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O DESVIO PELO DIRETO

JEAN-LOUIS COMOLLI

1. Uma certa tendência do cinema moderno se define: nos filmes


“de ficção”, o uso cada vez mais manifesto de técnicas e modos do
cinema direto.

Claro: Amor Louco (Rivette), mas também Partner (Bertolucci), A


colecionadora (Rohmer); e os filmes do Godard, Garrel; A infância nua
(Pialat) e Faces (Cassavetes), também, claro; mas também, no limite
do paradoxo Crônica de Anna Magdalena Bach (Straub) e Silêncio e
grito ( Jancso)... Enquanto que, de maneira complementar, outros filmes
oriundos do cinema direto constituem-se narrativas e flertam, em parte
ou inteiramente, com a ficção – ficções que eles produzem e organizam.
Le règne du jour (Perrault), por exemplo; mas também – e já – todos os
filmes de Rouch; alguns do Warhol; e até, limite do paradoxo, La rosière
de Pessac (Eustache) e La rentrée des usines Wonder (filme de maio).

No lado estético, parece acontecer como se, para uma certa categoria
do cinema contemporâneo (o da experimentação), os campos
tradicionalmente separados, e até mesmo opostos, do “documentário”
e do “ficcional” interpenetrassem-se cada vez mais, misturassem-se de
mil maneiras, engajadas em e engajando um vasto processo de troca,
um sistema de reciprocidade onde reportagem e ficção, alternados ou
conjugados no mesmo filme, reagem-se um sobre o outro, alteram-se,
transformam-se e terminam por se valerem um pelo outro.

2. Esse jogo impõe redefinir o cinema direto: ele pode englobar o


ficcional como também estar implicado nele; ele pode ser instrumento
e efeito de uma narração; o cinema direto transborda de todos os lados
o espaço que lhe infligia a simples reportagem. É sobre essa redefinição
e sobre a análise da função e da influência do cinema direto que falarei

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nesse primeiro artigo. No segundo, procurarei falar dos diferentes
graus e modos de integração do direto nos filmes “de ficção” do cinema
contemporâneo.

Sabemos onde começa o cinema direto, mas não onde ele termina.

Ele começa, na verdade, no mais elementar filme de reportagem (tipo


atualidades), no mais simples documento fílmico-sonoro – nivel, aliás,
no qual ele é mais usado, pela televisão, pelos sociólogos e etnólogos,
pelos educadores e detetives.

Mas esse fato (que se acha o direto em seu “estado puro” em qualquer
entrevista filmada ou enquete, em qualquer pedaço de reportagem ou
de jornais) não deve levar a considerar esses como exemplos daquele,
como lugares e figuras ideais de seu absoluto estético. A reportagem só
pode valer como definição mínima do direto e, mais que sua forma por
excelência, que sua ilustração perfeita, que seu modelo, ela é seu grau
zero, sua raiz primeira.

O direto está em estado bruto em todo fragmento de reportagem, como


o cinema está em estado bruto em toda sequência de imagens.

3. Parece-me que, desse grau zero é oriunda a maior parte das reportagens
que se dizem “objetivas”, modelos, não-intervencionistas (com algumas
exceções, estudadas no parágrafo 7). Nessas reportagens muito boas (ou
não tão boas) está em jogo o que Louis Marcorelles chama “magia do
direto”; mas não me parece que elas possam preencher esse papel de
modelo do cinema direto, é necessário comparar outros filmes.

Isso acontece não por falta de honestidade ou de “respeito da matéria


filmada”, mas por ausência de audácia, excesso do dito respeito. Sub-
emprego, de alguma maneira, das possibilidades e paradoxos do cinema

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direto; negligência do princípio da perversão que está na base do
direto, de sua própria natureza.

4. A mentira fundamental do cinema direto é, na verdade, que


pretende-se verdadeiramente transcrever a verdade da vida, que
nos colocamos como testemunhas e colocamos o cinema como de
gravação mecânica dos fatos e das coisas. Enquanto que, claro, o fato
de filmar constitui uma intervenção produtora que altera e transforma
a matéria gravada. A partir do momento que a câmera intervém
começa uma manipulação; e cada operação – mesmo limitada a seu
motivo mais técnico: ligar a câmera, desligá-la, mudar de ângulo ou
de lente, escolher os rushes, montá-los –, constitui, queira-se ou não,
uma manipulação do documento. Mesmo que se queira respeitar o
documento, não se pode evitar de fabricá-lo. Ele não existe antes da
reportagem, mas é produto dela.

Detectar que existe antinomia entre cinema direto e manipulação


estética é, de certa maneira, hipocrisia. E fazer cinema direto como se
as inevitáveis intervenções e manipulações produtoras (de sentido, de
efeito, de estrutura) não constassem e fossem somente práticas e não
estéticas significa exigir somente o nível mais elementar do cinema
direto. É também afastar todas as suas potencialidades, censurar em
nome das ilusões da honestidade, da não-intervenção e da humildade,
sua natural função criadora, a produtividade do cinema direto.

5. Consequência desse princípio produtivo do cinema direto, e


consequência automática das manipulações que anulam o documento
filmado: um certo coeficiente de “irrealidade” , um tipo de aura ficcional
agarra-se aos acontecimentos e fatos filmados. Todo documento,
toda gravação bruta de acontecimento, a partir do momento em que
constituídos em filme, colocados na perspectiva cinematográfica,
adquirem uma realidade fílmica que se acrescenta/ou se subtrai à

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realidade inicial própria deles (de seu valor “vivido”), des-realizando-a
ou super-realizando-a, mas, nos dois casos, “falseando-a” levemente,
colocando-a do lado da ficção.

Todo um jogo de trocas, de inversões, instaura-se no cinema direto


entre o que chamamos de efeito de realidade (impressão do vivido, do
verdadeiro, etc.) e o efeito de ficção (sensível, por exemplo, no patamar
da asserção corriqueira: “bonito demais para ser verdade”, etc.).

E, para ir ao fundo do paradoxo do direto, poderíamos dizer que ele


só começa a valer enquanto tal a partir do momento em que se abre
na reportagem uma falha por onde penetra ficção, por onde também
se trai – ou se confessa – a mentira fundamental que comanda a
reportagem: que, no âmago mesmo da não-intervenção, reina a
manipulação.

6. Um princípio existe em todo filme de reportagem, dependendo


da natureza e do grau de manipulações que o cercam e o fabricam:
quanto mais houver manipulação, mais se garante o aparecimento da
ficção, mais se dá um recuo (crítico e estético) que modifica a leitura
(e a natureza) do acontecimento gravado.

Assim, assegura-se a passagem do testemunho ao comentário, do


comentário à reflexão, da imagem-som à ideia. Mas uma notável
consequência dessa perversão do direto por si mesmo é que o
ultrapassar do documento desse princípio em que a ficção o afeta
produz um efeito de contraste de maneira que, ao mesmo tempo que
ele se cerca de ficção – e, portanto, desnaturaliza-se –, o documento
se revaloriza, reage a essa fuga de realidade através de um reganhar
de sentido, de coerência que, ao final dessa dialética, confere-lhe
finalmente um poder talvez maior de convicção, reforça sua “verdade”
depois do – e por causa do – passeio pelo “fictício”.

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7. Inversamente, no caso da maior ausência possível de manipulação
(quando a intervenção limita-se a estar lá para filmar), a passagem
para a ficção pode ser total e sem volta.

La rentrée des usines Wonder conta com somente um plano, que


dura o tempo do rolo de 120 metros. Não há nenhuma outra
montagem ou manipulação: o acontecimento absolutamente bruto.
Uma operária, no dia da retomada do trabalho nas usines Wonder,
é levada pelo patrão, pelo responsável sindical e pelos colegas, a
renunciar aos objetivos da greve. Ela resiste, chora. Em torno dela,
alguns a consolam e a encorajam: não, a greve não foi inútil, a
retomada do trabalho é uma vitória dos trabalhadores, etc. Em um
plano, e “quase por milagre”, existe cristalização e simbolização da
situação geral das relações entre operários-patrões-sindicalistas nos
meses de maio e junho. Cada personagem interpreta seu próprio
papel e diz palavras que são frases-chave dessa greve. Uma irresistível
impressão de mal estar se instala. Sabemos claramente que nada foi
“traficado”. No entanto, tudo é tão exemplar, “mais verdadeiro que a
verdade”, que só podemos evocar o mais brechtiano dos roteiros, o
documento valendo como produto da mais controlada das ficções.

A mesma coisa acontece com La rosière de Pessac : aí há também


as garantias mais seguras da hiperobjetividade, da total não-
intervenção : três câmeras filmam a sequência da escolha da Rosière 1,
a montagem obedece à cronologia dos discursos e dos atos. E esse
extremo efeito de realidade, pouco a pouco, transforma-se em
impressão de sonho. O comportamento exemplar dos personagens
e de suas linguagens lembra o dos herois de fábulas, mitos ou
parábolas. A ficção triunfa sobre o real, ou melhor, ela lhe confere
sua verdadeira dimensão que é de evocar arquétipos, de solicitar
constantemente a moral das fábulas. É naturalmente que se dá a
passagem do particular ao geral.

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8. O papel da manipulação no cinema direto é de controlar tais
escorregadelas e transformações abruptas: quer dizer, de provocá-las
medindo a amplitude e o efeito.

A ausência (sempre relativa) de manipulação leva a consequências


imprevisíveis e incontroláveis e a efeitos que podem ser (raramente)
prodigiosos (Wonder, Pessac) ou (frequentemente) nulos: o ordinário das
reportagens, platitude desértica, reino da insignificância e do informe.

A prova (pelo absurdo) que o cinema direto, fora da manipulação, limita-


se a um grau zero é dada pelo “filme” de Warhol sobre o Empire State
Building. Durante um dia, a câmera fica plantada frente ao edifício e filma o
que há na frente dela, sem nenhuma outra intervenção a não ser a troca das
bobinas. Mecanicamente, então, a um grau de pureza total, o acontecimento
é gravado e restituído como tal. O resultado é um filme absolutamente não-
significante e absolutamente não-formal, onde a confusão entre a dimensão
documentária e ficcional é total, o conjunto flertando, além do “vivido” e do
“fictício”, com o onírico puro.

9. Mais um paradoxo e não é dos menores: o ultrapassar da linha que separa


o que é recebido como “vivido”, “real”, “acontecimento bruto”, do que é
ficcional, fábula, parábola; que essa passagem, que inverte perspectivas e
valores, reproduz-se comumente e mais facilmente no cinema direto do que
nos filmes majoritariamente ficcionais.

Como se a ficção somente estivesse mais disponível, mais próxima,


quando ela não está inscrita como parte integrante do filme, nem
previsto em seu programa; somente quando o filme, de alguma maneira,
desemboque nela, seja brusca e acidentalmente em certas reportagens
“puras” (La rosière, Wonder), seja no fato de que o filme fabrique essa
ficção a medida que ele se fabrique a si mesmo (o caso dos filmes de
direto altamente manipulados : Perrault, Rouch).

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Chegamos assim à definição do cinema direto que tem uma relação
de proporção entre a manipulação do documento (do acontecimento
filmado) e sua significação (sua leitura). Essa última ganha em riqueza,
coerência e força de convicção à medida que a impressão de realidade
produzida pelo documento é contrariada, falsificada pela primeira. Ou
ainda, levada à exemplaridade da ficção ou à generalidade da fábula. Isso
são evidências, sem dúvida, mas esquecidas e, precisamente, “teóricas”,
atuais do cinema direto, na medida em que estiveram esquecidas no
fundo da história do cinema.

10. Voltemos às origens, à “história” do desenvolvimento do cinema


direto. Origem sufocada pela revolução do cinema falado, mascarada
pelo seu reinado.

Será preciso apenas três anos (1929-1931) para que o cinema inteiro mude
de natureza, sofra uma mutação radical: brutalidade da mudança mas
também da vitória do cinema falado, fulgurante, universal. Sob a pressão
da multidão (do dinheiro), em três anos, ou seja, instantâneamente,
desaparece o cinema mudo, que passa do estatuto superior de arte
completa ao estágio inferior de desenvolvimento técnico. Suas várias
conquistas estéticas e técnicas (montagem, decupagem, movimentos)
são bruscamente ocultados por um único defeito: a falta da palavra.

Houve, claro, vários cineastas refratários à tal mudança. Mas os mais


“dotados” deles (no sentido darwinista) adaptam-se o mais rápido
possível à nova condição. E não é por acaso que os retardatários sejam
os cineastas soviéticos (Boule de Suif, mudo, de Mikhail Room, data de
1934; no mesmo ano, somente 722 das 26.000 salas da União Soviética
estão equipadas para o cinema falado – Sadoul): patentes e aparelhos
são dos americanos. Mas foi também da União Soviética que vieram
(a partir de 1927), os mais vigorosos protestos contra o cinema falado:
Manifesto, de Pudovkine, Eisenstein e Alexandrov. Pois o cinema

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mudo russo, com Vertov e Eisenstein conseguiu levar mais longe que
as outras “avant-gardes” do cinema mudo2 a pesquisa fundamental (ao
mesmo tempo teórica e prática, casamento perfeito, a partir de então
suspenso) sobre os poderes e meios do cinema, seus pontos formais e
seus resultados no que se refere às significações e às emoções.

11. O impressionante (mas lógico) é que então o cinema direto


(Kino-Pravda = cinema verdade) e o cinema de montagem sejam
experimentados de maneira conjunta. Com Vertov, claro, mas também
Eisenstein, que experimentava algumas ideias : nada de atores, nada
de herois, mas simplesmente homens, ou massas; nada de ficção e sim
reportagem ou (Outubro, Encouraçado Potemkin) reconstituições como
as atualidades filmadas; e, inseparável da utilização desses elementos
da “vida verdadeira” do documentário e do direto, a manipulação pela
montagem, a procura de rimas formais e de ritmo. Ambos os aspectos
(direto/manipulação) explorados nesses modos de um cinema político,
de uma arte revolucionária que não deveria mais nada às formas
instaladas sob o capitalismo, às artes burguesas.

E com isso, tais pesquisas eram prejudicadas pelo triunfo do cinema


falado. Na América e na Europa, de um lado, já que ele foi o triunfo
da linguagem da ideologia dominante; na URSS, por outro lado, já que
a palavra aí também podia ser suficiente para garantir (e controlar) a
difusão da doutrina comunista e de seus ideias pelo cinema.

O sufocamento iria durar 13 anos. Justamente, por um lado, até as


primeiras manifestações da revolução do direto; por outro lado, até o
renascimento da montagem – uma não era necessariamente ligada à
outra – no cinema moderno (Resnais, Godard, Straub).

12. No oposto da revolução do cinema falado, a revolução do direto não


é profundamente bruta e irreversível, mas operação difusa, retorno de

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situação sutil, mudança insidiosa. Suas primeiras e discretas aparições não
inauguram um reino exclusivo; suas primeiras manifestações não tornam
caducas as modalidades anteriores do cinema – elas passam até mesmo
despercebidas, a não ser de alguns especialistas: cineastas, críticos, utilizadores
privilegiados (televisão, sociólogos, polícia).

Trata-se então de determinar em que o cinema direto marca bem, apesar das
aparências, que há revolução, que uma ruptura foi consumada, uma diferença
inscrita na concepção/fabricação do cinema.

13. A colocação em órbita do direto é, primeiro, produto de um progresso da


técnica. O formato 16mm se propaga e se aperfeiçoa, graças ao mercado do
cinema amador e, depois, da televisão. Essa (com as atualidades e as guerras)
forma técnicos mais rápidos, polivamentes e audaciosos. Simultâneamente,
a sensibilidade das películas progride, tornando cada vez menos necessários
os despendiosos e pouco práticos meios de produção de luz artificial. As
câmeras ficam consideravelmente mais leves e com menos volume, o que
facilita o uso. Pode-se filmar em todos os lugares, rapidamente, de maneira
mais discreta e mais pessoas podem operar as câmeras sem um formação
muito aprofundada. Além disso, essas câmeras tornam-se sincronizadas e
silenciosas, eliminando a necessidade do estúdio e da pos-sincronização, que
custam caro e incitam à reconstituição (a re-presentação).

Trinta anos depois, os preceitos de Dziga Vertov podem ser aplicados


sem que haja perda da ideia (tudo filmar, tudo gravar, estar na vida sem a
perturbar ou a falsear) ou da realização (Vertov se limitou a filmar somente
as manifestações públicas, multidões, cerimônias, etc., e só não podia
apreender a vida quotidiana a partir do momento que seu aparelho não
passava despercebido).

No que diz respeito à gravação da imagem, realiza-se um verdadeiro cine-


olho, mas auxiliado por uma orelha pois, pela primeira vez, a palavra torna-se

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inseparável dos lábios e da vida. Ela não é mais o laborioso produto de uma
reconstituição, de uma refabricação aproximativa (e necessariamente teatral,
já que escrita e recriada), mas sim, ao mesmo título do visível, o primeiro
grau do filmável. Com o cinema falado, era a linguagem da classe no poder
e das ideologias dominantes que conquistava o cinema. Enquanto que com
o som sincronizado, é o cinema que conquista a palavra, toda a palavra, a de
uns e de outros, a dos operários e a dos patrões.

14. Mas esse progresso técnico não tornava por si só inutilizáveis ou


fora de moda os outros procedimentos (ao contrário do que se deu
com o cinema mudo/falado). Ele não só não os anulava como não
podia substituí-los, nem completa nem parcialmente. As técnicas do
direto não convêm nem à indústria nem à estética do cinema de re-
presentação. O direto não permite filmar as mesmas coisas que o não-
direto de uma melhor e nova maneira. Ele permite filmar outra coisa.
Ele abre ao cinema um novo horizonte e o faz mudar de objeto – e,
consequentemente, de função e de natureza.

O direto deixa, então, o cinema no lugar onde ele estava e estará desde
o advento do cinema falado. Suas técnicas não são especialmente
adaptadas nem aos objetivos, nem às práticas, nem aos conteúdos do
cinema clássico (chamado assim para simplificar), não interessam muito
a ele e nem, consequentemente, à indústria que o alimenta.

O cinema clássico marginaliza o cinema direto, o faz servir a seus


subprodutos: os primórdios da televisão, cinema documentário e
educativo, cinema publicitário, etc.

15. A difusão do cinema direto encontra um grande número de


resistências da parte de todas as instâncias que detêm o poder no cinema.
A indústria do espetáculo não encoraja as técnicas mais econômicas
que as habituais: fabricantes de películas e de câmeras, laboratórios,

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etc.; sindicatos de técnicos, hostis a uma diminuição das equipes; as
castas técnicas, assustadas com a facilidade de utilização dos novos
instrumentos, que os coloca ao alcance de mais pessoas e tornam
inúteis os sistemas de iniciação, de formação, de hierarquização e de
controle dos técnicos do cinema; e, enfim, os poderes públicos, que
temem – com razão – de não poderem mais controlar facilmente o
cinema enquanto agente ideológico, a partir do momento em que ele
torna-se independente do dinheiro, podendo ir a todo canto, filmar
tudo, a preços menores e mais discretamente.

Libertado das cadeias capitalistas, libertado da dupla precaução do roteiro


e do estúdio, como do controle suplementar a posteriori da estreia nas
salas comerciais, o cinema torna-se perigoso. Ao menos, ele pode sê-lo.

Assim, o cinema direto permite considerar o sistema industrial/


comercial do cinema como um sistema repressivo: o ciclo econômico
tem uma função política, o controle ideológico do cinema mascara-se
e exerce-se através de pressões econômicas. O direto escapa a um tal
círculo vicioso. Nada mais condizente então que a pesquisa estética
valha politicamente.

16. Essas censuras econômicas/ideológicas contribuem para manter o


direto nas margens do cinema. Mas, colocar o cinema direto fora do jogo
comercial, afastá-lo do circuito das salas não basta para matá-lo. Isso o
força a se desenvolver numa certa clandestinidade. Sufocá-lo por razões
políticas só lhe dará mais razões para ser político. Com isso, os cineastas
pioneiros que o praticam são levados, e forçados, a se perguntar sobre a
natureza política do cinema direto.

Condições de trabalho e pressões econômicas fazem com que o cinema


direto tenha uma situação política, mesmo que a maioria dos filmes que
o pratica não seja, a princípio, político.

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Com o direto, o cinema se volta para a função política que lhe atribuia
Eisenstein e Vertov. O hiato chega ao fim. Com o direto, a alienação
deixa de ser, ao mesmo tempo, a condição do cinema e a sua função.

17. Privado pelo sistema de sucumbir à tentação burguesa, o direto


desenvolve-se, assim, de maneira selvagem. Ele é um cinema que
se inventa à medida que é feito, os cineastas se tornam câmeras e os
câmeras, cineastas; a bricolagem técnico-estética remedia as lacunas da
indústria e a ausência de tradições; a experimentação acarreta, como em
nenhum outro lugar, relações imagem/som, documento/ficção, palavra/
montagem; renuncia-se aos atores e inicia-se uma das maiores aventuras
do cinema moderno (recomeça a aventura do cinema mudo) : devida
a essa ascensão dos não-atores, desse triunfo dos não-profissionais
(demonstração, aliás, da invalidade das estrelas devido a predominância
de desconhecidos). Resta somente personagens: de filme e de vida, de
“real” e de “ficção. Uma nova e forte ligação une o cinema ao vivido,
reúne-os e articula-os em uma só e mesma linguagem. A vida não é
mais representada pelo cinema, este não é mais a imagem – o modelo –
daquela. Juntos, eles dialogam e se produzem por e nessa palavra.

Várias rupturas em vários planos (técnico, estético, econômico, político) e


com os modos de fabricação e de utilização do cinema clássico confirmam
que há, nesse momento, uma revolução pelo direto. Mas, podemos falar
de uma revolução igual a do cinema falado, por se tratar de um cinema
marginal, hiper-especializado, praticado quase clandestinamente por,
finalmente, poucos cineastas “verdadeiros”?

18. A existência do cinema direto força o cinema a se redefinir.


Tudo acontece como se o direto tivesse agido sobre o conjunto
do cinema como um revelador. Na particularidade do direto está
inscrito para o cinema, de maneira geral, uma dupla mudança: de
natureza e de função.

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A partir do momento em que, pelo direto, o cinema articula-se à vida
segundo um sistema não de re-produção mas de produção recíproca, o filme
(Perrault, Rouch), ao mesmo tempo, é produzido e produz os acontecimentos
e situações. Essa dupla articulação constitui a reflexão e a crítica desses filmes,
a linguagem deles. A partir dai, a outra parte do cinema (a maior), onde mil
definições e contradições parecem inextricavelmente imbricadas, junta-se e
sela-se em uma definição única, reduz-se a uma só dimensão: representação.
Jogo socialmente codificado em vista da constituição de um espetáculo
paralelo à vida que, através dessa superposição, obstrui a vida, substituindo à
coisa sua re-constituição.

Mas essa re-presentação é sempre (mais ou menos) manipulada pela


ideologia dominante, tanto no que se refere à fabricação (e não somente
econômica, mas através do jogo das convenções sociais que caracteriza toda
narrativa) quanto à utilização, como espetáculo.

Pelo menos em parte, o cinema direto escapa à tripla dependência ideológica


(economia, convenção, espetáculo). E mais, ele manipula a ideologia, ele é
produtor de sentido político.

19. A separação entre direto e não-direto divide, então, estetica e


ideologicamente, produção de re-presentação, transformação de transposição.
Mas esse abismo, embora categórico, aparece, curiosamente, à medida que
nos aproximamos do cinema contemporâneo. Como se ele associasse o que
ele separa, misturasse o que distingue. O cinema direto (conta)minou o
cinema de representação, modificou-o por influência e contato e foi graças a
essa proximidade que se deu a revolução do direto.

20. Vejamos, primeiramente, o aspecto econômico. Os cineastas


“independentes” (de maneira geral, os “autores, os jovens cineastas), mais ou
menos rejeitados (ou não aceitos) pelo sistema comercial, recorrem cada vez
mais às técnicas menos onerosas do direto. Ou seja, eles rodam em 16mm

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(ainda raro) ou filmam com pequenas equipes (mais comum), material
de reportagem, em cenários naturais e sem estrelas – até sem “atores”. A
utilização dos procedimentos do direto pelo cinema de ficção, no caso,
não desvirtuam aquele em favor deste, mas força este no sentido daquele.
No lado estético, as técnicas do direto abrem uma nova dimensão formal
(e temática, ja vimos), uma zona franca de experimentação e de invenção,
de manipulação das relações som/imagem, vivido-documento/ficcional,
acaso/estrutura, dos quais as possibilidades aparentemente infinitas de
variação e combinação (das quais tratarei num próximo artigo) atraem
cada vez mais os cineastas.

No lado estético, o problema do papel do cinema na sociedade,


da sua função política, ocultada durante muito tempo, é, de novo,
colocada como essencial.

A revolução do direto transformou as perspectivas já transformadas


pelo aparecimento do cinema falado. Um primeiro sentido de
revolução é o de rotação completa, no caso, volta completa do
cinema em volta de si mesmo, para encontrar, ao final dessa
transformação, que foi também desvio e desvirtuamento, certos
avanços na prática e na teoria do cinema mudo (sobretudo quanto
ao papel do montador, à importância da manipulação e à visão
política do cinema).

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21. O que quer dizer o uso que os cineastas modernos, cada vez
mais numerosos, fazem do cinema direto? De que maneira e por
quê o direto vem, hoje, não somente surgir no seio de certos filmes
“de ficção” mas coloca-se a serviço da própria ficção, fazendo dela
um instrumento e, talvez, o instrumento privilegiado? Na primeira
parte desse estudo, nós partíamos de uma simples contastação:
que alguns dos filmes-chave do cinema contemporâneo, de Amor
Louco a Partner, de A colecionadora a Faces, de maneiras diferentes
pegam emprestado (e fazem mais do que pegar emprestado: usam
com o objetivo de uma produção) técnicas e métodos do cinema
direto. Com esse recurso ao direto, experimentam, diferentemente,
as condições e possibilidades de uma “ultrapassagem” (ou de uma
modificação, de um questionamento, de uma alteração mais ou
menos grandes) do sistema de re-presentação tal como ele determina
tradicionalmente todo cinema de ficção.

Tal constatação levava a um certo número de questões:

1) quanto à definição do cinema direto e a diferença (ou as diferenças)


entre direto e não-direto; 2) quanto ao papel de revelador que teria
o direto em relação às contradições e limites do não-direto (função
teórica do cinema direto); 3) quanto às condições de aparição, de
constituição, de desenvolvimento, de prática do direto na história e
o movimento do cinema (função política do direto).

Notava-se, aliás, que o cinema direto é sempre um cinema de


manipulação, e que em certos casos limites (Usines Wonder, Rosière
de Pessac) a acidental ou voluntária quase supressão da redução
da manipulação encadeava efeitos surpreendentes, opostos ao
princípio documental desses filmes: uma irresistível escorregadela
do documento – quando ela não é controlada por uma manipulação
– em direção ao ficcional, uma transformação do “vivido” em

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“fictício”, tal qual parece que, no cinema direto, não é o simples fato
de filmar acontecimentos reais que é, automaticamente, produtor
da impressão de “realismo” mas, ao contrário, todas as operações
estéticas (mais ou menos “desrealizantes” já que portam sobre
a matéria fílmica), todo o jogo da manipulação, que produzem a
impressão do “puro documento” – como efeito, a partir de então, e
força do artifício.

22. Essa observação indica o quão arbitrário seria a definição de


uma fronteira nítida entre direto e não-direto. O que, no plano
dos conceitos, facilmente opõe-se, distingue-se e estabelece-se
como diferenças comparáveis, pode, nas obras, não exatamente se
confundir, mas existir simultanemente, interagir, estabelecer trocas
em um processo de reciprocidade que relativiza e, de alguma maneira,
perverte os termos da dualidade. “Ficcional” e “documentário” não
são antagonistas, nem impermeáveis. E o filme, que ela seja direto
ou não, é sempre cinema, tudo o que ele mostra é ficção, ficção da
ficção, ficção do documento. “A obra é um tecido de ficções. Ela não
contém, propriamente, nada de verdade. No entanto, na medida em
que ela não é ilusão pura, mas uma mentira confessa, ela pede para
ser tomada por verídica: ela não é uma ilusão qualquer, mas uma
ilusão determinada” (Macherey). No filme, também, a ficção é tão
verdadeira quanto o documento; reciprocamente, este é, ao mesmo
tempo, tão “verdadeiro” e tão “falso” que aquela: por direito, eles
valem a mesma coisa no filme. Na verdade, eles valem conforme
seu uso, o que lhe faz a “ilusão determinada” que é o filme. Convém
também precisar que, se distinguirmos num mesmo filme ficção e
documentário, também é sem perder de vista que um e outro são
oriundos de uma mesma “realidade” (ou “irrealidade”) fílmica. Por
outro lado, devemos levar em conta não a verdade ou a falsidade de
suas naturezas (já que essa natureza, na ficção e no documentário,
é cinematográfica), mas o efeito que eles produzem, a impressão

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que eles geram e não, independentemente, um e outro (num
absoluto que seria o da lógica e não do terreno da obra), mas
precisamente a ligação entre eles, sua relação, seus valores de
contraste e de troca.

É a função do documento para a ficção e da ficção para o documento


que é preciso estudar; ou melhor, como eles se evocam, produzem-
se um ao outro, como eles se repercutem e se esbarram na dupla
dimensão – mentirosa e verídica – do filme.

29. Ora, na primeira parte deste texto, nós falávamos desse fenômeno
de interprodução do acontecimento e do filme, um pelo outro, como
uma das principais contribuições (estéticas, teóricas, políticas) do
cinema direto. Que se trate aqui mais do que de uma convergência,
no aspecto da concepção/fabricação do filme, de elementos do
cinema de ficção e do cinema direto, é provado pelo fato de Jancso,
justamente, não utilizar nenhuma das técnicas específicas do
cinema direto. Trata-se então de uma certa prática do cinema de
ficção equivalente a uma certa prática do cinema direto. Assiste-se,
na verdade, à produção em direto3 de uma ficção cinematográfica.

O argumento segundo o qual o fato de Jancso não filmar com som


sincronizado tornaria abusiva toda analogia entre seu sistema e o
cinema direto cai por terra a partir do momento em que os diálogos
do filme, como vimos, não são outra coisa que o eco, no plano,
das ordens e indicações que compõem esse plano (ordens, essas,
necessariamente sincronizadas ao plano).

Assim, vê-se como – mesmo quando, por razões estilístico-técnicas


o direto parece “barrado” de um filme de ficção – pode acontecer
de a ficção funcionar “como” o direto. Isso viria, de maneira
decisiva, acabar com qualquer rastro de uma fronteira entre direto

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e não-direto, se não fosse que o direto é, simplesmente, uma das
maneiras de ser do não-direto.

30. Pois, todo o cinema, se podemos assim dizer, é “não direto”. A


imagem cinematográfica é precisamente uma “imagem”; projetada, ela é
“espetáculo”. Seria preciso dizer, consequentemente, que só há cinema da
re-presentação. Mas essa fatalidade da re-presentação é mais ou menos
agravada ou atenuada pelas modalidades de fabricação do filme. Nos
filmes que fazem parte do que chamei de “sistema da re-presentação”
(a grande maioria dos filmes feitos no modelo hollywoodiano), essa
fatalidade é redobrada, quiça multiplicada, pelas etapas sucessivas da
fabricação do filme, cada etapa sendo re-presentação e re-produção da
precedente. Assim, o projeto do filme é, uma primeira vez, repetido no
roteiro; este pela decupagem; este mesmo reconduzido a repetições (o
nome da indica); essas repetições reproduzidas durante a filmagem, da
qual a montagem nada mais é que a reconstituição, a pós-sincronização
que fecha, enfim, o ciclo das re-presentações.

Um tal processo de desdobramentos, ao contrário de permitir (como se


pode imaginar) novas e decisivas intervenções a cada etapa diferente,
impõe a mais extrema autofidelidade (sob pena de se fazer desabar o
edifício inteiro, exemplos: as remontagens dos produtores) e só autoriza
os mais leves retoques e variações. Assim, cada nova operação será, na
verdade, uma falsa operação, um quase-mecânico recomeço da precedente,
imitadora e não produtiva. Cem vezes reiniciada, “a obra” não será cem
vezes modificada, mas vem vezes reconduzida, cópia de si mesma.

Quer dizer, não somente a cópia desse mundo ou dessa “realidade”


que lhe são preexistentes (mesmo que mundo e “realidade” sejam
mediatizados por um roteiro, trata-se sempre do roteiro deles) e do
qual ele garantirá quase automaticamente a ideologia, mas a cópia
dessa cópia primeira, seu reforço e sua perpetuação lógicos.

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31. Concebe-se que o cinema (através de diversos cineastas) tenha
tentado, em diversas circunstâncias, escapar a essa armadilha da re-
presentação perpétua. Contra a difusão e a denominação universais
do modelo hollywoodiano, houve uma espécie de tentação do
“direto” (muito vaga, totalmente mal formulada) que se manifesta
numa dupla dimensão: redução do número de operações de
fabricação do filme (supressão do roteiro, improvisação, etc, que
deveria chegar às primeiras experiências do cinema direto ficcional,
Shadows , Rouch) ou reinvestimento de uma certa produtividade
nessa operações (ressureição da montagem) – e redução da falsa
inocência da re-presentação pela ficção dessa re-presentação.
Assim, vimos, em Hollywood e noutros lugares, uma quantidade
de filmes que têm por objeto um espetáculo já constituído, teatro
ou show, até mesmo filme.

Em muitos musicais ( A roda da fortuna , The Bad wagon ,


Minelli , 1953), assim como em La carrosse d’or (Renoir, 1952),
A regra do jogo (Renoir, 1939), muitos Bergmans, The Patsy
(King Vidor, 1928), etc, o fenômeno da re-presentação torna-se
parte da ficção do filme, um dos seus motores dramáticos. Essa
dimensão suplementar (no princípio do filme, já há re-presentação
da re-presentação) produz um efeito, se podemos assim dizer, de
“franchise”. O filme designa-se (para não dizer, denuncia-se) aqui
como ilusão, lá como reconstituição ou espetáculo: pelo que ele
é. É a confissão de uma certa má consciência do espetáculo a ser
espetáculo que nasce (de onde vem, sem dúvida, essa comum e
aparentemente inesgotável fascinação pelo teatro, etc). Mas também
a re-presentação se confessando como tal e tomando-se por tema
explícito, filmando-se, a re-presentação dessa re-presentação (o
filme) torna-se, de uma certa maneira, primeiro, direta. Filmar um
espetáculo é, efetivamente, fazer ato de reportagem, reintroduzir
documentário na ficção.

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32. Se a ficção é ficção da representação, se essa última é filmada
diretamente, se o espetáculo torna-se documento, os efeitos de
inversão e de contraste que já havíamos encontrado com relação
a certos filmes de cinema direto não podem deixar de contar.
Designado como tal, revelado na sua contigência, o espetáculo
na ficção tem um papel de suporte, que faz aparecer essa ficção
como mais “verdadeira” que ele próprio, concedendo-lhe uma
dose de autenticidade ainda maior que ele, apresentado mais como
autêntico espetáculo.

Quanto mais o espetáculo é designado como espetáculo


(a autenticidade, a “realidade” de um espetáculo sendo sua
artificialidade) mais o resto do filme será tido como verídico. É
nesse processo de contraste que os musicais devem poder emocionar
pela fantasia, de continuar credíveis no meio de todos os delírios. É
esse mesmo processo que é explorado por, e faz funcionar La carrosse
d’or : a “vida” e o “teatro” trocam seus valores, tudo é re-presentação, o
espetáculo sucessivamente se trai e triunfa.

33. O ponto máximo dessa dialética re-presentação / re-presentação


da re-presentação, espetáculo ficcional e ficção do espetáculo está em
Amor Louco, de Rivette. Ponto culminante pois, aqui, o espetáculo
re-presentado, a ficção de um espetáculo são, efetivamente,
filmados em reportagem, em cinema direto. Todos os “ensaios” no
palco de Andromaque, sabemos, são filmados por uma equipe de
direto, dirigida por Labarthe. Essa é a ocasião de homenagear –
para Rivette e para mim mesmo – aquele que mais praticou, sem
dúvida, nos programas Cineastes de notre temps, a perversão
mútua do documento e do ficcional, os trechos de filmes de ficção
adquirem estatuto de “documentos” e as entrevistas dos cineastas,
o de narrativas e ficções abertas a todos a todos fantasmas : Ford,
Fuller, Sternberg, Cassavettes.

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Essa equipe de direto é filmada pela câmera 35mm que assegura a
ficção do filme. Opera-se, assim, uma sutil inversão: o espetáculo sendo
filmado no direto, re-presentado ao mesmo tempo como espetáculo
“real” e documento bruto (por causa, sobretudo, do grão da imagem
16mm), carrega-se e descarrega-se, alternativamente, em “efeito de
realidade”, é marcado, por fases, desse coeficiente de autenticidade
do qual falávamos antes. O efeito de contraste aparece não
somente entre o espetáculo-na-ficção e a própria ficção, mas,
antes de tudo, no interior da re-presentação do espetáculo. De um
lado, mostrando-se e filmando-se, ele designa-se como espetáculo
e, então, (como nos musicais) como ordem mentirosa, “não-
realidade”. De outro lado, e simultaneamente, já que ele é filmado
em reportagem, ele adquire uma “realidade” imediata, bruta, que
anula esse caráter de falsidade que é a autenticidade do espetáculo.
À verdade do espetáculo como artificialidade, substitui-se uma
verdade do espetáculo como acontecimento.

No máximo, o efeito de contraste se dá em sentido contrário: são as


cenas de não-espetáculo (vida quotidiana, apartamento, brigas de casal,
cenas de solidão) que são tocadas de uma certa artificialidade, devido
ao forte coeficiente de realidade das cenas do teatro. É a ficção que se
designa então como ficção, a “vida” como fictícia; o teatro esvaziado
de sua artificialidade e essa passando para “vida”; todos as fantasias
transferidas da re-presentação da peça à da “vida”.

34. Voltando ao problema da imagem como “duplo” do “mundo”


citemos, mais uma vez, Macherey : “a imagem absolutamente conforme
ao modelo confunde-se com ele, e perde seu estatuto de imagem. Ela
só se mantém imagem pela distância que a separa do que ela imita”.

Marcelin Pleynet pôde constatar a natureza duplicadora da imagem


cinematográfica e repreender o cinema, “duplo do mundo”, de

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ser o natural cúmplice ideológico dele. Reproduzindo somente a
“realidade”, o filme estaria do lado da ideologia ou, pelo menos,
estaria envolvido com ela.

Por um lado, é preciso ressaltar que a imagem cinematográfica só


reproduz, mecanicamente, uma fração do mundo, precisamente
aquela que a câmera designa. Esse processo de eleição não acarreta
modificação da parte “eleita” do mundo, mas podemos dizer que tal
fragmento, a partir do momento em que uma câmera o designa para
filmá-lo, não é mais igual a si próprio mas igual a ele mais a câmera.
É justamente essa “defasagem” que faz com que a imagem não seja
exatamente igual a seu modelo. Mas essa defasagem não impede a
imagem, se ela não é exatamente conforme o modelo, de lhe ser fiel,
de re-presentá-lo sem transformá-lo verdadeiramente, de continuar
submissa a ele.

Por outro lado, um filme é raramente só uma sequência de imagens


cinematográficas, ele é o produto de um certo trabalho que se opera
sobre as imagens como material de base, mas também sobre os sentidos,
ritmos, figuras, etc.

Será, então, na dimensão das modalidades da re-presentação que


se efetuará ou não a duplicação do “mundo”, a ruminação da sua
ideologia ou, ao contrário, sua “transformação” com produção de novo
sentido (cf. 30). O que o “sistema da re-presentação”, ao redobrar em
suas reproduções em cadeia o fenômeno da duplicação mecânica da
“realidade” (e redobrando-o, antes de tudo, no momento do roteiro
que aparece como modelo do filme, ao passo que ele é, em quase todos
os casos, não a expressão de um “autor”, mas da ideologia, já que ele
não é uma obra completa, nem filme, nem romance), não parece capaz
de efetuar, o cinema direto, ficcional ou documentário, pode : destituir
o mundo como modelo do filme, privando-o de qualquer “modelo”.

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35. No cinema direto – e isso vale para os documentários (Leacock,
Eustache, etc) e as ficções (Perrault, Rouch, Cassavetes, Baldi) – a
filmagem não é, jamais, um momento de ensaio, de uma reconstituição da
“realidade” nem de uma seleção no interior de uma realidade préfílmica,
nos moldes da elaboração do roteiro no cinema de re-presentação. A
filmagem é, ao contrário, um momento de acumulação, muitas vezes,
sem “programa” fixo – imprime-se uma grande quantidade de película,
da qual o destino não é determinado nem sabido. Trata-se de imagens
da “realidade”, de acontecimentos filmados, mas, de alguma maneira,
de imagens flutuantes, sem referencial, desprovidas de toda significação
consistente, abertas a todos os destinos. Por outro lado, é na montagem,
verdadeira filmagem (e é por isso que eu não acredito no famoso “contato”
com a “realidade”, do qual Marcorelles diz ser o cerne do direto), que se
dá não somente a escolha, a organização, a comparação das imagens e,
sobretudo, a produção de sentido.

No cinema direto, o acontecimento filmado não preexiste ao filme, à


filmagem, mas é produzido por ele. Não se pode, então, falar de uma
“realidade” estranha ao filme, da qual ele se faria imagem, mas somente de
um material filmado que é toda a realidade à qual o filme fará referência.
A montagem parte desse material filmado como o roteiro-filmagem de
um filme clássico parte da “realidade”. É da manipulação desse material
que saem o filme e a “realidade” da qual ele trata. Rejeitando toda
forma ou significação baseada em a prioris e toda predeterminação, não
visando a reproduzir as coisas “tais como” (tais como prevê o roteiro do
filme ou o da vida, o da ideologia) mas sim a transformá-las, a variar seu
sentido e relações a partir do momento em que elas passam do estágio
in-formado não-cinematográfico ao estágio da forma cinematográfica, o
direto apresenta-se, no melhor dos casos, não como modelo, mas como
prática do cinema.

Tradução: Pedro Maciel Guimarães

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