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Aletheia

ISSN: 1413-0394
mscarlotto@ulbra.br
Universidade Luterana do Brasil
Brasil

Groff Vivian, Aline; Trindade, Jorge


Psicologia e arte: um paradigma estético dos processos de criação
Aletheia, núm. 17-18, enero-diciembre, 2003, pp. 107-121
Universidade Luterana do Brasil
Canoas, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=115013455011

Como citar este artigo


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Aline Groff Vivian
Jorge Trindade

Psicologia e arte:
um paradigma estético
dos processos de criação
Psychology and Art: An Aesthetic Model
of the Creation Process

O artigo é resultado do trabalho de conclusão de curso em psicologia e busca compreender


como se dá o processo de criação artístico, qual sua função e o que expressa o artista através de sua
obra. Apresenta um referencial teórico que aborda psicologia e sua inter-relação com a Arte, além
das importantes contribuições da Psicanálise. Para a coleta de dados foram entrevistados seis (6)
artistas: um artista plástico, um músico, um diretor teatral/psicanalista, uma escultora, uma escri-
tora e um poeta, além de uma entrevista-piloto com um psicanalista que estuda arte e processos
criativos. Os resultados obtidos através das histórias de vida, com apoio em entrevistas semi-estru-
turadas, foram submetidos ao método de análise de conteúdo de Bardin (1988) com base nos
depoimentos e consulta a materiais como reportagens, fotos, livros, telas, esculturas e produções
artísticas dos sujeitos da pesquisa. O trabalho pretendeu aproximar a psicologia e arte, através da
investigação referente à natureza do processo de criação, a partir da perspectiva do artista e de seu
processo criativo, propondo assim um relacionamento sem enfoque interpretativo ou diagnóstico.
Palavras-chave: Psicologia, arte, processos de criação.

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Aline Groff Vivian é Psicóloga formada pela ULBRA , mestranda em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS).
Jorge Trindade é Psicólogo, Livre docente em Psicologia Jurídica (ULBRA); Mestre em Psicologia (Universi-
dade de Extremadura/Espanha); Doutor em Psicologia Clínica (Wisconsin International University-WIU/
EUA) e professor do curso de Psicologia (ULBRA-Canoas).
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*Trabalho apresentado à Universidade Luterana do Brasil como pré-requisito para a conclusão do Curso de
Psicologia
____
Endereço para correspondência: drtrindade@terra.com.br
ABSTRACT
The article results from the final dissertation written by the first author in the undergraduate
psychology course at Lutheran University of Brazil and it aims to comprehend how the artistic
creation process occurs, what is its function and what the artist expresses through his/her work. The
interrelation between psychology and art, as well as the very important contribution of psychoanalysis,
are presented. For data collecting, six artists were interviewed: a plastic artist, a musician, a drama
director and psychoanalyst, a sculptor, a writer and a poet; there was also a test-interview with a
psychoanalyst that studies art and creation processes. The results obtained by the life-histories, with
the support of the semi-structured interviews, were submitted to the content analysis method of
Bardin (1988) based on the interviews and consulting materials as reports, pictures, books, paintings,
sculptures and artistic productions of the subjects. The essay intend to approximate psychology and
art, through an investigation relating to the nature of the creation process, from the artist perspective
and his/her creating process, proposing a relationship without an interpretative or diagnostic focus.
Key words: Psychology, art, creation process.

INTRODUÇÃO cidar o movimento de criação ou o resulta-


do de uma obra, pois assim se estaria toman-
Desenho para suprimir o indizível. O indizível do a manifestação artística como sintoma.
não é problema para mim. É até o início do
trabalho. É o motivo do trabalho; Psicologia e Arte
a motivação do trabalho é destruir o indizível. Na literatura, percorro a mesma estrada so-
Louise Borgeois (2000, p. 363) bre a qual Freud avança com uma temerida-
de surpreendente na ciência. Entretanto,
A arte tem sido a forma de expressão ambos, o poeta e o psicanalista, olhamos
do homem e registro de sua história. Por através da janela da alma.
seu intermédio, a psicologia também pro-
Arthur Schnitzler
curou entender o funcionamento psíquico
ou exemplificar alguns de seus conceitos. A palavra arte vem do latim – ars, artis
Nesse artigo buscou-se evidenciar a relação – raiz que originou artefato, artesão e arti-
entre psicologia e arte, processos de cria- fício. Com o passar do tempo, começou a
ção, arte e história, arte e psicanálise, com se distinguir o fazer com arte do fazer téc-
a contribuição de autores como Amaral nico. Com isso, obteve uma qualidade es-
Dias, Christopher Bollas, Humberto Eco, tética, uma produção com função mera-
Sigmund Freud, Arnold Hauser, Noemi mente contemplativa, percebida sensorial-
Moritz Kon, René Huyghe, Henrique Ho- mente, diferenciando-se do objeto pura-
nigsztejn, Herbert Read, Edson Sousa, mente utilitário (Read, 1978).
Luigi Pareyson, Armindo Trevisan entre Langer (citado Honigsztejn, 1972, p.
outros, discorrendo sobre as manifestações 19) define a obra de arte como “uma forma
da arte e da estética, sua função como for- expressiva criada para nossa percepção atra-
ma de expressão e questionamento acerca vés dos sentidos ou imaginação, e o que ex-
do mundo. pressa é o sentimento humano”. A qualida-
Não houve a pretensão de realizar psi- de essencial ou o que define uma obra de
cobiografias dos artistas entrevistados, ten- arte é “o ritmo, a sucessão rítmica, é aquela
tando dar conta da criação artística através na qual um acontecimento determinado que
de suas histórias de vida. Através da inter- culmina é o início de outro”. Toda obra de
pretação não se compreende o impulso cri- arte expressa os ritmos de um mundo inter-
ador que existe em uma obra de arte. Na no pouco acessível à linguagem discursiva.
arte, a procura de traumas infantis e rela- Esse mundo vital traz, subjacente a si, o rit-
ções edípicas conflituosas não se presta a elu- mo, uma condição essencial da vida.
Estética é o que trata substancialmen- Schwyter e Valente (1998) ressaltam que ne-
te do fenômeno artístico. Do grego - ains- nhuma experiência humana, por mais do-
thétiké, ainsthásism - significando sensação lorosa que seja, torna-se arte por si mesma..
ou percepção. Aisthetikós é o que sente, que Conforme Outeiral, Moura (2001),
compreende, ‘sensível’. A qualidade estéti- muitos autores, influenciados diretamente
ca não é necessariamente o prazer da con- por Sigmund Freud, relacionaram basica-
templação do belo, mas também do feio mente as capacidades criativas com as vi-
(Read, 1978). cissitudes das pulsões, o que estaria bem
Um contraponto é apresentado por descrito nos movimentos triangulares edí-
Saldanha (citado por Finkler 1972, p. 50) picos e no conceito de sublimação.
ao tratar da psicologia do sentimento esté- Freud (1905, p.225), no texto Três en-
tico: saios sobre a teoria da sexualidade e outros tra-
Na expressão de pensamento belo, isto é, balhos, esclarece que a sublimação é:
pensamento capaz de despertar sentimento Uma das fontes da atividade artística, e,
agradável, no sentido de gozo estético, en- conforme tal sublimação seja mais ou me-
contra-se o conceito artístico. Arte é, por- nos completa, a análise caracterológica de
tanto, a produção da beleza. Ciência da arte pessoas altamente dotadas, sobretudo as de
é a análise psicológica do belo tomado em disposição artística, revela uma mescla, em
seu sentido mais limitado. diferentes proporções, de eficiência, perver-
são e neurose.
A função estética abarca muito mais do
que o mundo da arte. A função estética Neste contexto, o conceito de sublima-
abrange a totalidade da atividade humana. ção tem importância fundamental. Por su-
Sendo assim, a “autofinalidade da arte” é blimação entende-se a capacidade do su-
dirigir-se a si própria (Trevisan, 1990). jeito investir em atividades artísticas, inte-
Para Kon (citado por Souza, 2001), a lectuais, ideológicas, científicas, denomina-
vida dos artistas participa da construção de das de “atividades superiores”, uma vez que
sua obra, assim como a obra é parte consti- desta forma laços sociais são estabelecidos
tutiva de suas vidas. Por isso é imprescindí- e fortalecidos, empregando energias que,
vel aproximar a experiência psicanalítica da do contrário, inviabilizariam a vida em so-
experiência estética, na tentativa de demons- ciedade.
trar que a prática psicanalítica não pode mais De acordo com Bartucci (1999), as
ser compreendida como um fazer que se questões relativas à intensidade e excesso
pretenda arqueológico, ou seja, um fazer que pulsional são fundamentais. Não só se apre-
procura encontrar os sentidos somente sentam como características marcantes dos
numa história passada e soterrada. sofrimentos na atualidade, mas ao sujeito
Segundo Hauser (1998, p.102): tomado pela intensidade e pelo excesso, só
Se há uma explicação psicológica univer- resta realizar um trabalho de ligação cons-
salmente válida para o impulso criador de tituindo destinos possíveis para as forças
obras de arte, não poderá começar a partir pulsionais, ordenando-as e inscrevendo a
de outra coisa a não ser esta tentativa de pulsão no registro da simbolização. O que
recuperar zonas perdidas ou esquecidas da definirá as possibilidades de domínio des-
vida consciente. sa energia será a capacidade de ligação do
Bollas (1992), ao tratar a questão do aparelho psíquico (online).
trauma e sua transformação em arte, sugere Em Escritores Criativos e Devaneio,
que um indivíduo pode lutar contra conste- Freud (1908) compreende a obra de arte
lações interiores traumáticas e, por transfor- como um substituto do que foi o brincar
mações do trauma em obras de arte, alcan- infantil, uma vez que aproxima o artista - o
çar certo domínio sobre seus efeitos. escritor criativo - da criança que, ao brin-
Para Kon (1996) através da arte o que car, cria um mundo próprio reajustando
foi recalcado ganha expressão. No entanto, seus elementos de uma forma que lhe agra-
de, mantendo assim uma nítida separação A obra de arte é, em certa medida, uma li-
entre seu mundo de fantasia e a realidade. bertação da personalidade; normalmente os
Somente a partir das transformações nossos sentimentos estão sujeitos a toda es-
sofridas pelo conceito freudiano de subli- pécie de inibições e repressões; contempla-
mos uma obra de arte e dá-se imediatamen-
mação tal formulação será passível de alte-
te uma libertação (...) de sentimentos, mas
ração. Na versão inicial (Freud,1905), a su- também uma intensificação, uma sublima-
blimação é uma experiência de espirituali- ção.
zação, de ascese, por meio da qual a subje-
tividade é purificada de seu erotismo per- Huyghe (1986) pensa que a arte é uma
turbador. Em sua versão posterior será a função essencial do homem, sendo indis-
mudança de objeto da pulsão o atributo pensável ao indivíduo e às sociedades des-
fundamental na reordenação do circuito de as origens pré-históricas. A arte e o ho-
pulsional (Freud, 1932). mem são indissociáveis. Não há arte sem
A pulsão necessita ser submetida a um homem, mas talvez igualmente não haja
trabalho de ligação e simbolização para se homem sem arte. O ser isolado ou a civili-
inscrever no psiquismo. Nessa medida, em zação que não têm acesso à arte estão ame-
face da premência e necessidade de produ- açados por uma imperceptível asfixia. Atra-
zir novos objetos para os circuitos pulsio- vés da arte o homem se expressa, compre-
nais, o sujeito realiza rupturas no campo ende-se e realiza-se melhor.
dos objetos e dos símbolos. Isto permitirá Para Hauser (1988, 139):
ao sujeito reconstruir simbolicamente sua A práxis da arte diz respeito à rememoração
própria realidade. da natureza no sujeito, equivale a um retor-
Tal concepção apoia-se na formulação no ou aflorar da natureza interna, ela será
de que, ao se tomar como fundamental o realização deste movimento interno no su-
conceito freudiano de pulsão, o psiquismo jeito e não mais supressão da natureza pelo
sujeito.
e o sujeito do inconsciente serão destinos
privilegiados de pulsões, ao lado do “retor- De acordo com Eco (1972), o artista
no sobre o próprio corpo”, da “transfor- procede por tentativas, mas sua tentativa é
mação da passividade em atividade “ e da guiada pela obra, sob a forma de um apelo
“sublimação”, desde que as pulsões sejam e de uma exigência intrínseca à formação
consideradas no registro da força como exi- que orienta o processo produtivo.
gência de trabalho (Bartucci, 1999, online).
Arte e Psicanálise
Arte e processo de criação É preciso sem escrúpulos, trair-se, expor-
A criação é um existir, ainda não existido. se, comportar-se como o artista que compra
Flávio Motta tintas com o dinheiro da casa e queima os
móveis para que o modelo não sinta frio.
O processo criador é um processo du- Sem algumas destas ações criminosas, não
plo de elucidação interior e, também, um se pode fazer nada direito.
processo epidérmico, na medida em que
Sigmund Freud
implica uma alegria quase infantil de in-
venção, como quando as crianças vão a um
bosque e se deparam com amoras e fram- Freud esteve atento para essa proximi-
boesas que as fascinam. Assim, aquilo que dade entre psicologia e estética. Em vários
as pessoas costumam designar por inspira- trabalhos investigou a criação artística: Es-
ção coincide com uma deliciosa excitação critores Criativos e Devaneio (1908) Delírios e
psicológica ou psíquica. (Trevisan, 1993). Sonhos na Gradiva de Jensen (1907) Leonardo
Nenhuma definição consegue sinteti- da Vinci e uma lembrança de sua infância
zar o complexo fenômeno da arte, mas de (1910), ainda sobre O Moisés de Michelange-
acordo com Read (1978, p 30): lo (1914, p. 253), comenta:
as obras de arte causam em mim uma forte cisão corpo/alma. Em outras palavras, o
impressão, em particular as obras literárias sentido passa pelo que é sentido. Volta-se
e as obras plásticas, menos raramente as te- novamente ao campo da psicologia e da
las. Sou levado assim, nessas ocasiões favo- psicanálise, na sua preocupação com as cir-
ráveis, a contemplá-las longamente para lhes
cunvoluções do desejo e com os processos
compreender à minha maneira, ou seja, para
compreender por onde elas produzem seu
inibitórios resultante da repressão (Kon,
efeito (...) são justamente as obras de arte 1996).
mais grandiosas e imponentes que perma- Em Delírios e Sonhos na Gradiva de Jen-
necem obscuras frente a nosso entendimen- sen, Freud (1907, p. 24) refere-se ao perso-
to. Nós as admiramos, nos sentimos domi- nagem principal, o arqueólogo Norbert
nados por elas, mas não sabemos dizer o Hanold, da seguinte forma:
que elas representam para nós.
A natureza, talvez num intuito benevolen-
Sua correspondência com o escritor te, instilara em seu sangue um corretivo de
Arthur Schnitzler deixa evidente que a arte caráter nada científico: uma imaginação
gravitava na mesma órbita da psicanálise, vivíssima que se mostrava em seus sonhos e
que acabara de criar. Em carta para o escri- também no estado de vigília. Essa divisão
tor austríaco, Freud (citado port Kon, 1995, entre imaginação e intelecto o predispunha
a tornar-se um artista ou um neurótico; ele
p.128) confessa:
estava entre aqueles cujo reino não é deste
Sempre me deixo absorver profundamente mundo.
por suas belas criações, parece-me encon-
trar, sob a superfície poética, as mesmas su-
Os escritos de Freud (1913, p.188) so-
posições antecipadas, os interesses e con- bre o Interesse da Psicanálise do ponto de vista
clusões que reconheço como meus própri- da ciência da estética levam a uma limitação
os. Seu determinismo e seu ceticismo – o da contribuição que a psicanálise poderia
que as pessoas chamam de pessimismo – trazer à compreensão dos processos de cri-
sua profunda apreensão das verdades do ação e da atividade artística:
inconsciente e da natureza biológica do
A psicanálise esclarece satisfatoriamente al-
homem. O modo como o senhor desmonta
guns dos problemas referentes às artes e aos
as convenções de nossa sociedade, a exten-
artistas, embora outros lhe escapem inteira-
são em que seus pensamentos estão preocu-
mente. No exercício de uma arte vê-se mais
pados com a polaridade do amor e da mor-
uma vez uma atividade destinada a apazi-
te, tudo isso me toca com uma estranha sen-
guar desejos não gratificados – em primei-
sação de familiaridade..
ro lugar do próprio artista e, subseqüente-
Em Leonardo da Vinci (1910), mos- mente, de sua assistência ou expectadores.
trou que pode ocorrer uma inibição inte- As forças motivadoras dos artistas são os
lectual proveniente da repressão dos impul- mesmos conflitos que impulsionam outras
sos sexuais. Como a atitude investigativa pessoas à neurose e incentivam a sociedade
originalmente tem como interesse a sexua- a construir suas instituições. De onde o ar-
tista retira sua capacidade criadora não
lidade, que a repressão levaria à uma inibi-
constitui questão para a psicologia
ção do instinto de investigação. Mas existe
um outro caminho para os instintos sexu- Cabe ressaltar que, em 1930, em
ais que não a repressão. Eles podem incre- Frankfurt, Freud recebeu a única premia-
mentar a atitude criativa e contribuir para ção oficial em vida, o Prêmio Goethe, que
a produção de bens culturais. lhe foi concedido como escritor e cientista
A doença psíquica pode ser entendi- (Kon, 1996).
da como um fracasso do imaginário. Assim
como na histeria, Freud demonstra que A Arte na História
corpo e fala, juntos, criam um sentido. Não O que seria a vida se não tivéssemos cora-
é a doença que habita um corpo, mas um gem de inventar alguma coisa?
corpo que tem na dor uma fala, longe da
Vincent Van Gogh
A criação de obras de arte é uma ativi- De acordo com Huyghe (1986, p. 19):
dade que se manifesta nas mais variadas é a própria história que nos revela que a
culturas. Através da arte, o homem expres- arte não depende apenas dela e dos seus
sa aspectos de si mesmo no que cria. Ques- acontecimentos, mas que manifesta também
tiona sua existência no mundo e seus sen- forças psicológicas. Para compreender a arte
timentos, expressando esse questionamen- e a sua natureza, faz falta, portanto ao his-
to nas obras que produz e que se tornam toriador, acompanhar o psicólogo.
objeto de contemplação (Read, 1978).
A arte associa-se em geral àquelas ar-
tes que chamamos plásticas ou visuais; mas, MÉTODO
usada com propriedade, deveria incluir
também as artes da literatura e da música. A metodologia utilizada foi a pesquisa
Refere que há certas características comuns qualitativa de cunho exploratório-descriti-
a todas as artes, porém a arte não é a ex- vo. Triviños (1997) refere que na pesquisa
pressão plástica de qualquer ideal particu- qualitativa, que é descritiva, pois o pesqui-
lar. É a expressão de qualquer ideal que o sador é o principal instrumento. Existe
artista possa realizar em forma plástica. uma preocupação com o processo e não
Na cultura ocidental, a arte teve três somente com os resultados. Na pesquisa
definições mais conhecidas: ora a arte foi qualitativa, “uma questão metodológica
concebida como fazer, ora como um conhe- importante é a que se refere ao fato de que
cer, ora como um exprimir. Na antigüidade não se pode insistir em procedimentos sis-
prevalecia a concepção da obra enquanto temáticos que possam ser previstos, em
fazer. No romantismo, teria prevalecido a passos ou sucessões, como uma escada em
idéia de arte enquanto expressividade, en- direção à generalização” (Fazenda citada
quanto no Renascimento, a concepção de por Martins, 1994, p. 58).
arte enquanto conhecimento, visão de rea- O método de “história de vida” é um
lidade, quer seja de uma realidade sensível dos mais expressivos dentre os utilizados
ou de uma metafísica superior, quer de uma na pesquisa qualitativa, pois não existem
realidade espiritual íntima e profunda (Pa- hipóteses pré-estabelecidas nem inquisição,
reyson, 1989). sendo que geralmente se utiliza a entrevis-
O século XVIII viu ressurgir a teoriza- ta semi-estruturada como apoio. Na entre-
ção sobre as artes e o aparecimento da esté- vista semi-estruturada são feitas perguntas
tica como disciplina filosófica. Ressurgi- básicas, que não estão ali por acaso, basea-
mento porque os gregos, especialmente Pla- das na teoria e em hipóteses pertinentes à
tão e Aristóteles, já haviam dado à arte um pesquisa (Triviños, 1997). O objetivo da
lugar de destaque em suas reflexões. A dis- entrevista semi-estruturada foi clarificar o
cussão no âmbito da estética abrange ques- sentimento sobre a arte e suas relações com
tões referentes à natureza do objeto artísti- o processo de criação para cada artista.
co e suas relações com a verdade e a beleza, A coleta de dados deu-se através de
à criação, ao motivo que faz com que as entrevistas previamente agendadas com os
obras afetem outras pessoas, enfim, são va- artistas, gravadas e transcritas. Realizou-se
riadas as questões que a estética pode aco- a primeira entrevista com um psicanalista,
lher, embora não se constituam como obje- que estuda e pesquisa arte e processos de
to desse estudo. criação. Posteriormente, entrevistou-se um
Battistoni Filho (1987) refere que o his- artista plástico, um músico, um diretor de
toriador inglês Arnold Toymbee criou o ter- teatro e também psicanalista, uma esculto-
mo “pós-moderno”, em 1947, para desig- ra, uma escritora e um poeta, escolhidos
nar todo e qualquer tipo de mudança ocor- aleatoriamente. Portanto, as informações
rido nas ciências, nas artes e nas socieda- foram obtidas através de histórias de vida,
des avançadas. apoiadas em questões norteadoras e entre-
vistas semi-estruturadas (Triviños, 1997). der ou dar significado ao mundo em que
Os dados foram analisados a partir do refe- vivem, ao mesmo tempo em que estrutu-
rencial de análise de conteúdo de Bardin ram a realidade de um modo muito parti-
(1988). cular, através de suas obras.
Nos relatos das histórias de vida, al-
guns pontos destacados já relacionavam o
RESULTADOS E DISCUSSÃO interesse pela arte desde muito cedo. Uma
característica dos participantes foi a multi-
Se a obra de arte proviesse da intenção de plicidade em sua formação e áreas de tra-
fazê-la, podia ser produto da vontade. Como balho. Os depoimentos também apontam
não provém, só pode ser, essencialmente, essa opção como uma alternativa para po-
produto do instinto; pois que instinto e der fazer arte e se manter financeiramente
vontade são as únicas duas qualidades que com outra atividade. O artista plástico é
operam. A obra de arte é, portanto, uma publicitário e proprietário de um restauran-
produção do instinto. te. O músico é também jornalista e radia-
Fernando Pessoa (1916) lista. O diretor teatral é psicanalista. O po-
eta, além de escritor, é professor. Apenas
escritora e a escultora dedicam-se exclusi-
A história de vida foi organizada com
vamente a seus ofícios.
base nas fases do desenvolvimento: infân-
Van Gogh lembra-se do pai e das repro-
cia, adolescência e adultez. Das entrevistas
duções de obras de arte que tanto desperta-
emergiram as seguintes categorias: Idéias e
vam sua atenção na infância, pintores da
sentimentos sobre a Arte; Função da Arte; Arte e
mesma linha de trabalho que segue atual-
Amor; Arte: sofrimento x prazer; Processo de
criação; O que expressa o artista através de sua mente. “E eu dizia que ia ser pintor, queria
obra. ser pintor” (sic). Relata emocionado o pre-
Ao ouvir qual a função atribuída ao sente que ganhou aos 7 anos, telas, pincéis e
processo de criação e como o mesmo se dá tintas a óleo. Refere a grande importância
para cada artista, não houve a tentativa de de uma tela que expõe em sua sala: “foi o
interpretar a história de vida para elucidar melhor quadro que eu pintei na minha vida,
como ocorre o ato criativo. No que se refere lá com meus 10 anos. (...) Na vida para uma
ao processo de criação, Martin Buber (1977) coisa dar certo, tu tens que ter essa sensibili-
escreve que o homem é dotado de um “ins- dade de uma coisa que te provoque. A arte
tinto de autor”. É o desejo de fazer ser ori- para mim tem essa coisa de sagrada” (sic).
gem de algo. Fazer é ser sujeito – autor – Foi assim que compreendeu que a arte é a
de um processo de criação. coisa mais importante em sua vida.
Para preservar a identidade dos entre- Tom Jobim recorda os discos que ouvia
vistados foram atribuídos os seguintes no- com o avô e com os pais, que contribuíram
mes fictícios: Van Gogh, ao pintor; Tom para a sofisticação de seu estilo musical.
Jobim, ao músico; Bertold Brecht, ao dire- “Comecei a compor com 12 anos... e desde
tor teatral; Camile Claudel, à escultora; então eu sabia que eu queria compor coisas
Fernando Pessoa, ao poeta; Clarice Lispec- que fossem de alguma forma diferentes (...)
tor, à escritora, além disso o psicanalista foi Acho que fui criado para isso, para ser dife-
identificado como Jacques Lacan. rente” (sic). Lembra de que, quando ganhou
A lucidez de Lacan, a intensidade de o primeiro piano do pai, começou a querer
Camile, a crítica de Brecht, a inquietação fazer música. Estudou na Escola de Música
de Tom Jobim, a angústia de Van Gogh, a da OSPA, como fez formação em Jornalis-
concisão de Clarice e a emoção de Fernan- mo, publicou um livro sobre a história da
do Pessoa demonstram que os artistas en- música no RS, além de ter trabalhado em
trevistados possuem uma característica pe- jornais, revista e rádio. Outro fato importan-
culiar. Parecem estar buscando compreen- te: “A criação de uma forma geral e a cria-
ção artística sempre foi vista como o que re- ram abertos ao que se produzia de novo”
almente importava, ou a criação intelectual, (sic). O contato com a arte foi muito signi-
ser escritor” (sic). ficativo. Depois de conseguir administrar
A formação médica, paralelamente à os amigos reais e os fictícios, que eram os
teatral, ampliou a visão de mundo do dra- escritores e personagens dos livros, pôde
maturgo Brecht, bem como sua multiplici- instrumentalizar-se para trabalhar no que
dade de áreas de atuação. Além de traba- gosta: “a gente pode fazer do nosso ofício
lhar na área clínica, como psicanalista, par- uma arte, seja ela qual for (...) onde há de-
ticipa ativamente do cenário cultural do dicação e toque pessoal, tudo vira uma es-
Estado, tendo atuado em importantes tra- pécie de arte... A arte é o que nos justifica
balhos de cinema e teatro. Confessa “as idéi- como seres humanos” (sic).
as me acordam no meio da noite para nas- O poeta busca versos na memória, os
cer” (sic). E declara: “a arte não se explica, mesmos cuja sonoridade despertou o de-
ela demanda explicação” (sic). sejo de criar outros tantos. “Eu tenho cer-
A não aceitação inicial de sua escolha teza de ter escrito poesias com mais ou
profissional por parte da tradicional famí- menos 10, 11 anos. Isso se deu por uma
lia de Camile Claudel fez com que ela ti- espécie de contágio” (sic). O contato inici-
vesse que buscar dentro de si toda a força al com os clássicos da literatura na escola
que agora imprime a suas esculturas. Re- de padres preparou “o nascimento do pri-
lembra: “desde pequena eu sempre gostei meiro poema”. Aquilo me encantava, eu
de declamar, de fazer teatro” (sic). No en- achava magnífico isso. Aí, eu comecei a es-
tanto, seus irmãos riam, escondiam e até crever e de certa maneira foi um incêndio,
destruíam seus trabalhos artísticos, não atri- foi como atirar um fósforo num tonel de
buindo a mesma significação, sem enten- combustível. Aí não parei mais...” (sic). Com
der o que eles representavam para Camile: uma sólida formação no exterior e dezenas
“para mim era muito forte e isso foi fazen- de publicações, tornou-se um dos escrito-
do com que eu ficasse cada vez mais para res mais respeitados em nosso Estado.
dentro (...) e eu nunca tive coragem por O psicanalista que nos concedeu a
exemplo de fazer artes plásticas porque eu entrevista-piloto estuda arte e processos de
achava que eu ia rodar... fiquei com aquele criação há mais de 10 anos. Defende a po-
sentimento” (sic). Ainda na tentativa de se sição de todos podem ser artistas em qual-
encontrar, tentou sem sucesso aprovação no quer coisa: “é um jeito de fazer, um jeito de
curso de psicologia, mas “nada eu sabia, viver, não é uma propriedade, (...), depen-
eu queria tudo e não queria nada, minha de do processo de criação da pessoa. O ar-
mãe quase morria. Todo mundo indo e eu tista trabalha por ‘voluptuosidade’. Desta-
não me achava” (sic). Até que “chegou uma ca, ainda, algumas características especiais:
época em que eu não podia mais, era uma “os artistas têm uma capacidade de deso-
coisa muito forte”. Ao assumir para si esse bediência muito acirrada, além de tenaci-
desejo, também passou a ser admirada e dade, persistência, ousadia, coragem bru-
totalmente apoiada pelos familiares: “Eu tal e intensidade” (sic). A propósito, Trevi-
virei outra pessoa depois que estou fazen- san (1993, p. 18) escreve “cada homem
do o que eu gosto. Eu não queria fazer nada pode ser poeta, se o quiser”.
mais a não ser isso, tanto que eu não con- O que aproxima o meio “psi” do fazer
segui fazer outra coisa a não ser arte” (sic). artístico, nesta perspectiva, é o ato criador
Já para Clarice Lispector, a adolescên- contido, e por vezes temido nesta prática,
cia acompanhada mais por livros do que espaço, por excelência, de criação de reali-
por amigos transformou a escrita em pra- dades singulares. No fazer psicanalítico, em
zer de trabalhar com as letras. Recorda que sua cumplicidade com a criação artística,
a música foi a primeira grande arte que tem-se de maneira compartilhada, a cons-
entrou na sua vida: “meus pais sempre fo- trução de uma realidade inexistente até en-
tão, tanto para o paciente como para aquele Para Freud (1908) o prazer estético
que ocupa o lugar de psicoterapeuta. “Per- proporcionado pelo artista criativo e a ver-
cepção e criação são as duas faces de uma dadeira satisfação que usufruímos em uma
mesma moeda, são dois gestos de um mes- obra é procedente de uma libertação de ten-
mo ato; pois criamos o mundo no momen- sões em nossas mentes. Camile exprime
to em que o percebemos, fazemos de nossa essa liberação de tensão ao relatar como se
existência, absolutamente singular e origi- dá seu processo de criação escrita “... é
nal, o mesmo gesto da criação divina” ( Sou- como se eu tivesse que pôr para fora e se
za citado por Kon, 2001, p. 4). Lacan refere eu não puser eu morro. Às vezes eu estou
o prazer em relação ao entendimento dos no atelier trabalhando e começa a me dar
pacientes como sendo o processo de criação uma angústia e eu venho para cá... e escre-
na clínica, “o prazer de entender e ser en- vo e sinto que eu consigo tirar aquele peso
tendido, e se entender” (sic). de dentro de mim (...) eu tenho que botar
É flagrante no depoimento de Tom aquilo pra fora” (sic).
Jobim o contraponto entre o prazer e o so- Tom Jobim declara sobre o processo
frimento contido no ato de criação. “Na de criação:
verdade a arte é a expiação do sofrimento. Em momentos de angústia, é bastante
O que é mais prazeroso para mim, sempre, catártico. Eu coloco na canção toda a an-
infinitamente mais do que qualquer coisa é gústia, que parece que se esvai quase com-
a expressão criativa” (sic). Criar significa pletamente. Transformo a tristeza de uma
poder sempre recuperar a tensão e renová- perda, por exemplo, no encantamento de
la para garantir a vitalidade da criação e de observar um objeto artístico quase acabado,
seu produto transformado. Pela história de uma qualidade que eu ache minimamente
sabe-se que grandes artistas desenvolveram boa. Essa sensação não tem preço, o pri-
suas potencialidades num clima de graves meiro apaixonar-se por uma canção ou peça
instrumental que começa a ficar pronta. É
conflitos emocionais e de muita dor, dessa
uma espécie de auto-enamoramento (sic).
forma o conflito pode influir no processo
criador (Battistoni Filho, 1987). A experiência da criação artística per-
Kon (1996) recorda que, a partir da mite ao artista atribuir significado ao obje-
publicação de Além do princípio do prazer to criado e, sobretudo, produzir emoção em
(Freud, 1920), estabelece-se o dualismo quem aprecia sua obra. De acordo com
entre pulsões de vida e pulsões de morte. Read (1978), ao contemplarmos uma obra
Será essa mesma pulsão de morte, uma vez de arte, ocorre uma libertação de sentimen-
que não se articula no registro da lingua- tos e uma intensificação da sublimação.
gem, que imporá ao sujeito a necessidade Parece unânime a idéia de que algo pode
de inscrição no registro da simbolização. ser considerado arte se for capaz de emoci-
Ou será a pulsão epistemofílica? onar. Assim, como afirma o poeta, se um
Camile relata que uma de suas exposi- poema não produzir nenhuma emoção, não
ções foi feita no período em que sua irmã existirá. “Um poema só é totalmente poe-
estava convalescente e isso que a ajudou a ma quando lido, ouvido e compreendido”
elaborar o momento de luto e perda. “No (Trevisan, 1993, p. 74).
caso das relações sociais, a importância da A relevância da experiência artística -
tendência estética como adjuvante e acom- ao mesmo tempo que as coisas são inalcan-
panhante da função prática é especialmente çáveis pela arte – institui um lugar onde
evidente: a necessidade de atenuar confli- não só intensidade e excesso pulsionais têm
tos, conseguir simpatias, conservar a dig- a possibilidade de se fazer presentes, como
nidade pessoal e outras encontram apoio há, também, fundamentalmente, a possi-
nessa espécie de prazer desinteressado e bilidade de, por meio da criação artística,
plácido que acompanha a atitude estética” estruturar, a realidade de modo pessoal e
(Kostof e cols, 1984, p. 43). estilizado, inscrevendo as forças pulsionais
no registro do simbólico. Assim sendo, a A propósito, Amaral Dias (1990) des-
pulsão é uma força – drang - que necessita taca que, tanto a relação analítica como a
ser submetida a um trabalho de simboliza- arte, devem estar permeadas da busca da
ção e ligação para que possa se inscrever verdade e da subjetividade, pois a paixão
no psiquismo (Bartucci, 1999). pelo imaginário é partilhada por artistas e
A sublimação é compreendida como um analistas.
processo que consiste em a pulsão se lançar a Wölfflin (1984, p.251) apresenta um
uma outra meta, distante da satisfação sexual contra-ponto, ao dizer que:
propriamente dita, ou seja, pressupõe-se a A arte é o espelho da vida não significa es-
manutenção do objeto da pulsão, havendo, tabelecer uma comparação das mais felizes,
no entanto, a transformação do alvo. A subli- pois a visão do mundo não é um espelho
mação seria o que permitiria a constituição que nunca se modifica, mas uma capacida-
de uma dialética da alteridade por meio da de de compreensão, cheia de vida, que pos-
inscrição da pulsão no campo da cultura. A sui a sua própria história interna e passou
arte seria, assim, uma modalidade de subli- por diversas etapas de evolução.
mação às pulsões, na qual o sujeito manteria Ao se comparar a arte como um espe-
o objeto de investimento, transformando seu lho pode se dar uma idéia estática do proces-
alvo (Bartucci, 1999, online). so de criação. É preciso, antes de tudo, man-
Mesmo que a sublimação não possa ter a capacidade de compreensão do dina-
abranger a totalidade da atividade artísti- mismo do ato criativo, sua inefabilidade.
ca, Rivera (2002, p. 31) destaca: “a arte não O desenho tem a ver com o desejo
deixa, porém, de ocupar o lugar de uma humano de sujeitar as coisas. Desenhar
espécie de sublimação”. permite olhar melhor (Read, 1978). A esse
Clarice Lispector declara que a arte respeito, Van Gogh faz uma interessante
possibilita que se compreenda melhor as distinção:
transformações pelas quais o ser humano
“pintar é um tipo de pensamento, filosofia,
passa. A arte “é uma espécie de espelho
melhor que religião. O desenho principal-
mágico. Neste aspecto tem muito a ver com mente, a pintura também, o desenho eu
psicologia, que é a arte de se investigar” acho que liberta. A pintura não, te enfurna,
(sic). Afirmação análoga é feita por Camile te faz ficar mais arredio, mais solitário, o
Claudel “a arte é um retorno para dentro que é bom também. O desenho não, acho
de si próprio”. Isso remete ao que Kon que abre...” (sic).
(1996) descreve como a aproximação do
Van Gogh é enfático e categórico ao
espaço “psi” com o ato criativo. Criam-se
afirmar que, “a arte, como arte pura, não
realidades inéditas. Constróem-se as singu-
está a serviço de nada, só de humanizar o
laridades pelo fazer artístico. Por assim di-
indivíduo... Eu já não procuro mensagem
zer, novas territorialidades.
nenhuma, é a pintura pura, como elemen-
Van Gogh declara:
to visual só. É mais uma procura, uma re-
A arte tem muita proximidade com meu leitura dos meus sentimentos” (sic). Da
interior, o momento em que me descubro e mesma forma, pensa Tom Jobim: “Eu nun-
que tento entender a vida. Muitos acham ca acreditei muito nessa história de arte
que a arte muda o mundo, mas esse não é o engajada (...), sempre achei que não fazia
tipo da arte que eu faço. Minha arte é mais
muito sentido”. Quanto à função social da
intimista (sic).
arte afirma: “Entreter e emocionar já é uma
Tom Jobim compara a arte com “o es- função social bastante necessária... Gerar
pelho da verdade de cada um” (sic). E “o que encantamento é uma função social impor-
eu mais expresso são as minhas verdades tante” (sic).
(mais ou menos profundas)... O que eu ex- Estes pontos de vista são confirmados
presso é meu, e só meu (...) meus encanta- por Trevisan (1990, p. 86): “Para que serve a
mentos, as coisas que me emocionam” (sic). função estética? ‘Para nada’ (...). A questão
como foi formulada supõe uma finalidade. no leitor uma emoção parecida, cuja grada-
Ora, a obra de arte (e a natureza, na medida ção não se pode medir porque ela depende
em que o é) obriga o homem a adotar uma também da sensibilidade do leitor” (sic).
atitude de mero receptor perante ela”. Para Brecht “não é o autor que cria a
No relato de Clarice Lispector: “A arte obra e sim a obra que o cria” (sic). “Ao dei-
pode ser engajada, explicitamente política, xar de considerar o objetivo exterior, a obra
ou ser apenas entretenimento. Nos dois faz aparecer um sujeito, a pessoa que criou
casos há uma espécie de comunhão entre o a obra, ou aquela que a frui” (Trevisan,
artista e o observador. Mesmo quando a arte 1990, p. 87).
é apenas entretenimento, acredito que fa- A arte serve para valorizar os aspectos
zer uma pessoa se divertir, rir de si mesmo, inaproveitados da realidade, mantendo o
também é uma função social, também é homem em situação de estranheza perante
uma contribuição bem-vinda. Ela anula o universo. “Em arte não existem certezas.
preconceitos” (sic). Quando existem, importam menos do que
Clarice pensa que o artista expressa o resto” (Trevisan, 1990, p. 13).
sua visão de mundo e a divide com o públi- “Suportar o desconhecido também sig-
co para que cada um reflita a respeito. Tre- nifica não aceitar respostas fáceis, pois es-
visan (1990) afirma que qualquer tipo de tas invariavelmente nos remetem ao conhe-
arte supõe um mínimo de comunicação. cido, ao estandartizado e aos clichês”. (Sou-
Neste sentido, Wöfflin (1984, p.135) sa, Tessler, Slavustky, citados por Conte
escreve que “toda obra de arte possui uma 2001, p. 153). Referente a isso o diretor te-
forma, é um organismo. Seu traço essenci- atral critica a cientificidade e suas respos-
al reside no caráter da inevitabilidade, se- tas prontas:
gundo o qual nada pode ser alterado ou Na criação, na produção nos deparamos
removido, devendo tudo ser exatamente constantemente com o desconhecido e o
como é”. homem cria defesas contra o desconheci-
A transformação da realidade, do co- do. A arte é montada em cima desse para-
nhecido em desconhecido, é mencionada doxo da vontade de conhecer o desconhe-
por Fernando Pessoa: cido e as defesas que o homem cria contra o
desconhecido. Portanto, como criar uma
a função da arte é ampliar o mundo das coisa sendo que essa coisa sai de um meio
sensações, dos sentimentos, das emoções e que é conhecido e tem que ser um produto
dos mitos da pessoa. A arte produz uma novo, desconhecido? Esse é o desafio da
ampliação da atenção e da vivência, quer arte (sic).
dizer, muitas coisas que normalmente pas-
sam despercebidas, que tu observa muito Nesse sentido, Amaral Dias (1990) pro-
genericamente, o poeta, o pintor, o escul- põe a relação analítica como paradigma da
tor e assim por diante, põem em destaque comunicação estética e faz uma crítica ao
e, de repente, tu vês uma coisa que aparen- mito da demonstrabilidade da ciência que,
temente tu já tinhas visto, mas tu vês de uma ao verificar hipóteses e procurar medidas,
forma tão nova, tão surpreendente e tão
perde sua audácia criadora. Explicita que
deleitosa, prazerosa que tu mesmo te
se estabelece entre o analista e o analisando
surpreende(sic).
uma relação estética, sendo que a verdade
De acordo com Honigsztejn (1972), a emerge da faculdade do sentir. A essência
linguagem poética ultrapassa seu uso dis- da atitude analítica é a paixão pelo imagi-
cursivo e atinge um grau mais amplo, o de nário que, por sua vez, é partilhada por ar-
expressar sentimentos. Sobre a estética da tistas e analistas.
recepção, o poeta afirma que “o verdadeiro Sendo assim, a interação analítica pos-
poema é aquele que, partindo de uma emo- sui um sentido estético e está permeada pela
ção profunda e original, de uma emoção subjetividade e busca da verdade. A beleza
impressionantemente humana, consegue dessa relação gera significados compreen-
encontrar uma forma verbal que provoque sivos no psiquismo, assim como a obra de
arte que precisa ser decifrada e interpreta- lúdico. Além do aspecto lúdico da poesia,
da por aquele que a contempla. relacionado com a defesa da existência,
Van Gogh emite outra percepção: “a cumpre destacar seu caráter de sonho lúci-
arte e a ciência são as pontas de lança da do. “O poeta é o continuador da criança”
humanidade, é o que faz o mundo ir para a (Trevisan, 1993, p. 26).
frente. A arte permite ao artista abrir mais O processo de criação, entretanto, não
possibilidades ser mais ousado. Acho que é apenas uma continuação ou substituto do
as duas se completam” (sic). que foi o brincar infantil. Entende-se, a
Trevisan (1990, p. 19) menciona o quí- partir do desenvolvimento deste trabalho,
mico francês, Jean Jacques, que declara ser que uma das finalidades da arte é propor-
o critério da qualidade científica, mais ime- cionar o prazer estético aos que a contem-
diatamente evidente, é o de qualidade es- plam, ou sentem-se fundamentalmente to-
tética: cados pela obra. Essa é essencialmente a
A impressão, quase diria a emoção, que pro- idéia presente na fala dos artistas entrevis-
porciona uma bela descoberta não é, sem tados. Isso importa mais do que entendê-
dúvida, mais fácil de analisar do que a que la como devaneio ou substituto fantasioso
se experimenta diante de uma obra de arte. de elementos infantis, pois o processo de
A forma (na mais das vezes escrita), sob a criação transcende a esse conceito.
qual se apresenta uma criação, contribui O psicanalista tece a seguinte metáfo-
para impor isso, pela sua clareza, sua vida, ra: “a psicanálise tem se comportado com
seu ‘estilo’ (...) Mais ainda, contudo, que a o global do ser humano como uma máqui-
sua apresentação é o conteúdo mesmo da na fotográfica com um potente zoom, mas
descoberta, que pode ser objeto de um juízo
sem grande angular. Identifica com perfei-
estético....
ção detalhes, mas perde a visão de conjun-
Fernando Pessoa afirma que: to” (sic).
... a função do artista, verdadeiramente, é Trevisan (1993, p. 20) utiliza o concei-
dar prazer às pessoas. Aprofundando o cam- to de Wordsworth - ”emoção revivida na
po da atenção e fornecendo-lhe estímulos tranqüilidade” - para explicar o conceito de
para novas memórias e novas imaginações. distância psíquica, pois “o poeta facilmen-
Além disso a arte também tem uma função te se deixa arrastar pela emoção, ao invés
especificamente intelectual, que é aguçar a de arrastá-la consigo”. O poeta não nasce
inteligência das pessoas. As pessoas pen- poeta, nasce dentro de um poema. “A poe-
sam ter entendido as coisas muito rapida-
sia ensina ao homem a arte de ‘se animar’
mente. O artista te mostra que a tua com-
preensão é muito pequenina.
em função de sua sobrevivência; de cavar
uma trincheira psíquica”. Dessa maneira, a
Para Trevisan (1993, p.11), “a inspira- poesia constitui a forma psíquica do desejo
ção é um vento que sopra para dentro”. E a de existir.
poesia parece surgir no ponto de intersec- Para o poeta: “a criação literária e ar-
ção da consciência e inconsciência”. Fer- tística exigem momentos excepcionais de
nando Pessoa confirma: lazer. Mais lazer, aparentemente ‘perda de
É realmente uma coisa que vai para dentro, tempo’, do que o comum dos mortais. Por-
te obriga a uma reflexão emotiva. Porque a que o tempo de elaboração dessas emoções,
reflexão é recurvar-se, re-flectir, dobrar... Há dessas imagens, exigem da pessoa muita
dois tipos de reflexão, uma que aborda o dedicação” (sic). Ao aguçar a sensibilidade
plano puramente intelectivo e a outra refle- surgem momentos que geram a criação:
xão aborda o plano emotivo. Então, o poe-
ta se interessa pelas duas, mas mais pelo Não que seja misteriosa, nem mágica, é uma
sentimento . experiência de intensificação da atenção
global, atenção sensória, emocional, da
Clarice Lispector refere que a arte pro- memória e que se dá numa fração de ins-
porciona o prazer da beleza, de criar algo tante e que depois fica te alimentando du-
rante muito tempo, é uma coisa meio radio- torna-se indispensável, pois sendo a subje-
ativa e tu vai elaborando aquilo e não te dás tividade do artista uma das fontes de sua
conta do que está naquela experiência. criação e estando a psicologia preocupada
O poeta, enquanto poeta, isto é, em justamente com essa subjetividade, é vital
estado de graça, sofre uma espécie de ejeção a importância da psicologia na compreen-
de si, um salto centrífugo, simétrico ao sal- são da arte, dentro da perspectiva do artis-
to centrípeto da inspiração. É o momento ta e de seu processo de criação.
da “ex-pressão”, do jorro para fora. A cria- O estudo do processo de criação artís-
ção poética é um misto de acaso e elabora- tica também pode contribuir para um es-
ção (Trevisan, 1993, p. 16). A poesia é um clarecimento da própria psicologia, propor-
estado de vida, um ‘momentum’. Em rela- cionando assim um avanço ao conhecimen-
ção ao método de criação poética: “cada to, afinal o homem só é inteiramente feliz
poema fabrica o seu próprio método. quando cria.
De acordo com Camile Claudel: “o
processo criativo realmente é isso, eu não
sei explicar, é um impulso, é uma emoção, CONSIDERAÇÕES FINAIS
é um momento, é alguma coisa muito for-
te, uma explosão de alguma coisa dentro Seja qual for o caminho que eu escolher,
de ti. Agora o que é?”. um poeta já passou por ele antes de mim.
Vigotsky (1998, p. 81) escreve sobre a Sigmund Freud
dificuldade de saber em que consiste a
emoção que nos liga à arte, “o aspecto mais Esse estudo permite observar que a
substancial da arte consiste em que os pro- arte pode estar a serviço da expressão do
cessos de criação e os processos do seu sujeito saudável, pois não se trata de uma
emprego vêm a ser como que incompreen- mera descarga de elementos ou desvios e
síveis, inexplicáveis e ocultos à consciência deslocamentos. Possui potência e ação que
daqueles que operam com ela”. Isso con- geram movimento, instaurando outras áreas
tribui para esclarecer os depoimentos dos de realização. Para que se possa entender a
artistas que não explicam exatamente como essência da arte, há que se estudar com
se dá o processo de criação, mas sentem e olhos internos aquilo que não está visível e
transmitem intensamente suas emoções nas que nem sempre é reconhecido intelectu-
obras criadas como uma meta-realidade. almente. A obra de arte toca por ter vida,
Conrad (1990) destaca que é mais im- emociona por conter ritmos, sustentar ten-
portante perguntar qual o sentido da cria- sões e harmonias.
ção enquanto experiência humana, do que A função do processo de criação pode
descrever as causas da criatividade. Para ser entendida como a possibilidade de res-
Trevisan (1990, p.18), “o gozo estético e o gatar metaforicamente a realidade através
gozo artístico fazem parte dos meios pelos da inscrição da pulsão no psiquismo.
quais uma pessoa obtém relativa plenitude Quando essa força é submetida ao traba-
existencial. Eles têm, em última análise, a lho de ligação e simbolização, capacita o
ver com a felicidade”. artista a dotar de significado sua obra ou
Pareyson (1989) refere que a atividade experiência criativa. Dessa forma, pode-se
artística consiste propriamente no formar, compreender a doença psíquica como uma
isto é, exatamente num executar, produzir espécie fracasso do imaginário e, conse-
e realizar, que é, ao mesmo tempo, inven- qüentemente, do ato de criar.
tar, figurar, descobrir. Portanto, a arte tam- O artista pode estar buscando a cons-
bém é invenção. trução de si próprio nas suas manifestações
A indagação que se refere à natureza artísticas e, a partir do momento em que se
do processo de criação aproxima psicolo- expõe à admiração do espectador, realizar
gia e estética. Nesse momento, a psicologia uma tentativa de se constituir através do
olhar do outro. Ocorre aí a busca incessan- to artístico. Em: A.M. Saldanha (coord.).
te do viver criativo e da capacidade de se Psicologia e arte: 5 ensaios. Porto Alegre: PU-
gerar obras de arte, quer sejam essas obras CRS e Instituto de Cultura Hispânica do RS.
livros, telas, músicas. Freud, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria
No entanto, os depoimentos de todos da sexualidade. Em: Obras Psicológicas Com-
os artistas transcendem para o fato de que o pletas. v Rio de Janeiro: Imago, 1996.
processo de criação está relacionado com a Freud, S. (1907). Delírios e sonhos de Gra-
satisfação da necessidade humana de expres- diva de Jensen: Em: Obras Psicológicas Com-
sar-se e produzir emoção, de imaginar, co- pletas v. 7. Rio de Janeiro: Imago 1996.
municar e dar sentido ao que é desconheci- Freud, S. (1907). Escritores criativos e de-
do e pode ser transformado em arte. Criar é vaneios. Em: Obras Psicológicas Completas,.
mais do que expressar. É tornar possível a v.9. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
maior de todas as obras de arte: a própria Freud, S (1910). Leonardo da Vinci e uma
vida. Sendo assim, obra de arte sempre trans- lembrança de sua infância. Em: Obras Psi-
cende a si mesma, assim como o homem colólgicas Completas, v.11. Rio de Janeiro:
transcende infinitamente o homem. Imago. 1996.
Assim como a arte, este trabalho finda Freud, S. (1913). O Interesse da Psicanálise
desejando dizer o indizível, procurando dar do ponto de vista da ciência da estética. Em:
sentido àquilo que anda em busca de signi- Obras Psicológicas Completas. v.13. Rio de
ficação, e, quem sabe, tentando religar o Janeiro: Imago, 1996
homem a seu imaginário. Freud, S., (1914) O Moisés de Michelânge-
lo Em: Obras Psicológicas Completas v. 13 .
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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