da
sua produção criativa. Dentre coleções fotográficas e museus imaginários, evocamos
ainda a definição que Jacques Le Goff (2003, p. 467) busca em Pierre Nora sobre
memória coletiva, caracterizando-a como “o que fica do passado no vivido dos
grupos, ou o que os grupos fazem do passado”. A memória, segue argumentando Le
Goff (2003, p. 469), “é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade,
individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos
e das sociedades de hoje”.
Ao que parece, a relação entre museus imaginários, potencializada pelas
constituições de coleções fotográficas, está muito mais próximo das discussões
sobre a memória, desde uma perspectiva histórica, do que poderíamos imaginar.
No entanto, Jean-Claude Lemagny destaca não somente a apropriação dos diferentes
segmentos sociais, em seus diversos interesses, para constituições possíveis de museus
imaginários, mas aponta também para a importância daqueles que produzem essas
imagens, que no caso das fotografias se caracterizam como imagens técnicas. Para
Lemagny (2016, p. 157), a história da fotografia não é outra coisa que a história dos
grandes fotógrafos, pois pensar a fotografia como parte do museu imaginário é pensá-
las através de suas obras, de seus produtores. Assim, podemos voltar os conceitos
8
Jacques Le Goff (1924-2014), renomado historiador francês, possui uma produção
significativa sobre o período da Idade Média. Alma mater da École des hautes études en
sciences sociales, sucedeu nesta instituição Fernand Braudel (1902-1985), e insere-se no que
se convencionar chamar da troisième génération da École des Annales.
118
fundamentais feitos por Roland Barthes (1984, p. 20) em La chambre claire, já que
tão importante quanto o Spectrum (simulacro) também será o Operator (fotógrafo
que produz), assim como o Spectator (sociedade que consome). Finalmente, para
Lemagny (2016, p. 156):
Sin embargo, todavía por el momento, si la fotografía está
viva en nuestra cultura, eso significa que los Gemelos de
Diane Arbus, el Tenedor de Kertész, determinada imagen de
los últimos años de Stieglitz o de Walker Evans, el retrato de
Daumier por Nadar, o las vistas del parque de Sceaux por
Atget están en nuestra consciencia colectiva como lo están
la Muchaca del turbante de Vermeer o la Mujer con cafetera
de Cézanne, o la Venus de Milo. A menos que uno se la tome
como idea misma de cultura, cosa que no está prohibida a
nadie, pero que me parece un simple punto de vista.
Referências
119
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120
Memória institucional e Memória organizacional:
Construção teórica e perspectivas metodológicas
Introdução
Memória Institucional
122
1991; DIMAGGIO E POWELL, 1991; TOLBERT E ZUCKER, 1998). Todas estas
abordagens organizacionais procuram compreender a organização e o seu ambiente
externo e interno, respeitando os enfoques específicos de cada corrente. Partem da
ideia de organização como um sistema aberto, que para ser competitiva ou mesmo
sobreviver, necessita ser interpenetrada e imersa do meio no qual estão inseridas, seja
através de um ambiente real ou de um ambiente percebido (CHILD E SMITH, 1987).
O ambiente real ou técnico é aquele mensurável e externo à organização,
constituído de condições objetivas, que podem criar condições para a transformação.
Outro tipo de ambiente é o percebido, ou seja, uma interpretação subjetiva do
ambiente real, envolvendo as percepções, imagens e insights das pessoas que compõem
a organização e por conseguinte suas memórias. No ambiente institucional estão as
regras, as normas, os procedimentos, os padrões de conduta institucionalizados e
legitimados (CHILD E SMITH, 1987; SCOTT E MEYER, 1991).
Dentro desta perspectiva apresentada por Scott e Meyer (1991), tanto
o ambiente técnico quanto o institucional, originam concepções diferentes de
organizações (figura 3). Ambientes técnicos enfatizam uma racionalidade na
articulação de meios e fins no atingimento dos seus objetivos; enquanto, ambientes
institucionais abarcam uma racionalidade que faz com que as ações passadas sejam
inteligíveis e aceitáveis pelos atores sociais. A relação do ambiente institucional com
a estrutura organizacional legitima-se e ganha recursos necessários se conseguirem
tornarem-se isomórficas nos ambientes, ou seja, uma tendência à homogeneidade
organizacional.
Figura 1 - Combinação dos ambientes técnicos e institucionais
123
estrutura que se tornou institucionalizada é a que é considerada, pelos membros
do grupo social, como eficaz e necessária; ela serve, pois, como uma importante
força causal de padrões estáveis de comportamento”. Andrade (2002) diz que
institucionalizar é produzir uma nova atribuição de sentido para a repetição do
procedimento organizado, onde “cria-se um campo de constrangimentos com um
regime sancionatório mais ou menos sistematizado” (p.50). Desta forma, analisar
uma organização sob o ponto de vista institucional é gerar “uma interpretação critica”
(BOEIRA; KNOLL; TONON, 2016, p. 259), socialmente construída e sancionada
pelos seus integrantes.
Para dar conta disto, são gerados significados compartilhados socialmente
pelos atores sociais, criando os chamados processos de institucionalização. A figura 2
demonstrar um sumário analítico criado por Tolbert e Zucker (1998), para explicar
este processo.
Figura 2 - Processos inerentes à institucionalização
124
acadêmica (MOLINA; VALENTIN, 2011; MATOS, 2004; COSTA, 1997; RIOS,
2008). No que tange a análise sobre este prisma, ainda existe confusão entre os
componentes que envolveriam a memória institucional e a memória organizacional,
mais especificamente os termos organizações e instituição. A organização responde
pelos processos, indicadores, fluxo da informação, repositório e utilização destas
informações para subsidiar a tomada de decisão. Por outro lado, a perspectiva
institucional, além de tratar da sedimentação destas informações e da tomada de
decisão, analisa as relações de força, poder, cultura, subjetividade que definem uma
organização. Costa (1997) destaca que a memória institucional poderia ser percebida
como um jogo, construído através da habitualização e sedimentação proposto por
Tolbert e Zucker (1998), onde a própria noção de memória busca compreender como
se institucionaliza as práticas sociais.
Para este artigo, a memória institucional serve de guardiã das lembranças
da organização, possuindo um caráter que não pode ser dissociado do lembrar e
esquecer, selecionando o que seria importante compartilhar com os seus membros,
mas também ajudando as organizações a compreenderem o seu papel na sociedade,
a construção da identidade organizacional, seus valores e credos e na geração da
ampliação de significados destes signos para a comunidade organizacional na qual
ela está inserida.
Memória Organizacional
125
como ativo principal de uma organização, deve ser motivo de preocupação, razão pela
qual deve existir um facilidade de armazenamento do conhecimento organizacional
consensual e integrado”.
Walsh e Ungson (1991) em um artigo inédito estabeleceram as fronteiras sobre
este tema. A existência de uma organização independe de particularidades individuais,
mas deve se reconhecer que a aquisição da informação ocorre durante os processos de
resolução de problemas e nas tomadas de decisão. As atividades cognitivas das pessoas
como um processo de aquisição de informação na organização refletem a construção
da memória. Assim, através de um processo de compartilhamento de informações,
o sistema de interpretação organizacional transcende o individual. Por essa razão,
o conhecimento do passado deve ser preservado pelas organizações mesmo com a
saída de membros-chave. Para os autores, os elementos que compõem o constructo o
conceito de MO são: a estrutura da facilidade de retenção; a informação nela contida; o
processo de aquisição e a recuperação da informação.
Para Walsh e Ungson (1991) este conceito implica em três imperativos para
consideração: a) aquisição da informação: conhecer os processos nos quais a informação
é adquirida, armazenada e recuperada; (b) retenção da informação: especificar
completamente a estrutura de retenção, ou seja, o local de MO; (c) recuperação da
informação: identificar os caminhos através dos quais o uso da memória influenciará
nos resultados e no desempenho da organização, para então recuperá-la. A figura
abaixo expressa esta relação.
Figura 3: Estrutura da memória organizacional
126
A Figura 3 mostra a estrutura proposta por estes autores: aquisição, retenção
e recuperação. Nela se observa que, a aquisição salienta que essa informação não
é armazenada em um único lugar, mas ela é dividida em diferentes instalações de
retenção. Cada vez que uma decisão é tomada e as consequências são avaliadas,
algumas informações são adicionadas à memória organizacional. Já na retenção,
salienta-se que experiências passadas podem ser armazenadas em qualquer dos
cinco diferentes repositórios, ou seja:
• nos indivíduos: são os membros de uma organização que retêm
conhecimento a partir de suas próprias experiências diretas, observações,
crenças e valores. Desta maneira os indivíduos armazenam sua MO
em sua própria capacidade de lembrar e articular experiências e suas
relações cognitivas que eles utilizam para facilitar o processamento das
informações (WALSH; UNGSON, 1991);
• na cultura: é a forma aprendida de perceber, pensar e sentir os problemas
da organização que são transmitidos aos seus membros (SCHEIN,
1984 apud WALSH; UNGSON, 1991). A cultura possui experiências
passadas que podem ser úteis em negócios futuros;
• nas transformações: são construídas sobre as experiências passadas,
ocorrem por toda a organização como práticas de trabalho, estão em
constante transformação e os sistemas administrativos são mecanismos
de captura e preservação do conhecimento (WALSH; UNGSON, 1991);
• nas estruturas: a estrutura organizacional influencia no comportamento
dos indivíduos e na relação com o ambiente. Desta forma, os papéis
exercidos pelos indivíduos tornam-se a ligação entre as memórias
individuais e a MO, tornando-se uma base de dados na qual o
conhecimento é armazenado (WALSH; UNGSON, 1991);
• no ambiente físico: refere-se ao local de trabalho. O ambiente contribui
para moldar e ratificar as prescrições de comportamento na organização.
Desta maneira as experiências interpessoais dos indivíduos são afetadas
pelo lay out físico da organização (OLDHAM; ROTCHFORD, 1983 apud
WALSH; UNGSON, 1991);
• nos arquivos externos: quando a memória dos indivíduos falha, ele
recorre a outros indivíduos. As organizações também podem recorrer
a outras organizações que a ajudem no processo de lembrar, tais como:
mídia, relatórios em geral e, também, a historiadores. Assim, é importante
salientar que a organização não é o único repositório de seu passado
(WALSH; UNGSON, 1991).
127
Destaca-se que os cinco primeiros dizem respeito ao contexto interno da
organização. O último, ao contexto externo. A recuperação da informação, a partir
das memórias, pode ser controlada ou automática. Esse último refere-se ao processo
intuitivo e essencialmente fácil de acessar a MO, geralmente como parte de uma
sequência de ação estabelecida. Controlado refere-se à tentativa deliberada de acesso
ao conhecimento armazenado e pode variar conforme a retenção considerada. Desta
maneira, os indivíduos podem recuperar as informações e, individualmente, ajudar
seus colegas a lembrar, utilizando analogias sobre decisões coletivas do passado
(WALSH; UNGSON, 1991).
Apesar do fator inédito da construção destes autores, a principal crítica
nos remete ao aspecto funcionalista deste modelo. Mesmo tendo recebido criticas
fragmentadas (CASEY, 1997; FELDMAN, FELDMAN, 2006; SCHATZKI, 2006),
WALSH E UNGSON fazem referências a Halbwachs , para apoiar a sua afirmação de
que a informação ‘ está alojada nesta coletividade supra-individual “, isto é , a cultura
organizacional (1991, p.65).
Assim, as organizações também podem ser vislumbradas como repositórios
de memória organizacional, através das suas narrativas, rituais, símbolos, códigos,
processos, formas de planejamento, bibliotecas corporativas e museus e espaços de
memória. Rowlinson et. al. (2010) ao referir-se sobre esta tipologia de memória,
a compreende como lugares da memória social, em que o passado pode ser
relembrado através de documentos, relatórios anuais, balanços sociais, comunicados
de imprensa, páginas virtuais, revistas, bem como, eventos corporativos com todos
os seus produtos e recordações advindas.
Considerações Finais
128
de esteio, estado do rio grande do sul, entre 2012 até 2014 e suas influências na
aprendizagem organizacional e em seus principais stakeholders; Bratkowski (2016)
analisando a memória institucional e gestão ambiental: ênfase nas ações ambientais
de um estudo da biblioteca da escola de engenharia da UFRGS no período de 2011
a 2015; Gröss (2016) estudando a memória institucional em dois empreendimentos
de economia solidária; Cotta (2017) com o trabalho história e memória institucional
da escola de administração da UFRGS: espaço social para a construção do habitus;
Dornelles (2017) a memória organizacional dos projetos e atividades culturais da
ufrgs entre 2009 e 2015; Gutierrez (2017) uma investigação sobre as relações entre
memória institucional e gestão documental no instituto de matemática e estatística
da universidade federal do rio grande do sul; Viana Filho (2017) objetivo é o de
estudar o Projeto Unimúsica desenvolvido pela UFRGS sob as perspectivas da
reprodutibilidade técnica, da memória organizacional e da memória dos músicos.
A incidência de dissertações sobre estas temáticas demonstram o crescimento
dos estudos nesta área. Constatam-se a diversidade e opções de estudo, na pesquisa
realizada nos últimos cinco anos (2013-2017) deste programa. As contribuições para
este artigo e a discussão das possibilidades de análise da memória institucional e
organizacional podem ser sumarizadas a seguir:
• Foram identificados oito dissertações com palavras-chave que incluíam
memória organizacional e institucional. Todas tinham por objetivo
discutir estes conceitos em ambientes organizacionais dos mais diversos,
contribuindo com a construção da memória e história empresarial;
• Dentro dos processos micro e macro organizacionais, a evidência da
memória estará sempre na construção de sentidos que a mesma oferece
para os envolvidos;
• O contexto social, histórico e cultural da organização estudadas
influenciam a forma como a memória pode ser percebida pelos atores
organizacionais, bem como, a sua legitimação institucional.
A título de avanço nos estudos sobre estes temas observa-se a precária
utilização da teoria institucional para a discussão destes recortes de memória.
Sua principal contribuição seria a de compreender o isomorfismo institucional,
o contexto ambiental, composto pelos ambientes técnico e institucional, pode ser
visualizado em termos de distintos níveis de análise: local, regional, nacional e
internacional. Estes ambientes pressionam as organizações para uma homogeneidade
de ações e esquemas interpretativos criando a atuação dos mecanismos isomórficos.
O isomorfismo coercitivo resulta de expectativas culturais da sociedade e de
pressões exercidas por uma organização sobre outra que se encontra em condição de
129
dependência. O isomorfismo mimético consiste na imitação de arranjos estruturais
e procedimentos bem sucedidos implementados por outras organizações, em face da
incerteza decorrente de problemas tecnológicos, objetivos conflitantes e exigências
ambientais. O isomorfismo normativo refere-se à profissionalização, que envolve o
compartilhamento de um conjunto de normas e métodos de trabalho pelos membros
de cada segmento ocupacional (DIMAGGIO, POWELL, 1983).
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132
Na esteira das memórias estudantis: diálogos entre a História
das Sensibilidades e História da Educação
134
das imagens, trazendo para o primeiro plano os mecanismos da recepção e da absorção,
agita a história das artes, explorando a percepção dos estilos [...]” (GRUZINSKI, 2007,
p. 8). Com o emprego desse conceito, tudo se pauta na questão da percepção e do
sujeito. Esta “aventura da individualidade” (PESAVENTO, 2007, p. 10) também possui
a especificidade de “capturar as razões e os sentimentos que qualificam a realidade, que
expressam os sentidos que os homens, em cada momento da história, foram capazes de
dar a si próprios e ao mundo” (PESAVENTO, 2007, p. 10).
Podemos dizer que o conceito de sensibilidade emerge na esteira dos
entendimentos acerca das representações, deslocando para a cena da História as
individualidades, que, a partir dessa guinada subjetiva, passam a interessar aos
historiadores. De acordo com Pesavento (2004), a História Cultural busca uma história
encarnada, “não mais uma história biográfica dos grandes vultos da história, mas,
muito mais, biografias de gente simples, da gente sem importância, dos subalternos”
(p. 56), considerando suas subjetividades. Entretanto, a autora alerta que “mesmo
as sensibilidades mais finas, as emoções e os sentimentos, devem ser expressos e
materializados em alguma forma de registro” (PESAVENTO, 2007, p. 17), que possa
ser localizado pelo pesquisador e, a partir dele, construir “versões plausíveis sobre
o passado, que operam em termos de verossimilhança com o acontecido, atingindo
efeitos de verdade, ou verdades aproximativas” (PESAVENTO, 2007, p. 17). Portanto,
o discurso do sensível é reconhecido no momento em que se encontram marcas de sua
historicidade. Importa lembrar que a sensibilidade, conjuntamente com as noções de
imaginário e representação, são conceitos valorosos à História Cultural, que contribuem
significativamente para o desenvolvimento da produção de conhecimentos históricos.
A História da Educação, em seus hibridismos, interroga a educação em
tempos pretéritos, a partir da mobilização das teorias e metodologias da História. A
proximidade da História Cultural permitiu que a historiografia da educação abordasse
uma diversidade de temas e produzisse novas interpretações. Assim, emergem outras
indagações, assentadas no alargamento de fontes que promovem problematizações,
talvez incomuns em outros tempos.
Pensando no conceito de sensibilidades e suas relações com a História da
Educação, importa refletir acerca dos possíveis significados da escola para todos nós,
sujeitos escolarizados. Seguramente, é uma instituição cultural consolidada, que,
a partir de determinadas condições, emergiu e afirmou-se, em uma Europa que se
urbanizou sob a égide do capitalismo comercial, da reforma protestante e do advento
da cultura impressa. Atrelada aos processos constitutivos do Estado moderno, a escola
legitimou-se como lugar social de se educar (BOTO, 2017). Assim, criou seus rituais de
organização, produziu civilidades por meio da difusão de saberes e valores, estabeleceu
rotinas, disciplinas e hábitos, permeados de racionalização.
135
Neste sentido, Escolano (2017) reflete acerca das subjetividades que permeiam
as memórias de escola, “querida ou odiada, mas sempre recordada, ela foi o cenário
chave de nossa experiência infantil, um lugar essencial no desenvolvimento de nossa
própria identidade” (p. 89). Suas palavras indicam caminhos para inscrevermos
a construção de sensibilidades na Historia da Educação, reconhecendo o valor
documental a elementos que, em outros tempos, sequer eram cogitados. Como diz
Pinski (2005), “documentos que ‘falavam’ com os historiadores positivistas talvez hoje
apenas murmurem, enquanto outros, que dormiam silenciosos querem se fazer ouvir”
(p. 50). Diante dessas constatações, observa-se que o campo dos sentimentos pode
comparecer em diferentes estudos, tendo como corpus empírico variados documentos,
que adquirem outros estatutos, abrem novos espaços para os historiadores repensarem
percursos em suas pesquisas.
Nessa perspectiva, são muitas as sensações que se atravessam nas memórias
escolares: o medo ao adentrar, pela primeira vez, o portão de uma escola, a ansiedade
diante do primeiro dia de aula, a sensação claustrofóbica que alguns prédios provocam, as
lembranças mais queridas dos espaços em que se escolarizou. As sensibilidades podem,
portanto, ser tratadas como representações do passado, atreladas ao conceito de memória
que chegam ao historiador através de discursos, produzidos em diferentes linguagens.
E cada discurso sobre o passado carrega uma série de indagações: Quem fala? Por que
fala? E de onde fala? De que lugar fala? Para quem fala? Essas são questões norteadoras
para se construir qualquer análise, independente da tipologia documental. São essas
perguntas que desnaturalizam o discurso, principalmente, pelo fato de sua produção ser,
“ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número
de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (Foucault, 1999, p
.9). Portanto, o discurso não é algo inato, há uma ordem que o precede.
O discurso do sensível é produto de um tempo, construção histórica, e assim
como todo fragmento da História, pode ser problematizado. Pesavento (2007, p. 19)
afirma que esses fragmentos “reforçariam a ideia de que o conhecimento do passado
é sempre indireto, tateio de aproximação com uma ausência e uma lacuna que se quer
preencher”. E isso reforça a proposição de Foucault (2017) sobre a necessidade de
uma análise histórica que marque a singularidade dos acontecimentos. Na esteira do
pensamento do autor, reforça-se a necessidade de investigar o passado “lá onde menos
se esperava e naquilo que é tido como não possuindo história – os sentimentos, o amor,
a consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar a curva lenta de uma
evolução” (FOUCAULT, 2017, p. 56).
Nesta tentativa de ampliar os estudos e objetos de análise da História da
Educação, principalmente em contato com a História Cultural, é que emergem os
estudos da chamada cultura escolar, que pode ser definida como, “um conjunto de
136
normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto
de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos “(JULIA, 2001, p. 10). Para Viñao Frago (2003, p.69), o conceito tem
sentindo amplo: “todo, y si, és cierto, la cultura escolar es toda la vida escolar”, refere-
se a todos os aspectos circundantes da instituição escolar, como elementos ativos no
processo de constituição da mesma.
Viñao Frago (2001) fala da importância do historiador se dedicar a fazer a
“arqueologia da escola”. Que narrativas do passado escolar são evidenciadas? O que esses
documentos são “capazes de fazer dizer”? (CORBIN, 2005). Que discursos atravessam
esse documento? Enfim, o valor dessas fontes para o pesquisador será sempre na relação
que se pode estabelecer entre ele e a problemática da investigação. Longe da ideia de
pensar em uma resposta que satisfaça plenamente as referidas indagações, podemos,
isto sim, buscar no passado insights que sempre carregam as marcas da provisoriedade
e que fomentam, inevitavelmente, novas provocações.
Aqui postulamos a ideia da escola e de sua cultura, como lugar de produção de
experiências sensíveis, é nela que habitamos boa parte de nossas existências, ocupando
posições diferentes, seja na condição discente ou docente, ou em outras atividades. Lá
constituímos algumas de nossas identidades. De acordo com Assis (2016, p. 288), na
escola se produzem, de modo privilegiado, sensibilidades, “dessa maneira, a história da
educação dos sentidos nos possibilita entender como se formou o cidadão dentro da
concepção de modernidade”. Sensibilidades, portanto, são expressões de subjetividades
e deixam vestígios objetivados na escola que podem ser examinados pelo historiador.
Na sequência, o texto apresenta possibilidades de pesquisa no campo da cultura
escolar, tendo como lentes o uso do conceito de sensibilidades nas interfaces com
escritos escolares, narrativas orais e arquitetura escolar.
137
Assim, indaga-se: o que antigos cadernos são capazes de dizer acerca do passado
de uma escola? Produtos da cultura escrita, esses artefatos provocam certo fascínio.
Poder tocá-los, senti-los nas mãos, entrar em seu interior, procurar imaginar aqueles
e aquelas que escreveram e desenharam em cada página são ações aparentemente
singelas, mas que conferem vivacidade a esse suporte de escrita. Entendidos como
representações do real, misturam intimidade e publicidade. Diante do contexto da
ampliação da noção do que é considerado documento, passaram a ser valorizados, em
suas interfaces com “a preocupação dos historiadores em examinar o vivido na sala de
aula” (MIGNOT, 2007, p. 7).
Castillo Gomez (2012) observa o quanto vem se alargando o interesse por
esses documentos, como uma espécie de dívida da História da Educação para com
os materiais da ordem do comum, e, ao mesmo tempo, enfatiza a “inquietude por
sua busca” (p. 67). Neste sentido, o autor reforça que pesquisas acerca dessas escritas
promovem a construção de um campo de investigação rico de estímulos que, até pouco
tempo, praticamente estava despercebido. Tratam-se de “escrituras de la margen”
(GOMEZ, 2003, p. 235) condenadas, na maioria das vezes, ao descarte. Pode-se dizer
que a preservação de cadernos ainda é algo raro.
E como descobrir indícios de sensibilidades em escrituras disciplinadas, muitas
vezes sem máculas, impecáveis por serem controladas por outros? Comumente, são nas
últimas páginas ou nas marginálias que se observam alguns vestígios sensíveis. Por vezes,
esses espaços sobram ao fim dos anos letivos e são aproveitados para registros que não
passariam pelo crivo do professor, também é possível que sejam utilizados por outros,
que não o estudante. Pessanha (2008), ao observar as páginas finais de cadernos de
normalistas da década de 1930, sugere que tenham sido utilizados “por outras pessoas
que não a primitiva dona do caderno, talvez irmãos ou filhas” (p. 230). De qualquer
modo, esses apontamentos indicam práticas dissonantes do prescrito em sala de aula,
mas precisam do exercício de miradas detetivescas para os sinais (Ginzburg, 2007). Tais
escritos muitas vezes desobedecem a normatividade, fornecem “pistas que permitem
aprender um pouco mais sobre sua vida na escola, para além dos registros e informações
oficiais fornecidas pelos professores ou pelas suas notas” (OLIVEIRA, 2008, p. 134).
Além dos cadernos, podemos pensar nos periódicos produzidos no ambiente da
escola como documentos possíveis de serem analisados pelo historiador da educação.
Esses documentos possuem uma “riqueza e múltiplas possibilidades de abordagem”
(LUCCA, 2005, p. 129). A circulação dos jornais, os discursos presentes nos textos,
a questão de gênero, as representações elaboradas pelos estudantes a partir de seus
textos, as imagens presentes na publicação; as temáticas abordadas; as propagandas; a
materialidade da publicação e a tiragem são algumas das possibilidades que se abrem
ao olhar do pesquisador.
138
As análises desses artefatos permitem, pelas lentes do sensível, que se possa
chegar perto desses escreventes1 que, durante um tempo de suas vidas, exercitaram a
escrita e a leitura nas páginas desses suportes. Reforçamos a importância de aguçar o
olhar para melhor perceber o que esses documentos têm a nos dizer, pois, por vezes,
o discurso do sensível não se deixa ver de imediato. Mesmo assim, apostamos na
potência desses documentos, com certa reverência, afinal, representam percursos de
vida na escola, guardam memórias significativas atreladas à instituição educativa e ao
sujeito que constituiu esses papeis.
139
traduzem no cuidado com aquele que é instado a remexer em suas memórias. Esses
cuidados promovem a construção da “ponte interpessoal” (Errante, 2000), entre narrador
e entrevistador, ou seja, essa metáfora evidencia o vínculo emocional que liga os sujeitos
envolvidos. Para a autora, “a ponte torna o fluxo possível” (ERRANTE, 2000, p. 153).
Pensando em memórias de antigos estudantes, como alinhar as dimensões
individuais e coletivas, diante da complexidade das relações entre essas duas
dimensões? A contrastação de memórias individuais, produzidas em entrevistas,
demonstra o quanto a experiência pessoal se mistura ao coletivo. Em pesquisas de
História da Educação, importa considerar que as lembranças de quem esteve na escola
mesclam-se às memórias dos seus pares, pois “as relações sociais e culturais dos grupos
são marcantes na formação dessas memórias coletivas” (WEIDUSCHAT e FISCHER,
2009, p. 15). Ricoeur (2007, p. 129) entende a memória coletiva como “coletânea dos
rastros deixados pelos acontecimentos que afetaram o curso da história dos grupos
envolvidos”. Em uma tentativa de síntese, o filósofo explica que a memória individual
“é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que esse ponto de vista muda segundo
o lugar que nele ocupo e que, por sua vez, esse lugar muda segundo as relações que
mantenho com outros meios” (RICOEUR, 2007, p. 133).
E, importa dizer que, do ponto de vista individual, rememorar implica em
inventar, a memória implica na representação de tempos pretéritos, por isso, sujeitos
que participaram de um processo educativo ficcionalizam o que viveram por meio de
suas recordações. Entretanto, a memória também é coletiva e o grupo, para dar um
sentido de pertencimento nas relações sociais, acaba formando uma incessante (re)
construção da realidade em que viveu.
Ao refletir acerca da produção de narrativas por meio da História Oral, percebe-
se que a evocação de memórias tem o poder de ultrapassar os limites da experiência
imediata. É neste sentido que se quer pensar os significados atribuídos às memórias de
estudantes, em suas capacidades de produzir marcas nesses sujeitos. Tal experiência
pode prolongar-se no tempo, compondo o que poderíamos chamar de marcas de longa
duração. Trabalhar com memórias é, conforme Bosi (2012), interessar-se por aquilo
que foi lembrado, pelo que foi escolhido para ser narrado. Este entendimento guarda o
sentido da relação que se mantém com os documentos orais em diferentes pesquisas.
Neste sentido, Ricoeur discute os significados da memória dos lugares associada à
memória corporal, “as ‘coisas’ lembradas são intrinsecamente associadas a lugares. E
não é por acaso que dizemos, sobre uma coisa que aconteceu, que ela teve lugar” (2007,
p. 58). Segundo o autor, “o ato de habitar constitui a mais forte ligação humana entre
data e lugar” (p. 59), portanto, entendem-se as instituições educativas2 como “lugares
2
Magalhães (2004) expande o conceito de instituição educativa, ao identificar nas sociedades e
existência de instituições que se apresentam de formas diferenciadas e hierarquizadas, sendo, no
140
memoráveis” (p. 59), capazes de evocar potentes lembranças entre aqueles que as
habitaram em um tempo de suas existências.
Segundo Errante “toda a narrativa é narrativa de identidade” (2000), portanto, ao
falarem sobre itinerários vividos em uma instituição educativa, emergem subjetividades
nas interfaces com aspectos da cultura escolar. Neste sentido, as lembranças de um
aluno sobre sua escola são potentes em representações. Pensando nessas questões, é
Halbwachs quem diz, “ele recorda os lugares que ocupavam nos diversos bancos da sala
de aula. Evoca muitos dos acontecimentos de ordem escolar que se produziram nessa
sala de aula, durante esse ano, [...]”(HALBWACHS, 1990, p. 29). Assim, representações
cheias de cores, sabores, aromas e sentimentos, que vêm à tona a partir das interações
sensíveis entre entrevistador e entrevistado.
Por fim, cabe dizer que a produção de memórias por meio da História Oral
não tem por objetivo o alcance da verdade, e sim “a identificação das condições de
possibilidade para que determinada narrativa possa emergir enquanto discurso”
(WEIDUSCHADT e FISCHER, 2009, p. 71). Ainda, o uso da História Oral não
pressupõe que essa seja uma metodologia com maior poder de suscitar o afloramento de
sensibilidades, como se apenas ela permitisse a produção de uma história democrática.
Entretanto, podemos dizer que parece haver uma subjetividade especial nas narrativas
orais, talvez semelhantes aquelas que comparecem em escritas epistolares, diários
íntimos, guardadas as especificidades de cada documento. Concordando com
Weiduschadt e Fischer (2009), entendemos que as subjetividades não criam obstáculos
às pesquisas, pelo contrário, ampliam e complexificam o processo investigativo,
promovendo uma análise talvez mais fecunda dos enunciados que emergem nas vozes
dos sujeitos narradores.
entanto, todas elas educacionais. Neste sentido, a moradia estudantil inscreve-se como instituição
educativa, considerando sua capacidade de colocar-se como lugar formativo para seus moradores.
3
Sobre a temática da arquitetura escolar ver, Ermel (2011, 2016); Bencostta (2005, 2011); Frago
e Bencostta (2009); Escolano Benito (2017); Chatelet (2006; 2011).
141
Propomos uma reflexão acerca da dificuldade que todos podemos ter em procurar
desnaturalizar o espaço que habitamos na condição de alunos. Como sujeitos escolarizados,
passamos muito tempo imersos nesses ambientes, desdobrados em múltiplos espaços,
que podem parecer naturais em meio ao cotidiano vivido. Ricoeur considera que, durante
o ato de lembrar, “os lugares habitados são, por excelência, memoráveis”. Para ele, “os
lugares ‘permanecem’ como inscrições, monumentos, potencialmente como documentos,
enquanto lembranças transmitidas unicamente pela voz voam, como voam as palavras”
(RICOEUR, 2007, p. 58). Escolano (2017, p. 186) complementa, enfatizando o significado
do “cenário” escolar nas memórias, pois o espaço da escola produz ressonâncias “na
formação dos primeiros padrões do esquema corporal das pessoas e nas primeiras
experiências de sociabilidade”.
Analisando o espaço habitado pelos sujeitos a partir dos prédios e de seus
discursos, abre-se a possibilidade de analisar de que forma estes afetaram os discentes
e quais vestígios emergem de suas memórias. E também de “identificar a utilização dos
sentidos que permitiu construir imagens do outro, dar forma ao imaginário social”
(CORBIN, 2005, p. 19), isto é, quais sensibilidades foram produzidas a partir do momento
em que os estudantes habitaram aqueles espaços.
E o que dizer da estética dos prédios escolares? Essa dimensão perpassa os
discursos produzidos pela cultura escolar e pela cultura urbana. Isso pode ser visto,
principalmente, nas relações entre pedagogia e arquitetura que emergem com força no
processo de institucionalização estatal. No Brasil, Faria Filho e Vidal (2000) explicam
que os prédios escolares erigidos nas primeiras décadas do século XX tinham a clara
intenção de representar o poder da República expresso no reconhecimento do discurso
da escolarização como plataforma política do novo regime. Essas “escolas monumento”
(FARIA FILHO; VIDAL, 2000, p. 35) rompem com o improviso do passado e se
constituem como verdadeiros templos do saber. Assim, que significados podem ter estudar
ou trabalhar em uma instituição monumental, lugar que foi projetado com determinados
fins e que hoje pode assumir outros sentidos? Nesta perspectiva, Escolano (2017) explica
que não há neutralidade na arquitetura, “não são simples espaços neutros nos quais se
despeja mecanicamente a educação formal, com seus programas e suas ações, mas
cenários com semânticas definidas que educam silenciosamente” (p. 186). Seguindo sua
reflexão, o autor sugere pensar no poder de impregnação da arquitetura escolar, no caráter
simbólico que permeia as construções escolares, considerados “símbolos exemplares de
qualquer comunidade” (p. 186). Para tanto, propõe que se examine a lógica subjacente às
construções escolares, no sentido de perceber os códigos que, por meio das materialidades,
prescrevem condutas e disciplinam os sujeitos escolares. Enfim, “os edifícios escolares
registram em si mesmos conteúdos e valores de memória; são, ao mesmo tempo,
indutores de influências duradouras, nas lembranças dos atores que viveram sob o abrigo
de seus muros” (ESCOLANO, 2017, p. 187). Pensando nas sensibilidades, essas memórias
de escola evocam “imagens dos cenários que nos abrigaram na infância, dos quais
recordamos, inclusive os odores” (p. 187).
142
Considerações finais
Ao longo do texto, postulou-se a ideia da escola como lugar de produção de
sensibilidades. É pelos afetos, que inúmeras sensações, como cheiros, sons, sabores e
sentimentos, com diferentes intensidades, povoam nossas memórias. O sabor da merenda,
o som da sineta anunciando a hora do recreio, o cheiro da sala de aula, o perfume de
uma professora são impressões que carregamos em nossas memórias. São sentimentos
portadores de significados subjetivos, emitem sinais, indicam sintomas de determinadas
temporalidades, enfim, se articulam à História da Educação. Fazem parte de uma cultura
comum da sociedade, constituem substratos que identificam nossas memórias.
Tendo em vista essas reflexões, é preciso dizer que estar frente a frente a esses
produtos da cultura escolar comove aqueles que se dispõem a olhar com outros olhos
para papéis, narrativas de memória, edifícios escolares, que adquirem novos estatutos,
transformados em substrato para o fazer histórico. A mirada para esses documentos faz
pensar no sentimento de “desnudamento” diante do arquivo, que nos traz Arlette Farge, e
instiga a pensar nas sensibilidades que permeiam o exercício da pesquisa.
O encontro com as fontes, como representações de outros tempos e lugares,
metaforicamente representa “[...] romper um véu, de atravessar a opacidade do saber e
de chegar, como depois de uma longa viagem incerta, ao essencial dos seres e das coisas”
(FARGE, 2009, p. 15). A autora explica as diferentes nuances do processo da pesquisa, a
busca pelas tentativas de “decifrar primeiro”, a importância dos “gestos lentos, em que as
mãos e os olhos trabalham”, sabendo que “o essencial nunca surge de imediato, a não ser em
uma descoberta excepcional; é preciso portanto ler, ler de novo, afundado em um pântano
que nenhuma rajada venha distrair a menos que o vento se levante” (FARGE, 2009, p. 64).
Essas possibilidades de estudos nos domínios da História da Educação oferecem
uma dimensão singular para investigarmos o tempo pretérito. Os sujeitos da escola carregam
em suas memórias as trajetórias, não só da instituição, mas dos processos pelos quais
historicamente passou a educação em diferentes âmbitos. Suas narrativas, tomadas como
fontes, evidenciam práticas educativas, articulam vivências sociais, permitem interconexões
entre as histórias vividas e as condições materiais nas quais se produziram determinados
processos educativos. É a subjetividade de cada um que indica o que é importante e o que
não é importante lembrar. Segundo Viñao Frago (2000, p.11), “la misma historia cambia
cuando es contada por diferentes protagonistas o observadores. Cada una de ellos, com su
parte de verdad, nos ofrece aspectos que los outros silencian u ocultan”.
Nesse sentido, pesquisar sensibilidades pretéritas indica um esforço em
“mergulhar no estudo do indivíduo e da subjetividade, das trajetórias de vida, enfim. É
também lidar com a vida privada e com todas as suas nuances e formas de exteriorizar
ou esconder sentimentos” (PESAVENTO, 2004, p. 59). Tal ideia nos remete à epigrafe de
abertura desse capítulo na qual o autor explicitou suas memórias e sensibilidades acerca
do espaço habitado. Assim, “não nos lembramos somente de nós, vendo, experimentando,
143
aprendendo, mas das situações do mundo, nas quais vimos, experimentamos, aprendemos”
(RICOEUR, 2007, p. 125).
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146
O fazer e o refazer da paisagem:
diálogos com os centros históricos e os lugares
de memória ligados ao patrimônio baleeiro
148
Figura 2 - Scaner feito e realçado as gravuras de Bangudae (Desenho feito pela
Universidade de Ulsan)
149
Figura 3 - Pinturas de El Médano, Argentina, retratando cetáceos sendo caçados. (Foto
de Bejamin Ballester)
150
Outro exemplo de mitificação são as ideias passadas entre gerações de que
nos mares da Antiga China há uma divindade chamada Yu-kiang, a qual governava
os mares e é representado por uma grande baleia, responsável pela fartura de recursos
marinhos para os pescadores e consequentemente tempo bom para pesca nos mares
da Antiga China.
Figura 4 - Pintura representando Yu-kiang, feita por Utagawa Kuniyoshi.
151
a seduz e depois, ao retornar ao rio, retoma sua forma. A lenda do boto é utilizada
para justificar a gravidez de uma mãe solteira. Costuma-se dizer que “a criança é filho
do boto” quando não se conhece o pai (PEREIRA, 2015). Ainda no Brasil, temos,
também, a lenda de Ipupiara que diz que, no ano de 1564, a linda escrava índia Irecê,
ao ir à praia à noite para um de seus encontros com o jovem Andirá, que vinha
ao continente de canoa, deparou-se com um animal marinho gigantesco, com cerca
de três metros de altura, com uma grande cabeça, bigodes, braços longos, dentes
pontiagudos e pés de barbatanas e ao lado da criatura Irecê encontrou a canoa de seu
amado vazia. Os índios identificaram o animal como sendo Ipupiara, o demônio da
água, o qual é semelhante a um leão-marinho (BRITO, 2016).
Entre o patrimônio pré-colonial brasileiro há os sítios arqueológicos
conhecidos como sambaquis que têm o aspecto de montes de conchas e são associados
a populações que colonizaram intensamente toda a costa brasileira, principalmente
nos ambientes lagunares que ocorrem na faixa costeira (LIMA,1999-2000), do Rio
Grande do Sul até o recôncavo Baiano, e do Maranhão até o Pará (GASPAR,1998).
De modo geral, existem sete regiões lagunares onde a presença desses sítios se dá
de forma mais acentuada: em São Paulo, a Baixada Santista e a Baixada Cananéia-
Iguape; no Paraná, a baía de Paranaguá, a baía de Guaratuba; em Santa Catarina, a
região de São Francisco do Sul, a Ilha de Santa Catarina e a região de Laguna (NEVES,
1988 apud OKUMURA, 2007).
De acordo com Castilho (2005), independente de época ou linhagem e
cultura material, as populações humanas que residiam nas margens do oceano, rios e
manguezais nos últimos cinco mil anos, obtiveram nessas regiões recursos marinhos
como a principal fonte de alimentação.
O homem pré-histórico brasileiro, em tempos mais recentes, também esteve
associado de alguma maneira aos mamíferos marinhos. Os sambaquis e outros
sítios arqueológicos da região Sul do Brasil, fornecem uma empolgante prova disso
(SIMÕES-LOPES, 2005).
152
as baleias que, segundo Castilhos (2005), seriam um dos animais mais cobiçados
por estes grupos. O que, também, justifica a rica produção artefatual registrada nos
sambaquis relacionada a esta fauna marinha (CASTILHOS, 2005).
As evidências do contato entre estes povos e os cetáceos são dados por meio de
artefatos construídos com base nas estruturas ósseas de baleias, entre elas destacam-
se as bulas timpânicas, vértebras e costelas como partes mais usadas na confecção
desta cultura material que apresentam diversos aspectos: discos perfurados, esferas,
fusos e zoósteos (animais esculpidos em osso de baleia) geralmente feitos com bula
timpânica; recipientes e braseiros feitos com vértebras de baleias, tábuas a partir
de ossos chatos e bastões feitos com as costelas dos cetáceos (TIBURTIUS, 1996;
BIGARELLA, TIBURTIUS, SOBANSKI et al 1954, FOSSARI, 1984, ROHR, 1984,
BANDEIRA, 1992; 2004; BANDEIRA 2015; CASTILHOS, 2005; CHMYZ et al,
2003; PROUS, 2007). Ainda, da cultura material dos sambaquianos correlacionada
às baleias, têm-se as esculturas em rocha e osso, conhecidos por zoólito e zoósteo
respectivamente, entre os quais há representações de baleias (TIBURTIUS, 1996;
CHMYZ et al, 2003). Ossos destes animais sem vestígios de uso ou transformação
(ecofatos), também são bem comuns nos sítios arqueológicos.
Quanto à função atribuída a estes vestígios, há várias hipóteses defendidas, a
exemplo, os zoólitos registrados em sambaquis localizados entre o sul de São Paulo
até o norte do Uruguai são vistos como acompanhamentos funerários pois costumam
estar associados a esses contextos (TIBURTIUS, 1960; PROUS, 2007); assim como os
zoósteos com representação de cetáceos são interpretados como objetos de prestígios
para fins cerimoniais. Porém, também podem representar um adorno com alguma
outra atribuição simbólica ainda desconhecida, como o caso do zoósteo de baleia
coletado por Guilherme Tiburtius no Sambaqui Conquista II que foi interpretado,
pelo autor, como algum tipo de adornamento (TIBURTIUS, 1966; TIBURTIUS,
1960; PROUS, 1992).
Além dos artefatos com representações, há esculturas que lembram bastões
(alguns com representação de um animal na ponta) feitos com vértebras de cetáceos
que podem ser usados para oferendas ou cerimônias (TIBURTIUS, 1996; CHMYZ
et al, 2003) assim como os discos perfurados, os discos circulares, as esferas e os
fusos feitos com ossos destes animais poderiam ter as mesmas utilidades que os
artefatos anteriores. Enquanto que os discos vertebrais poderiam ser usados como
vasilhames para a produção dos alimentos ou como pira devido aos registros destas
peças queimadas associadas a sepultamentos (BIGARELLA et al, 1954; TIBURTIUS,
1996; TIBURTIUS, 1966, ROHR, 1984; BASTOS, 1994).
A diversidade de artefatos produzidos em ossos de baleia não é incomum
ou rara nos sambaquis, ao se tratar de sambaquis no litoral sul, a Baía da Babitonga
153
recebe destaque por ser uma das regiões estuarinas com o maior conjunto de
sambaquis, equivalentes a 170 unidades destes sítios arqueológicos, dos quais
menos da metade foi estudado. Entretanto, dos sambaquis pesquisados, 18 sítios
apresentaram material de cetáceos. Dentre estes destacam-se o sambaqui Morro do
Ouro, localizado em Joinville/SC, e o sambaqui Conquista I, localizado em Barra do
Sul/SC, que apresentaram a maior quantidade de artefatos e ecofatos em ossos de
baleias.
Entretanto, mesmo com a diversidade de artefatos de uso utilitário e/ou
cerimonial, com a proporção considerável de sambaquis com evidências do uso
desta fauna, assim como o registro da habilidade avançada de pesca por estes povos
e a ligação com os ambientes costeiros e o aproveitamento máximo dos recursos
pesqueiros, não foi comprovado que tais animais eram pescados pelos povos pré-
coloniais. É possível que os ossos encontrados nos sambaquis sejam resultados de
uma coleta da carcaça em praias. Segundo Tiburtius (1966), Castilhos (2005) e Bacha
(2016), estas populações não eram especializadas na caça e captura de baleias mas
das coletas da carcaça ou pescas acidentais. Isto porque, mesmo com evidências
de elaboração de fibras trançadas para confecção de redes, estacas, lanças/arpões e
pesos de rede, não há comprovadas marcas destes instrumentos em ossos de cetáceos
presentes em sambaquis ou registro de elaboração de utensílios específicos para
captura desta fauna (CASTILHOS, 2005).
Contudo, independente das formas de obtenção desta fauna pelos povos pré-
coloniais, é evidente que “os cetáceos [...] eram utilizados como fonte de alimento,
artefatos, adornos e outras importantes funções” (CASTILHOS; SIMÕES-LOPES,
2001, p. 719). É impossível deixar de lado a simbologia que pode estar ligada aos
artefatos produzidos em ossos provenientes destes cetáceos assim como as esculturas,
seja em osso ou em rocha. Certamente, tais artefatos deixados numa paisagem
marcada por sambaquis, representam a estreita relação entre as baleias e os povos
pretéritos que ocuparam o litoral sul brasileiro desde o início do Holoceno Tardio.
Vale ressaltar que “o ser humano, em sua complexidade, tem a necessidade de
dizer-se” (BACHI, 2013, p. 03) através de gestos, palavras e, sobretudo, símbolos que
podem estar relacionados a vários processos que “são considerados para constituir a
religião, a sociedade ou a cultura. [...]” (BELL, 2009, p. 14) e que estão presentes nas
paisagens. Passados milésimos de anos essa relação homem x baleias permanece no
litoral sul brasileiro seja pela pesca de animais, que ocorria até tempos recentes, seja
por um dos seus testemunhos que são as armações baleeira. O interesse ecológico
sobre estes animais que se manifesta no turismo de observação é uma das expressões
do interesse e relação entre estes animais e a sociedade brasileira atual.
154
As armações baleeiras no litoral norte de Santa Catarina
155
prática destrutiva em relação às gerações futuras pois as baleias geram um único
filho a cada dois anos, levando a diminuição de baleias pelo litoral nos anos seguintes
(ELLIS, 1958). No litoral norte de Santa Catarina duas armações foram fundamentais
para o tratamento econômico da pesca da baleia e das interações sociais: (I) Armação
de São João Batista de Itapocoróia (1778), em Penha, (II) Armação da Ilha da Graça
ou Ilha da Paz (1807), em São Francisco do Sul.
A história das armações baleeiras no Brasil colonial está ligada em maior
ou menor proporção aos novos povoamentos que surgiram em algumas regiões de
fronteiras no Brasil. A pesa da baleia e a fabricação de seus subprodutos serviram
para a iluminação de engenhos e casas, como material de construção, ligadura de
pedras, saboaria e calafetagem de barcos (OLIVEIRA, 2001, p. 39). Configuraram-
se, assim, como um tipo de empreendimento com alto grau de sofisticação para a
época, pois reuniam no mesmo espaço elevado número de ocupações especializadas
e uma significativa força de trabalho, que atuavam no espaço marítimo e em terra,
desde o mar aos espaços onde se desenrolavam o conjunto de atividades necessárias
ao funcionamento da armação. Tal complexidade implicou na necessidade de aporte
expressivo de capital e de número significativo de pessoal para a sua existência e
manutenção.
Este vínculo com a ocupação de vastas áreas de terras em disputa pela coroa
espanhola e portuguesa e a localização favorável a concentração destes cetáceos
consolidou a formação de núcleos populacionais sui generis, nas regiões aparelhadas
para a caça à baleia e o beneficiamento dos seus produtos, principalmente o
óleo utilizado para a iluminação. E, seria sobre esse universo particular que se
criaria como bem aclara Fabiana Comerlato (1998, p. 102), “uma rede de espaços
humanizados inserida numa paisagem historicamente localizável.” Mas, releva notar
que a complexidade das armações contribuiu de forma crucial para a construção de
estruturas monumentais, que serviram como um elemento de atração para novos
agentes de desenvolvimento, como autênticas aldeias (ELLIS, 1958, p. 56-57).
A igreja, que era um dos mais importantes marcos do uti possidetis3,
localizava-se no centro da teia do complexo baleeiro – imbricava-se com a casa do
administrador, as senzalas, a casa de frigir e os espaços do mar. Essa paisagem baleeira
indivisa que se formou arrastou consigo símbolos, que ainda fazem alguns desses
lugares viverem por meio deles. Quiçá, possa se dizer que o fazer destas paisagens
teve como uma das suas bases um modelo de ocupação do Império Português e,
por outro, os pilares de uma atividade econômica que se entrelaçou com a vida e o
3
Princípio do direito internacional que, em disputas envolvendo soberania territorial,
reconhece a legalidade e a legitimidade do poder estatal que de fato exerce controle político e
militar sobre a região em litígio.
156
destino dos homens ligados às armações. Assim, igualmente, formaram o espírito
destas cidades, moldando culturas e tradições que permanecem presentes nos seus
centros históricos.
Releva notar que a expansão das armações em Santa Catarina ocorreu a
partir de 1743, com a construção de uma armação em Ganchos, hoje município de
Governador Celso Ramos, estendendo-se para Lagoinha (1772), em Florianópolis,
Itapocoroi (1778), município de Penha, Garopaba (1793-95), Imbituba (1796) e Ilha
da Graça (1807), município de São Francisco do Sul. A partir de 1798, passaram a ser
administradas por um único contrato que detinha o monopólio da pesca da baleia em
todo Brasil. Essa região viria a se destacar por um conjunto de elementos histórico-
culturais, arquitetônicos, arqueológicos e natural-paisagísticos (praia/ossadas), como
um símbolo da história sociocultural e econômica, valendo-se assim de abordagens
que contemplem o seu uso enquanto unidade de produção representativa não só do
passado, mas também para a comunidade nos dias de hoje como patrimônio histórico
e potencial de desenvolvimento cultural e turístico. Os relatos em documentos,
as ossadas de baleias que aparecem nos areais da praia central quando ocorrem
tempestades, que escavam a linha da maré, indicam que essa foi uma atividade que
deu sustentabilidade econômica, cultural e administrativa à comunidade.
Não nos cabe aqui trazer a história local de cada armação, mas importa lembrar
que se constituiu um cenário muito específico - transformado em patrimônio histórico
construído há mais de 200 anos. Em verdade, as armações baleeiras permanecem como
marca de um tempo e que precisa ser incorporada ao presente, enquanto símbolo
capaz de servir de ponto de apoio entre a comunidade e o seu patrimônio histórico.
A valorização do passado, não pelo passado em si, mas por aquilo que se transmitiu e
modelou paisagens, pode apontar os caminhos para uma conservação integral, como
foi proposto por José Castillo Ruiz (1996). Para ele, se acompanharmos passo a passo,
acontecimento a acontecimento, o patrimônio seria fruto de uma forte imbricação entre
cultura e natureza. Ou seja, a gestão deve partir da condição igualitária em que todos
os elementos que compõe o patrimônio baleeiro sejam pensados em conjunto, sejam
eles arqueológicos, naturais, arquitetônicos, econômicos ou culturais. Nesse sentido,
a renovação deveria ter como base o conceito de desenvolvimento sustentável e um
distanciamento da visão do patrimônio apenas como bem econômico. Aliás, deve-se
trazer à luz uma quantidade inumerável de elementos e espaços os mais diversos - que
precisam também ser aproveitados na sua gestão.
Ao trazer essa discussão, considera-se que o reconhecimento como patrimônio
não se limita ao reconhecimento oficial ou projetos de cunho prioritariamente
voltados para o turismo - e, que pensam os centros e locais de memória como espaços
de consumo para os estrangeiros. Torna-se essencial analisar a construção de um
157
patrimônio cultural ainda não formalizado por instituições oficiais, expressos em
valores arquitetônicos, históricos, paisagísticos, culturais e arqueológicos que se
preocupem com os impactos de tais projetos sobre o bem-estar da comunidade.
Não basta, nesse sentido, registrar a memória dos grupos humanos que ali viveram e
deixaram marcas de identidade no decurso do processo de formação e constituição
do que hoje temos nos centros baleeiros. No rol das propostas, é preciso colocar em
primeiro plano os herdeiros de uma ancestralidade que ao moldarem a paisagem
tornaram-na um lugar de memória – e, apenas nessa condição, preserva-se seu
significado para a população. De fato, como bem aclara Bachelard (1974, p. 469) é
preciso dar um valor a memória, quase como, “uma auréola de felicidade. Apagado o
valor, os fatos não se sustentam mais.”.
De certo modo, o impacto que se apresenta hoje pelo movimento paralelo
de patrimonialização não só do patrimônio material, mas igualmente, da cultura
imaterial, propiciam novas reflexões sobre a necessidade de uma maior identificação
nos processos de tombamento, registro e salvaguarda com a população. Nesse
sentido, o conceito passa por constantes releituras na medida em que o terreno da
expansão do campo patrimonial se torna mais vasto. Assim, o termo também passa a
ser empregado para designar todo o processo de constituição de patrimônios a partir
da seleção e atribuição de valor cultural a bens e práticas culturais de determinada
comunidade. Importa destacar que esses bens, como, o conjunto de edificações, a
praça, a praia e os demais componente urbanísticos que guardam informações sobre
a forma de ocupação nas diversas épocas se vinculam à memória e à história das
populações que viveram e que continuam a viver nestas áreas. Destacam-se ainda
as atividades relacionadas às atividades marítimas, que se constituíram por longo
período como principal base da economia, engendrando formas de ver e de viver que
ainda se mantém no litoral da região sul de Santa Catarina.
Sobre as armações, ainda, se acrescente a complexidade das relações entre a
Economia, a Cultura, a Sociedade, o Estado e o que se considerou como Patrimônio
oficial. Exemplo disso seria a escolha por processos de tombamento parciais que
deixam entrever uma legislação que ainda avança de força tímida para o campo
consideravelmente mais vasto do patrimônio como paisagem, ou seja, espaços
complexos que agregam inúmeras imagens, pessoas, bens e saberes. A paisagem
significou uma ruptura com os limites de salvaguarda e gestão até então pensados
para o tão reconhecido patrimônio de pedra e cal (CHUVA, 2012). Deve merecer
particular atenção, o fato de que, a excessiva formalização, que traziam regras muitas
vezes enrijecedoras para os próprios bens tombados, não seria bem-sucedida se
aplicado a um complexo de bens que fogem da ideia de “cidade petrificada”, mas
se enlaçam melhor a centros históricos vivos com uma paisagem sempre a ser
remodelada (JEUDY, 1945, p. 81-105). Certo é que a patrimonialização das armações
158
baleeiras precisa ser pensada no momento de ampliação do patrimônio oficial,
trazendo consigo o elo de ligação com as comunidades e as dificuldades que se põe
em face dos novos olhares. Os lugares de memória devem ser sensíveis às novas
histórias que se constroem no presente, mesmo que não se deixe de passar e repassar
as memórias antigas.
Perante esse quadro dos lugares de memória como as armações baleeiras, a
paisagem é expressa pelas memórias das pessoas que a constroem com afetividade,
sensibilidade e motivações singulares, potencializadas por signos e significados
expressas no território. Assim, paisagem é patrimônio vivido, pensado e afetivo na
trajetória da vida marcada pela temporalidade.
Nos centros baleeiros podemos contemplar não apenas a natureza, a
disposição arquitetônica, o céu, a luz do sol entre as nuvens, o mar ou a praia, também,
pode-se pensar na caça às baleias, nas práticas e nos fazeres do cotidiano humano
nesses lugares. Mas, isso ainda não é suficiente para a compreensão dessa paisagem
se for um olhar dividido, compartimentado, fragmentado ou ingênuo. Como enfatiza
Doreen Massey (2015, p. 144) “é a esfera da multiplicidade, o produto das relações
sociais, e essas relações são práticas sociais efetivas, e sempre em processo, então [...]
não pode nunca ser fechado, sempre haverá [...] potenciais”.
A paisagem dessas armações históricas é fluxo de múltiplos patrimônios
potencialmente situados no tempo e no espaço, na maioria das vezes com
construções(marcas) para além da materialidade, constituindo-se como uma força
na vida humana (WORSTER, 2015).
As considerações sobre paisagem, neste caso, são relevantes como uma
referência que mobiliza reflexões para além de determinismos, ampliando a
configuração para o mais amplo, as múltiplas dimensões do conjunto nas armações
baleeiras. De certo modo, há paisagem quando ampliarmos a consciência a partir de
um campo de visão abrangente, articulando o sensível e o abstrato numa pluralidade
de cenários afetivos, nem sempre agradáveis. Como nos ensina Lévi-Strauss (1957,
p. 126) “Ela é ao mesmo tempo objeto da natureza e sujeito de cultura; indivíduo e
grupo; vivida e sonhada: a coisa humana por excelência”.
A paisagem das armações é delineada pela projeção espacial dos homens,
que imprimem no lugar o como praticam o mundo, como podemos observar pela
gravura de Debret, figura 1, o mar, as construções estrategicamente colocadas em
função da caça à baleia. Essa paisagem foi tecida a partir de grandes recursos naturais
existentes, como potência econômica e como parte da cultura e das múltiplas funções
sociais dos derivados da baleia. Como também está na paisagem o humano, suas
práticas, seus fazeres, suas múltiplas experiências com a caça ao maior mamífero do
159
mar, a morte, os medos, a coragem e a afetividade não é excluída, temos as famílias,
os grupos diversos de poder (religioso, político, econômico). Como nos ensina Besse
(2013, p.35-36), a paisagem “é um conjunto de relações existenciais, mantida pelos
humanos com o mundo que os rodeia”.
Figura 1 – Gravura de Debret de Vila Nova, 1793, Armação de São Joaquim de Garopaba,
1827
Fonte: COSTA, Viegas Fernandes da Costa. História de Santa Catarina. Disponível em : <https://
www.slideshare.net/viegasdacosta/histria-de-santa-catarina-61162379>.
160
e do presente, que devido sua complexidade nunca a vemos num sentido completo.
Aqui podemos evocar a ideia do “espírito do lugar”.
O “espírito do lugar” consiste no conjunto de bens materiais
(sítios, paisagens, edificações, objetos) e imateriais
(memórias, depoimentos orais, documentos escritos,
rituais, festivais, ofícios, técnicas, valores, odores), físicos
e espirituais, que dão sentido, valor, emoção e mistério
ao lugar, de tal modo que “o espírito constrói o lugar e,
ao mesmo tempo, o lugar constrói e estrutura o espírito”
(Declaração de Quebec, ICOMOS, 2008).
161
as quais as armações estão restritas a história e as memórias passadas em épocas em
que não viveram. As escolhas dos lugares de memória e do patrimônio oficial parecem
sofrer com o que Walter Benjamin (p. 198, 1994) chamou da perda da faculdade de
intercambiar experiências. A dimensão simbólica do patrimônio que agrega os modos
de vida com o receber e o transmitir entre as gerações parece se esgarçar ainda mais
quando as escolhas dos bens a serem tombados não dão atenção ao simbólico que
compõe um patrimônio - que deveria ser percebido como paisagem e não como partes
estanques de um passado remoto.
No entanto, o caso dos tombamentos realizados no litoral de Santa Catarina
não seria marcado de fato por uma atuação original se pensarmos na postura até
pouco tempo tomada pelo IPHAN (CHUVA, 2012). Os estudos que deram origem
aos tombamentos das partes parciais das armações indicaram que por todo o litoral
de Santa Catarina, de norte a sul - de São Francisco do Sul, Armação de Itapocoróia,
Camboriú, Biguaçu, Governador Celso Ramos, Ilha de Santa Catarina, Garopaba, até
Laguna – foram vários os exemplos de igrejas que marcam o início das Vilas e Cidades.
Dalmo Vieira (s/d), o principal responsável pelo levantamento, entendia como
fundamental “a proteção e valorização deste acervo para garantir sua permanência às
futuras gerações”. No caso dessas igrejas seria de “suma importância e imprescindível
a ação de tombamento sendo até mesmo de responsabilidade moral desta Fundação a
jornada destas primeiras marcas da ocupação do Estado”.
Enfim, a justificativa do tombamento se fundamentou em considerar que “em
Santa Catarina, as igrejas e capelas distribuídas ao longo do litoral são documentos
de suma importância para a compreensão histórica da ocupação do sul do Brasil pelo
elemento luso-brasileiro”. A Arquitetura Religiosa, segundo Dalmo Vieira (s/d), seria o
que melhor representa a arquitetura popular no Brasil, uma vez que esta arquitetura foi a
“representação mais fiel do conjunto da comunidade que a constrói e a mantém”. Ademais,
para ele, “as pretensões, realidades concretas, origens, ideais, possibilidades, influências,
trocas e poder expressam-se na igreja de uma comunidade”. Por outro lado, a nosso ver,
as razões que poderiam explicar o silêncio em relação aos complexos baleeiros, entre
outras, estariam na própria forma como se escolheu por um longo período os chamados
objetos historicamente consagrados como patrimônio cultural. Sendo o patrimônio
arquitetônico religioso um dos principais focos de atuação do Estado.
De fato, neste espaço ocorriam os principais eventos da vida espiritual,
traduzidos pelos cultos semanais, os batismos, os casamentos, os sepultamentos e outras
solenidades que abrangiam a quase totalidade da população. Mas, não se reconhece
durante todo o processo de feitura do parecer que a igreja se tratava de um campo
menor, embora essencial. Acima das construções arquitetônicas religiosas existia algo
maior, isto é, as próprias armações baleeiras. Eram nos diversos espaços, na igreja, na
162
praça, na praia, nas senzalas, nos ranchos dos pescadores, na casa do administrador
que se fizeram presentes no passado e no presente as trocas cotidianas, os cuidados
com as embarcações e equipamentos e com o comércio, ou seja, a mobilização de
forma geral do conjunto da população. Mais tarde, nestes mesmos espaços, também
se construíram as casas de comércio, que forneciam produtos para uso diário das
famílias e demais mercadorias para a sobrevivência e reserva. Como também sediava
os serviços públicos, representados pela intendência, correio, telégrafo, delegacia de
polícia, escola e coletoria. Ou seja, considerados no seu conjunto, esse espaço sediava
os principais processos da vida cotidiana e, assim, reunia um conjunto de memórias e
de histórias que trazem um passado ainda presente.
Cristina Meneguello (2005, p. 2) recupera a ideia do centro histórico como o
“coração da cidade”, visão apresentada no VIII Congresso Internacional de Arquitetura
Moderna - CIAM, realizado em Hoddedon, próximo a Londres, que em 1951.
Nesse congresso se aviva a ideia centro histórico como “centro cívico”, comercial, e,
especialmente como repositório e expressão física de experiências coletivas. As ideias
esposadas aqui vão em parte nesta direção ao defender que os centros históricos e os
seus lugares de memória apresentam um conjunto de caraterísticas que conservam
aspectos significativos da história das cidades que se originaram com os complexos
baleeiros. É necessário manter os centros históricos devido aos valores culturais que
expressam os testemunhos vivos de épocas passadas. Assim, como deve ser manifesta
a preocupação em entender os seus moradores como peças-chaves na proteção dos
centros históricos.
Ora, pode-se considerar que parte dos empecilhos presentes nos projetos
pensados ocorre pela alteração do espaço para se adaptar aos fundamentos como
monumentalidade e excepcionalidade que sustentaram por longo período os
tombamentos realizados pelo IPHAN. Nesse caso, priorizavam-se os monumentos em
detrimento do seu entorno e de sua vinculação com a História local. Esta perspectiva
também se alinha à ideia de se valorizar os grandes acontecimentos e os grandes
homens ligados à elite dominante. O que explicaria em parte as razões que levaram a
desconsiderar os pescadores e a população em geral como agentes ativos na construção,
escolha e manutenção do patrimônio e dos lugares de memória ligados as armações
baleeiras.
Considerações finais
163
constata-se que em meio às conchas há muitos vestígios destes animais, tendo sido
usados como alimento, matéria-prima ou como elemento de representação simbólica.
No período colonial e pós-colonial no Brasil a pesca destes animais foi significativa.
Herança destas práticas são as armações baleeiras que constituem conjuntos
histórico-arquitetônicos e as paisagens de várias praias de Santa Catarina, hoje vistos
como patrimônio cultural que deve ser preservado. No entanto a proteção destes
sítios não tem acontecido a contento e tem sido preocupação do campo patrimonial.
Refletindo sobre as armações baleeiras de Santa Catarina, entendemos que
a identificação de um patrimônio e seus lugares de memória é um processo sempre
em construção que deve considerar o contexto histórico, econômico, político,
ambiental e cultural quando seus diversos atores reivindicam estabelecer projetos
de seleção e gestão de bens culturais. À vista disso, ao transformar as memórias
de assuntos secundários em objeto de bases de pertencimento, pode-se repensar o
reconhecimento de novos patrimônios não somente pelo viés da monumentalidade,
da beleza natural ou do exótico, mas, igualmente, pelas travessas silenciosas das vidas
das pessoas anônimas. Ou como dizia Fernando Pessoa (1986, p. 87), as paisagens
são feitas com o que se sente.
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167
Organizadoras
171
de História/ANPUH, da Associação Brasileira de História Oral (ABHO) e da
Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica (BIOGraph). Vice-líder do
Grupo de pesquisa EBRAMIC- Educação no Brasil: memória, instituições e
cultura escolar (CNPq) e participa do grupo de pesquisa Memórias e Histórias da
escola do Rio Grande do Sul: Do Deutscher Hilfsverein ao Colégio Farroupilha
(1858-2008), (CNPq).
172
Estudos Sociais e Ciência da Informação com enfoque na relação entre Memória-
Discurso-Ciência-Divulgação científica. Suas áreas de interesse de pesquisa são
as relações entre memória, linguagem e informação, assim como os seus variados
meios de criação, validação e divulgação por diferentes mídias.
173
Lucas Graeff - Lucas Graeff é doutor em Etnologia e Sociologia Comparada
pela Université Rene Descartes (Paris V, Sorbonne) e bolsista de produtividade
do CNPq (Nível 2). Desde 2017, é Coordenador do Programa de Pós-Graduação
em Memória Social e Bens Culturais da Universidade La Salle. Tem experiência
nas áreas de Antropologia Urbana, Psicologia Social e Gestão de Pessoas, atuando
principalmente nos seguintes temas: memória social; patrimônio cultural;
políticas, hábitos e práticas culturais; e envelhecimento humano (aspectos
psicossociais).
174
Vera Dodebei - Professora Titular da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro. Docente e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação
em Memória Social (mestrado e doutorado). Graduada em Biblioteconomia
e Documentação (USU), mestre em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ) e
doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ). Coordenadora brasileira do
doutorado internacional "Culture, Patrimoine, Mémoire Sociale".
Coordenadora do Laboratório de Documentação e Patrimônio em Memória
Social (Ladome). Áreas de pesquisa: Teoria da Informação, Cultura Digital,
Memória e Patrimônio. Membro da ANCIB, da ISKO-Brasil, do ICOM e do
ICOMOS. Editora da Revista Morpheus - estudos interdisciplinares em memória
social. Últimas publicações: Mémoire et Nouveaux Patrimoines (Open Edition,
France, 2015); Por que Memória Social? (Revista Morpheus, 2016); e, Knowledge
Organization and Cultural Diversity (ISKO-Brasil). Líder dos Grupos de Pesquisa
CNPq: Memória Nacional e Organização do Conhecimento (Biblioteca Nacional)
e Memória Social, Tecnologia e Informação (Unirio).
175
Editora Unilasalle
editora@unilasalle.edu.br
http://livrariavirtual.unilasalle.edu.br