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Fritz Lang, em O desprezo, interpreta seu próprio papel.Foi o próprio Godard quem
disse: “O tema de O desprezo são as pessoas que se olham e se julgam, depois são por
sua vez olhadas e julgadas pelo cinema, que é representado por Fritz Lang,
interpretando seu próprio papel”.( 1 ) O dinossauro e o bebê.
Neste mesmo texto, Godard diz também de seu filme que “ele é simples e sem
mistério”, que se trata de “um filme aristotélico”. Acho que é necessário levar a sério
este esquema lógico. Ou seja: Fritiz Lang em O desprezo é em primeiro lugar Fritz
Lang, e não não-Fritz Lang.
Godard o quis e o compreendeu expressamente, ele que, de acordo com sua própria
confissão, quis confiar a Lang o papel exorbitante de representar nada menos que o
olhar e o julgamento do cinema sobre o cinema.
Ou então a ficção pode convencionar que um personagem “em seu próprio papel”
( quem diz ‘papel’ já não diz ficção, teatro em todo caso?) se acorde a seu gênero de
beleza, e assim ela o pode integrar facilmente em seu trabalho, seu roteiro, seu casting.
Mas como ir muito longe com isso? O efeito de surpresa é rapidamente esgotado pela
tautologia: “Mas olha, é ele! O que ele tá fazendo aí? Ele mesmo”. Temos, portanto,
esta alternativa ( não há outras) entre cessar de gerar ficção e “ficcionar” no esquadro de
uma mitologia posta em questão pelo próprio Godard com o (seu) Lang.
Com gênio, Godard não escolhe entre as duas opções. Um gênio justamente utiliza estas
qualidades que Lang atribui a Homero no Desprezo, ou seja, a simplicidade, a astúcia, a
ousadia. O ponto de vista que, em todo caso, é o nosso é que o personagem de Fritz
Lang em seu próprio papel é construído de tal maneira que ele produz no filme ao
mesmo tempo uma espécie de dimensão documentária e uma certa espécie de dimensão
mitológica, ambas bem específicas da démarche godardiana, que não se interessa nem
pela realidade nem pela ficção, mas pela verdade do cinema, o que não é pouca coisa.
E é isso o que faz a meu ver com que o personagem vá tão longe, pois não apenas é o
mais belo personagem de cineasta jamais inventado por um filme de ficção, como
também é auto-interpretado. O todo resultante de um enorme e magnífico trabalho de
Lang e de Godard.
O papel de si mesmo não é certamente a mais fácil dentre as performances de ator. Fritz
Lang se empenhou neste trabalho com um maravilhoso talento, tomando-o
verossímelmente com imensa seriedade.
Em um curioso livro publicado em 1966 pela Grasset, sob o título Esperando Godard,
Michel Vianey, hoje diretor, nos conta algumas cenas de que foi testemunha, ele que
visitava sempre Godard nos anos 60. Estranhamente, o nome que ele dava para Godard
era “Edmond”, o que explica o diálogo que se segue com Lang, durante a filmagem de
O desprezo:
Edmond ergue para ele seus olhos inquietos, azuis, embora deixem na memória uma
recordação negra.
- Não sei.
- Não sei.
Inimigo da improvisação, Lang não devia apreciar nada este “Não sei o que fazer”. Daí
talvez estes pequenos acessos de rabugice que, segundo Vianey, ele deixava sempre
irromper na filmagem: “Este Godard não sabe o que quer, diz Fritz Lang, quebrando a
casca de um ovo duro contra o pé de sua cadeira. Ele é incapaz de dizer o que quer, se é
que ele quer alguma coisa. Por que eu estou aqui? O mar tá feio, etc”
Fritz Lang, no entanto, interpretou muito bem Fritz Lang. Seu “obrigado, você é muito
amável!” murmurado para Brigitte Bardot como um gentleman francófono da velha
Europa é com efeito devastador, digno de Stroheim. Como ele sabe jogar com seu
monóculo, sua bela cabeça, jogá-la para trás, intenso de lucidez e metafísica, citando
Hölderlin, como cabe a um artista. Como maneja com brio o tom exasperado com que
redargüe ao produtor, que insinua que o que ele rodara não estava no script: “IT IS!”.
Como se serve bem também, em seus momentos de cólera e de desprezo, do rugido
sonoro de seu sotaque germânico em inglês: “Natchrely, bi-kôze in zé skript it is
vrrrrittten!”. É irresistível. E sobretudo é impressionante como um homem de 73 anos
sabe, com o natural e a facilidade de um John Wayne, caminhar por um plano, ocupá-lo
com seu corpo, ressentir com graça intensificada o próprio peso, o que é provavelmente
a coisa mais difícil de se fazer para um ator não profissional.
Um único Fritz Lang também deveria ser suficiente para Godard. E justamente, ele o
tinha à mão. Seria decente que pretendesse mostrar a Lang como ser Lang?
Mas é claro que poderíamos apostar que o próprio Fritz Lang, um arquiteto de tal
monta, não aceitaria jamais se prestar a este jogo se não tivesse, previamente à
filmagem, tomado algumas precauções para que este “papel de si mesmo” que lhe
fariam interpretar lhe conviesse.
Um belo texto de Lotte Eisner, guardiã do templo languiano, nos esclarece a este
respeito.( 5) A Cinemateque Francesa, por mediação do “dragão” Mary Meerson, se
envolveu pessoalmente para convencer Lang, que aliás pediu a Godard para que este lhe
apresentasse o roteiro. Godard o fez. O que provavelmente lhe custou mais trabalho em
sua vida de autor do que a obrigação de submeter o roteiro aos produtores: um produtor
pode ser, digamos, “levado na conversa”, sobretudo por Godard. Mas não se engana
Deus nem Fritz Lang. E Godard, protestante, sabe-o bem.
O produtor e o diretor ainda se opõem em Godard, mas não da mesma forma, já que
agora cabe ao primeiro- americano, no filme- a estúpida intenção pseudo-moderna, a
idéia estapafúrdia de interpretar a Odisséia à luz de Freud.
E, claro, neste momento, Moravia está bem distante, mesmo se o diabólico Doutor
Godard tenha sabido tomar emprestado trechos inteiros de seu texto, que ele, por assim
dizer, “recontextualizou”, redistribuindo-os e filmando-os.
“É preciso sofrer”, diz Lang a Piccoli. Em uma palavra: em Godard, é o diretor quem dá
as lições de moral. E é pelo travelling que este terá a última palavra, no silêncio de
trabalho do plano.
O esforço de adaptação pelo qual o roteiro foi elaborado é portanto aqui mais um efeito
que uma causa. E certamente Godard não teria empreendido este coup de force se não
tivesse sido conduzido a ele pelo conjunto de verdades críticas a que se aferrava no ano
de 1963. Ao menos doze anos de reflexão o levaram à maturidade. O trabalho de
Rivette, Chabrol, Rohmer, Truffaut, de Moullet e, dialeticamente, o de Bazin, a quem o
filme é dedicado ( por uma citação talvez inventada) não deixaram de contribuir a esta
elaboração.
Pois o Fritz Lang de O desprezo é uma criatura política: sua Odisséia é a Odisséia do
autor.
Concepção altamente romântica, sem dúvida, esta figura soberana do autor, e que com
freqüência confunde seu desejo com as realidades, mas que teve ao menos a vantagem,
sob o ponto de vista crítico, de ajudar a discernir algumas destas realidades, no campo
exemplar ( por ser ao mesmo tempo limitado pelo esquema de produção e muito
criador) do cinema hollywoodiano. É aqui que o aspecto documentário de O desprezo
aparece.
Esta ficção de um Lang rodando na Itália com um produtor americano possui algum
grau de verossimilhança, em termos da história do cinema. Não podemos deixar de
pensar ( o próprio Moravia deve ter pensado) nesta produção ítalo-americana de
Ulysses, que foi um projeto de Pabst e que foi finalmente dirigido por Mario Camerini
em 1954, com Kirk Douglas e Silvana Mangano.
Não excluamos ainda que Godard deve ter guardado na memória certa discreta mas dura
polêmica que, em 1957, opôs Rivette a Bazin a propósito de uma reavaliação crítica de
Beyond a reasonable doubt. Ali onde Rivette via “uma depuração” e “menos a mise en
scène de um roteiro que a simples leitura deste roteiro” ( 9), Bazin acusava “ um tal
desprezo por seu roteiro que ele ( Lang) só podia salvaguardar sua dignidade
operando em torno desta história o vazio barométrico da mise en scène”, o que,
segundo ele, conduzia o valor desta obra não muito distante do “zero absoluto”. ( 10)
A bela questão que coloca a presença real e simbólica de Fritz Lang em O desprezo é
bem esta, que é justamente o ponto crítico de uma política do autor: o cinema constitui
um único corpo com as imagens e os sons. E é no domínio destes que se mensura o
poder de um autor, portanto da mise en scène. Na escolha das rushes, tudo já está
consumado. O ato de criação já ocorreu, é tomar ou largar. E enfim não constitui uma
das menores audácias de Godard ter filmado planos de uma Odisséia que Fritz Lang
deveria ter filmado.
Estes planos, pouco numerosos aliás, Godard previa com sutileza que um exegeta
embusteiro poderia ter rejeitado a paternidade de Lang ao filmá-los, colocando sua
autoria a cargo de uma segunda equipe de Lang, sob a responsabilidade de seu
assistente, ou seja, o próprio Godard.
Que pensar com efeito destes planos, planos de detalhe ( os closes da imagem dos
verdadeiros deuses, e do primeiro olhar de Ulysses quando reencontra sua pátria), senão
que eles são realmente muito pouco languianos? E que eles são eminentemente
godardianos, os olhos pintados das estátuas ( detalhe realista) e a maquiagem exagerada
de Penélope, evocando já o sex/violence/action/painting de Pierrot le fou? Uma radical
honestidade, um puritanismo de Godard devem aqui ser levados em conta: com que
direito ele se permitiria de imitar o estilo de Lang? É preciso acreditarmos que estes
planos filmados por Godard foram antes de tudo um presente ofertado a Lang. Crer que
neles se inscreveu a única marca possível de seu respeito à liberdade criativa soberana
de seu mestre. E que esta liberdade só pode se assemelhar à sua, filialmente suscitar a
semelhança. Talvez Godard tenha visto os olhos pintados de Marlene Dietrich em
Rancho Notorious como os da estátua de uma deusa viva. É preciso notar também como
Godard- já que ele havia muito bem assinalado como crítico que “Fritz Lang se
interessa mais por uma cena que por um plano de detalhe, como Hitchcock” ( 11)-
integrou alguns destes planos à ação global de seu filme. Assim, quando Piccoli, mal
inspirado, vai cometer a gaffe de sua vida ( um infeliz atraso no encontro com o
produtor e Bardot) que vai lhe custar o desencadeamento do desprezo de sua mulher, o
plano “languiano” de Netuno, inimigo mortal de Ulisses, reaparece como um signo
premonitório de seu próprio destino. O todo do filme de Godard só pode portanto
funcionar pela integração de uma parte que lhe dá sua força clássica, articula-a e a
constrói em virtude destes poderes de abstração que constituem a força maior que
Godard e seus companheiros reconheceram na lição de Lang.
Entrevemos aí em todo caso que a herança, a filiação permanece uma grande questão
aberta, um dos continentes a se explorar de uma história do cinema que não temeria
bisbilhotar um pouco sob a perspectiva do que se passa entre os cineastas. Entre As
Meninas de Velásquez e as de Picasso, uma história que trataria de analisar a qualidade
do ar onde os dois pintores- e nós, seus espectadores, com eles- se encontram conjunta,
geneticamente sob a influência de um mesmo programa.
Notas:
No princípio, é o olho. O olho de peixe morto de Marion Crane ( Janet Leigh) sob a
ducha de Psicose: imagem guardiã de um túmulo ( guardiã do recalque em Hitchcock),
e de sua abertura (imagem que autoriza o retorno luminoso do recalcado em De Palma).
Imagem atraente tornada inquietante, e que ocupa um status extremamente elevado no
horror: o “olho da consciência”: “Parece, com efeito, impossível com relação ao olho
falar de outra coisa senão de sedução, escreve Bataille, nada sendo mais atraente nos
corpos dos animais e dos homens. Mas a sedução extrema coincide provavelmente com
os limites do horror”.1
O homem interrogado acaba por falar, e é morto em seguida. Seu interrogador tira sua
máscara e descobre seu verdadeiro rosto: é Etahn Hunt ( Tom Cruise), um agente da
IMF ( Força da Missão Impossível). Close de uma injeção intravenosa que mergulha no
braço de Claire para reanimá-la. Close em contra-plongé, focal curta, de Ethan, que se
debruça sobre Claire quase morta, já morta. Sua inquietude revela um desejo que ele
tenta ignorar, um desejo frustrado. Claire, a mulher de Jim Phelps ( Jon Voight), o
patrão, o mentor, o pai espiritual de Ethan, é um mau objeto de desejo, um objeto
interdito.
O duplo olhar.
A abertura de Sisters: seguido por uma panorâmica de alto a baixo, Philip Wood ( Lisle
Wilson), um Negro, recoloca sua calça num vestiário. A câmera dá um zoom para trás.
No primeiro plano, Danielle Breton ( Margot Kidder), uma cega com óculos escuros e
uma bengala branca, entra no quadro pela esquerda, estaca no meio, pousa sua bengala e
começa a tirar a roupa. Philip se aproxima dela e fixa-lhe o olhar. A câmera faz um
zoom dianteiro sobre seu rosto. A imagem se congela.
O olhar objeto.
Esta relação entre aquele que olha-aquele que é olhado se torna mais complexa em
Missão: impossível. A equipe de Jim Phelps deve penetrar no interior de uma festa na
embaixada americana de Praga, com o objetivo de prender o espião Alexandre Golitsyn
( Marce Iuris), alguns minutos depois que este copiou em um disquete a lista secreta dos
agentes americanos na Europa Central.
O ponto nodal desta cena, o que a estrutura e forma, são os óculos Visco: os óculos
dotados de um microfone e de uma câmera miniaturizados, com a capacidade de
transmitir aquilo que o personagem que o carrega vê e ouve a um monitor que se
encontra a mais de um quilômetro de distância. Em um apartamento próximo da
embaixada, Jim Phelps vê e ouve tudo, controla e coordena a operação. Nas mãos de De
Palma, os óculos Visco não são apenas um simples truque, mas se tornam um
instrumento que estabelece uma dialética do olhar, impulsiona-o até os seus limites e
acaba por manipular o olhar do personagem, assim como do espectador.
Ethan Hunt penetra na embaixada sob a aparência do senador Waltzer. Durante todo o
início da cena, seu rosto permanece oculto, pois a câmera adota seu ponto de vista.
Apenas vemos o que aquele personagem (transformado em câmera) vê, e Jim Phelps
também.
Mas o que importa aqui não é o fato de que Jim Phelps vê o que Ethan Hunt vê. Nesta
relação, o essencial não consiste no que é visto. O que a estrutura é o que não é visto. O
olhar subjetivo de Ethan Hunt é objetivado, dirigido, manipulado, impedido por Jim
Phelps de ver o que realmente se passa: o grupo Phelps é vigiado por uma segunda
equipe que tem por objetivo desmascarar o espião que se infiltrou há algum tempo na
IMF.
Em Missão: impossível, o culpado é Jim Phelps, o pai espiritual de Ethan que joga
Claire, sua jovem esposa, em seus braços para melhor desorientá-lo, para que ele se
extravie nos meandros da noite negra de Praga, desacreditado, exilado, caçado,
perseguido; ele, o caçador profissional, o virtuose da manipulação e do bluff, enganado,
burlado, traído. Magnífica cena de errância e de perda, filmada em exterior em Praga,
transformada em um labirinto onde a luz oscila entre a latência do azul-noite e a
violência do laranja, onde o nevoeiro oculta um novo assassinato. Soberbo trabalho de
Steven H. Burum, um câmera ao qual devemos a imagem memorável de filmes como
The outsiders e Rumble fish ( Rusty James) de Coppola, ou Body double, The
untouchables, Casualties of war, Raising Cain, Carlito’s Way de Brian de Palma.
O Livro de Jó.
Desacreditado, perdido, acusado pelo agente da CIA Kittridge ( Henry Czerny) de ter
liquidado seus amigos para se apropriar do disquete contendo a lista dos agentes
secretos americanos atuantes na Europa e vendê-la ao traficante de armas Max, Ethan
entra no esconderijo do grupo. Sua única esperança para se livrar das acusações: lançar
pela Internet uma mensagem a Max.
Ele tecla no computador “job 314”, o código que, segundo Kittridge, Max utiliza para
esta operação. Não dá em nada. Em vão, ele tenta variações. No momento em que seu
desespero atinge o pico, seu olhar tomba sobre um exemplar da Bíblia, posto, como por
acaso, sobre um móvel diante dele. A iluminação e um zoom dianteiro destacam a Santa
Escritura dentre os outros livros. E Ethan vê a luz: “job” ( Jó, trabalho, emprego) tem de
ser tomado no sentido bíblico. Trata-se do Livro de Jó, mais precisamente do capítulo 3
( Pereça o dia) e do versículo 14( “com reis, conselheiros da terra, que constroem
mausoléus”). Assim como Jó, Ethan é um herói trágico traído por seu pai.
É preciso falar aqui de Tom Cruise, dizer o quanto o desnorteamento de seu personagem
se imprime em cada gesto, cada movimento de seu corpo, o quanto o luto antecipado ou
diferido do órfão parricida é visível sobre o seu rosto emagrecido.
O que conta o Livro de Jó? “ Incitado por Satã, escreve André Chouraqui, Elohîm
permite que Jó perca seus filhos e seus bens, e que seja duramente atingido em seu
corpo por um mal aparentemente incurável. O sofrimento do justo permite assim
evocar o problema ontológico do mal. Uma questão central domina a obra: como
apreciar o destino de Jó em relação às regras geralmente admitidas da retribuição? O
sofrimento do justo deve nos fazer duvidar da ordem moral universal? O drama atinge
as dimensões da tragédia: Jó é dilacerado na profundidade de seu ser; ele não
compreende a justiça deste Elohîm ,que no entanto ele persiste a reconhecer e adorar.
Jó, o Sábio é levado a se revoltar contra Jó, o Justo”. 3
No capítulo 3, Jó abre a boca e maldiz o dia em que nasceu: “Por que não morri eu na
matriz, saído do ventre para agonizar? (...)Sim, agora eu estaria deitado e em paz; eu
dormiria; eu repousaria, então, com os reis e os conselheiros da terra, que se
constroem mausoléus”. A vida seria então a longa agonia que dura o lapso de tempo
que separa duas mortes: a primeira é o nascimento.
Close de uma mão feminina que toca o ombro de Ethan. Ele se volta e encontra Claire
face a face. O pesadelo continua. O breve lapso de tempo que separa estas duas
aparições acaba por jogar Ethan no isolamento absoluto. Nenhuma destas experiências
pode ser banalizada. As sensações contraditórias que dispõem do personagem neste
instante são neutralizadas, deixando-o cego, situado numa dimensão muito distante
daquela que o toca e daquele que tenta tocá-lo, em um mundo onde os gestos não
possuem mais nenhum alcance. A segunda visão não anula a primeira. A barreira que os
separa é porosa, permeável. Esta coloca Ethan no limiar entre dois sonhos. Tudo o que
ele vê ou que aparece só pode ser um sonho dentro de um sonho.
Auto-destruição.
A única piscadela ( clin d’oeil) do filme que anuncia a série, antes de passarmos aos
assuntos sérios ( pois , apesar de seu inegável humor, o filme é espantosamente grave,
no limite do trágico): Jim Phelps está em um avião. Uma aeromoça se aproxima dele:
“O senhor quer ver um filme, Mr. Phelps?- Não gosto de cinema, prefiro teatro,
responde ele secamente- Mas um filme ucraniano não lhe diz nada?”, insiste ela,
sublinhando a palavra “ucraniano”. Jim Phelps acaba por aceitar a fita de vídeo que a
aeromoça lhe oferece, cassete que- é evidente-, não contém nenhum filme ucraniano,
mas o anúncio de uma nova “missão impossível”, com a inevitável fórmula final: “Esta
fita vai se auto-destruir em cinco segundos”. Phelps, como velho habitué deste ritual
tornado clichê, mitiga a fumaça exalada pela fita que se auto-destrói, acendendo um
cigarro.
A única coisa que De Palma retém da série é justamente esta idéia de auto-destruição. A
narrativa de Missão: impossível se auto-anula à medida em que progride, aniquila a
própria idéia de ficção. Cada nova cena anula a precedente. Cada nova etapa conduz a
um impasse e acaba por construir um palácio de espelhos de cristal. Aquilo que vemos
não é aquilo no qual cremos.
A cena da embaixada é revista e corrigida por Kittridge. Jim e Claire Phelps, que
acreditávamos mortos, estão vivos. Max não é, como seu nome indica, um homem mas
uma mulher ( Vanessa Redgrave). Jim Phelps volta à cena para contar a história sob um
outro ponto de vista, igualmente falso.
Do gozo ( jouissance).
No fim do filme, Ethan Hunt afundado na poltrona de um avião que o conduz não
sabemos paraonde. Parece esgotado. Neste momento, Ethan vem ocupar o lugar do
espectador, que vivera duas horas de jouissance cadenciada, feita de fluxos e refluxos,
de jorros descontínuos, de espera, de momentos orgásticos, de breves instantes de
relaxamento, de picos e de quedas vertiginosas.
Notas:
1. Georges Bataille, Obras completas I.
2. Jacques Lacan, O Seminário, Livro I: Os escritos técnicos de Freud.
3. A Bíblia, traduzida e apresentada por André Chouraqui.
Cahiers du Cinéma, número 507, novembro de 1996.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Três Tourneur
Mostrar apenas movimentos inúteis- ou abortados tão logo iniciados-, simular o rigor
quando trágica é a desordem, são características que me parecem desvelar uma
impotência em captar a vida, ou antes: uma vontade de precipitar a morte.
Appointement in Honduras é isto e muito mais, pois o filme começa sem que a emoção
nele se instale, ou antes com a emoção que se retrai ( le coeur oté); vida petrificada que
surpreende pela forma com que é destilada, crueldade inútil ( crocodilos e serpentes
ameaçadores ao se lançarem, inofensivos ao final das contas), totalmente decorativa,
poder-se-ia pensar. Mas há aí um partis pris constante em Tourneur: jamais mostrar um
evento dramático quando o exigisse a situação; mas mostrá-lo quando o espectador
estivesse desprevenido, quando ele não esperasse ou não esperasse mais, dizer a verdade
quando esta tivesse desaparecido. Isto equivale a preceder o inelutável com o propósito
de aboli-lo ( em vão), ou então a mostrá-lo como se não acreditássemos mais nele. É um
cinema da “pegada” ( empreinte), onde os fins perseguidos jamais se situam no
momento exato em que são buscados. Interstícios entre a aparência e a realidade,
comédia e drama, vida e morte que constituem provas, não de uma impotência a mostrar
o Todo, mas de um desejo de não mostrar nada. O que equivale a dizer: mostrar o que
não é mais ou não será jamais, assinalar o irreal sem razão nenhuma, explorar o vazio e
dele mostrar apenas o vazio. Este é um cinema novo, na medida em que não serve de
forma alguma ao seu autor ( tão desesperado ao final do processo quanto antes). Sem
nada cultivar, nada pode colher. Mas ele nos permite descobrir um outro valor: o de
uma consciência opressa pelo desespero, o de uma tensão que não se distende jamais.
Eis em que o cinema de Jacques Tourneur é um dos mais abstratos que possamos
imaginar: se notamos a ausência em seu cinema desta tensão que animaria as imagens
petrificadas ( mesmo em movimento) de seus filmes, é porque cabe ao espectador
animar com um novo movimento esta obra de onde a vida foi subtraída; subsistem
apenas impulsos fracassados em direção a uma obra jamais realizada, e que poderia ter
sido outra. A partir destes impulsos, devemos perseguir a obra, aproximarmo-nos dela
( por meio de nossa própria sensibilidade), visando este fim que ela jamais atingirá. Os
finais de Anne of the Indies, Appointement in Honduras não são realistas; são até
mesmo inimagináveis. Cabe a nós completar este filme, conduzi-lo à realização que ele
poderia ter tido. Pois se o cinema de Tourneur é a princípio pensado e sentido, em
seguida este é destruído e recomposto: trata-se para nós de retornar ao pensamento, à
idéia inicial do autor, que o mesmo tentou subtrair a nosso olhar. Não nos espantaremos
de verificar que, com freqüência, os personagens mais significativos sejam animados
por movimentos cujo preciosismo Tourneur se empenha em sublinhar; acontece
frequentemente também que uma cor adquira uma importância capital numa cena, às
custas das ações importantes; aqui, é preciso sublinhar o papel dinâmico destas cores
( um exemplo marcante é o vestido amarelo de Ann Sheridan em Appointement, que
apaga tudo o que está a seu redor), sobre as quais repousa todo o ritmo do filme. Estas
são ao mesmo tempo símbolos ( o sangue vermelho sobre os lábios de Jordan) e
estruturas. O anódino torna-se capital e ( como o artista) vacilamos diante destas coisas
que se desvanecem: anima-se o Nada, desaparece a existência. Este verdadeiro silêncio
é a expressão de um vazio desesperado que não se aparenta ao desespero de Daves, por
exemplo, que não sabe como preencher a tela, sempre imensa para ele.
Os limites e a ambição de Tourneur estão em outro lugar: ver ( e dar a ver) o que não é,
o que não somos, invertendo com este propósito o indispensável e o dispensável,
modificando o curso das coisas, desejando mudar a vida. A imagem que ele nos propõe
é, portanto, invertida, os elementos reunidos em proporções diferentes, o equilíbrio
natural perturbado. Assim, em Anne of the Indies, impossíveis serão as relações entre
uma mulher que recusa seu sexo e um homem que mascara sua virilidade. Como não
pensar em Nicholas Ray, em Jerry Lewis, ambos obcecados por estas inversões, estas
imagens desmentidas tão logo formuladas...
Por que os filmes de Tourneur são tão distanciados do espectador? Pois o que ele busca
é não dizer nada a respeito daquilo que é, e isto consiste um pouco em dizer tudo o que
não é, ou seja, a ausência. O sentido desapareceu. Se, no entanto, o signo permanece, é
porque seus filmes propõem um universo animado unicamente pelos signos do non-
sens. Compreende-se a dificuldade em sermos afetados por eles ( de forma plena, ao
menos). Eles não passam de instantes dispersos, oferecidos à nossa visão como pedras
preciosas, cintilantes de um brilho único, mas de tal forma que seria necessário analisar
esta curiosa impressão de mal-estar que sentimos, ao mesmo tempo em que somos
deslumbrados. Esta vem, talvez, do fato de que os atos são de chofre situados em seu
estágio último, sem que nos seja mostrada a evolução que os conduzira até lá ( à
diferença desta estética do insustentável cara a McCarey, e que consiste em nos
apresentar, em toda a sua extensão, o movimento impossível, a aproximação indecente
de pessoas estranhas umas às outras). É um cinema do instante, e no entanto este
instante é sempre repartido. As relações corporais são raras, o erotismo concebido de
maneira indireta ( distância) e fugitiva; as cenas de morte também ( só dou por exemplo
esta mulher em Wichita, morta por uma bala, através de uma porta), ao mesmo tempo
brutais e inacessíveis ( próximas nisto do gozo erótico).
Pois se existe uma distância entre todas as coisas, e em particular entre nós e o metteur
em scène, esta razão não deve impedir-nos de ir a seu encontro: cabe a nós preencher o
papel que este não pode assumir, de ser o metteur en scène.
Louis Skorecki
Cahiers du Cinéma, 1964
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Archibald de la Cruz teve a feliz sorte de ver uma outra mão perpetrar crimes que uma
não menos feliz sorte lhe impediu de levar a termo. Tal é em duas palavras o argumento
do filme que Luis Buñuel realizou no México, há três anos. Como todo conto bem
construído, este deixa à interpretação uma margem considerável. Devemos entender
simplesmente, como o autor nos sugere numa breve cláusula- cuja ingenuidade só é
disputada pelo esplendor de sua ilustração- que é conveniente não tentarmos complicar
a vida, e assim mandar ao diabo escrúpulos e casuística? Ou, forçando um pouco a
interpretação, devemos considerar os objetos femininos destes assassinatos como os
diferentes símbolos dos tabus burgueses ou religiosos que todo homem que se dá ao
respeito deve se apressar a abandonar?
Devemos enfim ver neste apólogo uma adição buñueliana à famosa obra de Thomas De
Quincey: Do assassinato considerado como uma das Belas Artes, caro aos surrealistas
de todos os matizes? Na dúvida, vamos nos ater às aparências, ou seja, às imagens,
amplamente fascinantes, embora sejam isentas do cinismo que um Hitchcock ou um
Stroheim pudessem ter-lhes imprimido. Mas deixemos a Buñuel seu universo próprio,
sobretudo quando temos a chance de encontrá-lo melhor “calçado” ( charpenté) do que
de hábito.Eu acabei de empregar o termo “ingênuo”. Não foi com má intenção. A
crueldade de nosso herói é a mesma das crianças que torturam um animal ou maltratam
um brinquedo: e, de fato, é exatamente sobre um brinquedo- um manequim- que esta
crueldade vai se exercer. Sadismo? Estamos a léguas disso. A morte ( lembrem-se da
fusão da boneca no forno) parece restituir a vida ao rosto morto: o olho brilha,
movimenta-se, a carne palpita, relaxa, à medida em que se decompõe, e percebemos
bem que, neste momento, Archibald, que possui o coração mais puro do que acreditara,
apaixona-se pela moça que servira de modelo à figura de cera. Da mesma forma, a face
“embonecada” da jovem noiva se animará por um segundo: quando o ex-amante
empunhar contra ela o revólver e fazer fogo...
Se insisto sobre esses detalhes, é porque busco sempre em Buñuel- cujos “dadas”
sociais ou filosóficos me incomodam frequentemente por seu caráter primário- o
momento onde o traço ultrapassa a intenção da mão que o delineia. Deplorei muito a
ausência destes momentos escolhidos em seus dois últimos filmes ( e sobretudo em Cela
s’apelle l’aurore), por não ter sido satisfeito para além de meus desejos. E isto na
medida em que a visão anterior e privada de Archibaldo havia dado justamente
fundamento às minhas exigências.
Não há sátira melhor do que a que se nutre da sobriedade de elementos ordinários. Clero
e polícia figuram em bom lugar na ação; o golpe lançado contra estes é adolescente, mas
vivo, elegante, sem precauções oratórias. Muito bem-vinda igualmente a caricatura dos
turistas americanos: nenhum ou quase nenhum exagero.
Prossigamos nos elogios. A arrogância um tanto risível dos personagens se acorda com
sua classe e meio social. Os efeitos mais preciosos, os gestos mais plasticamente
concertantes só participam discretamente deste estatismo, que não é em geral o menor
pecado de Buñuel. Assim como liberara o herói, o manequim libertou Buñuel de seu
complexo de imobilidade, vítima expiatória do crime de lesa-Majestade ao cinema, que
é o de conceber a beleza segundo as normas de Baudelaire.
É por este motivo que passarei rapidamente pelos méritos mais evidentes do filme, os
pictóricos. E no entanto, este décor moderno com seus brancos e negros untuosos, estes
bibelots barrocos, estas roupas sofisticadas, este magnífico parque do final do filme, são
em grande parte responsáveis pela fascinação exercida sobre nós por estes crimes
imaginários ou reais , luxuosos e cintilantes como uma vitrine de joalheria. Que
importa, afinal, a significação do símbolo? O que nos é dado a ver contenta
suficientemente um apetite de essência muito delicada para ser insalubre. Aí reside,
penso, a verdadeira moral da fábula.
Já devem ter adivinhado que, de todos os filmes, antigos ou modernos, de Buñuel,
Archibald de la Cruz é aquele que mais estimo, o mais prazeroso e bem acabado. Eu o
prefiro até mesmo a El, onde o ar que circulava não possuía esta limpidez cristalina. Ali,
o entomologista mascarava o poeta; percebia-se um certo desprezo pelo personagem.
Aqui, Buñuel é o cúmplice amável de seu amável herói, se não de intenção ao menos de
fato. E sabemos bem que, no cinema, não são as intenções que importam.
Eric Rohmer
Arts, outubro 1957
Tradução: Luiz Soares únior.
Este poder do som se mostra mais evidente na primeira passagem à ficção. Depois do
carton “Era uma vez”, o filme começa com um longo travelling tomado do interior de
um carro em movimento. Esta abertura possui o valor de um programa estético e
dramático: ela coloca, ligando-os, as aventuras do conto oral e o princípio de disjunção
áudio-visual. O desfile contínuo da paisagem urbana é acompanhado pelo som fora de
campo do rádio do carro: sobre um fundo de canção pop sentimental, uma voz
masculina narra uma história de amor fracassado, depois recita uma mensagem
publicitária. Um outro homem toma a dianteira – adivinhamos, pela mudança no
registro da voz, que se trata do condutor do carro falando num auto-falante: “A cavala tá
chegando! Direto de Mae Khong! Cavala ao vapor e cavala salgada!” Nos fundos do
furgão está sentada uma mulher. Depois de alguns planos de diálogos entre os
vendedores e os camponeses, a vendedora de peixes, de frente para a câmera, começa a
falar de sua infância. É uma lembrança dolorosa. Pouco sensível à comoção da
narradora, o interlocutor fora de campo- compreenderemos mais tarde que se trata da
equipe de cinema encarregada de coletar os fragmentos do conto coletivo- pede-lhe para
contar uma outra história, “não importa qual história, um romance ou outra coisa”.
Aparentemente constrangida, a vendedora demora a continuar. Sem ruptura sonora,
sobre o fundo do mesmo som ambiente, a mudança de plano transporta-nos para o
interior de uma casa: um rapazinho está sentado diante de uma mesa, uma mulher olha
pela janela no plano de fundo. Depois de alguns segundos, ouvimos novamente a voz do
vendedor de peixes , ligeiramente abafada pela distância: “A cavala tá chegando! A
cavala de Mae Klong!” Enquanto a mulher deixa a janela para ficar próxima ao rapaz
sentado à mesa, o vendedor prossegue com seu discurso. Som e imagem parecem
sincrônicos, a continuidade sonora incita a interpretar a montagem-imagem no sentido
da continuidade: simplesmente passamos para o interior da casa perto da qual estacara o
vendedor de peixes, cuja voz entra pela janela, diante da qual se mantinha a mulher, sem
dúvida atraída pelo ruído do furgão. Até que ouvimos novamente a voz da vendedora:
“Digamos que havia uma casa. E nela um rapaz doente e uma professora”. O nível desta
voz surpreende: ela é mixada muito intensamente para estar vindo do exterior, do fora
de campo. O ponto de escuta é o mesmo que o do plano precedente: o interior do
furgão. As palavras da vendedora, ao redobrar o visível, modificam a posteriori a
compreensão da montagem e revelam a passagem, no corte, a um outro regime de
imagem. A impressão de continuidade era falsa: aqui começa a narrativa improvisada
do conto e, simultaneamente, sua encenação cinematográfica. O som não era sincrônico,
ele faz persistir, no fora de campo, o universo documentário sobre as imagens mudas da
ficção.
Ao superpor a captação documentária da improvisação oral e a recreação ficcional do
conto, Weerasethakul realiza realiza um fantasma de cinema e um sonho de criança:
aquele de um encadeamento imediato do visível sobre o oral, da imagem sobre a
palavra. A potência performática da palavra é atualizada na economia do filme pelo
poder do som sobre a imagem. Em várias ocasiões, a imagem é colocada em suspensão,
indeterminada, entre os dois regimes. Então, é o som que é encarregado , com um
retardo mais ou menos longo, de qualificar a imagem, de fazê-la se colocar de um lado
ou de outro da fronteira porosa entre ficção e documentário.
A disjunção áudio-visual abre assim um espaço comum aos dois regimes do filme. As
ficções não são concebidas ex nihilo em um espaço separado do mundo, mas são
tomadas pelas malhas da realidade cotidiana, à espreita de sua realização. O percurso da
equipe de cinema pela Tailândia age como um revelateur. A ficção do conto eclode
espontaneamente à sua passagem. Improvisar um conto parece então o gesto mais
natural do mundo: lançamo-nos nesta tarefa enquanto preparamos o jantar, depois o
vizinho se engaja no processo. A única condição a esta cristalização espontânea reside
na disponibilidade oferecida pelo tempo morto. É preciso saber “tomar/ dar um tempo”,
distanciar a trama da vida cotidiana, suspender as ocupações para nos tornarmos
disponíveis à potência ficcional que cada um carrega em si. Esta qualidade de presença
no mundo não é dada a qualquer um: os tailandeses anônimos que desfilam diante da
câmera impressionam pelo jogo que sabem introduzir nas engrenagens de suas vidas.
A passagem sem descontinuidade do documentário à ficção aparece explicitamente no
filme. As convenções de uso querem que o making of seja um objeto em separado,
filmado por um outro realizador, sob um outro ângulo, distinguido do filme por uma
espécie de imagem mais “docu”. Em um plano de Misterioso objeto, ficção e making of
da ficção se enlaçam em uma mesma duração, segundo o mesmo ponto de vista. A
criança extra-terrestre saída do carro está sentado em uma cadeira, outras pessoas no
chão. Um estratagema invisível de montagem faz desaparecer, depois reaparecer o
extra-terrestre. O professor, de pé, termina um monólogo com estas palavras: “Mas
bem, eu vou te contar esta história mais tarde”. Depois de alguns segundos, um rapaz
parcialmente sentado se levanta, sai do recinto por uma abertura à direita do campo,
reúne algumas folhas grampeadas, e entra novamente. O extra-terrestre subitamente se
dirige à câmera e pergunta: “você filmou mesmo? Foi bom, terminou?” Uma discussão
começa entre os atores e um homem fora do campo; quando ele entra no campo,
reconhecemos Weerasethakul. Nenhum “cut!” fora pronunciado para assinalar o fim da
tomada, a interrupção da ficção. A continuidade se apóia na retomada, depois da
passagem ao making of , do “efeito especial” utilizado alguns segundos antes na ficção.
Não é mais o personagem do extra-terrestre que desaparece, mas um simples ator- fôra
seu script que ele havia tomado entre as mãos durante os poucos segundos flutuantes
entre a ficção e o documentário. Neste plano, o jogo entre o som e a imagem é invertido
em relação à primeira passagem à ficção. É a imagem que produz a continuidade,
enquanto que a descontinuidade é produzida pela trilha sonora, pela passagem dos
atores do diálogo escrito à conversação livre com a equipe do filme. Mas é sempre o
som que vem suscitar a ambigüidade, qualificar uma imagem desdobrada, suspensa
entre a ficção e sua fabricação.
Walter Benjamin apresenta o “contador de histórias” como uma espécie em vias de
desaparição nos tempos do romance moderno e do cinema. O conto não é
tecnologicamente reprodutível; ele se transmite oralmente. Ao contrário do romancista,
recolhido em sua solidão para escrever, o contador conta histórias entre os outros
homens, sua narrativa não está separada de sua vida: “o que ele conta torna-se
experiência naqueles que escutam sua história”. Misterioso objeto prova que o cinema,
longe de desqualificar a forma oral de transmissão de experiências, constituída pelo
conto, pode, pelo contrário, prolongá-la, tomar por sua própria conta a tarefa de
encadear- uma história com outra, a ficção e a vida, a oralidade e as imagens. O filme de
Weerasethakul não cessa de encaixar os contos uns nos outros. O conto principal é
precedido de duas narrativas, uma escutada no rádio, a outra dita pela vendedora de
peixes. A criança que termina a história da professora e do extra-terrestre não pode se
impedir de implicá-la em um outro conto: uma história de tigre-feiticeiro, embrião de
Mal dos trópicos- filme cuja abertura poderia ser o fim de um conto sobre ao qual este
filme se liga...e assim sucessivamente, até o último encadeamento, o do carrinho no
pescoço do cão, ponto de partida possível para um outro conto. Emaranhado na trama
da vida cotidiana, dela se deslindando em direção ao maravilhoso para sem cessar
retomá-la, o cinema de Weerasethakul assemelha-se ao conto, tal como descrito por
Walter Benjamin: “é a memória que tece o fio que em definitivo forja todas as histórias.
Pois estas se ligam todas entre si, como os grandes contadores de histórias,
particularmente as Orientais, sempre se empenharam em sublinhar. Em todos eles vive
uma Scheherazade, para quem cada episódio de uma história evoca imediata e
irreversivelmente outra”.
Cyril Neyrat, Vertigo número 27 , revue de cinéma
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Notas:
1. Coda: Palavra italiana que designa o segmento com que se termina uma música.
2. Cadavre exquis: Jogo literário inventado pelos surrealistas que consiste na
composição de um texto ou desenho por várias pessoas, sem que nenhuma seja
informada do elemento trazido pelo colaborador precedente. Assim, no romance
coletivo “L’amiral flottant”, cujo primeiro capítulo foi escrito por Chesterton, nenhum
dos autores conhecia a continuação da história, e deve, segundo Michel Lebrun, se
empenhar a deslindar a situação problemática com a qual o predecessor concluíra o
capítulo precedente e, por seu turno, a complicar o máximo possível o presente capítulo,
a fim de colocar o próximo autor na mesma dificuldade de execução.
Nouvelle vague ou o retorno de Godard sobre os espaços de uma história. Delon e seu
duplo em busca de sua identidade. Eu sou um Outro. Em Cannes e em qualquer outro
lugar, a natureza, o amor, o dinheiro, o encontro, o poder. Elle est retrouvée- Quoi?-
L’éternité.
Nouvelle vague. A ambição de Godard, confessada desde a primeira frase de Nouvelle
vague ( ou Vague Nouvelle) pela voz-off de Alain Delon, consiste hoje em escrever
uma narrativa. O que pressupõe uma história, uma trajetória, um modo de narração.
Diz-se repetidamente que Godard era incapaz de contar uma história, de manter a
distância da narrativa para se dar ao luxo de maravilhar-se. No entanto, talvez pela
primeira vez, ele consegue ganhar a aposta da história. O enunciado é aliás bastante
simples, límpido como a água do lago que Godard sente prazer em filmar. Basta
reportarmo-nos ao texto de apresentação que Godard se deu ao trabalho de escrever
( Cahiers, 431-432). Ao termo de uma dupla prova, um homem e uma mulher se
reconhecem. É uma história de duplos, de amor, de dinheiro, de ressurreição.
A verdadeira novidade de Nouvelle vague está no tempo. Tradicionalmente, o tempo de
um filme de Godard é de natureza intensiva, ou seja, jamais está ligado ao desenrolar da
fita da película durante a duração da projeção. É uma espécie de presente perpétuo que
não acumula uma energia cronológica, que é indivisível em passado, presente e futuro.
Pra usar uma metáfora matemática, trata-se de um tempo expresso
“compreensivamente” ( en compréhenson), ou seja, de um único jorro, em uma única
vez, e não em extensão, como o exigem as leis da narrativa; um tempo puramente
espacial, que não remete à “curva” ( courbe) , à parábola de uma história preexistente ao
filme. A inverso disto ou quase, Nouvelle vague nos dá a sensação de ser o primeiro
filme de Godard escrito, narrado no passado simples, o tempo da narrativa. Faulkner e
Chandler, abundantemente citados, são espécies de arquétipos ou modelos, os últimos
grandes escritores do esplendor romanesco. Chandler nos chama a atenção, por sua
presença virtual, para o fato de que toda história é policial, e que ela contém um
mistério em si mesma. Quanto às frases de Faulkner, com freqüência fazem alusões ao
ritmo das estações: “o versão estava desgovernado”, e sobretudo “Todos eles perfilados
sobre o fundo do verde luxuriante do verão,e o abrasamento real do outono e a ruína do
inverno, antes que a primavera florisse novamente” ( frase já citada em Grandeza e
decadência de um pequeno comércio de cinema). É sem dúvida inspirado por esta
referência que depois do primeiro afogamento, a primeira cisão da narrativa, Godard
filma o desenrolar das estações, a pura e simples passagem do tempo. Alguns planos da
Natureza- o sol, a chuva, o vento- bastam-lhe amplamente. Mas estes breves instantes
de suspensão criam um verdadeiro corte na narrativa. E, ainda à maneira de Faulkner,
Godard pode retomar a segunda onda ( vague) em curso ( Delon/Lennox já retornou,
dois dias depois), e entrar por refração no segundo tempo da narrativa para melhor
acompanhar a sua história. Em suma, reina em Nouvelle vague uma espécie de
fatalidade trágica que não havíamos sentido desde, digamos, Pierrot le fou. Não é por
nada. De onde vem esta história de um homem que retorna? Difícil de dizer. Sem
dúvida, não diretamente da literatura, como a de Prénom Carmen, mesmo se pensarmos
nas grande narrativas mitológicas de retorno à pátria, como a de Ulisses; da Bíblia
tampouco, como em Je vous salue Marie, mesmo se evidentemente trata-se aqui de
ressurreição e que não possamos nos impedir de entrever no personagem de
Delon/Lennox uma figura crística. Mais simplesmente, creio que esta história vem do
passado. Ela remonta lentamente à superfície para chegar até nós. Do passado do
próprio Godard, que não hesita a se referir diretamente ao mundo de sua infância,
mundo onde, como aqui, o dinheiro reinava sem divisões; mas também de um passado
mais indefinível, atravessado por memórias do cinema.
A imagem se encontra no passado, portanto. É este mesmo o tema do filme. É a história
de uma repetição, de uma imagem que volta, de uma imagem enterrada sob uma outra.
A escolha de Delon é aliás intimamente ligada às reminiscências, às harmonias que ele
contém e sugere. Durante o afogamento, é O sol por testemunha que ressurge e, face ao
personagem de Roger Lennox ( o do primeiro tempo), não podemos deixar de pensar no
garagista atordoado de Notre histoire ( Bertrand Blier), um filme que Godard confessa
amar bastante. O sentimento ambivalente do já-vivido domina Nouvelle vague. “A
lembrança é o único paraíso do qual não podemos ser expulsos. A lembrança é o único
inferno ao qual estamos condenados”, diz uma voz um tanto fúnebre. Tudo é duplo
como Delon e seu fantasma, que assombram a tela. A imagem é forçosamente virtual e
alojada em uma outra imagem. Aliás, a idéia de uma segunda chance, da “onda”
( vague) que retorna e que seleciona não nos deixa de lembrar do roteiro de Vertigo. Um
pouco à maneira de Scottie/Stewart, Alain Delon/Lennox busca fazer reviver uma
imagem atualizando-a, tentando modificar-lhe o fim e a destinação. Mas em Hitchcock,
o eterno retorno conduzia à morte, enquanto que em Godard, ele atinge, pelo contrágio,
o renascimento. Os dados são relançados. O tempo sai de sua garagem para partir
novamente, sobre novos trilhos. Foi dito aqui e ali que Nouvelle vague era um filme que
exalava a tristeza e a melancolia. Se há um poeta elegíaco em Godard, em particular no
simples sentimento da fuga do tempo, eu creio no entanto que Nouvelle vague é o filme
do renascimento, da ressurreição da imagem.
Como todo filme de Godard, Nouvelle vague propõe uma interrogação sobre a imagem.
Qual o seu status? Sua natureza? Qual o seu lugar? Em uma curta seqüência, Godard,
pedagógico, nos propõe um exemplo. Uma imagem: A neve sobre a água= o silêncio
sobre o silêncio. Este instantâneo joga ao menos sobre dois níveis. Primeiro enquanto
definição da imagem e de sua manifestação. A imagem é, em Nouvelle vague, o que
quer escapar à palavra, o que se situa para aquém do ato de nomeação, o que advém em
um movimento de suspensão que precede ao nome ( era já este o sentido de Prénom
Carmen). Res non verba, nos diz um intertítulo latino do filme- as coisas, não as
palavras. “A imagem é autista. Eu quero dizer que ela não fala. A imagem não diz
nada”, dizia Fernand Deligny ( Cahiers, número 428). Estas palavras do psiquiatra-
filósofo, Godard poderia fazer suas. Pois a imagem em Nouvelle vague luta para existir
mineral ou vegetativamente, como em um movimento de retorno às origens. Salvo que a
origem aqui não se situa no antes, mas no depois, reconquistada pelo cinema hoje. Os
planos de árvores ou cavalos, assim como os de Delon ou Domiziana Giordano, estão lá
ontologicamente. Não significam, eles se impõem.
O segundo nível é aquele da metáfora, ou mais exatamente da alegoria. Mas Godard
opera uma inversão da alegoria, enquanto figura literária. Não se trata da viagem do
abstrato em direção ao concreto, para a encarnação, o sentido tradicional da imagem de
que restavam, sem dúvida, traços nos equivalentes corpos-natureza de Je vous salue
Marie; aqui, trata-se do contrário, de ir do concreto para o abstrato. A neve sobre a água
produz o silêncio sobre o silêncio. A força de Nouvelle vague consiste em exprimir,
através da imagem de existências, puras essências. O amor, o dinheiro, o encontro, a
natureza, o poder. A imagem, seu segredo, é o segredo da própria essência. A árvore,
diante da qual se encontram a condessa Torlato-Favrini e Roger Lennox, torna-se
imediatamente a árvore do conhecimento (aquele diante do qual adquirimos
conhecimento, dixit Godard em um raccourci cujo segredo ele detém).
Quanto à esfera do dinheiro, é a que detém o papel mais explícito. Todos estes
personagens que gravitam em volutas e arabescos em torno do núcleo central do casal e
da natureza não exprimem nada além da natureza abstrata do poder econômico. Este
mundo das altas finanças, este concentrado da grande burguesia européia desempenha
provavelmente aí um papel duplo. Não podemos nos impedir de ver, uma vez mais, a
figuração literal do dinheiro que foi usado para fazer o filme. Contraditoriamente, pode-
se dizer que o filme existe ao mesmo tempo graças ao dinheiro e contra o dinheiro, em
um movimento simultâneo de corrupção e de construção. Mas a economia que preside à
história tornou-se puramente abstrata. O dinheiro tornou-se invisível, não é nada além
de um signo, e a economia nada além de linguagem. Não há mais valor de uso, mas
apenas valor de troca em um movimento de pura circulação não figurativa.
A alegoria invertida é um deslocamento. E o deslocamento, sob a forma de um
travelling lateral ou horizontal recorrentes, é a figura-mãe de Nouvelle vague, a que
estrutura o filme à maneira de um leitmotiv ou de um refrão. Para parafrasear a frase de
Rivarol, citada no filme, “Pois as paixões nos dilaceram, mas a sintaxe de Godard ( e do
cinema) é incorruptível”. O que nos garante este instante de pura felicidade onde, em
um duplo travelling invertido, Godard nos dá novamente uma definição instantânea do
cinema. Luzes que se apagam e que se acendem. Positivo e negativo. O cinema como
Noite Transfigurada. E é ainda o travelling que transmite o sentimento aquático da
fluidez, o movimento do fluxo e do refluxo, da onda que vai e retorna. É provavelmente
o que dá a Nouvelle vague seu caráter apaziguado, quase clássico, em todos os casos
profundamente decantado, ao contrário de Soigne ta droite, filme em crise que expõe
sobre a tela a profunda derrisão da imagem e sua incapacidade a existir ainda nos dias
de hoje. Parece-me que Nouvelle vague inaugura um período de verdadeira maturidade,
ao mesmo tempo em que assinala um novo começo na obra de Godard. Eis aí a segunda
chance.
Thierry Jousse
Cahiers du Cinéma, número 433, junho 1990.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
De que se trata? Falando de seu afresco, que ele chama de emissões, e que nomeamos
como o “filme”, Godard monta a ficção de um arquivista, evoca Foucault, situa seu
empreendimento entre História e Idéia. Mas esta não é uma intenção derivada, uma
espécie de estrato suplementar, que se poderia integrar a tudo o que se profere a partir,
ou em torno, do homem com cigarro na boca e iluminado por uma fluorescente ( grande
artista-sábio, sob o ícone de Groucho Marx), homem este cujo retorno, com o clicar das
teclas de sua máquina de escrever, assinala , no “filme”, que todo este terror visual
intitulado História (s) do Cinema é a biografia intelectual de um único homem?
Ou ainda: uma totalização sinfônica. Uma “restituição integral do passado”, não pelos
meios de sua citação ou narração, mas por aqueles, combinados, de uma desarticulação
temática ( como o cinema cruza o caminho da guerra, do amor, a beleza das mulheres,
as revoluções, os massacres, as mitologias, as nações...?) e de uma contração local, que
reúne em um único ponto todas as interpretações disponíveis. Daí um procedimento de
composição que se poderia com justiça comparar ao de Mallarmé em Un coup de dés.
Alguns enunciados maiores, com freqüência apresentados na tela em letras maiúsculas (
HISTÓRIAS DO CINEMA, FATAL BELEZA, VOCÊS NÃO VIRAM NADA, UMA
ONDA NOVA, etc), induzem a subtextos, escoltados por um rumor quase inaudível, ou
metamorfoseados por motivos musicais, enquanto que as citações fílmicas são tratadas
como suportes de variações infinitas, por coloração, câmera lenta, superposições de
imagens, retrocedimento de imagens ( marche en arrière), cortes, incisões disparatadas,
recorrências, delimitações, círculos, mutilações visíveis. Aliás, construções secundárias
funcionam não “abaixo”dos enunciados cruciais, mas ao lado, como fortificações nuas.
Isto se dá particularmente no caso dos títulos dos filmes, que tecem pouco a pouco, à
parte de todo o resto, a lista nominal, impávida, inalterável, do que permanece.
Mas podemos também rever o “filme” a partir do que constitui exceção a este
tratamento emaranhado, ou o escalonamento simultâneo do múltiplo visível e audível
conduzido à superfície, como o oceano faz com o barco; não apenas a organização
semântica do “filme”, mas o conjunto das associações, virtualmente infinitas, que um
pensamento a todo instante móbil e vigilante descobre na menor afirmação, e que
simbolizam, no próprio nível dos enunciados fundamentais, as tentativas combinatórias
sobre as letras ou as palavras ( assim, a passagem de NOUVELLE VAGUE a UNE
VAGUE NOUVELLE, ou a injunção subjetiva TOI tirada da palavra HIS( TOI) RE,
sem contar as brincadeiras do tipo SI JE NE MABUSE, e vários outros anagramas).
Exceção: o doce terror de uma seqüência de O mensageiro do diabo 2, a das crianças na
barca, que deixam repousar sobre o rio noturno sem alteração nem corte. Ou o retorno
calculado da seqüência da metralhadora em Esperança. Ou determinado momento de
palavra nua carregado por um rosto. Ou determinada insistência musical, espécie de
graça de uma lentidão advinda ao tohu-bohu do visível. Ou mesmo a inserção fugaz de
uma cena pornográfica, cuja feiúra brutal se distingue como uma mancha sobre a seda.
E nos dizemos então que a extrema percuciência da montagem, que faz do “filme” o
equivalente de uma conversação multiforme agenciada por um Deus, só está lá para que
sejamos levados a desejar sua suspensão, como quando buscamos no mundo devastado
os signos esparsos, e quase imperceptíveis, de uma paz superior.
Ou ainda: sustentar o desafio desta outra arte do visível, a pintura. São incontáveis os
momentos no “filme” em que um rosto da Renascença vem espraiar sua cor nas
margens de uma seqüência, ou detrás de um fotograma em preto e branco. E aqui trata-
se da mesma ambigüidade relacionada ao livro. É preciso compreender- o que é sempre
designado pela abertura da imagem cinematográfica em direção ao esplendor pictórico,
como se este lhe fosse subjacente-, que o cinema continua a refletir, nisso fiel à pintura,
as bodas conflituosas entre a selvageria da história e a evidência corporal do amor? Uma
outra técnica mostra-se mais incerta, a que organiza o entrechoque extremamente
rápido, quase doloroso, entre uma imagem de cinema e um fragmento de pintura. Poder-
se-ia quase ver que o cinema, ao invés do herdeiro, seria antes o suplício da pintura. A
expressão de Malraux, “a Moeda do Absoluto”, é um dos sintagmas cruciais do “filme”.
Mas às vezes nos perguntamos se “moeda”, em se tratando do cinema, não é um termo
tão mais importante que “Absoluto”, a ponto de que, para termos um equivalente em
película a qualquer Adão e Eva de Michelangelo, seria necessária a poeira acumulada
por todos os rostos amantes de toda a breve história do cinema.
Ou ainda: a melancolia. Ela seria o verdadeiro tema de todo o “filme”. Sabemos em
demasia que o estilo de Godard, ao encurralar os outros e a si mesmo contra o muro,
obrigando-os à confissão de suas doentias incertezas, captando o fluxo mortal dos atos,
ou exibindo- no contraste entre sentenças definitivas ( seu lado moralista francês,
Chamfort, La Rochefoucauld) e a pobreza tocada pela graça da paisagem plana, ou da
mesa de ferro branco, o pouco de fé que ele se pode reservar a seus próprios impulsos- é
materialmente melancólico. No "filme", esta melancolia é complexa. O cinema é seu
suporte privilegiado, aquele que apenas em aparência é a arte de seu tempo.Um
enunciado do "filme" é: " O cinema, arte do século 19, carregou o século 20" ( a porté le
20e). Melancolia advinda da constatação de que sempre seja tarde demais, até porque o
cinema, sem dúvida, está morto, como o sugere a inscrição, quase terminal: " ERA O
CINEMA". O "filme" diz também: "Podemos fazer tudo, com exceção da história do
que fazemos". De maneira que esta "história(s) do cinema" , ou é impossível, ou atesta
que aquilo de que é testemunha, o "fazer" do cinema, é de hoje em diante forclos
( barrado, interdito). Godard, testemunha melancólica de uma certa abolição de seu
próprio "fazer artístico"? Contribuiria para isto que a "vague nouvelle" ( nova onda,
nova moda), cujo terno emblema é a imagem de Truffaut, seja designada como uma
espécie de "paraíso perdido" onde, guiados por Langlois ( ou seja, já guiados pelas
histórias do cinema), os jovens arrancavam uma arte à sua lenda acadêmica mortífera
para expô-la às intempéries do "lado de Fora" ( ressources du Dehors).
Mas também este paraíso, a ser visado segundo o monumento real da História, estava
envenenado, diz-nos Godard, pois pleno, até o limite de suas bordas, das “ilusões
perdidas”, da dor das revoluções, o obscuro comunismo, e finalmente o misto
irrepresentável ( ao qual Godard faz, em meu ponto de vista, demasiadas concessões à
la mode) dos tiranos simétricos, Hitler e Stalin. De maneira que a melancolia se volta
contra nós. Pois no poder de exprimir o que foi abolido, na abertura polifônica do
dossier completo do que se manteve interdito, no zelo empregado em complicar até o
infinito ( estilo barroco, à la Leibniz, as mônadas do cinema) as “dobras e rebordos” da
imagem e do real, na desmistificação do que toda impostura carrega consigo de verdade,
o artista desvela uma outra época, mesmo que ele não saiba de que época se trata. Um
pouco como na caso da saturação retrospectiva, igualmente marcada por um inimitável
tom melancólico, das sinfonias de Mahler, opera sem o saber a redefinição de
Schoenberg. O rosto fechado de Godard sob a lâmpada, que não é sem relação à
máscara de Mahler, é o rosto de um arqueólogo virtuose e triste? Ou aquele de um
homem que habita, com toda a sisudez puritana da Suíça, a mais essencial coragem, a
coragem de vencer a melancolia com suas próprias armas, investindo-a com o tom e o
estilo de uma promessa criptografada?
Ou ainda: o platonismo anárquico de Godard. É marcante que “no filme” toda imagem
seja o índex possível de uma outra imagem, e ao mesmo tempo o estofo de vários textos
simultâneos. A imagem jamais se refere a um referente, todo o mimetismo é excluído. A
imagem é antes a rachadura entre ela mesma e todo o povo que habita no visível e no
dizer. O “filme” é o movimento destas “rachaduras” ( écarts) superpostas, entrelaçadas.
O cinema tem por vocação, pronunciar-se, ligar, pôr em relação, o que usualmente não
mantém relação, precisamente pois ao cinema é dado aproximar, engendrar
consonâncias, tramar polifonicamente, pelo próprio meio de uma separação ( écart).
Assim, os Judeus e os Árabes ( ISRAEL E ISMAEL, intitula “o filme”), ou Judeus e
Alemães em uma única imagem, separada de si mesma: dois jovens soldados alemães
carregam o cadáver de um deportado. Mas então, a questão se torna: qual é a essência
da imagem, se ela não reproduz nada, mas se distancia sinteticamente de todas as outras,
em proveito de uma invisível justiça do visível? No fundo, a organização serial do
“filme”, sua esmagadora sutileza no detalhe, sua mobilidade tática, compõem os meios
de uma retomada da essência, a respeito da qual alguns planos suspensos ( uma mancha
azul no negro, um rosto de mulher lentamente deslocado, uma casa cujas janelas se
fecham...) destilam o símbolo, e cujos constantes recursos às inscrições abstratas são
como os sinais indicativos, ou os resumos que um Sócrates convertido à essencialidade
da imagem forneceria a seus jovens auditores, a quem tanta aparente sofística
confundem.
Obra-prima, sim, no sentido artesanal do termo: realizada e completa, solitária,
vagamente maníaca, tramando diversas perspectivas, sem hierarquia estabelecida.
Objeções? Sim, claro. Um certo peso, uma seriedade excessiva, nas bordas da ênfase,
bem assinalada no “filme” pela voz claudeliana de Alain Cuny. O cinema é convocado
diante do tribunal de sua responsabilidade histórica e de sua fatalidade artística. Isto
significa render-lhe justiça? Esta arte impura é a arte do sábado à noite, da família que
sai pra se divertir, dos adolescentes, dos gatos que se aninham sobre os muros. O
cinema oscila desde sempre entre o burlesco de cabaret e o titânico da feira. Ao mesmo
tempo o palhaço e o “homem mais forte do mundo”. Não seria necessário lhe dar o
crédito de que ele é, sobretudo, inocente? Como tudo o que fascina e reúne, ele foi
propagandista, é claro,e publicitário e estúpido. E fugidiamente incapaz, por uma
espécie de depuração interna de seus materiais indignos, da mais elevada destinação.
Seria preciso, em relação ao “filme”, onde como sempre em Godard se impõe a questão
deletéria da Salvação- o amor contra o Estado, a responsabilidade do visível contra os
cães exaustos da “comunicação”, o texto duro contra a imagem deliqüescente, etc...-
uma contra-história rarefeita, onde se veria que não é preciso fazer, sobre o cinema,
tantas história(s). Tão grande quanto seja, e tão imbricado em nossa época, ele se
enraíza sempre, esta arte da “comunhão” geral ( rassemblement general), no gosto
compartilhado por todas as classes, de todas as idades e de todas as ações, pelo
espetáculo de um homem poderoso que um vagabundo asperge de estrume, de um
imenso navio que flutua, de um monstro horroroso surgido das entranhas da terra, do
Bom que, em plena luz do Sol, depois de tantos desapontamentos, enfim mata o Mau,
do policial-detetive que agarra o ladrão-mafioso, dos estranhos costumes dos
estrangeiros, e de cavalos na planície, e de guerreiros fraternais, e do drama sentimental,
e da mulher nua estilhaçada pelo Amor. Os maiores artistas desta arte, Chaplin, ou
Murnau, apenas corresponderam 3 a esta origem vulgar, sem jamais- muito pelo
contrário- tentar aboli-la.
Se o cinema é idéia, visitação casual da idéia, é no sentido em que o velho Parmênides,
em Platão, exige do jovem Sócrates que ele admita, ao lado do Bem, do Justo, do
Verdadeiro, das idéias absolutamente ideais, algumas outras menos convencionais: a
idéia do Cabelo, ou a da Lama.
Alain Badiou, ( Le plus-de-voir) Art press, O século de Jean-Luc Godard, novembro
1998
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Notas:
Trata-se de um filme sobre uma obra, sobre suas condições, sua incompreensível
solidão? Sobre um mundo distante, a alma exilada que ronda em torno de um hospital
construído como uma arena de touros; o detalhe da água, da pedra, da vegetação, as
linhas das colinas que fecham este circo, onde todas as coisas forjam uma fortaleza de
solidão?
O que significa então este mundo percorrido em compasso, este passeio dos olhos sobre
a linha das colinas, a vegetação espessa, a água do riacho que corre sobre as pedras, o
refeitório camponês, o dormitório silencioso e que se retrai sobre uma série de desenhos
de Jaime? Cabeças vagamente aparentadas a perfis de Brauner, gatos ou animais,
arredondados, dorsos musculosos, pêlos serrados como bolotas de lã, cuja silhueta faz
aparecer sobre suas cabeças a imobilidade e a fixidez de um olho egípcio.
Jean Louis Schefer, Revista Cinémathèque, número 13, páginas 4-7. Primavera de 1998.
Tradução: Luiz Soares Júnior
Ao longo de filmes que se sucedem em uma cadência cada vez mais desenfreada, Abel
Ferrara acabou por traçar um território quase autônomo, uma sorte de primado no
interior do qual ele parece ter encontrado hoje uma liberdade e uma flexibilidade
absolutas. Se este caminho aponta para a Europa, único território onde seus filmes são
realmente vistos e levados em consideração, este não é menos solidamente ligado ao
cinema americano. Com The funeral, Ferra assina um grande filme crepuscular em
torno da Máfia, cujas peças chaves já nos foram dadas por obras maiores como as de
Coppola ( O poderoso chefão), Leone ( Era uma vez na América) e De Palma ( Os
intocáveis). O que de saída singulariza The funeral em relação a seus ilustres
predecessores é sua secura, sua brevidade ( 1h39), ali onde Leone, Coppola e De Palma
tinham optado por uma forma bem mais ampla e sinfônica. O funeral é antes uma
sonata; a narrativa se concentra sobre uma única noite ( o tempo de um velório), a forma
é de uma grande concisão ( planos médios, muito próximos aos corpos, curtas focais e
muito pouca profundidade). O filme não restitui um mundo, mas antes o movimento de
uma ação, captada de forma bem concentrada, o mais próximo possível de seu centro
energético. Este movimento é o que conduzirá ao apocalipse de uma família, da
primeira morte ao genocídio coletivo, durante os anos 30, no meio da Máfia.
A grande força de Ferra como cineasta consiste em saber controlar as “pequenas
formas” e de manter uma vivacidade própria ao filme B. De fato, podemos distinguir
hoje dois Ferrara: o cineasta americano saído do cinema de gênero, de um grande rigor
formal, que trata sua matéria de forma sempre frontal e incisiva, e um Ferrara-autor,
cuja tendência autorista apareceu de forma cada vez mais clara deste O rei de Nova
York, culminou com Olhos de serpente e parece bem precisamente ligada ao autor ( de
seus roteiros): Nicholas St. John. Este Ferrara, metafísico de uma religiosidade
atormentada, cujas narrativas se aparentam a alegorias, é cada vez mais identificável,
como se os últimos filmes do cineasta explicassem mais claramente o conteúdo mais
informal e iconoclasta dos primeiros ( rever o incrível Mrs. 45, anjo da vingança). Mas
esta inflação do significado é sempre suportada por uma mise en scéne concreta, uma
energia de cineasta que filma tudo como se pertencesse à matéria viva, incendiária,
inclusive a palavra, em seus transbordamentos “logorréicos” ( The addiction, onde
longas digressões filosóficas não valem por seu sentido, mas por sua capacidade em se
propagar, como em um dripping). O que interessa em O funeral é, portanto, menos seu
conteúdo explícito- o esboço de uma reflexão sobre o bem e o mal, sobre a
responsabilidade ( o personagem de Christopher Walken é confrontado a uma série de
“casos de consciência”), o retrato de uma América tomada entre o poder subterrâneo da
América e o contra-poder em expansão do comunismo ( paralelo que, é preciso dizer,
logo cai por terra)- que a forma pela qual tudo isto se encarna na tela. Pois mesmo se se
fala cada vez mais nos filmes de Ferrara, seu cinema no fundo permanece muito pouco
discursivo. As demonstrações são sempre incoerentes, inacabadas, transbordadas por
uma energia insensata, a dos fluxos de violência e dos processos de destruição, único
verdadeiro centro palpitante de seus filmes.
O filme é verdadeiramente fundado sobre o princípio da cena. Cada cena é quase tratada
como uma totalidade, e reproduz um mesmo tema: o do crescendo. Os personagens
aparecem, começam a se falar de forma bem civilizada, depois a interlocução se
degenera e chega a um confronto quase físico. Repetindo este princípio ao longo de
todo o filme, Ferrara demonstra muita invenção. A briga entre os dois irmãos ( Chris
Penn e Vincent Gallo) em plena noite, parasitada pela intervenção da esposa, que se
mistura ao bate-boca ( Isabela Rossellini), impressiona pela virtuosidade de que faz
prova Ferrara ao fazer circular seus atores em um plano-sequência, a fazê-los entrar e
sair do campo, que evoca a filmagem de um match de boxe filmado ao vivo, no qual o
árbitro também levaria socos. Mais adiante, uma outra cena de conflito impressiona, ao
contrário, pelo minimalismo de sua filmagem. Chez ( Chris Penn) entra em casa, ordena
a sua mulher ( sempre la Rossellini, bem maltratada pelo filme) que ela tire a roupa para
transar com ele, mas finalmente explode em soluços e se desalinha em palavras de
expiação. Toda a seqüência é filmada sobre o rosto de Isabela Rossellini, primeiro
captada em sua expressão de terror, face contrita de vítima sacrificial que pouco a pouco
se torna o rosto de uma mãe consoladora, que dispensa apaziguamento ( uma espécie de
Virgem com a criança). O melhor do filme está na forma em produzir clímax, e os
clímax coincidem sempre com a emergência de uma força primitiva que ultrapassa os
personagens, uma força quase animal. Já era o caso em The addiction, quando os
convidados de um encontro universitário se metamorfoseavam em uma horda de bichos
ululantes, avançando sobre os outros convivas para os sangrar, ou em Body snatchers,
quando a aparência humana dos extra-terrestres era destruída sob o impulso de um grito
monstruoso que lhes deformava o rosto. Este grito é aquele lançado pelo irmão mais
bruto (sempre Chris Penn, absolutamente formidável), quando descobre o cadáver de
seu irmão e urra de dor, um grito inumano, que entra em discórdia com a ordenação
cuidadosamente ritualizada do funeral ( as flores dispostas, o irmão mais velho, que
organiza tudo como um metteur en scéne, as lágrimas bem teatrais das mulheres, postas
em cena como um coro de carpideiras). Este grito, ou quase o mesmo grito, nós
ouviremos de novo mais tarde, quando Ghouly dorme com uma prostituta. No momento
do orgasmo, ele lança um grito amplamente mais violento do que estamos acostumados
a ouvir nas cenas de sexo no cinema ( inclusive o cinema pornô, onde o orgasmo é com
freqüência sussurrado), o que leva sua amiga a comentar “Realmente, tu não passas de
um porco”. Nestes momentos, quando o homem torna-se novamente, em uma
fulminação, um animal, tocamos no nervo central do cinema de Ferrara. Aí também o
filme lança a descarga de uma energia bruta, espasmódica, irredutível a todo discurso, e
cujas chamas de glosa religioso-metafísica que vicejam aqui e ali não conseguem
esgotar.
O perigo de um cinema fundado sobre a fulguração e o clímax é, evidentemente, ter
dificuldade em manter uma narrativa. De fato, Ferrara não é um grande contador de
histórias. As articulações de suas narrativas são sempre frágeis. Este “relaxamento”
narrativo já produziu formas fortes ( a indolência errática de Bad lieutenant). Aqui, o
classicismo formal do filme, sua referência esmagadora ao teatro trágico ( todas as
ações se voltam para um único lugar- o quarto do morto, todos os flash-backs se
articulam em torno de uma unidade de tempo- a duração do velório) nos faz lamentar
certas fraquezas da narrativa ( Christopher Walken desmascarando o assassino de seu
irmão é certamente algo “feito nas coxas”, certas pistas narrativas são deixadas no meio
do caminho...). Mas em seus momentos mais inspirados, O funeral consegue “contar”
de forma freqüentemente a não se apoiar nas muletas da narração clássica. As cenas
finais, por exemplo, se encadeiam como que ao apelo da inspiração, um plano
suscitando outro segundo uma lógica puramente poética. Tiros circulam de um flash-
back a outro; passamos de forma abrupta da execução do criminoso por Ray ao seu
enterro por Chez, sem nenhuma ligação. Em duas panorâmicas, passamos da terra onde
é enterrada sumariamente a vítima de Ray ao céu, depois do céu à casa da família.
Aberto em uma sala obscura ( de cinema) onde se projeta um filme noir ( com
Humphrey Bogart), o filme trama uma tessitura de trevas que conduz à tela negra final,
onde o espectador compartilha o ponto de vista do cadáver sobre o qual se fecha o
túmulo. A fotografia de Ken Kelsch ( a quem se deve o belo preto e branco de The
addiction) nos dá admiravelmente esta sensação de um mundo encoberto pela noite e
pelas sombras, como se o filme inteiro portasse luto. Nesta evocação das forças
invisíveis que circulam de forma subterrânea, a energia do cinema de Ferrara encontra
seu regime de expressão ideal. Se a cena de violência final é tão impressionante, é
justamente por advir como uma erupção, sem ter sido preparada de antemão, como se
tomasse o filme de assalto. É esta tendência ao happening que dá todo o valor ao cinema
de Ferrara, e particularmente a O funeral. Então, mesmo que sua temática pessoal se
torne quase identificável em demasia, Ferra consegue sempre surpreender seu
espectador, lançando-lhe upercuts que o deixam KO.1
Jean-Marc Lalanne, Cahiers 508
Tradução: Luiz Soares Júnior
1. KO: Em artes marciais, seria o nocaute.
Para analisar o cinema de Blain, é preciso partir do que, deixando sempre o espectador
em seu lugar, se impõem à primeira vista em seu cinema as grandes oposições que
estruturam uma obra de uma coerência extrema de estilo e tema: amigo/inimigo,
proprietário/possuído, aquele que olha/aquele que é olhado, marginalidade/norma. É
preciso falarmos antes de tudo do signo distintivo fundamental deste cinema, a
frontalidade, imperativo estilístico herdado por Blain de seu mestre Robert Bresson, e
ao qual todos os seus filmes se curvam: Les amis ( 1971), Le Pélican ( 1973), Um
enfant dans la foule ( 1976), Um second souffle ( 1977), Le rebelle ( 1980), Pierre et
Djemila ( 1986), Jusqu’au bout de la nuit ( 1995). A frontalidade exprime
simultaneamente um duplo movimento, de ataque e de retração face ao mundo. Por um
lado a vontade, raramente dita mas claramente mostrada, de atacar ( de olhar face a face,
de lhe penetrar), e por outro o cuidado prudente de impor a si mesmo uma distância de
segurança, um limiar a não ser ultrapassado. O mundo se deixa apreender antes de tudo
pelo olhar, este às vezes fazendo-se contemplativo, na justa medida da distância que nos
separa do mundo. Quer seja um revoltado ( Le rebelle, Jusqu’au bout), ou que, ao
contrário, tente se deixar passar desapercebido ( Pierre et Djemila, Um enfant dans la
foule), trata-se sempre para o herói ( a palavra é mal colocada, mas é a única a nossa
disposição) de Blain de sobreviver- sempre mantendo a instável esperança de um
repouso por-vir. Sobreviver, pois a frontalidade ( e, simultaneamente, o recurso a uma
focal única) exclui absolutamente toda profundidade, ou seja, toda possibilidade de
penetrar o mundo e de nele se fundir. Nenhuma profundidade de campo ( e,
consequentemente, nenhum travelling- advindo com o fito de atravessar e explorar esta
profundidade), nenhuma profundidade dos seres no cinema de Blain: tudo se dá tal
como é, em sua opacidade nativa e acompanhado de uma espécie de “tomar ou largar”
que interdita de pronto toda réplica. É preciso escutarmos a confissão, informulada e
fundadora de toda obra, de que o mundo é um monolito postado contra o indivíduo e
que lhe é impossível abrir a menor brecha.
Pode-se dizer isso de uma outra maneira: o indivíduo está engajado em uma relação de
não-reciprocidade absoluta com tudo o que o circunda. Ele exige ( Le Pélican: viver
com seu filho; Le Rebelle: manter junto a si sua irmã pequenina), mas a sociedade
permanece surda; daí, em Blain, uma política inflexível do campo, do contracampo e do
fora de campo. Um olhar, aquele que um pai dirige a um filho por exemplo, é uma
solicitação; ora, salvo em ocasiões bem raras, e sempre em uma relação direta ao
cinema de Bresson, este olhar só atinge seu fito para além dos “remendos” que separam
dois planos. Apenas indiretamente este obtém a resposta solicitada. Neste sentido, o
início de Jusqu’au bout de la nuit é exemplar: François ( o próprio Blain), há pouco
saído da prisão, contempla através da janela do apartamento de sua mãe e só vê um
muro cinzento e opaco. Todo O pelicano, sem dúvida o mais belo filme de Blain, é aliás
construído sobre este mesmo princípio de não-reciprocidade e sobre esta
impossibilidade de criar um espaço ( um plano) onde os olhares possam coabitar. Um
pai ( sempre Blain), ao qual foi recusada a guarda de um filho, observa cada dia,
dissimulado atrás de um muro, este brincar no jardim de uma luxuosa casa suíça.
Podemos mensurar evidentemente o quanto esta concepção de um cinema
bidimensional- bloco contra bloco- pode ser esquemática: é verdade que a obra de
Blain, organizada em torno de imperativos ( a frontalidade é um destes, a elipse outro) e
de recusas, é com freqüência paralisada por sua obstinação em aplicar de forma estrita
os ensinamentos de Bresson e que, por exemplo, a interpretação dos atores ( mais
desajeitada que bressoniana) possa ressentir-se dolorosamente disto, em particular nos
últimos filmes. Os olhos sempre colocados no mesmo objetivo, Blain esposa de forma
tão total o olhar de seus heróis, e se lixa tão majestosamente para o ponto de vista
adverso, que finalmente ele acaba por estabelecer a seguinte equação: o inimigo é tudo
aquilo que está no fora de campo, este tornando-se a ameaça absoluta. É um fato que
um tal cinema obedece a uma lógica paranóica e que é demasiado limitado ( em todos
os sentidos do termo) para possuir uma verdadeira amplidão. Por este motivo, teríamos
todas as razões para nos desinteressarmos.
Nós somos contemporâneos de uma derrota essencial, um mundo onde os papéis estão
definitivamente distribuídos, onde os campos estão fixados- possuidores contra
possuídos, norma contra margem. Uma expressão, aliás, volta com freqüência na boca
de um personagem: é tarde demais. Neste caso, tratar-se-ia de complacência ou
pessimismo convencional da parte de Blain se alguma coisa, em seus filmes, não tivesse
a função de indicar a existência de uma cena primitiva que vai estabelecer esta ordem de
coisas. Esta cena- a partida do pai-, nós a encontramos em Um enfant dans la foule. A
história pessoal de Blain, que serve de matéria primeira a seus quatro primeiros filmes,
deve ser posta em relação com o cadre mais amplo no qual esta encontra um lugar.
Nesta perspectiva, podemos pensar que esta não-reciprocidade da relação ao mundo
encontra sua origem na relação de Blain com sua mãe, tal como ela nos é mostrada em
Un enfant, onde é frequentemente filmada de costas. O pai ausente, a mãe que vira as
costas, estes são os grandes pilares deste cinema, eis o porque dos personagens
procurarem um pai substituto ( Les amis, Um enfant dans la foule), eis o porque das
mulheres serem tão maltratadas ( Um second souffle, Um enfant dans la foule). Não se
trata aqui de julgar ou extrapolar o sentido de sua obra a partir da biografia de Blain,
mas simplesmente de ver a partir de que seus filmes, pouco ricos em matéria de
explicações, procedem, qual o seu ponto de partida.
Posto isto, o ódio ao espetáculo, sob todas as suas formas, é um dos principais motores
da obra de Blain. Para irmos direto ao ponto, digamos que encontramos três objetos
prioritários de ódio, três faces diferentes da obscenidade do sistema capitalista: o corpo
burguês, o dinheiro, o discurso. Robert Stack em Um second souffle, Michel Subor em
Le Rebelle, o patrão de Jusqu’au bout de la nuit: Blain adora os anjos mas contempla o
corpo burguês como uma máquina gélida, friamente alimentada, polida, acariciada e
oferecida aos olhares que a consomem. Sobre Le second souffle, um filme inteiramente
consagrado ao corpo ( o corpo de um médico de 60 anos, interpretado por Stack), ao
corpo que se contempla envelhecer e antecipando o luto de sua boa saúde, Bernard
Boland (Cahiers número 294) notava justamente em Blain esta “aderência do social e do
sexual, instituída em uma norma”. Basta vermos o próprio cineasta, observar em
Jusqu’au bout este rosto que dir-se-ia pintado por Bacon para compreender o quanto ele
tem horror a esta ilusão do corpo-máquina, orgulhosamente adestrado e oposto como
uma fortaleza contra o tempo. Da mesma forma, o dinheiro é obrigatoriamente
espetáculo: está em sua natureza determinar àqueles que não o possuem um único lugar,
o lugar do espectador impotente. O jardim onde se diverte o rapazinho de Le pélican ( o
magnífico César Chauveau, anjo e ator fetiche de Blain, cujo sorriso chega a esgarçar o
“envelope” bressoniano que lhe é imposto) é um teatro, uma cena onde se exibe, ao
longo do dia, sobretudo através dos ritornellos 1 lançados incansavelmente pela mãe- A
vida é bela, bela, bela- a vulgaridade auto-satisfeita do mundo do dinheiro, onde de
agora em diante vive a criança. Jusqu’au bout de la nuit: preso como refém, um grande
industrial de Lyon, filmado por um camescope empunhado por Paul Blain, deve tentar
convencer seu filho a pagar o resgate: nenhuma indicação lhe foi dada, mas o pai, em
grandes frases elegantemente torneadas, com uma sutil tremedeira na voz, declara que
será assassinado se seu filho não pagar, o que é falso. Temos aí um dos momentos mais
miraculosos do cinema de Blain. Com uma inultrapassável simplicidade, tudo é dito, e
em primeiro lugar a tendência natural do capitalismo a dar, em matéria de espetáculo,
sempre mais do que lhe é pedido. Quando entra no riquíssimo apartamento do novo
marido de sua esposa, Blain, em Le pélicain, não tem outra possibilidade além de querer
destruir tudo, de se esgotar , ao querer fazer cessar o eterno e insuportável espetáculo da
riqueza.
O que constitui um grande problema é a condenação prévia de toda forma de discurso,
mesmo que pouco articulado. Há em Blain a idéia de um homem originário, que viveria
para aquém de toda tomada de palavra, ou mesmo para aquém de toda
consciência( como a criança na multidão), na silenciosa harmonia de uma relação aos
outros jamais explicitada. Seu cinema não aceita nem a negociação nem o “concerto”
dos discursos ou vozes, e se define inteiramente contra, através da consciência, com um
sentido reconfortante, de que um indestrutível inimigo o acossa. Escutar o inimigo seria
torná-lo mais próximo, fazê-lo penetrar em nós, e isto, no interior do sistema formal
monolítico de Blain, é simplesmente impossível.
Na rota deste caminho que conduz irresistivelmente ao fracasso- a idéia de um destino
trágico é bem presente aqui-, restam, apesar de tudo, alguns instantes de consolação, a
possibilidade efêmera de tornar palpável sua presença no mundo. O que é notável é que
esta possibilidade passa antes de tudo pelo som e pela seleção dos ruídos, que estão em
ligação direta com o fluxo do tempo. O som vale antes de tudo como pegada carnal do
presente, o que explica o grande número de ruídos com um caráter rítmico- passos,
ondas, sinos, cavalos... Nestes momentos, trata-se de fazer sua a respiração do mundo-
da natureza, não da sociedade. Apenas os deslocamentos laterais e horizontais, que
figuram fluxos ( estes abundam na obra de Blain) permitem ao homem deslizar contra o
mundo e deixam entrever a eventualidade de um futuro reconciliado. Então, por alguns
instantes, parece possível, tanto para os personagens quanto para os espectadores, de se
deixar carregar pelo apaziguado rio da existência.
Emmanuel Burdeau
Sade
1. Sobre os textos.
Utilizamos para o texto da Filosofia na alcova a edição da Plêiade, conforme a edição
publicada como obra póstuma, em 1795.
“Segundo os Princípios da Biblioteca da Pléiade, as grafias foram modernizadas. Mas
só transformamos a pontuação com a maior discrição possível, e mantivemos todas as
formas lexicais antigas que pertenciam à língua de Sade como homem do fim do século
XVII e como escritor, amante de neologismos e de criações verbais”.
Carnes vermelhas? Não posso sequer sentir-lhes o cheiro, quanto mais vê-las!
Partis pris 4 feroz do som direto.Corpo acústico realista ( voz mais ambiências
campestres), nas cenas do salão e da floresta. Tomada de certas precauções na cena da
alcova: isolação do espaço sonoro de maneira a privilegiar a clareza e modulação das
vozes, através de uma pureza acústica próxima daquela que se pode encontrar numa boa
sala de concerto. Basta-nos visitar o quarto de dormir do duque Frederico de
Montefeltro , no palácio de Urbino, para nos darmos conta dos cuidados concedidos à
organização acústica. Trata-se de criar as condições que permitam a um ouvido bem
treinado fruir de todas as fontes auditivas, inclusive as da amplificação, como elemento
fundamental de erotização do espaço. A voz será então o elemento primordial de
sedução em um jogo de entrecruzamento das linhas melódicas. Kierkegaard, que não se
engana jamais, já o disse a propósito de Mozart.Dito isto, adoraria igualmente chamar a
atenção sobre a construção rítmica de Sade. Pode-se ver que ela se dá em dois tempos: o
tempo do logos e o tempo do eros. Ora, nossa economia cinematográfica não exclui,
tirando desvios seriais, esta cisão: ela será rigorosamente binária, um pouco como nos
filmes de Hawks, mas sem quebrar o que chamamos o movimento perpétuo. Digamos:
indo sempre adiante.
6. Sobre a caracterização dos personagens.
Dolmancé. Ele é o mâitre a penser 5 e o que conduz o jogo, subentendamos isso no
sentido teatral de mise en scéne. É um libertino com muitas convicções. É preciso
explicar o sentido do termo nos séculos XVII e XVIII? É suficiente talvez mencionar
seu ateísmo materialista e uma vida privilegiada, votada aos prazeres. Mas para
complicar um pouco nossa tarefa, ele é bem mais que isso: ele possui uma dupla
personalidade, que sobretudo não podemos confundir com o sentido moderno de
desdobramento, dado pela psicanálise. Seria um equívoco bem perigoso, e um tanto
quanto doentio! Em Dolmancé, este comportamento não provoca nenhuma perturbação.
Ele é lúcido o suficiente para separar as esferas.
Portanto, por um lado, temos um personagem que se move numa pequena sociedade,
fechada e secreta, a dos libertinos, e por outro, um personagem socialmente respeitável
e respeitado pelo poder político ou judiciário, onde provavelmente ele desempenha um
papel importante.
Já aí há muito do que rir, mas, para ficarmos sérios, precisamos acrescentar que este
comportamento resulta de uma enorme decepção do personagem, fundada sobre sua
experiência da natureza humana e da hipocrisia social.
O chevalier de Mirvel. Noblesse oblige, claro, mas o personagem não está lá, segundo
sua irmã, para “fazer sermões”.
Sejamos claros, o cavalheiro convenceu o sodomita Dolmancé a fazer uma visita a sua
irmã a fim de que, num caso excepcional, este a sodomizasse. Felizmente: o gênio
consiste no erro no sistema. Em recompensa, Saint-Ange lhe promete o
“descabaçamento” da buceta de Eugénie, colocando-lhe a par de seus projetos
libertinos. Nos vemos diante de um híbrido dividido entre a herança libertina de seu
meio social e suas convicções rousseaunianas. Para além da satisfação de seu apetite
sexual ( prazer simples), é evidente que este rapaz de coração aceita a contragosto as
crueldades dos outros personagens. O cavaleiro possui uma função mais próxima da dos
criados, mesmo possuindo o privilégio do uso da palavra, e que se lhe conceda o
privilégio da leitura de um panfleto, menos pela virtude de seu órgão vocal que pela
beleza de seu órgão genital.
A título de curiosidade, queria chamar a atenção sobre uma das passagens mais
misteriosas e mais sutis de toda a história da literatura: a do famoso segredo que
Dolmancé confia a Agostino, no final do quinto diálogo. Leiamos:
Dolmancé (...). veja o pouco caso que faço. ( referindo-se ao cu de Agostino, que beija).
Vou lhes suplicar, madames, a permissão de ir um instante na cabine vizinha com este
jovem.
Saint-Ange. (...) Não pode fazer aqui tudo o que deseja fazer com ele?
Dolmancé ( baixo e misteriosamente): Não, há certas coisas que necessitam
absolutamente de véus. (...)
Saint-Ange. É portanto uma tal infâmia que não sejamos dignas de ouvir e ver?
Le chevalier. Calma, minha irmã, vou lhe dizer. ( Fala baixo com as duas mulheres).
Eugénie, com ar de repugnância. Ele tem razão, é horrível.
Meme de Saint-Ange. Oh,, eu estava duvidando...
Dolmancé. Agora entendem porque eu tive de vos calar esta fantasia; e concebam neste
exato momento que é preciso estar só e nas sombras para executar tamanha torpeza.
Eugénie. Deseja que vá convosco? Quer que eu o masturbe, enquanto o senhor goza
com Agostino?
Dolmancé. Não, não. Isto se trata de um assunto de honra, e que se deve passar entre
homens: uma mulher nos incomodaria... volto num instante, senhoras (. Sai, levando
Agostino).
Certos exegetas fazem alusões a prováveis práticas coprófagas como o horror dos
horrores. Oh, céus! Então, e as crianças; e os animais; e os freqüentadores do
McDonald’s? e Mme de Saint-Ange, que periodicamente peida na boca de seu marido
como se esta fosse a coisa mais natural do mundo? Então, e o pudico judeo-marxista-
cristão Pasolini que, no círculo da merda de Saló, festeja o casamento da alegoria
dantesca com a parábola sadiana com charmosos toletes de cocô bem retorcidos?
Como não é crível que o segredo seja desta natureza, assim como não é crível que seja
de ordem filosófica, sendo de ordem evidente que em Sade a filosofia- atividade de não
censura- deve tudo dizer, que espécie de coisa tão íntima poderia ser compartilhada com
um jardineiro, mas não revelada a estranhos?
Dolmancé (...) eu desejaria que pudéssemos ter, em nossa casa, ou em nosso campo, um
rapazinho bem robusto, que nos servisse de modelo, e para quem pudéssemos dar
lições.
Saint-Ange. Tenho precisamente o que necessita.
Dolmancé. Não será por acaso um jovem jardineiro, de uma deliciosa figura, mais ou
menos dezoito ou vinte anos, que vi há pouco trabalhando em seu jardim?
Saint-Ange. Agostino? Sim, Agostino, cujo membro possui treze de largura sobre 8 e
meio de circunferência.
Dolmancé. Ah, céus! Que monstro! E isso goza?
Monteiro, tomando o lugar de Mademoiselle de Saint Ange. Oh, como uma cachoeira!
Vou buscá-lo.
Sob os olhos dos presentes e por obra do acaso, havia um belo jardineiro cultivando
suas flores...
O quadro possui um ar idílico. Romper o único tabu de Dolmancé vale a pena? Eu acho
que vou manter o segredo.
Madame de Mistival. Sua devoção, ou mesmo sua beatitude, face ao Ser supremo e à
bela e forte caridosa sociedade é bem conhecida por todos. Não é necessário insistir
nisso. É verdade que seu marido a ultraja e sua filha a detesta. A razão de sua chegada é
inequívoca: ela vem buscar Eugénie e, para sua infelicidade, encontra-a já instruída.
Primeiro sinal inquietante: a desobediência da filha. Em seguida, o desencadeamento da
fúria desta. A punição será cruel: condenada a viver, ela não poderá mais ser mãe. Pior
que isso, ela não terá nenhuma outra atividade sexual, pois todos os caminhos não
levam mais a Roma: eles lhe foram cuidadosamente interditos. Sua virtude está
assegurada até o fim de seus dias.
Em uma palavra, e pra fechar a coisa: a filha prescreverá a leitura à sua mãe.
Resta a dizer que o realizador, sendo de natureza política, toma claramente o partido da
vítima, como Sade: o que o interessa é mostrar a dor de uma mãe diante da perda de sua
filha, e as humilhações e torturas de que é vítima.
Não sendo nós juízes, o que nos interessa aqui é mostrar a embriaguês e a incontrolável
ferocidade dos instintos dos carrascos.
Mas a subversão que mais nos interessa aqui está na “despsicologização” dos
personagens, que, em relação a um conjunto de elementos luminosos, musicais,
espaciais, pensados em uma grandiosa escala, ocupa apenas um lugar secundário.
O personagem sadiano, como nota Pierre Frantz, “é uma máquina, uma maquinação;
são lábios sem rosto, um discurso e uma voz sem origem senão a fictícia, quje não se
constroem mas se esgotam na representação”. É por isso que Sade pode se contentar,
para descrever uma emoção, com uma metáfora banal, e mesmo quando frequentemente
ele dá a impressão de se ausentar do texto escrito, ele continua sendo uma vigilante
presença no que concerne à direção de atores.
“Sade, que escreveu a maioria de seus livros em Vincennes e na Bastilha, representa-se
com extrema precisão as vozes, as entonações, as dicções. (...) é por meio de uma
brusca aceleração de tom que ele nos faz sentir a ativa canalhice de um indivíduo. Sade
sabe que não se trata de dar voz na cena a personagens tão criminosos quanto os que
imagina em seus romances. Confundindo em uma mesma paixão seu gosto do teatro
como arte do falso, triunfo ostensivo do artifício, e sua vontade em representar o vício,
é por sua falsidade que em primeiro lugar se caracterizam seus personagens perversos.
São impenitentes “enroladores”, que gozam com sua falsidade.(...)
Atitude rara à sua época, a paixão de Sade pelo teatro vai até o ponto de incluir a
simpatia, ou até mesmo uma certa estima pelos atores. No romance Alline e Valcour,
Léonore e Sainville percorrem o mundo inteiro para se encontrar. Como Justine e
Juliette, Léonore só encontra maldade por todos os lados. Com duas exceções: um
bando de ladrões e um de atores. Com os primeiros, aprende a dançar. Com os atores,
seu métier de atriz. Ela possui qualidades para isso, sua beleza, por sua elegância, sua
maneira de se movimentar. Mas teme se entregar a esta profissão por causa da péssima
reputação dos atores ( na época excomungados, interditos de possuírem uma sepultura
cristã). Seu interlocutor, M. de Brissac- ele faz no teatro os papéis dos pais nobres- a
tranqüiliza.
Os atores formam uma sociedade à parte, mas que por isso mesmo se protege.
O ator, como o bandoleiro, sem adotar a lei comum, escapa à solidão do fora-da-
lei.Sendo uma escola de talento, o teatro é também uma escola de sentimento: “Poucos
sabem o que encontramos de delicadeza nas pessoas que possuem este talento. Eh!,
como não deveriam ser honestos e sensíveis, em meados de suas vidas!”
Eugénie (...). Diga-me, eu vos suplico, com que olho o senhor olha o objeto que serve a
vossos prazeres.
Dolmancé . Com um olho absolutamente nulo, minha querida; quer ele compartilhe ou
não os meus gozos, quer ele experimente ou não contentamento, apatia ou mesmo dor;
contanto que eu esteja feliz, o resto me é indiferente.
Mme de Mistival implora por piedade, antes de desmaiar ( “Mme de Saint-ange quer
socorrê-la; Dolmancé se opõe”).
Eu sei de cor e salteado que a época do cinema físico passou; não estamos mais na idade
de ouro do velho cinema americano ou soviético, mas vejo como poucas as
possibilidades de sucesso deste projeto se os atores não se derem de corpo e alma, a fim
de transmitir uma verdade física que suporta muito mal o engodo dramático, e tem por
fim último uma metafísica do prazer.
A encarnação integral de um personagem sadiano não sendo possível, por
condicionamentos de ordem social, moral, política, psíquica, etc, será pedido aos atores
para que acumulem o máximo de energia e que sublimem as pulsões vitais que daí
emanam.
No que me concerne, guardo intacta a esperança de arranjar deliciosamente as posturas,
mais segundo meus gostos que segundo as práticas comuns.
Em não importa qual filme, há sempre, meu velho Epíteto, o que depende de nós e o
que não nos concerne. É um pouco injusto, mas é assim, e um pouco de pragmatismo
( ou de neo, como diria o senhor ministro de posse do dossier) não faz mal a ninguém.
Resta a dizer que o fantasma do marquês está um pouco em todos os lugares: nas
humanidades críticas e clínicas, nas jovens e vigorosas democracias, assim como nas
velhas e obsoletas ditaduras; no bravo merceeiro de esquina, assim como no inspetor de
polícia. Eu mesmo, cidadão acima de qualquer suspeita e acima de toda e qualquer
vigilância, recebo cada vez mais visitas assíduas deste íncubo miserável. Nada de
espantoso, então, que a espectral figura tenha chegado à literatura, às belas-artes, ao
teatro...
De todos os filmes de Éric Rohmer, A mulher do aviador é aquele que melhor resiste à
famosa "transparência". Ao fim da quase totalidade das intrigas dos Contos e provérbios
e de alguns filmes isolados, um ciclo parece fechado, uma trajetória resolvida, um
mistério resolvido. Ao menos o espectador aceita ( ou finge aceitar) crer nesta
resolução, e a mise en scéne é organizada com vistas a este fim. As cenas finais de A
mulher do aviador, no entanto, penetram muito mais profundamente na noite
( literalmente) que na clareza da evidência. Quando François descobre que Lucie tem
um amante, que este é seu colega de trabalho ( visto no início do filme) e que o interesse
que ela demonstrava por sua investigação poderia estar ligado ao acaso que o havia
levado a encontrar o mesmo rapaz trabalhando na agência postal, ele se encontra mais
perplexo que desapontado, até porque a conclusão de sua enquête destruíra todas as
hipóteses construídas ao longo do filme, ao propor uma solução mais ou mesnos
aleatória. Para que a loura que acompanhava Christian, o aviador, fosse sua irmã ( e não
sua mulher, como François pensava), foi preciso que o casal se encaminhasse a um
advogado, e que a loura desconhecida, que figura ao lado da verdadeira mulher do
aviador na foto que lhe mostra sua amiga Anne- ex-amante de Christian- fosse
realmente sua irmã, um conjunto de induções sem fundamento.
A maioria das narrativas dos Contos morais deixavam entrever as fraquezas dos
personagens, assim como a cegueira que sofriam em relação a si mesmos, mas se
redimiam- ao menos para eles- no último minuto, ao preço da pior má-fé, se
convencendo, e tentando convencer ao espectador, que a situação à qual os personagens
se resignam resulta de sua livre escolha. François tenta igualmente algo parecido, ao
postar, apesar de tudo, a carta destinada a Lucie, o que o leva ele a deter a última
palavra, ao colocar como real a "história" ( scénario, roteiro) que ele arranja. Se a
mulher do aviador é de fato sua irmã, este agia bem sinceramente ao romper com Anne,
que no entanto é livre para viver com ele. Mas Anne também vem explicar a François
que ela não saberia viver com um homem e tentar ( em vão) fazer-lhe compreender que
a tarde passada a seguir Christian e a mulher loura, e sobretudo a discutir sobre "o amor
em geral" com sua "amantezinha", demonstra uma disponibilidade da parte de François
que nega suas afirmações ( "Eu disse para mim mesma que, pelo contrário, só você me
interessava").
Se o tema do desprezo é característico dos Contos morais, como de uma grande parte da
Nouvelle vague, de Chabrol a Godard, o tema do equívoco ( la méprise: erro de
julgamento, quiproquó) atravessa as situações das Comédias e provérbios, onde os
personagens se equivocam tanto em relação a eles quanto ao mundo. Pois sua visão é
não apenas necessariamente parcial, mas também sempre subjetiva. O espírito humano,
"que não saberia não pensar em nada", como diz o provérbio com sentido desviado que
abre o filme, não cessa de preencher os buracos. Nesta intriga policial enredada por um
fio contínuo e com falsos culpados 1, os pobre Sherlock Holmes que são François e
Lucie apelam mais para a imaginação que para o raciocínio. As sonolências de François,
assim como a utilização do parque Buttes-Chaumont, caro aos surrealistas - e o título do
livro de Aragon que o evoca, Le paysan de Paris , descreve com precisão François, o
que nos confirma a canção final: "Paris ma englouti dans la fièvre de ses tourbillons,
dans la frénésie de ses agitations"- dão à obra de Rohmer uma dimensão com frequência
oculta sob a aparente lucidez do olhar: a do sonho. É sem ironia que o cineasta nomeou
aquela que interpreta um pouco o papel da Tentadora dos Contos Morais de Lucie, a
luz. Por seu senso crítico, seu espírito de dedução, sua constante atenção- é ela quem
reencontra constantemente o casal que François não cessa de perder de vista, isto
quando ele francamente não lhes dá as costas-, ela parece esclarecer um mistério na
exata medida em que o obscurece ( ela também é "Lucifer").
A beleza de Mulher do aviador reside ainda na distância máxima que o cineasta
estabelece entre o maior domínio possível da mise en scéne e a perda total de domínio
( maîtrise, controle, domínio) dos personagens sobre um espaço que lhes escapa, tal
como o espaço labiríntico de Buttes-Chaumont. Tornando, depois da Marquesa de O, a
uma filmagem com meios mais simples, Rohmer se permite a flexibilidade necessária
para identificar um espaço fugidio 2 ( o que há de mais fugidio que a geometria
artificial dos Buttes-Chaumont?), tão centrípeto quanto centrífugo, espaço do qual os
seus personagens não terão nada além de uma vista parcial, centrada em seus pobres
seres. O essencial permanece sempre fora do alcance, como o casal fotografado pela
turista asiática. "Ela deve ter achado que eles não ficariam bem na foto 3", comenta
Lucie. Última lição de moral cinematográfica que constitui este retorno aos princípios
estéticos originários da Nouvelle vague.
Joël Magny
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. Em francês no original: fauxs coupables. Referência ao título em francês do filme de
Hitchcock, The wrong man: Le faux-coupable.
2. fuyant: que nos escapa sempre, que se furta.
3. Lucie, que persegue com François o casal no parque, se deixa fotografar próxima a
eles por uma turista para conseguir uma evidência do casal "adúltero". Mas a mulher
exclui o casal da foto.
Já que se trata do assunto profundo de Two weeks in another town, falemos de cinema.
"Todo grande filme é um documentário", escrevia Éric Rohmer. Ao dizer isso, ele
entendia que uma obra só haure sua força na verdade da descrição dos personagens e do
meio: que esta deve nos informar perfeitamente sobre o funcionamento do meio, com o
fito de nos permitir aprender tudo sobre os personagens. O último filme de Minnelli
responde a esta exigência; ele pinta fielmente a perplexidade da fauna hollywoodiana,
arrancada a seu meio natural, que deve se dobrar às duras leis da evolução econômica e
manter , em um cenário ( décor) totalmente distinto ( "in another town") uma forma de
viver, de sentir, de sonhar, assim como de conceber e realizar estes filmes, dos quais
esta não pode, para sua infelicidade e sua alienação, se desligar. Two weeks é ao mesmo
tempo um testemunho sobre um fenômeno bem atual do cinema americano ( vide nosso
recente número), e sua crítica. Mas há ainda mais. O termo documentário evoca
imediatamente estes filmes que registram objetivamente o processo da vida: vida
inorgânica dos minerais, orgânica dos vegetais, animais, homens; e também esta
"vida"mecânica das máquinas, fabricações humanas. O que importa aqui é a idéia de
transformação da passagem de um estado A a um estado B, em uma palavra: de
evolução. A noção de evolução ( bem mais adequada que a de movimento, muito vaga,
nada específica- a dança- e causa de inúmeras aberrações: cinema "puro", cinema-
montagem) me parece responder à questão da natureza fundamental do cinema. Pois, de
qualquer forma que visemos a este, vemos neste um único objeto: a vida. Captá-la em
sua fonte, exprimir seus frêmitos, seguir seu curso, captá-la no momento de sua
expiração, tal é a única e nobre missão do documentário. Esta exige o respeito, a
humildade, a compreensão íntima e quase amorosa da coisa olhada. Ela condena todas
as especulações da "coisa que olha"- o homem que manipula a câmera e a película, e
opõe uma tela à tela- , que nega o Outro para melhor se afirmar às suas custas.
Resta-nos concluir, portanto, que documentário e cinema são uma única coisa.Onde
chegamos com isso? A esta constatação: um grande filme, seja ele do domínio da mais
pura ficção, não pode prescindir deste aspecto documentário inerente à arte
cinematográfica. Digo inerente, pois a solidez documentária ( verificada de forma
diversa pelas ciências) de obras como A Odisséia, a Bíblia, os romances da Távola
Redonda, ou mesmo As Mil e uma noites e Don Quixote- e é intencional que eu só cite
obras com heróis e ações míticas- é a mais segura garantia de sua repercussão universal,
portanto de sua verdade, se a universalidade pode ser considerada como o melhor
critério do valor estético. Mas, no entanto, quem não vê a diferença? A literatura, que
deve descrever o real, transpõe para melhor restituir, e força o artista a inventar a
metáfora ( vide O celulóide e o mármore, de Rohmer). O cinema registra o real que lhe
é oferecido a olhar, mas então ele obriga o artista a se submeter inteiramente à própria
coisa ( la chose elle-même) e a seu devir: dele, ela simplesmente exige que o artista
reencontre, de uma forma imediata e intuitiva, a seiva que lhe forjou a casca. O milagre
do cinema é que a câmera filma esta corrente misteriosa, este movimento interior que
conduziu a coisa à sua aparência, a sua casca, ao mesmo tempo em que esta casca
parecia constituir um limite intransponível à investigação. Consequência: filmar o
homem objetivamente implica que o cineasta capte simultaneamente todas as etapas da
evolução que conduziram até o homem. Todo grande filme é igualmente um
documentário na medida em que ele constitui, em conjunto, todos os documentários
possíveis.
Two weeks o prova. Antes de tudo, um documentário sobre o homem. Ao mesmo
tempo sobre a vida de uma sociedade ( que se reflete na vida de um grupo particular,
pintado justamente em suas particularidades), e sobre a vida da máquina social, seu
funcionamento, sua mecânica, e sobre a obra que, pelo trabalho, esta máquina
constrange o homem , em luta com ela, a produzir. Mas também um documentário
animal, de tal forma é verdadeiro que tudo, no comportamento físico do homem, este
animal superior ( e esta espécie de documentário só pode ser concernida por este
comportamento físico), remete ao animal. ( E isto de tal maneira que não há grande
filme, em nosso conhecimento, que não possa ser totalmente transposto para o reino
animal). Vejamos Two weeks: desde o velho leão decaído que é Edward G. Robinson,
ou a leoa furiosa, sua mulher, passando pela flexível beleza da pantera que tem prazer
em "despedaçar" ( déchirer), Cyd Charisse, todos, nesta selva, lutam para conservar
intacta sua parcela de poder, de território. Trata-se, com efeito, nos olhares, atitudes,
gestos, nos impulsos e nos ardis dos personagens, de reações animais. Que a noção de
território se revele, ao final das contas, quimérica e ilusória, isso faz parte da dimensão
superior do homem: é seu drama. O homem, por intermédio aqui do herói, deve
aprender a aceitar sua evolução ( e a evolução), portanto se libertar de todas as etapas
anteriores, a mais próxima em particular, a animal, caracterizada pela vontade de
conquista e de possessão. Transposição também no domínio vegetal: os fenômenos da
vida das plantas encontram sua correspondência no homem ( fora do que chamamos
vida "vegetativa"): no domínio da afetividade. Uma afetividade que, em Minnelli,
depende do meio e se nutre deste: vejamos simplesmente todos estes seres
desenraizados de Hollywood buscando permanecer enraizados no meio do cinema.
Enfim, parece-me até inútil mostrar, de tal forma o cenário como projeção dos
personagens tem importância aqui, como o documentário também incidirá sobre o lado
mineral do homem, chumbo ou ouro, ferro ou madeira apodrecida. Que os personagens
de Two weeks prefiram a "inconsistência" de seu décor "de cinema", telas pintadas e
cartolina, à pedra suntuosamente barroca da Cidade Eterna ( este barroco mostrado por
Minnelli como o último estágio de evolução desta pedra: seu estilhaçamento, a própria
imagem do violento movimento interior que agita os personagens), manifesta em
demasia a fraqueza destes personagens, aparentemente mascarada por sua crueldade:
eles só se apóiam de forma tão desesperada sobre um mundo imaginário, sem arrimos.
Disso advém necessariamente que, atingido o topo de sua evolução, o artista cessa de
condensar temporalmente estas diversas etapas da evolução, para dispô-las no espaço.
Os quatro reinos se avizinham então, o homem evoluindo ( Tabu, Hatari!, O rio
sagrado), ou aprendendo a evoluir ( O tigre de Bengala, Intendente Sansho, Herança da
carne) harmoniosamente, assumindo enfim esta superioridade que lhe é tão difícil
demonstrar no início. Assim, se encontra abordado o problema temporal da evolução:
um passado surgido em um presente, um presente que se impõe ao passado ( é o caso de
Two weeks). De sua luta, depende um futuro que seja ou não liberto de entraves, e que
permita ao homem desabrochar.
Este conflito, no nível de um roteiro, de um indivíduo, engaja o destino da humanidade.
Se se trata, para o herói, de se libertar de tudo aquilo que bloqueia a sua plena
realização, trata-se em paralelo para a sociedade de denunciar uma mentalidade rígida
que entrava o seu progresso; e, para a espécie, de se desligar de etapas anteriores, das
quais ela emergiu. Assim, Kirk Douglas, ao mesmo tempo em que exorciza seu passado,
denuncia uma sociedade ( tanto aquela que fabrica o produto cinematográfico quanto
aquela que o consome) ligada a uma concepção apodrecida do homem e da arte, e assim
oferece uma espécie, por seu "sacrifício", de abertura à humanidade. Evidentemente, é
necessária uma solução espacial a este problema temporal da evolução. O movimento
que, no cinema,por intermédio do trajeto e do itinerário, permite que o processo de
transformação dos seres e das coisas "evolua" diante de nossos olhos, estaca sempre na
fixidez. Não basta que Kirk Douglas reintroduza o movimento ( um movimento barroco
acordado a Roma, que ele é o único que soube penetrar) na mise-en-scéne do filme, que
ele retoma no meio da filmagem, para resolver seu próprio problema. Isto constitui
apenas um paliativo. É preciso ainda que ele "reflua" ( remonte) completamente para
dentro de si mesmo, que vá aos confins desta fixidez que o obceca ( e da qual sua
esposa é menos o objeto que o pretexto, a fixação); é-lhe necessário redescobrir sua
verdadeira aspiração: a recusa em viver, a morte. Ele atinge este limite quando sua
mulher, no decurso da reunião de drogados, se deixando "levar" para melhor "levar", o
abandona. Nada pode liberá-lo agora de seu passado e da tentação da imobilidade que
sua louca corrida de carro, movimento excessivo, fluxo de vida através do qual o sonho
pernicioso será conduzido e destruído. De agora em diante mestre do movimento, ele
completa seu itinerário de Hollywood a Hollywood e funde seu devir- em sua trilha
própria- com o devir dos outros ( o jovem ator), que é o nosso. A ninguém mais
surpreenderá que este cinema documentário ( o único que amamos) entoe, para além de
seus tormentos, o elogio da loucura. Este é o destino do homem hoje: se libertar das
aquisições do indivíduo, da sociedade, da própria espécie, a fim de afrontar um futuro
que só nos parece de tal maneira angustiante por conter ( talvez) as mais espantosas
promessas quanto à evolução do homem. Todo grande filme é este documentário sobre
a coragem e a grandeza da loucura, da sabedoria humana.
Jean Douchet, Cahiers du Cinéma 154, abril 1964.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Mankiewicz explicou que seu interesse pelo romance de Graham Greene vinha
sobretudo do personagem de Fowler: “Eu sempre quis fazer um filme sobre esses
intelectuais glaciais cujo intelectualismo é apenas uma máscara que recobre reações
totalmente irracionais” ( citado no livro de Kenneth Geist sobre Mankiewicz, “People
Will talk”). A mensagem do filme consistiria assim em mostrar , em um ser
aparentemente evoluído e senhor de si, o triunfo desconcertante do irracional e do
emocional sobre a razão e a lucidez. Triunfo feito na medida para justificar esta cólera,
esta amargura misantrópica que Mankiewicz ressente, de forma intermitente, em relação
à humanidade, e sem dúvida, em primeiro lugar, em relação a si mesmo. Pois, em suas
trevas e sua ambigüidade, Um americano bem tranqüilo permanece, no interior da
carreira de Mankiewicz, uma obra extremamente pessoal e até mesmo íntima.
Uma das cinco ou seis obras mais importantes mais importantes para o conhecimento de
Hitchcock. É o filme onde o tema hitchcockiano de base- a troca das culpabilidades-
aparece mais abertamente, e não apenas como tema mas como motor principal da
ação.Esta ação, constituída em sua linha principal pela armadilha na qual se debate um
dos personagens ( Guy, interpretado por Farley Granger), é refletida na luz cintilante,
metálica e glacial forjada pelo diretor de fotografia Robert Burks, aqui em seu primeiro
trabalho para Hitchcock. Enquanto falso culpado, Guy se encontra tão privado de
iniciativa e de liberdade quanto seu homólogo Henry Fonda em O homem errado.Como
Balestrero, ele expia uma culpa metafísica ligada ao pecado original. Para Hitchcock,
parece que não há “falso culpado” integral: Guy, que pensou em matar, que desejou
matar, já entrou no infernal círculo da culpabilidade. E o face a face central de Strangers
on a train é aquele entre o Diabo ( admiravelmente interpretado por Robert Walker) e
sua criatura. Esta no fim triunfará, depois de ter cortejado o abismo, pois Hitchcock,
moralmente falando, se alinha entre os otimistas, ou pelo menos tenta nos dar esta
impressão. Em seus últimos filmes, quando ele poderia ter escolhido- numa época mais
liberal- encerrar seus filmes com a vitória do Mal, e não com um happy end, ele sempre
recusou-se a fazê-lo. Seu estilo aqui é clássico, rigoroso, quase austero, mas com
acessos febris que correspondem aos momentos de extrema tensão e de mais intenso
suspense ( a sequência do assassinato de Miriam, a do paralelismo entre o match de Guy
e a ida de Bruno ao parque de diversões, e enfm a sequência final do carrossel). É aí,
quando o cineasta melhor tem seu público na mão, que ele se distancia da intriga
propriamente dita para se entregar a arabescos visuais que compõem uma sinfonia de
imagens e de sons onde o prazer de narrar cede o passo a um puro deleite plástico e
dinâmico. Mas Hitchcock sempre espera que o espectador esteja sob seu domínio para
enfim se dar o prazer de satisfazer sua verdadeira natureza: a de um formalista genial
que utiliza a duração, da qual é mestre absoluto, para cinzelar imagens infernais e
apocalípticas que exorcizam suas obsessões. Nestes instantes, que podem durar até
longos minutos, ele com freqüência encontra a ocasião de inventar e utilizar com
maestria tornada lendária todo um arsenal de truques, de efeitos óticos e fotográficos
que permanecem a maior parte do tempo um enigma à primeira visão, e às vezes nas
seguintes.
Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior
Ivã, o terrível
Em 1940, Eisenstein pensa em fazer um filme sobre o tsar Ivan IV, cujo roteiro ele
termina na primavera de 1941. A Mosfilm aceita o projeto um pouco antes da URSS
entrar em guerra contra a Alemanha. A empresa vê aí um novo pretexto, depois do
Alexander Névski, para exaltar o sentimento nacional. A filmagem começa em 1 de
fevereiro de 1943 no estúdio de Alma- Ata, a guerra impedindo que se filmasse em
Moscou. A segunda parte será filmada no estúdio Mosfilm entre setembro e dezembro
de 1945; ela compreende partes em cor realizadas a partir de um estoque de película
Agfa, tomado aos alemães no fim da guerra. A primeira parte é lançada em janeiro de
1945 com um grande sucesso,e obtém o Prêmio Stalin. Eisenstein termina a montagem
da segunda parte em fevereiro de 1946. A doença e as críticas oficiais suscitadas por
esta segunda parte o impedirão de rodar a terceira parte, apesar de esta ter sido
minuciosamente escrita e preparada. Lembremos que nesta terceira parte ( intitulada Os
combates de Ivan) Ivan, aliado à Inglaterra, deveria enfrentar vitoriosamente as tropas
livonianas. Kourbsky morreria em um castelo cuja explosão teria sido voluntariamente
provocada por um dos seus homens, a fim de evitar que este caísse nas mãos do
inimigo. Maliouta morreria também nesta explosão. O filme deveria ter terminado com
uma proclamação de Ivan, afirmando que de agora em diante a Rússia permaneceria no
Báltico. Absolutamente falsa historicamente, esta terceira parte beneficiava Ivan com as
vitórias conquistadas mais tarde por Pedro o Grande. Em setembro de 1946, o Comitê
central do PC Soviético condenou Eisenstein nestes termos: " O metteur em scéne
Sergei Eisenstein, na segunda parte do filme Ivan o terrível, revelou sua ignorância dos
fatos históricos ao mostrar a progressista guarda de Ivan o Terrível como um bando de
degenerados, do gênero Ku Klux Klan, e o próprio Ivan o Terrível, que possuía vontade
e caráter, como frágil e indeciso, um pouco à maneira de Hamlet". No entanto, o
Conselho artístico do ministério da cinematografia apreciou o filme, mas a última e
definitiva condenação veio do Kremlin. A segunda parte só saiu na Rússia e no mundo
em 1958. Viram neste Ivan, em seu amigo Maliouta e nos Opritchnicks uma metáfora
mal velada de Stalin, de Beria e dos homens da KGB.
As críticas concretas endereçadas ao filme foram as seguintes: ausência do povo na
condução da narrativa, importância primordial dada às intrigas da corte, formalismo. No
essencial, é impossível negar que estas críticas concernem ao corpo essencial do filme, e
se evidentemente temos de condenar a condenação, devemos assinalar que esta não é
baseada – uma vez que isto não costuma acontecer- num mal –entendido. Nas duas
partes da obra, Eisenstein deliberadamente sacrificou o histórico ao poético e ao trágico.
Seu Ivan é um personagem shakespeariano, invadido pela dúvida e incerteza, às vezes
mesmo roído pelo remorso, muito mais em luta consigo mesmo e contra seus próximos
do que contra o inimigo estrangeiro. Seus adversários privilegiados são a nobreza, os
boyards1, sua própria família e seus amigos; seu combate permanecerá individual,
solitário, até mesmo confinado, mesmo se os temas em jogo são nacionais e imensos.
Tirando a sequência do cerco de Kazan, o povo, as massas, e portanto a epopéia estão
ausentes das duas partes do filme. O povo só intervém concretamente na procissão que
encerra a primeira parte: sua única iniciativa consistirá em uma súplica com o objetivo
de fazer com que Ivan volte para Moscou, exatamente como este havia previsto, ao se
retirar provisoriamente em Alexandrov. Vistos por Eisenstein, a tragédia e o destino de
Ivan são aqueles de um homem que não pôde se tornar o herói épico que desejava ser,
constantemente impedido por seus próximos de se comunicar com o povo e de associá-
lo às suas lutas. Em um outro nível, o destino de Eisenstein foi também o de não ter
podido ser, por não ter nascido em uma boa época e meio, um poeta elizabetano, ou um
grande cineasta hollywoodiano dos belos tempos ( uma espécie de poeta épico, à
maneira de King Vidor por exemplo). As duas partes de Ivan, e mais especialmente a
segunda, testemunham da ambição de Eisenstein de utilizar o cinema como arte total;
mas a realização desta ambição se encontra limitada pelo caráter essencialmente teatral
da intriga e do personagem central. Nennhuma dúvida de que a segunda parte é superior
à primeira: podemos até mesmo dizer que ela não prolonga realmente a primeira, mas a
refaz, a repete enriquecendo-a e lhe conferindo maior densidade. O caráter trágico e
quase claustrofóbico do destino de Ivan torna-se mais e mais evidente, e a contribuição
da cor dá uma dimensão extraordinária à concepção cara a Eisenstein do cinema como
arte total. Ivan, o Terrível representa também o termo da evolução de Eisenstein em
direção ao formalismo, ao mesmo tempo que seu máximo distanciamento das massas
como o tema ideal de uma obra de ficção. Todavia, seria completamente errôneo dizer
que Ivan constitui o triunfo do indivíduo no cinema de Eisenstein. Isto equivaleria e
esquecer a total inaptidão do cineasta em representar o indivíduo em sua intimidade e
verdade concreta. Os personagens dos dois filmes são, mais do que seres de carne e
osso, marionetes alucinadas, ou máscaras, que tiram o essencial de sua força- que se
pode julgar ultrajosamente artificial- de sua posição no interior de uma geometria
plástica dos planos e do découpage. No plano visual, a metáfora do xadrez nos vem
imediatamente ao espírito, os personagens e sobretudo os atores do filme não sendo
nada além de peças manipuladas de cima pelo cineasta-demiurgo. É em relação a este
nível do filme que se oporão sempre, como adversários irreconciliáveis, os laudatores e
detratores do cineasta, os detratores constituindo uma minoria é verdade, mas no cinema
a verdade está com frequência do lado da minoria. Um dentre eles, Michel Mourlet,
escrevia na NRF ( Nouvelle Revue Française)quando do lançamento do filme em duas
partes: "Ivan o terrível se coloca na encruzilhada de uma arte pueril, ainda petrificada
em seu primitivo mutismo, e da decadência crispada de um esteta que alia a ingenuidade
das metáforas à vacuidade chinesa das formas. Uma direção de atores hierática na
exacerbação orna o espaço de letras maiúsculas, mas esperamos em vão pelo resto da
palavra.Não há nada por detrás da agitação das superfícies, nada por detrás destas
lentidões dispersas senão uma tentativa frustrada de grandeza, um sapo que incha e nem
chega a explodir".
3. Joue à rassurer. Jouer tem o sentido, no caso, tanto de jogar ( ou interpretar, dirigir,
encenar) quanto de divertir, de brincar.
4. Diz-se de uma arma carregada com um cartucho em branco, sem balas
2 de Dezembro 1989 – Velho princípio da “nossa” cinefilia: o ponto de vista. Para mim,
o ponto de vista é precisamente o que vem no lugar de um corpo que é elidido na
imagem, o que pode ser visto do ponto cego. O ponto de vista refere-se ao que pode ser
visto por um personagem que estaria sempre no lugar da câmera. Persistir com esse
ponto de vista diretamente significa confrontar problemas de mise en scène (desde que
haja imagens proibidas, o que não seria consistente com o ponto de vista único). A
questão do “ponto de vista” vem para perguntar quem está olhando. Quem é o
personagem adicional? Por exemplo, no filme de Depardon, outro guarda, o guarda
“que saberia”. O cinema do ponto de vista único está desaparecendo/ausentando-se (em
ambos sentidos do termo) em sua (mística, pictória) relação com o “real”. Ele abole a si
mesmo. Ele nunca teve muito sucesso, visto que confisca para si mesmo o imaginário (e
priva a audiência disto: Antonioni, Depardon). Obsessivo.
O cinema do ponto de vista duplo é o cinema popular por excelência, visto que este
acampa firmemente entre o plano e o contraplano (leia o livro de Warren), bancando o
“pequeno objeto a” ( petit objet a) entre dois objetos capturados numa luta de forças
(veja minha velha idéia sobre Tubarão: o tubarão e a perna da criança). É popular
porque cria uma identificação vertiginosa entre dois pólos: ativo/passivo, caçador/caça,
torturador/vítima, etc. Histeria.
Isto deixa o cinema com n pontos de vista; no fim, é isso o mais importante. Algumas
vezes é popular, mas não necessariamente. Ele tem que brincar/fazer malabarismo com
a paranóia, a lei, a loucura. Não consigo imaginar um filme melhor que The Night of the
Hunter nessa categoria, a categoria da polifonia, do carnaval (talvez junto com Ivan o
Terrível, 2001, alguns filmes de Ford).
Tiebreak (set de desempate): o cinema sem nenhum ponto de vista é possível? Não. Nós
teríamos que analisar televisão não com metáforas visuais mas táteis (“ponto de toque”,
acolchoamento tátil) e proxêmica1.
23 Julho 1988 – DEMY (tv). O fim de Duas Garotas Românticas. Estúpido, devastado,
emoção definitiva. Uma emoção tão forte que tudo que eu sempre pensei – e escrevi –
sobre Demy continua verdadeiro. Um cineasta difícil, não completamente sentimental,
mórbido e alegre.
Só uma “idéia”. Melancolia não é nostalgia. O mundo de Demy (o meu também,
suponho) é melancolia instantânea. Não há mundo perdido, nenhum ideal que se foi,
nenhum estado prévio pelo qual nos lamentamos. Pela simples razão (perversion oblige
2) que não queremos saber nada desse mundo “do qual viemos” (mais aliança do que
parentesco, etc). Melancolia é instantânea como uma sombra. Coisas se tornam
melancólicas imediatamente, graças à música e à música do diálogo. É a boa disposição
( good mood) com a qual os personagens falham em tudo (exceto talvez no essencial)
que é terrível e comovente ao mesmo tempo. Um não falha nas coisas porque não as vê
mas porque ele descobriu muito rapidamente um jeito de esvaziá-las do seu conteúdo,
de circular ao redor delas, de dançar. Darrieux descobre quem é o sádico e diz: “E ele
comandava tudo enquanto cortava o bolo!”
O essencial era o amor mas este seguiu perdendo suas cores. Já nesse filme a beleza do
“último minuto” porque todo final feliz é puro voluntarismo. Porém, mais tarde (Pele de
Asno, etc) este se atrita mais e mais. E voluntarismo é precisamente o assunto de Une
chambre en ville.
A força absoluta de Demy é relacionar tudo de um ponto de vista perfeito: o da mãe. A
mãe que nunca cresceu, que é frívola, que esqueceu de parar de ser uma garotinha. O
mundo é organizado a partir desse ofício cego.
A dançar: Gene Kelly.
26 Março 1988 – Ontem, entre a tarde e a noite, em frente à TV. Abandono rapidamente
8 ½, mesmo que nunca o tenha visto, mas me exaspera e me pego assistindo até o fim
um filme que objetivamente acho mal feito, mal contado, mal tudo: O Veredicto de
Sidney Lumet. Esquizofrenia da televisão: nós não só assistimos o que não é bom (não é
bem feito), mas nós vemos até melhor do que no cinema (edição, por exemplo), e
mesmo assim nós preferimos ver um filme mal feito do que um bem feito. Ou ainda: os
conceitos de “bem feito” e “mal feito” não são relevantes na televisão. Ou o filme tem
uma força tamanha que se impõe ou nós estamos na relatividade de um mundo de
imagens, numa banheira do imaginário, onde tudo é interessante. Isso depende do clima
do momento. Ontem eu preferi assistir Mason e especialmente Newman compondo com
idade, com tudo. Lumet é o arquetípico cineasta que filma do ponto de vista de
ninguém, portanto com uma eficiência abstrata, tão abstrata que é reduzida ao nonsense
de roteiro. Ele acelera quando não há razão pra isso. Um belo momento. Newman
finalmente encontrou a enfermeira que “sabe” o que aconteceu. Ela cuida de crianças
em Chelsea. Ela tem uma bela face de santa de sindicato. Ela está no playground;
Newman, que chegou de Boston, está abordando-a desajeitadamente. Close-up no
bilhete Boston-Nova Iorque, que cai de seu bolso. E lá, um pequeno truque do velho
Lumet, um pouco da verdadeira velocidade: contracampo em Newman que não está
mais aparecendo: "Você vai me ajudar?" Ela vai ajudá-lo, não porque o roteiro exige
isso, mas porque nós fomos colocados no lugar dela (pela mise en scène) e ela no nosso,
e porque o desejo de que ela o ajude foi inscrito no filme. Coisas velhas mas existentes,
pelo amor de Deus!
O exemplo do filme de Lumet, uns dias atrás (“Você vai me ajudar?”) soma tudo isso. É
impuro ( ou pouco refinado) mas suficiente. O plano de Newman – de um Newman que
pede ajuda e pede duas vezes: para o outro personagem (off) e a mim que – por um
instante – fui capaz de me colocar no filme no lugar desse personagem ausente da
imagem. E ele será ajudado duas vezes: no roteiro e por mim (neste momento, eu aceito
seguir com o filme, e então fazê-lo funcionar).
Notas:
1.O termo proxêmico foi cunhado pelo antropologista Edward T. Hall em 1966.
Consiste no estudo de distâncias mensuráveis entre as pessoas à medida em que
interagem. “Como a gravidade, a influência recíproca entre dois corpos é inversamente
proporcional, não apenas ao quadrado de sua distância mas até possivelmente ao cubo
da mesma”.
2.Paráfrase da expressão clássica em francês Noblesse oblige ( Nobreza exige, ou
obriga), referindo-se a regras fundamentais e imprescindíveis de etiqueta. No caso, de
perversão.
Traduzido do livro L'exercise a eté profitable, monsieur. Tradução original do francês
para o inglês por Laurent Kretzschmar.
Traduzido do inglês para o português por Luan Gonsales.
Revisão e notas: Luiz Soares Júnior.
É impossível falar de Bergman sem um mal-estar cuja causa essencial é esta: objeto de
falatórios inumeráveis, animados tanto pela admiração quanto pelo ódio, este autor
parece-nos hoje em dia “sem perigo”. Se a urgência e necessidade de uma obra
concernem aos novos sentidos que libera ou desnuda, além das questões que suscitam as
questões desta obra, convenhamos que a obra de Bergman esteve submetida por um
bom tempo a um movimento de neutralização: ou se contentaram de repercutir suas
interrogações com um eco respeitoso, ou tentaram nelas infiltrar – mal tinham sido
formuladas- a figura reconfortante de uma resposta, mesmo que de desespero.Ora, os
filmes de Bergman- nisto, são de uma absoluta modernidade- não são mais assombrados
pela questão: “do que se fala?” mas por esta: “quem fala?”, ou mesmo esta, que não se
pode igualmente descartar: “quem escuta?”
É preciso retomarmos sempre uma mise en garde2 , no sentido de que se não tomemos o
que ficou aqui descrito por um catálogo ou inventário de temas e obsessões no
aprofundamento dos quais Bergman se empenharia hoje. Se fosse apenas assim- se a
vertigem da queda, a ausência, a perda e a dissipação fossem os únicos temas a serem
evocados a propósito de seus filmes- ,e se mesmo se, assim sendo considerados, eles
não participassem intimamente da matéria da narrativa, tanto quanto da própria,
correríamos o risco de fazer Bergman recair sob a reputação desagradável de “cineasta
de idéias”. Ora, Bergman se coloca contra este clichê exatamente na medida em que as
forças da “desapropriação autoral” afetam estruturalmente seus últimos filmes. Não que
se manifeste neles uma abstração cada vez mais marcada, este ressecamente e gosto por
agenciamentos matemáticos através dos quais uma convenção deseja que se reconheça
um autor que chegou à maturidade. Não percebemos, do primeiro ao último filme,
nenhum desperdício importante de conteúdo, nenhuma “desencarnação” em proveito de
uma ordem estritamente relacional das figuras ou de uma acuidade gráfica: pensemos,
neste sentido, na presença plena e opressora dos corpos, no calor e na umidade de O
silêncio, ou na acumulação de incômodos e de entraves físicos que atormentam os
personagens de Os comungantes ( Luz de inverno). Parece-me apenas que o espaço e a
luz onde se dispõem os corpos sofreu uma mudança. Como se um universo esférico,
denso e saturado, estreitado sobre sua plenitude e seu peso tivesse pouco a pouco sido
submetido à forças de disjunção, eriçado de lacunas, esvaziado, penetrado por um poder
de dissolução, disposto em uma espécie de concavidade voltada para nós, tomado em
um movimento de arruinamento que teria conservado intacta uma única plataforma,
sobre a qual as criaturas se disporiam como fantasmas. Fantasmas agitando-se no
precipício da obra e designando como obra- como o tema e o próprio perigo da obra-
esta zona branca onde os personagens não mais existem. Por longo tempo mantidos no
limiar dos filmes, as forças silenciosas e o poder de gerar o vazio foram insidiosamente
deslizando na própria textura da obra, dissipando os seus volumes, borrando seus
contornos, tornando menos nítidos os seus relevos e menos precisas suas fronteiras.
Concebemos então que os filmes cuja proposta está em jogar com o risco destas
ameaças escapam à certeza psicológica, , e que os próprios filmes sofrem esta
“regressão” que ocupa em sua totalidade a obra de Bergman. O silêncio, o mutismo, não
são mais acordados a algum personagem em particular. A cadeia metafórica onde se
alternam as figuras do pai, de Deus e do artista não admite mais nenhum destes três
termos como autoridade superior ( durante um longo tempo, acreditou-se que a figura
divina, ou sua ausência, fossem a instância suprema da obra bergmaniana e sua
transcendência). Nenhuma precedência é mais acordada a um dos termos sobre outro,
cada termo aparecendo como um acidente passageiro ou a figuração momentânea de um
poder mais profundo, neutro, impessoal, indiferenciado.
Refiramo-nos aqui a um texto de Bergman onde ele conta o terror que lhe causava,
quando era vítima de uma doença infantil, uma cortina que balançava. ( O que é fazer
filmes?, Cahiers du cinéma, número 61, p.16): “ Era uma cortina preta, dessas mais
comuns mesmo, que eu via no meu quarto de criança, na aurora ou ao crepúsculo,
quando tudo adquire vida e se torna um pouco assustador... Era sobre a superfície que
as coisas se encontravam: nem homens bons, nem animais, nem cabeças, nem rostos,
mas coisas para as quais não existia nome!...Elas eram implacáveis, impassíveis e
assustadoras...”
É na tentativa de reencontrar estas formas inomináveis, esta indistinção originária onde
se reabsorvem todos as figuras que o autor se esforça hoje. Lugar aterrorizante, núcleo
onde se desfazem as significações, zona de a-simbolização primária. O sem-figura, o
sem-rosto, falando propriamente o inqualificável. Indiferenciação primitiva que não
constitui o retorno à unidade- onde tudo viria a se resolver e se apascentar, na plenitude
do Único-, mas o sem-coerência, sem-certeza. As horas que afetam Bergman, aurora e
crepúsculo, são- além das propícias à formação e à dissolução dos vampiros-, as horas
onde ainda não se efetuou a divisão das luzes, onde ao mesmo tempo o dia cai e a noite
ascende.
Ao fim, restaria apenas, para a compleição do processo, tender à própria dissolução.
Trabalho côncavo que se efetua em muitas regiões em Persona: inscrição do filme em
uma projeção de filme,” invagination” 4 da narrativa em si mesma ( o campo-
contracampo já célebre onde o mesmo texto se encontra escutado por aquela que fala e
dito por aquela a quem este se dirige), ameaça de interrupção marcada pela
“queimadura” da película no exato momento de seu desenrolar, a obra esboçando nesta
inscrição o movimento de se abismar em sua própria fissura. Momentos onde se
confirma a relação direta de Bergman a Murnau como cineasta do horror, mas cineasta
onde a obra se destinaria a tornar-se o próprio horror.
Notas do tradutor:
Com frequência, nas provas de meus alunos na Universidade de Paris III, encontrei
referências a um certo Gilles Deleuze. Intrigado, fui à biblioteca municipal mais
próxima, onde tomei emprestadas as duas obras deste autor consagradas ao cinema.
Até aqui Deleuze tinha se esforçado para dar definições de seus neologismos, mas ele
não consegue precisar em que consiste a imagem-tempo. Ele define o tempo ( páginas
49 e 50 do tomo 1) em ocasiões “como intervalo” - mas Deleuze não se demora nesse
intervalo no cadre da imagem-tempo. Antes assim!, pois este intervalo parece-se muito
com o intervalo da imagem-movimento, e sobretudo da imagem-afecção. Ou então
define o tempo “como tudo”, ou seja, os dois extremos, o dia e a noite. A imagem
tempo me lembra essas lixeiras verdes onde, no meio dos compartimentos azuis para os
jornais velhos, compartimentos amarelos para as embalagens e brancos para garrafas,
enfiamos todo o entulho que nos vem à cabeça na hora. Podemos dar da imagem-tempo
uma definição negativa: é tudo o que não é imagem movimento, ou mais exatamente
tudo o que não está subordinado a ela ( como está indicado na página de abertura da
Imagem-tempo), o que constitui um centro, enquanto a imagem-movimento é um
princípio sem centro. Da noção de centro ( intervalo), que pressupõe a existência de
extremos, passa-se à noção de conjunto, de todo, que pressupõe a inexistência de
elementos exteriores. E o todo seria o resultado da montagem, e constituiria também o
tempo, pois é também a montagem que cria o tempo do filme. E o todo estaria em
relação direta com o tempo. O todo e o tempo, aliás, combinam muito bem entre si, pois
tanto um quanto o outro- ao contrário do movimento- tendem a nos escapar, e
permanecem indecomponíveis e misteriosos. Sabemos quase tudo do movimento- se
ligarmos este termo ( seguindo a definição clássica, e não a deleuziana) à noção de
espaço-, sobretudo desde Magellan3 e Neil Armstrong4, enquanto que o tempo passado
é cheio de obscuridades, e sempre permaneceremos ignorantes em relação ao tempo
futuro, o tempo – é certo!- que nos matará.
Curioso amálgama esta aliança centro-todo-montagem-tempo... Deleuze se vira por
meio de astúcias. “Eisenstein não cessa de nos lembrar que a montagem é o Todo do
filme, sua Idéia”. Mas é Eisenstein quem o diz. Ok, é um cara genial, mas em que isto
implica que ele tem necessariamente razão? Podemos sustentar que a montagem talvez
fosse “tudo” para ele ( como também para Godard, Resnais e talvez Welles); mas não
seria forçosamente “tudo” para os outros, para seus detratores, nem mesmo para ele,
Eisenstein: seu último filme, Ivã, o Terrível, é uma obra-prima onde há um mínimo
trabalho de montagem. Talvez esta idéia da Montagem identificada ao Todo fosse uma
idéia de juventude de Eisenstein, que ele teria abandonado ao fim da vida, e que teria
nascido do fato fortuito de que, no começo de sua carreira, com os racionamentos na
Rússia da época, ele só dispusesse de pequenos pedaços de película.
Quanto aos outros... Aos nossos amores de Pialat permanece um imenso filme, embora
seja mal estruturado, mal decupado e, portanto ( quase forçosamente) mal montado
( nesse sentido, como separar – a não ser em relação ao documentário e ao filme
improvisado- o que pertence à montagem e ao découpage? Os Oscars e Césars de
montagem sempre me deram vontade de rir...). Em certos cineastas minuciosos ( tipo
René Clair), o todo é mais o découpage que a montagem, e este é terminado antes
mesmo da filmagem. Para uma série de grandes cineastas, o todo está antes nos atores
do que na montagem ( assim, o caso de certos filmes de Doillon, Cukor, Ray ou Renoir,
que era provavelmente o maior de todos, mas que não era um montador muito bom).
Ganância, Soberba, A mulher na praia ( e também Que viva o México!) atingem os mais
altos níveis de cinema, mesmo que seus autores não tenham podido controlar a
montagem e tenham renegado a versão montada. E que dizer da montagem no filme
com plano único ou em plano seqüência, tipo Jancso?
Ok, quase sempre é a montagem que cria o tempo do filme ( quando não se trata do
plano seqüência ou do fluxo do plano curto), mas este tempo criado é o tempo no
sentido de tempo, de ritmo, de duração, de respiração, mas quase nunca – ao contrário
do que pretende Deleuze- o tempo no sentido de uma oposição presente-passado,
flashback ou flash-forward. Jogando 5 com as palavras, como é seu hábito, Deleuze
coloca esta tempo sob as sub-categorias da imagem-tempo.A relação presente-passado,
quase sempre prevista no roteiro ( DeMille, Godard, Intolerância, As três luzes de Lang,
François Ier) participa quase sempre de uma dialética: trata-se da imagem-
movimento( com exceção de certos filmes de Resnais).
Deleuze- o delusivo 6 Deleuze- dá às palavras significações que não tem nada a ver com
as significações correntes. Ok. Mas o hic é que, no calor do discurso, ele re-introduz
estas palavras com seu sentido corrente e assim conforta suas teses, assegurado da
aprovação do leitor, que vai coincidir plenamente com as reaparições “aliviantes” da
palavra em seu sentido banal. Se seguirmos a lógica deleuziana, seríamos levados a
reconhecer que Ladrão de bicicleta e Viagem a Itália permanecem perfeitos exemplos
de imagem-ação. Mas como há pouca ação nestes fIlmes, podemos aceitar mais
facilmente a exclusão dos mesmos desta categoria. Da mesma forma, seríamos tentados
a incluir os Dez mandamentos de 1956 na grande forma do cinema-ação, por ser um
filme caríssimo e espetacular. Mas a grande forma, isto é, a passagem do geral ao
individual, inexiste neste filme, pois Moisés não possui um comportamento que o
individualize e permanece o perfeito autômato a serviço do Deus cristão. Como o filme
se lambuza no geral, sem jamais dele sair, poderíamos sustentar que não se trata de
imagem-ação, mas de imagem-tempo, com este magma típico das altas esferas do
dogma religioso convencional e da estilística sulpiciana 7. Não vou aliás tão longe, pois
este querido filme se funda sobre uma linha dialética muito pobre: o Deus cristão contra
o Deus egípcio. Mas eu sustento vigorosamente que um filme recheado de ação como A
guerra do fogo, precisamente por não ser nada além de ação, não pertence à imagem-
ação ( pela falta de uma dialética entre a ação particular e a situação geral),e ainda
menos trata-se de um filme da grande forma; trata-se de um filme da imagem-tempo,
pois eu o sinto como um magma puro.E finalmente, um dos melhores exemplos do
cinema-ação da grande forma é, não uma superprodução, mas um filme relativamente
pobre, Jeux interdits, com quinze minutos de guerra violentíssima em seu começo, e em
seguida o itinerário íntimo de duas crianças.
Outra vez Deleuze troca as bolas com suas definições contraditórias. Vimos isto com a
dialética passado-presente, classificada de forma abusiva na imagem-tempo ( quando
esta dialética é frequentemente da ordem do movimento); e o duo naturalismo-
naturalista, Paul, Emile ( Zola) e Virginie. Ou ainda, quando ele fala da crise da
imagem-ação, refere-se unicamente ao cinema americano, por ser um cinema fundado
sobre a ação. Ao invés de falar em imagem-movimento e imagem-tempo, seria melhor
falarmos, por exemplo, de nelbugoz e de dagmalouak, isto teria lhe poupado muitas
contradições...
Ele dedica um capítulo à imagem-cristal. O cristal, para Deleuze, é o aspecto multifaces,
estilo Ophuls, Dama de Shangai, a polivalência barroca. Mas pouco depois ( tomo 2.
pág. 176), fala de “descrições óticas e sonoras, puras, cristalinas”. O termo cristal
designa aqui portanto a pureza, a limpidez. Multifaces e limpidez: dois sentidos muito
diferentes.
- O todo definido pela montagem, que repousa ( o próprio Deleuze o reconhece) sobre
movimentos dialéticos prévios, e que, em geral, apenas os “re-copia” de forma servil;
- o todo definido pela montagem, que se exprime pela criação de um tempo resultante
de linhas dialéticas temporais ( adágio-allegro), que Deleuze estuda de forma muito
apressada, também elas avalizadas pela montagem;
- o todo definido pela montagem, que se exprime pela criação de um tempo sem
dialética; trata-se talvez do caso de Pagnol, Rozier, Leone, esquecidos por Deleuze, de
Duras ( que ele evoca na Imagem-tempo, mas sobretudo para assinalar seus movimentos
dialéticos entre som e imagem, entre voz off e voz on, sem estudar seu trabalho sobre a
respiração do filme), e enfim de Stroheim ( que ele limita, por um contra-senso
flagrante, ao naturalismo, sem analisar o status da duração em sua obra);
De fato, estes três últimos setores são os únicos que correspondem à imagem-tempo
deleuziana, e são apenas parcialmente analisados por Deleuze, que se contenta com
observações muito pertinentes sobre Snow e Bene. É preciso dizer, em sua defesa, que é
difícil escrever sobre esses filmes, que oferecem uma superfície muito escorregadia,
pouco propícia à glosa.
A imagem-tempo compreende, portanto, filmes ambiciosos e de qualidade- que
merecem amplamente que nos debrucemos sobre eles-, mas que constituem apenas uma
parte ínfima da produção de filmes interessante e uma parte ainda mais ínfima do
conjunto da produção. Separar a imagem-tempo da imagem-movimento, o magma da
dialética, é portanto um exercício um pouco vão ( até porque às vezes os dois se
encontram no mesmo filme). Ainda mais vão me parece opô-los: é David e Golias, o
pote de barro e o de ferro, o 2D e o 3D. Quer se trate do tempo ou do movimento, com
centro ou sem centro, isso não vai nos levar muito longe.
Podemos nos espantar então que a Imagem-tempo contenha cem páginas a mais que a
Imagem-movimento. Deleuze deve ter tido medo que seu Imagem-tempo fosse muito
curto, recheou o quanto pôde o seu livro de coisas aqui e ali, em ordem aleatória, ao que
parece. Os três últimos capítulos da Imagem-tempo ( pensamento, corpo e cérebro,
componentes), que ultrapassam constantemente suas barreiras entre si, são os melhores (
ainda que o fio de Ariadne seja bem artificial, com classificações arbitrárias: Doillon
unicamente colocado sob a rubrica corpos): aqui, Deleuze não desperdiça tinta, tentando
inserir suas matérias em uma das duas grandes malhas conceituais.
Na verdade, me parece que os dois títulos estão lá porque “soam bem”, para ajudar
Deleuze a vender seu peixe- um intrusivo ( e inconsciente) MacGuffin, um pouco como
o título Pierrot le fou atraiu dinheiro e multidão para o filme de Godard, sem que o
filme mostre uma única vez o célebre bandido homônimo. O trágico em Deleuze é que
ele entulha seus capítulos injetando filmes e teses sem ligação com o assunto, mas tem
uma hora que lhe dá a vontade de foder com tudo ( a repetição buñueliana no interior do
naturalismo, o naturalismo no interior da pulsão...). Encher lingüiça,- vc tem de encher,
se quiser cobrir a totalidade do cinema em 700 páginas-, então se cola uma única
etiqueta, forçosamente equivocada, em cada um: Mizoguchi pequena forma, Ford
grande forma, Vidor naturalista ( assim como há o mestre do suspense, o plano no nível
tatami de Ozu, as vacas gorduchas fellinianas). Ainda a mania patológica da
classificação! A razão disso também é que Deleuze quer conferir ao cinema um
prestígio de que este não tem a mínima necessidade, referindo-o a seus conceitos
bergsonianos. Seria antes Bergson, filósofo sem público ( e cinófobo) quem ganharia
com o cinema! Mas os pensadores extra-fílmicos adoram este gênero de equação que os
valoriza: há pouco tempo, um cara bizarro consagrou todo um livro para provar que
Virgílio era pré-cinema, porque a escritura da Eneida evocava a de um découpage...
Vocês podem me achar muito severo em relação a Deleuze, mas é que seu verniz
filosófico mascara suas qualidades. Deleuze pode ser apaixonante, vivificante, se
evacuarmos suas histórias de movimento e de tempo. Deleuze é um Skorecki que se
toma por Spinoza...Quanto mais o sistema é nulo, mais as percepções pontuais são
excitantes, tonificantes ( não sempre, mas frequentemente).
Em primeiro lugar, é talvez o primeiro historiador do cinema que se apóia
exclusivamente sobre bons filmes ou filmes ambiciosos, no presente imediato
( Syberberg, Straub, Jacquot, Eustache, Garrel) e no passado. Enquanto que Metz,
Cohen-Séat, Marcel Martin e Rijon se comprazem com as nulidades. Com Deleuze,
estamos sempre em boa companhia, em família. Deleuze é cinéfilo, e ama o bom
cinema.
Por outro lado, ele sabe degustar, sobretudo em revistas um pouco esquecidas como a
Cinématographe e Études Cinematographiques, as mais interessantes fórmulas
concernentes a um filme, fazer uma síntese das melhores citações, vindas de fontes bem
variadas, sobre um autor. E sobretudo, o próprio Deleuze exprime seus pontos de vista
originais sobre obras, em geral bem oblíquas. Quase sempre são opiniões jogadas às
cegas, em impromptus 8, mal colocadas, mal expressas e mal desenvolvidas em poucos
parágrafos ( o sumário final é mais útil para seguir o pensamento de Deleuze que o
próprio texto...); mas que importa...
Por exemplo, há observações que oferecem um primeiro esforço de síntese, que abrem
horizontes, sobre a crise da imagem-ação na América, ligada a cinco fatores: a “situação
dispersiva” (multiplicação dos personagens), “ as ligações deliberadamente frágeis”, a
“forma-balada”, “ a tomada de consciência dos clichês” e “a denunciação do
complot”( p.283).
Ou ainda sobre Sternberg: “A luz não tem mais nada a ver com as trevas, mas com a
transparência, ou translúcido ou o branco. Portanto, os cortinados e os véus de
Sternberg se distinguem profundamente dos cortinados e dos véus do expressionismo, e
seus flous do chiaroescuro deste. Não mais a luta das luzes contra as trevas, mas a
aventura da luz com o branco: é o anti-expressionismo de Sternberg.” ( p. 133)
Ou ainda sobre Duras versus Straub: “A primeira diferença seria que, para Duras, o ato
da palavra a atingir é o amor total ou o desejo absoluto. (...). A segunda diferença
consiste em uma liquidez que marca cada vez mais a imagem visual em Duras. (...). A
imagem visual, à diferença dos Straub, tende a ultrapassar seus valores estratigráficos
ou arqueológicos em direção a uma calma potência fluvial e marítima que representa o
Eterno”.( tomo 2, p.337).
B. Ao invés de opor a imagem e a ficção no regime estético, não podemos pensar que
elas permanecem solidárias, mas num modo diverso do implicado no regime
representativo?
R. Não penso que a imagem apenas intervenha como ruptura com a narrativa. O que
caracteriza o tipo de narrativa típico do que chamo regime estético das artes, é esta
função condutora que a imagem possui: ela é ao mesmo tempo o que engendra a ficção
e o que eventualmente a faz estacar. Eu estudei isso mais pela tradição romanesca, mas
penso que nesse ponto a tradição cinematográfica é bem ligada à romanesca: são mais
as imagens que as ações ou sentimentos que conduzem a narrativa. Mas precisamente as
imagens conduzem a narrativa na medida em que são habitadas por diferenças de
potencial. Há três grandes modos de funcionamento da imagem. A primeira forma é a
da imagem que se auto-apaga. Ela está no cinema, assim como no romance. No
romance, não distinguimos os traços descritivos, no cinema não temos que visualizá-los,
eles simplesmente nos são impostos, sem parar. Há um segundo modo, onde a imagem
se impõe como um elemento significante forte: foi o que se elaborou na tradição realista
romanesca e foi transmitido ao cinema, a imagem se apresentando como o lugar de um
enigma a elucidar ou a “fazer ressoar”, e apresentando a narrativa como a instância de
sua elucidação ou o meio de sua ressonância. Enfim, há um terceiro modo, onde a
imagem aparece como aquilo que destrói a narrativa, o que a torna vã. Mas
precisamente a ficção romanesca e, em seqüência, a ficção cinematográfica são feitas da
possibilidade de deslizar, de forma contínua e imperceptível, entre estas três funções, a
possibilidade de ver mais ou menos e de ler mais ou menos, ou seja, de tratar mais ou
menos o que vemos como uma coisa a ser lida. O que caracteriza a ficção estética é esta
possibilidade de jogar com esta relação tripla, este jogo podendo ser um jogo que
homogeneíza, como no exemplo flaubertiano, ou no exemplo de um certo cinema de
Hollywood dito clássico, onde a imagem realiza estas três funções, mas em um
pressuposto de homogeneidade que faz com que o tempo da narrativa e o tempo da
imagem coincidam ao longo do percurso. E também a imagem pode funcionar como
ruptura. O tempo da imagem e o da narrativa se dão como heterogêneos. É o modelo
proustiano, por exemplo, mas também o modelo de um cinema dito moderno, Godard
ou os Straub, o modelo de um cinema onde o que se evidencia é a disjunção. Portanto,
creio que não há de forma alguma oposição entre imagem e narrativa; há efetivamente
uma lógica clássica das ações, há uma lógica da narrativa em imagens, onde a
característica técnica do cinema remete a algo de fundamental, qual seja, uma lógica
estética onde é a imagem o elemento constitutivo da própria narrativa.
R. Certamente, isso passa também pelos rostos, pelos gestos, pelas paisagens. Não
confiro um privilégio particular ao objeto. Mas na lógica de Godard, é o objeto que se
presta ao icônico. Os ícones hitchcockianos de Godard não são rostos, e mesmo quando
se trata de Vera Miles no Homem errado, um dos ícones retidos por Godard, o
importante para ele não é este rosto na iminência de naufragar na rigidez da psicose-e
que Deleuze, por este motivo, toma como exemplo da passagem de um regime de
cinema ao outro-, o importante é a escova de cabelos que ela agita.Ora, a função estética
do close é precisamente uma função de aproximação entre a humanidade dos rostos e a
inumanidade das coisas. É o que Deleuze resumiu na idéia de devir-inumano: esta
lógica passa pelo devir-paisagem do rosto, ou o devir-expressivo do objeto, e assim
destrói as hierarquias tradicionais, onde você tem o sujeito e o acessório. É sempre por
um procedimento de heterogeneidade que uma coisa gera imagem, quer seja uma
heterogeneidade de objetos, ou de registros expressivos- quando um acessório não
“fala” mais como acessório, mas como paisagem- quando uma descrição se encontra
como paralisada, etc Poderíamos dizer, em termos deleuzianos, que o esquema
sensório-motor não funciona mais, embora eu não goste muito desta oposição, mas eu
diria que, efetivamente, há um sistema de apropriação que é quebrado.
B. Temos a sensação, nos exemplos citados, que a imagem toma sempre como “motivo”
um objeto imóvel, “parado”, ou imobilizado por um gesto da descrição e reificado.
B. O modelo de imagem que você propõe, tanto em literatura quanto em cinema, parece
sempre um modelo de “imagem simples”. Mas a imagem não seria também plural, ou
seja, com a capacidade de engendrar outras imagens, como em Proust por exemplo,
onde uma imagem chega sempre numa série ou um circuito (réseau) de outras imagens-
o que implicaria levar em conta uma virtualidade de imagens com as quais elas podem
comportar posições em séries, índices de memória, etc
R. É uma idéia complicada. Claro que há a imagem mental no sentido em que foi
pensada para ser na imagem visual, assim como em nossa “cabeça”. Mas a imagem
mental é também a infinidade de processos de associações que faz com que
reconheçamos diversas coisas sobre uma tela ( écran), uma página, uma tela ( pintura), e
que iremos associar de maneiras infinitamente diversas. Deleuze brinca com a idéia de
que o universo inteiro pode ser associado a um plano, por exemplo. Quando ele fala de
um filme, é-lhe no fundo indiferente argumentar sobre um plano, um elemento do
roteiro, ou uma palavra pronunciada por um personagem, assim como sobre elementos
de leitura crítica. Ele fala de um filme enquanto ele pertence a todo um universo de
imagens mentais que o constitui. Há também a imagem mental no sentido de Schefer,
onde o que vemos sobre a tela se encontra acondicionado num universo imaginário que
lhe ultrapassa completamente. Mas acho ruim raciocinar em termos de imaginário, em
todo caso tento sempre não fazê-lo. Nos encontramos numa démarche contraditória:
sabemos muito bem que o que vemos não se encontra nem um décimo sobre a película
ou sobre a tela, mas ao mesmo tempo, por disciplina, é preciso tentar se fixar sobre o
que nos é dado pelo filme e sua objetividade. É um jogo complicado. O discurso sobre a
imagem móvel é sempre duplo, funciona sobre um esforço de objetivação que remete
constantemente a um processo de subjetivação, de associação, de derivações múltiplas,
correspondentes à captação de dois elementos essenciais da imagem estética: esta
constitui um intervalo e é uma expansão. O discurso sobre a imagem cinematográfica é
em suma sempre um discurso ilegítimo ( bâtard), sem nuance pejorativa.
B. Ao mesmo tempo, a imagem não produz apenas efeitos subjetivos, mas também
efeitos de imagens. Assim, o cinema não remeteria em questão a idéia de imagem, ou
lhe imporia uma outra forma de apreensão?
R. Por subjetividade não compreendo apenas associações singulares, ou delírios
particulares. Penso também neste trabalho de interpretação necessária que Gombrich
descreve no domínio pictórico e que se produz a uma escala infinitamente superior com
a imagem cinematográfica que, em seu desfilar, nega sua própria autonomia. A noção
usual de imagem remete a uma fixidez que é totalmente ilusória, mas isto não concerne
apenas ao cinema. Se pensarmos na imagem literária, nada é propriamente mostrado,
pode-se ingerir páginas de descrições sem ver o que quer que seja. Já a imagem
cinematográfica mostra tudo, mas inserindo este todo em um fluxo que impede a
fixação do que aparece na tela e que obriga a reconstruir o filme de outra forma. Esta
reconstrução é para mim diferente de uma espécie de imaginário, o que me parece ser,
penso eu,a tese de Schefer. Há de um lado uma consistência própria das imagens,
mesmo se, por um lado, o “desenrolar” fílmico a absorve e, de outro, nós as reinserimos
em sistemas de associações e derivações infinitas. A expansão das imagens não é um
imaginário.
R. Não sei se podemos empregar aqui o termo com o rigor com que é empregado por
Deleuze. Mas certamente as imagens fílmicas vivem das contra-efetuações que nós
operamos. Vão se constituir quatro ou cinco imagens que são “as imagens” de um filme.
Podemos retomar a fita cassete, parar o filme, estas imagens se tornaram inteiramente
autônomas da unidade que supomos pertencer ao filme. A vida das imagens se faz com
outras imagens. Uma imagem está morta se ela está dada e se interrompe. É por isso que
é tão importante falar sobre os filmes. Há um universo das imagens do cinema que
talvez só seja constituído pela palavra. Para que as imagens se projetem, constituam
uma espécie de memória do filme, é preciso que escrevamos, evocar outras imagens que
são “falsas”, deslocadas em relação ao filme. Eu durante muito tempo vi o cinema de
Nicholas Ray através do plano da aparição de Cathy O’Donell de macacão na garagem
de They live by night. Esta aparição instantânea de fato não existe: pelo contrário, o
personagem é introduzido progressivamente por esboços ( esquisses) paralelos. E no
entanto esta imagem resume tão bem o poder de efração das imagens do filme e de um
cineasta que recentemente encontrei o mesmo “erro” compartilhado por outro
“espectador”. Fui impactado de forma inversa, relendo os textos da grande época mac-
mahoniana, em constatar até que ponto a sua celebração enfática da presença não
permitia que se visse nada, só se referia a ela mesma. Algo permanece quando se cria
indefinidamente outras imagens com outras palavras, outras imagens. É por isso
também que o estudo narratológico “plano a plano” é geralmente tão decepcionante. A
idéia de evidência visual se evapora de forma absolutamente vertiginosa, a partir do
momento em que a utilizamos.
Entrevista realizada em junho de 2000 por Sophie Carlin, Stéphane Delorme e Mathias
Levin para a revista Balthazar.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
“Lentamente, retendo seu fôlego para que nada se sobressalte à sua passagem, o senhor
João de Deus vai se postar detrás do balcão e, muito docemente, começa a preencher um
cornet de sorvete”.
João César Monteiro, Que Deus me ajude.1t
Falar de maneirismo a respeito de um filme como A comédia de Deus ( 1995), do
cineasta português João César Monteiro, supõe a priori que não reduzamos os contornos
deste campo estético aos limites estabelecidos pelos redatores da revista Au hasard
Balthazar1. Em um número importante, os autores desta revista adotam, com, efeito,
uma posição firme e categórica sobre a problemática do maneirismo cinematográfico.
Uma vez que esta posição procede de uma releitura crítica de trabalhos anteriores
consagrados à questão, e por restringir consideravelmente a pertinência da noção de
maneirismo no campo do cinema, ela pode, a princípio, servir como um contraponto de
referência, a fim de proporcionarmos maior relevo à concepção de maneirismo que será
desenvolvida neste estudo.
No editorial1b deste número, a “redação”( uma vez que é “ela” que assina o artigo),
recapitula brevemente os usos do termo maneirismo que existiram no domínio da crítica
de cinema, desde o famoso e fecundo artigo de Alain Bergala “De uma certa maneira”2,
aparecido em 1985 no Cahiers du Cinema, até sua evolução sob a pena de Serge
Daney3. Em vista destes conceitos, uma visão de conjunto se impôs à redação: a
flutuação semântica que permanece associada a esta noção de maneirismo “presa em
tenazes entre os partidários do maneirismo ‘amaneirado’ e os pensadores do maneirismo
genérico”4. Coube a Stéphane Delorme, num artigo muito interessante intitulado “
Sobre uma estética maneirista”, propor uma definição do maneirismo em sua
abordagem “exclusivamente figurativa”5: o maneirismo ou “anamorfose sistemática e
obsessiva de um motif ( tema?) magistral 6”. Se seguimos esta definição,- mas vejamos
que Delorme fala de uma “estética”7, o que podemos compreender como uma estética
dentre outras- pertenceriam, de forma típica ou mesmo exclusiva, à estética maneirista
os filmes que deliberadamente se inscrevem em um jogo de relação entre uma obra
originária e uma obra segunda 8, obra esta que opera, a partir da primeira, um trabalho
de distorção, de exageração e de deformação figurativa 9- o exemplo típico seria a
retomada e a re-elaboração maníaca por Brian de Palma , em vários filmes, do tema do
chuveiro, subtraído ao Psicose de Hitchcock. 10
Embora apaixonante e produtiva, esta parece ser uma concepção muito restritiva do
maneirismo. Ela elimina uma acepção do termo que permanece fundamentalmente
ligada à noção de maneira, substrato etimológico do termo maneirismo. A maneira, em
todos os sentidos que este termo11 pode revestir, e cujo sentido mais interessantes e
contundente é justamente ligado ao “que a língua comum denomina ‘ as maneiras’12”,
ou seja, estas formas claramente “sobrecarregadas” que são o preciosismo, a afetação, a
gratuidade,a pose, a canastrice, etc Portanto, o que os autores desta revista, assim como
vários de seus predecessores13, recusam é um maneirismo “amaneirado”, um
maneirismo que não se diferencia da concepção original de “maneira”. Ora, para dar
conta de certas particularidades estilísticas de um filme como A comédia de Deus,
parece-me útil conservar esta dimensão do amaneirado no cadre do cinema- esta forma
de maneirismo tão minoritária e “anedótica”.14
Além da reflexão sobre a maneira que nos proporciona, duas razões nos tornam preciosa
a concepção de Robert Klein do maneirismo como “arte da arte”, em nossa abordagem
do cinema de Monteiro. Em primeiro lugar, como disse Daniel Arasse 28 ao comentar a
definição 29 proposta por Klein, esta permite-nos postular que o maneirismo nasce
“quando uma arte se interessa a seus instrumentos de representação, seja na técnica
concernente aos próprios instrumentos ou na técnica da representação.” Segundo esta
concepção, o maneirismo não designa uma corrente estética particularmente concernida
30, caracterizada por certo número de traços definidores e à qual podemos afiliar este ou
aquele artista. “O maneirismo amaneirado” não é uma escola artística ou um movimento
da história da arte. Tampouco constitui uma repercussão do sentimento de “ter vindo
depois”, e de ter por tarefa necessária e primordial situar-se em relação a um modelo
inultrapassável 31, com o objetivo de trabalhá-lo, ou até mesmo destruí-lo.32 O
“maneirismo amaneirado” é uma atitude estética que podemos encontrar em todas as
formas artísticas 33, desde que o artista concentre sua atenção, sua reflexão e esforço
sobre a técnica e a tecnicidade com o fito de atingir a expressão, e produzir a emoção
estética pelo singular uso que ele faz da técnica consubstancial à sua arte34. Além disso,
visto desta maneira, o termo maneirismo não serve forçosamente a qualificar , em toda a
sua extensão, o estilo de um criador, em particular numa arte como o cinema, que
mescla técnicas bem diferentes. As tendências maneiristas de um autor, por procederem
do interesse pelas técnicas artísticas constitutivas de uma arte, podem se manifestar
mais em certos pontos da obra que em outros- tal cineasta revelando-se maneirista
sobretudo pelo uso extremado da composição e refinamento de seus enquadramentos,
outro pelo virtuosismo ou ênfase35 de seus movimentos de câmera. Neste sentido, ao
lado da idéia de maneirismo como categoria genérica, é preciso postular a existência,
em certas obras, de simples efeitos maneiristas, relativamente isoláveis, às vezes bem
pontuais ou mesmo em segundo plano. Deste ponto decorre que um princípio
metodológico que estabelece que não se trata, nos limites deste estudo, de defender a
hipótese que um filme como A comédia de Deus apresenta em seu conjunto uma
estética maneirista. Trata-se de colocar a ênfase e de pôr em relevo certos aspectos
precisos e escolhidos do filme, aspectos portadores de uma dimensão amaneirada.
Figura da Lentidão.
Esta relação entre um corpo e uma Idéia44 que este se encarrega de encarnar é o que
permite, em primeira instância, configurar a Lentidão em uma figura na Comédia de
Deus. Sabemos, desde a investigação filológica de Erich Auerbach em Figura45, o
quanto a noção de figura é polissêmica, e sobretudo intrinsecamente ambivalente. Como
bem resume Olliver Schefer, “ao mesmo tempo forma-exterior, ou aspecto visível”, real
de uma coisa, e “modelo abstrato”, ela não é propriamente “nem um nem outro
separadamente, nem mesmo ambos de forma conjunta, mas se encontra inscrita , e eis a
causa de sua fecundidade, entre os dois: entre visível e invisível, aparência exterior e
modelo inteligível.46 Pode-se dizer portanto que a “figura visível”, ou mais exatamente
aquilo que da figura constitui sua parte visível ( ou mais amplamente sensível) se
ordena “de acordo com seu modelo”, sua matriz “invisível, que ela tem por tarefa
manifestar”47. A figura se caracteriza, portanto, por este interstício ( entre-deux),
encontrando sua função e sua virtude em uma mise en rapport ( pôr em relação,
relacionar) entre domínios separados, ou mesmo disparates. Pascal resumiu de uma
forma sugestiva esta característica da figura, quando em seus Pensamentos ele escreve
que “figura porta ausência e presença”48. Se a lentidão relacionada ao personagem de
João de Deus é eminentemente figura, é por ser gerada nesta lógica do interstício, do
“entre”. A lentidão não é apenas o traço característico deste personagem libertino,
austeramente hedonista ( vive como um monge, mas asperge sua vida de prazeres) e
sensualista, igualmente caracterizado, em registros diferentes, por seu físico atrofiado,
sua obsessão pela higiene, sua erotomania ou seu gosto por petiscos refinados. A
Lentidão é a Idéia invisível que o define de antemão, e que seu corpo em seguida se
encarrega de figurar. Quando João de Deus confere o Livro dos Pensamentos, onde
conserva pequenos sachets de celofane contendo pêlos pubianos vindos dos quatro
cantos do mundo, é para se debruçar longamente sobre cada página, verificando aqui e
ali a inflexão de frase que lhe fora inspirada por tal triângulo pubiano, ou soprando
delicadamente sobre alguns pêlos que escapam dos sachets, para vê-los flutuar sobre a
cartolina. É por ser lido na velocidade de uma meditação erótica que este livro é o
suporte de pensamentos.
Jogo maneirista.
Para impor a Idéia de Lentidão enquanto figura, o corpo de João de Deus apenas a
assume. Por dar-lhe uma forma, ele a torna particularmente visível. Com este fito, Max
Monteiro53 elabora um tipo de interpretação inédita que, em nossa análise, se revela
profundamente maneirista. Este maneirismo provém, em primeiro lugar, das atitudes
afetadas, preciosistas ou canastronas que ele empresta a seu personagem; ele mantém
ostensivamente seu cigarro entre o dedo maior e o anular54, se fixa no café em posturas
indolentes e refinadas, falsamente naturais, que impressionam Rosário e contrastam
com a “falta de jeito” da moça. Ou, pelo contrário, ele pode simular uma postura que o
torna infinitamente frágil diante da mesma Rosário, antes de iniciá-la nas regras de
higiene, com a cabeça voltada para frente, os braços cruzados sobre o dorso. Desta
maneira, ele traduz corporalmente a forte impressão que a beleza da moça lhe causa.
João César Monteiro propõe uma arte da pose, um maneirismo de posturas trabalhadas
ao qual a lentidão é ontologicamente necessária, e que ele contribui para exprimir na
medida em que “fazer uma pose” significa não apenas permanecer em posições
corporais que nos dão a sensação de tornar o tempo mais lento ( ralentir) mas sobretudo
“dar-se o tempo” de se instalar nestas posturas e manifestar que se vive sob um modo
lento. Monteiro também inventa para seu personagem um repertório gestual maneirista
dos mais singulares, quando eleva os olhos para o céu, querendo dizer “não falem
comigo”, ou quando levanta os braços acima da cabeça, para dar maior amplidão a um
“Que sei eu?”, que acompanha sempre este gesto. O maneirismo dos gestos vem em
primeiro lugar de sua recorrência: João de Deus parece cultivar um catálogo
relativamente restrito de gestos eleitos e cultivados, gestos que ele convoca ao sabor de
sua vontade ou das necessidades do momento, e que ganham em expressividade na
mesma medida em que perdem em espontaneidade. Mas o caráter maneirista deste
gestual provém também da lentidão com que Monteiro executa estes gestos escolhidos.
Sublinhados pelo tempo suplementar ao que seria necessário para sua execução, estes
gestos se tornam outra coisa: formas, que se dão a ver e compreender enquanto puras
maneiras, modeladas pela Lentidão, e que tem por função exprimi-la.
Maneirismo do discurso
Burlesco da lentidão.
Por ser um personagem feito de excessos, não podemos nos espantar de ver culminar a
lentidão maneirista de João de Deus em momentos extremos. O extremo está, por
exemplo, na cena em que João, despertado no meio da noite pela patroa Judite, que soa
a campainha até o momento em que este vem abri-la, permanece indefinidamente no
leito. Na penumbra, após o primeiro toque da campainha, percebemos o corpo de João,
que começa a se remexer sob os cobertores.Ao invés de se inquietar ou mesmo se
surpreender com o toque da campainha, de se precipitar à porta, João em primeiro lugar
acende a luz do abajur, depois, ainda deitado, pega os óculos sobre cabeceira, senta-se
sobre o leito e observa a hora, põe sobre o cobertor os óculos e se espreguiça ainda
diversas vezes antes de finalmente pôr os pés no chão e sair , titubeante, do campo. Esta
sucessão de pequenas ações fragmenta o tempo e nos dá a impressão de torná-lo lento,
subvertendo-o por efeito da insistência na lentidão. O corpo de Monteiro, por não estar s
serviço de nenhuma narração ( de um ponto de vista estritamente narrativo, esta cena
não serve literalmente para nada) assume integralmente, sob o modo do burlesco, a
figuração de uma soberana lentidão. Esta impõe sua temporalidade à cena e ocasiona a
“estagnação” do filme: a figura da lentidão , ao se exibir, domina.
Semelhante seqüência mostra que um dos pontos de chegada do maneirismo de
Monteiro é o que se convém nomear de “burlesco da lentidão68”. Monteiro inventa uma
forma singular, talvez única de comicidade, que consiste a renovar o burlesco por
excesso de lentidão. A interpretação maneirista de Monteiro é de tal maneira fiel ao
burlesco, apesar de assumir uma figura que lhe é a princípio oposta, se, como afirma
Fabrice Revaut d’Allonnes, “a obra e o homem burlesco se apresentam como paródias
críticas da sociedade contemporânea, industrial e mercadológica, com seu frenesi, sua
trepidação, seu super-consumismo”69. Ao invés de figurar e expor ao ridículo a vontade
de aceleração do tempo que acompanha as mutações do mundo moderno, ou mesmo
“super moderno”70, fazendo o personagem viver sob o modo de uma excessiva
trepidação, Monteiro o transforma num ser extremamente deslocado( decalé) 71, cujo
modo de vida lento é suficiente para produzir sua função cômica e crítica. Ao
desenvolver uma forma de burlesco intrinsecamente maneirista- nos referimos aqui
tanto ao maneirismo histórico quanto à interpretação de Robert Klein, pois ambos
concluem que a dimensão do excesso72 pertence de direito a esta corrente expressiva-
Monteiro, por intermédio de sua incomparável singularidade maneirista, mescla, em um
mesmo decisivo gesto cinematográfico, crítica e cômico.
Este burlesco da lentidão culmina no encontro face a face entre João e o açougueiro
Evaristo, entre o corpo magérrimo de João de Deus e o corpo pesadamente rotundo,
barrigudo e arredondado do açougueiro. A forma burlesca se deixa trabalhar aqui em
seu interior, com a insistência do João de Deus em não se deixar executar sem antes
fumar um último cigarro. O retorno do mesmo gesto, que atinge o nonsense, de levar,
custe o que custar, um cigarro aos lábios, cigarro ejetado da boca do personagem pelo
açougueiro com uma mão cada vez mais nervosa, inscreve o cômico da situação num
jogo de repetições que transforma o burlesco em uma mecânica distendida e alucinada.
O absurdo inerente ao burlesco não perde aqui nada de sua força, mas pelo contrário se
encontra multiplicado. Apenas o arbitrário pode pôr um fim- o fato de que não resta
nenhum cigarro na carteira- e estancar o delírio de um tempo que não avança, paralisado
pelo trajeto da repetição.
Desta forma, João de Deus pode girar o tempo a seu favor, conter seu avanço, adiar o
advento de um futuro catastrófico, ao aprofundar o presente em uma infinita lentidão. A
lentidão não o salva, pois o personagem vai, de qualquer jeito, “quebrar a cara”.Mas ela
representa um meio de resistência que frustra aqueles que decidem afrontá-lo. A
lentidão que emana de seu personagem pode levar ao riso, suscitar a ironia ou ser o
objeto de uma desprezível suspeição ( no primeiro plano do filme, uma das empregadas
suspeita que o patrão não seja lento por natureza, mas sim para atrasar a tudo e todos).
É, contudo, uma lentidão que acaba por se impor, e que traduz uma certa forma de
nobreza. Ela se oferece como o sintoma mais evidente de uma natureza altaneira que,
assumindo os riscos das “maneiras” e do grotesco, impõe na mesma medida o respeito.
Não nos é negado inclusive ver nela uma forma superior e aristocrática de carisma.
Notas autor:
8. Um filme como A comédia de Deus não é de todo estranho a um tal jogo de “relação”
( mise en relation).O filme é recheado de alusões, citações, de piscadelas em relação a
obras anteriores ( Los olvidados de Buñuel, Foolish wives de Stroheim, a série dos
Doinel de Truffaut). Mas se trata de intertextualidade e de hipertextutalidade, não se
trata, em Monteiro, de um trabalho de re-elaboração figurativa.
9.Como escrevem os redatores da revista: “O maneirismo parte de uma figura congelada
e, por condensação, deslocamento, anamorfose , estilhaçamento, etc a des-figura ou re-
figura”.
10. Para uma análise bem detalhada deste conhecido exemplo, podemos nos referir às
páginas de Nicole Brenez sobre “Brian de Palma e os psicotrópicos”. Notaremos, de
forma interessante, que a autora não utiliza jamais o termo maneirismo, mas inscreve
suas análises no espaço de uma reflexão mais ampla sobre o conceito, criado por ela, de
“efeito visual”: Trata-se de um encontro frontal, de um face a face, entre uma imagem já
constituída e um projeto figurativo que se consagra a observar, ou dito de outra forma,
um estudo da imagem pelos meios da própria imagem”, Da figura em geral e dos corpos
em particular.”
13. Podemos achar também nos escritos de Alain Bergala, no campo da crítica
cinematográfica, assim como em W. Friedlander, no domínio da história da arte
pictorial, um uso depreciativo do termo “amaneirado”. Walter Friedlander em
Maneirismo e anti-maneirismo e Bergala op. Cit.
16. Por ser não-histórica, isto é, construída fora de toda referência direta com o
maneirismo pictorial, esta definição é particularmente apta a interessar o cinema.
17. Klein insiste no caráter formal desta definição: ela não visa a dizer a verdade da arte,
mas a dar conta da arte unicamente na medida em que esta se relaciona com a técnica.
18. É conveniente aqui precisar que os efeitos constituídos pela obra de arte fazem
efeitos justamente para um espectador. É a razão pela qual Klein considera que “cada
artista deve, na medida ( evidentemente variável) em que este “visa” aos efeitos que
produzirá sua obra, interiorizar o espectador intersubjetivo ou universalidade que
sofrerão seus efeitos”.
19. Ibdi, op. Cit.
20. Klein precisa: “Se uma maneira é virtualmente arte, é em primeiro lugar porque arte,
segundo certas concepções correntes da expressão, é uma maneira de fazer alguma
coisa”.
29. Para Daniel Arasse, esta definição do maneirismo, por mais justa que seja até certo
ponto, é muito formal. Ela não dá conta do que , segundo ele, constitui a particularidade
do maneirismo pictorial, categoria não apenas conceitual mas ancorada na história da
arte e na História simplesmente: ser uma arte ligada a uma dupla crise- crise e
contestação dos meios de representação clássicos de uma parte, mas também, e talvez
sobretudo, crise de confiança na política de outro lado. Mas o maneirismo é apenas a
constatação de um estado de crise: ele busca, e é isto o que para Arasse constitui sua
singularidade, trazer uma resposta a esta crise. As reservas de Arasse são evidentemente
relacionadas a seu ponto de vista de historiador da arte e sua vontade de remontar às
origens do maneirismo pictorial, ao que o funda: não há uma única razão para que estas
sejam aplicáveis in extenso em relação ao campo do cinema. Apesar disso, veremos que
o maneirismo de Monteiro não é destituído de dimensão política. É necessário então
sublinhar que Klein refuta frontalmente a acusação de formalismo feita à sua concepção
de maneirismo: “Esta definição do maneirismo ou do amaneirado não é mais, em nossa
opinião, exterior, descritiva ou formal: “é a primeira, entre todas as que propomos aqui,
que nos parece isenta deste defeito. O maneirismo é verdadeira e essencialmente uma
“arte da arte”, enquanto que a arte não é, verdadeira e essencialmente, “a atenção prática
dirigida ao como objetivado sob o ângulo da produção de efeitos”. Em outros termos, o
maneirismo supõe e leva a sério uma “definição formal e exterior da arte” ( sublinhado
pelo autor).
30. digamos “relativamente concernido”, porque as fronteiras do maneirismo pictorial
nos parecem amplas, até mesmo flutuantes. Assim, Arasse considera, como bem o
indica o titulo de sua obra consagrada à questão, que, longe de representar uma
decadência do Renascimento, o maneirismo participa consubstancialmente do
Renascimento: “é, finalmente, toda Renascença que é maneirista”. D. Arasse e A.
Tönnesmann, A Renascença maneirista.
31. Bergala resume perfeitamente este ponto: “[O maneirismo histórico] se caracteriza
pela percepção que puderam ter pintores como Pontormo ou Parmigianino de terem
chegado “tarde demais”, depois de um ciclo da história de sua arte ter sido cumprido e
um certo nível de perfeição sido atingido pelos mestres que os haviam precedido há
pouco, como Michelangelo ou Rafael. A “Maneira” constituiria uma das respostas
possíveis ( com o Academismo e o barroco) a este passado próximo esmagador”.
33. No decurso de seu estudo, Klein não hesita em tomar exemplos em formas artísticas
bem diferentes.
34. É a razão pela qual Robert Klein, se bem o compreendemos, parece ver no
“virtuosismo” um elemento constitutivo do maneirismo: “O virtuosismo é (...) uma
primazia acordada a uma meta-técnica, a técnica da produção das formas que produzem
efeitos. O que conta então para a consciência não é mais o como da obra ( sua forma),
mas o como de sua produção. O virtuose, digamos, não “comove” ( o efeito direto das
formas é diminuído), mas suscita a admiração ( o efeito que tem primazia é produzido
por um “objeto” não sensível que age indiretamente: a habilidade do executante).
36. Klein, com efeito, precisa esta nota: “Por pura convenção do vocabulário, que
podemos negligenciar aqui sem prejuízo, a afetação tomou, na maioria de suas acepções
correntes, o sentido pejorativo de uma inter-subjetividade fracassada, onde o
personagem afetado empresta ao espectador que ele interioriza sua própria falta de
gosto; daí o ridículo desta conduta. Mas para a definição essencial da afetação, basta
sublinhar a objetivação da maneira- um ato neutro do ponto de vista dos valores, e que
pode ser bem ou mal realizado, mas que implica sempre ( daí sem dúvida a prevalência
do sentido pejorativo) um certo artifício: o obscurecimento do but ( fim, objetivo)
natural”.
37. Por exemplo: um ator que se prepara a interpretar uma explosão de cólera. O
problema não está para ele em se pôr em cólera, mas de fazer de tal maneira que sua
explosão seja vista, que seja clara, eficaz, que evite o lugar comum, etc; ou seja, é
preciso que o ator chame a atenção para seus efeitos, que ele interiorize o espectador”.
40. Segundo Monteiro, Le bassin de John Wayne, rodado entre as duas partes do deste
díptico, era em realidade previsto para ser realizado antes da Comédia de Deus. Com o
recuo do tempo, Monteiro considera aliás este filme com muita severidade: segundo ele,
“é um filme de alcoólatra, rodado num estado de embriaguês permanente”. Ele romperia
portanto, a ligação entre A Comédia de Deus e Bodas de Deus. Cf Emmanuel Burdeau,
“Não ceder um único pêlo, entrevista com João César Monteiro”, Cahiers du Cinema,
dezembro 1999.
43. Um plano precede este, que serve de fundo aos créditos do filme: o plano cósmico
de uma galáxia que efetua evoluções lentamente, acompanhadas por uma música
religiosa de Monteverdi onde exultam algumas aleluias. Pelo conjunto possuir um
caráter extremamente majestoso, este plano pode sem dúvida passar por uma
prefiguração do “movimento lento essencialmente majestoso” de João de Deus.
44. Nosso agradecimento a V. Campan por sua releitura crítica do artigo que nos
permitiu precisar este ponto.
50. S. Goudet considera, por exemplo, que a “própria duração dos planos (...) parece às
vezes “forçada” na primeira metade pela necessária homogeneidade do projeto ou pelo
“autorismo” do cineasta. S. Goudet, A comédia de Deus, Rigor e fantasia em Positif,
fevereiro 1996, p.22
51. É preciso entender a idéia de fraqueza das ações, no sentido em que raros são os atos
que implicam em repercussões narrativas maiores.
52. Não seríamos obrigados a concluir, no entanto, que o sentido da lentidão seja
privilégio da idade na Comédia de Deus. Há personagens maduros que agem com
precipitação. Assim, se a velha dama com a taça de sorvete se indigna com a velocidade
com que as jovens, neste momento na loja, abocanham seus sorvetes com grandes
lambidas indelicadas de língua, a maneira com que o açougueiro Evaristo se precipitava
violentamente diante das provocações do “selvagem” deixara, sequências antes, João de
Deus desconcertado e sem voz.
53. João César Monteiro utiliza este nome Max nos créditos da Comédia de Deus em
relação específica a seu trabalho de ator. A ressonância com Max Schreck- o intérprete
do conde Nosferatu no filme de Murnau- não é fortuita. Jean Louis-Leutrat havia, a
propósito de Recordações da casa amarela, notado e analisado em suas repercussões
fantásticas a semelhança entre o físico de João de Deus e do vampiro. Jean-Louis-
Leutrat, Vida dos fantasmas. Ver também sobre este ponto o que o próprio Monteiro
diz, em sua entrevista com P. Hogson, “Entrevista com um vampiro, encontro com João
César Monteiro”, Cahiers du Cinema, fevereiro 96, p.33.
54. Por prazer da anedota, notamos que João de Deus compartilha este traço singular
com o escritor M. Houellebecq.
55. Luc Moullet, Política dos atores. Se Moullet se interessa unicamente a quatro
grandes atores americanos ( Gary Cooper, John Wayne, Cary Grant e James Stewart), a
distinção que ele opera em seu prefácio é uma distinção geral, que funciona fora do
contexto americano.
56. João César Monteiro, a maior parte do tempo reservado, às vezes se deixa levar por
surtos de agitação desarvorada. Sublinhamos o momento na piscina em que ele reúne no
vestiário as moças que levara para a piscina. Antes de se engolfar pelas escadas que vão
conduzi-lo a elas, ele adota uma postura mefistofélica, levantando os braços acima da
cabeça e agitando seus dedos em castanholas , tal qual um abutre rompendo sobre as
presas, que pertence puramente ao overplay. Ainda mais também na cena em que
mergulha a cabeça na cornucópia com os ovos na qual Joaninha havia sentado antes. Ele
torna-se pouco a pouco uma criatura fantástica, que deixa livre curso à sua canastrice e
tem desejo de fazer, literalmente, qualquer coisa. Este traço é levado até o extremo em
Le bassin de John Wayne quando, de pé e nu, urina diante da câmera, ou quando ele
tagarela de forma interminável, em cena anterior, bebendo num chopp em forma de
falo.
57. Ch. Ortoli. “Les déchirures du male”, A propósito de Harvey Keitel, Lettre du
cinema
59. Embora localizada, não menos importante. A arte poética de Monteiro é também
uma arte do detalhe.
60. Para aprofundar a intensidade desta aparição, Monteiro aplica aqui o princípio
bressoniano do efeito anterior à causa. Ele escolhe primeiro mostrar o personagem que
reage à visão de Joaninha, antes de nos mostrar a própria visão resplandecente. Sobre a
importância do efeito antes da causa para o cinema, Pascal Bonitzer, Le champ aveugle.
61. João César Monteiro “Que Dieu me vienne en aide”, Traffic, 1991. Outra marca de
seu gosto pela afetação, Monteiro assina este artigo fazendo preceder seu nome de uma
partícula, o que contribui a tornar mais incerta ainda a distinção entre João de Deus e
ele. Além do mais, veremos também aí uma homenagem ao Marquês de Sade.
63. é a razão pela qual João de Deus pode brincar com as palavras e, propondo à
Joaninha vestir seu quimono de seda para participar da cerimônia da champanhe, pode
sublinhar que, embora seja conveniente vestir-se para a cerimônia, a casa não é tão
cerimoniosa assim.
64. Antes de fazer Joaninha entrar na grande peça do apartamento na qual vai se
desenrolar o essencial da cerimônia, João de Deus abre uma grande cortina em duas
pans, com a intenção de fazê-la entrar literalmente em cena.
68. Sem estarmos absolutamente seguros, parece-nos que esta expressão é perfeitamente
apropriada para Jean Michel Frodon.
70. Sobre a percepção de aceleração do tempo como uma das três figuras do excesso
características da “sobremodernidade”, ver Marc Augé, Não-lugares , introdução a uma
antropologia da sobremodernidade.
71. Sobre isso, notaremos que o retrato pintado por d’Allones se aplica como uma luva
a Monteiro:”um ar estranho,(...) e uma natureza estranha, que intriga (...). uma figura de
inadaptação à sociedade en décalage, que mantém com o mundo uma relação, assim
como este a ele, individual e portátil, que fascina. Um inadaptado que, no entanto, pode
se adaptar a toda profissão, todo meio social, toda situação, apesar de permanecer
inalienável. Um indivíduo que vem de lugar nenhum e que vai para lugar nenhum”.
72. A idéia de hiper-arte, destilada por Klein, tanto quanto a ligação que estabelece
entre o virtuosismo e o maneirismo, convida-nos a considerar que o maneirismo é
portador de uma dimensão de excesso. Dentre os traços definidores do maneirismo
pictorial, se encontra a idéia de que “a graça excede a medida”.
Notas do tradutor:
1. Que Dieu me vient en aide : Em francês no original. Paráfrase irônica com o título
de um dos capítulos das Meditações de Descartes, De Dieu qui vient à l’idée.
2. Inciptu: consiste nas primeiras palavras de um texto literário ou nas primeiras notas
de uma partitura. Um parágrafo introdutório, explicativo.
3. Bartleby, o escriturário, uma história de Wall Street: Novela de Melville, publicada
em 1853, e que, segundo o autor, fora em parte inspirada pelas idéias de Ralph Waldo
Emerson, sobretudo seu ensaio, O transcendentalista. Contratado num escritório
próspero como escriturário, Bartleby é um personagem que se recusa a cumprir
qualquer dever ou atividade que lhe são prescritas no trabalho, respondendo sempre
com um “I would prefer not to”. Tão radical é a singular intransigência que este acaba
por morrer de fome, com o indefectível: “ I would prefer no to”.O personagem é
analisado por Deleuze em seu Crítica e clínica, num texto chamado “Bartleby, ou a
fórmula”.
Fabien Boully
Tradução: Luiz Soares Júnior
Die for Mr. Jensen. John Cassavetes: Uma mulher sob influência.
Certos atos extremamente simples, em Uma mulher sob influência, a princípio nos
parecem incompreensíveis: este homem ( O. G.Drun) que Mabel encontra no bar, cuja
nuca ela acaricia desde que se dá conta de sua presença, para em seguida lhe perguntar
pelo nome, rindo, ela o conhecia ou não? Esta questão permanece indefinida ( trata-se
de um amigo próximo? parente? amical porque ainda desconhecido, inteiramente sob a
esfera do possível? amical por se assemelhar a qualquer outro homem?), e esta
indefinição é o que leva Mabel a reconhecer no dia seguinte, neste personagem casual, a
figura excessivamente íntima de seu marido Nick ( Peter Falk), e ao filme de colocar em
seu frontispício a silhueta de Garson Cross como o emblema da seguinte questão: o que
posso saber de um corpo? há algo a saber sobre um corpo, a reconhecer? Isto já não
equivaleria a uma admissão de que, de antemão, ele nos escapa? Uma mulher sob
influência é um filme concernido pelo princípio que talvez mobilize da melhor maneira
as potências figurativas da cinematografia: a plasticidade das criaturas.
Por outro lado, alguns fenômenos muito complexos, delicados ou que se encontram
entre os mais arcaicos na história da representação sofrem aqui um tratamento
resolutamente claro, não mais sendo trabalhados por valores indefinidos, mas agora da
definição: a loucura, a fraternidade, o que significa ser um ator. Encontram-se assim
implicados, de forma surpreendente mas com grande rigor, certos procedimentos
descritivos típicos do cinema. Cassavetes assinala um dentre eles, que identifica o
trabalho de construção de seu filme à tradição de experimentações modernas sobre a
estruturação de uma obra, por exemplo, a força que uma síntese temporal atribui a
temporalidades frágeis ou da discrição que é conveniente na abordagem de fenômenos
devastadores: “Quando vemos esta mulher sozinha ao telefone durante dois minutos, é
preciso sentir que ela pode enlouquecer.Na vida, o orgasmo ou o tédio podem nos levar
à loucura. Mas como descrever na tela que uma mulher pode enlouquecer por ter ficado
sozinha por trinta segundos?” A obra de John Cassavetes pertence à tradição de
Faulkner e Schoenberg , obras que trabalham as profundezas das formas, dinamizada
por esta idéia inicial de que “as formas da arte registram a história da humanidade com
mais exatidão que os documentos”, uma vez que, escrevia ainda Adorno, “ a arte se
dirige ao sofrimento real”, e não a uma aparência das paixões.
Spaghettis?
A loucura, em Uma mulher sob influência, aparece como um dom: no sentido do dom
de si e do talento que nos foi proporcionado. É o gênio da inventividade transbordante,
de que Mabel não cessa de dar provas na primeira parte do filme, antes de sua
internação, excitada por tudo o que ela encontra , inclusive a família, profundamente
atenta para com todos com quem ela interage, mesmo que apenas por um instante.
Sua loucura é aquela da grande solicitude, cujos antecedentes encontraremos na
gentilezza de São Francisco de Assis e de seus companheiros, e de imagens- sobretudo
gestos- nos Onze Fioretti de Saint François d’Assise, construídos sobre uma alternância
permanente entre o patético e o burlesco. Mas se o filme de Rossellini muda de registro
emocional de uma seqüência à outra, o personagem de Mabel fulmina de uma réplica à
outra: “Get back to your coffin!”, grita ela ao pobre dr. Zepp ( Eddie Shaw),
provocando a hilaridade em pleno furacão de sua grande e dolorosa cena de histeria.
Pois o dom de si provém desta faculdade de esposar todos os registros “pathiques” 1, de
captar ao menor frêmito cada afeto, cada impulso emocional do outro, disposto a
prolongá-lo por excesso, já que este ressoa intensamente em si. Ela preside à mesa do
almoço com os spaghettis, ordena às cerimônias de alegria, é sempre o centro, ora triste
ora ardente da reunião ( operários, crianças, amigos, parentes), suas aparições
subitamente organizam um espaço até então amorfo: Mabel, tal como é construída pela
mise en scéne, não é louca ao ponto de uma diferença irreparável para com os outros, ao
contrário: ela se encontra no próprio princípio da comunidade humana, Mabel recolhe a
sociabilidade de todos, até o ponto drástico de tornar-se seu único pretexto e meio de
advento.
Nick, ao contrário, não cumpre o que promete ( firme decisão de não partir para uma
noite de trabalho: logo o encontramos no canteiro de obras), não o conclui ( cena da
celebração fracassada que ele organiza para o retorno de Mabel da clínica: “I can’t do
it... Do you want me to do it?”) ou não sabe o que faz. Este último caso dá lugar à cena
mais sutil de Uma mulher sob influência, a seqüência em travelling do acidente de um
operário, “Eddie the Indian” ( Charles Horvath), ameaçado por Nick, quando no entanto
este personagem era o único que não tinha zombado da internação de Mabel. Súbito o
operário cai, desliza ao longo do imenso declive de pedra do monumental canteiro, que
se assemelha à cratera de um vulcão, compreendemos mal a causa desta queda
ocasional, entendemos apenas que Nick é o culpado, não vemos se o operário está
morto ou ferido; o tratamento plástico, os faux-raccords magníficos tornam o evento
ilegível, mas vemos perfeitamente que este concentra a angústia e o sofrimento de Nick,
atualiza sua estupefação. A cena do canteiro, de clima realista, se encontra estruturada
por um complexo: o da culpabilidade experimentada por Nick em relação a Mabel,
encarnada na forma de uma queda de pesadelo, literalmente, uma catástrofe.
A figura de Mabel, construída sobre o princípio desta infinita solicitude segundo a qual
a compreensão do Outro não implica na capacidade de compreender as coisas, leva o
filme a renovar as modalidades da descrição: deste ser diante de mim, o que me foi dado
a ver, o que permanece para sempre inassimilável: seu corpo, seu gesto, seu sopro?
Estes elementos esposam de maneira exata a forma de sua presença no mundo? que
traços seus eclipses ou sua desaparição deixariam? E por exemplo, a propósito da
própria Mabel: quem a toma por uma louca? São, notadamente, os transeuntes aos
quais, com seu vestidinho curtíssimo, que evoca irresistivelmente o de Barbara Lodan
em Wanda ( o outro grande filme americano moderno sobre o desespero das mulheres)
ela pergunta a hora com seu entusiasmo típico, salta e brinca diante deles, a feliz
excitação de esperar pelo ônibus que trará suas crianças da escola. É Mister Jensen
( Mario Gallo), para quem as crianças deverão morrer, ao dançar O lago dos cisnes, e
que não aprecia nada a ostentação da expressividade infantil. Parece-nos agora
impossível subscrever à leitura deles: a decifração do comportamento de Mabel apenas
pelo diagnóstico da loucura, a própria tarefa da interpretação mostram-se terrivelmente
insuficientes.
No entanto, esta estrutura dupla, se afirma em si algo a respeito da função do ator: que
seu trabalho não é uma metáfora, algo alheio à vida, um reflexo esvaziado de
substância, mas o que anima a vida em seu princípio, como desejo de “mise en relation”
2 e troca- ,esta não se apresenta de uma forma reflexiva, como nos filmes de Bergman,
por exemplo, onde a importância e a gravidade da questão colocada pelo ator ( a adesão
a si mesmo, a necessidade do duplo, etc) constituem o seu próprio fim. O filme impede,
interdita explicitamente semelhante fechamento, em favor de uma réplica de Mabel na
última seqüência, no momento em que ela desce novamente as escadas, depois de ter
enfim feito as crianças dormirem: Mabel se volta para Nick e subitamente, com uma
voz nada histérica, perfeitamente natural, mas de um natural que produz uma terrível
cisão, Gena Rowlands lança a seu marido ( Peter Falk/ John Cassavetes): « You know
I'm really nuts ». A irrupção de um corpo real, do corpo de Gena Rowlands, a serviço
desta “deformação” vocal , age no sentido de nos alienar definitivamente do referente:
pois o atordoamento provocado pela súbita passagem de um corpo verdadeiro remete o
conjunto da ficção ao registro da representação: nós não estávamos assistindo à aparição
de uma presença, apenas ao magistral espetáculo da plenitude criativa. Estávamos
vendo e entrevendo a totalidade do trabalho do ator, mas talvez não tenhamos visto nada
do próprio ator, que sem dúvida é inteiramente investido pelo personagem.
Ver um corpo, realmente vê-lo, vê-lo igualmente onde ele não se encontra, em seu gesto
e nos gestos que ele não executou, segundo a vibração de seu sopro e em suas
intermitências. O que o filme nos descreve da experiência sensitiva de Mabel, de sua
invenção permanente de eventos afetivos e ginásticos; estas matérias que às vezes
invadem a imagem quando Nick, graças a quem as paisagens adentram o filme, vem
ocupá-la (as torrentes de água, de areia, súbitas homogeneidades do plano
excessivamente vazio ou cheio, evocação da imagem em sua textura); o que o filme nos
descreve da apreensão e da inteligibilidade dos atos; tudo sempre nos conduz ao plano
mais sensível dos fenômenos. E isto nos indica uma função do ator segundo Cassavetes:
ele é aquele que se põe no limiar da inconsistência das coisas, onde a sensação não mais
constitui lei, onde a experiência ainda não começou, onde tudo ainda está por ser
inventado, neste lugar onde o primeiro, onde o mínimo gesto pode criar um mundo e o
encontro com o desconhecido. Talvez seja isto o que suscita a loucura, ser a matéria de
uma pura possibilidade, do aparecimento eventual e incondicionado de um movimento
ou de um afeto extraordinários.
Which self?
O ator em Cassavetes vem efetuar uma improvável ciência da subjetividade, no modo
de uma infinita e sem reservas abertura ao Outro, que passa também por um
reconhecimento da relatividade de si. Mabel aceita, acolhe, busca o outro como se
tivesse fome dele, e encontra, ao longo do filme, um número inacreditável de gestos
para representar seu desejo. O que é um corpo, do qual sou soberano, como tocar a este
homem? A atriz trabalha sob o império destas questões, que não admitem
necessariamente respostas, que não visam igualmente o conhecimento, mas que a fazem
advir, em cada uma de suas espetaculares entradas em cena, como a portadora do
mistério da pessoa. E sua criação própria consiste em tornar este mistério inesquecível,
em jamais o menosprezar ou recalcar, quando este é vivido na experiência comum.
Nisto, sua conduta se torna insuportável para quem prefere viver no esquecimento da
“precariedade das coisas”, que enxerga a si mesmo como o guardião do Ser e dos outros
( aí temos a tirada assustadora e burlesca a respeito da mãe de Nick: « I don't like this
woman in my house guarding the staircase. She's guarding the staircase from me. Up
above are my children in my home and she is the kiss of death ») ou guardião de si
mesmo: Mr. Jensen, que se recusa a dançar e brincar de morrer, recusa-se a assistir à
morte do outro, recusa a evidência do descontínuo e da intermitência.
Mabel: I don't know what you want. How do you want me to be?
Nick: Yourself.
Mabel: You mean funny or sad or happy or shy, or what? Which self?
Uma das invenções de Mabel, talvez a mais extraordinária, leva-a a se inclinar sobre um
corpo: um dos convivas, Willie Johnson ( Hugh Hurd), um operário negro levado por
Nick para o almoço, põe-se a cantar, ele canta Verdi, Celeste Aida, Mabel se aproxima,
se inclina, muito próxima a seu rosto, muito próxima de sua boca, muito próxima de seu
canto. Ela busca o segredo da voz, ela quer descobrir o segredo da beleza, ela se
aproxima deste homem como se estivesse a redefinir o corpo do outro, e como se ela
visse aquilo que só poderíamos ver a partir de sua intervenção: ela vê a sensação do
canto, e dela nos oferece a intuição.
O Ser é aquilo que exige de nós criação para que dele tenhamos a experiência.
( Maurice Merleau Ponty).
Notas:
1. pático: Termo da devoção mística: refere-se àqueles que permanecem sujeitos às suas
paixões.
2. Em francês no original: colocar em relação, relacionar.
Nicole Brenez, De la figure en general et du corps em particulier. L’invention figurative
au cinéma.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Por que acho que Tourneur é o maior dos cineastas? Tomemos como elementos de
resposta os dois únicos filmes que tivemos a chance de ver dele ultimamente: Leopard
man e Wichita. De Leopard man, pode-se dizer que é o melhor realizado, o mais
perfeito e representativo da série dos três filmes produzidos por Val Lewton ( é o
último. Os dois primeiros são Cat people e Walked with a zombie). Um cenário
praticamente único, uma rua, uma rua principal. Figurinos estereotipados, atores que
tem quase todos o mesmo talhe e os mesmos traços. (...). Enfim, quase todos. Uma
exceção: um personagem- central, principal ele também, embora secundário nos
créditos- que organiza o roteiro, que dá as cartas, que tem as cartas na mão.Desta
mediocridade, desta pobreza de contrastes, Tourneur tira o máximo, o filme que mais
perfeitamente dá medo da história do cinema: a estrutura da história ( uma rua, uma
mulher que anuncia o que vai se passar, alguns personagens em miniatura, como
bonecas feitas do mesmo molde) não é nada além disso ( nenhum a priori teatral ou
linear, nenhuma ambiência onírica e poética convencional), isto que se sabe o tempo
todo- confusamente- e ao longo do qual se avança, enquanto a monótona espera por
alguma iluminação que viesse pôr um termo ao nosso medo nos mantém na angústia
total, a angústia ordinária. Angústia causada, durante todas as etapas deste trágico e
triste trajeto, por um galho de árvore que se quebra sob o peso de um leopardo assassino
e invisível ou um rastro de sangue que escorre sob uma porta. Tudo sob uma
transparente luz, trans-lúcida.
E tudo isto diante dos olhos do seu velho amigo Jacques Tourneur ( com quem ele
rodou,seis anos antes, um pequeno filme intimista, Stars in my crown, uma série de
vinhetas sobre a vida de uma pequena cidade americana, um filme que é para ambos a
mais bela lembrança e o mais belo momento de suas vidas...), um velho amigo com
olhar cético e divertido ( mas sempre correto) que devia estar se perguntando, porque
(,...) “ ele adorava a idéia do filme: homens que conduzem rebanhos durante meses e
esperam muito tempo pra tomar um trago. Quando o fazem, bebem muito e quebram
tudo. É real. Isso se passou, na época”, um velho e divertido amigo que devia estar se
perguntando, diante de Joel McCrea, incomodado em suas roupas de justiceiro em
missão implacável, como ao mesmo tempo e de forma bem correta filmar as inépcias de
um roteiro para crianças retardadas, e esta violência que explode mortalmente e que,
para ele, constitui a força da fábula. Na verdade, Jacques Tourneur não está se
perguntando por nada, porque ele escolheu: ele filma ao pé da letra e de encomenda os
protagonistas entediados e fantasiados desta mascarada histórica que reconstitui as
historiazinhas verdadeiras do Oeste folclórico ( e nos entediamos como eles ao vê-los
ocupar da melhor forma que lhes é possível todo espaço impossível a preencher do
Cinemascope, que no entanto Tourneur consegue ocupar inteiramente: mas nesse caso
trata-se de um tédio formidável, de uma inteligência e precisão fotográficas como só
nos podem mostrar dois mecanismos que possuem para nós, hoje em dia, status de pré-
história, mais de cem dentre os mais belos- e dentre os piores- westerns. Tudo está no
cadre. Nada de fora de campo. Nada existe- e isto é mais do que suficiente- senão a
complexidade fiel e minuciosamente transcrita de um découpage impossível de se
acreditar mas possível- e para Jacques Tourneur tudo é possível- de ilustrar,de filmar,
tal qual); mas Tourneur filma também a morte, em pessoa: no cadre de uma janela, no
cadre de uma porta, arrastados por duas balas perdidas e precisas, uma criança e uma
mulher, ( culpados simplesmente por serem parentes dos atores do drama), passam, num
piscar de olhos, na velocidade mais terrível e mais inexorável, do estado de vida ao
estado de morte. O que ainda se movia há um instante é marcado definitivamente pelo
selo da imobilidade, da rigidez. A morte é a parada( arrêt) brusca e irreversível de toda
vida, de todo movimento. E não há nada mais a dizer. “Para Jacques Tourneur, os
personagens de uma história são perfeitos desconhecidos, cujo mistério não deve ser
esclarecido ou explicado” ( Jean Claude Biette). Acrescentemos: nada existe além da
fidelidade a mais escrupulosa possível ao découpage ao qual Tourneur escolheu se
submeter, nada existe além do que está na tela, no cadre. O cinema de Jacques Tourneur
é sim o cinema do invisível, mas de um invisível que é capaz de se ler e se desenhar
sobre a tela: os traços estão lá, as pegadas, e as sombras, e basta, em seu pequeno fora
de campo apaixonado e pessoal, não velar os próprios olhos diante da persistência do
real, destas manchas do real que são as efetivas marcas sobre a tela de uma experiência
única do invisível; basta olhar o filme, isso dá medo, é assim, assim se vê.
Tourneur não existe. No momento de seu esplendor ( ou seja, para ele, quando filmava
em Hollywood e, para nós, quando o descobrimos, deslumbrados, no começo dos anos
60, nos cinemas dos bairros podres, e sob forma de Versions françaises tão podres
quanto), ele já estava além ( il était dejá ailleurs). Além: inconsciente de sua própria
importância, arrasado de tanto cinema, mas muito intoxicado de admiração por um
modelo por essência fora de alcance ( seu pai, Maurice, cineasta prestigioso que
Jacques, toda sua vida, se persuadiu de jamais poder igualar),e sobretudo distanciado de
seus colegas, os mais dotados artesões do filme B ( Ulmer, Dwan, Heisler, Ludwig), por
uma espécie de orgulho de último minuto que sempre lhe permitiu saber que ao fim de
contas o gênio era ele.
(...) Jacques Tourneur: “Reparei que , na maioria dos filmes, os atores tem tendência a
gritar. O mesmo diálogo, dito bem mais baixo, é melhor apreendido, tem mais
intensidade. Fora isso, o próprio som é muito importante, não gosto de misturar os sons.
Sigo sempre de muito perto a sincronização e montagem sonora de meus filmes. Às
vezes tomo grandes liberdades. Se alguém vai falar, se levanta ou vai caminhar, corto
todo o som e não se ouve o ruído dos passos. Se um malfeitor entra numa casa e vai
subir uma escada, sei que, depois eu ir embora, os técnicos vão manter todos os sons, a
escada,a porta, os passos. É por isso que faço minha própria dublagem de som no
estúdio. Assim que o ator terminou de falar ou de abrir a porta, corto o som e ocorre um
grande silêncio, enquanto ele atravessa a sala ou sobe a escada. Assim,eu sei que
quando o filme estiver terminado e eu não estiver mais lá, os técnicos não farão besteira
na dublagem. Com freqüência, faço isso: deixo primeiro o ator interpretar a cena, como
ele quiser. Depois, lhe digo: Muito bem. Refaça exatamente a mesma coisa, mas fale
duas vezes menos forte. Me criticam dizendo que dessa forma minhas cenas ficam um
pouco sem brilho ( ternes), inexpressivas. Talvez tenham razão, mas acredito que isso
lhes acrescenta, de qualquer modo, um elemento de verdade”.
Tudo está dito. Que outro cineasta hollywoodiano ( salvo talvez John Ford, que
desconfiava de tal maneira dos montadores que evitava filmar um metro de película a
mais, que poderia servir para forjaram uma outra versão às suas costas), que outro
cineasta desenvolveu um sistema holywoodiano bis, duplo- sempre preservando-o
previamente das alterações que Holywood número 01 com certeza decidiria impor?
Nenhum, não conheço outro.
O mais miraculoso é que a obra de Tourneur permanece exatamente igual ao que ele
descreve. Revejam Appointment in Honduras ( se puderem arranjar uma cópia):
efetivamente, vocês vão ouvir atores, Ann Sheridan em particular, que não gritam.Coisa
rara: personagens que murmuram seu texto. E , claro, toda a mise en scéne que se segue:
uma maneira única( e inimitável) de filmar os atores como dóceis fantasmas, sombras
familiares. Esta ternura pelos atores- espectros ( revenants), aliada a uma insensata
preciosidade do trabalho sobre as cores ( a robe amarela de Ann Sheridan, que
literalmente desbota, eclipsando tudo ao redor dela), é isto o que ainda hoje constitui o
gênio inacreditavelmente tímido do cinema de Tourneur.
Um cinema que, confessemos tudo, nos é a cada dia mais inútil, a nós, que esperamos
tolamente dos filmes que não continuem a se atolar neste neo-classicismo amorfo,
último sobressalto de cine-teleastas desesperados por terem perdido a receita
( estúdios+ grana+ engenhosidade dos artistas-artesões + inventividade de uma arte
industrial em pleno boom) do velho verdadeiro cinema clássico. Um cinema cuja fase
perversa mais consumada é representada por Jacques Tourneur.
Então, põe-se uma única questão: que fazer desses filmes tão perfeitos, destas essências
de obras-primas, quando por acaso os encontramos? Esta questão se pôs no domingo
passado ( exatamente, 28 de outubro de 1985) quando Brion exibiu no Cinéma de
minuit, na FR3, um dos mais raros filmes de Tourneur, Canyon passage ( 1946). (...)
este Tourneur trata-se de uma absoluta maravilha. Mas para realmente vê-lo, para
apreciar sua inteligência clássica, que esforço é preciso fazer! Esquecer de forma ativa
os filmes com que o cinema e a tv nos galvanizam há anos, desaprender os “frou-frous”
de imagens e de sons que nos jogam na cara em golpes furiosos de zooms, mudar o
ritmo da visão. É preciso lavar os olhos. Unicamente sob esta condição ( que é mais
fácil de enunciar que de “preencher”) pode-se penetrar em Canyon passage: da abertura
mizoguchiana ( em primeiro plano, a chuva respinga sobre o teto, um cavaleiro se
aproxima,a câmera desce para se pôr à sua altura) a uma sucessão de preguiçosas
vinhetas que desfilem no ritmo mais speed imaginável- o ritmo da elipse. Disputas de
sombras sobre um muro, um ladrão visto de relance que foge por uma janela quebrada,
paisagens de sonho atravessadas com a velocidade do technicolor: todo Wenders aqui
desfila em trinta segundos! E ainda: peso opressivo dos corpos, sentimentos em
suspensão. Como nesta inacreditável provocação de Bryan Donlevy a Dana Andrews:
“Você faria melhor?”, ao acabar de beijar sua noiva, Susan Hayward. E Dana não perde
tempo: tasca em Susan um guloso beijo na boca, Brian permanece imóvel, seu corpo
atarracado teso. A moça em um instante é eclipsada. Passamos aí a uma outra coisa.
Tourneur não existe, ele é o único. Não o último cineasta: o único. Canyon passage: ao
mesmo tempo uma saga americana, um western documentário, uma história de paraíso
perdido, uma epopéia doméstica, o afresco de mil desejos que se entrecruzam e o mais
belo melodrama homossexual jamais encenado.
Ninguém filmou assim antes, ninguém filmará assim depois. É isso. Lumiére inventa as
imagens. Tourneur se encarrega de destruí-las. Cinema, anti-cinema, depois chega. Bom
dia, Madame Televisão.
Jacques Tourneur: Alguém disse outro dia uma coisa divertida: uma flor que colhe a si
mesma comete um suicídio”. ( Câmera/stylo número 6, maio 1986).
Louis Skorecki.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Posto que, para quem tem dois olhos para ver e ouvidos para escutar ( o cinema também
é som, não é?), trata-se do mais belo filme francês destes últimos anos-, falarei em
primeiro lugar de Truffaut ator. E antes de tudo, de sua voz. Esta voz é um sintoma: o
sintoma da preguiça e da imbecilidade de uma boa parte da crítica de cinema na França.
A preguiça e a imbecilidade se notam quando se ouvem os epítetos “monocórdio,
bressoniano”, quando nesta voz ressoa totalmente um outro som, uma emoção alheia às
modulações expressivas habituais. Ora, a voz de Truffaut é, do começo ao fim do filme,
a todo instante tensa, profunda, perturbadora. A inteligência de sua interpretação é
marcante: “monocórdio, bressoniano”- estes enunciados sugerem, a quem não viu o
filme, ( e estão aí para desencorajá-los a ver, é claro), alguma atonia e mortificação da
voz em proveito do texto. Mas se o diálogo é constantemente admirável, a voz de
Trufrfaut o leva à incandescência, com um acento violento, vigoroso, o próprio tônus da
paixão. O que ouvimos ao longo de todo o filme na voz de Truffaut, de Julien Davenne,
é esta violência da paixão- da idéia fixa e do coração inflamado- e também uma espécie
de eco amplificado do grito mudo dos mortos, da muda solicitação, exigência
infatigável, súplica dos mortos, em sua extrema debilidade diante do tempo e do
esquecimento. Tal é o personagem e tal é o ator, perturbador e admirável. E seria
preciso falar também do olhar de Truffaut, destes olhos realmente estranhos, sem
nenhum reflexo, que sugerem uma indefectível angústia. Não se compreendeu que não é
sem razão que Truffaut encarna seu personagem, e que neste, Julien Davenne, o ator e o
personagem se entrelacem de forma tão estreita. Raramente um filme, enquanto
enunciado cinematográfico, ou conjunto de enunciados, foi capaz de bombardear de tal
forma as marcas do sujeito da enunciação como este aqui. Para dizer as coisas com mais
simplicidade, raramente um cineasta “ se pôs” , se implicou a este ponto- implicando
seu próprio corpo- em seu filme. E implicando seu corpo ( que se capte toda a
ambigüidade da palavra,em relação a este filme fúnebre), até chegar aos seus mortos,
mesclando os mortos de Julien Davenne aos mortos de François Truffaut, na capela
ardente onde culmina o filme.
O filme também nos apaixona porque o sentido flui e reflui em uma dupla direção: do
general ao mais particular ( o sentido que este filme tem para Truffaut, a paixão de
Truffaut), do particular ao mais geral ( a ligação tão secreta quanto notória do cinema
com a morte, a relação que nós, espectadores, interpelados um a um, temos com esta
moderna capela ardente , onde o amor se nutre da morte, o cinema como arte necrófila).
Esta história tão singular, tão avessa em aparência às preocupações mundanas, tão
semelhante ao seu herói solitário- mas sim, encontramos filmes que se assemelham aos
personagens que figuram neles- é realmente um manifesto do cinema, e Truffaut não é
apenas autor, ator e personagem, mas também crítico, tudo isto enredado, cerrado,
inextricável. A câmara verde, a capela dos mortos, com a fotografia de Cocteau e até
mesmo a de Oskar Werner ( curioso arrependimento do autor do “Diário” de
Fahrenheit...): é claro que estas câmaras obscuras, onde brilha uma chama às vezes
material, o fogo sutil de um delírio de eternidade, estas câmaras são o cinema. É claro
que estes cadáveres captados no limiar de sua morte, sobre filmes de atualidades, em
movimento ( créditos, com a superposição do rosto de Davenne-Truffaut en poilu1), ou
fixados, não para sempre, mas fragilmente sobre placas de vidro ( quebradas pela
criança muda em uma cena breve), é claro que eles nos transmitem a verdade do
cinema. E é claro que é preciso aqui citarmos André Bazin, em sua dimensão mais
metafísica, mais religiosa: “Só se conhecia, antes do cinema,a profanação dos cadáveres
e a violação de sepulturas. Graças ao filme, pode-se hoje violar e dispor à nossa vontade
o único de nossos bens temporalmente inalienável. Mortos sem requiem 2, eternos re-
mortos do cinema!” ( “ Mortos todos depois do meio-dia, em O que é o cinema?)
Manifesto do cinema. Bazin em seu texto denunciava o que ele chamava uma
“obscenidade ontológica”, esta pornografia da morte que dá o valor ignóbil de certos
documentários, ao mostrar “ na dura” , de forma direta, homens realmente na beira da
morte; e o escândalo desta morte violenta, vendida como documento sensacional; e o
escândalo desta morte para sempre privada de paz, transformada em história de seu
próprio calvário pelo cinismo das projeções permanentes. Em aparência, a história de
Julien Davenne, inspirada no Altar dos mortos de Henry James ( também ele presente,
através de uma fotografia e uma breve biografia, na capela de Truffaut), e de alguns
outros textos do mesmo autor, diz-nos exatamente o contrário, já que trata da
importância vital, se assim podemos dizer, de conservar a imagem dos desaparecidos.
Ns realidade, o filme sustenta o mesmo discurso que Bazin, é a mesma preocupação que
o anima.
Conservar a imagem dos desaparecidos, sem dúvida ( e qual filme não se mostra
comovente ao mostrar como vivos os desaparecidos?). 3 Mas não a imagem de sua
agonia ou de seu cadáver, pois aí começa o que devemos chamar ( e aliás o que Bazin,
no mesmo texto, designa por) de perversão. Julien Davenne não é de forma alguma um
perverso, um necrófilo, não possui nenhum “gosto vicioso por cadáveres”, como diz o
narrador do Bleu du ciel; seu amor pelos defuntos é destituído de todo erotismo. Tal é o
sentido, perfeitamente claro, da cena- aliás, uma das mais belas do filme- onde Julien
Davenne, tendo encomendado uma imagem em cera da mulher desaparecida, reage com
um horror violento diante da realidade desta fantasia ( realidade no entanto impossível
de ser melhor “realizada” pois,se vi bem, esta figura de cera é de fato a atriz que
encarna a morta, maquiada para a circunstância, como nos filmes de Cocteau, com olhos
abertos pintados sobre as pálpebras fechadas) e exige que esta seja destruída pelo
escultor.
Nenhuma explicação nos é dada sobre o horror, quase pânico, do personagem. No
entanto, é evidente que esta “figura de cera”, este corpo duplamente inanimado, aparece
como uma monstruosa paródia da morte, e que esta, de alguma forma, a leva a morrer
uma segunda vez; daí a necessidade de destruí-la, de matar esta imagem sacrílega. Esta
cena, pelo menos do meu conhecimento, não está em James, ela é muito
cinematográfica para não ser reivindicada unicamente por Truffaut: como não ver que
Davenne, na ocasião, se comporta exatamente de forma contrária ao personagem dos
personagens de Buñuel( Archibaldo de la Cruz , por exemplo?) Esta cena faz Buñuel
parecer superficial. Como não ler em filigrana um desgosto, um horror, um protesto
diante de um certo impudor do cinema, desta facilidade suspeita e ignóbil em produzir
os corpos,a imagem dos corpos, em lugar do que deveria ser interditado à
representação? 4
Assim como James, Truffaut não crê na existência de relações sexuais ( se preferirem:
não crê em sua capacidade de representação) se, como James, ele parece nos dizer que
unicamente a arte, enquanto obra de amor, poderia preencher esta falha, esta
inexistência...Poderia, mas ela fracassa, pois a arte é indefectivelmente lacerada pelo
que a assombra, a famosa” imagem no carpete” , ou, no Altar dos mortos, no Quarto
verde, este círio faltando necessariamente no edifício de fogo, já que ele pertence ao
guardião, ao oficiante e à testemunha, ou seja, ao artista que não pode fruir de sua obra.
Truffaut: Justamente, as cenas que prefiro são aquelas em que James Stewart leva Juddy
ao costureiro para lhe comprar um tailleur idêntico ao que vestia Madeleine, o cuidado
com que ele escolhe os sapatos, como um maníaco... ( O cinema segundo Hitchcock).
A diferença é que não se trata, repito, no Quarto verde de “dormir com uma morta”, mas
de lhe conservar o amor intacto. Mas o essencial é que a tentativa é igualmente
impossível, igualmente desesperada ( na cena que se segue à do manequim de cera, no
cemitério, é justamente este desespero que Davenne confessa sentir ao túmulo de sua
esposa). O “maníaco”, ou seja, o homem refém do impossível, é uma exigente definição
do artista.Que um filme, tanto quanto um livro, não possa realmente conservar vivo um
morto ou um amor; que, como bem escrevia Proust ( presente também em efígie na
capela do filme), “ nosso coração muda, e esta é a pior dor”, esta é a corda de que O
quarto verde retira sua vibração essencial. Que a comunicação com o que perdemos seja
impossível, o que sem dúvida é representado pela criança muda no filme ( irmão de
Antoine Doinel e do menino selvagem, como bem nos lembra a cena do roubo) mas
também que esta impossibilidade é a prova de uma fidelidade que é a única coisa que
conta.
Pode-se amar os mortos tanto quanto aos vivos; pode-se-lhes consagrar todas as
atenções; pode-se, incansável e unicamente a eles, falar-lhes a sós: são mudos e não nos
respondem. Então, é preciso morrer. Diante do argumento do filme ( que é igualmente o
da novela) , resumido assim, compreende-se os escárnios com que por ocasiões o
público francês acolheu o filme. Mas quem não vê que “os mortos” aqui são apenas a
imagem extrema destes a quem perseguimos com nosso amor, e que não podem dar, de
maneira nenhuma, a resposta secreta que deles esperamos? Aí, estes escárnios adquirem
um outro sentido. É arriscado no cinema, mais que em outras artes, tentar fazer escutar a
linguagem nua do amor: Truffaut, com O quarto verde, correu ao máximo este risco. E é
isto o que faz de O quarto verde obra tão bela e tão forte”.
Notas:
1. Em francês no original. Apelido dado aos soldados franceses da Primeira Guerra,
referente à significação da palavra “poilu” ( peludo), que em argot se refere a alguém
corajoso, viril, como se diz em português: alguém que tem pêlos nas ventas.
2. Requiem ( latim): Missa fúnebre.
3. Nota do autor: Ellie Faure: “Você vê reviver diante de si a mulher que amou vinte
anos antes, e que vive ainda ao vosso lado, e que você deixou de amar, mas então, há
vinte anos, quando o separaram bruscamente dela, vocês esteve prestes a morrer? Você
vê reviver a criança morta?” ( Trata-se de Função do cinema, Gonthier). Se esta citação
situa bem, a meu ver, o argumento do filme de Truffaut, parece-me claro que este toma
seu ponto de partida em uma essencial insatisfação diante da emoção um pouco boba
sugerida aqui por Elie Faure.
4. Nota do autor: A “facilidade” em questão se chama, em filmologia, impressão de
realidade.
(Cahiers du cinéma , maio 1978)
Pascal Bonitzer
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Moonfleet 1:
"O pai é aquele que não responde às questões que não lhe são colocadas. Isso muda o
que? Tudo. O pequeno Mohune, criança apagada, criança efeminada, criança
aventureira, sonha ser um cavaleiro branco, como um Ballantree de opereta. Tu achas
que ele vai questionar seu querido Stewart Granger? Stewart Granger é um verdadeiro
herói underground. Não estamos em Warhol ou Kenneth Anger. Não estamos nas
bichas. Faça-se uma idéia das telas pintadas e das canções de Luis Mariano, que tramam
em suas profundezas o universo de Moonfleet. Eu sei que o cinéfilo de Moonfleet tem
os cabelos verdes, os cabelos de cor indefinida. Não estamos em Losey, 1948. Estamos
em 1955, onde tudo começa ( Hitchcock apresenta), antes que tudo fosse acabar, meses
mais tarde, com o desastre Presley, a gangsterização Sinatra, e em breve John Wayne
como travecão pós-cinema em Rio Bravo. Em Moonfleet, o pequeno Mohune é
oferecido em holocausto, sim ou não? Não. A Criança sacrificada é aquela de Bigger
than life ( Nichjolas Ray, 1959). Ok, mas o pai de Moonfleet é um cafajeste, não?
Stewart Granger? O que te leva crer que ele é o pai? A criança ama seu pai, não? Não.
(...)... exatamente, foi Lang sim quem filmou os embates amorosos de um jovem rapaz
com trejeitos de moça ( Jon Whitley) e de um pai substituto, charmoso demais para ser
honesto ( Stewart Granger). Vão te dizer: mas não é verdade!, Mooonfleet é apenas um
filme de aventuras à la Louis Stevenson, um Maitre de Balantree languiano. Não é falso,
mas também não é o mais importante... "
Moonfleet 2: "Este filme não é apenas uma etapa no país da cinefilia. É mais que isso,
muito mais. É de onde se parte para nunca mais voltar. Aquele que não retorna
permanece em estado de exílio, em estado de infância, de maravilhamento. Aquele que
retorna não é mais o mesmo. Ele viu demais para coincidir novamente com o que um
dia foi. Ele descasca pouco a pouco de si mesmo, e os transeuntes casuais encontram
pedaços dele dispersos pelo vento, fragmentos de pele do cinéfilo, que vem planar sobre
a lua, como tantas juras de amor perdidas. Trata-se de dizer aqui, com as pobres
palavras de que dispomos, do que o cinema é feito, e do que o cinema se desfaz. Ele se
desfaz como pode, o coitado do cinema. Em 1955, já estava fodido. Explodido,
quebrado, em estilhaços. Não é por acaso que neste mesmo ano Hitchcock vai para a tv,
com suas indestrutíveis miniaturas em preto e branco. O minimalismo televisivo
hitchcockiano carrega tudo à sua volta, até mesmo o suntuoso Cinemascope que Fritz
Lang inventa para Moonfleet.O que ele dizia do Scope, Lang? Esqueceram, é,
gracinhas? “O cinemascope é bom pra filmar serpentes e enterros.” Lang sabia que
Moonfleet enterrava Moonfleet. Ele sabia que esta lição de cinema era uma lição
perdida. Ele sabia que o exercício só era útil1 para aquele que o quisesse esquecer. Pois
é, é isso. Esquecer a lição, a dor, esquecer o cinema. E basta. "
Moonfleet 3: "Moonfleet de novo? de novo. Sim, de novo. Em nome do cinema do
presente? Sim, o cinema no presente. Sim. De novo. E de novo novamente. Rio Bravo
também? Claro. E por que? Porque é Rio Bravo que estrutura Moonfleet. Mas como Rio
Bravo, que saiu em 1959 pode estruturar Moonfleet, que vimos em 1955? Você não vai
me dizer que se trata de pós-crítica, pós-cinema, vai? É pior ainda. O cinema começa
pelo fim. O fim, que fim? O fim, é tudo. Devemos olhar para trás, não? Sim. É o
travestismo terminal de Rio Bravo que nos ilumina o travestismo precoce de Moonfleet.
Perucas e minstrel shows, é isso, né? É, é isso...
“Rio Bravo ajuda a entender que Moonfleet está no centro de Moonfleet. A iniciação, o
terror, o sadismo. O sadismo está no centro de Moonfleet como um travesti emperucado
e maquiado. Ah, é? Claro. Stewart Granger é Daney, né? Não, é o contrário; é Daney
quem interpreta 2 Stewart Granger. E a criança? A criança é Louis. Louis? Sim, a
criança é Louis, é sempre Louis. Sim. Ao fim da linha? Sob o rolo compressor? Sim. E
Moonfleet? Moonfleet é o rolo compressor. Tem certeza disso? Ah, sim, claro... (...)
Tanto em Rio Bravo quanto em Moonfleet, trata-se de iniciação. A iniciação, do que se
trata? Aprender. Aprender o que? Aprender a aprender. Tá bom, então? Que esteja bem,
nada a ver. E o que é que temos de ver, então? Que é a mesma coisa. Que mesma coisa
é essa, então? Uma lição de cinefilia, uma lição de Rio Bravo. O que é uma lição de Rio
Bravo? Moonfleet. Como Moonfleet ( 1955) pode ser uma lição de Rio Bravo ( 1959)?
É assim, oras! Como “é assim, oras!”? Como o último Skorecki, Cinéphiles 3 ( Les
ruses de Fréderic). É seu último filme? É. É uma lição de Rio Bravo? Sim. Só existem
lições dadas por Rio Bravo. Não se trata de data ou de conteúdo. Ah, é? É, é a lição para
a criança. O terror? É. O sadismo? É, pois é. (...)”
Rio Bravo 1:
“Falava-se outro dia do filme horroroso de George Cukor, Sylvia Scarlett. Falava-se
também de Jane Bowles3 e de travestismo. O travestismo último, no cinema, está em
Rio Bravo. Eu já disse isso cem vezes, direi mil mais, até que um ou dois leitores
entendam. Que dois leitores entendam, já basta, estou no caminho certo, menos só. Se
sentir menos solitário, para um homem do frio como eu, isso esquenta o coração. É de
fora que eu vejo essa coisa. É de fora do cinema que eu vejo o fantasma do cinema. Por
que “fantasma”? Porque sim. Porque em 1958, ( se estamos falando da filmagem), ou
1959 ( se estamos falando da data do lançamento), Rio Bravo já era o espectro do que
tinha sido o espectro de uma arte usina defunta, um western travesti onde Jane Bowles,
a queridinha de Tennesseee Wiliams e de Truman Capote, não teria do que se
envergonhar.
Se o roteiro de Sylvia Scarlett tivesse sido escrito por Jane Bowles, o único travesti
literário do século passado4, Sylvia Scarlett teria sido uma obra-prima. Teríamos visto
Katherine Hepburn, adorável rapaz travestido, sucumbir ao sex appeal do crocante Cary
Grant, e lhe passar a língua sobre a covinha do queixo. Ela o barbearia com a língua,
destramente, assim como Angie Dickinson barbeia Dean Martin em uma bela cena
cortada de Rio Bravo. Sylvia Scarlett é um dos piores filmes do mundo, e dos mais
charmosos também. “Quando eu te vejo, diz o homem ao travesti Katherine Hepburn,
eu me sinto um pouco estranho, um pouco queer”. O filme é belíssimo, mas Rio Bravo
vale cem mil Sylvia Scarletts, mesmo se chega pelo menos vinte anos tarde demais.
1934-1959: meçam a distância vertiginosa entre estes dois filmes travestis. Mas o que
chega muito cedo ( Sylvia Scarlett) está longe de dar tão certo quanto o que chega tarde
demais , ou seja, aquele que vem em seu tempo certo, este Rio Bravo idealmente
sincronizado com seu tempo, com o tempo do pós-cinema travesti.( Libération, 8 de
maio 2006).”
Rio Bravo 2: “(...) Eu me chamo Fréderic, Rio Bravo é teu filme preferido, repita
comigo. É a última fronteira, o western em frangalhos que se autoparodia, o filme de
gênero que recapitula todos os outros, a linha vermelha além da qual o teu ingresso não
vale mais nada. Depois de 59, depois de Rio Bravo, o cinema decide viver no dia a dia,
à luz do dia. O cinema “ de dia”, caso não saibam, é a televisão. Muita água rolou desde
então, o cinema hoje é a tele-realidade. Vocês não concordam comigo, tou pouco me
lixando. Vocês pensam que as séries televisivas, 24 horas, Nick/tup, Oz, Les Soprano,
tomaram o lugar do cinema. Vocês estão atrasados em pelo menos vinte anos, estes
anos capitais do pós pós-cinema onde ocorreu justamente o contrário: foram os filmes
de cinema que se puseram a pastichar à toda a televisão, as séries de televisão em todo
caso. Rio Bravo só existe hoje como minstrel movie, um filme que se esgota no
travestismo de seu roteiro e de seus atores. Os minstrel show do século 19 permitiam a
um público branco ver os negros sem se assustar além da medida, precisamente na
medida em que brancos maquiados de forma ultrajante os interpretavam, só
conservando dos corpos negros os excessos, o grotesco e o patético, como mais tarde os
travestis farão com os corpos das mulheres. Vocês vão me dizer: qual a ligação com
John Wayne, Angie Dickinson, Ricky Nelson? Ora, não ver na peruca de John Wayne,
em seu corpo volumoso, em seu ar de mocinha assustada com uma mulher grande
demais, ou vestida com colantes cor-de-rosa demais ( ou seja: os atributos da drag
queen); não ver que Angie Dickinson e Ricky Nelson são ainda mais explicitamente
travestis e maquiados que ele, não ver isso é recusar o cinema, o cinema à luz do dia.
Mas afinal de contas, por que não, não é? ( Fréderic Beigbeder em Les Cinéphiles: Les
ruses de Fréderic, 2006).”
Notas:
1. Il savait que l'exercice n'était profitable: referência a um livro de Serge daney sobre
tênis, L’exercise a eté profitable, Monsieur.
2. em francês no original: C'est le contraire, c'est Daney qui joue à Stewart Granger.
Este verbo “jouer” é bem ambíguo, e tem a acepção tanto de interpretar um papel
quanto de brincar, jogar ou encenar. Ambigüidade esta essencial à retórica de Skorecki,
gênio do paradoxo e dos jogos semânticos de sentido.
3. Jane bowles ( 1917- 1973) escritora norte-americana bissexual, mulher de Paul
Bowles. Autora de um único romance, Two serious ladies e de uma peça de teatro, In
the summer house, era idolatrada por Tennessee Williams, John Ashbery e Capote
como uma das grandes escritoras de seu tempo.
Losey é acima de tudo um pesquisador; sua mise en scène, um método. Seu objetivo
declarado: conhecimento. Seu único instrumento: inteligência, ou particularmente
lucidez. Sua abordagem toma como modelo a do cientista. A mesma atitude básica
diante do fenômeno sob observação, o mesmo procedimento: revelar a experiência
vivida (lived experience) em sua totalidade, registrá-la como um objeto, fazer deste
objeto o campo de investigação, resumindo, instalar a experiência vivida em condição
laboratoriais. Losey restitui à câmera sua função original de instrumento científico. Esta
é a marca de sua originalidade.
Isto quer dizer que outros cineastas não são incitados pela mesma ambição? O conceito
a priori de realidade, a realidade filtrada e ideal de um Fritz Lang, que cria um universo
abstrato no qual paixões reduzidas ao essencial confrontam-se mutuamente, de um
Mizoguchi, assombrado pela eterna oscilação entre um mundo exterior e um mundo
pessoal, de um Raoul Walsh, que glorifica a aventura, mostra que esses cineastas não
tem os mesmos interesses que Losey, mesmo que suas mise en scène’s sejam similares e
muito frequentemente superiores à dele. Mas e Nicholas Ray e Rossellini? Eles também
consideram a experiência vivida como um todo a ser levado em consideração a priori.
Conhecimento, pra eles, consiste então na súbita penetração intuitiva de uma realidade
que foi antes preparada pela análise. O processo é o mesmo pra ambos: ir do exterior
para o interior, através da sensibilidade.
Isto significa que, a despeito do ponto de partida em comum, seus procedimentos são
radicalmente opostos aos de Losey, visto que ele sempre parte do interior para o
exterior. A um conhecimento instintivo que é puramente artístico, no senso tradicional
da palavra, Losey prefere um conhecimento lógico, no qual intuição e dedução estão
subordinados à inteligência. Esse tipo de atitude levanta o problema da estética do
cinema moderno, que vai muito além do escopo deste artigo. ‘Este era um dos
princípios de Brecht, e o único com o qual que eu estou em total acordo’, Losey nos
contou, ‘que o momento em que a emoção interrompe a linha de pensamento da platéia,
o diretor falhou’.
Se um termo pode caracterizar a mise en scène de Losey, acho que deve ser ‘uma
explosão aberta à vista’ (bursting open to view). Não é totalmente verdadeiro dizer que
ele parte do interior para o exterior. Ele se prende às aparências, observando
cuidadosamente relações objetivas e se recusando a interpretá-las. Qualquer outra
atitude seria não-científica e então, em sua visão, não-artística. Porque para ele o
interior é a reflexão de um fenômeno externo, a projeção de um conflito interiorizado.
Os gestos referem o que os motiva e nada mais. Efeitos revelam somente suas causas e
o que gerou estas causas: a pessoa desnuda. Losey é o primeiro cineasta que tomou
como seu único material de investigação – sem nenhuma referência à moralidade,
metafísica ou religião – a verdade do ser humano. (O argumento estético que Jan, o
jovem pintor holandês, expõe em Blind Date é, neste ponto, muito claro)
Mas se a pele está na iminência de romper-se, se a pessoa é, por fim, para ser revelada à
luz do dia, a realidade tem que ser posta em condição de laboratório, isto é, fechada e
sujeita à uma pressão alta o suficiente para produzir a ruptura. Isto pressupõe uma
situação dramática intensificada até os limites do teatral. Deve haver uma crise aguda,
uma temperatura febril, uma operação emergencial. Portanto aquele estilo que é tão
particular a Losey, um estilo que é bruto, tenso, excitado, incisivo. Um estilo que choca.
Como Time Without Pity e The Criminal, Blind Date é um filme sobre uma irrupção.
Um terremoto estilhaça toda ilusão de estabilidade. É a manifestação visível de pressões
tremendas que se desenvolveram sob a crosta da terra.
Se admitimos isto, tudo em Blind Date se torna claro, gesto e décor, plot e estrutura
narrativa. A história começa, então: Jan está correndo para o apartamento de sua
amante. É a primeira vez que ela permitiu sua visita. A porta está aberta. Ele entra. Não
há ninguém. Ele aproveita a oportunidade para descobrir que tipo de ‘décor’ sua amante
tem, como se isso o ajudasse a conhecê-la melhor. Ele ri de sua falta de organização, é
surpreendido pela decoração berrante do banheiro, tranquilizado (reassured) por um
pequeno quadro de Van Dyck, e, descansando no sofá, tentado (mystified) a achar um
envelope recheado de notas. Ele espera. A polícia chega. Sua amante foi assassinada
enquanto ele olhava o apartamento. Ele se torna o primeiro suspeito.Vamos parar por
um momento nessa sequência de abertura e na descoberta do apartamento de Jacqueline
por Jan, descoberta da própria Jacqueline também. A câmera só observa
meticulosamente a sequência de eventos, a manifestação de fenômenos e suas relações
objetivas. Antes de tudo, a própria personalidade de Jan. Excitado por sua aventura, seu
verdadeiro ego (true self) se revela em suas atitudes tanto quanto em suas reações, e é
evidente em cada um de seus gestos. E porque eles são reflexos daquele verdadeiro ego,
seus gestos são tão raros quanto refinados (e às vezes, admito, nos limites do
preciosismo). Como na maneira em que nosso jovem amante pára de repente , apoiado
em uma perna, no vão da porta do quarto, uma posição enfatizada ainda mais pela
mudança do ângulo. Tudo em Jan denuncia uma inocência sem mácula, o coração
intacto de uma criança ávida para ser encantada pelo amor.
Muito ávida, de fato, para observadores imparciais como nós, e não podemos evitar a
idéia de que há um hiato entre a natureza de Jan e o tipo de mulher que ele ama,
enquanto seu apartamento a denuncia. Este pertence claramente a uma prostituta de alta
classe. Algumas das reações de Jan deixam claro que ele está atento a isso, mas então
um objeto de bom gosto traz sua confiança de volta. Ele está de fato desejando ser
arrebatado. Ele está cego por seu amor e sua confiança. Ele está no limite da submissão,
sua inocência é ameaçada. Este é o coração da matéria (subject-matter) de Losey. Jan
tem que avaliar a si mesmo, ter a noção exata de seu valor, se calcular, em resumo, se
estudar, i.e. alcançar a lucidez através de um auto-exame crítico nos termos de sua
relação com o mundo exterior.
O assassinato cria as condições necessárias para um experimento desse tipo. Ele
constrói um mundo enclausurado no qual as maiores pressões são induzidas a agir. Elas
transportam as pessoas com uma intensidade crescente, subsumidas por estas condições,
levando-as a uma espécie de ruptura brusca que é dada visualmente pela mise en scène e
que é, me parece, a dinâmica básica de Blind Date. Essa ruptura brusca nasce com a
lacuna entre Jan e o décor. É desenvolvida imediatamente após a chegada da polícia,
quando o inspetor Morgan também dá uma olhada no apartamento. Desta vez é uma fria
e clínica inspeção que não deixa dúvidas a respeito da inconstância do caráter de
Jacqueline ou sobre a indiscrição e a impetuosidade claras de Morgan (seus gestos, seu
sotaque gaulês, sua reação ao espelho em frente à cama, etc)
O confronto de duas visões divergentes de um mesmo apartamento e, portanto, da
mesma mulher produz uma ruptura até mais violenta, o flashback. Este se opõe
visualmente, por sua áspera, branca iluminação Nórdica e pela pobreza do décor, à
fotografia cinza e ao apartamento desorganizado da primeira parte. O flashback, gerado
simplesmente pela lógica da situação, é tanto uma evocação sensual de um caso de amor
quanto uma análise precisa de um relacionamento entre dois amantes e um julgamento
de seu amor. Como uma investigação feita necessária pela lógica interna da situação, ela
traz à tona a incompatibilidade óbvia entre a Jacqueline que Jan ama e a dona do
apartamento, enquanto a polícia junta as peças na base de evidências e objetos.
É isto que Morgan não pode deixar de notar – ele tem um bom faro, mesmo com o nariz
entupido. Losey gosta de sobrepôr a luta por lucidez com essa espécie de obstáculo
físico (embriaguez de Redgrave em Time Without Pity, a gripe de Morgan em Blind
Date), um obstáculo que tem seu contraponto na paixão cega de Jan. Deve-se lutar
contra a névoa de sua própria mente. Morgan também está envolvido nesse caso, tanto
quanto Jan. Ele se vê envolvido na mesma busca por verdade, e assim pela sua própria
verdade. Daí as pressões às quais tem de se submeter. Pressões sociais impõe uma hiato
entre seu desejo por uma promoção no trabalho e, o mais importante, seu respeito
próprio. Uma simples questão de dignidade. O problema para Morgan e para Jan é o
mesmo: resistir à corrupção, preservar sua integridade. Uma vez que eles percebem isso,
após a pequena briga que as questões ofensivas de Jan provocam no escritório de
Morgan, a resolução não está muito distante. A mulher – Jacqueline/Lady Fenton – é
redescoberta, sob a dupla pressão exercida por Morgan e Jan, sua duplicidade é
translúcidamente clara. A mentira amaldiçoa a verdade. O ego conquistou as aparências.
A inocência é libertada.
Nós estaríamos, então, julgando mal Losey, estaríamos interpretando de modo
completamente errôneo sua obra se nos recusamos a ligar sua estética a um
racionalismo de Esquerda.. Até, como Domarchi sugeriu, da extrema esquerda, visto
que Losey recusa categoricamente qualquer apelo ao sentimentalismo a que a então
chamada “esquerda artística” está tão ligada. Sua arte é uma arte de laboratório. Coloca-
se um bloco completo de experiência vivida num pote. Cria-se as condições mais
favoráveis para o experimento. Então analisa-se meticulosamente todas as relações
objetivas que se formam e descobre-se que a luta é a origem vital de toda realidade. A
luta de indivíduos (Jan e Jacqueline, Jan e Morgan), a luta de classes, etc. Mas visto que
o conhecimento do observador é sempre determinado pelo da pessoa observada, a luta
permite que este conhecimento se desenvolva. Nessa temperatura de conflito dramático,
a violência quebra estruturas ossificadas, pressionando o ego de volta à superfície.
Dominar e organizar as vibrações internas do ego: essa exigência que Jan faz de
Jacqueline enquanto ela está desenhando (apesar de que ela, refletindo sua classe,
procura somente ocultá-las) é o que Losey exige de sua arte. Uma arte que despreza o
ornamento, que usa lucidez para destruir o mito, que irrita e abala. Uma arte que fere
porque não permite concessões. Mas uma arte com sede de verdade. É por isso que
ainda repele a tantos.
JEAN DOUCHET
Cahiers du Cinéma nº 117, março de 1961
Tradução: Luan Gonsales.
O quarto verde
Ocupa os números 641 a 659 da Star-Film (septuagésimo oitavo dos cento e quarenta
título conservados até a data de 1981). É um tipo de refilmagem e uma amplificação de
Viagem à Lua. Na sua enquete sobre « O primeiro Wells », Borges escreve: « Verne
escreveu para a adolescência, Wells para todas as idades do homem. Há entre eles uma
outra diferença, já indicada pelo próprio Wells na ocasião: as ficções de Verne são sobre
o devir provável [...], as de Wells sobre o puro possível. » Méliès, que terá se inspirado
em Verne e Wells, mescla sem vergonha e sem complexo as duas fontes. Para ele, a
ficção cinematográfica engloba o documentário e a ficção-científica, a descrição do real
e do imaginário, o sonho sobre o provável e o possível. Esses limites, que a ficção-
científica moderna quer apagar (cf. O Enigma de Andrômeda de Wise), Méliès negou
desde a origem. Inventor do espetáculo cinematográfico, Méliès sente que tudo aquilo
que aparece sobre uma tela deve ser por essência espetacular, ou seja, fascinante e
crível, quer se trate das atualidades reconstituídas ou da féerie mais delirante. Essa
intuição pulveriza as distinções falaciosas, e a história do cinema (a despeito dos
próprios historiadores) lhe dará inteiramente razão. Efetivamente, um filme como Una
voce umana de Rossellini (uma mulher ao telefone sozinha num aposento durante 35
minutos) e Os Dez Mandamentos de DeMille são tão espetaculares um quanto o outro.
Notemos brevemente que, com suas atualidades reconstituídas, Méliès terá se
antecipado sobre a política-espetáculo. Sua formação de prestidigitador era a melhor
possível, não somente para inventar o espetáculo cinematográfico, mas para lhe fixar os
valores essenciais, ainda válidos hoje em dia. A mise en scène consiste em efeito, como
a prestidigitação, em dirigir e se apropriar do olhar do espectador, em fazer com que ele
veja aquilo que se quer que veja, à exclusão de todo o resto. As qualidades psicológicas
e as intenções do prestidigitador são também aquelas do verdadeiro cineasta. Tanto um
como o outro nos fazem descrer na realidade, ao substituí-la pela deles. Eles tornam o
maravilhamento inseparável da inquietude, o fantástico e o humor indissociáveis da
vertigem. No o plano técnico, certos exegetas modernos querem a todo custo que haja
montagem em Méliès, como se isso aumentasse sua modernidade. Ao contrário, os
planos longos e generosos aos quais estava restrito e que apenas desejava enriquecer
através de uma profusão de trucagens, e eventualmente de personagens, unir-se-ão ao
cinema mais moderno, ou antes: serão reencontrados por ele. Dando a ver ao espectador
a porção do real que escolheu (pelo lugar da câmera e pelo quadro), fornecendo-lhe uma
(falsa) impressão de liberdade em relação ao conteúdo desse quadro, seu cinema
anuncia, para citar apenas dois nomes, o de Tati e o de Fritz Lang. A reflexão sobre
Méliès está apenas começando; ela não está perto de chegar ao seu término porque
,nesse precursor genial, as noções de base do cinema como espetáculo já se encontram
largamente exploradas.
Jacques Lourcelles
Tradução: Bruno Andrade
Aí, as digressões, o tempo perdido, os saltos no tom não são mais os caprichos de um
cineasta sem rigor, mas a prova que mesura a importância dos segredos. O caminho
mais curto entre dois pontos não é mais a reta; é o meando que é necessário; o filme se
torna um longo desvio entre o ultraje e a reparação. Ao curso dos encontros, o cineasta
parece esquecer seu filme, e os personagens seus projetos: nesta vasta
“cavidade”( creux), tudo pode acontecer, o acaso torna-se cúmplice do cineasta que o
serve e que dele se serve.
Assim se explica que Dwan, capaz de se virar com qualquer coisa ( faire feu de tout
bois), se acomoda da melhor forma possível à precariedade de meios: inversamente, não
é seguro afirmar que ele conservaria, no cadre de uma superprodução, esta parte de
invenção que lhe é necessária. Cinema disponível onde sempre chega o inesperado.
Onde tudo é pretexto para descobertas. Descobertas cuja mais simples consiste na
constatação de que o tempo é o bem mais precioso; é preciso perdê-lo em demasia para
lhe dar valor. Nada de espantoso, portanto, em que Dwan, o Decano dos cineastas de
aventura, é também aquele que se arrisca mais.
Era uma vez no Oeste marca o apogeu ( e talvez o colapso) de uma série de filmes
assinados por Sergio Leone cujo interesse é a priori imenso: eles constituem a primeira
tentativa , embora pouco conseqüente, de cinema crítico, ou seja, não mais em
confronto direto com a realidade (mesmo que às vezes o recurso à verdade histórica-
que Leone conhece bem- tenha um valor estratégico), mas com um gênero, uma
tradição cinematográfica, um texto global, o único que conheceu uma difusão mundial:
o western. Não é pouca coisa.
Como um cinema crítico é possível? Desde muito tempo, os Americanos renunciaram
ao western racista e beato ( DeMille); daí,a partir dos anos 50, um jorro de filmes
humanitários ( Daves) ou crepusculares ( Ford, Peckinpah). Senso crítico, mas não
cinema crítico. Este só poderia se elaborar “de fora”. Mas de onde, de que “fora”? De
um dos raros países que possuía também um cinema de série, paralelo, tradicional e
popular: a Itália. Ou, mais exatamente, Cinecittá no momento preciso em que o péplum
corre perigo, minado por paródias ( já Sergio Leone aí). Ora, o essencial está aí: não que
alguma demiurgia tenha decidido um dia fazer cinema crítico, subversivo e vagamente
político, mas que este cinema seja antes de tudo ( ou em última análise) o único produto
de uma evolução econômica. Trata-se apenas para Cinecittá de re-investir homens,
cenários, figurantes e capitais em um novo gênero de filmes. Trata-se de “amortizar”
( reconstituição do capital empregado em uma compra). Estas origens vis e baixamente
comerciais fazem ( farão/fariam/poderiam ter feito: o futuro nos dirá) a grandeza do
western italiano. Por duas razões (ao menos):
1). Porque de que até então havia razões ruins para amar os filmes B, e é conveniente
modificá-los. Admitamos que em alguns países onde o cinema constitui uma indústria
robusta , o cinema B delimita uma espécie de lumpen-cinema ( cinema do
lupemproletariado1), bom de qualquer modo pra fazer a máquina girar, amado de forma
esnobe e contraditória ( em uma espécie de cinefilia “operária”) não podendo aspirar à
qualidade, nem mesmo à consciência clara dos elementos ( temas, situações) que ele
ilustra porque esta (a consciência) é reservada aos filmes de qualidade: digamos, mais
pra Zinnemann que para Dwan.
2). Admitamos hoje que na Itália alguma coisa que Hollywood não podia realizar era
possível: a tomada de consciência deste lumpen-cinema, efetuando, sob a máscara das
velhas formas ( portanto, sem negar seu caráter popular), um eufórico trabalho de
desconstrução. “Uma força não sobrevive se em primeiro lugar se ela não toma de
empréstimo a máscara das forças precedentes, contra as quais ela luta” ( Nietzsche).
Este trabalho pode ser bem realizado sob uma condição: que o western italiano conserve
seu caráter de massa. Não se trata mais, sucumbindo à obsessão utilitária, de
desmistificar em um único filme toda uma tradição, todo um conjunto de convenções e
reflexos. Os resultados práticos de semelhante operação foram nulos, mesmo se os
filmes belos ( Tourneur). Isto quer dizer que o western italiano deve ser produzido em
massa e para as massas. E isto apesar do grande obstáculo: a recuperação pelo cinema
de qualidade ( a arte e o ensaio, a burguesia) de individualidades excessivamente
videntes, o que é o caso, hoje em dia, de Sergio Leone.
Quanto aos meios deste trabalho, começam a ser conhecidos ( mas admitamos que só
foram seriamente utilizados nos filmes de Leone e do misterioso Sollima). Constituem
ora a mostrar o que o western clássico ocultava, ora a exagerar o este mostrava. A força
dos filmes de Leone está em extenuar a retórica habitual do western, em fazer da
surenchére (supra-oferta) o equivalente de uma negação. Em relação a isso, seria
interessante mostrar como ao western convencional, construído sobre o morceau de
bravoure ( High noon, The tin star) Leone opõe uma seqüência ininterrupta de tempos
fortes que se anulam reciprocamente: ao máximo de intensidade corresponde um
mínimo de sentido. Interessante de ver também como este cinema se dá a escolha dos
meios (chamada também de gratuidade por toda uma tropa de bem-pensantes que é
preciso obrigar urgentemente a ler os textos decisivos de J.J. Goux), como da beleza
( dos atores, e paisagens), da justeza de tal ou tal estilo de narração ( elipse ou tempos
longos) ele faz um uso estratégico a tal ou tal momento. ( Isto no caso de Sollima e do
magnífico Colorado). Etc. Quanto a Leone, de quem pouco se tratou aqui, é igualmente
possível empreender desde hoje a decifração de uma obra já pletórica (superabundante,
com muitos elementos) em tiques e “tropes” ( retórica, artigo decorativo).
Serge Daney.
Nota 1. Na terminologia marxista, parte do proletariado constituída por aqueles que não
dispõem de recursos e caracterizados pela ausência de consciência de classe.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Ottobiografia
Preminger brada a todos os ventos: sou um cineasta realista. Piada? Não. Se ele roda um
filme inteiro numa pequena cidade do Michigan, se filma em Chicago, Londres, no
Canadá, em Saint-Tropé, em Israel, é para gozar de uma maior liberdade que em
Hollywood? Pra encontrar um novo meio de publicidade, que vai desbancar todos os
records atingidos até então? Creio que as razões essenciais são outras: em primeiro
lugar,a redução do orçamento. Anatomy, aliás, foi filmado à incrível velocidade de
quatro minutos de filme por dia. Depois, Preminger, móvel como sua câmera, adora as
viagens. Ele tem necessidade de mudar de cenários, de abandonar os sunlights, outrora
essenciais à sua arte, a fim de poder se renovar. A arte evidente mas indizível de
Preminger necessita de um contato direto com a ordem da razão, um “botar os pés no
chão”, um tema, um cadre bem precisos. Tanto melhor se as coerções realistas se opõem
ao estilo clássico de Preminger , provocando de parte a parte algumas rupturas de tom.
Há dez anos, entregue a si mesmo, Preminger não teria rodado cenas crepusculares sem
iluminação nenhuma, não teria sublinhado os detalhes de nossa vida cotidiana, ele teria
orientado a interpretação de Lee Remick para uma fascinação bem artificial, como a de
Gene Tierney, e não em função de uma ótica realista. Aqui, em Anatomia de um crime,
ganhamos nós, pois temos ao mesmo tempo a fascinação e o realismo mais cru.
O personagem do velho bêbado que rouba e bebe uma centena de litros de uísque nos
mostra que todos estes cúmplices se definem mais ou menos como personagens
negativos. Sobre eles, gentil mas firmemente, Otto crítico, Otto zombador. Enquanto
que, com o personagem de Paul Biegler ( James Stewart), Preminger “propõe”. É o
herói positivo do filme. James Stewart, sublime, encontra aqui o papel da sua carreira.
Apenas ele é o tema do filme; possui a idade, os modos, o humor de Preminger. E creio
que devamos considerar Anatomy of a Murder como uma obra autobiográfica. De
Preminger, encontramos a alternância entre a sisudez e o diletantismo, alternância que
acaba por tornar-se identidade. Se o nosso cineasta, (ops! Perdão), nosso advogado é
mais forte que os outros, se ele ganha o jogo, não é porque ele não leva a sério sua
profissão, já que passa a maior parte do tempo pescando, tocando jazz. Ele ama a boa
cozinha, tem por auxiliar um velho alcoólatra que toma iniciativas descabidas mas bem
frutíferas. Por seu jogo, por sua forma de agir, Stewart-Preminger nos mostra bem esta
confusão de valores. Ele é o mais forte porque está mergulhado na vida mais concreta
possível.
É de qualquer maneira uma definição do honnête homme1 do século 20 que Preminger
nos propõe. Alguns a poderiam qualificar de cínica. O maquiavélico Biegler não nos
mostra um brio inacreditável na astúcia? Tão mais inacreditável por não ser
especialmente enfatizado; brio que temos a surpresa de descobrir em seu estado natural,
sem comentário, ao mesmo tempo que o espectador do processo. É preciso vê-lo
interromper o interrogatório de Laura Manion sob falacioso pretexto de que Dancer se
interpõe fisicamente entre a testemunha e ele para nos darmos conta de sua esperteza.
Mas a astúcia levada a tal ponto denota uma inteligência muito grande para não ignorar
a sensibilidade. De todos os grandes cineastas, Preminger é talvez um dos mais cruéis,
dos mais lúcidos, mas certamente um dos menos malvados. Os cínicos são pessoas
necessárias.
“Sobre um tema sério reencontramos aqui a mesma vontade de mesclar o divertido ao
trágico que em A Grande Guerra, e a mesma ambigüidade sobre a significação do filme,
que parece afeito antes de tudo para divertir e seduzir. Sem falar das insolências verbais
que valeram, ao que parece, alguns incômodos ao realizador, e que se limitam a detalhes
escabrosos e de mau-gosto, tais como as que se encontram em todos os processos, mas
que não nos parecia indispensável reproduzir in-extenso em um filme de ficção. A
menos de que se trate, neste caso, de habilidade e intenções publicitárias duvidosas”.
Confesso não compreender esta crítica, expressa por Jean-Louis Tallenay no Radio-
Télevision Cinema. Estas intenções publicitárias, evidentes, são ao mesmo tempo parte
integrante do filme e absolutamente estranhas a ele: elas zombam daqueles que se
chocam de escutar vinte vezes as palavras espermatogênese, slip, etc Estas diversas
ambigüidades, que encontramos também em Hawks e Hitchcock, testemunham um
humor superior. No momento em que o espectador pretende julgar um filme em função
de critérios superficiais e extra-cinematográficos, é ele que passa a ser julgado pelo
filme. O que é realmente cômico é igualmente profundo e sério. Não precisamos criticar
em Preminger seu hábito do jogo duplo. É o público que cria a baixeza e enobrece o
filme. Preminger é um verdadeiro idealista, que se opõe a estes falsos idealistas
demagogos, marxistas ou puritanos, insinceros ao ponto de alijar da matéria de suas
obras tudo o que lhes parece estranho a elas. Face a esta hipocrisia que bem rapidamente
se revelou estéril, já que se funda sobre uma condenação da realidade em nome de um
suposto “bom-gosto” que nosso tempo teve o mérito de sacrificar a valores superiores,
Preminger nos propõe a inocência sob as aparências da culpabilidade. Ao puro, tudo é
puro.
Luc Moullet, Cahiers du Cinéma, número 101, Novembro 1959
Nota:
1. Gentleman, cultivo simples e moderado da sensibilidade, oposto, na tradição literária
e cultural francesa, ao homme précieux ( Préciosité), artificial e pedante.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Richard Fleischer
Não podemos contar com Richard Fleischer, nascido no Brooklyn em 1916, filho de um
dos mestres da animação em Holywwod, criador de Betty Boop e Popeye, rival de Walt
Dysney, etc, se quisermos gemer de forma romântica , hipócrita ou imatura sobre os
obstáculos intransponíveis aos quais teremos de enfrentar quando carregamos um nome
célebre e nascemos célebres.
Assim Fleischer inicia o livro que escreve sobre seu pai ( Out of the Intwell, 2005),
livro que nos informa abundantemente sobre sua família e suas origens,
complementando suas memórias( Just tell me when to cry, aparecidas em 1993):
‘Dizem que é difícil ser o filho de um homem célebre, que vc vive à sombra dele, que as
comparações com ele são insuportáveis. Bem, eu fui o filho de um homem célebre, e
não achei nada difícil esta experiência. Na verdade, foi formidável. (...)Longe de
dolorosamente viver à sua sombra, eu me aproveitei da chance de poder me banhar na
luz de sua glória.Quando eu era pequeno, bastava dizer ao dono de um cinema que eu
era filho de Max Fleischer para ter uma entrada gratuita.”. E Fleischer continua, neste
tom amável, reconhecido, sereno, a evocação da carreira de seu pai e, indiretamente, da
sua.
Dirse-ia que o fato de ter nascido num meio confortável acentuou ainda mais neste
homem qualidades sem dúvidas inatas: a serenidade de suas relações com seu próprio
ego, a discrição, a modéstia, uma forma de equilíbrio íntimo na forma de trabalhar, de
abordar e aprofundar um tema, do mais anódino ao mais atroz. Antes mesmo de abordar
o que em sua obra releva da noção de autor no sentido estético-filosófico que este termo
adquiriu no interior da expressão “política dos autores”, convém encarecer em Fleischer
o autor de uma série de sucessos, o superdotado da mise em scéne que, em cada gênero
que ilustrou, ( e Deus sabe o quão numerosos foram!) , buscou, consciente ou
inconscientemente, mas sempre com a mesma paradoxal humildade, a inscrever o filme
mais bem realizado, mais desconcertante, mais inventivo , mais definitivo. A tal ponto
que muitos espectadores que mal conhecem seu nome reservam à camada mais
profunda de suas lembranças cinematográficas um lugar à parte para uma ou outra obra-
prima sua. Citemos casualmente alguns de seus sucessos: devemos-lhe entre outros o
melhor filme de aventuras ( Os Vikings, documental e lírico, e jamais ultrapassado em
seu gênero), a melhor adaptação de Jules Verne ( Vinte mil léguas submarinas), obra
que se constitui também em um dos melhores filmes para crianças na dupla acepção do
termo, ou seja: filme que deve encantar a crianças e adultos; um dos melhores filmes de
guerra jamais realizados ( Between heaven and hell) , com seus personagens
perturbadores, ambíguos, descritos com uma audácia insólita para a época, qualidade
que vamos reencontrar em La fille sur la balançoire, evocação brilhante de um fato
criminal e mundano. Não esqueçamos Soleil vert, fábula de ficção científica ecológica,
intrigante e eficaz, e muito menos Barabbas talvez o melhor filme bíblico dos anos 60,
filme ao mesmo tempo subestimado e muito imitado, que aqueles que o puderam ver em
sua versão original em 70 mm jamais esquecerão.
Em todas as instâncias age o virtuosismo de Fleischer, tanto nas profundezas como nas
superfícies. Ora ela delimita definitivamente certa tendência de um gênero afirmado ( a
claustrofobia do filme noir encontra sua ilustração limite em The narrow margin, rodado
em sua maioria em um vagão de trem), ora ela abre possibilidades que irão servir tanto a
obra de Fleischer quanto a de outros. Desde 1949, com Follow me quietly, Fleischer
inaugura, no interior do filme noir, a narrativa baseada na busca de um assassino
psicopata ( ou “serial killer”), fundando um gênero à parte, que ele retomará em O
estrangulador de Boston, e em The Rillington place, obra-prima absoluta na
reconstituição documental de um incidente atroz, que coloca em causa a própria noção
de humanismo. Em Viagem fantástica, ele lança o filme de miniaturização que se passa
no interior do corpo humano, tentativa que Joe Dante vai concretizar de maneira
brilhante vinte anos mais tarde, com Adventure interiérieure.
Durante muito tempo, acreditei que Fleischer havia aperfeiçoado seu virtuosismo nos
filmes de ação de orçamento precário dos anos 40, feitos na RKO, em Eagle Lion. De
fato, isto não é verdade. Ele já estava em seu primeiro filme, e desde este, Child of
divorce ( 1947), permaneceu invisível por anos ( este primeiro Child eu vi apenas em
1980, quase um quarto de século depois da descoberta de Fleischer , autor brilhante de
Violent Saturday e La fille sur la balançoire). Em Child of divorce, todo Fleischer já
está presente, em tudo o que possui de melhor e mais original. ( É preciso sempre
escrutar com atenção os primeiros filmes dos grandes cineastas: são com frequência eles
que nos informam mais essencialmente sobre eles). Child não é de forma alguma um
filme de ação, mas antes uma espécie de poema sociológico, ao mesmo tempo perspicaz
e comovente, que mostra as conseqüências do divórcio de seus pais em crianças ,
deixadas pouco a pouco, não sem uma certa hipocrisia, num abandono afetivo quase
total. Child of divorce antecipa os filmes ulteriores de Fleischer ao revelar em plena luz
suas intenções ocultas, a saber, que para ele a utilização, a mise en valeur ( a colocação
em relevo) características do filme de ação ( tempo vívido e cativante, acuidade e
riqueza narrativas, crueldade insidiosa, violência) são apenas um meio eficaz para
penetrar em profundidade em uma realidade moral e social que o interessa antes de
tudo. E todo progresso técnico que possa servir a esta ambição, como o Cinemascope,
será bem-vindo.
Como Preminger, Fleischer vê imediatamente como o novo formato pode ser usado para
enriquecer suas intenções. Ele vai ajudar, por exemplo, em Violent Saturday a
exteriorizar os diferentes aspectos de um tecido social particular, religando mais
estreitamente e de forma mais natural , as evoluções dos personagens uns em relação
aos outros no interior do plano, e permitindo que bom número de planos, aparentemente
simples a visualizar, tenham de fato a mesma densidade e complexidade de certos
planos seqüência ultra-sofisticados realizados no antigo formato ( 1’66). Com efeito,
nos melhores filmes de Fleischer a descrição do tecido social onde evoluem os
personagens ( ou seja, a mise au jour- a atualização- de um conjunto de segredos, de
hierarquias, de lutas pelo poder, mais ou menos dissimuladas, a revelação das relações
que cada um, de um extremo ao outro da escala social, entretém com o tema onipresente
da violência) não é apenas um cadre, um pano de fundo, um cenário mas o próprio tema
da obra.
Nesta ótica, Fleischer se interessa tanto pelo devir dos indivíduos quanto das
sociedades. Poeticamente, sua imaginação dramática se curva às vezes a um esquema,
ao mesmo tempo descritivo e explicativo, que fascinou gerações de historiadores e de
artistas: o esquema ou ciclo que encadeia e une irremediavelmente grandeza e
decadência.Em The vikings, este esquema chega a um acréscimo de fausto e de beleza
pois aqui a decadência ( e a morte) do Viking agrega ao tema uma segunda beleza, uma
segunda grandeza que vem se reunir à primeira. Ao contrário disso, em The new
centurions, o olhar documentarista do autor pousa sobre uma decadência da noção de
civilização, redundando na desordem trágica de uma sociedade que pretende viver sem
interdições e sem regras ( “The donts are dying” é o leitmotiv da narrativa). E o filme
aparece como o termo desta “sociologia desoladora” de Fleischer, inspiração à qual
devemos uma parte de sua obra. Durante quatro décadas, apoiando-se sobre a
diversidade de gêneros, tons, orçamentos que estavam à disposição na Cidade do
Cinema e que faziam sua força, a obra de Fleischer é um dos exemplos mais brilhantes e
criativos do milagre hollywwodiano. O menos espantoso nesse caso é que Fleischer
tenha podido participar deste milagre até meados dos anos 70, ou seja, numa época em
que o cinema de Hollywood iria ser definitivamente enterrado, obedecendo assim ao
esquema “grandeza e decadência” que Fleischer tinha utilizado várias vezes em seus
filmes.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Se me pedissem para eleger o mais belo plano do cinema religioso, eu deixaria de lado
Dreyer, Bresson e Rossellini, e proporia aquele que afeta o espectador com um
insuportável encantamento:uma perna de mulher abandona a máscara luxuosa de um
biombo e se estira como uma serpente, quando duas perfeitas mãos igualmente saem de
seu refúgio para orná-la de seda; ou então o plano onde podemos contemplar uma outra
mulher seminua se extasiar com a carícia dos fluxos de ouro e pedras preciosas que ela
dissemina pelo seu corpo.
Estas imagens que tentei descrever não pertencem a Mizoguchi, mas figuram em dois
filmes do único grande cineasta cristão, Cecil Blount Demille. Trata-se de The affaires
of Anatol e de Sansão e Dalila que, com um hiato de trinta anos, impõem a retidão
exemplar de uma arte sempre juvenil e madura , mas também de um espírito que jamais
se curvou.
Este sangue de grande raça faz florescer em força e brilho a obra inteira de DeMille;
enfim, este talento perfeito que é ser Americano triunfa em uma obra-prima
encantadora, The Greatest show on Earth. As crianças, que ainda não tiveram o gosto
pela vida e a liberdade do amor seviciados pela escravidão universitária, foram os
grandes cúmplices do sucesso mundial do filme. O circo! Quando a gigante tela se
ergue, se infla, se desdobra e se estende soberbamente em torno dos mastros , quando o
padre abençoa a locomotiva que conduzirá o circo através da América e as hastes se
afogueiam sob a grandiosa respiração do vapor, o coração palpita como se assistisse ao
nascimento de um mundo e uma arte conjugados. The Greatest show on Earth reúne as
condições exemplares do desabrochamento de um gênio lúcido e totalmente sob
domínio: cada plano faz ressoar a vida em plena luz, a narrativa e a viagem a conduzem
sob o ritmo aleatório dos grandes expressos intercontinentais. Cendrars ficou
maravilhado por este filme onde as paixões, as alegrias, as dores se engendram e se
dispersam no entrelaçamento dos espetáculos do circo, onde sua intensidade varia
segundo a dificuldade de um trapézio, o capricho de um elefante e o número de
quiilômetros de um trilho. Sinto-me singularmente desamparado para apenas sugerir a
prodigiosa vitalidade desta mise em scéne, sua complexidade e sutileza. A energia de
que falava a respeito de Union Pacific se intensifica em The greatest , ela se dispersa
por todos os lados, nas coxias, sobre a pista, entre os espectadores. Recebe sua apoteose
ao fim do filme, depois do acidente de trem, quando DeMille mostra, em um
extraordinário plano de conjunto, a cavalgada improvisada pelos sobreviventes conduzir
para um “théatre de fortune” ( teatro de variedades em Paris) a multidão em delírio, e a
maravilhosa Betty Hutton em cima de um elefante cantar ao amor, o amor do circo, o
amor da vida.
Barrès deu a uma de suas heroínas o nome de “Nossa Senhora do vagão do Sleeping-
car” ( Três estações de psicoterapia): o trem é talvez o objeto que mais fascinou alguns
civilizados excitados pela modernidade (Cendrars, Morand, Honegger),e desde sua
origem o cinema americano lhe consagrou as mais belas sequências: Edwin Porter: The
great train robbery; Raoul Walsh: Colorado Territory, White heat; Fritz Lang: Human
desire; enfim, Cecil B. DeMille. Como as princesas da corte de Louis XVI que se
deixaram seduzir pelos balões de Montgolfier, estes príncipes do espírito não
desdenham o prazer da velocidade e de uma cadência novas, a beleza do ferro e dos
cavalos a vapor. Se DeMille ama a tal ponto os caminhos de ferro, é porque as virtudes
de uma Crampton ou de um Pacific 23 são também as de sua mise em scéne: poderosa,
rápida, nervosa, violenta, elíptica, sólida sob todas as dificuldades, mas monumental e
ruidosa.Uma arte nova se inventa para trabalhar matérias e energias novas: a arte de
Cecil B. DeMille é essencialmente moderna. Maurice Barres foi o primeiro a
compreender que os sentimentos não vagabundeavam mais ao ritmo das diligências, que
não se poderia mais escrever Adolphe ou Le Lys dans la valée, e que a língua francesa
deveria buscar em si um novo classicismo, lição recebida por Paul Morand, Jean
Cocteau, Roger Vailland ou Jacques Laurent.
Cecil B. DeMille, cineasta moderno. Fiquei bem tentado a escrever que este Americano,
que este cristão era profundamente anti-moderno, à maneira de Raoul Walsh ou Allan
Dwan, ou seja, da forma como entendia Péguy. Em conjunto com um sereno desejo de
construir um Novo Mundo, DEMille herda da velha América e de Fenimore Cooper
uma desconfiança da civilização urbana que se desvela nas deliciosas comédias satíricas
do cinema mudo , dentre as quais a melhor permanece sendo The affairs of Anatol,
crônica ácida e refinada da alta burguesia de Nova York. Mas DeMille é muito
orgulhoso e reto para sustentar um paradoxo: de fato, quando digo que sua arte é
essencialmente moderna, afirmo que DeMille praticou uma mise en scéne que elevava
sua época, dando-lhe uma alma.
Paul Morand é sem dúvida o único escritor que soube nos falar de uma Bugatti ( Buda
Vivo), mas o autor de Da Velocidade nos ensinou também o gosto pela lentidão, o
charme de um grande rio preguiçoso, os prazeres eqüestres: Milady. Giraudoux não se
enganou- estes loucos pelo volante são apaixonados por suas aldeias. A obra de DeMille
converge para uma necessidade de equilíbrio, um desejo de calma e de repouso, uma luz
mais doce e paisagens menos tormentosas. The squaw Man ( 1931), belo filme pudico,
conta-nos a busca infeliz da felicidade conjugal. Um ternura infinita, um sorriso ferido
não podem impedir a fulgurante destruição de uma paz íntima que DeMille descreve
com um tato admirável. Esta obra-prima de emoção e de delicadeza atinge ápices de
nobreza: quando a índia oferece a seu filho o cavalinho de pau que fez para ele e o
pequeno o troca pelo trem mecânico que lhe deu o pai, a infeliz, imóvel, petrificada,
olhos inundados de lágrimas, ressente de súbito a crueldade e o peso da infelicidade, o
atroz estilhaçamento de uma felicidade perdida.
Pradarias visitadas por santas, uma pequena camponesa tocada pela Graça, um pobre
casebre da Lorena em que se reconhece Georges de La Tour: as aldeias secretas de
Cecil B. DeMille assemelham-se ao Paraíso. Joan the Woman revela a intimidade
absoluta do cineasta com seu sonho, na adoração cúmplice para com a jovem Santa do
povo. A vida de Joanna D’arc suscitou muitos filmes, mas nenhum que seja animado de
uma fé tão assegurada, de uma fidelidade e humildade tão exemplares. Esta santidade
triunfal que ilumina as angélicas cenas da infância ou os êxtases sobrenaturais dos
combates reconcilia na realidade das obras de Deus as duas aspirações de uma mise en
scéne que aspira à serenidade e conduzida à ação.
Joan the woman: o classicismo de uma arte recém-nascida, plenitude espontânea de um
olhar e de uma mise en scéne tão exatos que Louis Delluc podia ver na Joanna D’arc do
Americano uma grande obra “francesa”.
Michel Marmin.
Notas:
1. Nos Dez mandamentos, aliás, Ramsés é um personagem bem mais comovente que
Moisés, ,que é apenas um instrumento de Deus, e o combate desesperado que ele
empreende pelo seu Criador lhe confere uma grandeza que situa o filme numa
perspectiva essencialmente trágica.
2. Os Dez mandamentos, talvez o filme mais sóbrio na história do cinema, conduz a
tragédia com um despojamento exemplar, recusando rigorosamente o que não lhe é
essencial, - daí a pureza quase abstrata de seus cenários e figurinos, a condensação
teatral da mise en scéne, a sobriedade hierática da direção de atores ( Charlton Heston e
Yul Brynner igualmente admiráveis), características que nos remetem irresistivelmente
a Poussin.
Vittorio ainda não deu o melhor de si mesmo, embora seja necessário rever Milady,
talvez inteiramente admirável. Mas este filme desertou de nossas telas há 2 anos, nos
impedindo portanto de verificar um julgamento mais precoce.Uma mise en scéne
espantosa se encontrava definida, preciosa e paroxística , que não devia nada a ninguém,
sobretudo nada ao neo-realismo, então triunfante. Um cinema de paixão, de torturas, de
terror e de amor se inventava diante de nossos olhos maravilhados, em gestos raros, em
olhares de pedra, de gelo e de metal, em silêncios ensurdecedores. Podemos reencontrar
em seguida, principalmente no Carrasco de Veneza, e em um grau menor na Revolta
dos gladiadores e Legiões de Cleópatra, apesar do interesse intermitente que o autor
portava a estes dois filmes, os mesmos reflexos de uma sensibilidade superaguda em
torno de certas jovens mulheres, tratadas com extrema crueldade, flageladas, marcadas a
ferro e fogo, devoradas pelas feras, esmagadas, mordidas pelas serpentes, e isto a tal
ponto que não se poderia falar impunemente em coincidências, pois o verdadeiro tema
destes filmes reside efetivamente no sofrimento da carne, sua angústia e sua morte.
A cada plano uma tragédia de ordem física se instaura, um mondo radioso torna-se uma
potência eriçada de grilhões onde a criatura aprisionada se debate, transida de horror.
Mas a tragédia é entrecortada de momentos de felicidade, que talvez fosse melhor
qualificar de alegria, ou mais fisicamente ainda de prazer , prazer tão exacerbado quanto
a dor que ele suprime, de tal forma é verdade que esta sensibilidade só existe como
suplicante ou exultante, em todos os casos violentamente eletrizada. Eu vejo apenas nos
filmes de Cottafavi este caráter ensolarado da fotografia, que determina uma crueza de
negros e brancos, brancos quase calcários , algo que convém tão perfeitamente às cenas
nas folhagens ou à beira da água.
Aliás, crueza que indica na técnica de Cottafavi desta época um amadorismo menos
recomendável, mesmo se certos resultados sejam para nós fonte de encantamento, pois
não admitimos o principio em voga, desde alguns meses, segundo o qual uma câmera
que treme indica forçosamente genialidade , ou uma fotografia grisalha de atualidades
possua mais estilo que as iluminações precisas que proporcionam a vida e o brilho.
Mas Cottafavi, dizíamos, inventa o cinema: é preciso lhe perdoar estes ‘maladresses”
( mal jeito, falta de jeito) de autodidata, preciosismos juvenis, enquadramentos
desajeitados, découpage às vezes “travada”- o motor desengata, e parte novamente.
Recordemo-nos que Fritz Lang começou a dominar sua mise en scéne aos cinqüenta
anos de idade e vinte de carreira. O que conta aqui são algumas penetrações mais
profundas, para além da malha dos hábitos e a máscara vermelha do Príncipe.
Apologia da violência.
Às vezes, falamos de cinema por aqui. É a arte por eleição da violência, já que vem ao
mundo nos gestos do homem, no momento em que a força acumulada extravasa, rompe
os diques, se impulsiona em jatos crescentes sobre seu obstáculo. Este momento, que as
outras artes só podem sugerir ou simular, a câmera se apossa de forma natural, e
empunha a tocha que a literatura lhe estende. Stendhal é superior a Losey, até o instante
em que o tema de sua descrição efetua a passagem do ato intencional, da convulsão
mental à sua encarnação no universo dos corpos e dos objetos. Neste preciso momento,
Losey torna-se incomensuravelmente superior a Stendhal.
Exaltação do ator, a mise en scéne vai encontrar na violência uma constante ocasião de
beleza. O herói destroça os malefícios, introduz em uma ordem nefasta sua desordem
pessoal, que consiste na busca de uma harmonia mais real e superior. Assim, se
encontra definido um tipo de herói cujos modelos são Charlton Heston, Fernando
Lamas, Robert Wagner e Jack Palance. Herói brutal e nobre, elegante e viril, concilia a
força à beleza ( ou, para Palance, uma feiúra admirável de grande felino), e representa a
perfeição de uma raça senhorial, feita para vencer e pressentir ou conhecer a todos os
êxtases.Exercício de violência, conquista e de orgulho, a mise en scéne, em sua essência
mais pura, tende ao que certas pessoas qualificam de “fascismo”, na medida em que este
termo , por uma confusão sem dúvida interesseira, recobre uma concepção nietzcheana
da moral sincera, oposta à consciência dos idealistas, dos fariseus e dos escravos.
Recusar esta busca de uma ordem natural, esta alegria do gesto eficaz, este brilho do
olhar depois da vitória, é condenar-se a nada captar de uma arte que consiste na busca
da felicidade a través do drama dos corpos. É necessária a simplicidade de certos
teólogos para relacionar sua significação a uma entidade política que substituiu para eles
o Diabo , e que eles vêem em todos os lugares, com seu pote de tinta preta. 1
Charlton Heston é um axioma. Apenas ele já constitui uma tragédia, e sua presença num
filme é suficiente para provocar a beleza. A violência contida testemunhada pela
sombria fosforescência de seus olhos, o perfil de águia, o arco orgulhoso das
sobrancelhas, a saliência dos pômulos, a curva amarga e dura da boca, a potência
fabulosa do torso, eis o que nos é dado, algo que o pior dos metteurs en scéne não
consegue envilecer. É neste sentido que podemos dizer que Heston , unicamente por sua
existência, independnete de todo e qualquer filme, nos dá do cinema uma definição ais
justa que filmes como Hiroshima mon amour ou Cidadão Kane, cuja estética ignora u
recusa Charlton Heston. Por ele, a mise en scéne pode aceder aos confrontos mais
intensos, e resolvê-los pelo desprezo de um deus prisioneiro, agitado por vagalhões
surdos. Nisto, Heston é um herói mais languiano que walshiano.
Pois o cinema nos propõe diversos tipos de violência. No nível mais baixo, a violência
de Kazan, frenesi de guignols alcoólicos cuja expressão ideal é atingida pelo inominável
Karl Maden. É o império do falso, do artifício, das mais derrisórias crispações. O
infantilismo do pensamento rivaliza com o grotesco das formas, e não há nenhum
conhecimento real do ator nesses excessos gratuitos, nestas experiências de esteta
neurótico, inscritas sobre marionetes manipuladas por fios, que fazemos gritar ao
pressionar seus ventres.
A violência de Welles é mais sincera, ela parece mesmo puramente autobiográfica, mas
é curta, miserável, “em impasse”, sem ressonâncias para além do tohu-bohu sonoro
onde ela se compraz. É a reação da criança que chuta o móvel onde se feriu: a cena onde
o cidadão Kane se lança a depredações do mobiliário é significativa deste estado de
espírito. Cego por seu próprio personagem, Welles só sabe destroçar figurinos de
cartolina que ele desfila diante de nós, enquanto ruge nos alto-falantes.
Deixemos de lado a violência em Buñuel, em quem toda expressão, todo élan passional
se encontram a serviço de algumas idéias de que ele não conseguiu se desembaraçar
desde a idade ingrata ( Quantos de nós não descobriram o cinema, aos 17 ou 18 anos,
graças a ele, a Welles? Mas nossa ingratidão a nós mesmos, esta não tem limites).
Uma escala acima, Nicholas Ray oferece da violência uma imagem mais carnal e ampla,
mais verdadeira, infelizmente desenfreada: não a pressão formidável de uma massa
d’água que sua liberação transformará em correnteza, mas a inundação permanente, o
terreno lamacento, James Mason constantemente entre as lágrimas e as tesouras. Há
alguns anos, um crítico dizia que, em Ray “a violência ‘inflama’ diretamente, é uma
espécie de aura que acompanha cada gesto do herói; é mais uma violência que canta que
uma violência que mata”. Este crítico não se apercebeu que procedia, com palavras que
julgava lisonjeiras, ao julgamento sem apelação de uma mise en scéne desvitalizada por
perpétuos transbordamentos. Toda intensidade real se torna impossível, a paixão se
esgarça em intermináveis farrapos.
É com Walsh que encontramos, pela primeira vez, a verdadeira beleza da violência,
centelha à passagem do herói, manifestação de seu poder, sua nobreza, em um instante
postos em questão. Esta violência clara e retilínea não designa sua derrota, mas traça um
caminho triunfal. Violência da guerra ou do conquistador solitário, exprime a coragem
de viver, o reconhecimento de um confronto dos homens com os elementos, do homem
com os outros homens, e o desencadeamento da força para a vitória. A obra de Walsh é
a ilustração do aforismo de Zarathoustra: “O homem é feito para a guerra, a mulher para
o repouso do guerreiro, e o resto é loucura”. À ilustração desta fórmula visam todos os
honestos filmes de aventuras e de combates, mas unicamente os de Walsh se alçam de
forma plena aos níveis da epopéia ou da tragédia.
O universo asfixiado de Fritz Lang é particularmente propício à eclosão e manutenção
da violência, mas em um sentido muito diferente. Contida, refreada, presente e
dissimulada em todos pos gestos e todos os olhares; ao invés de se diluir por rarefação,
como em Ray, pelo contrário, ela se recolhe e se concentra, como o salto nos músculos
do tigre. Se a violência de Walsh é solar, a de Lang é subterrânea , e sua dimensão
trágica mais constante. Ela apenas se libera no terror; o mundo em torno desta desaba e
enterra o herói.
Mas o cineasta que melhor soube mostrar e penetrar na violência foi Losey, é claro;
Losey cujo discípulo incompreensível , Roberty Aldrich, delineia com ênfase a
caricatura. Seria mais conveniente aproximar de Losey, ao invés do diretor de The big
knife, certos espantosos reflexos de ator em Ida Lupino ou Mizoguchi. A abordagem
loseyana da violência se situa no nível mais íntimo da carne; ela capta a palpitação
frenética do ser no momento em que este se exaspera contra os obstáculos, a cada
enervação amplificada do sangue. Ao apreendê-la, ela capta também a calmaria, a
desintumescência. Esta violência abre uma brecha em direção à paz e anuncia estranhos
excessos de felicidade.
Michel Mourlet
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. Referência do autor a Martinho Lutero, que segundo consta, dizia que o Diabo lhe
aparecia e lhe atirava um tinteiro à cabeça.
Certo, um filme de época não é algo sério, necessariamente. Além do mais, este aqui
está cheio de erros históricos. Por exemplo, Tito Lívio nos fala de um cão fidelíssimo,
pertencente ao procônsul da Armênia, que atendia pelo nome de Medorus. Onde está
este cão? Enfim, o roteiro é infantil, e só vejo o argumento da Flauta encantada de
Mozart para rivalizar com ele em termos de ingenuidade e inverossimilhanças.
Vittorio Cottafavi é um jovem metteur em scéne italiano que realizou uma quinzena de
filmes com títulos proibitivos, completamente desconhecidos dos amateurs de cinema.
Pudemos ver na França: Femmes libres, Fille d’amour, L’’affranchi, Repris de Justice,
Milady e os Mosqueteiros, O Carrasco de Veneza, Le Prince au masque rouge e esta
Revolta dos gladiadores, co-produções dubladas, com um aspecto miseravelmente
“alimentar”, distribuídas- com exceção da última- entre Belleville e a Porte Saint
Martin. Todos estes filmes são interessantes, quatro ou cinco contém belezas às quais
nenhum outro cineasta europeu pode aspirar emular, duas são obras-primas: Milady e
Femmes libres.
Sem dúvida, Revolta dos gladiadores não constitui uma excelente introdução ao
conhecimento de Cottafavi. A mise en place, até agora extremamente íntima, fundada
sobre as possibilidades maiores de surpresa, de “surgimento” e de seleção, oferecidas
pela tela normal, tem tendência a se diluir nesta primeira confrontação com o formato
Cinémascope, provocando um certo relaxamento geral, e tempos longos desnecessários.
No entanto, há ainda muitos planos tensos, “esfolados vivos”, agudos e ferinos como
diamantes, para servir de suporte e referência a algumas proposições sobre o gênio de
seu autor. Deixando seus compatriotas tateando nas brumas neo-realistas, este, à
semelhança de Preminger e Mizoguchi, cinzela seu delírio em filmes preciosos,
paroxísticos, oscilando entre os dois pólos de sedução, do amor e da morte, fantasmas
maiores que se resolvem em uma sublimação dos gestos. Que me importam os
pretextos, se os eventos se dissolvem na magnificência da expressão? Mais que
qualquer outro, Cottafavi se liga aqui à beleza dos rostos, beleza crucificada,
magnificada nos suplícios, nostalgia de um universo de príncipes onde apenas os jogos
de príncipes são permitidos. Máscaras, venenos, flagelações, palácios, pesados
cortinados, punhais (e seus equivalentes modernos) só conhecem duas conclusões
possíveis , esta “lentidão “ ( ralentissement) súbito do homem que estaca diante de sua
própria morte, os olhos perdidos, janelas sem fundo, ainda aqui e já fora do mundo, e
nos oferecendo, em um último estilhaçamento, o segredo de uma divindade dolorosa, ou
então esta cintilação de dois corpos enfim reunidos, grupo esculpido no instante e, no
entanto, de dimensão eterna. Assim se encontra ilustrada a mise en scéne que amamos ,
seqüência de impulsos e de repousos, espelhamentos, gritos, jogo gratuitos e “fora de
propósito” ( hors de propos) que nos falam do essencial.
Michel Mourlet
Tradução: Luiz Soares Júnior
Do mesmo modo é a alta e novíssima idéia de realismo que descobrimos aqui. Não foi
há muito que elogiei Stromboli ou Europa ‘51 por seus aspectos documentais. Mas em
sua construção, Viagem à Itália não está mais perto do documentário do que do
melodrama ou do romance de ficção. Certamente nenhuma câmera de documentário
poderia ter gravado a experiência deste casal inglês desta maneira, ou, mais
adequadamente, com este espírito. Tendo em mente que até a cena mais direta e menos
planejada é sempre inscrita na convenção da edição, continuidade e seleção, e tal
convenção é denunciada pelo diretor com a mesma virulência demonstrada em seu
ataque ao suspense. Sua direção de atores é exata, imperiosa e ainda assim não é
totalmente "atuada". A história é solta, livre, cheia de fraturas, no entanto, nada poderia
estar mais distante do amador. Confesso minha incapacidade em definir adequadamente
os méritos de um estilo tão novo que desafia toda definição. Até se pensarmos somente
em seus enquadramentos e seus movimentos de câmera (onde até os maiores diretores
não alcançam inovações há muito tempo), este filme é diferente de qualquer outro.
Através de sua magia somente, ele consegue dotar a tela com aquela terceira dimensão
tão perseguida nos últimos três anos pelos melhores técnicos nos dois lados do
Atlântico.
Estou ciente da possível objeção: "Não atribua a uma habilidade suprema o que só pode
ser o resultado acidental do descuido". Certamente não! Não se produz literatura tirando
palavras da cartola, não se cria uma peça verdadeira de cinema tão original como esta
vagando pela estrada com uma câmera de 8mm em mãos. É estranho como tudo em que
a regra falta é como uma escrita automática. As novas e maiores erupções só podem vir
da fenda mais estreita e menos perceptível. Com uma simples baforada de seu cigarro
no declive do Vesúvio, a heroína desata uma abundante nuvem de fumaça - é assim que
Rossellini, mestre da magia, mais do que doma sua matéria. Ele conta com esta
cumplicidade como um músico tocando numa caverna usaria o eco a seu favor.
Confesso que enquanto assistia ao filme meus pensamentos se desligaram pra direções
distantes daqueles da própria trama, como alguém que vai ao cinema pra matar o tempo
entre compromissos e, com a mente mais em suas próprias preocupações do que
naquelas do filme, é surpreendido ao se pegar tentando olhar o horário num relógio que
um dos atores está usando. Este tipo de ilusão certamente não é aquela que um ator teria
orgulho em criar. Eu admito que fui mergulhado em todos os tipos de absurdos fluxos
de consciência: o modelo da jaqueta de George Sanders, quantos anos ele deve ter, o
quanto ele envelheceu desde Rebecca ou A Malvada, o estilo de cabelo de Ingrid
Bergman, pra não mencionar a forma dos crânios nas catacumbas ou os novos métodos
arqueológicos – algo que não seria permitido numa trama com o tempo mais sustentado.
Mas notei que até mesmo quando minha imaginação parecia vagar, de tempo em tempo
ela cruelmente me forçava de volta à própria matéria do filme. Neste filme em que tudo
parece acidental, tudo, até a mais maluca digressão mental, é parte essencial dele. Este
argumento não será levado além do necessário. Diante de um trabalho desta estatura
uma declaração de circunstâncias atenuantes é inapropriada.
Durante sua entrevista aos Cahiers no ano passado, Rossellini falou a respeito do "senso
de vida eterna" e da "presença do milagre" que foram revelados a ele no solo de
Nápoles. Essas duas frases são eloqüentes o suficientes em si mesmas e me eximirão de
um comentário mais longo. Do museu de Nápoles às catacumbas, da fonte de enxofre
do Vesúvio às ruínas de Pompéia, nós acompanhamos a heroína ao longo do caminho
espiritual que guia da superficialidade dos anciãos sobre a fragilidade do homem à idéia
Cristã de imortalidade. E se esse filme tem sucesso - logicamente, você pode dizer -
através de um milagre, é porque aquele milagre estava na ordem das coisas, a qual, no
fim, depende de um milagre. Tal filosofia é estranha à arte do nosso tempo. Os maiores
trabalhos - até aqueles mais tingidos com misticismo - parecem achar sua inspiração
numa idéia um tanto quanto oposta. Eles apresentam uma concepção do homem como
uma divindade - senão completamente Deus - que é uma enorme tentação para nosso
orgulho e que quase nos desfaleceu. Há preocupação sobre o desaparecimento da arte
sagrada: o que importa, se o cinema está tomando o lugar das catedrais! Eu irei além: o
que faz o Catolicismo tão maravilhoso é sua extrema abertura, seu poder infinito de
enriquecer-se. Não um templo tomado pela hera, mas um edifício cujas pedras
aumentam com o passar de cada século, enquanto sua unidade permanece inalterada. E
não só através de seus dogmas (estou pensando no recém-proclamado dogma da
concepção), mas de sua capacidade de se renovar na vida e na arte, ele cada vez mais
despreza o frágil suporte da filosofia natural. Pela graça de sua música talvez uma missa
de Bach possa nos encaminhar para mais perto de Deus do que a magnificência das
catedrais. É essa a tarefa do cinema, trazer para a arte aquilo que as grandes riquezas de
todo gênio humano ainda não souberam descobrir: a noção do milagre?
MAURICE SCHÉRER (Eric Rohmer)
Cahiers du Cinéma, 47, maio de 1955.
Traduzido de francês para inglês por Liz Heron. Traduzido de inglês para português por
Luan Gonsales.
A marca da maldade
Aliás, Welles explicou que recorria aos planos curtos quando tinha pouco dinheiro, e
aos longos, aos planos seqüências, quando tinha um pouco mais. É preciso ficar bem
entendido, no entanto, que Welles utiliza o plano sequência numa ótica oposta a de um
Preminger, que através do plano quer fazer esquecer o découpage e a montagem, neste
sonho idealmente clássico de um filme que seria composto de um único plano. O plano
sequência de Welles se designa e se reivindica como tal em cada um de seus segundos.
É uma proeza, destinada a tirar o fôlego do espectador e a engendrar um suspense
interno que concerne menos à ação propriamente dita que ao virtuosismo do diretor. No
primeiro plano de Marca da maldade- trajeto do carro com a bomba( sem dúvida o mais
espantoso e significativo de toda a carreira de Welles)-, estes dois suspenses coexistem
e coincidem absolutamente. Quanto ao resto, ou seja, a fotografia violenta e contrastada
( Welles é o cineasta para quem o uso da cor é essencialmente alheio) o uso das curtas
focais e dos enquadramentos insólitos ( plongées e contra-plongées), os dois filmes são
idênticos e recriam este espaço crepuscular, percorrido por fantasmas expeditos , espaço
este que o cinéfilo mais debutante reconhece como inegavelmente wellesiano.
Os dois filmes, no plano do roteiro, são de um nível muito inferior, mas este é um
estímulo para que Welles se interesse mais pelos personagens que pela ação, e ainda
mais pela atmosfera que pelos personagens. Os temas da corrupção e do poder, da
memória inalterável e mortificante, da impossível mudança de identidade ( sublinhada
por esta profusão de máscaras e de lugares diferentes onde os personagens buscam de
forma vã se ocultar) ressurgem perpetuamente entre as linhas e as imagens. O roteiro de
Arkadin é ligeiramente superior ao de A marca da maldade, pois toma sua construção de
empréstimo de certos filmes noirs, cujo precursor foi Cidadão Kane, e também por não
conter nenhum maniqueísmo. Todos os personagens “estão no mesmo barco”, e
participam da universal corrupção do mundo. Já o roteiro de Marca da maldade é o mais
cheio de convenções, complacências e inverossimilhanças que já se viu num policial
depois da guerra. Pouco importa, pois permitiu a Welles encenar, uma última vez, em
todo seu esplendor minado “ de dentro”, o seu teatro de sombras e pesadelos.
Nota: Sem dúvida, é abusivo colocar Welles entre os grandes artistas deste primeiro
século de cinema. O tempo fará justiça a este erro, cometido ao lado de outros por
histórias do cinema que ainda tem muito a explorar em uma arte tão difícil ainda de
julgar, em vistas de sua novidade. Seria também injusto negar a Welles as qualidades
que lhe pertencem: as qualidades de um grande “pequeno mestre”, que soube persuadir
seus contemporâneos de que tinha gênio, as qualidades de um príncipe do artifício , ou
de um brilhante megalômano cuja megalomania tornou conhecido e superestimado para
além de toda medida e que foi, ao mesmo tempo, privado de realizar a obra abundante e
constante, secreta e definitiva, que outros em Hollywood pacientemente construíram no
ingrato conforto da obscuridade. Mas este não seria o destino e a última pirueta de
certos barrocos? Inspirar-nos o lamento, através da dilapidação de seus dons, pelas
obras sublimes que poderiam ter nos proporcionado?
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior
Festim diabólico
Primeiro filme de Hitchcock em cores, primeiro dos quatro rodados com James Stewart,
, primeiro onde o diretor aparece como produtor. Data importante na carreira de
Hitchcock, Festim diabólico é também um dos filmes mais sérios jamais filmados. É
baseado na fórmula que, durante mais de quarenta anos, vai seduzir os públicos do
mundo inteiro: um extremo formalismo posto a serviço de emoções elementares, de
temas universais, ligados em sua maioria à moral. Realizar um filme de um único plano
foi sempre o sonho- mais ou menos confesso e consciente- de um bom número de
diretores. De fato, este sonho corresponde à passagem ao limite de uma das duas
principais atitudes estéticas possíveis no cinema: dada a inevitável fragmentação da
criação cinematográfica, ou podemos acentuá-la e tomar como ponto de partida
pesquisas estéticas que valorizam a montagem e a multiplicação dos espaços, ou
podemos negar esta fragmentação ao forjar uma continuidade que absorva todos os
espaços em um único espaço, todos os planos em um único plano. O cinema da
fascinação ( Lang, Preminger, Siodmak, etc), cultivado nos anos 40 nos Estados Unidos,
vai levar esta tendência ao seu mais alto grau de refinamento, ao desenvolver o uso do
plano seqüência. E não é espantoso que Hitchcock, que considera cada filme como uma
desafio, um exercício de estilo, uma nova maneira de estarrecer o público, tenha tido
nesta época o desejo de estender as possibilidades do plano sequência à dimensão de um
filme inteiro. Pragmático, formalista, mas não esteta, Hitchcock vai levar a cabo este
desafio em primeiro lugar tomando-o ao pé da letra: um plano é um plano; portanto,
nada de mudança de local, portanto tempo contínuo, portanto nem um único raccord
visível ( o que vai implicar a utilização de astúcias e truques visuais , uma vez que,
tecnicamente, nenhum plano pode durar mais que dez minutos de projeção). O desafio
proposto nos leva assim ao teatro mais fechado e claustrofóbico, enquanto que, por
exemplo, no espírito de um Preminger , o sonho do filme em um único plano possui
algo de cósmico: trata-se de abater as muralhas em torno da realidade a fim de
apreendê-la em um único fluxo uniforme e em um espaço contínuo.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior
Alexander Névski
Neste filme ilegítimo e desigual, que o próprio diretor julgou a mais superficial e menos
pessoal de suas obras, Eisenstein está à vontade com as armaduras, os capacetes, a
estratégia abstrata do combate, as massas brancas do lago e do céu, os cavalos, a
natureza. Mas ele não sabe o que fazer dos homens. Eles só aparecem no prólogo e no
epílogo ( que mesmo assim ocupam dois terços da duração do filme), para destilar a
mensagem patriótica e nacionalista. Eisenstein, em Alexander Névski, ainda não
aprendeu a integrar o homem em seu formalismo, agora que este formalismo suplantou
em sua obra a ideologia. Para tanto, lhe seriam necessários ainda as duas épocas, os
tormentos e a maldição de Ivan, o Terrível.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Comecei a me interessar sobretudo pela música, mas como não tinha nenhuma aptidão
para música, passei à literatura. Escrevi dois ou três contos quando jovem, mas não
tinha nenhuma vocação pra literatura. Assim, fracassei também na literatura. Me
cansava muito, a página em branco me dava pesadelos. Então, pensei em fazer pintura.
Não tinha nenhum sentido das cores, e também fracassei na pintura. Fracassando em
uma, fracassando em outra, cheguei ao cinema. Talvez eu também tenha fracassado na
mise en scéne, mas enquanto isso persisto nessa linha.
A primeira vez que pensei em fazer filmes, foi por paixão esportiva. Fiz em minha
juventude muita escalação de montanha. Com 28 anos, era uma jovem promessa do
alpinismo. Escalava com um guia famoso de montanha, Emilio Comici, que
infelizmente morreu num acidente na montanha em 1940. Enfim, eu era uma promessa
que não vingou, porque à uma certa altura da minha vida fiquei com medo. Nesta época,
eu fazia muitas fotos, e era muito hábil em tirá-las com uma iluminação que sugeria
uma certa obsessão da vertical, propícia à expressão dos corpos nos rochedos. Emilio
Comici me pedia sempre fotos, pois em suas conferências ele fazia projeções para
ilustrar suas explicações técnicas. E comecei a me interessar pelo documentário em 16
mm. Estudei a montagem, comecei a descobrir certas leis, a repetição por exemplo, e
que se você repetia três vezes o mesmo movimento, este tornava-se obsessivo. E meu
amigo me dizia: “Mas não, não é preciso montar, trata-se de um documentário, não de
um filme”. Assim, descobri algumas pequenas coisas que começaram a me interessar
como possibilidades. E tive ocasião de ver filmes franceses de vanguarda na época,
como Entr’act e Sangue de um poeta.
No entanto, nunca fiz um filme sobre a montanha. Há uma história que amaria filmar,
foi a primeira coisa na qual pensei quando tive a possibilidade de começar a dirigir: um
romance de Ramuz que acho extraordinário e que se chama O grande medo na
montanha. Justamente, nesta montanha, há o sentimento do pânico, a morte. Os
produtores acharam que não era comercial. No entanto, não perdi toda esperança de
realizar este filme no futuro.
Depois deste primeiro contato com a câmera, tomei mais interesse pelos filmes e passei
a vê-los de um ponto de vista totalmente diferente. Interessava-me muito menos pela
história que pelos seus sentimentos secretos, a composição da imagem e a ligação dos
planos, os movimentos de câmera, os problemas de iluminação.
É um tema que me afeta muito, a morte, em todos os seus graus, pois todos os dramas
da vida são degraus para alcançar a grande morte final. E a morte, todos a conhecem,
todos a viram, mas a cada vez que vou filmá-la, busco descobri-la. É por isso que acho
que fiz bem. Na Fille d’amour, a morte da moça, é uma descoberta da morte. A moça
não está lá, ela já está no caixão(estão prestes a fechá-lo), os outros estão se lixando, só
querem mesmo é fechar o caixão. Todo mundo viu isso, teve um amigo próximo que
morreu, e a quem fecharam o caixão. À cada vez a morte deve ser descoberta segundo o
caráter, a linha geral do que estamos em via de buscar. No Legiões de Cleópatra, eu
buscava visar uma morte sob o ponto de vista histórico, ou seja, uma sinfonia de cores
que dá conta também de uma presença metafísica da morte: a morte de um grande
personagem deve ser a morte de todo grande personagem. Isto me sugeriu a idéia da
cor, da posição, no momento em que ia filmar. Estava prestes a situar o morto, na hora
eu me disse: “Não, não é isso”; eu o mudei de posição, pensei no manto vermelho, que
pousei sobre ele; depois coloquei o amigo do morto com este encarnado, do outro lado.
Enfim, eu construí esta morte pedaço por pedaço, a fim de descobrir a morte do grande
personagem histórico.
Augusto chega diante do corpo de Antonio e se dá conta de que não se trata do
suicídio de um desesperado, mas uma morte gloriosa, a realização de uma vida.
Neste momento, ele compreende a grandeza de Antonio.
Não sei se consegui exprimir tudo que queria nesta cena, mas queria dar a idéia que em
Augusto, neste instante, havia três sentimentos; e isto deveria ser mostrado apenas pela
atitude, pois não se poderia fazer um close de Augusto, que não teria significado nada
numa cena onde se deve respirar o cenário de um só fôlego. Logo, em suas atitudes,
gestos e poses, eu queria exprimir três coisas: o ódio que ele sentia por seu adversário, a
admiração e o sentimento romano, ou seja, a satisfação em que um Romano tenha
morrido como um grande Romano. E estes três sentimentos devem ser dados pelo que
ele mostra em relação à morte, sua curta estacada, sua maneira de voltar a cabeça para
Antonio, sem nenhum signo de respeito ou saudação, mas apenas contemplando-o com
um certo orgulho, depois se deslocar pela escadaria, afastando-se do corpo. Não sei até
que ponto meu propósito foi atingido pois, como sempre em um filme, os sentimentos
secretos que devemos comunicar ao público não devem chegar até ele com a clareza da
explicação, mas de alguma forma no inconsciente. Depois disso, podemos dizer ao
público: “Escute, isto quer dizer isso e isso e isso”. Se este responde: “Ah, é verdade,
não tinha pensado nisso”, conseguimos um sucesso no nível da comunicação fílmica. O
público pode descobrir o sentimento, se o examina, se discute.
Se trata-se de um sentimento secreto e que precisamente você o mostra com
clareza, você só pode mostrá-lo em segredo, ou seja, obrigar o público a descobri-
lo.
Ah, sim, tenho horror de ser muito explicativo. Em A Verdade do Clouzot, há um pouco
de verdade demais. Clouzot, como Cayatte, explica muito muitas coisas. Ele não dá
jamais o puro sentimento. Um sentimento explicado torna-se impuro. A câmera possui
um poder extraordinário, incrível, de ver dentro das coisas. Não é preciso exteriorizar.
Me dá um pouco vontade de rir disso. Eu faço filmes de capa e espada, de aventuras,
mas o que busco também através deste gênero de filmes, é captar algumas pequenas
verdades interiores, dentro, para sugeri-las ao público, não fazer declarações de
princípio. Arrisca-se sempre nos filmes de passar da expressão artística para a expressão
política - esta talvez seja a melhor forma de dizer. Na política, não se faz jamais
sentimento, faz-se política. Em relação aos filmes, devemos nos manter no estado de
alma que convém, o sentimento se cria sem que haja necessidade de explicá-lo em
termos lógicos.
Poderia nos precisar o sentido de sua mise en scéne, quando esta se conforma a um
esquema geométrico determinado, precisamente idêntico na maioria de seus filmes
em certos momentos?
Você disse muito bem: geométrico. Há cenas onde esta geometria é de tal forma
declarada que talvez incomode o espectador. Assim, na Fiamma che non si spegne, toda
a cerimônia durante a qual vão fuzilar o homem é construída segundo uma forma
geométrica quase maníaca, composta de volumes e sublinhada por travellings,
geometria de linhas longitudinais e transversais que pode aparecer a muitos como um
formalismo. Assim como, nas Legiões de Cleópatra, a batalha tende a se tornar, em
certos momentos, um ballet. Posso dificilmente explicar o que tento exprimir, pois isso
nasce de uma profunda necessidade do meu espírito. Existem situações para as quais
sinto a necessidade de orientar a totalidade dos eventos segundo uma certa construção
na imagem.
Não se trata então do desejo de dominar totalmente o mundo em um certo
momento?
Sim, de fazê-lo destilar um certo som. Para ser claro, eu direi: amo Bach demais para
não tentar emulá-lo em um filme. A cena da execução na Fiamma é um pouco à maneira
de Bach, ou seja, construída com sons verticais e horizontais. A forma desta cena
nasceu da necessidade de dar uma ordenação às coisas materiais, a fim de que sejam
liberadas certas coisas do espírito.
Trata-se muito exatamente de uma liturgia.
Um homem vai ser morto com todo um cerimonial. O que devemos fazer? Liturgia. As
ordens dadas pelo chefe do pelotão, ele as dita como se dissesse uma missa, pois o
milagre está prestes a se realizar. O corpo vai tombar sobre a terra, a alma se libertará.
Alguma coisa vai acontecer. É uma outra possibilidade de ver a morte. Eu poderia dizer
o mesmo da multidão. A multidão me dá sempre pesadelos, como se fosse algo de
inumano. Então, procuro dar-lhe duas direções em diagonais, já que tal composição a
torna para mim um pouco mais humana. A desordem ordenada. Penso que o homem
está à procura de uma ordem. Eis o motivo, aliás, porque nas ciências ele consegue
paralisar numa ordem a desordem da criação.
Esta liturgia em forma geométrica é também o próprio movimento da tragédia, ou
seja, ela instaura uma ordem inelutável, uma engrenagem que não se pode fazer
parar.
Sim. Uma vez no interior desta ordem, impossível dela sair. Se começamos com este
princípio de geometria, devemos ir até o fim, nos liberar. O milagre deve acontecer,
quer seja o milagre do sentimento, da morte ou da vida. Chegado a este termo, posso
abandonar a liturgia, retomar uma desordem indolente na situação dos personagens. Eu
cheguei ao limite de um certo jogo de linguagem.
Não há um perigo nesta ordenação dos eventos, o da teatralidade?
Não se pode fazer comparação entre cinema e teatro pois, no cinema, a geometria é
rítmica: em suma, é uma geometria de movimentos de câmera e uma geometria de
movimentos de atores na câmera. É uma geometria de montagem. O próprio som, o
jogo do som, o fato deste se distanciar e se aproximar. Tudo se torna geometria.
Enquanto que, no teatro, a geometria é puramente formal, apenas uma composição nos
limites do quadro. Não é uma geometria criativa. No entanto, sim, há um perigo aí...
Nos Nibelungos, Fritz Lang fez geometria, mas um pouco decorativa e superficial. No
entanto, quando vi esse filme, eu era muito jovem, jamais o esqueci. Mesmo em sua
exterioridade, ele me trouxe algo que ficou na minha memória: as escadarias, a dama de
branco, a dama de negro, com sua seqüência , preto de um lado, branco de outro. Tudo
isso, que foi construído um pouco teatralmente, possuía uma presença na tela muito
expressiva, carregada de significados. Quando Lang fez esse filme, não era ainda o
grande Fritz Lang que é hoje. Mas já víamos a busca de uma solução formal do
problema dos sentimentos. Era um pouco infantil vestir Brunehilde de negro e
Krimhilde de branco, isto era do teatro expressionista, mas no entanto dava uma
“direção”. Assim como no Gabinete do doutor Caligari. Estas experiências me
interessaram por um certo momento, eu buscava saber o que poderia tirar daí.
Você, de alguma forma, prolongou estas pesquisas, interiorizando-as...
Sim, você disse bem: “interiorizando”. Eu falava há pouco do poder da câmera. Eu diria
melhor: “da inteligência da câmera”. Nos acreditávamos mestres da coisa, depois nós
percebemos que ela trabalhou por conta própria. Ela viu por si mesma, tem um poder
próprio: eu creio ter captado a expressão de um ator, vejo os rushes; flagramos uma
outra expressão. O que aconteceu? Foi a câmera que mudou, que escolheu. Por isso é
preciso conhecê-la bem. É preciso estar em boas relações com ela, com amizade, porque
senão ela lhe prega uma peça.
Quanto ao personagem tal como eu o concebo, eu poderia lhe dar um exemplo com um
conto de Kafka chamado A construção (La taupe, A toupeira, em francês). Esta toupeira
é um personagem. E nos identificamos de tal maneira a ela que, quando li esta história,
me senti totalmente uma toupeira. Ela tem medo, faz seu buraco, depois, com medo de
que a descubram, ela dissimula a entrada e a aprofunda. Então, ela ouve um ruído, cava
outros buracos pra descobrir onde está o inimigo, cava uma saída de emergência, aí se
diz: “Mas se ele entrasse por essa saída...”, e ela tapa a saída. Este personagem somos
nós mesmos. Somos toupeiras. Em todos os lugares, está o inimigo. Estamos sempre na
iminência de construir nossa pequena defesa, moral, psíquica. É um tema que adoraria
definir em um filme, exprimindo este medo pânico que o homem experimenta hoje em
dia. O medo que leva o homem à guerra. Comunica-se de um a outro, torna-se coletivo.
Até que nos sintamos fortes o suficiente para esmagar o inimigo, ficamos na defensiva,
cavamos buracos. Quando nos sentimos suficientemente protegidos, advém a loucura de
suprimir o inimigo. A loucura coletiva que nos valeu a última guerra irrompeu na
Alemanha, talvez a nação mais kafkiana. A luta contra os judeus representa exatamente
o que dizia Kafka, que enquanto judeu teve uma exasperada sensibilidade dessas coisas.
E acho que esta loucura tem um poder extraordinário. Ainda não pensei em fazer um
filme disso. Talvez seja muito difícil, talvez um esforço que meus músculos não
poderiam suportar. Poderia eventualmente conseguir, individualizando a situação em
personagens, ao o invés de colocá-la como situação coletiva.
O que é para o senhor o tema de um filme?
Penso que é um estado de alma. Um estado de alma genérico sobre um problema, uma
tese, um sentimento, que lentamente se precisa no personagem. O ponto de partida
abstrato se concretiza em um personagem, e em torno deste, os eventos adquirem vida.
Creio que o nascimento do tema é mais ou menos a mesma coisa num romance. Com
exceção de que, num romance, a idéia se materializa imediatamente em uma linguagem
composta de palavras e em uma construção determinada, enquanto que, na gênese do
filme, a idéia deve permanecer no “vago” do découpage, na pré-ordenação do material.
Por outro lado, se é evidente que o tema imaginado pelo diretor é mais próximo de sua
personalidade que o que vem de fora, existem comunicações espirituais de tal monta
que podemos encontrar em outros autores mais coisas semelhantes a nós do que
podemos imaginar. Assim, entre os escritores franceses, gosto muito de Julien Green.
Em seu Diário, ele escreveu coisas que me tocam profundamente. Adrienne Mesurat é
uma história à qual, se a adaptasse pro cinema, creio que não mudaria quase nada, de tal
modo eu participo deste drama terrível, deste crime, este sofrimento, esta compressão,
esta busca por uma liberação impossível. Isto corresponde exatamente à forma
dramática de minha concepção de vida. Há também Bernanos. Um dos meus maiores
desejos seria adaptar Sob o sol de Satã. Enquanto isso, espero adaptar Um crime, que é
mais cinematográfico, mais aceitável pelo público, embora comporte elementos do
outro livro.
Pode-se portanto acolher uma obra já acabada, de uma outra linha expressiva, uma outra
linguagem, como o romance, aderir a ela e transformar num filme. Em cada imagem
literária, há a possibilidade da imagem fílmica. Não é preciso dizer que os escritores, em
sua maioria, acham que foram desrespeitados. Os escritores que não compreendem a
linguagem do cinema. Mas os que a entendem se dão conta de que é o equivalente da
imagem literária; mesmo se há um desvio na “letra”, o essencial é que se permaneça fiel
ao espírito. O trabalho de transposição aliás é tão difícil que se renuncia quase sempre, e
se limitam a transportar o material literário ao filme. É evidente que foi algo que não
deu certo, porque fica literatura filmada. Mas se temos a força, a perseverança, a
vontade de acertar, penso que a maioria das obras literárias que correspondem a nosso
verdadeiro sentimento de autor de cinema podem encontrar um equivalente exato na
imagem.
Esta equivalência é o verdadeiro objetivo de seu esforço, ou será que a obra
literária não desempenha antes o papel de trampolim de sua inspiração, de um
material, além de um simples roteiro?
Penso que você exprimiu exatamente a verdade, embora de forma um pouco
intempestiva. A mise en scéne não é uma coisa abstrata, talvez mesmo no domínio das
artes seja a coisa mais concreta. Trabalho com atores, com cenários, com a câmera, eu
trabalho com a história. É um dos dados concretos. É claro que devo transfigurá-la,
transformar em mise en scéne o que é literatura. Mas não posso dizer: isso não existe.
Por esta re-criação de elementos literários, chegamos a uma outra forma que talvez
acabe por trair em parte a obra original, mas lhe permanece inteiramente fiel, na medida
em que o cineasta nela se reencontra e reconhece.
É evidente que se adapto uma obra que não me interessa, que não me corresponde,
destacada de mim, autônoma, eu faria o filme, sem dúvida, um filme talvez perfeito,
votado a grande sucesso, mas que não possuiria o frisson da criação, este algo que toca,
quando a expressão artística atingiu seu fim. Então, podemos arruinar completamente
um filme, mas em compensação temos uns 100 metros de película onde vemos o poeta.
Como aborda o problema da direção dos atores?
Acho que o ator é um ser que, quanto mais ator ele é, mais sensível, delicado, mais ele
deve ser ‘bem levado”. Falo dos verdadeiros atores, pois os que não são, é preciso lutar
com eles, pressioná-los pela força. Mas o verdadeiro ator, aquele que está maduro, que
tem o desejo de se exprimir, o dom de comungar com o público, a primeira coisa a
fazer, é se aproximar dele com amor, com interesse, compreendê-lo, até mesmo seus
defeitos. Não lhe dar porradas, fazer pressões. Tomá-lo pela mão, ajudá-lo, adulá-lo,
dar-lhe segurança, a alegria de se exprimir e lhe dizer: “Sim, sim”, mesmo se às vezes
seria preciso lhe dizer não. O “não” , é preciso dizê-lo em certas circunstâncias, não em
outras. É preciso se explicar longamente, sempre pronto a renunciar ao que se pretendia
obter, se não obtivermos sucesso. Enfim, o trabalho com o ator é um casamento. O
casamento é um esforço contínuo de “saber levar”, de dom, de sacrifício pelo
companheiro de sua vida. Com o ator, é um pouco assim.E sobretudo é preciso evitar
lhe impor um “som” que não lhe seja harmônico. O segredo do diretor é utilizar o ator o
mais adequado possível a seu papel. Depois de ajudá-lo a aderir; de sustentá-lo, de
fortificá-lo sem que se veja o esforço. Isto para os atores realmente atores.
Há também aqueles que possuem apenas uma profissão. Pode-se obter muito deles, mas
é um outro trabalho. Um trabalho no plano do profissionalismo. Eles possuem um
profissionalismo tão sólido que podemos explicar claramente tudo o que desejamos , e
eles procuram te dar. Ajustamos um pouco mais forte, um pouco menos, mais à direita,
um pouco mais à esquerda, até que a expressão adira ao personagem. Podemos trabalhar
com esses como quando conduzimos um carro: mudamos de velocidade, desviamos o
volante. Em um certo sentido, para o diretor, estes atores profissionais dão mais
satisfação que os atores “atores”, ou seja, os atores poéticos.
Você chega até o ponto de deixar a este tipo de ator uma certa liberdade de ação?
Não, não uma liberdade de ação, eu demando uma colaboração. Trabalho com o ator, eu
busco uma confiança recíproca. O Confiteor. Devemos nos confessar
(no sentido de se abrir, entrar em comunhão com) um ao outro. O diretor do tempo
romântico da mise en scéne, se posso falar assim, o ditador que dava ordens e queria
que as executassem, cometia um grande erro. Não, o diretor dá conselhos que ele deseja
que sejam executados. Ele mesmo pede conselhos aos atores, sugestões. Quando um
ator me diz: “Não posso fazer isso, não o sinto, preferiria fazer assim”, eu o escuto
sempre, pois seria um crime não ouvir um homem que tem sensibilidade e cujas
possibilidades de expressão estão amadurecidas, sobretudo se ele compreendeu bem o
personagem. Eu poderia lhe responder: “Não, não estou de acordo, não faça assim, te
imploro”. Mas por que renunciar, em nome de uma autoridade exterior, a esta
colaboração fecunda? Acho que, em nosso trabalho, a falta de humildade é o pior
perigo.
Claro, falo em teoria, porque em um filme que estou prestes a filmar( Hércules à
conquista da Atlântida), há pouquíssimos atores. Há tipos que desempenham seus
papéis da melhor maneira que podem, com seus físicos imponentes, seus belos gestos,
suas cabeças romanas, suas roupas de época, que os fazem parecer mais uma torta que
homens. Com eles, o trabalho é de outro gênero. Torna-se muito mais mecânico,
sobretudo mais simples, porque só damos o tom fundamental: não se pode executar uma
sinfonia de Beethoven, executa-se simplesmente- nem mesmo uma sonata, um som. Eu
não trabalho mais com uma orquestra, mas com um diapasão. A um eu dou um fa e
tang!, ele trabalha em fa. A outro um mi, e ting”, ele trabalha em mi. Eu falei da busca
pelo dilaceramento interior. Atualmente, trabalho em filmes que demandam uma
construção, uma grandiloqüência exterior, o herói no sentido próprio e antigo do termo,
o mito enfim. É preciso portanto buscar um natural- não o natural do cotidiano- , mas o
natural da “roupa de época” (costume). Cada filme possui sua verdade. Um filme em
roupa de época tem sua verdade em roupa de época. A roupa deve ser empunhada de
uma certa maneira, o movimento da boca, a expressão dos olhos devem estar adequadas
aos figurinos e cenários. É um natural particular no “não-natural” do cenário e da
situação.
Depois, há a última espécie de direção de atores, quando se trabalha com não-
profissionais. Aí eu me refiro a De Sica, que é verdadeiramente um especialista da
questão. Ele faz o que eu tento fazer às vezes, com o anão Salvatore, por exemplo, que
não é ator. Que fazemos, buscamos, não? Buscamos, fazemos ele dizer uma réplica;
não, não está bem. “Então, vejamos, faça assim”. Ainda não está bem. Depois, certo
momento, captamos no jogo de uma ceninha que vamos repetir um tom que deu certo.
Isto foi conquistado! Cuidado pra não perdê-lo, pois se não são profissionais, perdem
tudo facilmente. É preciso manter firme o ponto alcançado, e modificar o resto em
função deste fragmento de verdade do senhor que não é um ator. É um trabalho muito
lento e com freqüência ingrato, mas que, graças a esta falta de “profissionalismo”, de
quiproquós profissionais, em certos filmes do neo-realismo deu resultados bem
interessantes.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Revisão: Luan Gonsales e Matheus Cartaxo.
1. Para alguns, os grandes filmes de Preminger são sobre a criação. Não deixam de ter
razão. Mas seria mais legítimo falarmos na impossibilidade de toda criação. Desta
impossibilidade nos vieram algumas obras-primas, depois alguns filmes tocados pela
loucura, e hoje a amarga insignificância de Hurry Sundown. Preminger falava da
criação, mas de uma criação estranha, pouco satisfatória, pouco natural, espantosa
apenas pela soma das energias postas em jogo. Não o élan ( impulso, dinamismo) que
proporciona a tudo e a todos seu lugar no mundo, a chama indivisa que impulsiona para
frente, sem remorsos, e que a análise não consegue atingir. Preminger não é homem
desta criação, embora ela tenha sido sua grande preocupação: a esperança, o assombro
de suscitar, de descrever uma criação inocente. Nos filmes que lhe valeram sua
reputação ( Fallen angel, Laura, Whirlpool), esta inocência é aquela do inseto que se
enrosca na teia, que ignora que jamais esteve tão próximo da aranha, inocente pois
hipnotizado, preso na armadilha, fantoche, cego fantasma criador, criador porque cego.
3. A arte da mise em scéne não era- como se acreditou, de forma leviana- panacéia
universal ou meio privilegiado de fazer cinema. O exercício da mise em scéne é também
a expressão de uma falta, uma carência ( un manque): suscitar em torno dos
personagens, encerrados em sua solidão, vítimas de suas diferenças, um espaço que
fosse sua prisão comum: arquitetura dos vazios, onde o vazio ameaça. A “fascinação”
exercida pelos filmes de Preminger é o efeito desta distância que procuramos reduzir o
máximo possível, até se confundirem olhar e coisa olhada. Mas esta confusão- que seria
a proximidade máxima- está fora de questão ( a não ser, como aparecerá mais adiante,
na morte, na destruição,o Apocalipse). Mas esta confusão- esta coesão- é também o
papel do artista: a abolição feliz das diferenças, a comunicação restabelecida, o corpo-a-
corpo assumido. Quando filma Exodus, Preminger se situa no coração de sua criação: a
vitória da coesão sobre o fragmentário. É preciso levar a sério a cena de Exodus onde
vemos Ari bem Canaan pronunciar a oração fúnebre de Karen e de Taha, personagens
que tudo separava e que uma mesma terra, um mesmo túmulo vão acolher: o plano dos
dois caixões, de talhe tão diferente ( diferença insustentável e que, verdadeiramente,
“salta aos olhos”) contém, para Preminger, o mais pesado dos sentidos.
4. A arte da mise em scéne consiste portanto em articular este vazio que desliza
fatalmente entre dois seres, entre dois momentos de um filme. Ela é o cimento de um
edifício onde nenhuma pedra se assemelha à outra, e sua importância vem do fato de
que ela- e unicamente ela- garante a solidez do edifício. Se este poder, esta “ligadura”
( chamado também de savoir-faire, ou habilidade) vier a faltar, a obra inteira será votada
ao reino do fragmentário e do detalhe ( Hurry Sundown). A partir de 1960, Preminger é
este homem que só buscará a fusão, a coesão na morte ou na aniquilação. Seguem-se
terríveis excessos de “estranhamento”: uma vez que os homens são fragmentos,
suscetíveis apenas de serem justapostos, é preciso reconstruir o mundo pacientemente,
mas reconstituir o mundo inteiro, a partir destes pedaços. Paradoxo que poderíamos
enunciar da seguinte maneira: descrever uma multidão onde poderíamos, a todo
momento, chamar cada um por seu nome.
5. Decisão que não se assume sem consequências. Que um homem seja algo de
fragmentário, pouco suscetível de um encontro harmonioso, mas destinado à tensão
raivosa da proximidade, capaz unicamente de violar ou se dispersar, é isto que constitui
o fundo das coisas. O resto, isto é, o desvio que tomou a obra de Preminger estes
últimos anos, é apenas uma tentativa de justificar esta verdade, dando-lhe palcos
plausíveis. Assim, temos os “grandes temas”: o episódico, o inacabado não possuem
nada de assustador, se são garantidos pela amplidão e pelo mistério de um grande tema,
onde a fragmentação é justamente a lei, a única maneira de descrever. Ninguém está em
possessão do jogo completo das causas e dos efeitos, mesma nas altas esferas da política
( Advise and Consent), da Igreja ( The Cardinal), ou do Exército ( In Arm’s Way). A
vista sobranceira, à medida em que se distancia de seu objeto, conforta: uma multidão
onde só encontramos rostos conhecidos.
6. Outra consequência: os filmes sofrem- em sua própria estrutura- uma evolução
análoga. Cada cena não precisa mais ter relação com o todo, a não ser de forma bastante
distanciada, à maneira de um “relais”. O filme como conjunto de elementos, soma de
energias, está também ameaçado de dispersão, sequência de elos ( maillons) que
ignoram o destino da cadeia- se cadeia houver. Em In Harm’s way, vemos uma meia
dezena de dramas e de problemas pessoais que parecem ter suscitado Pearl Harbour. É
bem evidente que no espírito de Preminger o cálculo foi inverso: tratar-se-ia de
encontrar um tema grandioso o suficiente para justificar a violência gratuita destes
dramas, sua impossível resolução, seu encadeamento arbitrário. Assim, na medida em
que o fragmentário acentua seu domínio, exige um cadre mais geral, um horizonte mais
universal.
7. Dir-se-ia que é um cálculo desonesto. Certo, Preminger pôde dar- pôde se dar- a
ilusão de tratar de alguns grandes temas, mas esta ilusão não se sustenta mais, os
pretextos cessaram de ser plausíveis.Assim, o problema racial nem explica nem é mais
explicado por Hurry Sundown, mas é um palco convencionalmente explosivo onde
pode se posicionar esta outra violência, a de um casal que se precipita em direção ao seu
desastre- défaite- ( “défaite” como se diz de uma coisa que ela se desfaz - défait). Se o
filme choca, é porque não é mais possível- em 1967- falar dos Negros como Preminger
o faz, e se este trata mal deste tema, é porque o problema para ele é apenas um caso
particular da regra; a regra que é, sabemos bem, a recusa de uns de se entregarem aos
outros, a fim de se conservarem na consciência infeliz de sua diferença.
8. Há também outra coisa. In Harm’s way era um filme admiravelmente realizado. A
arte do cineasta, a rapidez da execução, a escolha de certos atores, a mise em scéne no
ponto de clímax dos seus poderes conferiam ao filme esta “liga” que o preservava, in
extremis, da dispersão. In Harm’s way era a soma falsa de elementos justos. Não é o
caso neste Hurry Sundown. O mal que roía os personagens acabou por corroer o próprio
filme. A dispersão, a entropia, a falta de sinceridade despontam em cada plano. À ruína
moral dos personagens corresponde aqui o retorno do filme ao caos, ao reino do detalhe,
às imagens sem filme. Os espaços brancos do texto devoraram o texto, os interstícios
consumiram as pedras da construção, e contemplamos esta distância que ninguém
poderá preencher. Também sob este ponto de vista, a obra se desfez ( se dé-faite).
Serge Daney, Cahiers du Cinéma, dezembro de 1967.
Tradução: Luiz Soares Júnior
2. Da eficácia nos veio o cinema americano, e graças a ela, este se distancia de nós. A
lei foi a do rendement maximum (rendimento máximo). Mais que uma lei, uma estética:
a convicção de que tudo, sempre, pode servir, e que um bom filme é em primeiro lugar
o que esgota todas as possibilidades (o riso, o medo, as lágrimas, etc) de um roteiro. Daí
a beleza destes filmes - os mais inocentemente perversos - , indiferentes à matéria que
abordam, aos demônios de onde nasceram, indiferentes à imagem, que acreditam
pertencer a um mundo e uma civilização que lhes foram dados de uma vez por todas.
Seu único empenho é fazer brotar um sentimento, uma emoção, todas as vezes em que a
ocasião se apresenta. McCarey é um homem que nos diz que é triste filmar um casal de
velhos executado numa igreja (Satan never sleeps) mas que podemos, por meio de certo
enquadramento, acrescentar um elemento de beleza à cena. É tocante que uma belíssima
jovem (The bells os Saint Mary’s) narre suas desilusões amorosas, mas se esta jovem
fosse feia e ridícula, teríamos dois sentimentos ao invés de um. Ganho inapreciável.
4. Wilder não está nessa. Ainda não. Mas é preciso observar que o seu universo é este
mesmo descrito acima, o mundo da eficácia, onde cada homem tenta se vender ao
melhor preço e sob as melhores condições. O tema dos últimos filmes de Billy Wilder é
a prostituição, involuntária (The Apartment), alegre (Irma la Douce) ou extasiada (Kiss
me stupid!). E se não existe prostituição sem publicidade prévia, é preciso admitir que o
cinema foi por muito tempo o veículo ideal desta publicidade. Por isso não nos espanta
que The fortune Coockie seja um filme sobre a mise en scéne. Por um lado, Wilder é
seguro o suficiente do domínio de seus meios para não sentir a necessidade de ser eficaz
a cada instante; por outro, Willie Gingrich, sublime canalha, é sempre mostrado sob os
refletores do “morceau de bravoure”, ou seja, agindo como se soubesse que está sendo
observado (e o filme prova que ele tem razão), e nisso ele é um cabotino supremo, mas
visto com um certo recuo. Este recuo, esta margem - Wilder de súbito não mais
solidário com seus personagens, menos empenhado em ser eficaz que de falar de
eficácia, de mostrar-lhe os mecanismos - remete cada coisa a seu lugar e o filme ao
filme; é um pouco a coxia do cinema, o reverso do rendimento máximo, o outro lado.
Mas não é preciso dizer que o cinismo tem a última palavra: de agora em diante, a
eficácia consiste em denegrir a eficácia.
Serge Daney, Cahiers du Cinema, 195, novembro 1967
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. Jesus, que se irrita por nada, expulsa os mercadores do templo a golpes de corda.
Cena duplamente esperada, pois figura no roteiro do filme ( de Rossellini) e no roteiro
original ( os Evangelhos, supervisionados por Deus). No plano seguinte ( depois de um
corte, num filme que comporta pouquíssimos cortes), Jesus, em close, enxuga sua fronte
coberta de suor. Gag sutil. Mas a platéia, acreditando na dignidade do filme, não ri.O
mesmo plano, assinado por Buñuel, teria feito a sala explodir em gargalhadas.
2. Nestes dois planos, o que provoca o sorriso é a irrupção de um reflexo( de um gesto
natural: Jesus é um homem, afinal de contas; ele se cansa facilmente) que é também um
gesto inesperado ( geralmente não esperamos de um Deus este gênero de “pequenos
fatos verdadeiros”). Vale a mesma coisa para o ligeiro movimento de surpresa de João
Batista , quando se prepara para verter um pouco de água do Jordão sobre a testa de um
candidato ao batismo que ele ainda não notou, e a quem reconhece de súbito: mas é
Jesus! Estas imagens são maculadas por um certo ridículo que é igualmente o que lhes
dá o seu valor ( e que desde sempre constituiu o coração do cinema de Roberto
Rossellini).
Ridículo ligado à resistência e aos reflexos mínima dos corpos dos atores de hoje
superpostos ao livro de imagens bíblico, necessariamente cecilbedemilleano e pobre que
temos, volens nolens, na cabeça. Corpos entregues a si mesmos, não dirigidos(vide
Caprioli, grotesco no papel de Herodes, que ele representa como interpretou Salumi em
Toute va bien).
3. Neste ridículo, reside o humanismo de que Rossellini se tornou, ao longo dos anos, o
cantor indecente. O humanismo rossellianiano é este, trivial, típico da frase que se usa
como desculpa: é o humano, afinal( après tout). Afinal( après tout). Depois ( après) do
fim do mundo. Em 1976, o ridículo consiste em reivindicar como um projeto positivo o
que chamamos, nos Cahiers, cinema esperanto. O famoso “ apagamento” do cineasta
torna-se um axioma. Transparência generalizada. O cineasta não escolhe nem seus
temas nem suas mídias. Em relação às mídias, a modernidade de Rossellini esteve em
proclamar nestes anos que o cinema e a televisão são a mesma coisa, uma vez que só
existe – afinal, depois de tudo ( après tout)- a comunicação. ( Da mesma recusa de se
deixar aprisionar na questão da especificidade Godard tirou outras lições , de uma outra
forma menos ecumênicas que as de Rossellini). Em relação aos “temas”, ele declara
com orgulho que sua escolha não deve nada a seus caprichos ou a suas concepções, mas
a uma espécie de necessidade objetiva que lhe impõe falar dos grandes momentos ( ou
seja, dos grandes homens) da história do pensamento judaico-cristão, de Sócrates a
Jesus, de Alberti a Marx.
4. Por trás desta reivindicação da comunicação pela comunicação, pode-se ver ( não
sem comoção) o estado mais indolente de uma espécie de comunhão dos santos laica(no
elemento da Cultura para todos: filme como hóstia) ou uma farsa bufa(pantallonade)
essencialista a mais. Algo como uma Enciclopédia Alpha audiovisual que só
comunicaria a idéia da comunicação, a idéia imperialista de uma comunicação fácil e
obrigatória. Pode-se também pensar que o público de O Messias não existe, que se trata
de um público “por vir”, de um público de sobreviventes à catástrofe que, segundo
Rossellini, acossa o Ocidente. É para este público que ele trabalha. Público sonhado sob
medida pelo delírio didático, e para quem a história do Ocidente seria tão opaca quanto
para nós a dança das abelhas.
Constituir arquivos e manuais para este público é falar esperanto quando estamos certos
de que já não há ninguém para compreender o que quer que seja.
Serge Daney
Cahiers du Cinema, mai 1976
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Foi há trinta anos atrás. A prosperidade crescia a olhos vistos, construíam-se auto-
estradas. A França do crescimento industrial fazia o possível para esquecer. Esquecer
Montoire e Auschwitz, esquecer Hiroshima, esquecer Dien-Bien-Phu, a Algéria. O
estruturalismo começava a disputar as manchetes das revistas com a Nouvelle Vague.
Era 1963, ou talvez em 1962, uma jovem chorava no cinema.
Neste mundo que queria esquecer a derrota, todas as derrotas, que se aturdia fascinado
com o progresso infinito da vida material, o que poderia ainda provocar as lágrimas de
uma jovem, um transbordar de lágrimas irreprimíveis, abandonadas, quase voluptuosas?
Evidentemente, a contemplação de um rosto, nada mais. Um rosto em grande close,
monstruosamente cortado de seu corpo, terrivelmente sofredor, torturado, isolado sobre
um fundo branco que lhe acentuava o desespero. As lágrimas eram o signo visível de
que alguma coisa se transmitia do sofrimento representado na tela àquela que o
observava, que o atravessava: que a observadora havia se identificado ao sofrimento,
que havia se tornado a sofredora.
O rosto da jovem em lágrimas também era um close de filme: Anna Karina, a Nana de
Viver a vida, em contracampo de Falconetti, a Joanna D’arc de Dreyer. Depois de trinta
e tantos anos, anos que viram tantas coisas se encenar na história do cinema e na
história do mundo, um encontro permanecia eficazmente possível entre estes dois rostos
de mulher, com a condição de que um pedaço de celulose os reunisse. A paixão de
Jonna d’arc, apresentada então em uma versão degradada, com sonorização pesada, já
era à época um eterno monumento. Hino à alma, à humanidade da alma humana, -
apesar do kitsch sulpiciano de planos de vitrais, acrescidos ao filme por Lo Duca- , o
filme parecia feito para tornar visível, de uma vez por todas, esta assustadora e essencial
nudez da alma, do rosto da alma.
A alma tem um rosto? Sim, respondem os místicos, é o rosto do “homem interno”, que
vive para além da morte. Seu rosto, sua face tornam-se então uma imagem, semelhante
“à sua afecção dominante ou a seu Amor reinante”, de que o rosto só constitui a forma
exterior:
“Todos, quaisquer que sejam, são reduzidos a este estado, de falar como pensam, e
mostrar, através de seus rostos e seus gestos, a sua vontade. Daí resulta que as faces de
todos os Espíritos tornam-se as formas e as efígies de suas afecções” ( Swedenborg, O
Céu e as maravilhas do Inferno).
É um tal rosto, querido e posto como Absoluto, “com todos os pensamentos, as
intenções, os prazeres e os temores que o haviam agitado” que oferecia Dreyer,
realizando de uma forma quase ideal esta utópica perfeição do rosto humano, a
transparência.É neste rosto absoluto que imergia Nana, e Godard, há trinta anos atrás,
ainda acreditava que a alma pudesse falar à alma, até a dimensão física das lágrimas. No
fim da primeira seção de Vivre sa vie, Nana e Paul disputam uma partida de fliperama.
Paul ( André. S. Labarthe) comunica à Nana uma brincadeira de criança que ele acha
muito divertida. Sua voz, de súbito muito próxima, abandona a ambiência do café onde
se encontram, e ele recita: “A galinha é um animal que se compõe de exterior e interior.
Se tiramos o exterior, resta o interior, e quando tiramos o interior, vemos a alma”. Um
ano antes, Bruno Forestier, o “pequeno soldado”, anunciava à mesma Anna Karina ( ela
se dizia chamar Veronika Dreyer então), no momento de fotografá-la:
“Quando fotografamos um rosto, fotografamos a alma que se encontra por detrás dele”.
Muito tempo se passou desde então, e não apenas sob a forma de uma leve suspeita. A
alma pode realmente falar à alma, a humanidade de um rosto à humanidade de outro
rosto? O cinema pode ainda crer neste encontro efusivo , mostrá-lo simplesmente, como
se imediato e natural? Nada é menos certo: o potencial de humanidade, de alma não são
mais no cinema um dado ( donné), e não apenas pelo fato da “alma” ter se tornado uma
noção duvidosa. Na verdade, foi justamente no território onde ela possuía o valor mais
eminente, no cinema de arte europeu, que a alma foi mais duramente posta à prova.
Alguns anos depois das lágrimas de Nana, um outro filme multiplicava os closes sobre
um rosto de mulher à beira da crise. Mas nada era mais simples, imediato, nada mais
“jorrava da fonte” ( ne coulait de source), nem mesmo as lágrimas. Esta mulher em crise
não tinha mais diante de si a imagem mítica, sacralizada de uma Alma absoluta e santa-
mas uma outra mulher, frágil e fraturada como ela, que ora lhe estendia um espelho
acusador e desapiedado, ora ameaçava de tal forma o seu ser que chegava ao ponto de
trocar com ela nomes e rostos, lhe disputava o espaço do plano. De qualquer forma, não
era mais uma putinha ingênua e idealista, derretendo-se de simpatia ao impacto de uma
grande dor, mas uma atriz célebre, à qual a dor do mundo havia imposto a afasia, sem
que a ela fosse dada a chance de se reconhecer, e ainda menos esquecer.
O próprio título do filme, Persona, o dizia: era uma história de máscara, não se tratava
mais de uma alma “por detrás de um corpo”, alma diante da qual a verdade estacaria.A
“verdade” não passava de uma trama inapreensível, circulando de rosto em rosto sem
jamais se fixar. Nos primeiros planos, víamos uma criança talvez morta tentar, de forma
vã, ao tocar-lhes com os dedos, “dar uma alma” a rostos gigantes; nos últimos planos, a
criança tateante ainda se encontrava lá, e os rostos não cessavam de lhe escapar
definitivamente. O filme era a explicação desses rostos, mas o que ele explicava era
apenas isso: um rosto é uma tela, uma superfície. Não há nada “por detrás”, e tudo o que
nele se inscreve permanece-lhe alienígena – poderia da mesma forma se inscrever em
outro lugar, sobre um outro rosto ( ou então os rostos podem se agregar, superpor,
acoplar, como se fossem superfícies in-diferentes).
Neste curto espaço de tempo que separa os dois filmes, alguma coisa havia ( qual?)
precipitado a situação de um estado a seu extremo oposto? E se Vivre sa vie é o
“revelateur” que acrescenta a lupa de seus closes aos closes de Dreyer a fim de fazer
ressurgir uma alma de suas bobinas, que filme hoje em dia nos permitiria elucidar as
monstruosas “ampliações” bergmanianas?Seria preciso retornar ao cinema primitivo e
suas “grosses têtes”?Ou ao contrário, procurar perto de nós, na ausência glacial de
profundidade sob os rostos, que por vezes nos surpreende nos filmes, os últimos signos,
enfim revelados, de um anti-humanismo que Bergman genialmente apenas pressentiu?
Este livro não constitui uma história do rosto, nem uma história das representações do
rosto. Tomando o cinema por testemunha, ele visa a se interrogar sobre o papel
( suspeito) que artes eminentemente humanistas da representação desempenharam no
sentimento atual de uma deserção (déreliction) da face e do humano. Em suma, ele tenta
se questionar sobre como a representação afetou, no mais alto grau, o status de todos os
seus objetos mais caros. Se houvesse uma tese a enunciar, seria a de que, de tanto nos
deixarmos “dévisager” ( olhar longamente, escrutar, examinar), perdemos a face. Os
cinco anos que separam o filme de Godard do de Bergman condensam esta perda, perda
que é preciso agora desdobrar, dispor diante de nós, com o fito de compreendê-la um
pouco. E com este objetivo, remontar bem antes de Godard, bem antes de Dreyer, à
questão do rosto, questão humana eterna e essencialmente posta...
Jacques Aumont, Du visage au cinéma
Tradução: Luiz Soares Júnior.
No decorrer dos anos 60, dois cineastas totalmente independentes e à margem dos
grandes estúdios foram particularmente inovadores. Herschell Gordon Lewiks, cujo
Blood Feast, 1963, e 2000 maniacs, 1964, engendrarão a moda do “gore” ( fantástico
sanguinolento radicalizado com uma complacência mesclada de humor até os extremos
limites da repugnância) e Georges Romero, cujo Noite dos mortos vivos, variação
contemporânea sobre o tema do zumbi, marca uma espécie de intrusão bem eficaz do
realismo no fantástico mais horrífico. Quatro elementos principais darão ao filme sua
força e originalidade: 1) a condensação da ação e da duração no seio de um crescendo
dramático constante; 2) a intervenção permanente na intriga das mídias ( rádio, tv); 3)
utilização conjunta da audácia visual ( ponto comum com Herschell Gordon) e da
discrição nas cenas sanguinolentas; 4) recusa das convenções e clichês em uso no
gênero.
Ao invés do happy end corrente, o filme acaba em um mal-entendido sangrento que
radicaliza ainda mais, de um modo irônico,o horror de tudo o que já fora mostrado.Por
estas diversas razões, o filme provocou em eu lançamento uma surpresa e mesmo certo
escândalo, que acentuou seu sucesso. Em relação à audácia visual, ela está muito
distante da complacência grand-guignolesque e guignolesque estrita dos filmes de H.
Lewis. Ela é justificada pelo rigor da intriga e pelo ciclo infernal onde embarcam todos
os personagens. Aliás, a influência exercida pelos dois cineastas não foi igual. A de
Lewis, de qualquer forma irrecuperável no plano estético, foi muito maior, e suscitou
por um longo período ( que dura até hoje) uma degenerescência do filme fantástico e de
horror, ilustrada por exemplo por um filme como Massacre da serra elétrica, Tobe
Hooper, 1974. ( A notar que esta degenerescência se dá paralelamente a uma
revitalização do cinema de ficção científica, até meados dos anos 70).
Apesar de ter relançado o tema do zumbi, a lição realista de Romero ficou, por assim
dizer, sem eco, e mesmo seus filmes seguintes não estiveram à altura deste rascunho de
mestre, realizado com um orçamento irrisório.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Este filme inclassificável, que foi um fracasso comercial e impediu Charles Laughton de
continuar uma carreira de metteur em scéne, foi sempre muito apreciado por alguns
cinéfilos. Tomando emprestado característica de diversos gêneros cinematográficos
( western, filme noir) , não se encaixa em nenhum mas , no plano literário, se inscreve
nesta linha de contos negros, narrativas de aventuras mais ou menos fantásticas e “de
pesadelo” , onde as crianças são ao mesmo tempo os heróis e as vítimas ( Moonfleet de
Lang, adaptado do romance de John Meade Falkner, Tempestade na Jamaica de
Mackendrick, adaptado de Richard Hughes, Our mother’s house, de Jack Clayton,
adaptado de Julian Gloag, etc). Em sua autobiografia, Elsa Lanchester, esposa de
Laughton, afirma que ele começou a escrever o roteiro com David Grubb, autor do
romance original, depois encomendou uma adaptação a James Agee, que ele julgou
muito longa e realista. Laughton a remodelou e encurtou, com o objetivo de que esta
reencontrasse uma parte do onirismo e do insólito da obra original, que havia perdido
( James Agee morreu em 1955 com 45 anos e não pôde ver o filme terminado).
O relativo “desajeito” do filme no plano dramático reforça ainda mais sua estranheza. O
desenvolvimento da história, articulada em três fases, onde se mesclam confusamente
um ponto de vista objetivo do narrador e o ponto de vista subjetivo das crianças, conta
muito menos no filme que a atmosfera e os personagens. Se é absurdo dizer, como foi
feito, que Mitchum encontra aqui seu melhor papel e foi descoberto a partir deste filme
(!), não há dúvida de que seu personagem é dotado de originalidade incomum. Ele
possui muito de Barba Azul, de ogre e todos esses seres míticos que fascinam e
aterrorizam a imaginação infantil. Alguns, sobretudo em razão da cena final da prisão,
quiseram ver em Powell um substituto da figura paterna para as crianças. Embora
aparentemente encorajada pela substância do filme, este tipo de exegese psicanalítica
corre o risco da gratuidade e nos deixa insatisfeitos. É sobretudo plasticamente que o
filme é surpreendente. Deve muito isso ao trabalho do operador Stanley Cortez. Os
cenários de inspiração gótica e expressionista evocam também o universo escandinavo,
o de Dreyer em particular. Os interiores ( recriados em estúdios) tem em comum uma
compósita qualidade de irrealismo- ou de surrealismo- que dá ao filme sua bizarra
coerência. Para além de toda racionalidade, a narrativa é pontuada de imagens e cenas
inesquecíveis: o cadáver de Shelley Winters no fundo da água, o cântico que Lílian
Gich canta, sentada na varanda, um fuzil pousado nos joelhos, e Mitchum que a
persegue no jardim. Embora noir sob o ponto de vista plástico, o filme está longe de ser
inteiramente pessimista. Uma parte importante de sua mensagem ( na última parte) visa
a mostrar que a resistência natural das crianças e sua inocência podem acabar por vencer
a loucura, a cupidez e o mal que são o quinhão de muitos adultos. Mas o que se tornarão
elas quando crescerem?
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Menos inovador que 2001, obra precedente de Kubrick, Laranja mecânica é o exemplo
típico do filme que vem exatamente na hora que tem de vir, responde a uma expectativa
do público, embora provocando nele um choque e uma surpresa, e assim o preenche
totalmente. Em primeiro lugar, o filme é totalmente de sua época, tomando emprestado
a uma variedade de gêneros literários e dramáticos ( conto filosófico, alegoria, filme de
tese, teatro, sátira e humor noir), todos afetados por um importante coeficiente de
fantástico e ficção científica. No fim dos anos 60, nenhum gênero cinematográfico
possui mais um status dominante. No plano criativo, o fantástico ou a ficção científica
suplantaram ou contaminaram, mais ou menos, a todos. É o caso aqui. O fantástico e a
FC intervém no cadre cronológico da ação, linguagem dos personagens e no tipo de
tratamento aplicado ao herói. Mas sobretudo eles dão uma dimensão apocalíptica à
aventura.
Do ponto de vista temático e sociológico, o filme trata do problema número 1 da
maioria das sociedades modernas ( presente em um grande número de filmes), ou seja, a
violência. Mas Kubrick o estuda sob um ângulo original, comparando a violência do
indivíduo à da sociedade. Kubrick inova também utilizando um estilo onde,
paradoxalmente, o formalismo mais desenfreado reforça, no nível das emoções sentidas
pelo espectador, o caráter cruel, bárbaro e insuportável desta violência. Quando se
mostra mais brilhante, o estilo de Kubrick repousa, em efeito, sobre um equilíbrio
extremamente eficaz entre a sofisticação e a brutalidade. O sentido da fábula de Laranja
mecânica ( que deixa, como em toda fábula digna deste nome, uma parte não
desprezível à reflexão e às hipóteses do espectador) é que a violência da sociedade é
ainda mais nefasta e perigosa que a do indivíduo. Kubrick denuncia o absurdo de uma
sociedade que buscaria estabelecer a ordem e a saúde através de indivíduos
enfraquecidos e doentes ( pois é exatamente uma doença que é inoculada em Alex). Em
um desenlace particularmente noir e corrosivo, Kubrick mostra que a sociedade, que
talvez não tenha tido tanto sucesso como acreditara no tratamento imposto ao perverso,
procura recuperar a violência de Alex e de seus companheiros.
Laranja mecânica representa o filme mais típico de seu autor, pela ambivalência clássica
e barroca. Esta ambivalência aparece tanto no plano formal quanto moral e filosófico.
Pela justeza, o bom senso ( e seríamos quase tentados a dizer pela banalidade) de suas
vistas, pela claridade bem distanciada do que expõe, não deixando mesmo de recorrer a
paralelismos teatrais ( encontros idênticos de Alex antes e depois de seu tratamento) e
pela sã habilidade de uma retórica bem aplicada, Kubrick é um classicista. Por sua
vontade de demonstração a qualquer preço, pela insistência com a qual ele tende a
impor seus efeitos e convicções, e sobretudo por sua recusa do realismo, da precisão e
do particularismo, recusa pela qual ele pensa atingir um público ilimitado, sob todas as
altitudes, Kubrick é um barroco. Mas sua recusa do particularismo, e o fato, por
exemplo, que a intriga se passe numa “terra de ninguém” ( no man’s land) vagamente
anglo-saxônica e em cenários inspirados pelo filme noir e pela ópera, levam às vezes a
uma certa confusão, sobretudo se o espectador busca colocar etiquetas políticas muito
precisas sobre os personagens e o tipo de sociedade onde eles vivem. Este barroquismo
“pela metade” assumido de Kubrick é sem dúvida também a parte mais frágil e mais
vulnerável ao envelhecimento de sua obra.
Nota: Na retranscrição do filme com o auxílio de fotogramas publicada por Kubrick, ele
não esconde seu ecletismo formal e mostra com clareza que faz uso de todos os meios
( il fait feu de tout bois), utilizando segundo a ocasião o estatismo da câmera, amplos
movimentos de aparelho ou efeitos de câmera na mão, quando se trata de valorizar um
cenário, uma situação ou o jogo de um ator. Ele comenta também seu interesse pelo
romance de Burgess: O que me atraiu nele foi a narração, o personagem e as idéias”.
Mas ele admite também “que o diálogo de Burgess no romance é quase perfeito” Sua
principal modificação ao livro concerne ao desenlace: “Há duas versões do livro, mas eu
só li a versão com o capítulo suplementar após meses de trabalho no roteiro. Eu estava
estupefato, pois não tinha nada a ver com o estilo satírico do livro, e penso que foi o
editor quem convenceu Burgess a terminar o livro com uma nota de esperança ou coisa
assim. Honestamente, não podia crer no que tinha diante dos olhos, ao terminar o último
capítulo. Alex sai da prisão e volta para casa. Um dos rapazes se casa, o outro
desaparece, e no fim Alex toma a decisão de se tornar um adulto responsável”.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Como disse Jacques Goimard: “2001 é o primeiro filme desde Intolerância que é ao
mesmo tempo uma superprodução e um filme experimental”. Ao contrário de várias
superproduções holywoodianas, este filme emana, no sentido e na forma, de um único
homem, sem passar de mão em mão, apesar de possuir uma gênese longa ( 1964-1968),
durante a qual o orçamento inicial cresceu de seis a dez milhões e meio de dólares.
A contribuição do roteirista e escritor de Ficção científica Arthur Clarke foi muito
importante. No início de 1964, Kubrick propõe a Clarke escrever um roteiro com vistas
a um filme de ficção científica , mas que primeiro teria a forma de um romance escrito a
duas mãos. O ponto de partida do romance e do filme foram as novelas de Clarke “The
sentinel” ( escrita em 1948) , “Encounter in the Dawn” ( 1950) e “Guardian Angel”
( 1950). O trabalho de escritura e preparação do filme duraram até 29-12-1965, data do
primeiro dia de filmagem. A filmagem se estendeu por cerca de 7 meses ( nos estúdios
Boreham Wood, na Inglaterra) , e a pós-produção ( mais de 200 planos do filme
necessitaram de efeitos especiais) só chegou ao fim no começo de 68.
O trabalho e a inspiração de Kubrick visavam dois fins paralelos: realizar o filme de FC
mais espetacular feito até ali ( com as maquetes, os efeitos especiais mais bem cuidados
e sofisticados, graças ao talento de Douglas Trumbull) e destilar uma espécie de poema
filosófico sobre o destino do Homem em sua relação com o Tempo, o progresso e o
universo. Esta dupla ambição conduz a uma obra de construção muito original e
arriscada, feita de quatro blocos relativamente autônomos, o que coloca também em
relevo o virtuosismo de Kubrick e sua vontade de percorrer o campo quase completo do
gênero ( como bem o coloca Bernard Eisenschitz em Cahiers du Cinema 209: “O
domínio de Kubrick aparece na justaposição e combinação de quatro grandes motivos
característicos: FC pré-histórica, antecipação a curto prazo, viagens interplanetárias,
enfim grandes galáxias, mutantes no hiperespaço”).
Basicamente, 2001 é um filme de angústia- uma angústia difusa, glacial, cuja substância
é , por assim dizer, consubstancial à existência do homem no universo. É a angústia-
física e metafísica- do homem perdido nos espaços infinitos, mas também acossado, em
todas as épocas, pela próxima etapa- inelutável- do progresso científico, que não deixará
de ser para ele ainda mais destrutivo que construtivo.
Mas 2001 é também um filme de especulação: a influência dos extra-terrestres ( que se
manifesta nos monólitos), a mutação final do herói engendrarão talvez uma forma de
vida e de desenvolvimento menos decepcionante, menos imperfeita que aquela
conhecida por nós. Sob esta perspectiva, o filme pode ser julgado otimista. Mas
enquanto o pessimismo de Kubrick é ressentido como uma evidência durante a maior
parte do filme ( onde mesmo a vida cotidiana dos personagens, tornados simples servos
das máquinas e do cérebro que os comanda, engendra uma deprimente monotonia,
semelhante ao “tédio mortal da imortalidade” de que fala Cocteau), seu otimismo
permanece puramente especulativo e, enquanto tal, existe apenas como um imenso
ponto de interrogação. Otimismo a bem dizer muito relativo, uma vez que tudo o que
poderia advir de melhor para o homem viria “de fora”, e sem que este o tenha decidido.
Kubrick parece mesmo emitir a hipótese de que toda evolução científica do homem
pode ser determinada pela intervenção de extra-terrestres.
No plano formal, Kubrick alterna com uma maravilhosa plenitude o aspecto
contemplativo ( evolução das naves no espaço) e o aspecto dramático ( vide o
extraordinário duelo entre Keir Dullea e o computador Hal 9000, que não terá a última
palavra). Ele irisa os vastos espaços de angústia disseminados pelo filme com estreitas
zonas de humor. Humor ora relativamente secreto ( troca de banalidades entre os
astronautas) , ora mais evidente ( utilização da música de Johann Strauss). Tudo o que
se sabe a respeito da elaboração do filme, das hesitações e tateamentos de Kubrick
mostra que ele desejou ir cada vez mais longe na direção do silêncio, da economia, do
segredo e do mistério. Nesse sentido, ele suprimiu o comentário em off do início,
reduziu ao mínimo o número de membros da equipe da Discovery, renunciou a mostrar
os extra-terrestres. Esta direção foi muito benéfica para o filme. Estimulou, como nunca
antes num filme com tal orçamento, a imaginação do espectador. ( E é significativo que
a maioria dos comentários escritos sobre 2001, tanto na Europa quanto nos Estados
Unidos, sejam no geral de um altíssimo nível). Ela teve igualmente por efeito dirimir no
estilo a tendência de Kubrick a sublinhar pesadamente seus efeitos e suas intenções: de
todos os seus filmes, 2001 é o mais sóbrio, mais completo e mais bem acabado. No que
concerne à história da Ficção Científica cinematográfica, 2001, que criou em seu
lançamento um choque cujo eco ainda hoje não se extinguiu, se situa na crista de uma
década na qual o gênero deveria tornar-se enfim predominante, depois de ter sido
considerado minoritário e marginal durante cinqüenta anos em Holywood.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Depois de Don César de Bazan e o primeiro Áquila nera, duas obras que restituíam ao
filme de aventuras italiano seu vigor, seu picaresco, seu dinamismo originais, em
oposição ao caligrafismo mórbido do período fascista, Freda assina este Cavaleiro
misterioso, uma narrativa de tom muito mais pessoal e uma de suas obras-primas. Seu
virtuosismo o leva a incluir um retrato original de Casanova ( Gassman aqui no início
de carreira- é seu sétimo filme- é o mais verossímil e “raçudo” de todos os Casanovas
da tela) em uma narrativa de aventuras polivalente que possui, ao longo das sequências,
a progressão enigmática e obscura de um récit policial ou a atmosfera insólita e
angustiante de um conto quase fantástico ( as cenas em Viena). Sem, evidentemente,
esquecer este clima de intriga e de “marivaudage” ( de Marivaux, escritor francês do
século XVIII) glacial, através dos quais Freda nos dá sua visão do século XVIII. Ele
coloca aqui com brio o seu universo pessoal: um mundo de perfídia, de cálculo e
crueldade, onde a sinceridade é sempre perdedora, iluminado por uma elegante luz
crepuscular. Como sempre em Freda, o aspecto plástico do filme ( cenário, figurino,
fotografia) é extremamente cuidado, mas de forma alguma cultivado por ele mesmo.Ele
se encontra sempre maravilhosamente situado em uma concepção ultra-dinâmica da
narrativa cinematográfica. Neste sentido, as seqüências finais da perseguição de trenós,
que utilizam todas as variações do branco, são exemplares. Possuem um belo fôlego
rítmico e destilam, mesclada à suntuosidade visual, uma nota de desencantamento e de
amargura características do autor.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Longe do neo-realismo, Freda assina com La leggenda del Piave um filme formalmente
riquíssimo que toma elementos emprestados do melodrama, do filme de aventuras, do
afresco histórico. A matéria do filme repousa sobre contrastes violentos: heroísmo e
covardia ( vistos aqui no interior de um mesmo personagem, portanto fora de todo
maniqueísmo) , doçura e brutalidade, exaltação e desânimo, vitória e derrota. Ela se
sustenta também na exaltação sistemática dos sentimentos fortes, que buscam a
retomada das fontes de toda aventura e de toda História. O filme acolhe o realismo, mas
com a condição de que este possua uma dimensão épica, que ultrapasse a anedota e a
simples verdade do momento.Trata-se, para Freda, de reencontrar na história particular
de um lugar e de uma época o que ela pode ter em comum, em seu registro do
grandioso, do heróico e do passional, com outros lugares e épocas. Freda é, com efeito,
animado pela visão de uma espécie de eternidade da História, que se poderia também
chamar de poesia. Sua mise em scéne é particularmente forte nas cenas de ação e
movimento, acolhendo o espaço onde se esvai uma multidão desvairada e indivíduos
tomados por sentimentos extremos. O découpage, vívido e variado, utiliza toda a gama
de planos. O filme tem também a originalidade de manter na narrativa, com igual nível
de interesse, um ponto de vista masculino e feminino ( dualidade que se encontrava já
no Passaporte rosso, de Guido Bignone). Esta originalidade implica aqui uma fusão
insólita e interessante entre o melodrama e o filme de guerra.
Nota: Como sempre em Freda, a filmagem foi muito rápida, sobretudo em se tratando
de um filme com muitos figurantes ( 4 semanas, nos arredores de Roma).
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Primeiro Cinemascope de Freda. Na tela larga, com um orçamento médio ao qual ele
sabe emprestar a aparência da magnificência, Freda celebra em imagens suntuosas as
núpcias do melodrama e da História. O que a História perde em veracidade, o
melodrama conquista em caráter febril, lirismo, intensidade na pintura de um passado
revivido no presente. Beatrice é metamorfoseada aqui em sublime heroína de
melodrama, e a continuidade da narrativa oferece, à maneira da ópera, uma justaposição
lírica e plástica de momentos fortes delineados sobre a trama de seu destino
inexoravelmente trágico. No entanto, o dinamismo e a capacidade de aliciamento da
mise em scéne de Freda são tais que o espectador, perto do fim, põe-se a imaginar que
esta história foi inventada, que ela se recria à medida em que é contada e que Beatrice,
por obra de intercessão de algum milagre, poderia escapar à sua sorte trágica. A
originalidade do estilo de Freda- uma permanente e viva contestação do academicismo-
repousa sobre uma igual atenção dispensada ao dinamismo do conjunto da narrativa e à
composição plástica de cada cena. Esta síntese da dinâmica e da plástica, sempre muito
natural em Freda, e que nos faz “passar por cima” de algumas imperfeições no roteiro e
na direção de atores, encontra neste filme uma de suas melhores aplicações. Outras
versões dirigidas por Mario Caserini ( 1908) e Guido Brignone ( 1941).
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. A pesquisa plástica conta muito nesta visão do cômico. Rozier pinta aquarelas em
movimento, que divertem e querem fazer rir. Para uma parte do público, já aí ocorre
uma incompatibilidade. O cômico deve ser brutal, grosseiro, cínico ou devastador. Não
que a ironia esteja ausente de seus filmes. Mas ela é voluntariamente difusa, diluída,
deslavada se poderia mesmo dizer, como a cor azul em um céu de chuva.
2. Uma comicidade bem contemplativa. Filmar Du couté d’Ouroet é filmar do lado de
Flaherty. Aqui,a imobilidade, o movimento lento são mais engraçados que o movimento
vívido. Outro obstáculo, e desta vez para um público ainda mais vasto: o autor, no
interior de seus filmes, comenta pouco e não explica nada. É preciso olhá-los ( les
regarder) para compreendê-los.
3. O único presente, o “puro” presente interessa a Rozier, cortado tanto quanto possível
de seus laços com o passado e com o futuro. O presente, ou seja, o instante, o
impalpável e inassimilável instante que unicamente a câmera consegue captar é então
dilatado, observado sob uma lupa pelo autor. Por sua milagrosa forma de filmar, este
presente torna-se também um presente mágico , recomposto, o presente da memória e
da poesia. Filmar Du couté de Orouet é filmar agora do lado de Ozu, e Du couté de
Orouet é o único filme francês que se assemelha, por exemplo, a Dias de juventude, do
mestre japonês. Os dois filmes exprimem, a partir da observação dos fatos mais simples,
uma insidiosa e poderosa nostalgia.
4. Nesta busca pelo instante, nada de “excessivamente preparado, controlado” ( rien de
trop preparé) deve contrariar a gênese e o desabrochar espontâneos do filme. O roteiro,
contido inteiramente na cabeça do realizador, se reduz a um canevas sobre o qual os
intérpretes vão estabelecer bordados, utilizando às vezes alguma coisa de suas relações
fora do set.
5. Rozier se recusa a fazer intervir qualquer evento importante na ação. Graças
sobretudo ao realismo dos diálogos e da pista de som, ele nos aproxima intimamente
dos personagens, dando a ver suas menores , mais derisórias aventuras, as mais fúteis ,
as mais estreitamente pessoais. Apesar disso, ou talvez por causa disso, seus filmes são
verdadeiras comédias de costumes, uma mina de observações, um espelho da época e
das pessoas. Ver em particular a perturbação dos personagens quando distanciados de
seus hábitos urbanos, sendo obrigados a reaprender a cozinhar, a se alimentar, etc. Ver
também, da parte deles, uma certa incapacidade para a felicidade, apesar justamente da
felicidade ser sua única preocupação, ocupar constantemente seus pensamentos e
desejos. Pode-se fazer aqui a mesma observação usada para Leenhardt e o seu Derniéres
vacances: são sempre os poetas que fazem a melhor sociologia.
Nota: o filme, rodado em 16mm, jamais foi “expandido” para 35mm, o que explica o
caráter confidencial de sua distribuição.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Mas o rio carrega outra coisa. Por exemplo, o que está na base de toda ficção: a subida
em direção aos nós fundadores da filiação, dos filhos para os pais, de Édipo para Laius.
Curiosamente, o roteiro de John Milius faz-nos pensar em um pequeno filme, uma obra-
prima, geralmente desprezada na outra parte do Atlântico, o Jornada tétrica de Nicholas
Ray. Neste filme também um personagem se retirou da civilização e reina sobre um
grupo de foras-da-lei e de destroços, no coração de um reino ao mesmo tempo
esplendoroso e nauseante: os pântanos da Florida. Em Jornada tétrica, um jovem
também vai ser progressivamente capturado pelo horror do que se trama neste reino,
horror que ele sente bem lhe dizer respeito. Em Ray, ecologista “avant la lettre”,
massacram-se pássaros, em Copolla é mais grave. Uma amizade confusa ligará dois
homens, o mais velho vai intimidar o mais jovem e será finalmente morto por ele.
Depois do assassinato, o jovem suspeita de que jamais será o mesmo homem.
“Horror!”, exclama Willard nos últimos planos da versão atual de Apocalypse now,
antes de embarcar novamente em seu barco. Ele descobriu o horror de toda filiação, a
passagem pela violência mimética ( ele começa a se assemelhar a Kurtz), etc. Mas este
horror é um truque. O verdadeiro tema- em Copolla, assim como em Ray, ou mesmo no
Welles de Mr. Arkadin-, é a atualização ( mise à jour) da ligação homossexual,
enquanto esta se encontra na base de toda sociedade, de toda “fraternidade”, portanto de
toda guerra. Mas esta ligação não se desvenda assim tão facilmente. Há certamente uma
situação edipiana, mas esta é vista do ponto de vista do grande esquecido do mito,
Laios. Um Laious que teria disfarçado seu suicídio de assassinato para privar Édipo de
sua verdade. Se descoberta há, ao termo da subida do rio, é que não se mata o pai, uma
vez que este desejava morrer desde sempre e que esperava seu assassino com
impaciência. Horror, portanto, mas não aquele que se supunha. Evidentemente, no filme
de Copolla, toda esta parte fica no nível teórico, já que não chegamos muito bem a
acreditar na identificação entre Willard e Kurtz. Era algo bem mais forte em Jornada
tétrica, com Burl Ives e Christopher Plummer- que no entanto são atores bem mais
limitados que Brando e Sheen-, mas também porque Ray é um imenso cineasta. O falso
pai, “o pai falseado” de Apocalypse now, é Brando, alguém que exerce antes um
protetorado que uma lei, antes um “padrinho” que qualquer outro papel, em todo caso
um mito vivo. Pois no influxo de Apocalypse now, há também a velha Hollywood.
Copolla pertence a uma geração de cineastas que teve de começar sua carreira à sombra
da geração dos grandes ancestrais, vivos ainda. Geração que começara na França,
quando Godard inscrevia literalmente o corpo e o nome de Fritz Lang ( em O
desprezo) , e que há pouco tempo chegou à América ( Truffaut no filme de Spielberg).
Aí também pode-se dizer que a “mise à morte” de Brando é uma operação infinita-
devido à posição bem particular de Brando na indústria americana: ele é um pouco o
Kurtz desta indústria-,infinitamente decepcionante também.
Terceira subida. O Um e o Outro: a América.
Apocalypse now é um filme excepcional, que seja. É também um filme americano
médio pós-Vietnam. O cinema americano, desde um certo tempo, não cessa de rondar
em torno de um tema que é a presença do Outro em nós. Outro no sentido de alien,
título do maior sucesso do verão nos EUA.”Nós”, é claro, é novamente o Americano,
considerando-se abusivamente como a espécie abusivamente como equivalente geral da
espécie humana. Salvo que “ser” americano não é jamais algo tão evidente nem tão
simples ( não insisto aqui sobre o melting-pot e outros mitos), e que me parece que se
esteja sempre pronto a fazer não importa o que para se ser “ainda mais americano” ( não
importa o que: Kazan). Ideológicamente, o objetivo de todos esses filmes ( Alien, O
Exorcista, The deer hunter, mesmo Encontros de terceiro grau) é tornar os Americanos
ainda mais americanos ao fazê-los exorcizar um Outro ( em geral maléfico) que os
assombra ou habita. A novidade e a força desses filmes está em que eles decidiram não
economizar nos meios ( a tecnologia ainda e sempre) para mostrar o outro, o alien em
nós. Até aqui eram sobretudo filmes B que se ligavam nesse tema ( nos anos 50, em
torno do anticomunismo), mas sem possuir meios, limitados a truques fracos ou a
refinamentos de escritura ( o fora de campo de Tourneur) , só conseguindo excitar
espectadores muito naifs ( ingênuos) ou muito sofisticados ( cinéfilos). A decisão de
mostrar o “Não-Mostrável” ( Immontrable) é muito recente. Há diferentes versões. Em
Cimino, o Asiático que é tido por responsável por despertar a besta que dormita em nós:
matamo-lo, ao mesmo tempo em que lhe impomos a vergonha de ter despertado a besta:
refrão conhecido. Em Ridley Scott, ( Alien), é o monstro proteiforme, literalmente
surgido do corpo humano e ocupando a astronave como um câncer, cujas imprevisíveis
metástases terrificam. Em Friedkin ou Kubrick, são os temas mais codificados, mais
literários, do diabo ou do duplo. Quanto a Apocalypse now, é sem dúvida aquele que,
no nível do roteiro, possui a maior dignidade literária ( Conrad). Aí, Kurts e Willard são
da mesma espécie, da mesma raça, do mesmo país, da mesma formação ( Exército). No
entanto, um deles tornou-se um monstro. Um monstro ao qual é preciso se identificar.
Copolla escala o rio da civilização em direção à barbárie, não a barbárie dos outros, mas
aquela da qual se provém, da qual toda civilização provém, do lado da horda paterna. Se
esta escalada também não chega ao seu destino ( aussi tourne court: não segue até o fim
do caminho, volta no meio) , é porque Copolla realmente não escolheu entre delírio
surrealista e crueldade etnográfica. Este “povo do abismo” que idolatra Kurtz não é
suficientemente verossímel para que o momento forte desta última parte, o abate
paralelo de Kurtz e do rebanho sacrificado , suscite todo o horror sagrado que se poderia
encontrar em um Pasolini ( em Pocilga: “Matei meu pai, comi carne humana, tremo de
alegria”...)
O grande filme americano dos anos 70. Com uma ambição imensa, Cimino tenta
construir um cinema épico e wagneriano que é também lírico e contemplativo e não
desprovido de densidade romanesca. No que concerne à força da mise en scène, Cimino
é o único cineasta da sua geração no qual se pode ver, através do seu filme, um herdeiro
de Walsh e, especialmente, de The naked and the dead. Isso não o impede de conduzir,
através dos outros aspectos do filme, uma busca absolutamente pessoal e original. Ele
atinge o poderia dramático das cenas pela duração desmesurada das mesmas, o que as
torna misteriosas e encantatórias, por um senso quase mágico do cenário e pela atenção
à certas características individuais dos personagens, sem qualquer preocupação de rigor
dramático aparente. A busca dele vai de encontro ao centro da sua proposta; não pelo
realismo, mas com o auxílio de um conjunto de alegorias que transformam o realismo
em elementos de reflexão moral e filosófica. Os temas privilegiados de tal reflexão
dizem respeito à energia e à vontade de poder da América. A caça, a guerra distante, o
jogo cruel da roleta-russa, tudo isso são os motivos dramáticos e visuais, extremamente
espetaculares, que permitem confrontar essa possibilidade de poder com o real. De
acordo com os personagens, veremos esta vontade se destruir, fraturar ou mesmo
perdurar, ao transformar-se e mudar de conteúdos. Epopéia de fracasso, O Franco-
Atirador é também um réquiem grandioso dedicado aos sofrimentos e à estupefação da
América diante da maior derrota da sua história.
N.B.: Um exemplo de pesquisa efetuada por Cimino acerca do cenário: ele explicou (em
«American Cinematographie», outubro 1978) como ele tinha construído visualmente o
sítio da sua pequena cidade da Pensilvânia, utilizando oito exteriores diferentes,
filmados em Ohio: único meio de conseguir, segundo ele, com que uma usina se perfile
no horizonte em cada um dos planos gerais de exteriores que figuram nas seqüências
que deveriam transcorrer na Pensilvânia.
Jacques Lourcelles
Tradução: Matheus Cartaxo
Último filme americano de Lang. Provoca , sobretudo nos espectadores que o viram na
continuidade cronológica da obra de Lang, um choque, uma perturbação como poucos
se ressentem na vida cinéfila. Depois de No silêncio de uma cidade, Lang tinha
encontrado um meio de acentuar ainda mais a abstração de seu estilo, de universalizar e
radicalizar ainda mais as suas intenções. Como frequentemente se dá entre os grandes
realizadores de Hollywood, o filme se encontrava relacionado ao precedente por
ligações poderosas, ao mesmo tempo internas e externas. Lang trabalhava para o mesmo
produtor e companhia. Os dois filmes se desenrolam em cenários similares e o
personagem principal, interpretado por Dana Andrews, poderia ser facilmente visto
como idêntico em ambos os filmes: assim, Beyond continua logicamente No silêncio de
uma cidade, mas com um orçamento mais modesto, um número mais restrito de
personagens, de atores brilhantes, cenários e lugares.
Em relação ao resto, Beyond obedecia ao princípio secreto que rege a maioria dos
filmes de Lang, a saber, uma antinomia essencial entre a vontade de depuração de estilo,
levada aqui ao extremo, e uma extraordinária profusão de peripécias, , surpresas,
reviravoltas em todos os gêneros, com consequências e prolongamentos incalculáveis.
Beyond começa como um estudo social ( sobre o controverso tema da pena de morte), e
progride, com a velocidade do raio e sem que nos apercebamos claramente, para a
fábula filosófica e metafísica. Esta fábula exprime, por uma série de desvios labirínticos
e envolventes, a universal culpabilidade do homem; e busca tornar evidente, com um
rigor impiedoso, o pertencimento de todos os personagens à esta raça maldita que é para
Lang a raça humana. Protagonistas e comparsas são apresentados aqui em um incrível
luxo de “arrières-pensées ( pensamentos subconscientes), gestos, atitudes e
comportamentos perturbadores que suscitam pouco a pouco no espectador uma
desconfiança , uma inquietude e perplexidade extremas. Elas estão longe de se esgotar
com o aparecimento do “Fim” na tela. No entanto, o mais espantoso paradoxo do filme
está em outro lugar: ele reside no fato de que estes personagens, e mais especialmente o
herói ( Dana Andrews), solicitam da parte de seu criador ( Lang) um olhar onde o
desprezo absoluto e uma compaixão de ordem trágica coincidem absolutamente. Em
relação a isso, é necessário lembrar que Beyond é destes filmes onde a última
reviravolta exige que sejam vistos pelo menos duas vezes, a segunda sendo parte
integrante da primeira. É nesta segunda visão que Dana Andrews , nos planos por
exemplo que o mostram oprimido na sua cela, depois da revelação da morte de seu
patrão, , aparece como o perfeito e impessoal herói trágico que Lang sempre buscou
representar. Na primeira visão, ele carrega o peso de sua inocência não reconhecida; na
segunda, carrega o peso de sua culpabilidade inevitável, e é um peso ainda mais difícil
de carregar. Em um universo revelado sem inocentes, o culpado, que não pode escapar à
sua condição, aparece de súbito como a vítima de uma espécie de maldição trágica e
universal. Por causa disso, o espectador, tendo-o julgado, não pode mais condená-lo
sem ao mesmo tempo reconhecer em si, quer isto lhe agrade ou não, um irmão de raça.
A pena de morte torna-se um castigo metafísico, inevitavelmente justo e injusto,
prometido a cada ser vivo. As ultimas reviravoltas ( Garret acreditando escapar à morte
pela descoberta póstuma de uma carta de Spencer, depois perdendo sua chance de
sobreviver com seu erro e pela confissão e traição de sua noiva) são para ele outros
suplícios que se juntam à sua condenação.
Toda ação do filme se desenrola em cenários voluntariamente neutros ( há gênio nesta
neutralidade), que não apenas exprimem com uma precisão implacável as diferentes
atmosferas dos lugares representados como valorizam com um relevo tremendo os
gestos dos protagonistas. Ver por exemplo a estilização da vulgaridade cúpida de
Bárbara Nichols , da violência contida de Dan Seymour ou do comportamento meio
frígido de Joan Fontaine. Lang chegou a este ponto de domínio onde a descrição de
cada personagem, a evolução global da intriga mas também um grande número de
planos isolados contém integralmente o sentido de suas intenções. Assim, este plano
onde Fontaine examina as fotos calcinadas diante de um cenário de fachada cinzenta,
perfurado por orifícios mais sombrios ( as janelas do imóvel defronte) que se
assemelham aos destroços que ela observa. Estamos mergulhados aqui num universo à
la Metrópolis, mas normalizado, banalizado e contudo completamente asfixiado. Este
universo nem ao menos possui esta monstruosidade espetacular e escandalosa que
poderia nos advertir de seu horror, de tal forma o cenário e a ação que nele transcorre
são integrados perfeitamente entre si. Trata-se de um mundo em ruínas do qual até
mesmo nos esquecemos que ele se encontra em ruínas.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Penúltimo filme americano de Lang. Um dos ápices de sua carreira; em nossa opinião,
seu melhor filme. A partir de um romance, mas sobretudo de narrativas de diversos
fatos découpados nos jornais e que ele tinha o hábito -conservado até o fim de sua vida,
mesmo quando não mais trabalhava- de colecionar, Lang escreveu minuciosamente o
roteiro com Casey Robinson, e este será um dos mais sofisticados de sua carreira.
Preparação não menos minuciosa da filmagem que vai permitir utilizar- sendo o
orçamento do filme médio- os intérpretes prestigiosos reunidos para o filme ( George
Sanders, Ida Lupino, Thomas Mitchell, Rhonda Fleming) apenas por quatro ou cinco
dias cada um, embora se tenha a impressão de vê-los presentes ao longo de toda intriga
( Apenas Dana Andrews pôde obter um número de dias maior). A ambição do filme é
imensa, a perfeição de seus estilo, cujos elementos evitam se valorizar, sóbria e eficaz.
Lang quer dar a ver um panorama muito vasto da sociedade americana, fundada para ele
na competição e no crime. Como a competição e o crime vieram a estar
indissoluvelmente ligados, eis o seu tema, de onde decorrem as características de seu
estilo, obedecendo todas a uma estética da necessidade que nenhum outro cineasta levou
tão longe. Criador solitário e exigente, Lang não é contudo o mais inovador do cinema
americano. No silêncio de uma cidade integra e interioriza de alguma forma a revolução
trazida no ano precedente à narrativa policial por A morte num beijo. A partir de agora,
não há bons nem maus na intriga. A ferocidade da competição colocou todas as
individualidades no mesmo nível, no grau zero da moral e da consideração pelo outro.
Se examinarmos com uma lupa ( o que faz o filme) o comportamento de cada um dos
personagens implicados na ação, ver-se-á que nenhum deles tem a mínima idéia do que
lhes poderia servir de base moral, ou então- o que é pior ainda- que sacrificam às suas
ambições os poucos escrúpulos que poderiam ter, comportamento considerado normal
na sociedade onde evoluem. A partir disso, o criminoso que os jornalistas procuram tão
ardentemente , a fim de obterem um posto, torna-se não apenas sua presa mas seu
espelho. Este é de alguma forma mais digno de piedade que eles.
Lang conduz aqui a um grau de perfeição absoluta sua arte das ligações necessárias ou
mesmo fatais entre as seqüências. Quer seja por um elemento visual, do diálogo ou pelo
efeito de uma causa dramática particular, as seqüências se encadeiam umas às outras
segundo um ritmo e uma progressão lógica que parecem obedecer a algum Fatum,
quando em realidade não são mais que a conseqüência das iniciativas entrecruzadas de
cada um dos protagonistas, ocupados a suplantar, utilizar ou aniquilar o outro- vasta teia
de aranha onde finalmente todos se encontram presos. Refinamento supremo da mise
em scéne: estes compartimentos vidrados que, no interior dos escritórios do jornal,
separam os personagens, permitindo-lhes ver-se mutuamente, e que dão à narrativa a
possibilidade de desenrolar várias seqüências frontalmente ( de front), captadas em uma
permanente interação. Este entrelaçamento magistral é visto na luz soberba de uma
fotografia metálica, com cintilações gélidas. Depois de muitos avatares e metamorfoses,
encontrando-se repensado através da experiência e do estilo de um cineasta meticuloso e
genial, o microcosmo expressionista reaparece aqui- talvez pela última vez- lavado de
todas as suas escoriações, dotado de uma pureza expressiva cuja abstração e
concentração fascinam. É uma pequena porção do inferno onde as criaturas se agitam ,
acreditando-se livres e ativas, sob o olhar de um cineasta que não quer nada senão ver
bem e “dar a ver” bem o real, embora mantendo sobre todas as coisas o ponto de vista
de Sirius.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior
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Vinte e seis anos depois de sua partida da Alemanha, Lang retorna para dirigir esta obra
testamentária que se beneficiou de um importante orçamento ( mais de quatro milhões
de marcos). É um duplo retorno às fontes, geográficas primeiro, dramáticas em seguida,
uma vez que O tigre de Bengala e O túmulo indiano são uma nova versão do roteiro
escrito em 1921 com Thea Von Harbou e que Lang não pudera realizar então, devendo
contrariado passar a realização às mãos de Joe May. No seu lançamento, esta nova
versão suscitou numerosas polêmicas. Ela foi atacada não apenas pelos adversários
permanentes de Lang ( até aí, nada de extraordinário), mas também por uma grande
parte dos defensores do cineasta. Apenas uma minoria de admiradores o defendeu com
fervor, e pouco a pouco o filme adquiriu o status de clássico. É preciso sem dúvida
colocar a crédito de Lang essas polêmicas, que sempre teve o dom de, a cada etapa de
sua carreira, espantar, intrigar, ou mesmo desorientar e desencorajar seus próprios fãs.
A fidelidade que ele manifesta aqui a seu próprio universo é a mesmo tempo formal e
filosófica. Como é usual em Lang, a substância do filme se desenvolve a partir de uma
série de contradições internas que só podem se resolver na última perfeição estética da
obra acabada: depuração obtida a partir de uma extraordinária riqueza de meios e de
uma proliferação de peripécias; dinamismo perpétuo, resultante da imobilidade da
câmera; mensagem filosófica destilada com o auxílio de uma trama desenho animado.
Nos personagens, triunfa a mesma dialética. A maioria dentre estes é movida por um
objetivo único ( amor e fascinação erótica em Chandra, sede de poder em Ramigani,
desejo de vingança em Padhu, etc), que preenche suas almas e seus corações até a
plenitude ( trop-plein). Mas este trop plein ( plenitude, preenchimento total) é
igualmente um vazio, pois esta retira de seu ser não apenas o resto da humanidade como
também toda e qualquer forma de realidade que não aquela tomada por seu desejo. Do
choque destas vontades múltiplas, que são como obsessões, jorra a trajetória da
narrativa, semelhante, em seu rigor, simplicidade e sua absoluta lógica, a um teorema
matemático.
Em Chandra, personagem-pivot do filme ( de fato, ele é o único herói da história), é
quando a plenitude ( trop-plein) será aceita como vazio, ou seja, quando as paixões se
aniquilarão na renúncia, que a serenidade poderá enfim fazer sua aparição. Mensagem
que só aparentemente é positiva, pois implica a supressão do desejo, a abolição das
paixões, a fim de que sobrevenha uma paz que possui algo de sepulcral ( ou, dirão os
detratores, de absolutamente convencional). Esta paz é vista “ como que do fundo da
morte”, segundo a expressão de Michel Mourlet. “ O que há de mais profundo nos
filmes de Lang, escreve Morurlet, é uma certa maneira de olhar de muito distante, como
que do fundo da morte, os homens, as mulheres, o assassinato e a fatalidade. Nestes
quatro ou cinco últimos filmes, só distinguimos isso. Se não se capta este tom de
eternidade, não se capta nada. O silêncio e o vazio”.
A bem dizer, o que chocou os primeiros detratores do Tigre de Bengala, e que eles
detestaram ou até mesmo desprezaram na obra, é talvez exatamente a mesma coisa ( e
seria esta algo bem languiano) que seus fãs admiraram: uma “genial inatualidade” que
reduz o universo a alguns desejos monstruosos e contraditórios do homem, o amor
prenhe do crime ( ou da vontade do crime) , a sede de poder prenhe da destruição, e a
filosofia tornando-se ao fim esta inútil- mas fascinante- contemplação do Nada. Ás
vezes, Lang exprimiu esta visão por meio de narrativas com alcance social ou político, e
talvez tudo não passasse de um engodo. Aqui, em um serial, forma que representava
para ele o alpha e o ômega de toda ficção, ele a destilou de forma nua e sem álibis.
Jacques Lourcelles, Dicionário de Filmes
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Acossado, Godard
Uma das obras-primas de Mankiewicz e um dos mais belos filmes hollywodianos. Neste
terceiro filme realizado para a Fox, cujo roteiro não foi escrito por ele, mas apenas
corrigido, refinando (peaufinant) notadamente o personagem de Miles Fairley.
Mankiewicz se expressa tão profundamente quanto nas obras que ele tirou dos seus
próprios scripts. O Fantasma Apaixonado oferece uma mistura rara, quase única, entre a
expressão de uma inteligência solta (deliée) e satírica (caustique) e um gosto romântico
pelo devaneio, demorando-se sobre as decepções, as desilusões da existência. O filme
não pertence a qualquer gênero conhecido e cria ele mesmo o seu gênero para contar,
com uma poesia dilacerante, a superioridade melancólica do sonho sobre a realidade, o
triunfo daquilo que poderia ter sido sobre aquilo que foi. É igualmente um filme sobre a
solidão, sobre essas almas insatisfeitas e sonhadoras para as quais a solidão abre o
caminho em direção a natureza, a uma forma quase imaterial de felicidade. Todos os
elementos da mise em scène, dos atores ao cenário, dos diálogos à fotografia, são
soberbos e marcantes do selo da perfeição. Sublime composição de Bernard Herrmann.
Acompanhando a meditação do autor, ela sublinha às vezes até o limite da explosão o
contido lirismo da obra. Graças a ela, por exemplo, os planos de gaivotas e de ondas ou
aqueles onde Gene Tierney caminha ao longo da praia e que indicam a passagem dos
tempos figuram entre os mais belos do filme; no entanto, poderiam passar como
momentos dos mais banais.
Jacques Lourcelles
Tradução: Matheus Cartaxo
Apesar da sua popularidade, o péplum italiano dos anos 60 foi um gênero sacrificado,
até mesmo massacrado pela pobreza dos orçamentos e pelo descuido técnico da
realização. Por isso, os dois mestres do gênero (Cottafavi e Freda), que só foram
reconhecidos como tal após seu desaparecimento, tiveram que recorrer à astúcia para
fazer uma obra pessoal e criativa. Cottafavi utilizou, como aqui, com uma certa verve
vingativa, o humor e a piscadelas de olho ( clins d’oeil) das histórias em quadrinhos,
onde alguns quiseram ver uma forma de distanciamento brechtiano. Freda preferiu
reencontrar, no interior do gênero, os caminhos da aventura (Le Géant de Thessalie,
1960) ou um certo barroquismo (ou un certain baroque), bizarro e compósito
(composite) (Maciste em enfer, 1962), que reatava com as origens do pépum, na época
do cinema mudo.
Jacques Lourcelles
Tradução: Matheus Cartaxo
Em seus filmes, Imamura pinta a emergência das pulsões e dos instintos mais primitivos
nos seres pertencentes às sociedades ditas civilizadas. Ele adora contar a história ( ou a
contra-história) do Japão ao longo de várias décadas. O período do pós-guerra fascina-o
particularmente. Seu Japão é um mundo bárbaro, onde cada personagem tenta
sobreviver através do comércio de corpos e de bens, a astúcia, a violência. A história de
Enokizu, o herói de Minha vingança, que se vinga de estar vivo naqueles que
transmitem a vida ( seu pai, sua amante, grávida dele), é uma história de sexo e de
sangue, descrita, ao longo de uma narrativa entrecortada e ziguezagueante, por um
clínico, um entomologista que só acredita no behavorismo. Imamura desconfia de toda
explicação referente à psicanálise, à sociologia, embora seus filmes estejam repletos de
fatos suscetíveis de enriquecer estes diversos domínios. As causas, as intenções que se
poderiam descobrir sob cada ato humano são para ele um abismo, impossível - e
portanto, inútil- de sondar.
Sua temática, no interior do cinema japonês, não é exclusividade sua, mas ele a eleva,
na mise-en-scéne, a um nível de brutalidade, intensidade e impassibilidade
impressionantes. Ele busca sobretudo que seus filmes- particularmente Minha vingança-
sejam tão obscuros, impenetráveis e opacos quanto o próprio universo. Sob esta ótica,
Minha vingança é um dos poucos filmes da história do cinema que se poderia qualificar
de faulknerianos.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
O homem errado, Hitchcock
A liminar declaração de Hitchcock é clara: ele não usou o realismo de um fato qualquer
para obter um grau suplementar de verdade, mas para fazer a economia da
verossimilhança. Somos mergulhados em uma história cuja verossimilhança não precisa
ser demonstrada ( o que é o papel, com freqüência ingrato, de todo autor de ficção), uma
vez que ela realmente aconteceu. Richard Fleischer vai utilizar o mesmo procedimento
em O estrangulador de Boston, 1968, e em 10 Rillinghton Place, 1971.
Em um primeiro nível, o filme, utilizando genialmente a câmera subjetiva e os cenários
reais, é como o monólogo interior de um indivíduo médio, perturbado pelo que lhe
sucede, desprovido de cólera, cedendo e depois recusando-se a ceder ( é aí que sua
mulher assume a situação) à idéia que o destino fatal sofrido foi especialmente
preparado para ele e torna, em consequência, toda revolta e iniciativa inúteis.
Neste nível, O homem errado é o mais belo filme kafkiano da história do cinema. Em
um segundo nível, o filme desenvolve uma reflexão sobre a culpabilidade do homem:
esta é mostrada como cúmplice de sua inocência. Esta reflexão, contemporânea e
diferente daquela de Lang, pode no entanto ser-lhe comparada. Lang chegou, na última
parte de sua obra, a ser assombrado pela noção de indiferenciação ( pelo caráter
intercambiável) da inocência e da culpabilidade do indivíduo. Ele pensava ( vide While
the city sleeps, Beyond a reasonable doubt) que a humanidade é tão culpada, tão
corrompida que a inocência ou a culpabilidade de um indivíduo tornava-se algo de
imponderável e finalmente indiferente na economia geral do mundo. Hitchcock é mais
maniqueísta e menos desesperado. Seu maniqueísmo quer que a metade inocente da
humanidade não possa “lavar as mãos” da culpabilidade da outra metade e deva, de
qualquer maneira, responsabilizar-se por ela, pois de qualquer maneira a inocência não
poderia deixar de lhe sentir os efeitos. O sósia de Manyy é também seu duplo. É
relacionado a ele por uma ligação profunda que faz o mistério do filme. Hitchcock adere
aqui a uma visão cristã do mundo, da qual o pecado original é a pedra angular. E a
especificidade de O homem errado vem finalmente do fato de ser um filme kafkiano
originado por um filme cristão, resumo impressionante e sem dúvida invertido da
história espiritual do século 20. O sentido da obra, tanto quanto as peripécias da intriga,
reduzidas aqui a uma fascinante nudez, nutrem o suspense veiculado pelo filme. Robert
Brucks e Bernard Herrmann fizeram prodígios para colocar seu talento e sobriedade a
serviço do gênio de Hitchcock, que nunca foi tão evidente e empolgante como aqui
( salvo talvez em Murder). Henry Fonda à altura de si mesmo.
Primeiro filme rodado por Houston nos Estados Unidos depois de Os desajustados
( 1961). Como na maioria de seus filmes, este aqui, em forma de balada melancólica,
possui pouquíssima intriga, e Huston manifesta em relação a ela uma quase total
indiferença. Isto tornou-se cada vez mais corrente em seu cinema desde The asphalt
jungle. O que lhe interessa são os personagens, suas errâncias, suas conversações, ainda
mais erráticas que seus deslocamentos no espaço ( aqui Huston quase vence seu “irmão
caçula” neste domínio, Cassavetes), suas ligações amorosas, camaradagem, sua solidão,
e, é claro,a atmosfera social na qual eles se situam. O tema, hustoniano por excelência,
do fracasso aqui é completamente interiorizado nos dois personagens principais. Suas
reações, apesar de terem apenas dez anos de diferença, permitem mensurar o abismo
que separa a adaptação desvairada ao fracasso ( Tully) de sua descoberta ainda matizada
de esperança ( em Ernie). Contudo, é mais ou menos certo que Ernie, em dez anos,
estará na mesma exatamente na mesma situação de Tully. De forma acessória- mas será
tão acessória assim?-., o filme fala também do alcoolismo; os personagens bebem para
se consolar da realidade e em seguida falam interminavelmente, para se consolar por
haver bebido.
A partir dos anos 70, a obra de Huston encontra uma nova juventude, e vai se tornar
uma das mais tocantes do cinema americano, em uma época em que este havia
empobrecido terrivelmente.O que nos parece mais valioso nesta evolução não é uma
renovação dos temas ou dos assuntos, mas do olhar, como se Huston tivesse enfim
encontrado, depois de tantas tentativas, o ângulo justo ( justo de seu ponto de vista) de
onde observar a condição humana. Neste olhar, encontramos muito de compaixão viril (
o contrário de miserabilismo), um conhecimento íntimo do assunto mas também uma
certa distância crítica, que mescla amizade e ironia. O mais espantoso neste olhar é que
ele seja absolutamente o mesmo quando Huston pousa os olhos sobre personagens,
situados em algum lugar entre O’Neil e Steinbeck, que são como irmãos para ele
( Huston praticou boxe com 18 anos em lugares semelhantes aos descritos aqui); ou
quando ele examina “bonshommes” cuja experiência se encontra a anos luz da sua,
como os fanáticos e os obcecados religiosos de Wise Blood. É o olhar, estranhamente
sereno, de um cineasta clássico que entra em seu período pós-clássico e testamentário.
Interpretação fantástica. Fotografia soberba de Conrad Hall, que alia o realismo a uma
sutil sofisticação crepuscular para iluminar os lugares e as pessoas que Huston
conheceu, assim como vários intérpretes não profissionais. Um dos grandes filmes em
cores dos anos 70.
Jacques Lourcelles, Dicionário de Filmes.
Tradução: Luiz Soares Júnior
Antes de tudo, não esquecer que se trata aqui de um filme essencial, não apenas na
carreira de seus dois principais artesãos ( o produtor Val Lewton e o realizador Jacques
Tourneur), na história do gênero fantástico mas também e sobretudo na evolução do
cinema como um todo. Borges consagrou uma de suas enquètes “, O pudor da História”,
a mostrar que as datas mais importantes da história não são forçosamente as mais
espetaculares. ‘Veio-me a suspeita , escreve ele, que a história ,a verdadeira história, é
mais pudica, e que as datas essenciais podem também permanecer por longo tempo
secretas”. Se isto é verdadeiro em relação à história política e social, o é ainda mais em
se tratando da estética. Cat people representa no cinema uma destas datas essenciais e
secretas. A gênese do filme é demasiado conhecida, já que Jacques Tourneur e o
roteirista DeWitt Bodeen a contaram ( respectivamente, em Présence du Cinema
número 22-23 e Films in Review, 1963) e que Joel Siegel, em seu notável “Val Lewton.
The Reality of Terror”, recolheu os testemunhos mais próximos do produtor. Charles
Koerner , o novo responsável pela RKO, pede a Val Lewton para realizar um filme a
partir do título Cat people, que lhe parece suficientemente excitante e atrativo. Ele julga
que os monstros do pré-guerra ( vampiros, lobisomens) já tiveram sua época e que é
preciso buscar alguma coisa nova e insólita.
Val Lewton encomenda o roteiro a DeWitt e a direção a Tourneur. Mas a história
propriamente será pensada a três. Val Lewton tinha primeiro pensado em adaptar uma
novela de Algernon Blackwood, depois decide contar uma história contemporânea,
inspirada de uma série de desenhos de moda franceses que mostravam modelos
carregados por manequins com cabeças de gatos. Cada um dos três autores trará sua
pedra à construção do filme e, por exemplo, a cena da piscina será suscitada por uma
lembrança de Tourneur, que quase tinha se afogado, sozinho numa piscina. Lewton
aprecia particularmente estes momentos de angústia, como na cena em que Alicem se
sente perseguida por uma presença invisível. Tudo passará, no estágio da escritura do
roteiro como na realização, pela sugestão, pela sábia progressão das cenas que
exprimem o terror e a violência sem que elas jamais sejam totalmente representadas na
tela. Os paroxismos serão obtidos por uma certa doçura insidiosa e paradoxal do estilo,
que se põe a seguir de muito perto os personagens e os mergulha em uma atmosfera
cada vez mais irrespirável, atmosfera esta que o espectador é levado a partilhar com
eles, embora esta não provenha de nenhum elemento horrífico concreto.
Rodado em 21 dias e ao custo de um orçamento bem modesto de 130.000 dólares, Cat
people será o primeiro de uma série de quatorze filmes produzidos por Lewton ( dos
quais 11 para a RKO) e, na carreira de Tourneur, o primeiro no qual ele se tornou
verdadeiramente ele mesmo, graças à influência ultra-criativa de seu produtor, Lewton.
Este o inicia, disse Tourneur, em uma “poesia da qual ele tinha muita necessidade”
( vide sua entrevista televisionada para FR3 por Jean Ricaud e Jacques Manley, maio
1977).
Uma vez terminado, o filme foi muito pouco apreciado pelos chefões da RKO ,e vai sair
como “tapa buraco” no Hawai Cinema de Los Angeles , que tinha acabado de terminar
sua exibição de Cidadão Kane. Cat people teve mais sucesso que seu ilustre
predecessor, e seu triunfo tirou da lama a RKO em 1941, ano muito difícil para a
empresa.
Cat people permitiu a Val Lewton produzir entre 1942 e 1946, sempre com orçamentos
muito reduzidos que lhe asseguraram uma total liberdade de concepção e execução, um
dos mais extraordinários conjuntos de filmes fantásticos do cinema hollywoodiano
( dentre os quais se destacam particularmente o sublime A sétima vítima e Bedlam, que
fecha a série). Cat people lança também a verdadeira carreira de Tourneur , que dará em
seguida na mesma linha duas obras ainda mais perfeitas ( I walked with a zombie e
Leopard man), antes de impor um olhar extremamente inovador sobre os outros gêneros
hollywoodianos que ele ilustra.
Com o passar dos anos, mais a contribuição do filme parece incalculável. Com ele, o
fantástico- que nunca será como antes- descobre que pode retirar sua máxima eficácia
da discrição, que pode inventar novos meios de empolgar o espectador dirigindo-se à
sua imaginação. A riqueza do trabalho sobre a luz sobretudo vai contribuir para
interiorizar o conteúdo do filme nos personagens e a provocar uma identificação mais
sutil e marcante do espectador com os personagens. É aí que, de forma pudica, se situa a
revolução radical do filme. Pode-se resumi-la com uma única palavra: é a revolução do
intimismo. Ela delineia, por assim dizer, uma linha de fratura entre o cinema do pré-
guerra e o cinema moderno. O que o cinema vai ganhar é uma maior proximidade, uma
maior intimidade- que se poderia quase qualificar de psíquica- do espectador com os
personagens, explorados nas profundidades de seus medos, suas angústias, seu
inconsciente. Esta contribuição não é contraditória- -longe disso- com o neo-realismo ,
que vai chegar igualmente, ao menos em Rossellini, a intensificar a intimidade do
espectador, sob o plano social e em seguida espiritual, com os personagens.
O recuo agora é suficiente para que Cat people e os primeiros filmes de Rossellini
depois da guerra apareçam, um secreta e subterraneamente,os outros de maneira
espetacular e talvez um tanto quanto tonitruante, como os filmes mais fecundos destes
últimos cinqüenta anos. O caso de Cat people é particularmente estranho, uma vez que
ele nos leva a privar de mais intimidade com uma personagem ( aquela de Simone
Smon) que não pode ser íntima de ninguém. Sua maldição está de tal maneira engastada
na profundidade de seu ser que apenas uma investigação aprofundada pode permitir
entrevê-la. Antes desse filme, o cinema era um espelho mais ou menos fiel , atravessado
ao longo do caminho. A partir de Cat people, ele tende a se tornar este instrumento de
mergulho que penetra no mais profundo dos personagens como em um poço. Durante os
anos que se seguiram, o filme noir vai reforçar esta evolução, colocando a seu serviço,
sob uma forma atual e contemporânea, as aquisições distantes do expressionismo,
casadas à uma descoberta recente e com freqüência rudimentar da psicanálise. Ponto de
partida da obra real de Tourneur, Cat people estabelece o que será o credo dessa obra e
seu modo de abordagem da realidade. Toda realidade é da ordem do mistério, do
estranho e do inefável. É preciso apreendê-la do interior, pela sugestão e pela
imaginação. O olhar que penetra mais profundamente nela tem todas as possibilidades
de ser o olhar de um estrangeiro, e Tourneur vai permanecer na América um dos
cineastas mais estrangeiros a este país, aberto a uma contínua surpresa, a uma
engenhosa e total engenhosidade. Elas vão fazer dele o pioneiro secreto, um explorador
radical de vários territórios diante ( e antes) do mundo.
Nota: a filmagem de Cat people é evocada sob forma de referência nos primeiro dos três
flash-backs que constituem a trama de Assim estava escrito, filme demasiado brilhante
mas um tanto convencional que queria ser para Hollywood o que A malvada de
Mankiewicz foi para a Broadway. O personagem do produtor Jonathan Shields ( Kirk
Douglas), arrivista e perfeccionista, não tem quase nada a ver com Val Lewton, e se
assemelha muito mais a David Selznick. No entanto, é este personagem que decide que
será preciso criar a atmosfera fantástica pela sugestão, pela discrição, a obscuridade e
mostrando o menos possível. Uma continuação bem distanciada foi dada a Cat people
em The curse of the cat people ( saído na França em 1971), com uma parte dos atores e
personagens de Cat People. O filme é um conto de fadas, aliás muito bem realizado, que
tem mais a ver com o maravilhoso do que com o horror. Ele foi começado por Gunther
Von Fritsch e terminado por Robert Wise, que assina aí, como co-realizador, seu
primeiro trabalho de direção. Remake homônimo de Cat people sem nenhuma magia
por Paul Schrader ( 1982) com Nastassja Kinski.
Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior
N.B.: Contrariamente à opinião geralmente aceita, esse não é o filme em que Jean-Pierre
Léaud faz sua primeira aparição no cinema, e sim em La Tour, prends garde! de
Georges Lamplin, filmado no verão de 1957.
Jacques Lourcelles - Dicionário de Filmes.
Tradução: Matheus Cartaxo.
Primeiro longa-metragem de Robert Bresson. O cineasta, que nesta época está longe de
ser um teórico, sente instintivamente que sua obra tem necessidade para se realizar de
um material forte, rico e ardente de um intenso fogo interior.Giraudoux, Cocteau,
Bernanos lhe fornecerão. Aqui,a língua pura, límpida e no entanto rutilante do autor da
Ondina ( em um de seus últimos textos antes de morrer), assim como uma intriga fina
mas fortemente dramatizada permitem ao cineasta realizar esta ascese visual em direção
à qual ele tende. O despojamento, que aqui é sobretudo questão de luz, se aplica
lógicamente a uma matéria rica; de que, sem isso, esta se despojaria? Se o teatro está
presente no filme pela construção da narrativa, a importância dos diálogos e dos
monólogos, não se deve negligenciar, em relação a Bresson, a parte, ainda mais
importante, do romancista, do criador de caracteres, já que nele o caráter é como se
fosse a “casca” ( écorce) da alma dos personagens. Com Anne-Marie, alma agitada,
orgulhosa, obstinada, que sua sede de Absoluto conduzirá a se destroçar contra os
obstáculos do mundo, Bresson nos dá neste filme um esboço do personagem do cura de
Ambricourt, o herói de Diário de um padre. Esboço também, de certa maneira, de todos
seus personagens ulteriores. Anne-Marie e o jovem padre são o testemunho desta
juventude eterna, ainda próxima da infância ( Renée Faure , em sua interpretação,
demonstra isso admiravelmente), a respeito da qual Bernanos escreveu: “Eu me digo
também que a juventude é um dom de Deus, e como todos os dons de Deus, ele é sem
arrependimento. Só são jovens, verdadeiramente jovens, aqueles que Ele designou para
não sobreviver à sua juventude”.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Esta nova “máquina de sentido” é o pôr em obra de um jogo de palavras muito simples:
as palavras corpos e porcos entretém uma ligação anagramática , duas distribuições
diferentes das mesmas letras, de uma mesma Letra ( veremos qual é), assim como
Pocilga se coloca como a dupla narrativa de um mesmo evento.
1. O que há de comum – tirando as letras- entre Porcos e Corpos? São objetos de prazer:
os corpos são feitos para serem amados e os porcos devorados. Mas sob uma condição:
que eles sejam, por esta razão, desprezados. Sobretudo se são - como é o caso aqui-
inteiramente votados ao prazer, “prostituídos”: nenhuma parte do corpo que não seja
(mais ou menos) erógena, nenhuma parte do corpo que não seja ( mais ou menos)
comestível. Reconhecemos aí a moral cristã, que faz do ressentimento a condição do
prazer, tela de fundo de toda obra pasoliniana. Corpos e porcos serão, portanto, objetos
de uma mesma ocultação, de uma única depreciação: escondidos, negados, humilhados,
censurados. Refrão conhecido demais para que nos demoremos nele.
Representante prolífico e eclético de uma certa nouvelle vague japonesa ( vide também
Paixões juvenis de Ko Nakahira, 1956), Masumura trabalhou para Daiei, a companhia
das últimas obras-primas de Mizoguchi ( de quem ele foi assistente) até sua falência em
1971. Ele explora novos territórios na audácia e violência. O universo paroxístico,
apocalíptico de Anjo vermelho se situa em algum lugar entre Goya e Céline. A
utilização extremamente trabalhada do scope preto e branco, notadamente nas cenas de
horror coletivo ( onde centenas de feridos uivam no hospital) confere à intriga uma
grandeza trágica, sensível também nos diálogos, por exemplo nas cenas entre a
enfermeira e o cirurgião. A pureza impassível dos traços da heroína imprime à sua
composição e a seu jogo uma poderosa fascinação. Seu personagem não é, falando
propriamente, nem benéfico nem maléfico. Compassiva em diversas circunstâncias,
unindo o sexo e a morte, ela é um ser mais sutil: uma espécie de emanação atroz e
lógica dos horrores da guerra, entre os quais ela evolui como um espectro, para além do
Bem e do mal.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Este filme sublime passa completamente desapercebido em sua saída. Mesmo o Cahiers
du Cinema, apesar de atentos à carreira americana de Lang, não lhe consagraram
nenhuma crítica. Último dos 3 westerns de Lang, é o único onde o cineasta integra
completamente os dados do gênero a seu universo íntimo. Os temas languianos da
vingança, violência, solidão, das sociedades secretas encontram aqui uma expressão ao
mesmo tempo renovada e exótica, embora ela se insira admiravelmente no cadre
tradicional do western. Sobre o plano formal, o tempo é objeto de uma utilização
extremamente variada. Três tipos de tempo existem no filme: o tempo da narrativa
propriamente dita; aquele- concentrado- da sequência acompanhada pela balada-
leitmotiv do filme, que resume a longa busca de indícios empreendida por Vern; enfim,
o tempo dos três flash-backs que recompõem a figura mítica da aventureira Altar
Keane, um personagem inteiramente condiconado por seu passado ( o que vale também
para a própria atriz, Dietrich).No plano do sentido, este tempo é contudo absolutamente
uniforme, congelado, privado de projeto e liberdade: é o tempo da vingança e de um
mundo reduzido às dimensões de uma obsessão e de uma idéia fixa. O espaço do filme
reflete a mesma dualidade. Variado e rico no plano formal, suntuoso , pesado,
exuberante, quase barroco, é também um espaço fechado, morto, que não leva a nada
senão à repetição cíclica, fatal, sangrenta dos fatos que deram origem à narrativa. A
morte de Altar Keane no fim é um eco, entre outros, da morte da jovem assassinada na
segunda seqüência.
O cenário de estúdio ultrajosamente artificial, que marca a fronteira entre o mundo
exterior e o rancho, foi objeto de discussões e polêmicas entre os cinéfilos.Sem dúvida,
Lang , se estivesse mais livre em relação a seus meios, teria escolhido um cenário
natural. Mas tal como está, este cenário só faz reforçar, talvez de uma maneira um tanto
quanto demonstrativa, a estrutura asfixiante, fechada desta história “de ódio, assassinato
e vingança”, o caráter de absoluta impermeabilidade deste western pessimista e, até
certo ponto, expressionista. Pesa, com efeito, sobre os personagens uma maldição mais
pesada que a que resulta do pecado original nos filmes de Hitchcock. Estes personagens,
quer sejam animados de boas ou más intenções, se reencontram do mesmo lado da
fronteira- o mau lado. Ao longo de seu périplo, Vern Haskell pode apenas se destruir e
destruir aqueles que o circundam; mas ele também não pode deixar de se vingar.
Pertence a uma humanidade decaída, para a qual a noção de perdão não tem mais
sentido ou mesmo existência. Ele pertence, como todos os homens, a uma raça maldita.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Tudo o que o cinema pode exprimir se encontra neste “pequeno” filme, meio-western,
meio-filme de aventuras, de uma limpidez e riqueza de sentido que se aproxima do
sublime. Em vinte e cinco anos de carreira, Ulmer teve tempo de digerir as influências
mais distantes e mais fecundas ( o Kammerspiel pela expressividade dos cenários
reduzidos, Murnau pela universalidade e densidade cósmicas do tema). Pressionado
pelas circunstâncias, ele cultivou igualmente, até os limites da genialidade, seu sentido
de economia dramática; na verdade, senso de economia em todos os sentidos.
Madrugada da traição representa a súmula de sua obra, mas ao mesmo tempo é um
filme tão simples, tão acessível que pode lhe servir de introdução. É uma “morality
play” ( fábula de dimensão moral, anterior à Renascença), gênero tão amado por seu
autor, que conta a história de um homem cheio de defeitos mas ainda maleável que
entra, graças a um irmão mais velho, por um caminho no qual ele tenha talvez a chance
de se aperfeiçoar. Seu mentor é um ladrão, personagem não-respeitável por excelência,
mas que tem a seu favor a experiência e a lucidez.Ao contrário do jovem, este não é um
falastrão e não se utiliza de “máscaras” na convivência social.
Isto é apenas a trama da obra, que contém também uma parábola de diversos níveis e
oferece uma série muito rica de variações sobre a errância e a vida sedentária, a
dilapidação e a acumulação de bens, a exclusão, a participação,a lucidez e a hipocrisia.
Toda verdade, nesta narrativa de diálogos literários e plenos de sentido, é nuançada por
seu contrário. Formalmente, o filme reflete esta dualidade. Para seu segundo filme em
cores ( o primeiro, Babes in Bagdad, 1952, era uma farsa onde a cor era utilizada de
forma burlesca), Ulmer confere às aparências uma doçura, uma luminosidade, uma
redondez, uma riqueza de pátina que poder-se-ia chamar de renoiriana ( ver com efeito
sua pintura do personagem de Betta St. John). Ao mesmo tempo, através do personagem
de Arthur Kennedy, o filme destila uma melancolia pungente, que facilmente se alça ao
nível do trágico. O talento único do cineasta está completamente contido na primeira
seqüência ( um aventureiro ajuda seu companheiro morrer). Aqui, a emoção atinge seu
auge, já se mostra uma emoção de fim de filme, embora a história mal tenha começado.
O grande Herschel Burke Gilbert ( Carmen jones, While the city sleeps, Beyond a
reasonable doubt) compôs a música do filme.
Nota: Nina e Herman Schneider: estes dois nomes nos créditos do filem durante muito
tempo constiruíram um enigma para os cinéfilos. Eles são de fato o pseudônimo de
Julian Harvey, roteirista posto na Lista Negra do qual o verdadeiro nome aparecerá mais
tarde nos créditos de Circus World ( Henry Hathaway, 1964) e de Custer of the West
( Robert Siodmak, 1957).
Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior
A maioria dos filmes realizados por Eastwood são interessantes, e ele se revelou, desde
seu primeiro filme ( Play Misty for fire, 1971) como um dos maiores metteurs em scéne
americanos contemporâneos. The outlaw Josey Wales é até aqui o seu filme mais rico e
bem acabado- obra marcante da década de 70. Ela possui a dupla dimensão de uma
aventura individual e de um afresco cativante dando a ver, na desordem pós-Guerra
Civil, o fluxo inumerável de emigrados do interior que passam de um Estado a outro,
traficantes de todos os gêneros, desempregados e miseráveis improvisando expedientes
para ganhar seu pão.
No centro desta afresco, Josey Wales, camponês vítima da guerra, que se tornou um
fora da lei lendário. Contra sua vontade, ele se encontra à frente de um pequeno grupo
de losers, desclassificados, de Índios e desenraizados que obtém rapidamente, graças à
vontade do metteur em scène, a simpatia infalível do público. Um tom único de
crueldade e humanismo mesclados percorre este filme comovente e ao mesmo tempo
despido de toda sentimentalismo. O ponto de partida da intriga apresenta uma analogia
provisória com Run of the arrow ( Fuller, 1956). Desgostoso com os vencedores, um
vencido da Guerra Civil se imiscui nos territórios indígenas. Mas o que era fascinação
pelo impossível, tentativa suicida e tragicamente patética para mudar de identidade da
parte de Rod Steiger, o herói de Fuller, torna-se em Josey Wales projeto de vingança,
eliminação dos fantasmas do passado e reconversão inteiramente bem-sucedidas.
É que a personalidade de Josey Wales é feita de realismo e justa apreciação do possível.
Solitário na alma, individualista absoluto, buscando não se aliar a nenhum grupo racial
ou social definido, ele consegue, contra sua vontade, fazer adeptos que reconhecem
neste homem um companheiro seguro e um protetor. Este realismo, no entanto, só
representa uma pequena parte do personagem, pois no tocante ao resto, tanto por sua
força física, que beira a invulnerabilidade, quanto por sua força moral, que beira a
infalibilidade, o mítico Josey Wales possui qualquer coisa de um deus. Característica
habitual dos personagens encarnados por Clint Eastwood e que os faz ultrapassar os
limites do racional. ( Este salto qualitativo fora do racional é o próprio tema de outro
western seu, High Plains Drifter, 1973).
Formalmente, Clint Eastwood observou bem seus mestres. A Sergio Leone , que o
“inventou” mas que não vale um décimo dele, ele assimila esta dilatação do tempo nos
momentos de violência , através qual o personagem adquire uma dimensão quase
sobrenatural. De Don Siegel,ele aprendeu o gosto da meticulosidade e esta busca pela
tensão que progride de forma contínua de uma sequência à outra. Estas qualidades lhe
permitem dar a unidade a um filme no qual as peripécias, os personagens se
assemelham a um patchwork. Eles encarnam, com efeito, os fragmentos esparsos de
uma América em farrapos, que apenas poderia reconstituir e retomar seu tecido vital se
assimilasse todos seus excluídos. A dramaturgia e a mise em scène do filme estão,
assim como suas intenções, em busca de uma unidade perdida.
Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
.
Escape from Los Angeles pertence à veia mais iconoclasta do cinema de Carpenter e
marca seu retorno a uma forma voluntariamente mais rica, depois do rigor classicista de
Village of the damned. Esta continuação do seu Escape from New York ( 1980) toma
algumas distâncias em relação ao original: para utilizar a analogia de Bill Krohn sobre
Scorsese, Escape from L. A. é para Escape from New York o que El Dorado é para Rio
Bravo. Onde a Manhattan de New York 1997 representava uma figura alegórica, , a Los
Angeles de 2013 imaginada por Carpenter se distancia pouco da realidade. Como diz
Snake Plissken, o herói do filme, “the future is now”: o futuro é agora.
Snake Plissken ( Kurt Russel), sobrevivente de Escape from New York, é chamado a
cumprir uma missão quase similar à precedente. Este processo de retomada, de
repetição, inerente a todo filme seqüência, torna-se para Caepenter uma metáfora de sua
própria situação de cineasta a quem se encomenda repetir seu grande sucesso. Escape
from Los Angeles retoma a estrutura de New York 1997, a da aventura picaresca,
pontuada de etapas e encontros: ocasião para Carpenter de zombar dos clichês do modo
de vida californiano, do culto ao corpo ao surf. Sucedem-se assim uma série de
episódios irresistíveis, que conduzem Snake pelos quatro cantos da cidade: um centro
cirúgico estético povoado de zumbis, uma Disneyland transformada em campo de
batalha.
A América mudou, portanto e, em 2013, mostra-se mais moralista e puritana que nunca.
Escape from los Angeles visa à ditadura do “politicamente correto”, a fim de imaginar
os seus efeitos desastrosos sobre a sociedade americana. A personagem de Snake torna-
se então mais que um herói de filme de ação; ele é o porta-voz de um discurso virulento,
niilista que é o de Carpenter diretor: não se trata aqui de se conformar às regras
arbitrárias que poderiam lhe ser impostas pelo projeto do filme.
O filme pode também ser visto como um anti-Independence Day, uma vez que o medo
do Outro não é simbolizado por extraterrestes maléficos, mas por uma oposição
flagrante entre terceiro mundo e capitalismo. A América transformou los Angeles em
centro de deportação que as nações mais desmunidas utilizam para preparar a invasão
do país, graças à ajuda da filha do presidente, que se juntou aos rebeldes. Em uma das
mais belas seqüências do filme, os líderes da missão suicida de Plissken projetam-lhe
uma gravação em três dimensões da fuga da jovem: Snake é quase um prisioneiro da
imagem, assim como já aprisionado em uma ficção à qual ele está longe de desconhecer
( être le dupe).
Snake Plissken está em um “entre-deux” ( entre duas dimensões, dois mundos, no meio
de), tão desgostoso da hipocrisia dos políticos conservadores quanto do oportunismo de
ditadores de pacotilha. O que poderia se mostrar como uma contradição ideológica de
Carpenter , ao invés disso deve ser interpretado como uma espécie de manifesto político
impossível, aquele de uma sociedade ideal onde todos os indivíduos poderiam coabitar ,
para além das ideologias: não é por acaso que o personagem mais positivo do filme, a
filha do presidente, se chama Utopia. Cineasta hawksiano ( mais pela aproximação dos
temas que pelo estilo), Carpenter presta talvez homenagem aqui à poderosa mensagem
de Hawks em The big sky, filme onde os indivíduos se revelam mais fortes que os
modelos de sociedade de onde vieram. Em seu caminho, Plissken faz aliança com os
excluídos, ladrões, vigaristas, traficantes de todos os gêneros, até um transexual
especialista em guerrilha urbana. Carpenter toma deliberadamente o partido destes
“perdedores”, estes losers, no fundo mais envolventes que o presidente e seus
conselheiros, situados em uma base militar.
Carpenter faz prova aqui de um humor negro já presente em In the Mouth of Madness
( À beira da loucura, 1995), e opta por um estilo por instantes exuberante, em total
adequação com a virulência de suas intenções. Escape nos mostra um universo caótico,
quase carnavalesco, nas antípodas do bom gosto e do aspecto excessivamente
“suave”( lisse) das novas tecnologias do cinema de ficção científica. Los Angeles é
descrita como uma espécie de corte dos milagres, anunciadora de uma nova Idade
Média , prestes a se abater sobre o planeta.
Escape aliás pode ser visto como uma versão moderna da Ópera dos três vintéms, com
seu desfile variado de personagens ricos em cores, interpretados por atores magníficos
( Kurt Russel, Valeria Golino, Cliff Robertson, Stacy Keach e Steve Buscemi). Sem
dúvida, uma das grandes forças do filme é nos tornar quase familiar esta visão de
Apocalipse, como se este já estivesse às nossas portas; basta ver o admirável prólogo,
que mostra a destruição de Los Angeles por um tremor de terra titânico. Os planos são
filmados como arquivos, reforçados por uma voz-off feminina, quase neutra, que
descreve o fim de um mundo. Carpenter consegue criar um sentimento de conivência
entre o espectador e este imaginário pessimista, à maneira de Hyeronimus Bosch, no
qual o filme faz pensar às vezes. Mas Escape é também uma espécie de western urbano,
que progride com um ritmo regular, sem jamais se perder em demonstrações pesadas ou
precipitadas. É neste equilíbrio constante entre o aspecto lúdico do gênero e o
pessimismo da mensagem que Escape consegue se reconciliar com uma energia
destrutiva à qual o cinema americano parecia ter renunciado.
Sabia-se desde alguns anos que Carpenter estava prestes a se tornar um dos metteurs-en-
scène mais apaixonantes de sua geração. Sabe-se agora que ele é também um dos mais
importantes. Certo, Escape from Los Angeles é talvez menos “sustentado” ( tenu)
formalmente que alguns de seus últimos filmes, mas suas imagens são tão singulares e
poéticas quanto: um ballet de helicópteros em plena noite, uma corrida de surf nas
ruínas, uma viagem submarina nos destroços de uma cidade submersa... Os efeitos
especiais, com frequência utilizados de forma exagerada nas grandes produções, servem
aqui a colocar em relevo um mundo dominado pela mentira e pela ausência total de
comunicação entre os seres. Nesse sentido, a cena final do filme, que repousa sobre um
jogo de “faux-semblants” e de hologramas, é um modelo de inteligência e economia.
Mas com os anos Carpenter tornou-se um cineasta mais grave, mais lúcido, portanto
mais insolente. Snake encontra, ao longo de seu périplo, Taslima, uma jovem
aventureira que o salva das garras de um espantoso agressor. Ao curso de um curto
monólogo, Taslima descreve sua existência em Los Angeles , explicando que, apesar da
guerra e da violência, é-se mesmo assim livre. Sob os olhos de Snake, ela se deixa
subitamente matar por uma bala perdida. Cena trágica, dirigida sem pathos, e que nos
confronta com qualquer coisa de fugitivo, brutal e absurdo que é simplesmente a própria
vida. Esta breve sequência é o espelho do filme, de uma invenção e simplicidade
prodigiosas. Saímos de Escape com o sentimento inesperado de que o cinema pode
ainda ser febril, livre e jubilatório. Pois sob seus dilúvios de explosões e ruídos, penetra
paradoxalmente uma força e uma imaginação extraordinárias, aquelas de um dos
maiores cineastas de sua geração.
No interstício entre dois períodos, o filme ocupa um lugar à parte na obra de Preminger.
É o único onde o autor deu a um tema pequeno, de caráter intimista e trágico ( caráter
este que figura em geral na primeira parte de sua obra), os atributos – o scope, a cor-
que ele reserva com frequência ao tratamento dos grandes temas políticos e sociais. A
fim de bem demarcar a dupla natureza, a natureza um pouco híbrida do filme,
Preminger rodou em preto e branco as sequências atinentes ao presente da ação. Os dois
tipos de sequência ( o passado em cores, o presente em preto e branco) são unificados
por um comentário em off muito importante no filme, pois ele orienta ao mesmo tempo
sua estrutura, seu conteúdo emocional e moral. Ele projeta a heroína e o filme em uma
espécie de eternidade gélida, apesar de excitante para o espectador, onde a narradora
revê e retoma indefinidamente uma história que a fez sair , sem dúvida
irremediavelmente, do universo livre e descuidado da adolescência e de sua conivência
com seu pai. A história de Bom dia tristeza é a de um paraíso perdido para sempre para
a heroína, sob os efeitos conjugados de sua lucidez e de uma vontade perversa de agir e
de triunfar. Junta-se a isso um desejo mais secreto de imobilizar o tempo a seu bel-
prazer. Cécile procura prolongar até os limites da saciedade o conforto de uma célula
familiar reduzida à sua mais simples expressão, aquela de uma relação pai-filha que
inclui em si mesma, com uma perfeição interdita, todas as outras relações que possam
unir dois seres.
A intenção de Preminger de adaptar o romance de Sagan não deve surpreender, já que a
intriga do romance se assemelha muito à de um de seus primeiros filmes, Angel face,
1953. Sendo a obstinação uma de suas virtudes principais, ele não se deixou desanimar
pelo insucesso monumental de Santa Joana, e retomou a parceria com a atriz que
descobrira, Jean Seberg. Ele descobriu e forjou em Seberg uma personalidade física, um
talento inteiramente novo e fascinante ( Santa Joana e Bom dia tristeza foram os únicos
grandes filmes de Jean Seberg, uma carreira que desejaríamos ter sido mais rica e mais
feliz).
Uma influência discreta da pintura abstrata (que Preminger adorava colecionar) faz-se
presente na mise-en-scéne do filme. O rosto- os rostos- de Jean Seberg se entrecortam,
ao sabor das sequências, sobre fundos unitários e coloridos, segundo uma dinâmica
plástica que ressona tanto sobre o caráter único e autônomo de cada sequência quanto
sobre a adesão e confrontação contrastadas das mesmas no conjunto da narrativa. Bom
dia tristeza é, ainda mais nitidamente que os outros filmes de Preminger, um filme tanto
de artista plástico quanto de dramaturgo.
Jacques Lourcelles Dicionário de Filmes. Tradução: Luiz Soares Júnior.
Soberbo pedaço de poesia do mais inspirado e “artista” dos cineastas russos. Primeiro
filme falado do realizador, À beira do mar azul guarda ainda um pé no mudo e permite
aos personagens se exprimir ora pelo silêncio, ora pela palavra ( poucas palavras), ora
pelo canto. Obra dionisíaca, tudo nela jorra e se transforma alegremente em seu
contrário. A intriga é composta por eventos minúsculos, imponderáveis, aliás com
freqüência improvisados no estúdio; e, no entanto, os personagens dão-nos a impressão
de viverem uma grande aventura. A maioria das sequências utiliza uma montagem
curta, entrecortada, mas que ao fim possui uma grande amplidão lírica, devido ao
interesse equilibrado que o autor dispensa às paisagens e aos personagens.
Estes últimos são pobres diabos desprovidos de tudo, espécies de clowns próximos dos
heróis de Gosho ou de Jacques Rozier, e no entanto dão verdadeiras lições de vida.
Desprovido de mensagemn política, o filme transmite uma mensagem de alegria,
felicidade e reconhecimento para com a vida. A crítica russa da época foi violenta ( vide
os documentos reunidos na excelente publicação do Festival de Locarno, Boris Barnet,
1985). Reprovou-se sobretudo seu vazio, seu formalismo, falta de imaginação,
ingenuidade, seu artifício. Um dos críticos ( Herrman Khokholov) lamenta que o mar
constitua de qualquer maneira o personagem principal do filme”, o que em certo sentido
não é falso, mas ele lamenta que “este personagem não possua nenhuma simpatia
particular”. A quem se interessasse por abordar o imenso continente cinematográfico
russo, não haveria melhor conselho a dar que o de começar por À beira do mar azul.
Pois não há obra mais original, mais livre de todos os cânones estéticos e ideológicos,
mais intimamente próxima do seu autor e mais de acordo com esta infinita vitalidade
cósmica do universo que os melhores filmes russos sempre tentaram restituir.
Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
A breve novela de Camilo Boito (1883) forneceu a Visconti a matéria de seu melhor
filme e de uma das obras-primas do cinema italiano. Poder-se-ia mesmo afirmar que se
trata do único filme “caligrafista” (calligraphique) italiano em cores. Visconti retorna a
este movimento estético e a esta inspiração nascidas, bem o sabemos, de uma secreta
oposição ao fascismo nos últimos anos do regime (e do qual Malombra é o filme-
chave). Eles constituem, muito mais que o neo-realismo, o seu verdadeiro universo de
artista. A intriga de Senso mostra o naufrágio de dois personagens em seu amor,
qualificado por eles mesmos como triste e vergonhoso, amor este que conduzirá à sua
recíproca destruição. Eles são um para o outro sua prisão e seu carrasco. Toda sua
aventura se desenrola “à parte” (à coté) da História, da qual sua fraqueza, passividade e
uma espécie de maldição social os impede de participar. São os representantes
impotentes mas lúcidos de um mundo prestes a desaparecer. O positivo está morto
neles, e eis a razão pela qual aqui é difícil falar-se em melodrama ou de ópera. Certo, a
ópera é a referência estética maior que acompanha suas trajetórias, mas ela age à
semelhança de um réquiem, do qual o lirismo gélido e fúnebre não nos permite
experimentar por eles a menor piedade. Visconti pousa sobre seus personagens um olhar
frio e distanciado, descreve-os em longas cenas anti-dinâmicas onde abundam os planos
gerais, que colocam entre eles e os espectadores o máximo de recuo permitido pela
mise-en-scéne. Sob o plano estético, o sucesso do filme (apesar das dificuldades e
obstáculos encontrados por Visconti) aproxima-se da perfeição. Os dois intérpretes
principais são inesquecíveis, e Alida Valli prolonga com uma coerência profunda o
papel que desempenhara no Piccolo mondo Antico, assim como aqueles de Isa Miranda
na época do caligrafismo. O mesmo refinamento caracteriza as cenas intimistas do filme
e os “tableaux” de guerra. Estes últimos figuram entre os mais belos de um gênero que o
cinema hesitava na época tratar em cores. Na parte consagrada à batalha de Custoza,
Visconti teve de suprimir algumas cenas, das quais a ausência prejudica a clareza da
narração (exemplo: aquela em que Ussoni recusa a seus partidários o apoio às tropas
regulares). Contudo, o “ponto de vista de Fabrício”, tão frequentemente de forma vã
chamado em defesa, permite aqui justificar sem artifício a confusão, plásticamente
soberba, desta parte da narrativa. A produção e a censura tiveram uma influência
conjunta para tirar do filme todo o lado negativo desejado por Visconti. Aliás, foi-lhe
proibido chamar o filme de Custoza, nome da célebre derrota italiana, como era o seu
desejo. É sob pressão que ele filma, a título de desenlace, a morte de Mahler, execução
que julgava inútil mostrar. Ele a filmou no castelo Santo Ângelo em Roma e não em
Verona, que a equipe já tinha deixado para trás.
Vejam a descrição dada por ele nos Cahiers du Cinema (número 93) a respeito da
seqüência que ele havia filmado para terminar o filme, ao invés da execução do tenente:
“ Vemos Lívia passar por entre grupos de soldados bêbados, e o fim mostrava um
pequeno soldado austríaco, muito jovem, no máximo 16 anos, completamente bêbado,
apoiado contra o muro, cantando uma canção de vitória como as que se ouve na
cidade.Depois ele parava, chorava e gritava: Viva a Áustria!” Não podemos,
evidentemente, julgar a respeito da qualidade deste final, mas o que conhecemos é
perfeitamente lógico e admirável. Ele acresceu ao filme alguns dos planos mais
significativos do estilo de Visconti. Nos vinte anos que se seguiram a Senso, Visconti
foi sem dúvida mais livre, mas não reencontrou jamais o gênio que manifesta aqui. Ele
se embrenhou pouco a pouco no academicismo e, comparado ao rigor e à plenitude
estética deste filme, seu tão elogiado Leopardo, onde ele tentou vulgarizar sua temática
e seu universo, é apenas um “pensum” extremamente cansativo.
Segundo e último filme da Diana Productions, sociedade fundada por Lang, Walter
Wanger , sua mulher Joan Bennett e Dudley Nichols. (Diana era o nome da filha de
Bennett e de seu primeiro marido). Depois do fracasso deste filme e do fim da Diana,
começará para Lang a fase mais errática de sua carreira. O segredo da porta fechada é o
mais onírico,, mais barroco , mais cheio de poesia de todos os seus filmes americanos.
A psicanálise, que aqui não é aprofundada enquanto método científico e terapêutico,
serve sobretudo de suporte concreto à revelação da obsessão criminal do herói, que se
liga de maneira central ao universo languiano. “Somos todos filhos de Caim”, diz o
personagem interpretado por Redgrave quando de seu processo imaginário; esta frase
poderia ser posta como princípio em todos os filmes de Lang. O fato de o personagem
não ser um criminoso literal, mas assombrado pela idéia do crime, torna-o ainda mais
languiano. Lang era intimamente convencido de que cada homem é um criminoso em
potencial, e o exprimia frequentemente em conversações privadas. Às vezes, perguntava
a algum de seus interlocutores, com um tom falsamente interrogativo, se este jamais
desejara matar alguém. A resposta negativa suscitava nele um ceticismo completo.
Uma das particularidades do filme (que engendra aliás seu poder poético) é sua
construção profundamente subjetiva, que nos permite penetrar nos pensamentos e
sentimentos da heroína, especialmente graças a um dos mais belos comentários off
jamais ouvidos em um filme. No interior da visão da heroína (que existe no filme
enquanto “sujeito”), o personagem masculino é considerado sucessivamente como
objeto de fascinação, amor, por fim de estupor e terror, os quais serão sempre mesclados
intimamente à presença do amor. A extrema liberdade da dramaturgia permite a este
“objeto” tornar-se, por seu turno, “sujeito”, na única e célebre seqüência do processo
imaginário que o herói intenta contra si mesmo. A foto, os cenários, o découpage,
minuciosamente pensados préviamente por Lang com a ajuda de Stanley Cortez, dão ao
menor interior uma intensidade expressiva próxima do fantástico. O plano típico do
filme é o da heroína atravessando algum corredor ou vestíbulo, transformado pelas
zonas de sombra e de luz em um lugar perigoso, ao mesmo tempo ameaçador e
fascinante. Ela deve percorrê-lo integralmente, com o propósito de atingir aos limites de
seu medo, do obstáculo, do enigma e do segredo que ainda a separam de sua felicidade.
Pois O segredo da porta fechada é, na cronologia da obra de Lang, o último filme onde
o autor ainda deixa a seus personagens uma chance - mínima que seja - de felicidade.
Certo, Renoir presta uma homenagem ao teatro, mas seria um erro reduzir o sentido do
filme à esta homenagem. O teatro aparece aqui, evidentemente, como realidade concreta
(Renoir não exprime nada que não passe em primeiro lugar pelo concreto), mas
sobretudo como metáfora. Ele é o receptáculo de todas as aspirações humanas à
totalidade, à plenitude; é o espelho da alma sensível e ávida da heroína e de seu autor. O
teatro representa uma ultrapassagem, embora real, da realidade: o teatro ou a metafísica
preferida do Ocidental. Síntese de arte plástica e de arte dramática, música e confissão
íntima, A carruagem de ouro é um desses filmes que permitem crer na superioridade do
cinema sobre todas as outras artes.
Nota: O filme existe em três versões: italiano, francês e inglês. A versão inglesa deve
ser considerada a oficial, já que nela se ouve o som direto da filmagem. No entanto
-pois tudo é paradoxo em Renoir-, a versão dublada em francês nos parece muito
superior. As vozes são mais variadas, mais pitorescas, mais engraçadas e, se pudermos
falar assim, mais concretas. Elas acrescentam à elegância e ironia medidas do diálogo
um elemento picaresco do qual não se consegue abrir mão, uma vez provado.Os atores
que dublam a si mesmos (Magnani, Odoardo Spadaro) estão ainda melhores na
dublagem que no idioma original. Por outro lado, Jean Debucourt, na versão inglesa, é
horrivelmente mal dublado. Quanto à versão italiana, ela apresenta o mérito de fazer na
Magnani falar em sua língua original. No entanto, enquanto versão dublada, ela parece
menos colorida e variada que a francesa.
Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes. Tradução: Luiz Soares Júnior.
CIDADÃO KANE. 1941, USA ( 119’) Prod. RKO/Mercury Theatre Production ( Orson
Welles). Realização: Orson Welles. Roteiro: Herman J. Mankiewicz, Orson Welles.
Foto: Gregg Toland. Música: Bernard Herrmann. Dec: Van Nest Polglase, Perry
Ferguson, Darrell Silvera. Intérpretes: Orson Welles ( Charles Foster Kane), Joseph
Cotten ( Jedediah Leland), Dotothy Comingore ( Susan Alexander Kane), Everett
Sloane ( Mr. Bernstein), Georges Coulouris ( Walter Parks Thatcher), Ray Collins
( James W. Gettys), Ruth Warrick ( Emily Norton Kane), Erskine Sanford ( Herbert
Carter), William Alland ( Jerry Thompson), Agnes Moorehead ( Mrs. Kane), Richard
Baer ( Hillman), Paul Stewart ( Raymond).
Tamanho foi o impacto de Cidadão Kane em seu lançamento e no imediato pós-guerra
que desde então ele foi sempre citado- e ainda o é- entre os 10 melhores filmes da
história do cinema em listas feitas pelos historiadores, críticos e cinéfilos. Ainda muito
recentemente, no “The top 100 movies” de John Kobal, Londres, Pavilion Books, 1989,
que reúne quatrocentas listas de filmes de todos os países, Cidadão Kane chega em
primeiro lugar.
Uma grande parte- e sem dúvida parte essencial- da originalidade do filme já existia “no
papel”, antes mesmo do primeiro dia de filmagem. Ela diz respeito à construção do
filme, que compreende ao menos três elementos novos. Em primeiro lugar uma espécie
de sumário, de lista de temas do filme aparece no cine jornal que resume no começo o
filme da vida e a carreira de Kane. Esta indica os principais pontos a serem
desenvolvidos pela intriga. Aqui, originalidade absoluta: em nosso conhecimento,
nenhum outro filme comportou até então este tipo de introdução. Segundo elemento
novo: a utilização sistemática e múltipla de flashbacks confere a Cidadão Kane a
estrutura de conjunto de um filme-investigação (enquéte).
Estes flashbacks emanam de cinco narradores diferentes, contactados pelo jornalista-
inquiridor. Um desses narradores, o tutor de Kane, Thatcher, que está na origem do
primeiro dos flashbacks, a princípio só nos aparece como autor de memórias lidas pelo
jornalista; mas nós o vemos em carne e osso em outro trecho do filme. Desvio
imprevisto, revivendo com virtuosismo a curiosidade do espectador: o primeiro narrador
encontrado pelo jornalista ( Susan Alexander) recusara-se a falar então, e seu
testemunho só aparece em quinta posição no conjunto de 6 flashbacks.
Embora não fosse o primeiro filme a utilizar o flashback - longe disso, aliás, pois este
procedimento aparece com força na história do cinema com The Power and the glory ,
Thomas Garner, de 1933, de William K. Howard sobre um roteiro de Preston Sturges,
filme que apresenta analogias de estrutura e conteúdo com Cidadão Kane; além disso, o
flashback também fora usado em Trágico amanhecer, 1939, de Carné-, o filme de
Welles marca uma data muito importante na utilização deste meio.
Terceiro elemento novo: embora a maioria das seqüências contidas nos flashbacks se
completem, como é normal ocorrer, em relação aos eventos que relatam, algumas se
repetem e dão-nos diferentes pontos de vista sobre o mesmo evento: a primeira
sequência de Salambô, por exemplo, é narrada sucessivamente por Leland ( quarto
flashback) e por Susan ( quinto flashback). Este tipo de repetição ou variação de pontos
de vista sobre um mesmo evento passado aparece, sem dúvida, pela primeira vez em um
filme. A posteridade deste procedimento será relativamente abundante: citemos as
célebres seqüências de Rashomon de Kurosawa ( 1951) , onde este procedimento
constituirá a própria base do filme, e A condessa descalça de Mankiewicz ( 1954).
Esta construção extremamente inovadora de Kane, no entanto, apresenta falhas, tanto no
plano da coerência quanto em relação ao equilíbrio das partes. Depois de ter mostrado
seus personagens unicamente através de testemunhos, escritos, cine jornais, o próprio
Welles renega este procedimento e torna-se novamente um verdadeiro “narrador-deus”,
com o propósito de revelar ao espectador, na última sequência e por meio de uma
narração direta, o significado de “Rosebud”.
De outro lado, a importância acordada à descrição de Kane como um Pigmaleão
fracassado ( em suas relações com sua segunda esposa) parece muito excessiva, em
relação a todos os outros aspectos da vida de Kane. De qualquer modo, esta construção
impressionou muito tanto o público quanto a crítica.
O relevo adquirido pela estrutura do filme se deu provavelmente ao fato de que o
personagem que esta se encarregara de retratar não estava à altura da sutileza estrutural
do filme, que este carecia singularmente de substância.
É aí que o filme parece muito inferior à sua reputação. Kane, o personagem, é sem
dúvida o mais belo “albergue espanhol” da história do cinema, no sentido mais negativo
da expressão: um verdadeiro balão inflado, um envelope vazio de onde a principal
realidade provém de dois elementos exteriores. O primeiro é a relação que mantém com
sua “figura chave” ( William Randolph Hearst), e que lhe dá, já que Hearst é um
magnata da imprensa e manipulador da opinião pública americana, um certo valor
sociológico. Mesmo que Hearst não seja a única inspiração para Kane- cita-se também
Basil Zaharoff, Howard Hughes, etc,-, a sua biografia e a de Kane são suficientemente
próximas e ricas em similitudes para que Kane possa ser considerado uma tradução
cinematográfica de Hearst.
O segundo elemento exterior é a semelhança que Kane entretém com o próprio Welles:
megalomania, vontade constante de se afirmar diante de si mesmo ou do mundo,
tentação e fascinação do inacabado, etc. No plano dramático, o mais belo acerto de
Welles foi suscitar para este vencedor a compaixão que o público habitualmente
experimenta diante dos perdedores ( loosers). (A notar que o próprio filme, à imagem de
Kane, perdeu muito dinheiro em seu lançamento, apesar do sucesso, e só tornou-se
lucrativo ao longo dos relançamentos).
Se certos autores, como Sartre em seu célebre artigo no “Écran Français” ( de 1 de
agosto de 1945), em parte renegado pelo próprio, criticaram o filme como
intelectualizante e estetizante, a reação destes deve ser relacionada com o caráter
paradoxalmente inconsistente de Kane “enquanto herói de ficção”. Kane é, com efeito,
quase que totalmente desprovido de espessura romanesca ou psicológica. Toda força do
personagem reside em seu mito, que faz dele um colosso com pés de barro.Ao longo de
sua carreira, Welles vai criar e interpretar personagens mais ricos, como Arkadin em
Grilhões do passado e o policial Quinlan em A marca da maldade.
No plano visual, Cidadão Kane contém uma série de procedimentos ( curtas focais,
plongés e contra-plongés, presença dos tetos dos cenários no quadro, objetos em
primeiríssimo plano, etc) que Welles não inventou, mas dos quais ele fez as figuras de
uma retórica barroca que lhe pertence plenamente de direito.
Este é o lugar de colocar duas questões. Cidadão Kane é um filme revolucionário? Um
filme moderno? Os lugares comuns que circulam através da maioria das histórias do
cinema impõem-nos de responder afirmativamente. Mas isto talvez seja incorrer em
precipitação.
Estilísticamente, a dívida de Welles com o passado é considerável: influência do
expressionismo nos cenários, iluminação e até mesmo no esquematismo de certos
personagens secundários, reforçado pela mediocridade na direção das atrizes ( os atores
masculinos, ao contrário, estão excelentes); influência do cinema russo na fragmentação
analítica e voluntária da construção ( jamais radicalizada desta forma antes) e do
découpage ( corte) propriamente dito. Sob este aspecto, Cidadão Kane, pelo retorno às
fontes russas, parece justamente o contrário de um filme moderno, o cinema moderno -
Lang, Preminger, Mizoguchi- caracterizando-se ao contrário como sintético e “ d’une
seule couleé” ( de um fôlego só, uma corrente única), procurando fazer esquecer ao
máximo a presença e o papel da montagem, neste desejo irrealizável de um filme
composto por um único plano longo e perfeitamente deslizante ( lisse).
A revolução wellesiana só tem sentido, então, em relação a certos hábitos
hollywoodianos. Resta a questão da profundidade de campo e do emprego do plano-
sequência, figuras que Welles utiliza e que são as bases do cinema moderno. Mas nele a
profundidade de campo é empregada de maneira tão demonstrativa, tão
“visionária”( voyante) que ela chama a atenção mais para si do que para a sucessão de
planos do découpage tradicional ( sem ser por isso mais rica de sentido).
No que se refere ao célebre plano em que Kane descobre a tentativa de suicídio de
Susan ( com o copo em primeiro plano), considerado como exemplo perfeito do plano-
sequência usado com profundidade de campo, longe de corresponder a um emprego
realista, global, sintético, totalizante do espaço cinematográfico, ele é resultado- sabe-se
hoje em dia- de um truque no interior da câmera. O plano foi primeiro filmado com o
foco sobre o primeiro plano iluminado, enquanto que o plano de fundo estava
escurecido e invisível, depois voltaram a película para trás para refilmar o plano
novamente, agora com o primeiro plano no escuro e o foco sobre o plano de fundo
iluminado. Welles aqui se revela, como Kane, um manipulador e um prestidigitador sem
igual; e as principais vítimas de sua manipulação foram seus asseclas, na primeira linha
dos quais figura André Bazin. Depois de ter julgado “natural” a mise-em-scéne deste
plano, Bazin fala do “realismo” deste découpage em profundidade. “Realismo sob
qualquer aspecto ontológico, escreve ele, que restitui ao objeto e ao cenário sua
densidade de ser, seu peso de presença, realismo dramático que se recusa a separar o
ator do cenário, o primeiro plano dos planos dos fundos, realismo psicológico que
recoloca o espectador nas verdadeiras condições da percepção, a qual não é jamais
totalmente determinada a priori” ( Em André Bazin: Orson Welles, Éditions du Cerf,
1972, Ramsay).
Nos três domínios onde Bazin o situa, este dito realismo não é nada mais que o produto
das manipulações de Welles, que tem por objetivo aprisionar a realidade em um cadre
do qual a rigidez, o extremo artifício, o caráter coercitivo e congelado saltam aos olhos,
mesmo se ignorarmos o modo como o plano foi fabricado. É aliás uma espécie de
aberração falar de realismo, e ainda mais ontológico, a respeito de Welles, que dele se
distancia tão radicalmente, por sua natureza barroca, sua vocação de prestidigitador e de
mestre dos artifícios, seu gosto do disfarce, da maquiagem e dos elementos postiços.
Estes últimos aliás são frequentemente detestáveis no Cidadão Kane, embora tornados
necessários pelo fato de que ele encarna com vinte e cinco anos um homem entre vinte e
seis e setenta.
Sartre escrevia: “Tudo é analisado, dissecado, apresentado na ordem intelectual, em
uma falsa desordem que é apenas a subordinação da ordem dos eventos à ordem das
causas: tudo é morto. As invenções técnicas do filme não são feitas para restituir a vida.
Há admiráveis fotos (...). No entanto, tem-se a impressão freqüente de que a imagem
“prefere a ela mesma” ( se prèfere); somos constantemente atropelados por essas
imagens excessivamente rígidas, mascaradas por excesso de cálculo (grimaçantes à
force d’être travaillées). Como um romance no qual o estilo foi radicalizado e levado
para o primeiro plano, enquanto os personagens foram esquecidos “ ( Este texto figura
na excelente obra de Olivier Barrot: “L’écran français Reunis, 1979).
Última questão: Cidadão Kane teve uma influência preponderante sobre a evolução da
mise-em-scéne cinematográfica? Aí também a maioria dos historiadores respondem
afirmativamente, e alguns de uma forma exagerada, que beira o delírio. Estéticamente, a
influência concreta do filme deve ser relegada ao filme noir, por meio de sua construção
de “filme-inquérito” e por sua temática da nostalgia da infância, do paraíso perdido,
bem resumido pela palavra-chave Rosebud. É com razão que Robert Ottoson, no
prefácio a seu “Reference Guide to the American Film Noir 1940-1950”, coloca
Cidadão Kane entre os oito fatores principais que determinaram o nascimento do gênero
noir ( depois do expressionismo alemão, o realismo poético francês, o romance policial
“hardboiled”, o uso das externas como elemento de economia no cinema do pós-guerra,
o clima de desespero engendrado pela guerra e pela dificuldade dos antigos soldados de
se readaptarem socialmente, o interesse pela Psicanálise e por Freud , e por fim o neo-
realismo italiano).
Tratando-se de um cineasta essencialmente barroco, a influência de Welles foi
forçosamente muito limitada, os barrocos tendo sempre representado uma ínfima
minoria no cinema de Holywood e outros. Fora sua influência sobre alguns pequenos
mestres que viveram em sua órbita (Richard Wilson, Paul Wendkos), Welles marca, em
uma certa medida, a geração de novos cineastas americanos dos anos 50: Aldrich
( sobretudo em A morte num beijo), Nicholas Ray e Fuller.
Mas onde Cidadão Kane teve o papel mais determinante foi na forma através da qual o
público, e sobretudo os cinéfilos e cineastas iniciantes, passou a olhar o cinema e o
lugar do metteur-em-scéne no interior da criação cinematográfica. Welles era
justamente o contrário de uma eminência parda; embora fosse um homem
empreendedor , buscando sempre provar aos outros o seu próprio gênio, acabou por
representar o emblema espetacular do metteur-em-scéne-autor. Seria ele considerado
assim se não tivesse também representado no filme o papel principal?
Para o primeiro filme deste jovem de 25 anos, que já tinha detrás de si as carreiras de
pintor, jornalista, ator, diretor de troupe teatral, homem de teatro e de rádio, a RKO
confiou um grande orçamento e uma total liberdade, inclusive o controle- privilégio
supremo- sobre a montagem final.. Sob este prisma, Cidadão Kane, antes mesmo do
primeiro dia de filmagem, já era uma bomba. O gênio publicitário e auto-publicitário de
Welles, que impressionou tantos cineastas da Nouvelle Vague francesa, fez o resto. A
tal ponto que se esqueceu, durante mais de 30 anos, a contribuição essencial do co-
roteirista Herman Mankiewicz, irmão mais velho brilhante de Joseph L., que ofuscava
tanto o brilho de seu irmão diretor que este declarou um dia: “ Eu sei o que vão
inscrever no meu túmulo... aqui jaz Herm... ops, Joe Mankiewicz”.
De qualquer forma, uma grande parte da substância e da construção do filme, assim
como o imortal “Rosebud”, pertencem a Herman J. Mankiewicz, que escreveu sozinho
os dois primeiros esboços do roteiro. ( Não podemos minimizar igualmente o papel do
operador Gregg Toland e do músico Bernard Herrmann, mesmo que o trabalho deste
aqui seja apenas um pálido esboço do que realizará mais tarde para Hitchcock ou
Mankiewicz).
Em conclusão, poder-se-ia quase dizer que Cidadão Kane foi mais importante para a
história da crítica cinematográfica que para a arte do cinema propriamente dita. Cidadão
Kane ensinou muitos espectadores a ver melhor os filmes e a melhor julgar a respeito da
importância do metteur-em-scéne no interior desta criação coletiva que é a realização de
um filme. Evidentemente, eles teriam chegado a esse estágio de apreensão dos filmes
sem ele.
Contrariamente aos que pensam que Welles modificou profundamente com este filme o
status do realizador em Hollywood, excetuando-se Ford, Hitchcock e 2 ou 3 diretores, a
maioria dos grandes metteurs-em-scéne hollywoodianos ( Lang, Walsh, Tourneur, Sirk)
permaneceu relativamente na sombra. Assim como Welles, aliás, antes e depois de
Kane. E para a maioria deles, esta discrição lhes era conveniente. Por que necessitariam
eles de Welles para se afirmar?
Dicionário de Filmes, Jacques Lourcelles.
Traduzido por Luiz Soares Júnior.
Vinte anos mais tarde, A regra do jogo será quase que unanimemente considerado como
o melhor Renoir e um dos maiores filmes franceses. Nesse ínterim, os cinéfilos do pós-
guerra haviam descoberto o filme, haviam-no visto e revisto nos cine clubs, tão
influentes na época. Este é um dos numerosos exemplos de reputação criada pelos
cinéfilos contra a crítica estabelecida oficial dos “profissionais” e dos historiadores.
Nesta época, o filme é frequentemente amado e descrito como um meteoro caído do céu
no meio da produção corrente da época, produção esta com a qual ele não teria nenhuma
relação, semelhança nem medida comum. Este ponto de vista, completamente errado,
deve ser colocado em relação com os preconceitos nutridos pelos cinéfilos do pós-
guerra e dos anos 50 em relação ao cinema francês, que eles conheciam muito mal aliás.
A partir dos anos 70, este cinema é redescoberto, re-estimado e, desde então,
apercebemo-nos de que A regra do jogo, longe de ser uma exceção na produção da
época, pertence, pelo contrário, a uma longa e rica linha de filmes que descrevem a
sociedade do tempo segundo uma visão crítica e panorâmica, apoiando-se sobre uma
série de personagens, pertencentes a todas as classes.
Quer se tratassem de filmes em formato de sketches, ou fossem eles assinados por
Guitry ( Ils etaient neuf célibataires), Yves Mirande ( Café de Paris, Derrière la façade)
ou Duvivier ( Um carnet de bal), estes filmes mesclavam o humor à crueldade,
declinando, sob todos os tons, o seu pessimismo; e todos, com uma lucidez mais ou
menos aguda, têm a consciência de descrever o crepúsculo de um mundo. Podemos
mesmo encontrar no argumento de um desses filmes ( Sept hommes... une femme, de
Yves Mirande, 1936) uma fonte possível para o roteiro de A regra do jogo: uma jovem e
rica viúva reúne em sua mansão sete pretendentes ( artistas, aristocratas ociosos,
financista, empresário, etc) para escolher aquele com quem ela se casará. Cansada das
mentiras, da cupidez e vulgaridade dos pretendentes, ela vai rejeitar a todos. Antes
disso, para diverti-los, ela organizara uma partida de caça, e o filme contém planos
quase idênticos aos de Renoir. Constantemente, se estabelece um paralelismo entre o
mundo dos patrões e dos empregados. Trata-se, é bom que se diga, de um dos filmes
mais preguiçosos e mal-sucedidos de Mirande, e aqui não se trata de compará-lo,no
plano criativo, à Regra do jogo. Mas a semelhança de ambos os panoramas diz muito
acerca do pertencimento de Renoir a um filão em voga na época. De uma maneira geral,
estes filmes tiveram grande sucesso. E o público, longe de se mostrar desorientado,
apreciava sua profusão dramática, suas rupturas de tom, seu niilismo mais ou menos
envolto em piada. Como explicar então o insucesso total de Renoir no interior deste
gênero? Alguns consideraram para este fracasso causas externas, como o lançamento
excessivamente tardio do filme, às vésperas da guerra. Quanto às causas internas para o
insucesso, elas são tão numerosas que hesitaríamos em enumerá-las, caso o gênio
específico do filme não fosse melhor explicado por algumas. Entre elas, pode-se citar
em primeiro lugar este parentesco tão profundo com uma tradição literária que vai de
Marivaux a Beaumarchais e Musset, que embora pudesse seduzir a crítica, deve ter
assustado o público ( aliás, um dos primeiros títulos do filme seria Os caprichos de
Marianne).
Em seguida, há esta distribuição de atores , variada mas muito insólita e às vezes
discordante. A melancolia desfalecente, indecisa de Nora Gregor,- princesa austríaca
que havia interpretado no Michael de Dreyer e em numerosos filmes alemães e
austríacos , antes de aparecer pela primeira vez aqui em um filme francês- certamente
decepcionou o público, assim como a volubilidade desajeitada e estranha de Renoir no
papel de Octave, personagem que contém em filigrana fantasmas de ordem
autobiográfica. Será que foi esta discordância que impediu o público de aplaudir as
interpretações mais clássicas de um Carette ou de uma Paulette Dubost?
Durante a preparação do filme, este elenco sofreu várias modificações: o papel de Nora
Grégor estava previsto para Simone Simon, o de Renoir para seu irmão Pierre, o de
Dalio para Claude Dauphin, o de Roland Toutain para Gabin e o papel de Modot para
Fernand Ledoux.
Mas certamente o fator de maior rejeição do público foi esta gravidade de tom que
progressivamente se instala na intriga e pouco a pouco recobre suas peripécias burlescas
e “guignolesques”. Com os personagens incongruentes, inocentes, vulneráveis, sinceros
de Jurieu e Octave, tão deslocados na universal mentira social que estigmatiza o filme,
Renoir abolia, em um só movimento, o cinismo, a distância e o recuo que o público
apreciava nos afrescos irônicos de Mirande. Distância e cinismo que, para o espectador
da época, eram parte integrante do seu prazer. Privado desta distância, insensível à sábia
construção da intriga, às suas referências permanentes a uma tradição literária, o público
aderiu ainda menos ao filme ao perceber neste a atmosfera de uma confissão íntima,
sobretudo quando esta exprime a impotência de certos seres ( Octave, Jurieu) para se
inserir no jogo do mundo.
As qualidades formais do filme só serão apreciadas no pós-guerra. Então, louvar-se-á
sem reserva esta virtuosidade espantosa no uso da profundidade de campo, dos planos
longos, dos movimentos de câmera, complexos e fluidos, que transformam um décor
teatral em uma seqüência contínua de espaços por onde desfila, como em uma
mascarada, toda uma sociedade. Longe de lamentar que este vaudeville, esta comédia de
erros se transforme -e se congele- em uma tragédia grotesca e razoavelmente
inquietante, um novo público de cinéfilos, de amadores passionais e de cineastas
aprendizes verá em A regra do jogo a síntese genial de um artista que utiliza a fundo a
escritura cinematográfica, em seus aspectos igualmente visuais e literários.
Nota complementar: Renoir é por excelência um “autor de obra”: seu gênio brilha, é
claro, em cada um de seus filmes, mas ainda mais na reunião dos filmes, em sua
confrontação. Se ele nos espanta por ser o autor de A grande ilusão ou da Regra do
jogo, ele nos causa ainda maior admiração por ter realizado ambos os filmes e de ter
desta forma tocado a todas as camadas do público, como um escritor que fosse capaz de
escrever ao mesmo tempo Os Miseráveis e A Cartuxa de Parma. A história das cópias
de A regra do jogo testemunha a vicissitude das recepções do filme. Em 1939, sai uma
cópia de 113 minutos, já reduzida a 100 minutos. Em vista das reações do público,
corta-se ainda uma dezena de minutos do filme e o papel de Octave é amplamente
amputado. Em 1945, relança-se sem sucesso uma cópia curta. Durante mais de 10 anos
circularão cópias de 90, 85 e 80 minutos. O negativo original foi destruído em um
bombardeio em Bolonha, em 1942. Em 1965, apoteose da reavaliação cinefílica do
filme, lança-se, aos cuidados da Sociedade de Grandes Filmes Clássicos, uma cópia
bem completa de 3000 m ( 110 minutos), estabelecida desde 1958-9 por Jean Gaborit,
Jacques Marechal e Jacques Durand a partir de uma cópia excessivamente longa,
reencontrada em 1946 e de um vasto stock de cortes. O esforço beneficiou-se dos
conselhos do próprio Renoir, e o filme conhece -enfim- o sucesso.
Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Dos espectadores da televisão francesa aos especialistas em cinema verdade, quase todo
mundo tem condenado La Punition como um tipo de cinema mentira. Sua atitude é
injustificada, uma vez que confundem três elementos bastante diferentes: filme,
verdade, e cinema verdade. Por exemplo, não teríamos o direito de dizer que La
Punition é ruim por ser inexato (os documentários de Rossif são verdadeiros, mas vejam
só o resultado), ou por não ser um real exemplar do cinema verdade (The Rules of the
Game também não o é), ou por seu diretor ou, mais precisamente, seu produtor (e a
quem nós poderíamos dar crédito mediante um desacordo?) pudessem incorretamente
associá-lo a tal. A verdade de La Punition não se torna aparente sem a participação ativa
do espectador, que em conversações paralelas ou diante de seus pratos, enquanto tentam
assistir ao filme, negligenciam sua correspondência. Não é este tipo de passividade que
um ataque de nervos dramático estimula em você. O público tem de interpretar o filme
ativamente para compreender a que nível de verdade ele se situa. Se a nossa atenção for
lassa, perdemos o sentido do filme. É possível ver La Punition três ou quatro vezes sem
que uma única vez aparente ser o mesmo filme. Mesmo que tivesse oito horas de
duração, seria igualmente atrativo. Aqui temos um filme excitante, isento de erotismo e
acessível a todos, que faria quebrar todos os recordes de bilheteria, caso o Francês não
preferisse, ao invés de um cinema simples, direto (La Punition, Adieu Philippine,
Procès de Jeanne), o maneirismo do cinema indireto (Melodie en sous-sol, La Grande
Evasion, La Guerre des boutons), cujas inúteis digressões, aridez e repetição, no final
das contas, refletem valores puramente comerciais.
Luc Moullet. Traduzido por Felipe Medeiros de Morais
Sua Única Saída é um dos poucos filmes - um punhado - que demonstram de maneira
definitiva os poderes do cinema, quando se encontra nas mãos de um artista genial,
como aqui Raoul Walsh. De um lado western psicanalítico, poema e afresco cósmicos
de outro, o território e a ambição do filme são imensos, quase ilimitados. A trajetória da
sina de um personagem atormentado pelo peso de seu passado (tema walshiano por
excelência) permite a Walsh estabelecer e explorar um universo que começa nas
profundezas do coração de um homem e vai se perder em algum lugar no infinito.
Narração concreta, física, de um ódio mais denso que a pedra (o de Grant Callum pela
família dos Rand), Sua Única Saída é também uma imaterial história de fantasmas onde,
por exemplo, uma noiva vestida de branco sonha cumprir, na noite de suas núpcias, um
improvável projeto de vingança contra aquele com quem acabou de casar. E a tragédia
do herói e da heroína, tal como é descrita aqui, é que precisarão triunfar não somente
sobre a hostilidade bem concreta de seus inimigos, como também de seus próprios
sonhos, de seus pesadelos e de todas as obsessões que conduzem seus imaginários. No
cinema, desfrutar de gênio, para um diretor, é antes de tudo e principalmente ser capaz
de o partilhar com os outros. Em Sua Única Saída, Max Steiner nos dá a quintessência
de suas partituras: uma música soturna, épica, grandiosa, que contém também um
lirismo secreto. Os céus negros, os rochedos, os interiores precariamente iluminados por
James Wong Howe são gravuras diante das quais, por instantes, a arte plástica de um
Dreyer se assemelha a um esboço de debutante. Quanto aos atores, Robert Mitchum tem
o olhar impenetrável daqueles que não conseguiram decifrar o enigma de seus destinos;
ao seu redor, Teresa Wright ,e sobretudo Judith Anderson, se sacrificam a uma ênfase
teatral, a uma solenidade vinda do fundo dos tempos, mas que se encontram tanto uma
quanto outra rejuvenescidas, reinventadas pelo cinema.
Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles.
Tradução: Bruno Andrade.
Após vários anos passados na América, que não constituem sob o plano criativo um
período crucial de sua obra, Renoir não retorna diretamente à Europa (onde realizará os
quaisquer filmes essenciais que encerrarão sua carreira). Ele faz um atalho pela Índia,
sobre a qual não se esquiva de exprimir um olhar de ocidental, e nos confia esse filme
magnífico que marca a um só tempo uma pausa na sua obra e uma dilatação filosófica
de suas perspectivas. O Rio Sagrado é representativo da dupla ambição que anima os
maiores cineastas do pós-guerra: ir ao mais profundo da intimidade dos seus
personagens e ressituá-los - eles e suas experiências - numa visão global e planetária da
realidade. Sob esse ponto de vista, O Rio Sagrado é o mais rosselliniano dos filmes de
Renoir. Graças a um roteiro refinado e sólido que une com uma maravilhosa fluidez um
grande número de elementos díspares, o filme instala seu objetivo numa série de níveis:
sentimental, familiar, social, racial, filosófico, espiritual e metafísico.
Da mesma forma, os espaços onde se situa a história vão do mais íntimo ao mais
cósmico: o coração de Harriet, a família inglesa, as beiras do rio e o próprio rio, a Índia
e o mundo. Em todos esses aspectos, o filme é uma homenagem ao esplendor das
aparências, à sabedoria da vida e à unidade do grande Todo. Com relação a essa
unidade, o indivíduo, no seu foro interior, na sua história pessoal, pode se sentir
separado, exilado, mas esta é uma ilusão perigosa que deve desaparecer e dar lugar ao
reconhecimento do equilíbrio superior dos ciclos vitais, ao consentimento à ordem
natural das coisas e à coerência do universo. A consolação suprema vem, aos olhos de
Renoir, do fato que no universo a parte é tão importante quanto o todo, é realmente, na
sua humilde proporção, o todo; e essa convicção se reforça no decurso de sua estadia na
Índia. A ambição filosófica do filme encontra seu correlato no minucioso êxito estético
de sua realização. A distância entre os atores (profissionais ou não-profissionais) e os
personagens que interpretam se encontra em O Rio Sagrado por assim dizer reduzida a
zero. Não seria esse o sonho de todo diretor? O documentário e o ficcional aliam-se na
história e recriam ao nível formal esta unidade que o filme defende no nível metafísico.
Quanto à foto de Claude Renoir, considerada a justo título com a de A Carruagem de
Ouro como uma das mais memoráveis da história do cinema, ela encarna nas suas
nuances e na sua riqueza o propósito do autor, a gratidão que sente em relação ao
universo e a perfeita serenidade que se propõe a atingir.
Jacques Lourcelles, Dictionnaire du cinéma - Les films
Tradução: Bruno Andrade
Melville é talvez o mais americano dos cineastas franceses: do cinema noir, ele reteve o
fetichismo das armas e das roupas, a lógica quase fratricida da guerra de gangs e da lei
do meio. Seus personagens parecem evoluir em um mundo paralelo, indiferentes ao
tempo que passa e à sociedade, que acaba por aprisioná-los e matá-los. Por sempre ter
feito referência quase direta aos mitos do grande cinema americano, Melville foi
confundido, de forma equivocada, com uma figura nostálgica, presa ao passado,
enquanto seu projeto tendia na verdade a deslocar os signos do filme noir no contexto
depressivo do cinema de gênero à francesa
Não é por acaso que o cinema de Hong-Kong foi um dos raros a integrar de forma
excelente o universo dos filmes de Melville. Espremidos entre a tradição sufocante de
uma China que os rejeita e o absurdo de uma megalópole que reproduz freneticamente o
funcionamento das grandes capitais ocidentais, os heróis de John Woo são feitos da
mesma matéria dos desenraizados de Melville.
Eles não pertencem a nenhuma verdadeira História, e se isolam em uma visão romântica
do mundo que os conduz à sua perdição. É o caso do Assassino, personagem tão
excepcional quanto ultrapassado, consciente de seu isolamento. John Woo também
reteve de Melville a extrema inteligência de seus dispositivos geográficos: em uma das
mais belas seqüências de Os profissionais do Crime, um personagem inspeciona
cuidadosamente a situação de um cômodo onde perigosos gângsters, entre eles Denis
Manuel, marcaram um encontro com ele. Minuciosamente, ele busca um lugar onde
poderia dissimular uma arma sem que eles saibam. Em seguida, Denis Manuel fará o
mesmo e descobrirá o revólver escondido. Em John Woo, o espaço é cuidadosamente
esquadrinhado pelos personagens, a fim de ser utilizado em caso de confronto. O
território é marcado, assinalado, e possibilita uma espécie de cumplicidade com o
espectador, como em Better tomorrow, onde Chow-Yun Fat esconde um revólver em
um corredor que o conduz diretamente para um covil de gângsters.
Esta idéia está presente quase 15 anos mais tarde, em Ajuste final (Miller’s Crossing),
dos Irmãos Coen, filme profundamente mellviliano, tanto pelo tema quanto pela forma,
extremamente contida. O herói do filme, interpretado por Gabriel Byrne, é um
cruzamento entre o Delon do Samurai e o Belmondo de Técnica de um delator. Como
Jeff, ele se fecha em um apartamento deserto, que se torna pura projeção de seu espírito.
Assim como em Técnica de um delator, ele nos faz acreditar em sua traição, com o
propósito de desvelar a identidade dos traidores que gravitam em torno de seu melhor
amigo. Ajuste final retoma uma das imagens preferidas de Melville, a da imensa
floresta, indiferente à violência dos homens. Uma das mais belas sequências do filme é
aquela em que Gabriel Byrne deixa John Turturro viver: os Coen o filmam correndo
freneticamente no meio das árvores, repetindo o plano fulgurante da fuga de Gian Maria
Volonté no início de Círculo vermelho.
Foi um dos aspectos mais decorativos do cinema de Melville, transmitido sem dúvida à
sua geração pelo intermédio de John Woo, que inspirou Tarantino. Com Cães de
aluguel, Tarantino parece ter se concentrado sobre os detalhes mais imediatos do
cinema de Melville, principalmente a roupa preta, verdadeiro uniforme de gângester.
Tarantino certamente deve ter se lembrado do belíssimo plano da autoestrada, filmado
em pleno dia por Melville nos Profissionais do crime: vemos, no quadro, os quatro
cúmplices marchando lado a lado em direção à caminhonete blindada.
Le Bernin, à vista dos quadros de Nicolas Poussin, dizia, designando com o dedo a
testa, que este pintava “ dali, daquele ponto ali” ( de là). Da mesma forma, em Melville,
a visão do gênero torna-se uma espécie de meditação. Talvez por este motivo muitos
tenham confundido em seu cinema a melancolia com a nostalgia. Ele se inscreveu em
uma tradição profundamente francesa, e tentou reinterpretar uma idade de ouro ( âge
d’or) desaparecida.
Tradução de Luiz Soares Júnior.
Andrei Roublev
1967 - URSS (175’). Real: Andrei Tarkovsky. Roteiro: Andrei Tarkovsky, Andrei
Mikhalkov Kontchalovski. Foto: Vadim Youssov (Sovscope, alguns planos em
cores). Música: Vjatcheslav Outchinnikov. Intérpretes: Anatoli Solonitzine (André
ublev), Nikolai Sergeev (Teophane), Irma Raouch (a louca), Nicolai Bourliaiev
(Boriska), Ivan Lapikov (Kyril), Iouri Nazarov (o duque), Sos Sarkissian (o cristo),
Nikolai Bourliaiev (Boris).
1949 - Usa (95’). Prod. RKO (John Houseman). Real. Nicholas Ray. Roteiro:
Charles Scheene, Nicholas Ray, a partir de “Thieves Like Us”, de Edward
Anderson. Foto: George F. Diskant. Música: Leigh Harline. Int: Cathy O’Donnel
(Keechie), Farley Granger (Bowie), Howard da Silva (Chickmaw), Jay, C. Flippen
(T. Dub), Helen Craig (Mattie), Will Wright (Mobley), Ian Wolfe (Hawkins).
Primeiro filme de Nicholas Ray, inscrito no campo ao mesmo tempo estrito e aberto a
todas as transgressões do filme noir. Desde sua primeira obra, e de uma forma quase
espontânea, Ray torna-se um expert na transgressão de gêneros. Ele negligencia, ainda
mais que Huston em The asphalt jungle, a ação propriamente dita, escamoteia várias
cenas espetaculares e passa de lado pela briga onde Howard da Silva (Chickamaw)
encontra a morte. O que lhe interessa é mergulhar seu casal de jovens inocentes, Bowie
e Keechie, em um mundo noturno e violento, composto quase unicamente de lugares de
passagem (motel, sala de espera, auto-estrada), onde se esvaem a melancolia e a
angústia dos personagens que os atravessam. O relevo selvagem dos personagens
secundários, Chickamaw o cego, Mattie a delatora, que em si mesmos interessam pouco
a Nicholas Ray, lhe servirá para exaltar a juventude e a vulnerabilidade dos dois heróis,
descritos com este tom de lirismo terno e empolgante que nunca teve tanta força quanto
em seu estilo.
Como em muitos de seus filmes, trata-se aqui essencialmente de uma obra poética, ou
seja, uma obra na qual a figura da metáfora orienta toda intriga do filme, tanto em seus
desenvolvimentos quanto em seus parênteses. A desorientação, a inadaptação ao meio
(a um meio degradado, apodrecido) que caracteriza os dois heróis representa a melhor
imagem que Ray encontrou para exprimir o exílio interior do homem e este sentimento
de estranhamento (étrangeté) a tudo , e em primeiro lugar a eles mesmos, que sentem
certos seres ao longo de sua vida.
Nota: John Houseman, que na RKO deu a primeira chance a Nicholas Ray e foi um dos
produtores mais criativos de Hollywood recorda (em Cahiers du Cinema, 143) que o
filme foi conservado 3 anos nos arquivos da firma, assim como The set-up de Robert
Wise. “Finalmente, quando Hughes decidiu vender a companhia, tiraram estes filmes
dos arquivos e os colocaram no mercado”. They live by night foi completamente
ignorado em sua primeira estréia americana como um filme B, e só foi realmente
conhecido bem mais tarde, graças à TV. Neste ínterim, porém, a Europa havia
descoberto o filme e Nicholas Ray. É preciso acrescentar que, apesar de algumas
superficiais semelhanças de roteiro, o filme não tem nada a ver com You only live once
(que Ray não tinha ainda visto na época) nem com Gun crazy (Joseph Lewis, 1948).
Remake sob o título Thieves like us por Robert Altman em 1974.
Jacques Lourcelles. Traduzido por Luiz Soares Júnior.
Os Amantes Crucificados
Chikamatsu Monogatari 1954 (Japão, 102’). Prod. Daiei, Kyoto (Masaichi Nagata).
Real. Renji Mizoguchi. Roteiro: Yoshikata Yoda, Matsutaro Mawaguchi, a partir
de Daikyoji Sekireki, de Chikamatsu Monzaemon. Foto: Kazuo Miyagawa.
Música: Fumio hayasaka. Int: Kazuo Hasegawa (Mohei), Kyoko Kagawa (Osan),
Eitaro Shindo (Ishun), Sakae Ozawa (Sukeemon), Yoko Imanmida (Otama),
Haruo Tanaka (Doki), Chieko Naniwam (Oko).
O feudalismo descrito por Mizoguchi: um universo onde cada um tem seu lugar fixado
na hierarquia dos deveres e do respeito, onde cada ato é realizado como se fosse em
praça pública, onde a ordem assim estabelecida tende a eliminar toda vida privada e
liberdade. Mas esta reaparece no amor e no jogo imprevisto das paixões. É uma
liberdade trágica que recria, entre os amantes, deveres e um respeito que tornam
irrisórios os determinados pela ordem social. No plano estético, semelhante universo
convém idealmente a Mizoguchi. Para ele, o “ser” dos personagens só pode existir na
intensidade e na tragédia. Cada gesto e entonação, cada sentimento dos dois heróis
surge em um presente que é a Eternidade, onde o anedótico, o superficial, o finito não
encontram lugar. Intensamente felizes e infelizes, os amantes crucificados transgridem
as leis de seu universo social e estão para além de todo e qualquer julgamento. Eles nos
aparecem como os únicos verdadeiros seres vivos do filme e, sob este título, exercem
fascinação tanto sobre os outros personagens quanto sobre o espectador. A arte, a
certeza (dir-se-ia que toda “falta de jeito”- maladresse- lhe é desconhecida), a
determinação tranqüila com os quais Mizoguchi põe em obra esta fascinação nos
enquadramentos, no grão da foto ou no jogo dos intérpretes fazem dele, ao menos em
seu último período, o cineasta por excelência: uma espécie de igual, de contemporâneo
na eternidade de um Goethe ou Shakespeare, aos quais, aliás, o material literário aqui
utilizado poderia ser comparado.
Jacques Lourcelles. Traduzido por Luiz Soares Júnior.
O Anjo do Mal
Pick up on south street 1953. Usa (83’). Prod. Fox (Jules Schermer). Real. Samuel
Fuller. Roteiro: Samuel fuller, a partir de uma história de Dwight Taylor. Foto:
Joe Macdonald. Música: Leigh Harline. Int: Richard Widmark (Skip Mccoy), Jean
Peters (Candy), Thelma Ritter (Moe), Murvyn Vye (Capt. Dan Tiger), Richard
Kiley (Joey), Willis B. Bouchey (Zara), Milburn Stone (Winoki).
Admirável lição de cinema da qual cada plano é marcado pela sensibilidade vibrante de
Fuller, Anjo do mal é ao mesmo tempo o mais impessoal e mais autoral de seus filmes.
Ele se inscreve na veia documentária do filme noir, ou seja: é um filme que utiliza
diversas externas e descreve uma investigação que poderia dar um excelente artigo de
jornal.
Quando era jornalista, Fuller com frequência andou pelos meios marginais aqui
representados. Os méritos de Pick up são aqueles de um bom filme de ação, sacudidos
ainda pelo frêmito elétrico que Fuller impõe a todas as suas histórias: caracterização
aguda dos protagonistas secundários, e mesmo das "pontas" (o homem se
empanturrando de arroz que vende informações para Jean Peters e cata com pauzinhos
as notas que ela põe sobre a mesa); tempo vivo e às vezes ofegante; sábia utilização da
profundidade de campo e de longos movimentos de câmera, com o fim de dar à ação
sua dose justa de pimenta e realismo. (Aliás, o barroco de Fuller privilegia sempre os
planos muito comprimidos ou muito largos, em detrimento dos planos médios).
Não esqueçamos também o humor, um certo humor sardônico e insolente que não é
exclusividade de Fuller (ver os filmes de Don Siegel) e que tem um duplo efeito
contraditório, muito freqüente no cinema hollywoodiano do pós-guerra; num certo grau,
este humor distancia o espectador do filme. Mas ao mesmo tempo liga este espectador
de modo mais eficaz à ação, solicitando sua cumplicidade. Fuller, aliás, deixa de lado
este humor quando lhe parece adequado, ou seja, no meio da história.
Podemos julgar a respeito de seu talento, virtuosidade e controle do filme pelo fato de
que a cena mais engraçada e a seqüência mais trágica da intriga tenham por protagonista
o mesmo personagem, a velha Moe (interpretada pela perfeita Thelma Ritter, cujas
composições foram inesquecíveis em Lettres to three wives, The mating season de
Mitchell Leisen, 1951, e Janela indiscreta, etc).
Na primeira destas sequências, ela vende Widmark à polícia, segundo seus hábitos
“profissionais”. Na segunda seqüência, ela se deixa assassinar, velha mulher fatigada,
corajosa e íntegra à sua maneira, clamando pela morte como uma libertação.
Passemos ao aspecto mais estritamente “fulleriano” do filme. Toda a ação é vista
segundo a perspectiva de dois exluídos socialmente, dois personagens que “de nada
valem”, segundo os valores burgueses da sociedade; vistos, portanto, como traidores
destes mesmos valores.
A semelhança profunda que existe entre Jean Peters, a aventureira e Richard Widmark,
o batedor de carteiras (passado suspeito, dinamismo e vitalidade poderosos, situação
precária de sobrevivência na selva das cidades) torna crível a paixão fulminante – “coup
de foudre”- que eles, entre uma porrada e outra , passam a sentir um pelo outro. (Aliás,
eles não vão parar de “se pegar” ao longo do filme).
O ponto de vista de Fuller é o de mostrar uma certa solidariedade, uma certa integridade
entre estes personagens marginais, assumindo mais ou menos sua condição e adeptos
semi-conscientes de uma moral que eles poderiam facilmente voltar contra os pilares
sociais.
Talvez por serem estes personagens os mais “superexpostos”, são também - dramática e
moralmente - os mais tocantes.
Rio Bravo
Eu detesto westerns. Eis a razão de adorar Rio Bravo. O gênero me aborrece porque,
embora os sentimetos que ele retrate sejam admiráveis, quase sempre baseiam-se em
princípios, não em fatos. A discreta direção do filme está preocupada com algo além de
si mesma – problemas pessoais, políticos, técnica. Ela nega o espírito do verdadeiro
western e toma partido de seu inverso: ênfase, decoro, lirismo. Rio Bravo é também
basicamente antagônico a um Johnny Guitar. Não há nada intrinsicamente poético a par
do filme, embora o fim que resulte seja um tipo de poesia. Como sempre ocorre em
Hawks, as regras do jogo são respeitadas, pelo menos até o ponto definido por Hawks
como suficiente. Rio Bravo é um filme extremamente original, um faroeste sobre
confinamento em que não há índios, paisagens ou cenas de perseguição. Ele realiza algo
raro na redescoberta da essência do gênero, e o faz a partir de um caminho fora do
comum (considerando que Red River e Big Sky chegam ao mesmo resultado sem
romper com a tradição). E traz à mente a lembrança de um thriller como To Have and
Not Have ou de um melodrama como Barbary Coast. Mas por que Hawks assinaria este
western, afinal? Porque permitiria ao diretor apresentar ações que não são
ordinariamente vistas todo dia no mundo, pela natureza de seres fora do padrão. Eu não
sou um xerife, ou Angie Dickinson, ou um faraó; nem mesmo alguns de vocês. Hawks
ainda nos mostra que o atrativo de tais indivíduos não está relacionado com aquilo que
seria de se esperar (o mundo da aventura, o extraordinário). O Hawks classicista sempre
rejeitou estes valores, satirizou-os, conduziu-os ao ridículo, até mesmo ignorando-os em
The Thing. Contudo, aceita igualmente o trivial: um homem é um xerife do mesmo
modo que é um peão ou um condutor de metrô. Há vários disparos em Rio Bravo, mas
nenhum deles real, nenhum deles apresenta qualquer valor dramático verdadeiro. Os
incessantes disparos acabam somente por se tornarem monótonos, e eles eliminam todo
suspense. Cada gesto repetido anula seu predecessor. E a inteligência blasé de Wayne,
longe de contemplar o ato, por alguma razão imediatamente fixa a extensão de possíveis
conseqüências. Como Wayne o faz é uma questão de telepatia, similar ao modo prévio
dos heróis hawkianos possuírem olhos atrás de suas cabeças.
Luc Moullet, Cahiers du cinema, Julho de 1959. Tradução de Felipe Medeiros de
Morais.
O filme se abre num clima de errância que caracteriza o cinema de Carpenter e sua
filiação ao western e aos seus heróis solitários. O herói é John Nada (interpretado por
Rodney Piper, ex-lutador) que chega, bolsa nas costas, a Los Angeles para encontrar um
emprego. Nada, sem abrigo nem trabalho, é recebido por uma pequena comunidade de
desempregados e vagabundos, localizada próxima a uma igreja, onde entrará em contato
com resistentes que lutam impetuosamente contra invasores misteriosos que controlam
a população. John Nada é, evidentemente, o próprio John Carpenter que, desde seu
grande fracasso comercial, “Aventureiros do Bairro Proibido”, voltou à produção B
após seu purgatório em diferentes majors hollywoodianas. É assim, com nada, que
Carpenter recomeça. Se é possível arriscar esta analogia, é porque Carpenter seguiu um
trajeto (produção B-televisão-majors-produção B) comparável ao de seu personagem
em “Eles Vivem”.
Mostrar: o próprio tema de “Eles Vivem” (e a função de seu herói); certamente um tema
cinematográfico, mas também, para Carpenter, uma preocupação moral que o aproxima
de Fritz Lang. “Eles Vivem” ilustra, na verdade, o velho adágio languiano segundo o
qual a aparência não é a realidade, o visível não é a verdade. Provocação de Carpenter
ao espectador que não consegue mais fazer a triagem das imagens que lhe são enviadas
cotidianamente. Nada é ao início bastante ingênuo, crédulo (como poderia ter sido
Carpenter no início dos anos 80 antes de seu fracasso nas majors): “Eu acredito na
América, eu estou dentro do sistema”, declara ao início do filme. Depois, graças aos
óculos escuros fabricados pela resistência (a produção B), espécies de “decodificadores
portáteis”, Nada terá a prova de que não se pode confiar no sistema: este que rege a
América de hoje é nada mais que o fruto de um vasto complô fomentado por
extraterrestres (auxiliados por humanos sem escrúpulos) que embrutecem a população
lhes transmitindo mensagens subliminares primárias (“não pensem”, “não reflitam”,
“submetam-se”, “consumam”, “reproduzam-se”, “o dinheiro é seu Deus”). Este horror
da realidade é mostrado bastante curiosamente através de imagens em preto e branco,
que revelam esta visão decodificada do mundo. Carpenter poderia ter recorrido a outros
estratagemas visuais: na verdade, este preto e branco pertence a um cinema de ontem
(Hawks, citado por Carpenter como um pai em sua cinefilia) que joga nova luz sobre a
face absolutamente inumana da América deste fim de anos 80. A fonte de emissão
destas mensagens é naturalmente a televisão e seus programas (outro câncer do cinema
americano) que a resistência tenta sabotar, em vão, através de transmissões clandestinas:
John Nada e seu colega negro Frank vão destruir, fuzis às mãos, a estação televisiva.
Assim, “Eles Vivem” é também a história de uma mini-insurreição que se pode
interpretar ao mesmo tempo como política e, em outra medida, como de cinefilia.
Quanto ao aspecto “guéguerre” que alguns censuram no filme (a luta a mão armada
entre os resistentes e os invasores), ele não faz com que Carpenter caia nas armadilhas
do filme de gênero (filme de ação). Todas estas batalhas são dominadas por uma
distância plástica que as transforma em verdadeiros ballets, ritmados por uma
montagem, em certos instantes, digna do melhor cinema soviético: um insert,
magnífico, dos canos das metralhadoras marca a maioria destas seqüências. A cena pivô
do filme, uma briga de mais de dez minutos entre John Nada e seu colega Frank (que
ele obriga a usar os famosos óculos) ilustra dois princípios hitchcock-hawksianos. O
primeiro, hitchcockiano, é que tudo deve ser utilizado para as necessidades de uma cena
(como o avião de “Intriga Internacional” que fumiga Cary Grant). O intérprete de Nada,
Rodney Piper, é um ex-lutador: e nesta lógica ele deve, a um momento ou outro, brigar.
O segundo, herdado das brigas iniciáticas dos filmes de Hawks ou Ford, é menos uma
homenagem que uma necessidade: trata-se, para Frank, o negro, de sofrer a dor a fim de
melhor ver. Diante da papa em que se tornou o cinema comercial americano, este mal é
necessário: já o era para o herói de “Comando Assassino” de Romero, e também o é
para aqueles de Carpenter. “Eles Vivem” soube reencontrar esta beleza e este discurso
da produção B americana, que se podia dar por desaparecidos: isto é excepcional.
Nicolas Saada, Cahiers du Cinéma, abril de 1989. Tradução de José Roberto Rocha.
1946. Itália (106'). Prod: CDI/Lux Film. realização: RICCARDO FREDA. Roteiro:
Mario Monicelli, Stefano Vanzina e Riccardo FREDA, a partir da novela
Doubrovski, de Alexandre Pushkin. foto: Rodolfo Lombardi. Música:Franco
Casavola. Int: Rossano Brazzi (Vladimir Doubrovski), Irasema Dilian (Mascha
Petrovitch), Gino Cervi (Kirilla petrovitch), Rina Morelli (Irene), Harry Feist
(Serge Ivanovitch) Paollo Stoppa (um bandido), Inga Gort (Maria).
Freda se serve do filme de aventuras para exaltar as forças da vida, ao contrário dos
cantos fúnebres do caligrafismo (basta comparar seu filme a Um colpo di pistola, outra
adaptação de Pushkin, dirigida por Castellani).
Toda a obra de Freda, desde suas origens, se rebela contra esta idéia. Este realizador
tentou provar que a velha Europa, mesmo recém-saída de um conflito mundial que em
muitos sentidos a desvitalizou, possuía ainda uma fonte ardente, que ela era capaz de
ilustrar de maneira criativa e vigorosa uma história que, tais como as de Dumas, Dante e
Hugo - adaptados em seguida pelo mesmo diretor-, lhe pertence de direito.
Nota: Cinco anos mais tarde, Freda vai dirigir uma continuação extremamente brilhante
para este filme, chamada La vendetta di Aquila Nera (1951).
1936. USA (73’). Prod. Columbia. Realização: Edward Ludwig. Roteiro: Sidney
Buchman, Harry Sauber, Jack kirkland, baseado em uma história de Joseph
Krumgold, sugerida por “Purple and Fine Linen”, de May Edington. Foto: Henry
Freulich. Música:Maurice Stoloff. Intérpretes: Jean Arthur ( Claire Peyton), Joel
McCRea ( George Melville), Reginald Owen (Blackton Gregory), Herman Bing
(Tim, o rapaz do café), Victor Kilian (Marc Gibbs), Robert Warwick ( Phillip).
Antes de encontrar seu domínio de eleição - o filme de aventuras exóticas e solares -
onde triunfará nos anos 50, Edward Ludwig, um dos grandes diretores desconhecidos
do cinema hollywoodiano, hesitou longamente entre diversos gêneros. De 1932 a 1944,
vários de seus filmes (The man who reclaimed his head, 1934, ou The man who lost
himself, 1941) testemunham seu gosto vivíssimo pelo insólito, assim como sua
indecisão sobre o tipo de filme que melhor lhe convinha. Adventure in Manhattan é a
mais bem realizada obra desta época que conhecemos dele.
Ludwig toma como campo da ação (mas não é nada além de um campo, um cadre) este
meio de jornalistas exuberantes e tagarelas ,tão caro à Columbia dos anos 30, e desenha
as premissas de uma falsa comédia americana que é também uma falsa comédia policial.
O tema real da intriga é o combate sem misericórdia entre dois estetas, mutuamente
respeitosos, se enfrentando por meio de ficções e estratagemas interpostos: um
melodrama mórbido oculta uma farsa e uma pequena vingança; uma representação
teatral extremamente dramática facilita um assalto. O gosto de afirmar sua superioridade
conduz cada um dos protagonistas à solidão, altiva e criminal para um, irônica e
insolente para o segundo.
1974. France - (120’). Prod. Unité Trois, Stephan Films (Jean Feixe t Paul
Vecchiali). Réal. Paul Vecchiali. Roteiro: Vecchiali , Nöel Simsolo. Foto: Georges
Strouvé. Música: Roland Vincent.Intérpretes: Hélene Surgère (Hélène), Sonia
Saviange (Sonia), Michel Delahaye (o médium), Noel Simsolo (Ferdinand), Michel
Duchaussoy (Lucien), Huguette Forge (a cliente).
Fascinado por estes temas ao ponto de neles submergir, Vecchiali acumula aqui uma
série de elementos que parecem reunidos com o propósito de afastar o público: preto e
branco sujo e débil, lentidão e ausência de ação, artifício do jogo e da dicção, irrealismo
exagerado dos personagens secundários, incongruência dos números musicais ( às vezes
muito bem realizados), atmosfera constantemente lúgubre e mórbida.
1952. USA (71’). Prod: RKO (Stanley Rubin). Real: Richard Fleischer. Rot: Earl
Fenton, baseado em uma história de Martin Goldsmith e Jack Leonard. Foto:
George E. Diskant. Int: Charles Mcgraw (Walter Brown), Marie Windsor (Mrs.
Neil), Jacqueline White (Ann Sinclair), Gordon Gebert (Tommy Sinclair), Queenie
Leonard (Mrs. Troll), David Clarke ( Joseph Kemp) Peter Virgo (Densel), Don
Beddoe (Gus Forbes), Paul Maxey (Sam Jennings), Peter Brocco (Vincent Yost).
Laconismo, eficácia, tensão, mal-estar, ação incessante e sem tempos mortos: The
narrow margin leva todas estas noções ao seu limite extremo de virtuosismo,
especialmente devido à exigüidade do cenário do trem, onde se desenrolam três quartos
da ação, e constitui assim uma espécie de compêndio (précis) da mise-en-scéne
hollywoodiana, tal como a que se praticou em seu mais alto nível no filme noir e nos
filmes B. A espantosa perfeição formal do filme marca o fim do longo aprendizado
(uma dezena de filmes em cinco anos) sofrido por este superdotado da mise-em-scéne
que já à época era Richard Fleischer.
The narrow margin é, com efeito, seu último filme para a RKO, (onde ele realizou o
essencial de seus primeiros filmes), e o anti-penúltimo filme em preto e branco em
formato normal desta companhia (antes da deliciosa comédia realizada por Stanley
Cramer, The happy time).
Apesar de seu brilhantismo, o filme está longe de ser um puro exercício de estilo. É
também um completo filme de autor, sobretudo por esta ausência voluntária de humor e
de ambigüidade moral no herói, através da qual Fleischer afirma suas escolhas e o tom
de gravidade que ele pretende dar à sua história.
Por outro lado, The narrow margin mostra estranhas semelhanças com obras muito
posteriores de seu autor, como The new centurions (1972). Nos dois filmes, é o mesmo
aspecto trágico, absurdo, improvável e suicida da condição policial que é designado. O
que acontece em The narrow margin antes e durante a viagem de trem se assemelha
com efeito a uma terrificante tragicomédia de erros. Gus Forbes, o parceiro do herói,
morre por nada, assim como a mulher policial (Marie Windsor), que teria dado sua vida
para testar a honestidade de seu colega.
Quanto à verdadeira Sra. Neil, esta não tinha necessidade de ninguém para chegar sã e
salva em Los Angeles, e é justamente seu encontro (fortuito) com o policial que põe em
perigo sua vida! Diante desta impossibilidade real de agir, o policial interpretado por
Charles McGraw tenta sobreviver e realizar seu trabalho com esta obstinação taciturna e
petulante que encontraremos com frequência nos heróis de Fleischer, notadamente nos
personagens interpretados por George C. Scott em The new centurions e The last run.
No que diz respeito a The narrow margin, este pessimismo não é apenas a característica
convencional e estrutural de um gênero mas o índice certo, embora tratado de forma
menor e com uma grande modéstia estética, de uma grave crise moral da civilização
urbana americana, crise esta da qual os filmes de Fleischer , entre outros, são os
perturbadores espelhos.Como em muitos filmes de Fleischer, este compêndio de mise-
em-scéne é, também e sobretudo, um compêndio (précis) de decomposição.
Nota suplementar:
Impressionado pelo filme, Howard Hughes, então chefe da RKO, propôs refazê-lo a
Fleischer com um orçamento muito maior, tendo como stars Robert Mitchum e Jane
Russell. Isto não interessou a Fleischer, o que lhe custou um imenso atraso no
lançamento do filme. Realizado em 13 dias em 1950, o filme só foi lançado na
primavera de 1952, e obteve um imenso sucesso.
Este filme é singular em vários sentidos. E primeiramente por causa daquilo que David
Lynch realiza a partir da idéia de medo: o medo do espectador (nossos) e aqueles
pertencentes às personagens, incluindo o de John Merrick (o homem elefante). Deste
modo, a primeira parte do filme, até a chegada ao hospital, funciona um pouco por
assim dizer a exemplo de uma armadilha. O espectador é induzido a pensar que mais
cedo ou mais tarde ele terá que testemunhar algo insurpotável ao defrontar-se com o
monstro. Um grosseiro saco com um buraco para olhar é tudo que o separa do horror
que ele conjetura. O espectador é conduzido ao filme à maneira de Traves, a partir do
ângulo do voyerismo. Ele presta-se (ainda do mesmo modo que Treves) a ver uma
aberração (1): este homem elefante sucessivamente exibido e ignorado, abrigado e
agredido, sumariamente visto em uma espelunca, uma “excentricidade” para os
cientistas, levado e escondido ao hospital real de Londres. E quando o espectador o vê
afinal, ele é tão desapontador que Lynch simula praticar o jogo do filme de horror
clássico: noite, corredores desertos de hospitais, nuvens movendo-se rapidamente em
um céu carregado, e repentinamente neste ponto surge a tomada de John Merrick
levantado em sua cama, acometido de um pesadelo. O espectador o vê – realmente –
pela primeira vez, mas o que ele também vê é que aquele monstro o qual espera-se
temer é quem sente medo. É neste momento que David Lynch liberta seu espectador da
armadilha primeiramente estabelecida (a armadilha do “algo a ser visto”, como se
Lynch estivesse dizendo: você não é aquele que importa, é ele, o homem elefante; não é
o teu medo que me interessa mas o dele; não é o teu medo de vir a se chocar que eu
quero manipular mas o medo dele de assustar, o medo dele em se ver no olhar de outro.
A vertigem toma outro partido.
O salmo é um espelho
Os três olhares
No curso do filme, John Merick é o objeto de três olhares. Três olhares para três eras de
cinema: burlesca, moderna, clássica. Ou: a funfair, o hospital, o teatro. Há
primeiramente o olhar inferior, a observação das pessoas humildes, e a aspereza de
lynch, uma observação precisa, sem afabilidade, sobre este olhar. Há um bocado de
carnaval na cena onde Merrick é embriagado e raptado. No carnaval, não há nenhuma
essência humana a ser representada (equiparado com a face de um monstro), há somente
corpos tratados com somenos importância. Então há o olhar moderno, o olhar fascinado
do doutor (um notável Anthony Hopkins): respeito ao próximo e má consciência,
mórbido erotismo e epistemologia. Depois de cuidar do homem elefante, Treves se
resguarda: é a primeira luta do humanista (à la Kurosawa). Finalmente, há o terceiro
olhar. Quanto mais o homem elefante é popular e celebrado, quanto mais outras pessoas
lhe visitam têm tempo para cobrirem-se numa máscara, uma máscara de cortesia que
dissimula aquilo que eles sentem a respeito de sua visão. Eles vão ver John Merrick
para pôr à prova esta máscara: se seus medos os traíssem, eles viriam o reflexo dentro
dos olhos de Merrick. É deste modo que o homem elefante é o espelho deles, não um
espelho onde eles pudessem ver e reconhecer a si mesmos mas um espelho para
aprender a atuar, dissimular, mentir e até mesmo mais. No começo do filme, havia a
abjeta promiscuidade entre a aberração e o homem a exibi-lo (Bytes), até que Treves
fica mudo, extático horror no ambiente. No fim, é a Sra. Kendal, a estrela do teatro de
Londres, que decide, quando lê um jornal, tornar-se amiga do homem-elefante. Numa
cena bastante desconfortável, Anne Bancroft, como a estrela convidada, vence uma
aposta pessoal: nenhum músculo de sua face estremece quando é apresentada a Merrick,
a quem fala como se fosse um velho amigo, indo tão longe naquela que até o beija. O
ciclo se fecha, Merrick pode morrer e o filme pode terminar. Sobre uma mão, a máscara
social foi inteiramente reconstituída; sobre a outra mão, Merrick ao menos pôde ver no
olhar do outro algo totalmente diferente do reflexo da aversão que ele inspira. O quê?
Ele não poderia dizer. Ele compreende o cúmulo do artifício pela verdade e claro que
ele não está errado - desde que nós não estejamos no teatro.
O homem elefante cultiva dois sonhos: dormir sobre suas costas e ir ao teatro. Ele irá
realizá-los na mesma noite, um pouco antes de morrer. O final do filme é bastante
comovente. No teatro, quando Merrick se esforça de sua cabine para conferir quem lhe
dirige aplausos por vê-lo, nós realmente não temos a mínima idéia do que se passa em
seu olhar, nós não sabemos aquilo que ambos vêem. Lynch conduz assim a remição de
um pelo outro, dialeticamente, monstro e sociedade. Ainda que somente no teatro e por
uma única noite. Não haverá outra representação.
Veneza 61 (...) foi dominado muito claramente por O ano passado em Marienbad, e é
justo que o filme de Resnais tenha obtido o grande prêmio. (...) Se por um lado eu
reconheço a perfeição do trabalho de Resnais, por outro eu confesso ser, cada vez mais,
violentamente contra o princípio que preside sua concepção. Eu não acredito na
penetração da câmera no mundo mental. Aí está a fonte de todas as arbitrariedades.
Nada é mais inquietante que ver desenrolar-se diante de si a representação da
consciência vivida, interpretada e entregue segundo uma lógica objetiva. Há aí uma
contradição interna entre a forma do filme que se apresenta como um jogo puramente
espirituoso, e seu objetivo que é de explorar as regiões misteriosas do imaginário. Ora,
eu acredito que é principalmente no cinema que se deve aplicar este programa que
Baudelaire assinava na pintura: trazer a tona o que há dentro pelo que há fora. Estimo
que um Mizoguchi ou um Lang tenham indo mais longe no imaginário que todos os
Maffenbad do mundo, e suas obras permanecem abertas, ao passo que o filme de
Resnais se fecha e limita-se a si mesmo.
No fundo, Marienbad não é nada mais que uma versão moderna, talentosa, inteligente,
de uma extrema beleza, e tudo mais o que se queira, de Caligari. De forma similar, e
porque nos é necessário penetrar no mundo mental, a deformação das aparências é
exigida. Em Marienbad, esta deformação toma corpo, certamente, mais sobre o tempo
que sobre o espaço, mas isto não impede que se trate de um cinema inteiramente
fundado sobre a deformação, os procedimentos e as trucagens. O "Tout-Cinéma 1925"
parece ter se encontrado voluntariamente neste hotel frio, lúgubre, sinistro, por onde
circulam fantasmas: o expressionismo caligaresco margeia um surrealismo que ousa,
ele, na falta dos personagens, dizer seu nome, e a montagem por atração à la Eisenstein,
que faz de cada plano um bloco estático, corteja o cinema puro onde os movimentos de
aparelho são desprovidos de qualquer função que não aquela da sensação que procuram.
Só falta o cinema-olho, abandonado para Jean Rouch. Por que milagre, dito isto, os
erros do passado se tornariam hoje virtude única? A via de Resnais é aquela dos
"grandes à margem" do cinema: Eisenstein ou Welles. Assim que ela atinge tal nível,
ela é em si admirável. Mas em si somente. O pior dos cineastas, se inspirado nos
princípios cinematográficos de Lang, Hawks, Walsh, etc., fará um mau filme, mas
visível. Ao contrário, um filme influenciado por Resnais tem toda a chance de ser
invisível e insuportável. Quantos filhos de Hiroshima, idiotas e monstruosos, nós já não
temos a lamentar? No entanto, estes serão anjos de beleza em comparação com os filhos
de Marienbad.
O filme começa com a imagem de dois seres abraçados e nós iremos assistir à sua
dolorosa separação, à dissociação progressiva destes dois seres, uma francesa e um
japonês. Ela, Emmanuelle Riva, porque não tem nome no filme, veio a Hiroshima como
atriz contratada para trabalhar em um filme internacional sobre a paz. Ela encontrou este
japonês e o que devia ser apenas passageiro torna-se amor violento. Nós somos
convidados a assistir à tomada de consciência deste amor.
Pouco a pouco, ela evoca a história deste amor: a morte de seu amante logo antes da
Liberação, sua própria humilhação em praça pública, seu claustro na casa de seus pais,
aprisionada um inverno inteiro no porão ou em seu quarto. E suas lembranças lhe são
arrancadas na ordem afetiva, as mais penosas só vindo por último.
Com Hiroshima, meu amor, Alain Resnais coloca em termos de cinema as
preocupações estéticas modernas das outras artes. Ele rompe com a moldura do relato
narrativo e introduz a técnica romanesca cara à Faulkner: o passado dos personagens
ressurge em lufadas na superfície do presente, e também assim, envenena este presente.
Por outro lado, introduzindo o cinema dentro do cinema, Resnais se une aos trabalhos
literários mais recentes de um Klossowsky ou de um Borges: ele nos oferece a reflexão
num segundo grau, ele nos convida ao jogo do espelho. (Se nós quisermos confirmar a
tese inicial pré-citada, poder-se-ia dizer que Cervantes, pela sua maneira de conceber o
segundo tomo de Don Quixote já esboçava este jogo de espelho.) Da mesma forma, um
musicista poderia se deliciar encontrando no ritmo e na montagem dos planos de
Hiroshima, meu amor, a influência de Stravinsky. Enfim, pictoricamente este filme
evoca o cubismo, Picasso e Braque.
Moderno, Hiroshima, meu amor o é ainda pelo seu tema. Tragédia da impossibilidade
da união e da plenitude de si. Trata-se da vitória do despedaçamento, da dissociação, do
fragmentário. É impossível ser totalmente um, pois nós vivemos no instante e cada
instante nos condena ao nascimento, mas também à morte de uma parte de nós mesmos.
Este é talvez o símbolo profundo da primeira imagem do filme. Não se vê nada além de
dois corpos abraçados, indistintos um do outro e cobertos pouco a pouco por uma chuva
de cinzas. Esta cinza, podemos imaginar como aquela mesmo da bomba atômica, quer
dizer, como aquela dos vestígios da guerra que ainda recaem no presente e o
contaminam. Mas eu prefiro ver aí o símbolo desta dialética do instante: no mesmo
momento em que estes seres "se incendeiam um pelo outro" (como é dito em certo
momento no texto), a cinza deste fogo, a cinza do esquecimento já os recobre.
Ainda dialética esta proposta poética de Resnais acerca da doçura terrível, que se
encontra incluída no próprio título. Hiroshima, meu amor, dois termos que formam algo
como uma mistura destoante. Como em Picasso (não esqueçamos seu curta-metragem
sobre Guernica), Resnais adora mostrar simultaneamente a face do terrível com seu
perfil de doçura. Portanto, estas imagens horríveis de feridos radiativos acompanhadas
por um comentário lírico e bucólico sobre a primavera e o renascimento das flores em
Hiroshima.
Hiroshima, meu amor é um filme dez anos à frente. Ele desencoraja toda crítica. Qual
será sua influência sobre o cinema? É o fim do classicismo cinematográfico? Ou, ao
contrário, pela própria perfeição de seu aspecto inovador, ele condena antecipadamente
toda veleidade em perseguir este caminho? Tantas questões que só o tempo poderá
responder.