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A imagem pobre é uma cópia em trânsito. Sua qualidade é tosca, sua resolução é
abaixo do padrão. À medida que acelera, se deteriora. É o fantasma de uma imagem,
pré-visualização, um thumbnail, uma ideia errante, uma imagem itinerante de
distribuição gratuita, forçada através de lentas conexões de internet , comprimida,
reproduzida, despedaçada, remixada, bem como copiada e colada para outros canais
de distribuição.
1- Baixas Resoluções
Um filme de Woody Allen retrata um personagem principal fora de foco. Não se trata
de um problema técnico, mas de uma espécie de moléstia que recai sobre ele: sua
imagem está constantemente embaçada. Como o personagem do filme de Allen é um
ator, esse transtorno implica num problema maior: ele é incapaz de encontrar um
emprego. A falta de definição do personagem se torna um problema material. Estar
em foco é identificado como uma posição social, posição essa de privilégio e
facilidades, enquanto estar fora de foco rebaixa o valor de alguém enquanto imagem.
Embora a hierarquia contemporânea das imagens também seja baseada em nitidez,
ela é predominantemente organizada em termos de resolução. É só observar qualquer
loja de eletrônicos que este sistema, descrito por Harun Farocki em uma notável
entrevista em 2007, se torna imediatamente aparente. Na sociedade de classes das
imagens, o cinema representa uma flagship store. Em lojas do tipo “flagship",
produtos de luxo são divulgados em um patamar diferente, num contexto de
sofisticação. Imagens mais acessíveis derivadas das cinematográficas circulam em
dvds, circuitos televisivos ou na internet como imagens pobres.
É óbvio que uma imagem de alta resolução pareça mais brilhante e impressionante,
mais mimética e mágica, mais assustadora e sedutora do que uma de baixa resolução.
É mais rica, por assim dizer. Hoje, mesmo os formatos destinados ao consumidor são
adaptados ao gosto de cineastas e estetas, que aferraram-se à bitola de 35mm como
garantia de uma visualidade imaculada. A insistência na defesa da película analógica
como o único médium de importância visual ressoa continuamente através dos
discursos do cinema, à despeito da inflexão ideológica. Nunca importou que estas
economias cinematográficas de alto padrão fossem (e ainda sejam) firmemente
ancoradas em sistemas de cultura nacionalista, produções de “grandes” estúdios
capitalistas, culto da versão original e de gênios predominantemente masculinos e
que, desta maneira, sejam conservadoras estruturalmente. A resolução alta foi
fetichizada a ponto de sua falta corresponder à castração do autor. O culto ao formato
da película dominou até mesmo a produção de filmes independentes. A imagem rica
estabeleceu seu próprio cenário hierárquico, lidando com novas tecnologias que
oferecem cada vez mais possibilidades de degradá-la criativamente.
Atualmente, existem pelo menos vinte torrents disponíveis na internet dos filmes-
ensaio de Chris Marker. Se você quiser uma retrospectiva, eis a sua oportunidade.
Contudo, a economia das imagens pobres vai além do simples download: você pode
guardar arquivos, revê-los, até mesmo reeditá-los e aprimorá-los se julgar necessário.
E os resultados circulam. Vídeos AVI em baixa definição de obras primas não muito
lembradas são trocados em plataformas P2P semi-secretas. Filmagens de celular
clandestinas saem de museus diretamente para o Youtube no intuito de serem
difundidas. Dvds de divulgação do trabalho de artistas são negociados à surdina. A
grande parte da produção ensaística, avant-guard e de cinema não comercial
ressuscitou na forma de imagens pobres. Quer elas gostem ou não.
3, Privatização e Pirataria
Que películas raras de produções de resistência, experimentais e clássicas, tanto do
cinema quanto da videoarte, reapareçam como imagens pobres é significativo a outro
nível. As situações nas quais se encontram revelam mais do que seu conteúdo ou da
aparência mesma destas imagens: é revelado seu estado de marginalização, a
constelação de forças sociais que as conduz à circulação como imagens pobres.
Imagens pobres são pobres pois não lhes foi concedido qualquer valor dentro da
sociedade de classes das imagens - o status de ilegalidade e degradação concede a
elas isenção dessa categorização. Sua falta de resolução é o atestado do seu
desalojamento e apropriação.
Obviamente, esta condição não é conectada apenas à reestruturação da produção
midiática e à tecnologia digital; ela também se relaciona com a reestruturação pós
colonial e pós-socialismo de estados nações, bem como de suas culturas e seus
arquivos. Ao passo que alguns estados foram desmantelados ou ruíram, novas
culturas e tradições foram inventadas e novas histórias criadas. Isso naturalmente
afetou arquivos cinematográficos - em muitos casos, todo um legado de cópias em
película é destituído de seu posto de cultura nacional juntamente com a estrutura de
apoio que o mantinha. Como pude observar no caso de um museu de cinema em
Sarajevo, um arquivo nacional pode reencarnar na forma de uma locadora de filmes.
Cópias piratas são contrabandeadas de arquivos como esse durante processos
desorganizados de privatização. Ainda assim, até mesmo a Biblioteca Britânica vende
conteúdo na internet a preços astronômicos.
Kodwo Eshun constatou uma vez que a circulação de imagens pobres advém em
parte do vazio deixado por organizações governamentais de cinema que consideraram
muito complicado trabalhar como arquivos de películas de 16-35mm ou manter uma
infraestrutura de distribuição na era contemporânea. Por essa perspectiva, a imagem
pobre revela o declínio e degradação do filme-ensaio, ou de qualquer outro cinema
experimental e não comercial, que em muitos lugares só foi possível em virtude da
produção de cultura ser considerada uma questão do governo. A privatização da
produção midiática se tornou gradualmente mais importante em relação à produção
midiática controlada ou patrocinada pelo governo. Por outro lado, o aumento
galopante da privatização de conteúdo intelectual associado ao crescimento de um
mercado online e à comoditização possibilitaram a pirataria e a apropriação; esta
conjuntura foi responsável por colocar a circulação de imagens pobres no horizonte.
4. Cinema imperfeito
Em seu manifesto, Espinosa também reflete sobre as promessas da nova mídia. Ele
visivelmente prevê que o desenvolvimento da tecnologia de filmagem colocará em
cheque a posição elitista dos cineastas tradicionais e permitirá certa produção de
cinema de massa: uma arte do povo. Como na economia das imagens pobres, o
cinema imperfeito diminui as distinções entre autor e público e funde arte e vida.
Acima de tudo, sua visualidade é decididamente comprometida: desfocada, amadora
e cheia de anomalias visuais.
De algum modo, a economia das imagens pobres corresponde à descrição do cinema
imperfeito, enquanto a descrição do cinema perfeito representa melhor o conceito de
cinema como uma flagship store. Entretanto, o verdadeiro cinema imperfeito
contemporâneo é ainda mais ambivalente e afetivo do que Espinosa pôde antecipar. É
possível afirmar que a economia das imagens pobres, com sua viabilidade imediata
de distribuição em escala global e sua ética do remix e da apropriação, possibilita
uma gama muito maior de criadores do que jamais foi visto antes. Isso não significa,
porém, que essas aberturas são apenas usadas para fins progressistas. Discurso de
ódio, spam e outros disparates também encontram espaços através das conexões
digitais. A comunicação digital se transformou em um dos mercados mais disputados
que existem - espaço este que há muito é submetido a uma acumulação inicial
contínua e bombardeado de tentativas (até certo ponto, bem sucedidas) de
privatização.
Assim, redes pelas quais imagens pobres circulam constituem tanto uma plataforma
para um frágil e novo interesse comum, como um campo de guerra para os interesses
comerciais e nacionais. Nelas não há apenas conteúdo experimental e artístico, como
também incríveis quantidades de pornografia e paranóia. Na mesma proporção em
que permite acesso às imagens renegadas, o território das imagens pobres também dá
espaço às mais avançadas estratégias de comoditização. Ao mesmo tempo em que
torna possível a participação ativa dos usuários, também os maneja num modo de
produção. Usuários se tornam editores, críticos, tradutores e (co-)autores de imagens
pobres. Imagens pobres são, desta forma, imagens populares - imagens que podem
ser criadas e vistas pela maioria. Elas expressam contradições da multidão
contemporânea: o seu oportunismo, narcisismo, desejo pela autonomia e criação,
incapacidade de focar ou de tomar decisões, sua constante disponibilidade para
transgredir e simultânea submissão. Ao todo, imagens pobres expõem um snapshot
da condição afetiva do coletivo, as neuroses, paranóias e medos sentidos, assim como
a sede por intensidade, diversão e distração. A condição das imagens fala não só das
inúmeras transferências e reformatações, mas também das inúmeras pessoas que se
importaram com elas a ponto de convertê-las repetidamente, para adicionar legendas,
reeditá-las ou baixá-las.
Sob esta luz, talvez seja necessário redefinir o valor da imagem, ou, mais
precisamente, criar uma nova perspectiva para ela. Além da resolução e do valor de
troca, pode-se imaginar outra forma de valoração determinada pela velocidade,
intensidade e disseminação. Imagens pobres são pobres porque são severamente
compactadas e se deslocam rapidamente. Perdem matéria e ganham rapidez. Mas
expressam também uma condição de desmaterialização, partilhada não apenas com o
legado da arte conceitual, mas acima de tudo com os modos contemporâneos da
produção semiótica. A virada semiótica do capital, como descrita por Felix Guattari,
vem em prol da criação e disseminação de pacotes de dados compactados e flexíveis
que possam ser integrados em combinações e sequências mais novas a cada vez.
Este achatamento do conteúdo visual - o conceito em devir das imagens - as
posiciona no âmbito da virada informacional geral, entre economias do conhecimento
que arrancam imagens e suas legendas de seus contextos para um redemoinho de
desterritorialização capitalista. A história da Arte Conceitual descreve a
desmaterialização do objeto artístico no princípio como um gesto de resistência ao
valor fetichista da visibilidade. Todavia, o objeto artístico desmaterializado se mostra
enfim perfeitamente adaptável à semiotização do capital, e, portanto, à virada
conceitual do capitalismo. De certo modo, a imagem pobre é sujeito para uma tensão
semelhante. Por um lado, ela opera em contraponto com o valor fetichista da alta
resolução. Por outro, é precisamente por este motivo que ela acaba perfeitamente
integrada a um capitalismo informacional próspero em défices de atenção,
impressões ao invés de imersões, intensidade ao invés de contemplação, previews ao
invés de exibições completas.
Imagine que uma pessoa vinda do passado, vestindo uma boina soviética, pergunta a
você: Qual é o seu vínculo visual hoje, companheiro?
6. Agora
Agora, muitos destes trabalhos estão de volta - como imagens pobres, é verdade.
Alguém poderia argumentar que não se trata de algo autêntico e real, mas, se for
assim - por favor, quem quer seja - mostre-me esse “algo autêntico e real”.
Com a imagem pobre, não há mais uma questão de autenticidade - o real original dos
originais. Ao invés disso, há a questão das condições reais de existência desta
imagem: de circulação viral, dispersão digital, temporalidades fraturadas e flexíveis.
É uma questão tanto de insubordinação e apropriação quanto de conformismo e
exploração.
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Hito Steyerl é uma cineasta e escritora. Leciona New Media Arte na Universidade de
Artes de Berlim e algumas mostras e exposição de que participou recentemente
incluem Documenta 12, Bienal de Xangai e o Festival Internacional de Cinema de
Rotterdam.
Texto publicado originalmente na plataforma e-flux - 2009