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O Processo Criativo da Arte: uma abordagem junguiana The Creative Process of


Art: a jungian approach

Conference Paper · August 2019

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Filipe Salles
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O Processo Criativo da Arte: uma abordagem
junguiana
The Creative Process of Art: a jungian approach

Prof.Dr.Filipe Mattos de Salles


Instituto de Artes
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
Campinas, São Paulo
fmsalles@unicamp.br

Abstract— This article proposes to discuss the need of uma manifestação característica e típica de nossa psique (ao
production and consumption of art, and, of course, the que se poderia acrescentar: de forma indelével e exclusiva),
ontological reason of the art inserted on the world and culture of depreendemos que a razão da existência da arte deve estar
our civilization, and why it is so natural since the dawn of intimamente atrelada a ela. O trabalho de Jung, por tratar de
humanity. The logical development of this question goes through aspectos sensíveis da figuratividade imaginativa, nos parece o
the importance of art and the growth of culture in all its mais adequado para adentrar neste universo, cuja tentativa de
diversity, and for embrace properly this, we choose Jungian compreensão por razões puramente mecânicas nos escapa ao
analitic psychology and Platonic philosophy as theoretical entendimento lógico.
approach. Different from the common analysis of this subject, in
which the art-object is the main theme, here we choose to Tal constatação tem por base a premissa de que a
considerer the emotional results between subject and object, as apreciação artística, ou o sentimento de estética que todos
the final parameter to achieve the sense of art state in all possible experimentamos em algum grau, não é um atributo externo;
objects, as well in all cases, epochs or styles. This results in a new justamente ao contrário, é um atributo altamente pessoal,
and embracing view of the art state and his consequences, embora sujeito, como qualquer outra coisa, a modismos e
including the reason of its vital importance and a simple and julgamentos pré-estabelecidos de uma determinada sociedade
general definition of art. ou valor temporal. Mas é, antes de tudo, uma manifestação
sensível, e portanto energética, de maneira que parece ser
Keywords—Creative Process; Art; Philosophy of Art; Analitic
Psychology in Art; Art Theory
natural a incompletude das tentativas de entendê-la
mecanicamente, a partir do objeto2. Ademais, nos parece que,
justamente por todos os seres humanos compartilham
I. INTRODUÇÃO igualmente uma psique consciente e outra inconsciente,
Senso comum, a aplicação de diferentes verves da observa-se que o sentimento que advém da experiência estética
psicologia no meio da arte em geral se limitam à análise clínica é comum a todos (trata-se de um arquétipo), mesmo
de determinados comportamentos por meio da expressão considerando a diversidade de suportes que possibilitam tal
sensível, a chamada Arteterapia. Outras aplicações genéricas conexão, bem como diferentes graus de profundidade. Neste
incluem análises comportamentais de personalidades artísticas universo inclui-se os próprios artistas criadores, abrindo
na tentativa de abarcar melhor os aspectos criativos que margem para utilizar as bases da psicologia junguiana também
permeiam suas obras1. Mas algumas contribuições na área da na interpretação de fenômenos estéticos.
psicologia analítica junguiana na arte nos abrem possibilidades Adentremos, portanto, esse universo procurando tecer
muito mais amplas que a análise psicológica como fim em si, ligações dos conceitos junguianos com as teorias estéticas
no leque de variáveis tangíveis no assunto. Alguns dos vigentes:
conceitos fundamentais da obra de Carl Gustav Jung nos
permitem ultrapassar tais limites terapêuticos e inferir a própria
origem e significado da arte na esfera humana. Sendo a arte II. A NATUREZA DA ARTE
A arte é um produto genuinamente humano, produzido e
1
compartilhado apenas em nossa espécie, e portanto tem
Este recurso é bastante utilizado na psicanálise freudiana. É notório, sob este características específicas da nossa natureza, que, nos
aspecto, que grande parte destas análises se limitam em traçar perfis
psicológicos de artistas, que no mais das vezes nos fazem procurar pontos de
diferenciando de todos os demais seres biológicos, permite um
convergência entre tais características comportamentais e seus equivalentes na
2
obra artística. O próprio Jung nos dá uma dica profética para este caminho, O termo 'energético' foi usado por Jung para diferenciar a natureza de
quando menciona que uma interpretação psicanalítica nos dará um quadro fenômenos segundo dois tipos de análise: "É fato universalmente conhecido
patológico do artista, mas que isso nada tem a ver com sua obra ou sua que os fenômenos físicos podem ser considerados sob dois pontos de vista
criação. Cita, inclusive o caso da autópsia do cérebro de Nietzsche, para distintos, a saber: do ponto de vista mecanicista e do ponto de vista
descobrir a atípica paralisia que provocara sua morte, e emenda: “O que isso energético."[2]. Neste trabalho, me refiro a aspectos exclusivamente
tem a ver com o Zarathustra? Não é ele um mundo todo e único em si, que energéticos.
sentimento igualmente único: o prazer estético. O Autor Citação Fonte
questionamento sobre a razão da existência deste prazer, cuja “As definições mais conhecidas PAREYSON, Luigi.
busca motiva a produção do que chamamos arte, tem da arte, recorrentes na história Os problemas da
percorrido todo o pensamento filosófico humano desde, pelo do pensamento, podem ser estética. São Paulo:
reduzidas a três: ora a arte é Martins Fontes, 2001;
menos, a antiguidade clássica, donde textos fundamentais concebida como um fazer, ora p.21
desenvolveram uma primeira noção do que seria a estética e como um conhecer, ora como
seus desdobramentos. Platão e Aristóteles são os autores mais Pareyson
um exprimir. Essas diversas
citados neste contexto, mas que formam um complexo literário concepções ora se contrapõe e
ainda herdado dos pensadores neo-pitagóricos e pré-socráticos, se excluem uma às outras, ora,
pelo contrário, aliam-se e se
que desembocaram em inúmeras digressões até a era moderna, combinam, de várias
na tentativa de abarcar a totalidade do fenômeno artístico. A maneiras”.
Tabela 1 abaixo nos ajuda a entender essa grande quantidade “Se a arte é uma noção sólida, COLI, Jorge. O que é
de definições, que vão dos pensadores iluministas até recentes seus limites são imprecisos(…). Arte – São Paulo:
autores do final do século XX: Para decidir o que é e o que não Brasiliense, 1989;
é arte, um instrumento p.10
Coli essencial é o discurso sobre o
TABELA 1 objeto artístico: o crítico, o
historiador, o curador, o perito.
Autor Citação Fonte São eles que conferem o
“originadas e engendradas pelo HEGEL, G.W.F. estatuto de arte a um objeto”.
espírito, a arte e as obras Curso de Estética: O “A arte é um fazer. A arte é um BOSI, Alfredo.
artísticas são de natureza Belo na Arte. 2a. conjunto de atos pelos quais se Reflexões sobre a
Hegel espiritual” (1) Edição, São Paulo: muda a forma, se transforma a Arte. São Paulo: Ática,
Despertar da Alma: “este é, Martins Fontes, 2009; Bosi matéria oferecida pela natureza 1991; p.13
dizem-nos, o fim último da p.17 (1), p.32 (2) e pela cultura. Neste sentido,
arte” (2) qualquer atividade humana (...)
“arte é a atividade humana que TOLSTÓI, Leon. O pode chamar-se artística”.
consiste em um homem que é Arte? Rio de “O artista é aquele de quem os BORDIEU, Pierre. El
conscientemente transmitir a Janeiro: Nova artistas dizem que é artista.” sentido social del
outros (...)os sentimentos que Fronteira, 2016; p.60 Bordieu gusto. Buenos Aires:
ele vivenciou, e esses outros (1), p.210 (2) Siglo Ventiuno, 2010;
serem contagiados por esses p.25
sentimentos, experimentando- “O sentido fundamental da arte OSTROWER, Fayga.
Tolstói os também” (1) é ampliar o viver e torna-lo Acasos e criação
Ostrower
“A arte não é prazer, mais intenso, nunca diminuir artística. Campinas:
consolação ou divertimento; é ou esvaziá-lo. Unicamp, 2013
algo grandioso. Ela é um órgão
da vida da humanidade, que
transmuta a consciência De certa maneira, entendemos que esta diversidade de
racional das pessoas em conceitos é justificável pela utilização do objeto artístico como
sentimento”. (2) parâmetro para entender razão do sentimento estético, o que,
“Arte é aquilo que todos sabem CROCE, Benedetto.
o que é” (1) Breviário de estética –
do ponto de vista filosófico, tem se mostrado equivocado, já
“Arte é visão e intuição” (2) Aesthetica in nuce. que falamos de inúmeras possibilidades de interpretação. É
Croce muito mais difícil definir um objeto pelo conjunto de suas
São Paulo: Ática,
1997; p.31 (1); p.35 possíveis interpretações do que por uma essência fundamental
(2) que, mesmo parcial, é o que alcançamos com o conhecimento
“a arte é, em vez de imitação da ADORNO, Theodor. científico atual.
natureza, uma imitação do belo Teoria estética.
Adorno
natural” Lisboa: Edições 70, Mas onde estaria essa essência? Como dissemos no início,
1971; p.87 sendo a arte um produto humano, não temos motivos para
“Então a essência da arte seria HEIDEGGER, Martin.
esta: O pôr-se em obra da A origem da obra de procurar em outro lugar que não na psique, como entidade
Heidegger responsável por este fenômeno. Arte é um produto mental, é
verdade do ente.” arte. Lisboa: Edições
70, 1992: p.25 idealizada, produzida e apreciada apenas e tão somente na
“Nenhuma das discussões sobre GOMBRICH, E.H. instância de nossa mente. Ela não alimenta nem fisicamente,
percepção jamais resolverá o Arte e Ilusão. São nem fisiologicamente nenhuma parte de nosso corpo, mas,
Gombrich
mistério da arte” Paulo: Martins Fontes,
1995 (P.17)
concomitantemente, fornece energia psíquica de tal grau que
“Uma coisa que realmente não GOMBRICH, E.H. não há sociedade no mundo que não tenha alguma forma de
existe é aquilo a que se dá o História da Arte. Rio expressão chamada artística. Nossa própria realidade é
Gombrich
nome de Arte. Existem somente de Janeiro: Guanabara, puramente psíquica, conforme atesta literalmente Jung: "toda a
artistas.” 1988 nossa experiência da chamada realidade é psíquica: cada
“Arte é o meio indispensável FISCHER, Ernst. A pensamento, cada sentimento e cada ato de percepção são
para essa união do indivíduo Necessidade da Arte,
com o todo; reflete a infinita 9a. Edição, Rio de
formados de imagens psíquicas, e o mundo só existe na medida
Fischer em que formos capazes de produzir sua imagem." [3]
capacidade humana para a Janeiro: Guanabara,
associação, para a circulação de 1987
experiências e ideias”
Esta, apesar de parecer simples, não é uma informação ainda que não possa ser quantificada ou manipulada em
trivial, pois se a arte se passa num plano mental, não há razão laboratório. Essa energia, que para Freud limitava-se ao
para tentar definir ou justificar a arte pelo seu objeto, ou pelo aspecto sexual – a libido – em Jung ganha a amplitude de
produto artístico. E a literatura sobre o assunto insiste no energia motora de nossas ações, a Energia Psíquica, e existiria,
aspecto formal, material, da arte: é a apoteose do fetiche. no desenvolvimento desta, um arcabouço de emoções
Ademais, a análise por tais parâmetros se mostra naturalmente guardadas em nódulos energéticos no inconsciente coletivo, a
incompleta se considerarmos que o nível físico de manifestação que justamente Jung chamou de arquétipo. Os arquétipos, na
despreza o aspecto sensível, e, portanto, psíquico, que norteia a definição interpretada por Nise da Silveira, seriam
criação e a apreciação artística. Por essa razão, tentaremos "possibilidades herdadas para representar imagens similares,
seguir por outro caminho, que procure por sua vez uma são formas instintivas de imaginar. São matrizes arcaicas onde
interpretação capaz de dar conta de toda a subjetividade e configurações análogas ou semelhantes tomam forma."Error!
multidisciplinaridade que a arte apresenta, e nos parece que a Reference source not found.
melhor ferramenta é a psicologia analítica. Pelo lado da arte,
O arquétipo, sendo energia psíquica, se atualiza quando
Gombrich cita Friedlander na epígrafe de Arte e Ilusão: “Sendo
a arte uma coisa da mente, segue-se que qualquer estudo acessado através da consonância de emoções (pois são
vibrações), e forma então uma imagem arquetípica, que
científico da arte é psicologia. Pode ser outras coisas também,
mas será sempre psicologia.”[4] Desta mesma opinião adquire significados e formas diversas, de acordo com a
interpretação pessoal de quem acessou. Por esta razão, o
compartilha o lado da psicologia analítica, através de Jung,
que, muito a propósito, tem um artigo pertinente a este tema, arquétipo é uma entidade autônoma, existente em si mesma,
“ao mesmo tempo imagem e emoção”Error! Reference
no qual expressa essa mesma conclusão nos seguintes termos:
“Essa relação [arte e psicologia] baseia-se no fato de a arte, em source not found., "depositário de impressões superpostas
deixadas por certas vivências fundamentais, comuns a todos os
sua manifestação, ser uma atividade psicológica e, como tal,
pode e deve ser submetida a considerações de cunho humanos, repetidas incontavelmente através de
milênios"Error! Reference source not found., fazendo do
psicológico”.[5]
inconsciente coletivo uma fonte de conhecimento e vivência,
É notório, pelo quadro das definições de arte apresentadas sendo permeados por filtros sensíveis que nós mesmos
na Tabela 1 deste trabalho, que muitos autores colocam o escolhemos conforme nossa estrutura psíquica.
componente sensível de maneira proeminente, e sem o qual não
Nos parece que grande parte das concepções criativas,
é possível investigá-la. Até mesmo o próprio termo ‘estética’,
advém do grego Aesthesis, literalmente ‘sentir’. Ora, o sendo produtos psíquicos, dialogam em diferentes níveis com a
energia psíquica contida nos arquétipos.
componente sensível não está no objeto, e sim no espectador .
Portanto, é lógico admitir que o “sentimento” de arte (e que O acesso a um arquétipo, por necessidade ou consonância,
confere ao objeto esta categoria) é dado pelo espectador em que neste contexto terá como resultante algum tipo de
relação ao objeto, e não o oposto. sentimento, dará, em cada indivíduo, uma medida de valor
É precisamente nesse ponto que a psicologia junguiana vem emotivo, decorrente tanto da sua pré-disposição sensível
quanto da maior ou menor aproximação de semelhança com a
ao nosso auxílio como base de fundamentação para aplicar este
conceito, na medida em que trabalha com as reações advindas imagem original arquetípica de onde provém. Todo este
processo é puramente mental, e nos parece que funciona como
de um substrato psíquico comum à toda humanidade, e que é
atualizado exatamente em função de descargas de energia uma via de mão dupla: tanto na criação quanto na apreciação
artística, a energia do arquétipo estará presente, ou como
psíquica, ou seja, de emoção.
estímulo criativo, ou como prazer sensível.
Poderíamos resumir este conceito no seguinte percurso:
Da mesma maneira que, neste processo, um sentimento se
toda a sorte de acontecimentos de nossa vida tem sua origem
em nossas sensações e emoções, muitas delas (a maioria, apresenta com mais ou menos intensidade, a apreciação de uma
obra de arte também deve seguir razão similar. Quanto mais
segundo Jung), de natureza inconsciente, que por sua vez
norteiam nossa vontade, ao ponto que podemos inferir, universal o arquétipo, e quanto mais a forma decodificada e
materializada se aproxima de seu modelo, mais teremos a
logicamente, que a vida, de um ponto de vista psíquico, é uma
sucessão de vontades, realizadas ou frustradas, mas sempre em sensação de ‘beleza’ estética; ou seja: o ‘belo’ não é um
modelo fixo, é uma sensação advinda do reconhecimento
movimento, e cuja resultante é emocional. Assim, somos
movidos pela busca do prazer emotivo, mas lidamos também energético da semelhança entre um objeto e seu modelo
arquetípico pleno, operação esta que é puramente psíquica, e o
com sua antítese (o desprazer), em função de escolhas
profundas das quais muitas vezes não conhecemos a origem. mais das vezes instintiva: “O inconsciente (...) parece ser
dirigido principalmente por tendências instintivas,
As descargas emotivas resultantes que cada um de nós sofre ou
assimila, estão ou ficarão gravadas naquilo que Jung representadas por formas de pensamento correspondentes – isto
é, por arquétipos.” [9]. É justamente do reconhecimento
denominou Inconsciente coletivo, o substrato psíquico comum,
que, da mesma forma que uma herança genética, nos fornece a sensível da energia do arquétipo que advém o prazer estético, e
com isso, uma explicação razoável para o fenômeno artístico,
herança da psique.
uma vez que se estabelece algum tipo de parâmetro que
A base deste conceito se debruça sobre a concepção de que permitiria a gradação de sensações das coisas entre um objeto
um pensamento, revestido de emoção, constitui uma realidade qualquer e uma obra de arte. A diferença? Apenas de
psíquica comprovável, e existe enquanto entidade energética, percepção em relação ao seu arquétipo modelo.
A arte seria, então, um grau de mediação sensível entre o que temos ampla possibilidade para entender estes fenômenos
espectador e o objeto representante de formas arquetípicas, ou, como puramente psíquicos, e assim transpassar esta barreira.
em outras palavras: a arte é o parâmetro que damos a algo que
O passo seguinte, que se reveste de ousada pretensão em
representa um ideal. A interação, portanto, não se dá
diretamente entre sujeito e objeto, e sim entre o sujeito e a elaborar uma hipótese para guiar referências possíveis neste
caminho, é, provavelmente, reconhecer a síntese entre uma
energia arquetípica da qual o objeto é representante
tridimensional. Nos parece razoável entender que é daí que necessidade psíquica e uma realidade energética - o arquétipo e
nossa consequente natural e instintiva atração pelo seu ideal -
advém o sentimento plenificante da obra de arte, e também da
necessidade de contemplar obras que nos sensibilizam. que se traduz no aspecto sensível como, de um lado, pela
necessidade de expressar a transbordante energia para o nível
Assim, podemos inferir que qualquer objeto teria potencial da consciência (o artista) como de outro lado, a necessidade de
para ser artístico em algum grau, pois o status de arte não está contemplar o inconsciente coletivo e vivenciar as emoções
no objeto, e sim nesta relação que se estabelece entre indivíduo proporcionadas, segundo o nível de sensibilidade de cada um
e objeto. É esta a razão pela qual é corrente o uso da palavra (o espectador). O processo do fazer artístico nos parece,
‘arte’ quando se quer fazer referência a algo que seja muito segundo uma análise junguiana, um processo de troca de
agradável, ou muito bom, grandioso, feito com excelência: energia psíquica, através do potencial arquetípico, sem o qual
torna-se estético. Faz-se, assim, um uso inusitado, porém não haveria nem a energia e nem a emoção necessárias para
pertinente, do termo, como ‘futebol arte’, ‘arte culinária’, e até fazer desta uma atividade minimamente útil para a espécie
mesmo uma demonstração ‘elegante’ de um axioma humana.
matemático. Como esta sensação poderia ser despertada se não
Jung descreve, senão toda, uma boa parte desta
existisse um modelo de comparação?
fenomenologia em dois textos fundamentais em que trata
É oportuno mencionar, em função dessa observação, que especificamente da relação entre arte e psique, Relação da
talvez o conceito de 'objeto artístico' fique por demais nebuloso psicologia analítica com a obra de arte poética e Psicologia e
se não houver nenhuma instância capaz de diferenciá-lo de um poesia, ambos publicados como capítulos do Espírito na arte e
objeto qualquer além de seu potencial arquetípico. Ora, mas na ciência (1991).
qualquer objeto tem algum potencial em função de sua
Dada a premissa anterior, de que a arte é uma interação
utilidade ou suas atribuições, e portanto deduzimos que, apesar
de poder reconhecer que qualquer objeto pode ser 'artístico' mental entre um sujeito e um objeto que representa uma
imagem idealizada (arquetípica), causando então o sentimento
(vide o exemplo de Duchamp), que instância reduziria um
objeto apenas a este valor, e a nenhum outro? Essas digressões estético, Jung apresenta as características do processo criativo
em consonância significativa com tais parâmetros,
nos apontam, por inferência lógica, para a instância que aqui
estabelecendo sobretudo a razão psíquica como norteadora
denominarei 'contemplativa', na qual um objeto não tem
nenhuma outra função além de estabelecer conexão com o deste processo: "Este é o segredo da ação da arte. O processo
criativo consiste [...] numa ativação inconsciente do arquétipo e
modelo arquetípico que representa. A função da obra de arte é
ser arte, até que um dia, tudo seja arte. numa elaboração e formalização da obra acabada"[10]. A
concepção artística de Jung nos parece reunir todos os
Aí temos um objeto feito ou apresentado especificamente aspectos, tanto mecanicistas como energéticos, do processo
para contemplação, dado seu contexto externo, e cuja função é criativo, pois considera a elaboração técnica formativa como
justamente atualizar a energia psíquica, criando assim uma uma parte integrante, mas admite o ponto fundamental de
conexão sensível com o espectador. Este, por sua vez, reage início como sendo uma atração estritamente psíquica, a atração
através da emoção, ao contemplar tal modelo: eis o sentimento da energia arquetípica. Do ponto de vista criativo, quando um
do belo, a natureza da arte. arquétipo nos sensibiliza, há uma reação natural de
interpretação cerebral, física, que se traduz, no mais das vezes,
III. O PROCESSO CRIATIVO nas imagens arquetípicas, em que podem ser verificadas desde
reações emotivas visíveis, até uma canalização desta energia no
A psicologia junguiana parece resolver de forma eficiente o sentido criativo, gerando, por sua vez, alguma forma
dilema da sutil ponte entre a racionalidade combinatória com a tridimensional, quer seja pictórica, um texto, uma música, ou
espontaneidade inspiradora das escolhas estéticas que qualquer outra forma de expressão.
constituem o fazer artístico. O grande questionamento sobre o
que é a arte, o ser artista e seu legado, muito bem ilustrado no Poderíamos assim supor que todos os processos criativos
filme Amadeus (1984) de Milos Forman, em que o personagem derivam deste ponto inicial, de grande concentração energética,
de Salieri (vivido de forma memorável por F. Murray tal qual um micro big bang mental, e que fazem da arte um
Abraham) se contorce para entender. Como quantificar o universo complexo e autônomo.
gênio? Por que certas obras, ou certos artistas, se destacam com Entretanto, observamos também a ocorrência de diferenças
força tão desproporcional uns dos outros no desenrolar de uma significativas entre níveis energéticos presentes, e que resultam
avaliação crítica ou mesmo histórica? Existiria, portanto, a em obras de arte de 'valores' diferentes. Jung, muito a
propriedade da 'inspiração'? propósito, classifica dois tipos de processos criativos em
Tais questões se apresentam de maneira ontológica, e essência, a que ele chamou, respectivamente, de "modo
encerram em si os limites do entendimento linear e material do psicológico" e "modo visionário" de criar. O primeiro é um
fenômeno artístico. Dadas as razões anteriores, consideramos processo resultado de articulação cerebral de processos vividos
e absorvidos pela consciência, comoções, experiências
sensoriais, passionais, etc., e o segundo é exatamente o oposto: imaginário da humanidade, vindo a constituir muitas das bases
uma vivência que nos é estranha, de conteúdo desconhecido e mitológicas que hoje conhecemos, e aparecem com frequência
alheio, que não expressa nenhuma experiência pessoal, "que na forma de símbolos oníricos e, consequentemente, nas
parece provir de abismos de uma época arcaica"[11], com formas artísticas, notoriamente na pintura, literatura e no
"uma beleza que seria vão tentar apreender com cinema. Quando estimulados, geram emoção, independente de
palavras"(idem). Ambas as formas assim descritas coexistem, cultura ou época. A força da emoção gerada é um dos
pois o artista, diante de uma inquietação qualquer que lhe sirva parâmetros que podemos utilizar para classificar uma criação
de motivação, é impelido a criar sobre ela, sempre na tentativa como visionária e/ou psicológica, sendo a primeira, em geral,
de traduzir um algo impalpável e sensível para algo material e dotada de alcance mais abrangente, e em alguns casos,
inteligível, e tal percurso pode se valer das mesmas referências universal (por exemplo, Shakespeare, Beethoven, Leonardo).
formais. Mas, mesmo considerando os dois casos, cujos
De maneira consequente, uma outra questão importante que
resultados devem ser potencialmente estruturados em moldes
formais que nos remetam a um ideal arquetípico, há uma este conhecimento pode esclarecer é a da obra-prima. É
bastante comum na pesquisa em história da arte se referir a
diferença significativa na percepção de uma ou outra: a obra
psicológica se caracteriza pelo esforço na articulação de obras que tenham grande potencial de representação
arquetípica como 'obras-primas', ou aquelas obras que se
elementos conscientes, e a maioria das análises acadêmicas
sobre processos criativos se limita a este tipo de produção, ao tornam modelos para as próximas gerações: são justamente as
que concentram maior potencial do arquétipo. Na tentativa de
passo que a obra visionária se diferencia pela espontaneidade
no encaixe de elementos formais, das quais muitas vezes o explicar porque alguns artistas ocupam mais páginas do que
outros nas biografias das enciclopédias e dicionários, essas
artista não tem consciência, ou a tem de maneira parcial. Estes
casos típicos pertencem a uma fenomenologia muito pouco obras ou artistas são muitas vezes caracterizados por uma
'perfeição formal', 'ápice de determinada técnica ou estilo',
explorada no mundo acadêmico, denominada genericamente
'inspiração', não raro descritas na literatura como resultantes de 'clareza' e/ou 'objetividade' na apresentação ou no discurso (no
caso das artes temporais), mas tais critérios são altamente
uma 'súbita visão', ou de uma pré-visualização espontânea (no
caso de artes visuais) ou mesmo a sensação de ter notas ou vagos se considerarmos que diferentes autores alcançam as
mesmas propriedades sem conseguirem se igualar no quesito
palavras 'ditadas' (no caso da poesia, literatura ou música). Há
que se notar também tais casos acompanharem fenômenos sensível. É como diz o compositor Johannes Brahms: "Se por
meio do trabalho aturado, se chegasse a ser gênio, qualquer
oníricos, sendo o sonho também um notável canal para a
conexão do cérebro ao arquétipo. Toda esta fenomenologia, se prático paciente seria um Mozart ou Beethoven."[12] Claro
está, esta diferenciação, efetivamente verificável no contexto
analisada pelo viés junguiano, deixa seu aspecto místico ou
histórico da arte, não pode ser abarcada de forma meramente
dogmático, em favor de uma razão lógica para o fenômeno da
inspiração, que nada tem a ver, na concepção lato sensu do técnica, e nos parece que a melhor forma de entender tal
fenômeno, recorrendo a argumentos de base científica, é
termo, com uma 'bênção divina' (Salieri gostaria de saber
disso). A inspiração é caracterizada pela conexão direta com as através da relação energética que existe entre o inconsciente
pessoal e o coletivo.
formas existentes no inconsciente coletivo, canalizadas pela via
sensível e observadas como fluxos de informação que se Assim, um sobrevôo pela história da arte nos mostra que é
atualizam instantaneamente, frequentemente descritos como possível alcançar um resultado estético por ambas as formas,
recorrentes em estados de transe ou profunda concentração3. É tanto no modo psicológico como no visionário, pois o aspecto
interessante observar que trata-se de um fenômeno que não se formal da obra é proeminente para que haja interação entre
restringe ao universo da arte; muito pelo contrário, é até sujeito-objeto, mas a obra visionária nos é irresistível, e a
relativamente comum em diversas outras atividades humanas psicológica depende de fatores pessoais. Entretanto, é
(vide as descrições de Einstein, Tesla, Kekulé e tantos outros importante mencionar que toda obra apresenta um aspecto
cientistas sobre seus próprios processos criativos). estrutural sem a qual não se sustenta, dada a necessidade
Este fato, uma vez considerado na engrenagem da relação cerebral de decodificar parâmetros tridimensionais. Ou seja, a
inspiração em si não garante a qualidade de uma obra, se esta
consciente-inconsciente da qual todos estamos sujeitos, nos
parece esclarecer muito sobre as diferenças de criação artística não estiver sob alicerces firmes, razão pela qual o domínio
técnico é imprescindível para a viabilização adequada de uma
e suas consequências: arquétipos cujas sobreposições
energéticas sejam mais intensas e profundas (por exemplo, obra. A plena harmonia entre domínio técnico e inspiração
psíquica nos parece ser a chave para o entendimento da obra de
figuras que expressam ideais como Bondade, Heroísmo,
Coragem, Maternidade, Redenção) possuem maior alcance no arte e suas consequências, sendo a obra-prima uma
manifestação típica desta confluência.
É bastante significativo, como também interessante, o
3
Interessante notar que, apesar desta conexão arquetípica ser verificada em quanto essa digressão encontra ressonância no cruzamento com
quase todas as atividades humanas, inclusive não-artísticas, ela parece estar
a filosofia platônica, se partilharmos tais informações com a
melhor documentada na música. Casos clássicos de notório conhecimento,
como os de F.Schubert (1797-1828) e W.A.Mozart (1756-1791) desafiam o noção de um modelo 'ideal' de referência. A ideia, em sua
entendimento da possibilidade de uma produção qualitativa tão vasta por acepção platônica mais elementar, seria um elemento-modelo
razões meramente tecnocratas. Outros casos dignos de nota são os de preexistente, e o arquétipo, em sua forma original, uma
G.F.Haendel (1685-1759) na composição do 'Coro de Aleluia', articulação energética, formada por um ou vários elementos
P.I.Tchaikovsky (1840-1893) na composição da 'Sinfonia Patética', G.Mahler modelos já com um grau de vivência psíquica, ou seja, quando
(1860-1911) na composição da 'Sinfonia dos Mil', e I.Stravinsky (1882-1971)
na composição da 'Sagração da Primavera".
já incorporam elementos emocionais, energia numinosa. A
decorrência do acesso à energia contida no arquétipo é o final. As coisas portanto, tanto objetos ordinários como obras
processamento de imagens e sensações que, ordenados, nos de arte, são expressão de ideias, das quais se formam através de
fornecem 'insights', a matéria-prima dos processos criativos, diferentes possibilidades combinatórias, que podem ser
inclusive o artístico. O mundo das ideias platônico seria, articulações ou descargas de elementos conscientes ou
portanto, uma instância anterior, na qual os elementos inconscientes, e deste, do pessoal ou do coletivo. A análise pelo
apresentam uma forma-modelo sem vivência, em estado puro, viés junguiano deixa muito claro que as obras de maior força
da qual os arquétipos se formariam, decorrentes da natural persuasiva possuem conteúdos que transpassam a mera
atração energética que imprimem sobre nossa psique. articulação, vindo a projetar imagens ou sensações arcaicas, há
muito incrustradas nos arquétipos do inconsciente coletivo.
A análise destes conceitos sob a base da psicologia analítica
Sem esse componente, o entendimento sobre a desproporção de
nos força a admitir a existência, em alguma instância, de um importâncias dadas a artistas tende a ser meramente
modelo ideal efetivo, dado que é observável uma atração
circunstancial, um modismo cíclico ou, na lógica da economia
natural por alguma forma, ainda que esta se apresente com cultural, um golpe de marketing. Tudo isso coexiste, e não
infinitas variações em função de tempo e espaço. A alegoria da
deixa de ser verdadeiro, mas o componente universal da arte
caverna, síntese do pensamento platônico neste contexto, também não pode ser ignorado, e este só pode ser abarcado por
traduz tal característica de maneira bastante lúdica, mas uma
aspectos que incorporam a condição homogênea da espécie
observação minuciosa, que realizei em um trabalho humana em sua origem: a psique.
anterior[13], nos demonstra claramente que se trata de uma
constatação, e não de um mito. A noção estética em seu nível Dado este aspecto, depreendemos que a criação artística é
sensível teria que partir de algum modelo, sem a qual todo o um processo natural e absolutamente necessário, que não
comportamento humano em relação à arte não passaria de um apenas contempla a regulação psíquica proposta inicialmente
emaranhado de possibilidades aleatórias que não se por Jung, mas que também a ultrapassa, na medida em que a
conectariam nem ao menos num contexto histórico, o que não troca sensível entre a representação de um arquétipo na obra e
é, nem de longe, observável na relação prática que temos com a uma vivência emotiva nos dá como resultante uma experiência
arte. real: a experiência estética.
O desenvolvimento deste raciocínio nos leva a entender
também a própria razão da existência da arte: a necessidade de
vivenciar a emoção da energia do arquétipo, contemplar o ideal REFERÊNCIAS
que está fora da caverna. Há consonância deste conceito com o [1] C.G.Jung, “O Espírito na Arte e na Ciência”, Petrópolis: Vozes, 1991,
que Jung por vezes se refere a uma 'nostalgia' de estados p.58
plenos, de uma vivência harmônica, que no mais das vezes se [2] C.G.Jung, “A Energia Psíquica”, Petrópolis: Vozes, 1999, p.3
atualiza na mitologia da 'Idade do Ouro', como um substrato [3] C.G.Jung, “Espiritualidade e transcendência” (Seleção e edição de
psíquico de uma época remota: "(...) compreendi que, desde a Brigitte Dorst). Petrópolis: Vozes, 2016, p.196
origem, uma nostalgia de luz e um desejo inesgotável de sair [4] E.H.Gombrich, “Arte e ilusão – um estudo da psicologia da
das trevas primitivas habitam a alma."[14]. É como se nosso representação pictórica”. (trad. Raul de Sá Barbosa). São Paulo: Martins
Fontes, 1995.
inconsciente tivesse a memória de um estado arcaico ideal, e tal
[5] C.G.Jung, “O Espírito na Arte e na Ciência”, Petrópolis: Vozes, 1991,
substrato por vezes interpenetra nossa realidade consciente na p.54
busca, no mais das vezes desordenada, de uma saída da [6] N da Silveira, “Jung – Vida e Obra”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978,
caverna. Tal lógica explicaria, por exemplo, a necessidade da p.77
religião, e também a razão pela qual arte e religião já foram, [7] C.G.Jung, “O Homem e seus Símbolos”, Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
em tempos remotos, uma única coisa: trata-se da mesma razão 1990, p.96
ontológica de busca por um sentimento que transcenda o limite [8] N da Silveira, “Jung – Vida e Obra”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978,
de tempo-espaço e consciência que vivemos. A arte é uma das p.77
manifestações que permitem a vivência sensível deste estado, [9] C.G.Jung, “O Homem e seus Símbolos”, Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
em qualquer direção que se queira, e aí estaria a estética das 1990, p.78
coisas. [10] C.G.Jung, “O Espírito na Arte e na Ciência”, Petrópolis: Vozes, 1991,
p.71
[11] C.G.Jung, “O Espírito na Arte e na Ciência”, Petrópolis: Vozes, 1991,
IV. CONCLUSÃO p.78
A decorrência mais evidente de tudo o que foi até agora [12] J. Andrade, R.Andrade, “Johannes Brahms”, Enciclopédia SALVAT dos
percorrido é que o processo de criação artística pode ser muita Grandes Compositores, Volume 3, Fascículo 54, p.213-14, 1983
coisa, mas não é, nem de longe, um processo aleatório. Mesmo [13] F. Salles, “A Ideia-Imagem: forma e representação na Fotografia
formas artísticas que se pretendem randômicas (dadaísmo, por moderna”, Curitiba: Appris, 2016
exemplo), partem de uma intenção definida (criar com o [14] C.G.Jung, “Memórias, Sonhos, Reflexões”. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 7a. Edição, 1985, p.236
'acaso'), e passam por um crivo estético de quem as cria, o que
corrobora o fato de que existem estruturas fundamentais que
norteiam e sustentam o fazer artístico da ideia à elaboração

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