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Ano 23 | Edição 135 | Maio/Junho 2021 | Conselho Regional de Psicologia do Paraná

QUAL A COR DA
LOUCURA?
Por que é preciso que a luta
antimanicomial seja antirracista
e antiproibicionista?

Cofundador da Associação Dificuldades de acesso a Como a cultura do


Psicodélica do Brasil fala sobre direitos colocam trabalhadoras punitivismo afeta processos
usos, pesquisas e regulamentação domésticas em risco éticos na Psicologia?
Trabalhos artísticos realizados por usuárias(os)
do Centro de Atenção Psicossocial I de Campo Magro.

Foto: Jonas Cardoso Lomba (CRP-08/21697)


SUMÁRIO
05 Administrativo-Financeiro
Tire suas dúvidas sobre os procedimentos administrativos online

07 Resenha
Para a construção de um corpo (e uma Psicologia) que questiona

08 Reforma Psiquiátrica
Os 20 anos da Lei nº 10.216: a Luta Antimanicomial não se inicia nem se encerra em 2001

09 Políticas Públicas
Entre lutos e lutas, o compromisso

13 Cartografia da RAPS
Asfixias da RAPS em tempos de pandemia

17 Capa
A cor da loucura: por que é preciso que a luta antimanicomial seja antirracista e
antiproibicionista?

22 Entrevista
Da ayahuasca ao MDMA, psicodélicos podem ser aliados na terapia

27 Trabalho
Quase da família: dificuldades de acesso a direitos colocam trabalhadoras domésticas em
risco na pandemia

29 Coluna Ética
Ética profissional e punitivismo

31 Comissão de Orientação e Fiscalização


Psicologia e a Luta Antimanicomial: aspectos éticos no exercício profissional da(o)
Psicóloga(o)

33 Espaço Psi Ψ
Mover-se

ERRATA
Na edição 134 da Revista Contato, no artigo "Visitas íntimas a adolescentes privadas de liberdade: um olhar
pela Psicologia", a autoria foi atribuída apenas à Psicóloga Ana Ligia Bragueto (CRP-08/08334). Ela dividiu, no
entanto, a escrita com Paulo Fernando Pinheiro, doutorando em Ciências Criminais pela PUC-RS.

Conselho Regional de Psicologia - 8ª Região (CRP-PR)


Produção: Revista Contato: Informativo Bimestral do Conselho Regional de Psicologia 8º Região (ISSN – 1808-2645) • Site: www.crppr.org.br
Endereço (sede): Avenida São José, 699, Cristo Rei, Curitiba-PR | CEP 80050-350 • Contatos: (41) 3013-5766 | comunicacao08@crppr.org.br
Tiragem: 22 mil exemplares • Impressão: Lunagraf • Jornalista responsável: Ellen Nemitz (17.589/RS) • Estagiária de jornalismo: Valkyria Dantas
Rattmann • Redação: Ellen Nemitz, Karla Losse Mendes e Valkyria Dantas Rattmann • Coordenador da Comissão de Comunicação Social: Pedro
Braga Carneiro • Revisão: Ellen Nemitz, Karla Losse Mendes e Pedro Braga Carneiro
Diagramação: Regiane Mores • Ilustrações: Freepik (www.freepik.com), Pixabay (www.pixabay.com), Unsplash (www.unsplash.com).
• Projeto gráfico: Agência Cupola • Preço da assinatura anual (6 edições): R$ 30,00

OS ARTIGOS SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES, NÃO EXPRESSANDO NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO CRP-PR
Conselheiras e conselheiros: Psic. Ana Ligia Bragueto (CRP-08/08334), Psic. Ana Lucia Canetti (CRP-08/10403), Psic. Andreia Moessa de Souza
Coelho (CRP-08/08896), Psic. Andressa Roveda (CRP-08/08990), Psic. Angela Aline Haiduk Rosa (CRP-08/21752), Psic. Caetano Fischer Ranzi (CRP-
08/14605), Psic. Celia Mazza de Souza (CRP-08/02052), Psic. Denis dos Santos Costa (CRP-08/10950), Psic. Denise Lisboa de Almeida (CRP-08/14540),
Psic. Flavio Voigt Komonski (CRP-08/19733), Psic. Gustavo Lacatus da Costa de Oliveira (CRP-08/20191), Psic. Joao Batista Martins (CRP-08/07111),
Psic. Jose Alexandre de Lucca (CRP-08/23802), Psic. Luccas Danniel Maier Cechetto (CRP-08/27520), Psic. Luciana de Almeida Moraes (CRP-08/14417),
Psic. Marcel Cesar Julião Pereira (CRP-08/20665), Psic. Maria Ester Falaschi (CRP-08/06606), Psic. Michelly Antunes Ribeiro (CRP-08/27324), Psic.
Natalia Cesar de Brito (CRP-08/17325), Psic. Nayanne Costa Freire (CRP-08/14350), Psic. Paulo Cesar de Oliveira (CRP-08/17066), Psic. Pedro Braga
Carneiro (CRP-08/13363), Psic. Priscila Soares Pereira do Nascimento (CRP-08/12303), Psic. Ramon Andrade Ferreira (CRP-08/28114), Psic. Renata
Campos Mendonça (CRP-08/09371), Psic. Sabrina Meira Pimentel (CRP-08/28265), Psic. Sara Gladys Toninato (CRP-08/07092), Psic. Talitha Priscila
Cabral Coelho (CRP-08/29094), Psic. Thaynara Bianchessi Nagliate (CRP-08/28273), Psic. Vanessa Jacqueline Monti Chavez (CRP-08/19849).

CONTATO 135 | 3
EDITORIAL

Olá, Psicólogas e Psicólogos do Paraná e todas as pessoas que nos leem.


Em 2021, celebramos os 20 anos da promulgação da Lei nº 10.216/2001, um
marco significativo da Reforma Psiquiátrica no Brasil por reivindicar direitos
às pessoas em contextos de sofrimento psíquico e redirecionar o modelo
assistencial em saúde mental.
Por isso, esta é uma edição especial da Revista Contato que exalta a Luta
Antimanicomial no que compreendemos ser o seu tripé fundamental na
atualidade: a defesa do Sistema Único de Saúde, o antirracismo e o anti-
proibicionismo. Ao longo dos textos, buscaremos refletir sobre a importân-
cia desses conceitos para a atuação de Psicólogas(os) em todas as áreas
profissionais.
Afinal, é possível atuarmos sob a premissa antimanicomial em qualquer
campo da Psicologia se nossas práticas reafirmarem o compromisso com o
reconhecimento do outro como sujeito, com a não patologização das subje-
tividades e das relações, e com o cuidado em liberdade a todas as pessoas
em situação de sofrimento.
Saudações antimanicomiais a todas e todos. Que este 18 de maio nos revi-
gore na luta pela saúde mental. Boa leitura!
TIRE SUAS DÚVIDAS SOBRE

ADMINISTRATIVO-FINANCEIRO
OS PROCEDIMENTOS
ADMINISTRATIVOS ONLINE!

A
pandemia da Covid-19 trouxe algu- sistema online – o que proporciona mais agili-
mas mudanças que vieram para ficar dade e praticidade a Psicólogas(os) e Pessoas
e acelerou processos de digitalização Jurídicas.
em diversas áreas. O Conselho Regional de
Psicologia do Paraná (CRP-PR), assim como É natural que essa transição cause dúvidas e
outras instituições, foi afetado por essa ten- dificuldades em um primeiro momento. Com
dência e adotou o trabalho remoto como base nos questionamentos que chegam com
forma de contribuir com os esforços de não mais frequência por meio dos canais de con-
transmissão do vírus. Muitos procedimentos tato da instituição, preparamos um conjunto
administrativos que antes eram feitos pre- de perguntas e respostas para auxiliar a cate-
sencialmente agora devem ser feitos pelo goria nesse momento.

GERAÇÃO DE SENHA

Uma das dúvidas mais recorrentes da categoria é em relação à geração


de senha no sistema. Geralmente, isso acontece no primeiro acesso de
profissionais ou no caso de Pessoas Jurídicas já cadastradas.

Pessoas Físicas

Para solucionar o problema no caso de Pessoas Físicas, primeiro acesse


a opção “Requerimento”; em seguida, abrirá o link no qual será neces-
sário digitar seu CPF. Clique em “Esqueci minha senha”, grifado em
azul abaixo do botão entrar.

Na próxima página digite apenas seu CPF (com pontos e


traço), data de nascimento e código captcha para encami-
nhar a senha para seu e-mail.

Importante: digite somente seu número de CRP sem os pre-


fixos: “CRP” ou “CRP-08” ou “08/”

Pessoas Jurídicas

Se o problema envolver um cadastro de Pessoa Jurídica,


o procedimento é semelhante. Acesse “Requerimento”;
em seguida, abrirá o link para digitar seu CNPJ. Clique em

CONTATO 135 | 5
“Esqueci minha senha” e, na próxima página, digite apenas seu CNPJ (com pontos, barra e traço)
e código captcha para encaminhar a senha ao seu e-mail. Não coloque o número da Pessoa
Jurídica e deixe a data de registro em branco.

Em ambos os casos, quando receber a nova senha e alterá-la, conforme orientado, será possível
acessar o formulário para solicitação.

DIFICULDADE EM CONCLUIR SOLICITAÇÕES

Caso a plataforma não gere o protocolo eletrônico, indica-se que a(o) profissional acesse o siste-
ma novamente, com seu CPF e senha. Depois, é necessário clicar em “Meus Requerimentos” (em
azul no alto da página) e, em seguida, no requerimento realizado. Siga até que a página informe
a mensagem de protocolo eletrônico gerado. Dessa forma, o CRP-PR poderá receber as informa-
ções para prosseguir com a solicitação.

No entanto, na falta de alguma documentação e consequente dificuldade de visualizar o trâmite


processual na plataforma, indica-se que a pessoa acesse novamente o sistema, com seu CPF e
senha, clique em “Meus Requerimentos” e, em seguida, no requerimento realizado e verifique o
status dos documentos enviados. Assim que a(o) Psicóloga(o) anexar o documento faltante será
possível prosseguir com a solicitação.

Ressalta-se que, após a geração do protocolo eletrônico, é necessário aguardar o prazo de análise
do setor administrativo — que é de até cinco dias úteis — e acompanhar a caixa de entrada e
spam de seu e-mail com frequência para receber a confirmação.

COMO ANEXAR DOCUMENTOS DENTRO DA PLATAFORMA

Há Psicólogas(os) que relatam ter dificuldades em anexar arquivos na plataforma. Para evitar
problemas nessa etapa, listamos a seguir algumas orientações:

- Não enviar fotos de documentos;

- Digitalize o documento em PDF, pois isto oferece maior flexibilidade e compatibilidade com a
maioria dos dispositivos móveis e computadores. Confirme que os arquivos estão com, no máxi-
Para saber mo, 2 MB de tamanho;
mais
- Observe com atenção o local de anexação de documentos e verifique se realizou a anexa-
Se preferir, assista ao ção no local correto — denominado “Documentos a serem anexados”. Caso tenha efetuado em
vídeo com o passo a passo “Documentos complementares”, o sistema não reconhecerá.
disponível na página:

bit.ly/2Qx2R7u ORIENTAÇÕES GERAIS

Por fim, orientamos a todas(os) que é importante realizar a atenta conferência dos dados antes
de prosseguir em qualquer etapa da solicitação. Além disso, ressaltamos que as solicitações para
Pessoa Jurídica devem, obrigatoriamente, ser realizadas através da seção do site referente a proce-
dimentos administrativos de Pessoa Jurídica (disponível em: www.crppr.org.br/pessoa-juridica/),
utilizando o CNPJ.

6 | CONTATO 135
Para a construção

de um corpo
(e uma Psicologia)
que questiona

Por Psic. João Henrique Santos Souza (CRP-08/28624), Psicólogo residente em Saúde da Família e
membro da Comissão Étnico-Racial do CRP-PR

E
m Frantz Fanon: um revolucionário Nos capítulos finais, Deivison descreve o
particularmente negro, publicado pela esforço de Fanon em, mesmo diante da leu-

RESENHA
editora Ciclo Contínuo no ano de 2018, cemia, concluir a obra Os Condenados da
Deivison Mendes Faustino apresenta de forma Terra (1961). Em seus últimos dias, Fanon
elucidativa aspectos importantes da biografia não lamentava o fato de estar morrendo,
de Fanon e das transformações em seu pen- mas de não estar na luta de libertação com
samento. Além disso, apresenta como o autor o povo argelino, processo no qual teve pa-
influenciou movimentos sociais, políticos e in- pel fundamental.
telectuais de diversos campos do saber.
Já nas primeiras páginas de Pele negra,
No capítulo “Os nossos pais, os gauleses”, máscaras brancas, Fanon nos adverte que
Deivison dá visibilidade às incidências da vio- a análise que ele empreende é psicológica.
lência colonial no corpo colonizado. Relata O que essa perspectiva nos diz mais de seis
que Fanon vivenciou tal violência, já que décadas depois? Que, independentemente
nasceu em uma família de classe média na do campo de atuação, é importante pensar
Martinica, à época colônia francesa. O autor os processos de saúde, doença, sofrimento
explica como jovens negros nas Antilhas são e cura de forma não individualizante, mas
educados para se identificarem com os explo- diante de um campo social de possibilida-
radores, o que resulta numa negação absoluta des e determinações que são singularizadas
da humanidade dos nativos. por cada sujeito.

Posteriormente, em “O II Congresso de O trabalho de Deivison agencia o desejo de


Escritores e Artistas Negros”, o autor comenta conhecer profundamente a complexidade Para ler e
sobre a recepção do pensamento de Fanon no do pensamento fanoniano. Isso é importan- saber mais
congresso em Roma (1959). Fanon já possuía te, pois é também a partir da leitura de in-
reconhecimento, sua presença era destaque, telectuais negras(os) de países periféricos, e
mas sua perspectiva era dissonante no even- que colocam em questão lógicas coloniais Frantz Fanon: um revolu-
to. Enquanto havia concepções de Negritude que se perpetuam/atualizam de forma se- cionário particularmen-
associadas a conceitos essencialistas de “ser cular, que sensibilizamos nossa escuta e te negro, de Deivison
negro”, Fanon propunha um devir cultural, em intervenções em um país como o Brasil, Mendes Faustino, 2018
movimento com as lutas pelo fim da explora- onde o racismo é estrutural, mas sistemati- (1ª edição), 144 páginas,
ção colonial. camente negado. Editora Ciclo Continuo

* Referência à prece que finaliza a obra Pele negra, máscaras brancas: “Ô meu corpo, faça sempre de mim um homem
que questiona!” (Fanon, 1952/2008, p. 191)
CONTATO 135 | 7
OS 20 ANOS
REFORMA PSIQUIÁTRICA
DA LEI Nº 10.216:
A LUTA ANTIMANICOMIAL
NÃO SE INICIA NEM
SE ENCERRA EM 2001

E
m 2021, a Lei 10.216, promulgada em meiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS),
6 de abril de 2001, completa 20 anos. em São Paulo – mesmo ano da divulgação da
Considerada um avanço para a Reforma Carta de Bauru, um dos marcos no estabeleci-
Psiquiátrica brasileira ao dispor “sobre a pro- mento das bases fundantes da Reforma. Nesta
teção e os direitos das pessoas portadoras de mesma década a Reforma entra na agenda go-
transtornos mentais” e redirecionar “o mo- vernamental, com a criação do Sistema Único
delo assistencial em saúde mental”, a lei foi de Saúde (SUS) e a redação da Constituição
aprovada após longa e difícil tramitação do Cidadã de 1988.
projeto inicialmente proposto pelo então de-
putado Paulo Delgado. O tensionamento da discussão nos movimen-
tos sociais prepara o terreno para o surgimento
A história da institucionalização da loucura das primeiras Portarias que regulamentam os
no Brasil remonta a meados do século XIX, cuidados em saúde mental – este instrumento
Para saber com a inauguração do primeiro hospital psi- normativo continuaria a ser usado mesmo de-
mais quiátrico, o Hospício Pedro II, em 1852. Mas, pois de 2001 e ajudou a operacionalizar a Lei
foi no início dos anos 1900 que começaram nº 10.216.
Uma incursão histórica a se espalhar pelo país colônias asilares, pu-
mais detalhada sobre xadas pelo exemplo de Juqueri. Em tempos “A trajetória e os percalços desta lei mostram,
os caminhos que leva- de “depósitos de loucos” como o famoso mais uma vez, a polaridade entre instituído
ram à Lei 10.216/2001 Barbacena, em Minas Gerais – que recebiam e instituinte expresso pelas portarias e pelos
está disponível no artigo também outros desvalidos sociais num pro- efeitos das CNSM [Conferências Nacionais de
“Marcos históricos da re- jeto de higienização das cidades – houve Saúde Mental]. (...) Também percebemos qual
forma psiquiátrica brasi- quem levantasse a voz contra as condições é o sentido dominante das forças em ação”,
leira: Transformações na desumanas com que eram tratados. No ar- afirmam Disete Devera e Abílio da Costa-Rosa.
legislação, na ideologia tigo “Marcos históricos da reforma psiquiá-
e na práxis”, de Disete trica brasileira: Transformações na legisla- Vinte anos depois, como veremos nas páginas
Devera e Abílio da Costa- ção, na ideologia e na práxis”, Disete Devera que se seguem – entre artigos e reportagens
Rosa, disponível em: e Abílio da Costa-Rosa atribuem a Ulisses – o equilíbrio de forças se mostra ainda mais
Pernambuco o pioneirismo da Reforma do desigual e as práticas manicomiais que já esta-
bit.ly/39fkdME Modelo Hospitalocêntrico, já na década de vam à espreita estão cada vez mais à vontade
1930. para reinar em seus castelos – sejam manicô-
mios, sejam outras instituições asilares aos
O movimento antimanicomial ganhou forma moldes das comunidades terapêuticas.
e força no Brasil nos anos 1970 e 1980, com a
criação do Movimento dos Trabalhadores de A quem acredita em uma sociedade sem mani-
Saúde Mental. Em 1987 foi inaugurado o pri- cômios, urge seguir lutando!

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POLÍTICAS PÚBLICAS
ENTRE LUTOS E LUTAS,
O COMPROMISSO
Por Psic. Fábio José Orsini Lopes (CRP-08/09877), professor no Departamento de Psicologia
da Universidade Estadual de Maringá (UEM)
*O profissional escreveu a convite da Revista Contato

E
screver sobre os modos de atenção psiquiátricas, sobre “atenções” psicos-
em saúde mental e os 20 anos da Lei sociais. Talvez sejam as grandes discus-
nº 10.216/2001 desencadeia distin- sões a que estamos afetas e afetos, nós,
tas sensações. Inicialmente, a tarefa soa Psicólogas e Psicólogos. Essas discussões
conhecida e familiar. Inúmeras foram as se confundem com a própria formação
vezes em que falamos sobre modos de em Psicologia e perpassam os diferentes
atenção em saúde mental, sobre reformas campos de atuação da categoria.

CONTATO 135 | 9
Mas esta familiaridade, quando atualiza- mental. Lembremos que o marco institu-
da, divide espaço com outros sentimentos cional de criação legal da RAPS ocorreu
e dificuldades. Ao debate tradicional, que somente em 2011. Alguns anos depois ape-
historicamente apontou a oposição entre nas, e sem nem de longe chegar a consti-
os modelos de atenção em saúde men- tuir essa rede, o seu desmonte está hoje
tal (tendo, de um lado, o modelo “hos- exposto. Onde viemos parar dá a medida
pitalocêntrico-asilar-isolacionista-medi- do tom fúnebre.
calizado-medicocentrado” e, de outro, o
“psicossocial-desinstitucionalizante-territo- Historicamente, aquilo que usualmente
rial-comunitário-interdisciplinar”), hoje se chamamos de Reforma Psiquiátrica e de
soma, também, a necessidade de reconhe- Luta Antimanicomial formam um conjunto
cer um nível amplificado de forças e movi- de proposições, de ordem técnica, concei-
mentos econômicos, sociais e políticos. tual e ética, emergidos fundamentalmente
a partir de movimentos de usuárias(os) de
Em abril deste ano, nossa lei de saúde serviços e de profissionais de saúde men-
mental completou duas décadas. Nesse tal, e em contexto de forte questionamen-
vigésimo aniversário, uma boa sugestão to sobre o funcionamento das instituições
de reflexão inclui substituir os parabéns no campo da saúde mental. A partir do
pela execução de algum réquiem, mes- final da década de 1950, movimentos re-
mo que propriamente ainda não fúnebre. formistas ocorreram mais ou menos con-
Sem exagero, basta lembrar que um ani- comitantemente em diferentes lugares no
versário deste, para ser celebrado, deveria mundo. Da experiência institucionalista
ser o da efetivação da Rede de Atenção italiana às comunidades terapêuticas (essa
Psicossocial. Esta rede não apenas não expressão demanda, no Brasil, outro de-
foi efetivada, como agora está puída e bate urgente!) estadunidenses, passando
rasgada. Uma RAPS de fato implantada pela antipsiquiatria inglesa, esses movi-
significaria a existência concreta de dis- mentos foram todos mais ou
positivos de atenção integral não ape-
nas em número suficiente (e isso já
exigiria que fossem várias vezes a
mais que os atuais), mas também
operando em bases comunitária
e territorial, em conexão com
dispositivos de assistência
social, cultura, lazer e es-
porte, associado a modos
de geração de renda e
economia comunitá-
rias, e com suporte de
programas e políticas
de proteção de direi-
tos e ampliação da
condição de cidada-
nia das pessoas em
sofrimento psíqui-
co. Estes, sim, eu
chamaria de moti-
vos para celebrar o
aniversário da nossa
política pública de saúde

10 | CONTATO 135
menos reformistas, e tinham
em comum a crítica ao fun-
cionamento das instituições e
práticas de saúde mental.

No Brasil, é na década de
1970 que o contexto faz sur-
gir os embriões de nossa
reforma. O cenário era o
das lutas pela redemocra-
tização política e social do
país. Distintos movimentos
de base, com forte presen-
ça e influência dos ecle-
siais, passaram a ganhar
força e a reclamar participa-
ção no planejamento e execução
das políticas públicas. No campo da
saúde, a reforma sanitária encabeçaria
um conjunto de transformações que se
avizinhavam, e estes movimentos culmi- que era mais radical sobre a extinção dos
nariam na consolidação do nosso Sistema modelos de atenção isolacionistas, a lei
Único de Saúde e de seus dispositivos foi um avanço e importante marco.
constitucionais.
Hoje, passados vinte anos, somos força-
A Reforma Psiquiátrica brasileira é fruto dos a reconhecer que muito além de mar-
direto desse contexto e emerge também co simbólico não fomos. Este marco, que
entre movimentos sociais de usuárias(os) é teórico, mas também implica a técnica
de serviços e de profissionais de saúde e fundamentalmente a ética do cuidado,
mental. Suas bandeiras e diretrizes bási- não apenas vem sendo ignorado pelos for-
cas exigiam a diminuição dos leitos em muladores de políticas públicas, mas dire-
hospitais psiquiátricos e a não criação tamente atacado, em uma franca e aber-
de novos; a regionalização da assistência ta contrarreforma psiquiátrica brasileira.
psiquiátrica, a partir da oferta de novos Os fundamentos da Atenção Psicossocial,
serviços ambulatoriais em espaços geo- que dialogam com os princípios do SUS e
gráficos de referência; o controle das in- têm na atenção e no cuidado em liberda-
ternações e reinternações psiquiátricas de seus entendimentos mais pacificados
no setor privado; a defesa da ampliação pela história da Luta Antimanicomial,
dos serviços ambulatoriais em saúde com- estão sendo completamente violados,
postos por equipes multiprofissionais; e nos últimos anos. Desde ao menos 2015,
o processo de reinserção social, median- a Coordenação de Saúde Mental do
te a criação de programas de serviços de Ministério da Saúde vem sendo reitera-
residência terapêutica e geração de ren- damente ocupada por figuras alinhadas
da. Em 1989, aquilo que viria ser a Lei nº ao modelo psiquiátrico-hospitalocêntri-
10.216 em 2001 dá início à tramitação nas co-medicalizador-asilar, evidenciando o
salas do legislativo federal. Após esses 12 quanto a expressão Luta Antimanicomial
anos de discussões e audiências, e muitos segue viva, atual e convocatória. No mo-
recuos, é aprovada a lei que regularia os mento em que escrevo (final de fevereiro),
direitos das pessoas em situação de so- a Coordenação Nacional de Saúde Mental
frimento psíquico. Ainda que aprovado o é, exemplarmente, dirigida por eletrocon-
substitutivo da lei inicialmente proposta, vulsoterapeuta. De forma ampla, todo

CONTATO 135 | 11
exegese neopentecostal de instituições
religiosas. Desta infowar e do patrocínio
do modelo de atenção avesso ao psicosso-
cial participam diferentes atores sociais,
associações e organizações de classe,
além de diretores e coordenadores
de clínicas e instituições de natu-
reza privada. Uma articulada
contrarreforma psiquiátrica em
pleno curso.

Entre elementos e desdobra-


mentos concretos, há resolução
que prevê a manutenção dos lei-
tos em hospitais psiquiátricos, ao
passo que veta fechamentos e ex-
pande valores pagos para a inter-
nação nessas instituições; estimula
a criação de novas vagas em hospi-
tais gerais; e propõe a ampliação das
comunidades terapêuticas ligadas ao
setor privado, de caráter religioso, para
atender pessoas que usam álcool e ou-
tras drogas. Há portaria que propõe um
tempo é tempo de luta, mas, às vezes, aumento do valor da diária de internação
isso se torna mais literal. É o caso do para aos hospitais psiquiátricos e amplia
contemporâneo. de 15% para 20% o número de leitos psi-
quiátricos nessas instituições. Também
Entre as características dessa contrarre- determina uma taxa de ocupação de 80%
forma encontramos uma mistura de fa- dos leitos de saúde mental nos hospitais
tores que combinam elementos que vão gerais como condição para recebimento
desde a baixa participação democrática, de verbas.
passando ao largo dos conselhos de con-
trole social, na contramão dos entendi- Enquanto isso, para a RAPS dos equipa-
mentos em pesquisa e ciência em saúde mentos públicos e para a expansão do
mental. No plano da construção de nar- SUS não apenas há teto de investimento
rativas, há a presença de mecanismos público congelado por vinte anos como,
de infowar – ou guerra de informações, agora, governo federal e parlamentares
em tradução livre –, que buscam circular já anunciam a proposição de retirada de
discursos de sustentação das mudanças, piso mínimo de investimento em saúde e
com ênfase na tentativa de descrédito da educação. Por isso, a licença para o tom
RAPS, da atenção psicossocial e, no cam- fúnebre. No apagar da vela de aniversá-
po “álcool e outras drogas”, da lógica da rio da nossa lei de saúde mental, não tem
redução de danos. Esta narrativa é feita festa, não tem bolo, nem balão. A história
em nome de “cientificidade e desideologi- das lutas por políticas públicas em saúde
zação”, mas que não se sustenta quando mental foi sequestrada e está sendo vili-
confrontada com o panorama das pesqui- pendiada. O horizonte é ainda mais som-
sas em saúde mental no mundo todo, e brio que o atual e o cenário desolador
que se mostra contraditória quando arti- convoca a Psicologia a posicionar-se ante
culada com o conservadorismo moral e a a História.

12 | CONTATO 135
Asfixias da RAPS

CARTOGRAFIA DA RAPS
em tempos de
pandemia
Por Psic. Altieres Edemar Frei (CRP-08/20218),
Assessor Técnico de Pesquisas do CRP-PR

No momento da revisão desse texto somos,


no mínimo, 375 mil vezes menos humanos no
Brasil e também acusamos impactos da pan-
demia na (des)configuração da RAPS: urge
discuti-los no mês da Luta Antimanicomial. Para saber
mais

Para saber mais sobre


as ameaças de revo-
gaço na saúde men-
tal, acesse o texto
“Sobre o ‘revogaço’, a
‘raposa cuidando do

P
ara além do risco iminente do Começo com o bate-papo com médi- galinheiro’ ou ‘deixar
revogaço e da imagem de “passar o co psiquiatra Deivisson Viana Dantas morrer’: manobras
trator” nas flores cultivadas com tan- dos Santos, professor adjunto do manicomiais em tem-
ta luta, há muitas outras ações em curso Departamento de Saúde Coletiva (UFPR) e pos de necropolítica”:
que ensejam preocupação com o estado Diretor da Abrasco (Associação Brasileira
da arte da Rede de Atenção Psicossocial de Saúde Coletiva), para quem “é impos- bit.ly/2OTXijg
(RAPS) em tempos de pandemia. Para tra- sível fazer uma análise sobre a RAPS sem
çar algumas linhas sobre esses pontos, considerar uma análise do Sistema Único
pedi “ajuda aos universitários”: entrei em de Saúde” que tem nas recentes mudan-
contato com colegas que estudam e/ou ças ocorridas na concepção da atenção
atuam na RAPS para uma breve cartogra- primária em saúde (agora com financia-
fia anexa à pesquisa de campo. mento “per capita”) outro duro golpe.

CONTATO 135 | 13
revogaço: “até agora, a única políti-
ca de saúde mental apresentada foi
tentar acabar com as políticas exis-
tentes”, aponta Deivisson.

Também conversei com a colega


Nadya Christiane Silveira Pellizzari
(CRP-08/6926), que atua em um
CAPS i (Infantil) em Cambé há 15 anos
e integra a Associação Londrinense de
Saúde Mental, além de representar o CRP-
PR em Conselhos Municipais. Sua preocu-
pação diz respeito ao aumento do fluxo
de internação compulsória de adolescen-
Com isso, “em vários municípios do Brasil tes em tempos de pandemia, que contri-
unidades de saúde foram fechadas, o nú- buem muitas vezes para “estragar o resto
mero de agentes comunitários em saúde da vida desses humanos que já vem com
foi reduzido, assim como outros investi- o rótulo de pacientes toxicômanos do
mentos em recursos humanos e proto- hospital”.
colos técnicos, como linhas-guia de cui-
dado”, comenta. Sem investimentos na Nadya comenta sobre a necessidade de
atenção primária, sem pontos de cone- ampliarmos esse debate, especialmente
xão e ancoragem da RAPS, como susten- no que diz respeito aos modelos de ava-
tar a lógica territorial e comunitária da liação psicológica que, não raro, podem
atenção psicossocial? Lembro que esqui- contribuir para a estigmatização da ado-
zo, em grego, significa fragmentação. lescência e do uso de drogas. Aponta a
necessidade de “resgatar o sentido de
Deivisson é didático: “tivemos uma mi- adolescência e (o debate) sobre o que é
ríade de indução de estratégias políticas normal nessa fase da vida”, referindo-se
que congelou – agora há uma opacida- à diferença entre uso experimental e “de-
de nos dados, um congelamento finan- pendência química”. Articulações com a
ceiro para CAPS [Centros de Atenção vara da infância e estratégias de acolhi-
Psicossocial], redução das equipes mento são outros pontos indicados por
NASFs [Núcleos de Apoio à Saúde da ela para que lutemos contra a “tortura de
Família]. E, em contrapartida, se viu um adolescentes em hospitais psiquiátricos”.
aumento da indução financeira para co-
munidades terapêuticas e leitos hospita- Volto atenções para Paranaguá, no litoral
lares, ou seja, um desfinanciamento da do Estado, onde a Cartografia da RAPS
rede de atenção comunitária e um finan- começou. De lá ouvi o colega Felipe
ciamento da rede de atenção hospitalar. José Silva de Carvalho (CRP-08/15758),
Essa tendência que a gente vê hoje na que agora atua como assistente técnico
pandemia já se mostrava antes em ter- na pasta de saúde mental da Secretaria
mos de política pública”. de Saúde. Felipe comenta sobre as parti-
cularidades do município que conta com
E não é só no que diz respeito à desca- apenas um CAPS e um Ambulatório de
racterização do modelo da RAPS, com Saúde Mental. O NASF, desde o início da
muitos CAPS se “ambulatorizando”, que pandemia, foi desmembrado, com as(os)
se confirma tal estado crítico. Vê-se isso profissionais sendo direcionadas(os) para
a partir da ausência de respostas às de- o cuidado da Covid-19. Eis um indício evi-
mandas de saúde mental na pandemia dente da tal asfixia da RAPS em tempos
e, mais ainda, com a articulação do tal de pandemia.

14 | CONTATO 135
Felipe também comenta sobre a falta de esterilização da lógica da atenção psicos-
recursos humanos e estratégias de forma- social e definição de Projeto Terapêuticos
ção continuada. “Desde quando eu entrei tal qual fossem combos de lanchonete.
no CAPS até hoje, não tive capacitação Vai uma assembleia aí de sobremesa?
nenhuma. É algo que a gente tenta lutar
para mudar esse panorama.” Em seu ponto Maurício também destaca o desmonte do
de vista, as ações judiciais são um sintoma NASF e da atenção primária e seus impac-
do quanto a política de saúde mental não tos nas visitas domiciliares e matriciamen-
foi uma prioridade, e sim uma “tentativa to. “Tudo que já estava meio capengando
de remendo”. Atualmente há tramitando ficou muito suspenso e, segundo alguns
termos de ajuste de conduta via Ministério trabalhadores com quem converso, todas
Público para implantação de CAPS Ad essas pessoas que não tinham como fazer
(álcool e outras drogas), CAPS II e CAPS nem mesmo a consulta com o psiquiatra,
i na região, além de Serviço Residencial com o clínico geral, as de sofrimento mo-
Terapêutico. A pandemia também impacta derado, foram procurar cuidado no CAPS.”
as ações de planejamento e adia a implan-
tação desses serviços na RAPS. É essa descaracterização da lógica da
atenção psicossocial ou ambulatoriza-
Há também uma outra reconfiguração ção dos CAPS que preocupa Maurício.
de ambientes em curso: “A pandemia im- “Começaram a chegar muitas pessoas
pôs a dificuldade com os atendimentos para acolhimento que nunca tinham pro-
presenciais, e o CAPS tem sentido muito curado o CAPS. Então aquela discussão
isso. Conversando com a equipe na sema- que fazíamos sobre como implicar a aten- Para saber
na passada, eles comentaram que a difi- ção primária para que o CAPS pudesse se mais
culdade maior tem sido a adesão, muitos dedicar aos casos que demandam mais
pacientes já dispersaram. Sem aquele am- atenção, de maior complexidade, isso
O CRP-PR protocolou
biente, aquela referência... isso faz muita está muito em risco. O meu medo é que
no Conselho Estadual
diferença”. No ambulatório, entretanto, o essa discussão seja enterrada, esquecida
de Saúde do Paraná
que se percebe, segundo Felipe, é um au- no pós-pandemia, que isso se naturalize”,
uma importante
mento de demanda, principalmente casos comenta.
moção contrária à
ligados a ansiedade e depressão.
ampliação de leitos
Do outro lado do Estado, troquei umas
psiquiátricos no
Preocupações apontadas também pelo mensagens também com a colega Psicóloga
Estado. Saiba mais
colega Maurício Marinho Iwai (IS-593), Jéssica Jorge Francisco (CRP-08/23407)
no texto "Atuação do
atual representante do Conselho Regional trabalhadora da 14ª regional de saúde, na
CRP-PR no Conselho
de Psicologia do Paraná (CRP-PR) no região de Paranavaí, noroeste do Paraná.
Estadual de Saúde
Conselho Estadual de Saúde. Maurício Jéssica comenta sobre como se deu a ins-
do Paraná garante
fala “do mesmo medo de sempre, ou seja, tauração da pandemia e o impacto nos ser-
avanços na política
a RAPS ser reduzida a ambulatório, pu- viços da rede e comenta como foi a constru-
de Saúde Mental",
xadinho do hospital psiquiátrico, como ção dessas orientações: “Em um primeiro
disponível na edição
há relatos em Curitiba, com medicação momento eu tomei a iniciativa de fazer um
março/abril 2020 da
e oferta de grupos terapêuticos, como documento de orientações e depois de al-
Revista Contato:
se fosse um cardápio. Com a pandemia, gum tempo a SESA [Secretaria Estadual
esse receio aumentou”, diz, preocupa- de Saúde] também fez uma nota de orien-
bit.ly/2OTXijg
do com isso que podemos definir como tação. Construí um documento baseado

CONTATO 135 | 15
na resolução do CRP-PR (Nota Técnica equivocados: “É o caso de uma pessoa que
bit.ly/3faJ0Wc nº 01/2020) e em outros materiais que ro- diz que usou drogas em algum momento,
davam na internet; os CAPS continuaram e é encaminhada direto para o CAPS Ad”,
os atendimentos individuais, o atendimen- ressalta uma das minhas interlocutoras.
to inicial, mas paralisaram os grupos tera- Indício do estigma “usou drogas, tem que
pêuticos”, comenta, destacando os esforços se tratar”, que aponta para o quanto pre-
para manutenção do apoio matricial em cisamos avançar na dimensão sociocultu-
saúde mental na região. ral da Reforma Psiquiátrica, ainda mais
em tempos extremos como estes.
Também conversei com colegas de um
CAPS que visitei durante a etapa de cam- Também comentaram sobre o imbróglio
po da Cartografia da RAPS. Elas pediram envolvendo o fluxo com comunidades
para não serem identificadas, apesar de terapêuticas e a demanda por “consultas
comentarem algumas sutilezas especí- psiquiátricas” advindas dali, ainda que
ficas do território, do CAPS onde traba- houvesse um critério de “não receberem
lham, da forma como o serviço é gerido e pessoas que fazem uso de medicação nas
dos contextos socioculturais do município Comunidades Terapêuticas religiosas”.
– que são bem singulares, passando por Quando abalos à laicidade do Estado são
um processo de terceirização do trabalho quase naturalizados, não parece exagero
via gestão por consórcios. afirmar que esse tipo de fé cega (e) asfi-
xia a RAPS. Dá até pra imaginar quantos
Um destes pontos diz respeito ao agenda- canteiros de obra e quanto material de
mento direto, via Central de Regulação, construção há amontado em comunida-
de casos para triagem no CAPS, resul- des terapêuticas neste momento.
tando em muitos encaminhamentos
Se hoje nos cabe, infelizmente, afirmar
que somos um tanto menos humanos,
não é exagero afirmar que a descaracte-
rização da RAPS em muitos territórios e
a reordenação da atenção primária em
saúde, tanto com respeito ao seu mo-
delo de financiamento como na de-
sarticulação da Estratégia de Saúde
da Família e das equipes NASFs e o
processo de ambulatorização dos
CAPS, podem nos trazer outras
asfixias. E a demanda por cuida-
dos em saúde mental não pare-
ce que irá diminuir, muito pelo
contrário.

A Luta Antimanicomial hoje é tam-


bém luta para que o SUS, a RAPS e
todos nós possamos respirar em liber-
dade, sem asfixias, contenções químicas
ou mordaças.

16 | CONTATO 135
A COR DA
LOUCURA
Por que é preciso que a luta antimanicomial seja
antirracista e antiproibicionista?
Por Ellen Nemitz

“Não me incomodo muito com o Hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da política na minha vida. De mim

para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as

dificuldades de minha vida material, há seis anos, me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura, de delírio.”

“Esse pátio é a coisa mais horrível que se pode imaginar. Devido à pigmentação negra de uma grande parte dos doentes

aí recolhidos, a imagem que se fica dele, é que tudo é negro. O negro é a cor mais cortante, mais impressionante; e

contemplando uma porção de corpos negros nus, faz ela que as outras se ofusquem no nosso pensamento.”

CONTATO 135 | 17
A
s citações que abrem este texto são Este apagamento do conhecimento gera-
de Lima Barreto, escritor do século do por pessoas negras é crucial para en-
XX, negro e vítima do sistema mani- tender o que acontece nos equipamentos.
comial. Cerca de um século depois dos es- “A desumanização que a população negra
critos reunidos na obra “Diário do Hospício: sofreu desde a escravidão e que reverbe-
o cemitério dos vivos” – que data dos anos ra na sociedade extremamente racista até
1920 –, vivemos talvez um dos momen- hoje traz um sofrimento psíquico diferen-
tos de maior fragilidade das conquistas ciado. Se não abordarmos estas questões
do movimento antimanicomial brasileiro. nos estudos, na academia, isso vai atingir
Entre ameaças de revogação de Portarias, a forma como atendemos esta população,
aumento no investimento em leitos psi- podendo reproduzir essa desumanização”,
quiátricos e desmonte da Rede de Atenção avalia Juliana.
Psicossocial, há ainda pontos a se avançar:
a Reforma Psiquiátrica brasileira não lo- A Psicóloga Suzete Ferreira dos Santos
grou ser antirracista e antiproibicionista. (CRP-08/14505), que se graduou no Rio de
Janeiro e hoje atua em um CAPS paranaen-
Não é que este olhar não estivesse presente se, lembra de quando atendeu uma pacien-
na concepção da Luta. Segundo trecho da te negra e o que ouviu dela ao realizar o
Carta de Bauru, documento de 1987 impor- acolhimento: “Você é igual a mim. Você
tante na fundação das bases da Reforma não tem medo de mim, você é preta como
Psiquiátrica que se seguiu, as instituições eu”. As palavras, que são relatadas no ví-
manicomiais são uma “expressão de uma deo Narrativas Afirmativas, produção da
Para saber estrutura, presente nos diversos mecanis- Comissão Étnico-Racial (CER) do CRP-PR,
mais mos de opressão desse tipo de sociedade”. retratam o quanto o racismo estrutural
Neste sentido, cita a opressão perpetrada que existe no Brasil resvala até mesmo
Assista ao ví- nas “fábricas, nas instituições de adoles- onde deveria prevalecer o acolhimento.
deo Narrativas centes, nos cárceres, a discriminação con-
Afirmativas em : tra negros, homossexuais, índios, mulhe- “A Luta Antimanicomial começa com a
bit.ly/3uNjJ8R res”, para finalizar: “Lutar pelos direitos de proposta de não ser reprodutora na saúde
cidadania dos doentes mentais significa mental de opressões estruturais, contra
incorporar-se à luta de todos os trabalha- pessoas negras, mulheres, porque o mani-
dores por seus direitos mínimos à saúde, cômio é uma instituição de reprodução de
justiça e melhores condições de vida”. opressões. Só que, num país que foi esta-
belecido em cima do trabalho escravo e
O problema, segundo especialistas que con- até hoje o genocídio da população preta
tribuíram com esta reportagem, é que estas está em curso, não falar sobre essas ques-
ideias não se refletiram na prática como de- tões é reproduzi-las”, avalia Juliana Pereira.
veriam, a começar pela ausência de auto- O Psicólogo Jefferson Olivatto da Silva
ras(es) negras(os) nos currículos dos cursos de (CRP-08/13918), professor da Universidade
Psicologia. “Estas populações são citadas [na Estadual de Londrina e membro do CER e
Carta de Bauru], mas no campo acadêmico, de outros grupos que abordam a temática,
por exemplo, a gente não vê um aprofunda- concorda, citando os mesmos antecedentes
mento destas questões. A gente tem o [Franz] do colonialismo europeu calcado na falta
Sobre Franz Fanon, Fanon, a Neuza Santos. Quantos desses au- de empatia e na crueldade: “Assim pode-
leia também a rese- tores a gente estuda quando a gente está mos, de fato, entender que há diferenças
nha “Para a constru- falando de Luta Antimanicomial?”, questio- tanto na sintomatologia do sofrimento psí-
ção de um corpo (e na a Bacharel em Psicologia Juliana Pereira, quico, bem como na complexidade de seus
uma Psicologia) que que atua em um CAPS (Centro de Atenção condicionantes imagéticos e emocionais
questiona”, na pági- Psicossocial) do Rio de Janeiro desde a gra- para um diálogo necessário entre a luta an-
na 6 desta edição. duação, como estagiária, e hoje é oficineira. timanicomial e antirracista”, conclui.

18 | CONTATO 135
O profissional destaca que, desde os tem-
pos de Barbacena, em Minas Gerais – um
dos maiores manicômios do século XX,
para o qual eram enviados desde os ditos
loucos até “meninas virgens engravidadas
por patrões, epilépticos e homossexuais”
–, "a discussão antimanicomial tende a ser
inócua sem a construção de uma rede de
empoderamento psicossocial desta popu-
lação que em sua grande maioria eram
bisnetos(as) e netos(as) de pessoas que vi-
viam em condições de extermínios e esgo-
tamentos produzidos pela escravização".

Ainda hoje, com a Reforma Psiquiátrica


em curso, o olhar para a questão racial
está aquém do ideal. “Precisamos nos
atentar para sair do lugar comum da Luta
Antimanicomial para conseguir observar
as invariantes dos efeitos psicossociais do
racismo. A população negra, indígena e
cigana e seus descendentes estão pros-
critas do cuidado integral nos protocolos
de saúde mental. Uma vez massivamente
institucionalizada ou nem considerada a
existência desses povos como ser humano
pleno para o devido atendimento, há ca-
minhos a serem desvelados na formação
e no fazer terapêutico para a construção
social, técnica e epistemológica de ruptu-
ras do racismo estrutural.”

PRÁTICAS MANICOMIAIS – OU AS OU-


TRAS CORRENTES QUE APRISIONAM

As populações negras e periféricas são du-


plamente penalizadas quando se fala em
práticas manicomiais. Primeiro, porque
não são consideradas na elaboração das
políticas de cuidado em saúde mental, e
segundo porque também são as principais
vítimas do proibicionismo, base da guerra
às drogas e do superencarceramento. “Se
desde do início da Luta Antimanicomial,
quer por Franco Basaglia na Itália, quer
por Thomaz Szasz nos EUA ou Nise da
Silveira no Brasil, buscaram desalienar as
práticas de encarceramento manicominal,
não houve avanço satisfatório que alivias-
se as populações negras, indígenas e seus

CONTATO 135 | 19
descendentes inter-raciais das instituições fissionais e equipamentos conscientes das tra-
prisionais ou do próprio assassinato”, sa- mas de marginalização e exclusão. “Revelar
lienta Jefferson. esses aspectos com o auxílio das outras ciên-
cias humaniza a vulnerabilidade de cada área
Na prática, as principais formas de encarce- em sua angústia por uma totalidade inter-
rar – seja em penitenciárias ou em comuni- pretativa e neutra. A atitude interdisciplinar
dades terapêuticas – são a guerra às drogas pode nos servir como uma arqueologia das
e a patologização da pobreza, como resu- relações psicossociais para adentrarmos na
me Juliana Pereira – aqui identificada pela horrenda construção do racismo brasileiro”,
alcunha Camará, que faz referência à co- explica.
munidade onde nasceu e cresceu no Rio de
Janeiro – no artigo “A Luta Antimanicomial Por fim, a interculturalidade seria, na opi-
será antirracista ou não será”. “Um estu- nião do Psicólogo, elemento-chave para
do de Scisleski de 2008 mostrou como em que se observem estatísticas e caracterís-
internações psiquiátricas de jovens existe ticas próprias das populações negras, qui-
um perfil que se caracteriza em pobreza lombolas e indígenas. “É passada a hora de
socioeconômica, baixa escolaridade e uso este debate se debruçar sobre a especifi-
de drogas. Assim, a internação psiquiátrica cidade dos condicionamentos psicossociais
funciona como uma atribuição da margi- racistas de pessoas negras e indígenas”,
nalidade causada pela desigualdade social, diz, lembrando que a população indígena
como doença e/ou como condição existen- é a que tem a maior taxa de suicídio do
cial”, diz, lembrando que negras e negros Brasil – até três vezes maior que entre a po-
perfazem 75% da população mais pobre pulação em geral, com índices que chegam
e vulnerável no Brasil. Segundo a autora, a 20 óbitos por 100 mil habitantes.
o proibicionismo é mascarado de saúde
pública, mas acaba penalizando de forma “Se houvesse interesse em romper com a

“A Luta Antimanicomial mais contundente as pessoas – especial-


mente jovens – negras, enquanto abranda
alienação de nossas histórias, muito prova-
velmente teríamos políticas públicas que
começa com a proposta as penas destinadas a pessoas brancas iden- contassem como parâmetro decisório a de-
de não ser reprodutora na tificadas com drogas consideradas ilegais. sagregação de dados estatísticos regionais.
“Assim lutar pela política de Redução de Assim correlacionaríamos as condições
saúde mental de opressões Danos proposta na Reforma Psiquiátrica e com os fatores psicossociais e históricos da
estruturais, contra pela reversão das práticas proibicionistas é população em situação de rua, da popula-
uma pauta que precisa ser racializada com ção LGBTQI+, das instituições prisionais ou
pessoas negras, mulheres,
urgência”, finaliza. socioeducativas ou profissionais do sexo.
porque o manicômio Sem políticas de Ações Afirmativas nesses
é uma instituição de INTERDISCIPLINARIDADE E setores, prevalece o uso de violência como
INTERCULTURALIDADE instrumento de perversidade social para
reprodução de opressões. o alívio das tensões sócio-históricas ou re-
Só que, num país que foi Na análise de Jefferson Olivatto da Silva, vestida de uma obstinada compaixão nas
estabelecido em cima existem três pressupostos que são funda- institucionalizações compulsórias dos inde-
mentais para combater os "pontos cegos" sejados, como afirmaram Franco Basaglia,
do trabalho escravo e da Luta Antimanicomial: interculturalida- Nise da Silveira e Thomas Szasz. Outrossim,
até hoje o genocídio da de, interdisciplinaridade e ético-político. o pressuposto ético-político deve insistir no
A interdisciplinaridade é descrita por ele recorte étnico-racial, desde o acolhimento,
população preta está
como “instrumento pedagógico para a diagnóstico, tratamento e prognóstico, se-
em percurso, não falar promoção da saúde mental de forma não a luta antirracista esbarrará nos equipa-
sobre essas questões é equitativa”. Neste sentido, o Psicólogo des- mentos ora com o elusivo discurso de neu-

reproduzi-las. ” taca a importância de uma formação de pro- tralidade científica e acadêmica ora com o
de questão orçamentária”, finaliza.
Juliana Pereira

20 | CONTATO 135
CONSERVADORISMO E O RETROCESSO
NA SAÚDE MENTAL Para ler e
“O pressuposto
saber mais ético-político deve
Falar de saúde mental em 2021 é falar de insistir no recorte
um campo em que as forças conservado- “A luta antimanicomial
será antirracista ou não
étnico-racial, desde
ras e progressistas disputam sem trégua
o cabo de guerra – e o termo guerra aqui
será”, de Juliana Camará o acolhimento,
não poderia ser mais literal, dadas as (ne- bit.ly/39gYnIF diagnóstico,
cro)políticas em curso que desprivilegiam
as classes historicamente vulnerabiliza- “Diário do Hospício: o
tratamento e
das. No artigo “Luta Antimanicomial e ra-
cemitério dos vivos”, de
Lima Barreto
prognóstico, senão
cismo em tempos ultraconservadores”, o a luta antirracista
mestrando e a doutora em Serviço Social, bit.ly/3nc364k
respectivamente, Tales Willyan Fornazier
esbarrará nos
Moreira e Rachel Gouveia Passos, fazem Carta de Bauru 1987 equipamentos ora
esta leitura contemporânea nos idos de com o elusivo discurso
bit.ly/39fRY0r
2018 (muito antes da pandemia e suas avas-
saladoras consequências). “A pouca aproxi- de neutralidade
mação da Reforma Psiquiátrica e da Luta
“Luta Antimanicomial, científica e acadêmica
Antimanicomial com a Luta Antirracista racismo e o avanço do
conservadorismo em tem- ora com o de questão
demonstra o quanto ainda podemos estar
vulneráveis e frágeis para avançarmos com
pos ‘temerosos’”, de Tales
Willyan Fornazier Moreira
e Rachel Gouveia Passos.
orçamentária. ”
questionamentos sobre as novas expres- Jefferson Olivatto da Silva (CRP-08/13918)
sões do manicômio na atualidade. Em tem-
bit.ly/2PPEHVk
pos de retrocessos torna-se urgente uma
intersecção entre as lutas e ações para
combater práticas manicomiais que estão
assentadas no racismo, no patriarcado e
no colonialismo”, dizem.

Na busca por uma sociedade (realmente)


sem manicômios, é preciso voltar o nosso
olhar para o papel que as práticas manico-
miais exerceram e ainda exercem no con-
trole dos corpos que fogem a uma norma-
lidade ditada por certos homens, brancos
e detentores do poder econômico – “para
os/as negros/as a cor da pele sempre foi
um fator de risco”, afirmam os autores
Tales e Rachel – e desfazer as bases que
sustentam o racismo e a invisibilização
destas populações. “A nossa luz tem que
ser sobre essas questões, porque nós não
somos um recorte, nós somos a maioria,
mas continuamos invisibilizados e esque-
cidos”, conclama Juliana Pereira.

CONTATO 135 | 21
Da ayahuasca ao MDMA,

psicodélicos podem ser aliados na terapia


Entrevista realizada por Valkyria Dantas Rattmann, com supervisão de Ellen Nemitz
ENTREVISTA

O
s primeiros passos da Associação cessidade de se promover “debates, refle-
Psicodélica do Brasil (APB) datam xões e produz uma série de conteúdos para
de 2012, quando foram realizados a ciência psicodélica brasileira”.
os encontros sobre psicodélicos na Frente
Estadual Drogas e Direitos Humanos. Mas Beserra é especialista em Teoria e Prática
foi em maio de 2015 que o grupo realizou Junguiana, pela Universidade Veiga de
sua primeira reunião formal e, desde então, Almeida (UVA), e em Saúde Mental e atenção
seus membros vêm atuando nas pesquisas e psicossocial pela Fiocruz, além de mestre e
ações práticas em prol da redução de danos doutorando em Psicologia Clínica no Núcleo
e sobre o uso de psicodélicos na terapia. de Estudos Junguianos na PUC-SP. Nesta en-
trevista exclusiva para a Revista Contato, ele
O Psicólogo Fernando Beserra (CRP- fala sobre as origens dos estudos sobre o uso
05/37795) é cofundador da APB e lembra de psicodélicos e os principais avanços con-
que a motivação para se fundar um grupo quistados, além de analisar questões técnicas
de estudos e práticas nesta área – que hoje e éticas envolvendo sua aplicação em proces-
cresceu e conta com núcleos e participan- sos terapêuticos e projetar a importância da
tes de diversas regiões do país – foi a ne- correta regulamentação desta prática.

22 | CONTATO 135
CONTATO: COMO FUNCIONA A PSICO-
TERAPIA ALIADA A PSICODÉLICOS?

Fernando Beserra: Os psicodélicos fa-


zem um conjunto de novas conexões ce-
rebrais e geram uma viagem intrapsíquica
com afeto extremamente potencializado,
fazendo com que a pessoa possa ressig-
nificar sua própria vida e experiências
anteriores. É como se houvesse algo ex-
tremamente fechado e os psicodélicos
abrissem possibilidades de ressignificação
de certas memórias, pensamentos e fan-
tasias. Depois, com o trabalho clínico é
necessário elaborar aquelas experiências.
estadunidense que, de alguma maneira,
O uso de psicodélicos enquanto medica- ameaçava os esforços de guerra e de pro-
mento não é realizado em casa; são subs- dução social que aconteciam nos Estados
tâncias vinculadas a um processo psicote- Unidos. Ao proibir os psicodélicos para o
rapêutico e a um certo contexto que se uso social, o uso terapêutico também foi
cria de suporte. O método depende do impactado, porque deixou de ser financia-
cenário, das técnicas, da criação de um es- do e se tornou muito difícil de conseguir
paço seguro; isso possibilita o aprofunda- autorização [para usá-las].
mento psíquico e demanda profissionais
capacitados para realizar um suporte sem COMO O SENHOR AVALIA O ATUAL
preconceito, não estigmatizante e empá- MOMENTO EM TERMOS DE PESQUI-
tico para o paciente. O processo envolve SAS E APLICAÇÕES DOS PSICODÉLI-
ainda acompanhamento por dois profis- COS E QUAIS OS PRINCIPAIS USOS JÁ
sionais de saúde mental, normalmente CONHECIDOS?
de gêneros distintos, por diversas horas,
a depender da substância, e normalmente Atualmente, vivemos um momento cha-
só é realizado após duas sessões de psico- mado de “Renascimento Psicodélico” ou
terapia regular. o “Novo Renascimento Psicodélico”, que
está relacionado à produção de pesquisas
O USO DE PSICODÉLICOS EM TERAPIAS científicas sobre psicodélicos. No início
PASSOU POR DIVERSOS MOMENTOS dos anos 2000, o médico Rick Strassman
NO BRASIL E NO MUNDO, MAS SEUS produziu uma pesquisa com dimetil-
ESTUDOS TÊM AVANÇADO RECENTE- triptamina (DMT), nos Estados Unidos,
MENTE. O QUE EXPLICA A RESISTÊNCIA que é considerada um dos marcos desse
DE PARTE DA SOCIEDADE AO USO DE Renascimento. A partir daí, há um gran-
PSICODÉLICOS? de conjunto de publicações, por exemplo,
sobre a importância da psilocibina extraí-
Nos últimos quarenta anos, mais ou me- da (princípio ativo dos chamados “cogu-
nos, houve o declínio e quase extinção melos mágicos”) utilizada no contexto da
das pesquisas com o uso terapêutico de psicoterapia, em especial, no tratamento
psicodélicos no contexto da psicotera- de depressão e ansiedade em pacientes
pia, em grande parte devido a medidas com doenças terminais.
de proibição do uso social e recreativo.
Esse declínio foi também fruto de um Houve também pesquisas importan-
movimento político voltado, especial- tes com metilenodioximetanfetamina
mente, à criminalização da contracultura (MDMA), princípio ativo do ecstasy, que

CONTATO 135 | 23
tem sido empregado no tratamento de HÁ ESTUDOS, TAMBÉM, QUE RELACIO-
estresse pós-traumático – uma média dos NAM O USO DE PSICODÉLICOS EM CA-
principais psicofármacos usados para estres- SOS DE USO ABUSIVO DE ÁLCOOL E OU-
se pós-traumático conseguiam por volta de TRAS DROGAS?
30% de sucesso terapêutico para remissão
de sintomas, e as primeiras pesquisas com No Brasil há, por exemplo, estudos sobre
psicoterapia aliada ao uso de MDMA con- o uso da ibogaína em psicoterapia para
seguiram 85%. Hoje, com mais de 65% de tratamento de dependência tanto de
sucesso, as pesquisas com MDMA estão em opiáceos quanto de cocaína/crack. Temos
fase 3, muito próximas do processo regula- ainda muitos estudos em “momento em-
tório para uso, de fato, em clínicas. brionário” mostrando a importância da
ayahuasca no tratamento da dependência
EM QUE MEDIDA O BRASIL PARTICIPOU de álcool, por exemplo. Há também estu-
– E PARTICIPA – DESTES AVANÇOS? dos com a psilocibina usada tanto para ta-
bagismo quanto para dependente de ou-
O Brasil tem um histórico incrível de pes- tras substâncias, como o próprio álcool. O
quisas com psicodélicos, principalmente LSD tem um uso histórico com dependên-
no campo das Ciências Humanas, em es- cia de álcool com excelentes resultados.
pecial da Antropologia e Ciências Sociais.
Pesquisadores como Edward Macrae, Bia É importante frisar que os psicodélicos
Labate, Henrique Carneiro, Sandra Goulart clássicos têm baixíssimo potencial de de-
e pesquisadores da saúde como Dartiu pendência. O MDMA tem um potencial um
Xavier da Silveira, Luís Fernando Tófoli, en- pouco maior, mas, mesmo assim, é muito
tre outros, vinham pesquisando essas subs- baixo. Se usado na clínica um conjunto ir-
tâncias, mas há um crescimento exponen- risório de vezes não há evidência de se ter
cial a cada ano. Há uma tradição no Brasil criado dependência para essas pessoas.
e, graças a ela, temos hoje uso religioso re-
gulamentado, por exemplo, da ayahuasca,
que é um sucesso internacional.
A REDUÇÃO DE DANOS EM CONTEXTO
No Brasil, não se pode, simplesmente, impor- DE FESTA PODE SER COMPARADA A UM
tar modelos produzidos fora, principalmente PROCESSO TERAPÊUTICO?
nos Estados Unidos e na Europa, porque gran-
de parte dessa ciência tem sido organizada O que a gente faz na redução de danos
para fins de tratamento em clínicas privadas, em contexto de festas não é uma psico-
e o Brasil é um país com uma desigualdade terapia, porque eu não conheço a pessoa
atroz que tem se aprofundado nos últimos que chega ao stand para receber aten-
anos. Diante desse cenário de enfraqueci- dimento: eu não sei seu histórico de uso
mento do Sistema Único de Saúde (SUS) e de de substâncias, suas questões pessoais, o
aguda desigualdade, temos nossas missões que ela está vivendo. Eu a atendo da me-
não só constitucionais pela defesa do pró- lhor forma possível, como redutor de da-
prio sistema de saúde e direito à saúde, mas nos. Por mais que ela possa ter uma expe-
também o dever ético e político de olhar para riência positiva de transformação naquele
essa realidade e tentar construir um modelo momento, esse não é o meu principal ob-
de ciência psicodélica ideal para o Brasil. jetivo, o foco é em reduzir danos.

24 | CONTATO 135
No caso da terapia psicodélica o contexto HÁ LEGISLAÇÃO BRASILEIRA PARA
é outro. Você já conhece a pessoa, faz ses- APLICAÇÃO DE TRATAMENTOS COM
sões de psicoterapia regular, entende sua PSICODÉLICOS EM PACIENTES? HÁ AL-
história, cria um vínculo. Além disso, você GUM PAÍS NO EXTERIOR QUE JÁ TENHA
sabe exatamente a substância que está REGULAMENTADO ESSA PRÁTICA?
sendo utilizada e a quantidade. Depois,
há sessões de integração nas quais se tra- Estamos começando a ver diferentes pro-
balha o que foi vivido. É o trabalho da cessos de regulamentação acontecendo,
própria psicoterapia: contribuir para a ela- mas no Brasil o uso em terapia ainda não
boração ou integração das experiências. é regulamentado, ainda que alguns psico-
délicos não sejam proibidos.
COMO O MORALISMO AFETA A ADESÃO
A ESTES TRATAMENTOS? Hoje há uma grande aceitação desse de-
bate, mas ele ainda está muito preso a um
As pesquisas, certamente, são muito di- viés medicalizante, biologizante e, por
ficultadas por esse estigma. Há um con- isso, vejo cada vez mais necessidade de
junto de dificuldades e barreiras a serem a Psicologia entrar de cabeça no debate
vencidas. Recebemos ataques, inclusive sobre o uso dos psicodélicos no campo da
judiciais, e enfrentamos também a indús- saúde e na psicoterapia. É fundamental,
tria farmacêutica – o que é desafiador, também, que os Conselhos observem o
pois há toda uma tradição no Brasil de processo regulatório, porque precisamos
uso de psicodélicos por povos originários, discutir não só a eficácia da terapia psi-
como a própria ayahuasca. Então, há o es- codélica, mas também o âmbito político.
tigma da proibição e a influência do lado Será necessário discutir questões sociais
comercial que, às vezes, vem oculto. pois, caso contrário, a psicoterapia psico-
délica no Brasil será uma ciência elitista.

Em outros países, há alguns avanços


também. Nos Estados Unidos, o
Estado do Oregon, por exem-
plo, tem uma regulamen-
tação em andamento, mas
ainda é uma regulamentação
híbrida e não totalmente de
saúde, pois cria uma nova catego-
ria profissional que, de certo modo,
seria como a de agente de redução
de danos. Em Israel também acon-
teceu uma regulamentação, para
algumas populações, do uso de
MDMA.

Há também os usos que não


são regulados, por exemplo, os
realizados de forma milenar por
povos originários. Em uma even-
tual regulamentação, precisamos
respeitar esses usos para que não
sejam criminalizados ou colocados
de lado.

CONTATO 135 | 25
COMO O SENHOR AVALIA OS DILEMAS DE QUE FORMA OS AVANÇOS NO USO
ÉTICOS EM RELAÇÃO AO USO DE PSICO- DE PSICODÉLICOS, BASEADOS EM ES-
DÉLICOS NA TERAPIA? TUDOS CIENTÍFICOS, IMPACTAM NA
FORMA COMO SE TRATAM SOFRIMEN-
É preciso sempre avaliar os benefícios TOS PSÍQUICOS?
e riscos em qualquer modalidade de su-
porte. Os riscos dos psicodélicos existem, Esta é uma revolução no campo da saú-
como no uso de qualquer droga, de qual- de mental, não só por conta da eficácia
quer medicamento, mas eles são tratados ou da efetividade do tratamento: é uma
de forma supervalorizada. Devemos olhar revolução paradigmática. Muda todo um
para essa questão a partir da evidência modelo de separação entre aquilo que é
científica. Se juntarmos as pesquisas com do tratamento biológico, bioquímico, e
psilocibina, MDMA, LSD, ayahuasca e ou- aquilo que é do tratamento psicológico.
tros psicodélicos, não houve até o mo- Ela aproxima o campo da medicina, o
mento nenhuma reação grave. campo da Psicologia e, mais do que isso,
um campo social importante que está vin-
Também é necessário treinar bem as pes- culado a esse debate.
soas que vão supervisionar as aplicações,
com cuidados éticos e técnicos. Quando há
duas pessoas e alguém está sob efeito de
um psicodélico, obviamente essa pessoa
está mais vulnerável naquele momento.
Então é preciso tomar muito cuidado para
que não haja nenhum tipo de assédio e
nenhum tipo de violência psicológica. Se
formar em Psicologia, Psiquiatria ou em
outra área não habilita automaticamente
a ser um psicoterapeuta que atenda ses-
sões com uso de psicodélicos.

Outro ponto é o debate racial e de gêne-


ro, já que a experiência psicodélica pode
reviver traumas culturais e geracionais.
Para assistir e É muito importante criar esses debates e
saber mais reflexões no âmbito do treinamento e das
capacitações de profissionais que vão po-
Live: “Luta der dar suporte à terapia psicodélica para
Antimanicomial e que não seja algo excludente.
Psicodélicos”, da
Associação Psicodélica
do Brasil.

bit.ly/2PiJbDZ

Fernando Beserra (CRP-05/37795) é Psicólogo,


pesquisador e um dos fundadores da Associação
Psicodélica do Brasil.

26 | CONTATO 135
Quase da família
Dificuldades de acesso a direitos

e aspectos estruturais como o

racismo colocam trabalhadoras

domésticas em risco de saúde

mental e de Covid-19

Por Karla Losse Mendes


Ela me disse que precisava ajudar eles Um documento da Comissão Econômica

TRABALHO
a passar essa fase difícil.” O casal de para a América Latina e o Caribe (CEPAL),
classe média alta adoece de Covid-19. ligado às Nações Unidas, destacou o risco
Se isola em casa, ou quase. Exige a presen- para essa categoria de trabalhadoras, ape-
ça da trabalhadora doméstica, protegida sar de elas ocuparem “um lugar crucial
por apenas uma máscara simples de pano. dentro da resposta à Covid-19, pelo papel
Ela se nega, diz que tem medo de adoecer. central que desempenham no cuidado de
Compartilha a casa com a mãe idosa. Mas, crianças, pessoas doentes e dependentes,
um argumento a convence: a “patroa” re- bem como na manutenção de lares, incluin-
lembra que já a “ajudou muito na vida” e do também a prevenção do contágio do
que nesse momento de dificuldade “ela não vírus.” Apesar dessa importância, segundo
podia faltar”. A trabalhadora cede. Adoece a CEPAL essas trabalhadoras têm menor
no trabalho. Morre. A mãe adoece. Morre renda – cerca de 50% menos que a média
também. Ambas negras. de outros trabalhadores ocupados, em sua
grande maioria necessitam utilizar o trans-
O relato foi publicado pela filha, num gru- porte público e não recebem informações
po do Facebook que reúne denúncias de ou equipamentos de proteção mínimos
exploração do trabalho doméstico remu- para executar seu trabalho com condições
nerado no Brasil. A precariedade se tornou mínimas de segurança.
ainda mais grave no contexto da pandemia
do coronavírus. Na categoria, de acordo A denúncia narrada no início desta repor-
com dados do IPEA (Instituto de Pesquisa tagem não é isolada. Exploração, assédio
Econômica Aplicada), a informalidade che- moral e sexual, remuneração abaixo do sa-
ga a 70%, não permitindo que as trabalha- lário mínimo e humilhações diversas como
doras tivessem acesso a mecanismos que a revista de bolsas e pertences na saída
permitiriam se ausentar do trabalho para do horário de trabalho e a negativa de ali-
realizar o distanciamento social necessário. mentação e até de água são expostos em

CONTATO 135 | 27
postagens nas quais as trabalhadoras com- a empregada doméstica está lá para fazer o
partilham situações vivenciadas na profis- serviço que ninguém quer ou que seria des-
são. Muitas vezes, os relatos são comparti- tinado a uma parcela da população subju-
lhados por filhas e filhos das profissionais, gada, esse esvaziamento do sujeito é muito
uma vez que uma parte das trabalhadoras grave”, afirma.
não consegue identificar os abusos como
uma negativa de seus direitos trabalhistas. “Isso se torna ainda mais grave frente à na-
O resultado aparece em impactos extremos turalização, porque o ambiente doméstico
à saúde mental: depressão, ansiedade, pâ- é diferente do ambiente empresarial onde
nico e burnout são frequentes e, em muitos há um local ou profissional para quem che-
casos, suas origens ligadas ao trabalho se- gar e informar que está sendo maltratada.
quer consideradas. Muitas vezes, essa mulher começou a tra-
balhar ainda na infância, então ela passa
Para a conselheira do Conselho Regional boa parte do seu desenvolvimento sendo
de Psicologia do Paraná, Psicóloga Maria submetida a essas relações abusivas e passa
Ester Falaschi (CRP-08/06606), a explicação a entender essas relações como normais ou
para o motivo pelas quais muitas vezes as as únicas possíveis”, explica a Psicóloga.
mulheres percebam essas atitudes como
naturalizadas e não consigam reagir às vio- Essa naturalização também tem um aspec-
lências sofridas no trabalho é estrutural e to perverso, uma vez que são negados di-
passa pela questão do machismo e do ra- reitos trabalhistas básicos a partir de uma
cismo presentes no Brasil. Dados do IPEA invocação da proximidade com a família e
(2018) mostram que cerca de 5,7 milhões de de relações que se caracterizariam como
mulheres brasileiras atuavam como traba- afetivas, mais do que profissionais. Essa ca-
lhadoras domésticas remuneradas. Destas, racterização cria uma ambiguidade porque,
3,9 milhões eram negras. em muitos lares, é evidente o distanciamen-
to: alimentação em separado, refeições rea-
“É difícil para essas trabalhadoras reconhe- lizadas a partir de sobras, uso de elevadores
cer a questão do assédio porque são rela- “de serviço” e até uso de banheiros separa-
ções muito ambíguas e naturalizadas em dos no domicílio.
um sistema muito complexo. São relações
que têm suas raízes nas dinâmicas escravo- De acordo com Maria Ester, a Psicologia tem
cratas e de machismo estrutural, que colo- o papel central de refletir e questionar essas
ca a mulher, sobretudo a mulher negra, res- construções estruturais e históricas da so-
trita ao trabalho do lar que é reconhecido ciedade, portanto questionando o racismo,
como de menor valor”, explica a Psicóloga. machismo e LGBTIfobia, que são aspectos
que fundamentam essas relações de abuso.
“Uma das questões para as quais é preciso Para ela, é preciso ainda que Psicólogas(os)
estar atenta nessas relações é a condição estejam atentas(os) a esses atravessamen-
de não sujeito, ou seja, dessa mulher ter tos nas mais diversas áreas de atuação.
dificuldades para se reconhecer como su-
jeito da sua própria história e de uma his- A saída também passa pela organização co-
tória coletiva, bem como da importância letiva. Sindicatos que reúnem as trabalha-
de seu trabalho”, comenta Ester. Para ela, doras domésticas e grupos de trocas, como
essa série de questões estruturais impedem esses das redes sociais, também fortalecem
o reconhecimento do valor do trabalho do- o reconhecimento das atitudes abusivas e
méstico e do próprio valor, dificultando a o acesso a direitos. “É preciso construir e
essas trabalhadoras o acesso aos sistemas reconhecer o lugar de fala dessas mulheres
de justiça e de defesa de seus direitos. “A e oferecer uma escuta atenta às suas ques-
partir de uma representação social de que tões”, finaliza a Psicóloga.

28 | CONTATO 135
Ética
profissional
e punitivismo

Por Psic. Luccas Danniel Maier Cechetto (CRP-08/27520),


Conselheiro do XIV Plenário do CRP-PR

O COLUNA ÉTICA
último pleito eleitoral presidencial espanto, também, o fato de que, a cada três
no Brasil foi marcado por muitos presos, dois são negros (66,67%), segundo o
debates que se relacionam com os 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Direitos Humanos, sendo um dos mais exa- E passa ainda mais despercebido o fato de
cerbados aquele que diz respeito à seguran- que, de acordo com o Anuário, entre 2008 e
ça pública. Longe de ser um problema atual 2019 houve aumento de 71% de prisões en-
ou um símbolo apenas de um contexto pre- tre mulheres. Por outro lado, as principais
sente, a máxima do “Bandido bom é ban- vítimas de violência letal no Brasil são jus-
dido morto” vem ganhando cada vez mais tamente negros (74,4%) e o país ocupa a 5ª
espaço no Brasil e parece estar conquistan- posição mundial no ranking de homicídios
do cada vez mais adeptos em um dos países de mulheres, segundo a ONU. Não é mero
que mais encarceram no mundo. acaso que aqueles que são considerados
os mais merecedores do encarceramento
Os números alarmantes a respeito da popu- sejam os principais alvos de violência letal.
lação carcerária do país parecem não cau-
sar espanto – em 2019, o Brasil contava com O descaso com dados tão alarmantes da se-
755.274 pessoas presas, três vezes mais que gurança pública brasileira e a noção disso
em 2000. Além disso, 36% dos presos no como sendo demonstração de justiça en-
Brasil são provisórios, ou seja, não tiveram contra ecos por toda a história da humani-
direito à ampla defesa e a julgamento – o dade e nos mais diversos países. A chamada
que não inibe parte da população de afirmar cultura do punitivismo costuma canalizar
que presos teriam direitos demais no país. parte expressiva da insatisfação e insegu-
Não raramente, inclusive, esses índices são rança da população em relação às condi-
interpretados ou ventilados como sinônimo ções em que vivem, mas com uma solução
de que a justiça está sendo feita. Não causa que a mesma história já demonstrou ser

CONTATO 135 | 29
amplamente ineficaz, uma vez que a cada uma suposta reincidência, o que implicaria
ano que se passa se prende mais e se sub- necessariamente mais estigmatização.
metem mais pessoas aos depositórios de
“sub-humanos” que são os cárceres, espe- Ainda que a função de um Conselho de
cialmente no Brasil. Classe, como é o Conselho Regional de
Psicologia do Paraná (CRP-PR), inclua as
Mas, não é apenas na defesa de mais pri- atribuições de orientar, fiscalizar e discipli-
sões que o punitivismo finca raízes. Há uma nar, este último não pode ser confundido
persistente noção em nossa cultura de que com punir, segundo o entendimento que
a solução para qualquer comportamento foi exposto aqui. Diferente do que se imagi-
que possa conflitar com certas noções so- na, não ter como objetivo primeiro buscar
ciais deve ser, de pronto, punido para “dar algum tipo de punição severa o quanto an-
o exemplo”. Quanto mais dura a punição, tes nada tem a ver com não dar consequên-
maior a lição, reverberando outra máxima cias para atos antiéticos ou que aviltem a
perversa: a do “Sem dor, sem ganho”. A de- profissão.
fesa, como medida pedagógica, do tapa na
criança que faz algo que desagrada as(os) Nosso Código de Ética se espelha na
responsáveis; o endosso à redução da maio- Declaração de Direitos Humanos, tendo ela
ridade penal; as humilhações a pessoas que como sua guia principal, bem como nosso
agem diferente, para lhes mostrar que algo Código de Processamento Disciplinar ga-
não é aceitável; a sala pedagógica para a(o) rante ampla defesa por parte de denuncia-
estudante que “aprontou”; a defesa do cas- das(os), um julgamento justo, além de uma
tigo como meio educativo; o uso do cons- perspectiva mais humanizada, que entende
trangimento pejorativo como ferramenta que, mesmo se ocorrer suspensão do exercí-
privilegiada de “despertares de consciên- cio após trânsito em julgado, a(o) profissio-
cia”; defesa da pena de morte; pedir puni- nal – transcorrido o tempo de cumprimento
ção imediata para algum(a) profissional de sua penalidade – pode voltar a atuar e
que possa ter cometido alguma falta bran- exercer sua profissão, desde que respeite
da de ética; e tantos outros exemplos que, o que preconizam tanto a Declaração de
em maior ou menor grau, mostram como Direitos Humanos como nosso Código de
o punir é quase um piloto automático em Ética Profissional e outros importantes do-
nossas vidas. cumentos que permeiam nossa profissão.
Leia
também No que diz respeito à ética profissional, por Excluídas as situações em que há violações
vezes, essa “sede por justiça” permeada de dos direitos humanos e cujo debate ultra-
punitivismo figura em representações di- passa os limites da ética profissional, boa
Das correntes às
versas que chegam até a Comissão de Ética, parte das faltas éticas que emergem nas
algemas: como o
em que denunciante se pretende acusa- representações podem ser resolvidas com
Sistema Prisional
dor(a) e juiz(a), desconsiderando o direito à meios de solução consensual de conflitos,
enraíza o racismo
defesa e ao contraditório, espelhando algo como a mediação, que visam à reparação
e viola direitos
que, como já citado, ocorre amplamente na de danos. Além disso, ser denunciada(o) e
humanos? (Revista
realidade brasileira. Além disso, tal como passar por um processo ético já cumpre,
Contato jan/fev 2021)
ocorre no nosso sistema judiciário, há mui- em alguma medida, um papel orientativo.
tos que transformam a penalidade aplicada Ademais, isso promove uma cultura muito
bit.ly/39sMwHR em um estigma do qual a(o) denunciada(o) mais positiva de reflexão sobre os limites da
nunca mais escapará, como se aquilo indi- profissão – muito diferente de já demandar
casse que a pessoa deve ser permanente- ou considerar justa uma punição severa,
mente punida por uma falta, seja porque bem como de estigmatizar aquela(e) que
quem a denuncia considera que a falta foi foi condenada(o) porque a falta ética pode
grave para tanto ou, ainda, porque isso se- ter provocado algum prejuízo ou desconfor-
ria necessário para reduzir as chances de to na(o) denunciante.

30 | CONTATO 135
PSICOLOGIA E A
LUTA ANTIMANICOMIAL:
ASPECTOS ÉTICOS NO EXERCÍCIO
PROFISSIONAL DA(O) PSICÓLOGA(O)

Por Vanelise Masquetti Valério Antoniassi (CRP-08/25684), com


colaboração da Comissão de Orientação e Fiscalização (COF)

ORIENTAÇÃO E FISCALIZAÇÃO
A
Lei nº 10.216 de abril de 2001, que ressaltamos que a atuação da(o) Psicóloga(o)
dispõe sobre a proteção e os di- deve ser respaldada no Código de Ética da
reitos das pessoas portadoras de profissão (CEPP) conforme estabelece a
transtornos mentais e redireciona o mo- Resolução CFP nº 010/2005:
delo assistencial em saúde mental, prevê o
direito de as(os) usuárias(os) serem acom- I. O psicólogo baseará o seu trabalho no
panhadas(os) por Psicólogas(os) no trata- respeito e na promoção da liberdade, da
mento em regime de internação: dignidade, da igualdade e da integridade
do ser humano, apoiado nos valores que
Art. 4º – A internação, em qualquer de embasam a Declaração Universal dos
suas modalidades, só será indicada quan- Direitos Humanos.
do os recursos extra-hospitalares se mos-
trarem insuficientes. II. O psicólogo trabalhará visando pro-
mover a saúde e a qualidade de vida das
(...) pessoas e das coletividades e contribuirá
para a eliminação de quaisquer formas
§ 2º O tratamento em regime de interna- de negligência, discriminação, explora-
ção será estruturado de forma a oferecer ção, violência, crueldade e opressão.
assistência integral à pessoa portadora
de transtornos mentais, incluindo servi- III. O psicólogo atuará com responsabili-
ços médicos, de assistência social, psico- dade social, analisando crítica e histori-
lógicos, ocupacionais, de lazer, e outros. camente a realidade política, econômi-
ca, social e cultural.
Considerando que o objetivo da Lei
Antimanicomial é mudar a concepção do IV. O psicólogo atuará com responsabi-
tratamento da loucura nas instituições de lidade, por meio do contínuo aprimora-
saúde mental, como as(os) Psicólogas(os) mento profissional, contribuindo para
têm lidado com as questões éticas que en- o desenvolvimento da Psicologia como
volvem o exercício profissional da Psicologia campo científico de conhecimento e de
nesse contexto? prática.

Lembramos que, conforme dispõe a Lei nº VI. O psicólogo zelará para que o exer-
10.216/2001, o tratamento visará, como fi- cício profissional seja efetuado com dig-
nalidade permanente, à reinserção social nidade, rejeitando situações em que a
do paciente em seu meio (Art. 4º § 1º) e Psicologia esteja sendo aviltada.

CONTATO 135 | 31
VII. O psicólogo considerará as relações assistência e promoção de ações de saúde
de poder nos contextos em que atua e os às pessoas com sofrimento mental enfa-
impactos dessas relações sobre as suas tizando a participação da família e da so-
atividades profissionais, posicionando-se ciedade, visando a preservar e fortalecer os
de forma crítica e em consonância com vínculos do sujeito na sociedade.
os demais princípios deste Código.
Art. 3º – É responsabilidade do Estado
Nesse sentido, enfatizamos que, o desenvolvimento da política de saúde
conforme ao Art. 2º do Código de Ética, mental, a assistência e a promoção de
à(ao) Psicóloga(o) é vedado: ações de saúde aos portadores de trans-
tornos mentais, com a devida participa-
a) Praticar ou ser conivente com quais- ção da sociedade e da família, a qual será
quer atos que caracterizem negligência, prestada em estabelecimento de saúde
discriminação, exploração, violência, mental, assim entendidas as instituições
crueldade ou opressão; ou unidades que ofereçam assistência
em saúde aos portadores de transtornos
b) Induzir a convicções políticas, filosó- mentais.
ficas, morais, ideológicas, religiosas, de
orientação sexual ou a qualquer tipo de Lembramos que o acesso à saúde é um di-
preconceito, quando do exercício de suas reito constitucional, sendo responsabilida-
funções profissionais; de das(os) profissionais que assistem as(os)
usuárias(os) viabilizar meios para que te-
c) Utilizar ou favorecer o uso de conhe- nham esse direito garantido.
cimento e a utilização de práticas psico-
lógicas como instrumentos de castigo, Ressaltamos o Art. 3º do CEPP:
tortura ou qualquer forma de violência;
Art. 3º – O psicólogo, para ingressar, as-
e) Ser conivente com erros, faltas éticas, sociar-se ou permanecer em uma organi-
violação de direitos, crimes ou contra- zação, considerará a missão, a filosofia,
venções penais praticados por psicólogos as políticas, as normas e as práticas nela
na prestação de serviços profissionais. vigentes e sua compatibilidade com os
princípios e regras deste Código.
n) Prolongar, desnecessariamente, a pres-
tação de serviços profissionais; Parágrafo único: Existindo incompatibi-
lidade, cabe ao psicólogo recusar-se a
Visando ao papel fundamental das(os) profis- prestar serviços e, se pertinente, apre-
sionais da Psicologia no tratamento da doen- sentar denúncia ao órgão competente.
ça mental das(os) usuárias(os) com transtorno
mental, e à finalidade permanente da reinser- Tendo em vista a frequência de denún-
ção da(o) paciente em seu meio, a atuação cias da violação de direitos humanos nes-
da Psicologia deve ser realizada em acor- te contexto, a Comissão de Orientação e
do com os parâmetros éticos da profissão, Fiscalização (COF) aponta a necessidade de
com respeito e olhar humanizado, a fim que a(o) Psicóloga(o) não compactue e
de preservar o direito das(os) usuárias(os) nem naturalize esta forma de violência.
destes serviços à inserção na família, traba- Pautando-se no posicionamento ético ba-
lho e comunidade de forma digna. seado na garantia total dos direitos huma-
nos, cabe à(ao) profissional posicionar-se e
A lei supracitada dispõe em seu Art. 3º so- denunciar situações de suspeita e/ou viola-
bre a responsabilidade do Estado no desen- ção dos direitos humanos. A denúncia pode
volvimento da política de saúde mental, da ser feita através do disque 100.

32 | CONTATO 135
Por Psic. Griziele Martins Feitosa (CRP-08/09153)

“Se você quer falar da vida não pode se limitar a uma só linguagem (...)” Pina Bausch

ESPAÇO PSI

M
inha história com a dança come- duação um lindo encontro com dança/luta
ça aos 4 anos, quando minha mãe Capoeira. Depois de formada (na UEM) re-
mandou escolher entre Ballet e tornei ao Clássico, os grand battement não
Piano. Às vezes me pergunto se hoje faria são os mesmos, mas a vontade de dançar é.
a mesma escolha. Em outros momentos ti-
nha outras respostas, mas hoje é sim, faria a Só aos 30 anos, por influência de Psicólogas,
mesma escolha daquela menina “espevita- colegas de trabalho na capital, é que acon-
da”. A escolha empolgada pelo ballet clás- teceu meu primeiro encontro com a dança
sico trouxe uma necessidade de me mover. contemporânea. Aquilo foi muito estranho
Lembro-me da volta das aulas saltitante pra mim, onde estavam as sequências, os
pelas calçadas, dos espacates feitos na hora movimentos codificados?! Improvisos...
do recreio, forma que a menina preta, po- Meu deus! A rigidez não me permitia.
bre e bolsista de um colégio confessional
encontrou para ter um lugar na turma. Aos 33 anos retornei, meio que a contra-
gosto, para a minha cidade de origem,
Dez anos de pausa na dança. Nesse meio onde aos 4 anos comecei a frequentar a
tempo o corpo encontrou lugar para se ex- Casa da Cultura para fazer aulas de Ballet
pressar na GRD (Ginastica Rítmica – na épo- Clássico e artes plásticas. Retornei às au-
ca ainda desportiva) e depois durante a gra- las de Clássico, mas existia um incômodo

CONTATO 135 | 33
provocado pela dança contemporânea.
Foi então que o trabalho me promoveu um
feliz encontro com Isabela Schwab. Volto à
dança contemporânea. Isa transforma a dan-
ça em mim, conheço o que é dançar no chão.

Havia estudado anatomia na graduação,


mas pela primeira vez penso em meus os-
sos, meus músculos ligados e atuantes no
meu estar no mundo. Me são apresentados
pensadores da dança como Klaus e Angel
Vianna, Pina Bausch. Começo a sentir meu
corpo político em movimento! Meus pen-
samentos se expressando por meio da arte
dança contemporânea.

Hoje dançar/viver pra mim tem a ver com


novas bases, sensações, peso e leveza,
alavancas, espirais, com a relação com a
gravidade, com o espaço, com a socieda-
de! Começo a entender que a dança é a
filosofia no corpo…. Pensar a sociedade, o
que nos paralisa e o que nos impulsiona a
mover. Começo a dançar minhas angústias,
minhas dores, minhas reflexões sobre a
vida. Tenho chance de colocar tudo o que a
Psicologia me ensinou em movimento. Vejo
meu corpo como ato político se movendo,
se movendo em transformação, em luta e
resistência. Posso expressar minhas inquie-
tações, e transformá-las em movimento.

O que pode um corpo feminino?! O que


pode um corpo preto feminino?! Vou des-
cobrindo potência em mim e isso afeta di-
retamente minha saúde mental. Descubro
que essa transformação pode ser benéfica
para as minhas pacientes, algumas delas
encontraram tanta potência na dança!
Mais plasticidade, mais movimento psíqui-
co, mais saúde mental. Certa vez, li sobre
uma entrevista onde o psicanalista Eduardo
Mascarenhas falava que uma análise só é
completa quando junto se trabalha o corpo.

A dança me transforma! Fisicamente, subje-


tivamente e profissionalmente. É um encon-
tro com a filosofia em movimento. 40 anos
depois a menina ainda dança, com a mesma
vontade, mas com muita militância.

34 | CONTATO 135
CONTATO 135 | 35
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