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Fritz Movie, Por Sylvie Pierre

Fritz Lang, em O desprezo, interpreta seu próprio papel.Foi o próprio Godard quem
disse: “O tema de O desprezo são as pessoas que se olham e se julgam, depois são por
sua vez olhadas e julgadas pelo cinema, que é representado por Fritz Lang,
interpretando seu próprio papel”.( 1 ) O dinossauro e o bebê.

Neste mesmo texto, Godard diz também de seu filme que “ele é simples e sem
mistério”, que se trata de “um filme aristotélico”. Acho que é necessário levar a sério
este esquema lógico. Ou seja: Fritiz Lang em O desprezo é em primeiro lugar Fritz
Lang, e não não-Fritz Lang.

É Lang em virtude de vários atributos de identidade que o caracterizam absolutamente.


Alguns são essenciais: seu nome, nacionalidade, sua profissão de metteur en scène de
cinema,e certos títulos de sua filmografia real, M, o vampiro de Dusseldorf e o “western
com Marlene Dietrich” ( Rancho Notorious, é claro). Os outros são existenciais ( sem
Aristóteles, não teríamos Jean-Paul Sartre): seu corpo, sua voz, seu figurino, sua gravata
e s eu chapéu, sua presença no plano enquanto Fritz Lang, o que o diferencia
notavelmente dos outros atores (2 ) e não desempenha um papel de peso menor na
balança desta ficção.

Godard o quis e o compreendeu expressamente, ele que, de acordo com sua própria
confissão, quis confiar a Lang o papel exorbitante de representar nada menos que o
olhar e o julgamento do cinema sobre o cinema.

E mesmo se a idéia de “personalidade”, com as pompas midiáticas que a circundam, não


é exatamente simpática a Godard, isto não impede que ele utilize o peso do nome de
Fritz Lagn para emprestar aos créditos um brilho suplementar.

É preciso assinalar, no entanto, que a natureza da ficção cinematográfica é tão particular


que lhe é geralmente difícil dominar ( maîtriser) a longo prazo em se mecanismo esta
inserção de um elemento heterogêneo, elemento ao qual esta se vê obrigada a conferir
uma espécie de status particular, uma zona especial no conjunto de seus procedimentos.
O que pode fazer com efeito a ficção com uma criatura à qual ela não conferiu o seu
papel? Criatura- sim,a palavra é esta- de um outro mundo, pois possui a qualidade
específica de uma espécie de identidade suplementar a si mesma. E diante de tal
criatura, a ficção se encontra rapidamente em um impasse. Pois: ou ela lhe reconhece
um coeficiente de realidade que a ultrapassa e transborda, o que a leva então a cessar de
“engendrar ficção” ( cesser de fictionner), e passar assim para o lado do documentário.

Ou então a ficção pode convencionar que um personagem “em seu próprio papel”
( quem diz ‘papel’ já não diz ficção, teatro em todo caso?) se acorde a seu gênero de
beleza, e assim ela o pode integrar facilmente em seu trabalho, seu roteiro, seu casting.
Mas como ir muito longe com isso? O efeito de surpresa é rapidamente esgotado pela
tautologia: “Mas olha, é ele! O que ele tá fazendo aí? Ele mesmo”. Temos, portanto,
esta alternativa ( não há outras) entre cessar de gerar ficção e “ficcionar” no esquadro de
uma mitologia posta em questão pelo próprio Godard com o (seu) Lang.

Com gênio, Godard não escolhe entre as duas opções. Um gênio justamente utiliza estas
qualidades que Lang atribui a Homero no Desprezo, ou seja, a simplicidade, a astúcia, a
ousadia. O ponto de vista que, em todo caso, é o nosso é que o personagem de Fritz
Lang em seu próprio papel é construído de tal maneira que ele produz no filme ao
mesmo tempo uma espécie de dimensão documentária e uma certa espécie de dimensão
mitológica, ambas bem específicas da démarche godardiana, que não se interessa nem
pela realidade nem pela ficção, mas pela verdade do cinema, o que não é pouca coisa.

E é isso o que faz a meu ver com que o personagem vá tão longe, pois não apenas é o
mais belo personagem de cineasta jamais inventado por um filme de ficção, como
também é auto-interpretado. O todo resultante de um enorme e magnífico trabalho de
Lang e de Godard.

O papel de si mesmo não é certamente a mais fácil dentre as performances de ator. Fritz
Lang se empenhou neste trabalho com um maravilhoso talento, tomando-o
verossímelmente com imensa seriedade.

Em O dinossauro e o bebê, este profissionalismo de Lang diante de uma câmera


provavelmente impressionou os realizadores do programa (3), a tal ponto que uma
espécie de post-scriptum foi acrescentado, onde o ator Howard Vernon, amigo fiel de
Lang, declarava: “Esta entrevista foi tão importante para Lang quanto fazer um filme,
rodar uma cena de um filme”. O que o programa confirmava em seguida, mostrando ao
final várias tomadas, uma melhor que a outra em relação à clareza expressiva e do tom
de Lang, ou dizendo logo tudo, de sua interpretação ( jeu).

Em um curioso livro publicado em 1966 pela Grasset, sob o título Esperando Godard,
Michel Vianey, hoje diretor, nos conta algumas cenas de que foi testemunha, ele que
visitava sempre Godard nos anos 60. Estranhamente, o nome que ele dava para Godard
era “Edmond”, o que explica o diálogo que se segue com Lang, durante a filmagem de
O desprezo:

- A que horas começamos amanhã, Edmond?

Edmond ergue para ele seus olhos inquietos, azuis, embora deixem na memória uma
recordação negra.

- Não sei.

- Você vai precisar de mim?

- Não sei.

Inimigo da improvisação, Lang não devia apreciar nada este “Não sei o que fazer”. Daí
talvez estes pequenos acessos de rabugice que, segundo Vianey, ele deixava sempre
irromper na filmagem: “Este Godard não sabe o que quer, diz Fritz Lang, quebrando a
casca de um ovo duro contra o pé de sua cadeira. Ele é incapaz de dizer o que quer, se é
que ele quer alguma coisa. Por que eu estou aqui? O mar tá feio, etc”

Fritz Lang, no entanto, interpretou muito bem Fritz Lang. Seu “obrigado, você é muito
amável!” murmurado para Brigitte Bardot como um gentleman francófono da velha
Europa é com efeito devastador, digno de Stroheim. Como ele sabe jogar com seu
monóculo, sua bela cabeça, jogá-la para trás, intenso de lucidez e metafísica, citando
Hölderlin, como cabe a um artista. Como maneja com brio o tom exasperado com que
redargüe ao produtor, que insinua que o que ele rodara não estava no script: “IT IS!”.
Como se serve bem também, em seus momentos de cólera e de desprezo, do rugido
sonoro de seu sotaque germânico em inglês: “Natchrely, bi-kôze in zé skript it is
vrrrrittten!”. É irresistível. E sobretudo é impressionante como um homem de 73 anos
sabe, com o natural e a facilidade de um John Wayne, caminhar por um plano, ocupá-lo
com seu corpo, ressentir com graça intensificada o próprio peso, o que é provavelmente
a coisa mais difícil de se fazer para um ator não profissional.

Como Godard pôde dirigi-lo? Não saberemos jamais. Provavelmente deixando-o


utilizar deste savoir-faire com o qual, desde 40 anos, ele dirigia seus atores: “Eu
penso... que o bom metteur en scène não é aquele que diz aos atores como eles devem
interpretar, ou mesmo que lhes mostra, como muitos o fazem. Se faço um filme com 20
atores, não quero ter 20 pequenos Fritz Lang que se agitam na tela”.( 4)

Um único Fritz Lang também deveria ser suficiente para Godard. E justamente, ele o
tinha à mão. Seria decente que pretendesse mostrar a Lang como ser Lang?

Mas é claro que poderíamos apostar que o próprio Fritz Lang, um arquiteto de tal
monta, não aceitaria jamais se prestar a este jogo se não tivesse, previamente à
filmagem, tomado algumas precauções para que este “papel de si mesmo” que lhe
fariam interpretar lhe conviesse.

Um belo texto de Lotte Eisner, guardiã do templo languiano, nos esclarece a este
respeito.( 5) A Cinemateque Francesa, por mediação do “dragão” Mary Meerson, se
envolveu pessoalmente para convencer Lang, que aliás pediu a Godard para que este lhe
apresentasse o roteiro. Godard o fez. O que provavelmente lhe custou mais trabalho em
sua vida de autor do que a obrigação de submeter o roteiro aos produtores: um produtor
pode ser, digamos, “levado na conversa”, sobretudo por Godard. Mas não se engana
Deus nem Fritz Lang. E Godard, protestante, sabe-o bem.

As “medidas” do personagem deviam portanto ser tomadas cuidadosamente. Valeria a


pena em relação a isso consagrar um estudo aprofundado ao verdadeiro coup de force
( tarefa difícil, que demanda esforço) de roteiro em virtude do qual Godard construiu o
personagem de Lang “a partir” do romance de Alberto Moravia. ( 6 )

A respeito de Il Disprezzo, o próprio Godard se refere com desprezo, e categoricamente:


“Eu fiquei com a matéria principal, e simplesmente transformei alguns detalhes,
partindo do princípio que o que é filmado é automaticamente diferente do que é escrito,
portanto original”. ( 7)

Se observarmos mais atentamente, veremos que a matéria principal do romance


conservada por Godard é a história de uma grave crise conjugal vivida por um casal no
qual o marido, escritor, por amor à sua mulher ( em todo caso, vontade de lhe oferecer
um belo apartamento), é levado a aceitar trabalhos um tanto mercenários como roteirista
de cinema. Ainda no romance, estão implicados num projeto ( um projeto apenas: nada
de filmagem) de filmar a Odisséia: um produtor, um metteur en scène alemão e o
roteirista em questão.

Mas o produtor ( italiano) de Moravia é um simples comerciante de cinema, profissional


apenas competente que deseja, a partir da Odisséia “tal qual ela é” ( poética, diz ele),
realizar algo como um bom peplum, com sereias, ciclopes, e um Ulisses bem heróico.
Ele encomenda um roteiro neste sentido, e o roteirista se submete, sabendo bem o risco
que a poesia de Homero corre de adquirir uma pátina de vulgaridade à la Cinecittá. É
então que ( no romance) o metteur en scéne alemão- a respeito do qual Moravia faz
questão de precisar que “não se trata de um diretor da classe de um Pabst ou de um
Lang”- põe na cabeça filmar uma Odisséia freudiana ( é seu sagrado lado germânico
que insiste nisso), e nada joyceana, apesar de suas pretensões modernistas; o herói de
sua Odisséia edipiana, petrificado no “complexo”, cometeria todos os atos falhos do
mundo para não conseguir merecer o amor de sua mulher Penélope; Penélope que,
justamente por culpa do marido, é aliás muito complacente para com seus pretendentes.

A partir deste material, Godard essencialmente apenas operou uma redistribuição de


papéis. Mas esta, no fundo, é tão radical quanto sutil, em relação às transformações que
implica no jogo moral dos conflitos.

O produtor e o diretor ainda se opõem em Godard, mas não da mesma forma, já que
agora cabe ao primeiro- americano, no filme- a estúpida intenção pseudo-moderna, a
idéia estapafúrdia de interpretar a Odisséia à luz de Freud.

Quanto ao roteirista,- que não pode em Godard se opor a ninguém-, simplesmente o


filme lhe retirou o papel de consciência da obra para dá-lo ao metteur en scène. Todas
as belas coisas que ele dizia no romance foram postas por Godard na boca de Fritz
Lang, inclusive esta magnífica idéia de que “O mundo de Homero é um mundo real”, e
que “a beleza da Odisséia reside justamente nesta crença na realidade tal como ela é,
tal como esta se apresenta objetivamente, em uma forma que não se deixa nem analisar
nem decompor, e que é o que ela é: a tomar ou a largar”.

O grande ganho moral destas transformações é portanto o personagem do metteur em


scène, a quem Godard deu precisamente “a classe de um Lang”, toda a envergadura de
um velho sábio ( um chefe indígena, escrevia Lotte Eisner), petrificado pela verdadeira
cultura européia, e que sabe que não se brinca nem com a presença dos deuses em
Homero nem com sua ausência em Hölderlin. Naturalmente, o personagem adquire um
estofo considerável. E o “romance verdadeiro” da vida de Lang- em particular sua
ruptura com a Alemanha nazista em 1933- é evocado neste filme de forma bastante
explícita para contribuir a exaltar a figura, a tornar densa sua “persona”, até transformá-
lo no ator privilegiado de uma evolução da consciência ocidental.

E, claro, neste momento, Moravia está bem distante, mesmo se o diabólico Doutor
Godard tenha sabido tomar emprestado trechos inteiros de seu texto, que ele, por assim
dizer, “recontextualizou”, redistribuindo-os e filmando-os.

Toda a lucidez própria à consciência infeliz do roteirista se tornou consciência infeliz no


metteur em scène, que assume com a maior dignidade. As mãos puras que não possuem
mãos tornaram-se mãos que devem se sujar bem ao trabalho. Toda a obra americana de
Lang não foi colocada sob o signo desta experiência?

“É preciso sofrer”, diz Lang a Piccoli. Em uma palavra: em Godard, é o diretor quem dá
as lições de moral. E é pelo travelling que este terá a última palavra, no silêncio de
trabalho do plano.

O esforço de adaptação pelo qual o roteiro foi elaborado é portanto aqui mais um efeito
que uma causa. E certamente Godard não teria empreendido este coup de force se não
tivesse sido conduzido a ele pelo conjunto de verdades críticas a que se aferrava no ano
de 1963. Ao menos doze anos de reflexão o levaram à maturidade. O trabalho de
Rivette, Chabrol, Rohmer, Truffaut, de Moullet e, dialeticamente, o de Bazin, a quem o
filme é dedicado ( por uma citação talvez inventada) não deixaram de contribuir a esta
elaboração.
Pois o Fritz Lang de O desprezo é uma criatura política: sua Odisséia é a Odisséia do
autor.

Já podemos pensar- mesmo se é um pouco forçar a cronologia do percurso ideológico


de Godard-, que estas “idéias justas” a partir das quais Lang foi concebido em O
desprezo vem de uma certa “prática social” e “reflexão sobre as relações de produção”,
no campo do cinema é claro. Prática e reflexão que, no começo da Nouvelle vague,
todos os seus membros haviam assumido em conjunto, quando se interrogavam sobre o
verdadeiro lugar da instância criativa decisiva no cinema. Este lugar para eles era a mise
en scène, razão pela qual batizaram de autores- ou seja: responsáveis de jure pela
criação- aqueles que a praticavam enquanto homens livres, na contracorrente de todas as
limitações do tempo, do dinheiro e do box-office, contra todas as ditaduras da produção.

Concepção altamente romântica, sem dúvida, esta figura soberana do autor, e que com
freqüência confunde seu desejo com as realidades, mas que teve ao menos a vantagem,
sob o ponto de vista crítico, de ajudar a discernir algumas destas realidades, no campo
exemplar ( por ser ao mesmo tempo limitado pelo esquema de produção e muito
criador) do cinema hollywoodiano. É aqui que o aspecto documentário de O desprezo
aparece.

Esta ficção de um Lang rodando na Itália com um produtor americano possui algum
grau de verossimilhança, em termos da história do cinema. Não podemos deixar de
pensar ( o próprio Moravia deve ter pensado) nesta produção ítalo-americana de
Ulysses, que foi um projeto de Pabst e que foi finalmente dirigido por Mario Camerini
em 1954, com Kirk Douglas e Silvana Mangano.

Mas sobretudo o roteiro de Desprezo delineia metaforicamente a situação do metteur em


scène em sua relação com o produtor clássico hollywoodiano como uma configuração
geral, estrutural. Este roteirista imposto por um produtor que aterroriza a todos com a
perspectiva de falência ( perdre sa chemise) com um diretor incontrolável poderia ter
sido aquele que foi imposto a Nicholas Ray durante a filmagem de Amargo triunfo ( 8).
A intervenção do rewriter mercenário é um caso de figura real e típico da prática
hollywoodiana, e Lang mesmo deve ter passado por isso.

Não excluamos ainda que Godard deve ter guardado na memória certa discreta mas dura
polêmica que, em 1957, opôs Rivette a Bazin a propósito de uma reavaliação crítica de
Beyond a reasonable doubt. Ali onde Rivette via “uma depuração” e “menos a mise en
scène de um roteiro que a simples leitura deste roteiro” ( 9), Bazin acusava “ um tal
desprezo por seu roteiro que ele ( Lang) só podia salvaguardar sua dignidade
operando em torno desta história o vazio barométrico da mise en scène”, o que,
segundo ele, conduzia o valor desta obra não muito distante do “zero absoluto”. ( 10)

A bela questão que coloca a presença real e simbólica de Fritz Lang em O desprezo é
bem esta, que é justamente o ponto crítico de uma política do autor: o cinema constitui
um único corpo com as imagens e os sons. E é no domínio destes que se mensura o
poder de um autor, portanto da mise en scène. Na escolha das rushes, tudo já está
consumado. O ato de criação já ocorreu, é tomar ou largar. E enfim não constitui uma
das menores audácias de Godard ter filmado planos de uma Odisséia que Fritz Lang
deveria ter filmado.

Estes planos, pouco numerosos aliás, Godard previa com sutileza que um exegeta
embusteiro poderia ter rejeitado a paternidade de Lang ao filmá-los, colocando sua
autoria a cargo de uma segunda equipe de Lang, sob a responsabilidade de seu
assistente, ou seja, o próprio Godard.

Que pensar com efeito destes planos, planos de detalhe ( os closes da imagem dos
verdadeiros deuses, e do primeiro olhar de Ulysses quando reencontra sua pátria), senão
que eles são realmente muito pouco languianos? E que eles são eminentemente
godardianos, os olhos pintados das estátuas ( detalhe realista) e a maquiagem exagerada
de Penélope, evocando já o sex/violence/action/painting de Pierrot le fou? Uma radical
honestidade, um puritanismo de Godard devem aqui ser levados em conta: com que
direito ele se permitiria de imitar o estilo de Lang? É preciso acreditarmos que estes
planos filmados por Godard foram antes de tudo um presente ofertado a Lang. Crer que
neles se inscreveu a única marca possível de seu respeito à liberdade criativa soberana
de seu mestre. E que esta liberdade só pode se assemelhar à sua, filialmente suscitar a
semelhança. Talvez Godard tenha visto os olhos pintados de Marlene Dietrich em
Rancho Notorious como os da estátua de uma deusa viva. É preciso notar também como
Godard- já que ele havia muito bem assinalado como crítico que “Fritz Lang se
interessa mais por uma cena que por um plano de detalhe, como Hitchcock” ( 11)-
integrou alguns destes planos à ação global de seu filme. Assim, quando Piccoli, mal
inspirado, vai cometer a gaffe de sua vida ( um infeliz atraso no encontro com o
produtor e Bardot) que vai lhe custar o desencadeamento do desprezo de sua mulher, o
plano “languiano” de Netuno, inimigo mortal de Ulisses, reaparece como um signo
premonitório de seu próprio destino. O todo do filme de Godard só pode portanto
funcionar pela integração de uma parte que lhe dá sua força clássica, articula-a e a
constrói em virtude destes poderes de abstração que constituem a força maior que
Godard e seus companheiros reconheceram na lição de Lang.

Aqui, como em Tempos de guerra, onde Michel-Ange encontrava Rembrandt, o


(pequeno) soldado saúda um ( grande) artista. E o belo espaço vertical desta casa de
Malaparte, suspensa entre o céu e o mar pela escala de sua escadaria asteca começa a se
assemelhar, em sua versão solar e mediterrânea, aos andares arquiteturais nórdicos dos
porões de M, o vampiro de Dusseldorf, ou do palácio hindu do Túmulo indiano,
riquíssimo em diversidade de níveis.

Entrevemos aí em todo caso que a herança, a filiação permanece uma grande questão
aberta, um dos continentes a se explorar de uma história do cinema que não temeria
bisbilhotar um pouco sob a perspectiva do que se passa entre os cineastas. Entre As
Meninas de Velásquez e as de Picasso, uma história que trataria de analisar a qualidade
do ar onde os dois pintores- e nós, seus espectadores, com eles- se encontram conjunta,
geneticamente sob a influência de um mesmo programa.

O estranho caso da espécie do encontro de Lang e Godard em O desprezo constitui


talvez jurisprudência na aplicação de uma nova lei, concernente aos direitos de sucessão
em matéria de arte ( pois , é claro, não se trata mais aqui de direitos do autor, mas do
artista): o legatário pode tornar-se o herdeiro de seu próprio herdeiro, ou mesmo o filho
de seu próprio filho.

Notas:

1. O Desprezo em: Godard por Godard


2. O diferencia? Sim e não. É certo que Bardot, Piccoli e Jack Palance chegam em O
desprezo ( e talvez todos os atores em Godard) a uma estranhíssima consistência de seu
"ser aí" no filme. Bardot é talvez mais ela mesma que Camille Javal. Talvez não se deva
jamais propriamente falar em personagens em Godard, já que nele os mistérios da
encarnação estão longe de serem elucidados.
3. Trata-se de um programa da série Cineastas do nosso tempo, produzida por Janine
Bazin e André Labarthe em 1965, sobre base de uma entrevista de Lang filmada por
Godard em 1964.
4. Opiniões de Lang citadas por Luc Moullet em seu belo livro sobre Fritz Lang. É este
livro que Bardot lê na banheira.
5. Lang e O desprezo, no Fritz Lang publicado pelo Cahiers du cinéma em 1984.
6. Il Disprezzo, 1954. Godard escrevia no texto sobre o livro já citado: "O romance de
Moravia é um bonitinho e vulgar romance de estação rodoviária, cheio de sentimentos
clássicos e ultrapassados, apesar da modernidade das situações. Mas é com esse gênero
de romance que se faz com frequência os mais belos filmes".
7. O Desprezo em Godard por Godard
8. Recorrer naturalmente sobre este tema à obra publicada este ano por Christian
Bourgois por Bernard Eisenschitz, Romance americano: as vidas de Nicholas Ray.
9. Cahiers du Cinéma, fevereiro 1957.
10. Rádio Cinéma, Televisão, outubro 1957.
11. Ficha redigida por Godard para UFOLEIS sobre O retorno de Frank James, citado
por Moullet em sua obra sobre Lang.
Cahiers du Cinéma, número 437, novembro 1990.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

O mundo-olhar de Brian de Palma, Iannis Katsahnias

No princípio, é o olho. O olho de peixe morto de Marion Crane ( Janet Leigh) sob a
ducha de Psicose: imagem guardiã de um túmulo ( guardiã do recalque em Hitchcock),
e de sua abertura (imagem que autoriza o retorno luminoso do recalcado em De Palma).
Imagem atraente tornada inquietante, e que ocupa um status extremamente elevado no
horror: o “olho da consciência”: “Parece, com efeito, impossível com relação ao olho
falar de outra coisa senão de sedução, escreve Bataille, nada sendo mais atraente nos
corpos dos animais e dos homens. Mas a sedução extrema coincide provavelmente com
os limites do horror”.1

No cinema de De Palma, o olho aberto da morte torna-se sucessivamente “ guloseima


canibal” ( o olho do Fantasma/William Finley, saído de sua órbita em Phantom of the
paradise), telepático ( os olhos azuis fosforescentes, dotados de poderes extra-lúcidos e
maléficos de Gillian/Amy Irving, em A Fúria). Em Missão: impossível, o olho tornou-se
câmera em um mundo regido pelo olhar.

A vacilação das aparências.


Um monitor no fundo de um cenário sombrio. A silhueta de um homem ( Jack
Emilio/Estevez) que observa a cena transmitida no vídeo em preto e branco: um homem
geme em russo: “Eu não me lembro disso. Não me lembro do que aconteceu.” Ao seu
lado, o corpo ensangüentado de uma jovem. Um outro homem o pressiona: “Me diz o
que eu quero saber e eu te tiro daí”.

Jack se inquieta. Sobre a tela de seu computador, ele vê as pulsações do coração da


jovem diminuírem perigosamente. Se esta cena durar alguns segundos a mais, a mulher
morrerá. A câmera de vídeo faz uma panorâmica para enquadrar Claire ( Emmanuelle
Béart) ,a jovem, em close. A imagem, nebulosa a princípio, hesita, tateia, depois torna-
se nítida. Tudo se dá neste instante onde o rosto de Claire chancela entre o flou e o
nítido, onde ela navega entre a vida e a morte.

O homem interrogado acaba por falar, e é morto em seguida. Seu interrogador tira sua
máscara e descobre seu verdadeiro rosto: é Etahn Hunt ( Tom Cruise), um agente da
IMF ( Força da Missão Impossível). Close de uma injeção intravenosa que mergulha no
braço de Claire para reanimá-la. Close em contra-plongé, focal curta, de Ethan, que se
debruça sobre Claire quase morta, já morta. Sua inquietude revela um desejo que ele
tenta ignorar, um desejo frustrado. Claire, a mulher de Jim Phelps ( Jon Voight), o
patrão, o mentor, o pai espiritual de Ethan, é um mau objeto de desejo, um objeto
interdito.

“A frustração não é um fenômeno que possamos objetivar no sujeito sob a forma do


desvio de um ato que o une a este objeto, diz Lacan. Não se trata de uma aversão
animal. Por mais prematuro que seja o seu envolvimento, o sujeito ressente o mau
objeto como uma frustração. E, em um mesmo movimento, a frustração é ressentida no
outro. Há uma relação recíproca de aniquilação, uma relação mortal estruturada por
estes dois abismos- ora o desejo se extingue, ora o objeto desaparece ( sublinhado
meu)”. 2

A morte icônica de Claire a transforma em ícone, imagem aurática, próxima e distante


ao mesmo tempo, intocável. Claire abre os olhos, contempla Ethan e, ao olhá-lo, o
implica definitivamente. A partir deste momento e até o fim do filme, ela não cessará de
inquietar o olhar de Ethan, de aparecer, de oscilar entre a vida e a morte, sonho e
realidade. Móvel, ondulante, incapturável, Claire arrisca-se a cada instante a se perder, e
Etahn com ela. Talvez precisássemos retornar a Laura, de Otto Preminger, para
reencontrarmos uma tal representação do fantasma encarnado num espectro (
phantasme devenu fantôme).

A interpretação de Béart, sua forma de encontrar seu lugar em uma super-produção


hollywoodiana, torna este jogo da dupla distância comovente. Pois, à imagem de seu
personagem, ela arrisca-se a se perder a cada momento, perder-se nas engrenagens deste
gigantesco mecanismo, para reencontrar-se mais adiante , in extremis.

O duplo olhar.
A abertura de Sisters: seguido por uma panorâmica de alto a baixo, Philip Wood ( Lisle
Wilson), um Negro, recoloca sua calça num vestiário. A câmera dá um zoom para trás.
No primeiro plano, Danielle Breton ( Margot Kidder), uma cega com óculos escuros e
uma bengala branca, entra no quadro pela esquerda, estaca no meio, pousa sua bengala e
começa a tirar a roupa. Philip se aproxima dela e fixa-lhe o olhar. A câmera faz um
zoom dianteiro sobre seu rosto. A imagem se congela.

No plano seguinte, reencontramos a imagem congelada de Philip Wood numa tela de


televisão- um quadro no quadro- sobre o qual vêm se desenhar um buraco de fechadura
e a inscrição “Peeping Toms” ( Voyeurs). Trata-se de um programa de televisão. Então,
tudo se redimensiona. Compreendemos que Danielle não era cega, e que ela se sabia
olhada. Uma situação que poderia não passar de uma simples história de voyeurismo
( como se o voyeurismo pudesse ser simples!) , uma relação intersubjetiva entre um
sujeito que olhasse e um sujeito olhado sabendo-se olhado, torna-se ainda mais
complexa pela existência de um terceiro olhar: a câmera de televisão que registrava a
cena.Esta cena instaura uma dialética do olhar. O que é importante aqui não é o que
Philip Woods olha. É o fato de que outro alguém- a câmera de televisão, transformada
em personagem fora de campo- o olha olhar.

O olhar objeto.
Esta relação entre aquele que olha-aquele que é olhado se torna mais complexa em
Missão: impossível. A equipe de Jim Phelps deve penetrar no interior de uma festa na
embaixada americana de Praga, com o objetivo de prender o espião Alexandre Golitsyn
( Marce Iuris), alguns minutos depois que este copiou em um disquete a lista secreta dos
agentes americanos na Europa Central.

O ponto nodal desta cena, o que a estrutura e forma, são os óculos Visco: os óculos
dotados de um microfone e de uma câmera miniaturizados, com a capacidade de
transmitir aquilo que o personagem que o carrega vê e ouve a um monitor que se
encontra a mais de um quilômetro de distância. Em um apartamento próximo da
embaixada, Jim Phelps vê e ouve tudo, controla e coordena a operação. Nas mãos de De
Palma, os óculos Visco não são apenas um simples truque, mas se tornam um
instrumento que estabelece uma dialética do olhar, impulsiona-o até os seus limites e
acaba por manipular o olhar do personagem, assim como do espectador.

Ethan Hunt penetra na embaixada sob a aparência do senador Waltzer. Durante todo o
início da cena, seu rosto permanece oculto, pois a câmera adota seu ponto de vista.
Apenas vemos o que aquele personagem (transformado em câmera) vê, e Jim Phelps
também.

Mas o que importa aqui não é o fato de que Jim Phelps vê o que Ethan Hunt vê. Nesta
relação, o essencial não consiste no que é visto. O que a estrutura é o que não é visto. O
olhar subjetivo de Ethan Hunt é objetivado, dirigido, manipulado, impedido por Jim
Phelps de ver o que realmente se passa: o grupo Phelps é vigiado por uma segunda
equipe que tem por objetivo desmascarar o espião que se infiltrou há algum tempo na
IMF.

A noite de Ethan Hunt.


A operação fracassa, e todos os membros da equipe são mortos um a um. Um único
sobrevivente: Ethan. Seu nome próprio deve ser tomado ao pé da letra ( hunt: caça,
busca). Tal como Édipo, Ethan Hunt parte em busca do culpado, aquele que montou
esta maquinação para acusá-lo de ser um espião. Como Édipo, o culpado não é ele. Em
Édipo Rei, quem é o culpado? Édipo, por ter matado seu pai e dormido com sua mãe?
Não. Os culpados são seus pais, que o abandonaram na montanha para salvar a própria
pele, já que um oráculo predira que ele mataria seu pai e dormiria com sua mãe.

Em Missão: impossível, o culpado é Jim Phelps, o pai espiritual de Ethan que joga
Claire, sua jovem esposa, em seus braços para melhor desorientá-lo, para que ele se
extravie nos meandros da noite negra de Praga, desacreditado, exilado, caçado,
perseguido; ele, o caçador profissional, o virtuose da manipulação e do bluff, enganado,
burlado, traído. Magnífica cena de errância e de perda, filmada em exterior em Praga,
transformada em um labirinto onde a luz oscila entre a latência do azul-noite e a
violência do laranja, onde o nevoeiro oculta um novo assassinato. Soberbo trabalho de
Steven H. Burum, um câmera ao qual devemos a imagem memorável de filmes como
The outsiders e Rumble fish ( Rusty James) de Coppola, ou Body double, The
untouchables, Casualties of war, Raising Cain, Carlito’s Way de Brian de Palma.

O Livro de Jó.
Desacreditado, perdido, acusado pelo agente da CIA Kittridge ( Henry Czerny) de ter
liquidado seus amigos para se apropriar do disquete contendo a lista dos agentes
secretos americanos atuantes na Europa e vendê-la ao traficante de armas Max, Ethan
entra no esconderijo do grupo. Sua única esperança para se livrar das acusações: lançar
pela Internet uma mensagem a Max.

Ele tecla no computador “job 314”, o código que, segundo Kittridge, Max utiliza para
esta operação. Não dá em nada. Em vão, ele tenta variações. No momento em que seu
desespero atinge o pico, seu olhar tomba sobre um exemplar da Bíblia, posto, como por
acaso, sobre um móvel diante dele. A iluminação e um zoom dianteiro destacam a Santa
Escritura dentre os outros livros. E Ethan vê a luz: “job” ( Jó, trabalho, emprego) tem de
ser tomado no sentido bíblico. Trata-se do Livro de Jó, mais precisamente do capítulo 3
( Pereça o dia) e do versículo 14( “com reis, conselheiros da terra, que constroem
mausoléus”). Assim como Jó, Ethan é um herói trágico traído por seu pai.

É preciso falar aqui de Tom Cruise, dizer o quanto o desnorteamento de seu personagem
se imprime em cada gesto, cada movimento de seu corpo, o quanto o luto antecipado ou
diferido do órfão parricida é visível sobre o seu rosto emagrecido.

O que conta o Livro de Jó? “ Incitado por Satã, escreve André Chouraqui, Elohîm
permite que Jó perca seus filhos e seus bens, e que seja duramente atingido em seu
corpo por um mal aparentemente incurável. O sofrimento do justo permite assim
evocar o problema ontológico do mal. Uma questão central domina a obra: como
apreciar o destino de Jó em relação às regras geralmente admitidas da retribuição? O
sofrimento do justo deve nos fazer duvidar da ordem moral universal? O drama atinge
as dimensões da tragédia: Jó é dilacerado na profundidade de seu ser; ele não
compreende a justiça deste Elohîm ,que no entanto ele persiste a reconhecer e adorar.
Jó, o Sábio é levado a se revoltar contra Jó, o Justo”. 3

No capítulo 3, Jó abre a boca e maldiz o dia em que nasceu: “Por que não morri eu na
matriz, saído do ventre para agonizar? (...)Sim, agora eu estaria deitado e em paz; eu
dormiria; eu repousaria, então, com os reis e os conselheiros da terra, que se
constroem mausoléus”. A vida seria então a longa agonia que dura o lapso de tempo
que separa duas mortes: a primeira é o nascimento.

Entre duas Mortes.


Todo o personagem de De Palma é um sonhador que, como que por acaso, acaba num
pesadelo ( O que está te acontecendo? Você parece que teve um pesadelo?”, diz a jovem
Asiática a Erikson/Michael J. Fox, no final de Casualties of War).

Ethan espera a resposta à mensagem enviada. A porta do apartamento se abre e Jim


Phelps aparece resfolegante, coberto de lama, uma ferida no peito. Ele estende suas
mãos ensangüentadas para Ethan: “Eu precisava de você. Eu precisava de você na
ponte, e você não estava lá”. Presença fantasmagórica que cobre Ethan de
recriminações, desvia as últimas palavras do Cristo- “Meu pai, meu pai, por que me
abandonastes? “- para transformá-las em “Meu filho, meu filho, por que me
abandonastes?”

Close de uma mão feminina que toca o ombro de Ethan. Ele se volta e encontra Claire
face a face. O pesadelo continua. O breve lapso de tempo que separa estas duas
aparições acaba por jogar Ethan no isolamento absoluto. Nenhuma destas experiências
pode ser banalizada. As sensações contraditórias que dispõem do personagem neste
instante são neutralizadas, deixando-o cego, situado numa dimensão muito distante
daquela que o toca e daquele que tenta tocá-lo, em um mundo onde os gestos não
possuem mais nenhum alcance. A segunda visão não anula a primeira. A barreira que os
separa é porosa, permeável. Esta coloca Ethan no limiar entre dois sonhos. Tudo o que
ele vê ou que aparece só pode ser um sonho dentro de um sonho.

Auto-destruição.
A única piscadela ( clin d’oeil) do filme que anuncia a série, antes de passarmos aos
assuntos sérios ( pois , apesar de seu inegável humor, o filme é espantosamente grave,
no limite do trágico): Jim Phelps está em um avião. Uma aeromoça se aproxima dele:
“O senhor quer ver um filme, Mr. Phelps?- Não gosto de cinema, prefiro teatro,
responde ele secamente- Mas um filme ucraniano não lhe diz nada?”, insiste ela,
sublinhando a palavra “ucraniano”. Jim Phelps acaba por aceitar a fita de vídeo que a
aeromoça lhe oferece, cassete que- é evidente-, não contém nenhum filme ucraniano,
mas o anúncio de uma nova “missão impossível”, com a inevitável fórmula final: “Esta
fita vai se auto-destruir em cinco segundos”. Phelps, como velho habitué deste ritual
tornado clichê, mitiga a fumaça exalada pela fita que se auto-destrói, acendendo um
cigarro.

A única coisa que De Palma retém da série é justamente esta idéia de auto-destruição. A
narrativa de Missão: impossível se auto-anula à medida em que progride, aniquila a
própria idéia de ficção. Cada nova cena anula a precedente. Cada nova etapa conduz a
um impasse e acaba por construir um palácio de espelhos de cristal. Aquilo que vemos
não é aquilo no qual cremos.

A cena da embaixada é revista e corrigida por Kittridge. Jim e Claire Phelps, que
acreditávamos mortos, estão vivos. Max não é, como seu nome indica, um homem mas
uma mulher ( Vanessa Redgrave). Jim Phelps volta à cena para contar a história sob um
outro ponto de vista, igualmente falso.

O caráter labiríntico da narração e a impossibilidade de fixar a percepção sobre qualquer


imagem atingem seu ponto culminante no momento onde Ethan viola o caixa forte da
CIA. Esta peça protegida pelo sistema de vigilância mais sofisticado do mundo torna-se
o interior do globo ocular, um olho no qual Ethan penetra passando pela pupila- o
orifício de ventilação situado no telhado. Seguro unicamente por uma corda, ele flutua
neste espaço branco asséptico, e o espectador também. Plongé e contra-plongé se
confundem. Não sabemos mais se a câmera está em cima ou embaixo. O olhar está
definitivamente desestabilizado.

Do gozo ( jouissance).
No fim do filme, Ethan Hunt afundado na poltrona de um avião que o conduz não
sabemos paraonde. Parece esgotado. Neste momento, Ethan vem ocupar o lugar do
espectador, que vivera duas horas de jouissance cadenciada, feita de fluxos e refluxos,
de jorros descontínuos, de espera, de momentos orgásticos, de breves instantes de
relaxamento, de picos e de quedas vertiginosas.

Missão: impossível esposa o movimento ondulatório da jouissance, que se eleva e


aterrisa ao se deslocar- ou dando a ilusão de se deslocar-, extenuante e, no entanto,
rapidamente recomposto.

Notas:
1. Georges Bataille, Obras completas I.
2. Jacques Lacan, O Seminário, Livro I: Os escritos técnicos de Freud.
3. A Bíblia, traduzida e apresentada por André Chouraqui.
Cahiers du Cinéma, número 507, novembro de 1996.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Três Tourneur

Cineasta maldito, Jacques Tourneur o é de diversas formas: em primeiro lugar porque


sistematicamente recusa-se a oferecer ao espectador qualquer ponto de apoio a partir do
qual este poderia ter acesso a seus filmes, ou antes: só nos propicia de seu pensamento
elementos aparentemente incoerentes, com freqüência inesperados. A explicação é
simples; sua maneira de contar uma história consiste em dar uma imagem
abreviada( raccourcie) da vida, obtida a partir da decomposição dos mais variados
elementos da existência, depois recompondo-os de forma a acelerar certos movimentos,
a evitar as abordagens supérfluas. Basta comparar a estrutura de suas cenas com as de
um Hitchcock; em Os pássaros, duas imagens de morte brutal são propostas ao
espectador com a mais perfeita precaução, o velho com os olhos perfurados, do qual
pouco a pouco nos aproximamos, o carro que explode, depois de termos acompanhado
a causa desta explosão. Em Tourneur, pelo contrário, a morte é uma coisa breve,
irremediável, sem causa aparente. O menino baleado fatalmente à janela, em Wichita,
da maneira mais inesperada que pudéramos conceber, é uma cena exemplar desta
estética: enquanto que Hitchcock organiza ( encena) até mesmo as reações dos seus
espectadores, Tourneur dá de sua obra, ao mesmo tempo, a visão mais brutal e mais
elaborada possíveis, uma visão alucinada, já que acossada, recusada, mascarada.

Mostrar apenas movimentos inúteis- ou abortados tão logo iniciados-, simular o rigor
quando trágica é a desordem, são características que me parecem desvelar uma
impotência em captar a vida, ou antes: uma vontade de precipitar a morte.
Appointement in Honduras é isto e muito mais, pois o filme começa sem que a emoção
nele se instale, ou antes com a emoção que se retrai ( le coeur oté); vida petrificada que
surpreende pela forma com que é destilada, crueldade inútil ( crocodilos e serpentes
ameaçadores ao se lançarem, inofensivos ao final das contas), totalmente decorativa,
poder-se-ia pensar. Mas há aí um partis pris constante em Tourneur: jamais mostrar um
evento dramático quando o exigisse a situação; mas mostrá-lo quando o espectador
estivesse desprevenido, quando ele não esperasse ou não esperasse mais, dizer a verdade
quando esta tivesse desaparecido. Isto equivale a preceder o inelutável com o propósito
de aboli-lo ( em vão), ou então a mostrá-lo como se não acreditássemos mais nele. É um
cinema da “pegada” ( empreinte), onde os fins perseguidos jamais se situam no
momento exato em que são buscados. Interstícios entre a aparência e a realidade,
comédia e drama, vida e morte que constituem provas, não de uma impotência a mostrar
o Todo, mas de um desejo de não mostrar nada. O que equivale a dizer: mostrar o que
não é mais ou não será jamais, assinalar o irreal sem razão nenhuma, explorar o vazio e
dele mostrar apenas o vazio. Este é um cinema novo, na medida em que não serve de
forma alguma ao seu autor ( tão desesperado ao final do processo quanto antes). Sem
nada cultivar, nada pode colher. Mas ele nos permite descobrir um outro valor: o de
uma consciência opressa pelo desespero, o de uma tensão que não se distende jamais.

Eis em que o cinema de Jacques Tourneur é um dos mais abstratos que possamos
imaginar: se notamos a ausência em seu cinema desta tensão que animaria as imagens
petrificadas ( mesmo em movimento) de seus filmes, é porque cabe ao espectador
animar com um novo movimento esta obra de onde a vida foi subtraída; subsistem
apenas impulsos fracassados em direção a uma obra jamais realizada, e que poderia ter
sido outra. A partir destes impulsos, devemos perseguir a obra, aproximarmo-nos dela
( por meio de nossa própria sensibilidade), visando este fim que ela jamais atingirá. Os
finais de Anne of the Indies, Appointement in Honduras não são realistas; são até
mesmo inimagináveis. Cabe a nós completar este filme, conduzi-lo à realização que ele
poderia ter tido. Pois se o cinema de Tourneur é a princípio pensado e sentido, em
seguida este é destruído e recomposto: trata-se para nós de retornar ao pensamento, à
idéia inicial do autor, que o mesmo tentou subtrair a nosso olhar. Não nos espantaremos
de verificar que, com freqüência, os personagens mais significativos sejam animados
por movimentos cujo preciosismo Tourneur se empenha em sublinhar; acontece
frequentemente também que uma cor adquira uma importância capital numa cena, às
custas das ações importantes; aqui, é preciso sublinhar o papel dinâmico destas cores
( um exemplo marcante é o vestido amarelo de Ann Sheridan em Appointement, que
apaga tudo o que está a seu redor), sobre as quais repousa todo o ritmo do filme. Estas
são ao mesmo tempo símbolos ( o sangue vermelho sobre os lábios de Jordan) e
estruturas. O anódino torna-se capital e ( como o artista) vacilamos diante destas coisas
que se desvanecem: anima-se o Nada, desaparece a existência. Este verdadeiro silêncio
é a expressão de um vazio desesperado que não se aparenta ao desespero de Daves, por
exemplo, que não sabe como preencher a tela, sempre imensa para ele.

Os limites e a ambição de Tourneur estão em outro lugar: ver ( e dar a ver) o que não é,
o que não somos, invertendo com este propósito o indispensável e o dispensável,
modificando o curso das coisas, desejando mudar a vida. A imagem que ele nos propõe
é, portanto, invertida, os elementos reunidos em proporções diferentes, o equilíbrio
natural perturbado. Assim, em Anne of the Indies, impossíveis serão as relações entre
uma mulher que recusa seu sexo e um homem que mascara sua virilidade. Como não
pensar em Nicholas Ray, em Jerry Lewis, ambos obcecados por estas inversões, estas
imagens desmentidas tão logo formuladas...

Por que os filmes de Tourneur são tão distanciados do espectador? Pois o que ele busca
é não dizer nada a respeito daquilo que é, e isto consiste um pouco em dizer tudo o que
não é, ou seja, a ausência. O sentido desapareceu. Se, no entanto, o signo permanece, é
porque seus filmes propõem um universo animado unicamente pelos signos do non-
sens. Compreende-se a dificuldade em sermos afetados por eles ( de forma plena, ao
menos). Eles não passam de instantes dispersos, oferecidos à nossa visão como pedras
preciosas, cintilantes de um brilho único, mas de tal forma que seria necessário analisar
esta curiosa impressão de mal-estar que sentimos, ao mesmo tempo em que somos
deslumbrados. Esta vem, talvez, do fato de que os atos são de chofre situados em seu
estágio último, sem que nos seja mostrada a evolução que os conduzira até lá ( à
diferença desta estética do insustentável cara a McCarey, e que consiste em nos
apresentar, em toda a sua extensão, o movimento impossível, a aproximação indecente
de pessoas estranhas umas às outras). É um cinema do instante, e no entanto este
instante é sempre repartido. As relações corporais são raras, o erotismo concebido de
maneira indireta ( distância) e fugitiva; as cenas de morte também ( só dou por exemplo
esta mulher em Wichita, morta por uma bala, através de uma porta), ao mesmo tempo
brutais e inacessíveis ( próximas nisto do gozo erótico).

Pois se existe uma distância entre todas as coisas, e em particular entre nós e o metteur
em scène, esta razão não deve impedir-nos de ir a seu encontro: cabe a nós preencher o
papel que este não pode assumir, de ser o metteur en scène.

Louis Skorecki
Cahiers du Cinéma, 1964
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Ensaio de um crime, por Eric Rohmer

Archibald de la Cruz teve a feliz sorte de ver uma outra mão perpetrar crimes que uma
não menos feliz sorte lhe impediu de levar a termo. Tal é em duas palavras o argumento
do filme que Luis Buñuel realizou no México, há três anos. Como todo conto bem
construído, este deixa à interpretação uma margem considerável. Devemos entender
simplesmente, como o autor nos sugere numa breve cláusula- cuja ingenuidade só é
disputada pelo esplendor de sua ilustração- que é conveniente não tentarmos complicar
a vida, e assim mandar ao diabo escrúpulos e casuística? Ou, forçando um pouco a
interpretação, devemos considerar os objetos femininos destes assassinatos como os
diferentes símbolos dos tabus burgueses ou religiosos que todo homem que se dá ao
respeito deve se apressar a abandonar?
Devemos enfim ver neste apólogo uma adição buñueliana à famosa obra de Thomas De
Quincey: Do assassinato considerado como uma das Belas Artes, caro aos surrealistas
de todos os matizes? Na dúvida, vamos nos ater às aparências, ou seja, às imagens,
amplamente fascinantes, embora sejam isentas do cinismo que um Hitchcock ou um
Stroheim pudessem ter-lhes imprimido. Mas deixemos a Buñuel seu universo próprio,
sobretudo quando temos a chance de encontrá-lo melhor “calçado” ( charpenté) do que
de hábito.Eu acabei de empregar o termo “ingênuo”. Não foi com má intenção. A
crueldade de nosso herói é a mesma das crianças que torturam um animal ou maltratam
um brinquedo: e, de fato, é exatamente sobre um brinquedo- um manequim- que esta
crueldade vai se exercer. Sadismo? Estamos a léguas disso. A morte ( lembrem-se da
fusão da boneca no forno) parece restituir a vida ao rosto morto: o olho brilha,
movimenta-se, a carne palpita, relaxa, à medida em que se decompõe, e percebemos
bem que, neste momento, Archibald, que possui o coração mais puro do que acreditara,
apaixona-se pela moça que servira de modelo à figura de cera. Da mesma forma, a face
“embonecada” da jovem noiva se animará por um segundo: quando o ex-amante
empunhar contra ela o revólver e fazer fogo...
Se insisto sobre esses detalhes, é porque busco sempre em Buñuel- cujos “dadas”
sociais ou filosóficos me incomodam frequentemente por seu caráter primário- o
momento onde o traço ultrapassa a intenção da mão que o delineia. Deplorei muito a
ausência destes momentos escolhidos em seus dois últimos filmes ( e sobretudo em Cela
s’apelle l’aurore), por não ter sido satisfeito para além de meus desejos. E isto na
medida em que a visão anterior e privada de Archibaldo havia dado justamente
fundamento às minhas exigências.
Não há sátira melhor do que a que se nutre da sobriedade de elementos ordinários. Clero
e polícia figuram em bom lugar na ação; o golpe lançado contra estes é adolescente, mas
vivo, elegante, sem precauções oratórias. Muito bem-vinda igualmente a caricatura dos
turistas americanos: nenhum ou quase nenhum exagero.
Prossigamos nos elogios. A arrogância um tanto risível dos personagens se acorda com
sua classe e meio social. Os efeitos mais preciosos, os gestos mais plasticamente
concertantes só participam discretamente deste estatismo, que não é em geral o menor
pecado de Buñuel. Assim como liberara o herói, o manequim libertou Buñuel de seu
complexo de imobilidade, vítima expiatória do crime de lesa-Majestade ao cinema, que
é o de conceber a beleza segundo as normas de Baudelaire.

É por este motivo que passarei rapidamente pelos méritos mais evidentes do filme, os
pictóricos. E no entanto, este décor moderno com seus brancos e negros untuosos, estes
bibelots barrocos, estas roupas sofisticadas, este magnífico parque do final do filme, são
em grande parte responsáveis pela fascinação exercida sobre nós por estes crimes
imaginários ou reais , luxuosos e cintilantes como uma vitrine de joalheria. Que
importa, afinal, a significação do símbolo? O que nos é dado a ver contenta
suficientemente um apetite de essência muito delicada para ser insalubre. Aí reside,
penso, a verdadeira moral da fábula.
Já devem ter adivinhado que, de todos os filmes, antigos ou modernos, de Buñuel,
Archibald de la Cruz é aquele que mais estimo, o mais prazeroso e bem acabado. Eu o
prefiro até mesmo a El, onde o ar que circulava não possuía esta limpidez cristalina. Ali,
o entomologista mascarava o poeta; percebia-se um certo desprezo pelo personagem.
Aqui, Buñuel é o cúmplice amável de seu amável herói, se não de intenção ao menos de
fato. E sabemos bem que, no cinema, não são as intenções que importam.
Eric Rohmer
Arts, outubro 1957
Tradução: Luiz Soares únior.

Uma brincadeira de crianças. Sobre Misterioso objeto ao meio-dia

Misterioso objeto ao meio-dia segue o percurso de uma equipe de cinema na Tailândia


que, a cada etapa de sua trajetória, solicita a anônimos para que improvisem uma
história. O ponto de partida da narrativa é dado pela primeira pessoa encontrada, uma
vendedora ambulante de peixes; em seguida, cada narrador amador é informado do
estado em que ficara a narrativa , e a continua à sua maneira. Dois regimes de imagens
se alternam no filme; o regime “documentário” dos habitantes das vilas em sua vida
cotidiana e filmados na iminência de improvisar seu segmento do conto; e um regime de
“ficção”, tradução imediata, com personagens, da narrativa que está sendo improvisada.
Misterioso objeto ao meio-dia é um filme alegre, que suscita um prazer lúdico e uma
fruição infantil do cinema: isto se dá por meio do jogo de pistas orquestrado pelo autor
entre documentário e ficção, entre imagem e som, entre o filme e sua fabricação.
Dentre as inumeráveis leituras possíveis do filme, escolhamos duas. Podemos marcar
uma cisão entre “Misterioso objeto” e “ao meio-dia”, e assim reproduzir a estrutura
clivada do filme. Como Eternamente sua e Mal tropical, ele é dividido em duas partes
bem desiguais: o conto e sua elaboração pelos habitantes das vilas, cujo fim é indicado
por um título em forma de créditos, e uma espécie de coda 1 , de apêndice sem intrigas,
delimitado e intitulado pelo sibilino carton “Ao meio-dia”. “Misterioso objeto” seria o
título da primeira parte, e teria duas significações. Ele pode designar o misterioso objeto
que uma narradora introduz no conto: uma bala que, ao cair do bolso do professor, se
transforma em um rapaz. O objeto misterioso é também o próprio conto, cadáver
requintado ( cadavre exquis) 2 de cinema, monstro estético produzido pelo encontro
sobre a mesa de montagem da narrativa oral tradicional, do teatro amador e do cinema
moderno. “Ao meio-dia” seria o título de um curto documentário sobre jogos infantis ao
meio-dia: algumas crianças jogam futebol da escola, outras se divertem com um
cachorro no quintal de casa, situado numa clareira da floresta.
Segunda leitura: o misterioso objeto ao meio-dia é o carrinho de plástico que as crianças
amarram no pescoço do cachorro, enquanto uma mulher s instiga a ir lavar as mãos
antes de almoçar. Colocar um brinquedo no pescoço de um cachorro é fazer uma versão
infantil do “cadavre exquis”: ligar dois elementos heterogêneos e ver o que produz o
seu encadeamento.
A coda documentária expõe a arte poética do filme ou, se preferirem, figura um auto-
retrato do cineasta enquanto criança que brinca. Primeiro ponto: as ficções afloram nos
terrenos baldios dos tempos mortos da vida cotidiana. Segundo ponto: fazer aflorar uma
ficção, consiste em fazer raccord entre fragmentos de vida que não se encadeiam, sem
procurar preencher os vazios. Terceiro ponto: inventar semelhantes histórias é um jogo
de crianças. O cinema de Weerarasethakul encontra sua fonte na memória da infância,
ou seja, num tempo onde a vida era apenas tempos mortos, onde o mundo não era ainda
o teatro saturado de nossas preocupações , mas uma caixa de brinquedos da qual
podíamos dispor livremente para ousar inventar colagens, inventar relações.
Weerasethakul não perdeu o fio deste tempo, e seu cinema no-lo oferece. Ele
surpreende nosso hábitos de cinéfilos adultos restituindo ao cinema a juventude
despreocupada de uma arte capaz de todas as hibridações: a iniciação amorosa toma
emprestado as rotas dos contos ancestrais ( Mal dos trópicos), desenhos desajeitados são
impressos na superfície narrativa de uma escapada amorosa ( Eternamente sua),
legendas permitem a macacos falarem, etc

Colocar um carrinho de plástico no pescoço de um cachorro é também fazer uma


montagem áudio-visual. A fuga amedrontada do animal, fonte do prazer infantil, é
causada menos pelo brinquedo do que pelo ruído que ele emite ao se arrastar e
perambular pelo chão.A invenção consiste em montar um som e uma imagem que a
priori não “vão bem” juntas, e ver o que produz a sua junção.
A montagem do som e da imagem é o gesto motor de um filme cujo fim consiste em
encadear o registro documentário de uma seqüência de improvisações orais e os
fragmentos “encenados” ( mis en scène) da ficção improvisada. Ao invés de
simplesmente justapor o documentário e a ficção, de fazê-los alternar numa lógica de
ilustração ou de revezamentos, Weerasethakul utiliza a disjunção entre imagem e som
para organizar a confusão entre estes dois registros. Várias vezes, o espectador não sabe
dizer se o que assiste é de caráter documental ou ficcional. Apenas o som pode guiá-lo...
ou perdê-lo.

Este poder do som se mostra mais evidente na primeira passagem à ficção. Depois do
carton “Era uma vez”, o filme começa com um longo travelling tomado do interior de
um carro em movimento. Esta abertura possui o valor de um programa estético e
dramático: ela coloca, ligando-os, as aventuras do conto oral e o princípio de disjunção
áudio-visual. O desfile contínuo da paisagem urbana é acompanhado pelo som fora de
campo do rádio do carro: sobre um fundo de canção pop sentimental, uma voz
masculina narra uma história de amor fracassado, depois recita uma mensagem
publicitária. Um outro homem toma a dianteira – adivinhamos, pela mudança no
registro da voz, que se trata do condutor do carro falando num auto-falante: “A cavala tá
chegando! Direto de Mae Khong! Cavala ao vapor e cavala salgada!” Nos fundos do
furgão está sentada uma mulher. Depois de alguns planos de diálogos entre os
vendedores e os camponeses, a vendedora de peixes, de frente para a câmera, começa a
falar de sua infância. É uma lembrança dolorosa. Pouco sensível à comoção da
narradora, o interlocutor fora de campo- compreenderemos mais tarde que se trata da
equipe de cinema encarregada de coletar os fragmentos do conto coletivo- pede-lhe para
contar uma outra história, “não importa qual história, um romance ou outra coisa”.
Aparentemente constrangida, a vendedora demora a continuar. Sem ruptura sonora,
sobre o fundo do mesmo som ambiente, a mudança de plano transporta-nos para o
interior de uma casa: um rapazinho está sentado diante de uma mesa, uma mulher olha
pela janela no plano de fundo. Depois de alguns segundos, ouvimos novamente a voz do
vendedor de peixes , ligeiramente abafada pela distância: “A cavala tá chegando! A
cavala de Mae Klong!” Enquanto a mulher deixa a janela para ficar próxima ao rapaz
sentado à mesa, o vendedor prossegue com seu discurso. Som e imagem parecem
sincrônicos, a continuidade sonora incita a interpretar a montagem-imagem no sentido
da continuidade: simplesmente passamos para o interior da casa perto da qual estacara o
vendedor de peixes, cuja voz entra pela janela, diante da qual se mantinha a mulher, sem
dúvida atraída pelo ruído do furgão. Até que ouvimos novamente a voz da vendedora:
“Digamos que havia uma casa. E nela um rapaz doente e uma professora”. O nível desta
voz surpreende: ela é mixada muito intensamente para estar vindo do exterior, do fora
de campo. O ponto de escuta é o mesmo que o do plano precedente: o interior do
furgão. As palavras da vendedora, ao redobrar o visível, modificam a posteriori a
compreensão da montagem e revelam a passagem, no corte, a um outro regime de
imagem. A impressão de continuidade era falsa: aqui começa a narrativa improvisada
do conto e, simultaneamente, sua encenação cinematográfica. O som não era sincrônico,
ele faz persistir, no fora de campo, o universo documentário sobre as imagens mudas da
ficção.
Ao superpor a captação documentária da improvisação oral e a recreação ficcional do
conto, Weerasethakul realiza realiza um fantasma de cinema e um sonho de criança:
aquele de um encadeamento imediato do visível sobre o oral, da imagem sobre a
palavra. A potência performática da palavra é atualizada na economia do filme pelo
poder do som sobre a imagem. Em várias ocasiões, a imagem é colocada em suspensão,
indeterminada, entre os dois regimes. Então, é o som que é encarregado , com um
retardo mais ou menos longo, de qualificar a imagem, de fazê-la se colocar de um lado
ou de outro da fronteira porosa entre ficção e documentário.
A disjunção áudio-visual abre assim um espaço comum aos dois regimes do filme. As
ficções não são concebidas ex nihilo em um espaço separado do mundo, mas são
tomadas pelas malhas da realidade cotidiana, à espreita de sua realização. O percurso da
equipe de cinema pela Tailândia age como um revelateur. A ficção do conto eclode
espontaneamente à sua passagem. Improvisar um conto parece então o gesto mais
natural do mundo: lançamo-nos nesta tarefa enquanto preparamos o jantar, depois o
vizinho se engaja no processo. A única condição a esta cristalização espontânea reside
na disponibilidade oferecida pelo tempo morto. É preciso saber “tomar/ dar um tempo”,
distanciar a trama da vida cotidiana, suspender as ocupações para nos tornarmos
disponíveis à potência ficcional que cada um carrega em si. Esta qualidade de presença
no mundo não é dada a qualquer um: os tailandeses anônimos que desfilam diante da
câmera impressionam pelo jogo que sabem introduzir nas engrenagens de suas vidas.
A passagem sem descontinuidade do documentário à ficção aparece explicitamente no
filme. As convenções de uso querem que o making of seja um objeto em separado,
filmado por um outro realizador, sob um outro ângulo, distinguido do filme por uma
espécie de imagem mais “docu”. Em um plano de Misterioso objeto, ficção e making of
da ficção se enlaçam em uma mesma duração, segundo o mesmo ponto de vista. A
criança extra-terrestre saída do carro está sentado em uma cadeira, outras pessoas no
chão. Um estratagema invisível de montagem faz desaparecer, depois reaparecer o
extra-terrestre. O professor, de pé, termina um monólogo com estas palavras: “Mas
bem, eu vou te contar esta história mais tarde”. Depois de alguns segundos, um rapaz
parcialmente sentado se levanta, sai do recinto por uma abertura à direita do campo,
reúne algumas folhas grampeadas, e entra novamente. O extra-terrestre subitamente se
dirige à câmera e pergunta: “você filmou mesmo? Foi bom, terminou?” Uma discussão
começa entre os atores e um homem fora do campo; quando ele entra no campo,
reconhecemos Weerasethakul. Nenhum “cut!” fora pronunciado para assinalar o fim da
tomada, a interrupção da ficção. A continuidade se apóia na retomada, depois da
passagem ao making of , do “efeito especial” utilizado alguns segundos antes na ficção.
Não é mais o personagem do extra-terrestre que desaparece, mas um simples ator- fôra
seu script que ele havia tomado entre as mãos durante os poucos segundos flutuantes
entre a ficção e o documentário. Neste plano, o jogo entre o som e a imagem é invertido
em relação à primeira passagem à ficção. É a imagem que produz a continuidade,
enquanto que a descontinuidade é produzida pela trilha sonora, pela passagem dos
atores do diálogo escrito à conversação livre com a equipe do filme. Mas é sempre o
som que vem suscitar a ambigüidade, qualificar uma imagem desdobrada, suspensa
entre a ficção e sua fabricação.
Walter Benjamin apresenta o “contador de histórias” como uma espécie em vias de
desaparição nos tempos do romance moderno e do cinema. O conto não é
tecnologicamente reprodutível; ele se transmite oralmente. Ao contrário do romancista,
recolhido em sua solidão para escrever, o contador conta histórias entre os outros
homens, sua narrativa não está separada de sua vida: “o que ele conta torna-se
experiência naqueles que escutam sua história”. Misterioso objeto prova que o cinema,
longe de desqualificar a forma oral de transmissão de experiências, constituída pelo
conto, pode, pelo contrário, prolongá-la, tomar por sua própria conta a tarefa de
encadear- uma história com outra, a ficção e a vida, a oralidade e as imagens. O filme de
Weerasethakul não cessa de encaixar os contos uns nos outros. O conto principal é
precedido de duas narrativas, uma escutada no rádio, a outra dita pela vendedora de
peixes. A criança que termina a história da professora e do extra-terrestre não pode se
impedir de implicá-la em um outro conto: uma história de tigre-feiticeiro, embrião de
Mal dos trópicos- filme cuja abertura poderia ser o fim de um conto sobre ao qual este
filme se liga...e assim sucessivamente, até o último encadeamento, o do carrinho no
pescoço do cão, ponto de partida possível para um outro conto. Emaranhado na trama
da vida cotidiana, dela se deslindando em direção ao maravilhoso para sem cessar
retomá-la, o cinema de Weerasethakul assemelha-se ao conto, tal como descrito por
Walter Benjamin: “é a memória que tece o fio que em definitivo forja todas as histórias.
Pois estas se ligam todas entre si, como os grandes contadores de histórias,
particularmente as Orientais, sempre se empenharam em sublinhar. Em todos eles vive
uma Scheherazade, para quem cada episódio de uma história evoca imediata e
irreversivelmente outra”.
Cyril Neyrat, Vertigo número 27 , revue de cinéma
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Notas:
1. Coda: Palavra italiana que designa o segmento com que se termina uma música.
2. Cadavre exquis: Jogo literário inventado pelos surrealistas que consiste na
composição de um texto ou desenho por várias pessoas, sem que nenhuma seja
informada do elemento trazido pelo colaborador precedente. Assim, no romance
coletivo “L’amiral flottant”, cujo primeiro capítulo foi escrito por Chesterton, nenhum
dos autores conhecia a continuação da história, e deve, segundo Michel Lebrun, se
empenhar a deslindar a situação problemática com a qual o predecessor concluíra o
capítulo precedente e, por seu turno, a complicar o máximo possível o presente capítulo,
a fim de colocar o próximo autor na mesma dificuldade de execução.

Lost Highway: o isolamento sensorial segundo Lynch


A leitura do roteiro de Lost highway, que acaba de ser lançado, é muito instrutiva.
Revela-nos que a versão final do filme de David Lynch é o resultado de um refinado
trabalho de cortes. Todas as seqüências com caráter explicativo foram excluídas. Todas
as junções narrativas foram cuidadosamente eliminadas. O filme ,é claro, ganhou em
potência elíptica. Esta “poda” narrativa lhe permitiu sobretudo atingir uma perturbadora
opacidade, que procede de uma série de golpes de força rítmicos absolutamente
envolventes. Deste ponto de vista, Lost highway é certamente um dos filmes
contemporâneos que mais suscitou interrogações da parte de um espectador
desorientado, e que busca se situar. Podemos assim presumir que Lynch projetou, com
este filme profundamente inovador, criar uma relação totalmente inédita com o
espectador.
Por um lado, o filme distribui uma multiplicidade de signos, de índices, de enigmas, de
lapsos que, por meio de um jogo de pistas, espelham uma dimensão ( doublure, dobra)
secreta da realidade; esta, tal qual um inconsciente muito ativo, se manifestaria
permanentemente de forma descontínua, e encobriria a vida com um leve véu paranóico.
É a função conspiradora e esotérica do roteiro. Tudo em Lost highway, aliás como
também em Twin Peaks, o filme e a série, remete a um complot inexprimível, feito de
premonições e de percepções extra-sensoriais, o que os aparenta tanto a uma certa
tendência do cinema moderno, a do sentido suspenso ( ver a recente programação da
Cinemateca Francesa em torno do tema da conspiração), quanto à lógica do romance-
folhetim, de que a série X Files ( exibida no M6) é um avatar absolutamente
apaixonante, e cuja estética deve muito à série Twin Peaks. Os signos flutuam e não
mais se ligam uns aos outros. A narrativa não está mais em primeiro plano, mas tem
essencialmente uma função rítmica ou climática. Notemos que esta forma de abstração
lírica não é absolutamente o apanágio de um cinema de autor, ou de artista, mas
encontra insuspeitáveis ressonâncias no cinema de ação. De The last action hero ( John
McTiernan) ao recente e curioso Au revoir à jamais ( Renny Harlin), passando por Die
Hard 3 ( McTiernan ainda) ou L’Effaceur ( Charles Russel), a distribuição de signos
enigmáticos e a ausência de uma ligação aparente entre eles tornou-se uma verdadeira
figura de estilo. A ausência de raccord no nível espacial encontra enfim sua
correspondência no nível mental. Em Lost Highway, o complot é sem fim, sem fundo, o
inimigo está no interior do país ou do cérebro, e as significações deliram. Pois toda a
arte de Lynch, que atinge seu auge em Lost Highway, consiste em fazer a América
delirar- seu puritanismo, suas soap-operas, suas perversões ocultas, seus complots- ou
seja, fazê-la sair de seus esconderijos.
Por outro lado, Lynch busca um contato hiper-sensorial com seu espectador; ele
trabalha no sentido de colocá-lo em um certo estado de receptividade, fazendo-o
simultaneamente se desorientar ( perdre pied) e encontrar uma nova relação com fluxos
de percepção excessivamente sutis, que se aparentam, é claro, aos que nos é possível
atingir através do uso de uma droga. É a função musical ou cerimonial da mise en
scéne. Há, deste ponto de vista, um evidente parentesco entre o cinema de Kenneth
Anger e o de David Lynch. Em ambos, o metteur en scéne é uma espécie de xamã, de
médium que busca suscitar o transe no espectador, com o objetivo de manter despertas
regiões anestesiadas de seu cérebro. Isto é particularmente verdadeiro no caso das cenas
de amor em Lost Highway, verdadeiras cerimônias inquietantes , e que fazem assomar
não apenas os fluxos eróticos mas cósmicos. A música, tanto em Anger quanto em
Lynch, desempenha também um papel fundamental. Anger aliás usou a canção Blue
velvet vários anos antes de Lynch. Em Lost highway, cada trecho musical, do genial
I’m deranged de Bowie a This magic moment de Lou Reed, passando pela sublime
Insensatez de Antonio Carlos Jobim, sem esquecer todas as intervenções de Trent
Raznor ( que já concebera a trilha sonora de Natural born killers de Oliver Stone),
funciona ao mesmo tempo como um comentário da seqüência correspondente e como
uma intensificação da ação que decorre. Lynch, com a cumplicidade de Badalamenti,
cria assim uma verdadeira narrativa musical paralela, com seus cuts brutais e suas
revoadas líricas. Assim como a música é absolutamente visual, a mise em scéne torna-se
musical. Desde Blue velvet, Lynch tem a tendência a fazer durar cada vez mais as
sequências, a estirá-las, a infundir-lhes uma metástase e a considerá-las como entidades
autônomas que são tratadas musicalmente. Em Lost highway, esta dimensão hipnótica e
musical da mise en scéne é de tal forma interna ao filme que dir-se-ia que a arte de
Lynch está às vezes mais próxima de certos músicos conceituais- como Brian Eno,
Tricky ou Bjork, que cria uma realidade musical fascinante por seu ultrapassamento das
contradições entre tecnologia e instrumentação tradicional- que do cinema.
No ponto de encontro de todas estas funções, há o filme, realidade em si que não possui
outro referente senão ele mesmo. Para compreender Lost highway, o pior lugar seria o
ocupado pelo espectador-detetive ( lugar de que os policiais no filme, sempre pasmos,
são os substitutos ideais), que desejaria a todo preço decifrar ou interpretar o filme
através de um discurso, um saber, uma estrutura unívoca, quer esta seja analítica,
policial, cinefílica, mística ou simplesmente filosófica, mas sempre exterior a este film-
boîte1. Não que este filme-máquina não possa acolher toda a espécie de significações ,
mas apenas para eletrizá-las e fazê-las girar; é absolutamente necessário entrar no filme
de Lynch como no interior de um organismo vivo, nele se abrigar, de habitá-lo e ser por
ele habitado, de assombrá-lo e ser assombrado por ele. A figura do anel de Moebius,
com suas duas faces que se voltam para si mesmas, evocada por Michel Chion em sua
excelente monografia sobre Lynch, jamais foi tão adequada do que quando aplicada a
Lost Highway. O jogo de dualidades, de ressonâncias, de ecos que constituem o próprio
fundo do filme não nos diz outra coisa. Tudo é duplo em Lost highway- os personagens,
as situações, os objetos-, e cada elemento só pode ser percebido em função de uma rede
de correspondências próprias ao filme. O espectador é tomado em um circuito
integrado, um círculo involutivo no interior do qual ele deve criar suas próprias
referências. Ainda mais que em Level 5, Lost highway talvez seja este puzzle, invocado
por Chris Marker, cujo desenho não remete mais a nenhum modelo, mas unicamente a
si.
O circuito temporal de Lost highwayw é muito estranho. Embora a idéia da narrativa
seja finalmente muito linear e suponha uma sucessão temporal cronológica, tudo se
passa como se as relações entre o passado, o presente e o futuro não obedecessem mais
a regras de subordinação. Sem revolucionar de maneira explícita a cronologia, Lynch
torna impossível a identificação do momento. A substituição de identidade entre Fred
Madison e Pete Dayton é o pivot do filme, mas sem seguida nada nos garante que o que
é situado cronologicamente depois não tenha se passado antes, pois o fim do filme
remete à sequência da abertura. Mais precisamente, o tempo da narrativa, em Lost
highway, constitui ainda um tempo perfeitamente interno a si mesmo, cujo desenrolar
obedece a regras que não tem nada em comum com as do tempo da crônica. É um
tempo espacializado. Como o Homem-Mistério, o tempo possui de alguma forma o dom
da ubiqüidade. Mas ele é fechado sobre si mesmo apenas em aparência, pois pode
permanentemente integrar informações que o fazem mudar de direção. Neste sentido, o
cineasta mais próximo de Lynch seria talvez o Bergman que, em meados dos anos 60,
forjou filmes-cérebro, cuja lógica própria é a de uma máquina produtora de imagens e
de um espiral de tempos internos a estas mesmas imagens. A aproximação não é
fortuita, já que Lynch é um grande admirador de Bergman, a tal ponto que o rosto do
Homem-Mistério em Lost Highway assemelha-se à máscara da Morte em Sétimo selo.
Dir-se-ia assim que se Twin Peaks era para Lynch um equivalente possível da Hora do
lobo, Lost highway é um pouco o seu Persona, por seu jogo sobre a dualidade e a
dissolução do tempo e da identidade que este jogo pressupõe. No mundo anglo-
saxônico, apenas Kubrick e Cronenber souberam criar cristais de tempo tão fascinantes.
2001 e Shining produziram em sua época o mesmo efeito de sideração e desorientação.
Videodrome e Crash igualmente. O precursor desta estruturação do tempo é,
evidentemente, Hitchcock que, com Vertigo, tinha criado uma linha temporal
perfeitamente autônoma, já fundada sobre a repetição e a dualidade. Mas Vertigo, que
claramente é a matriz do filme de Lynch ( que nos propõe uma versão invertida, na qual
a morena é frígida e a loira explosiva), como tantos outros, permanecia, apesar de sua
extraordinária potência poética, ainda ligado a uma cronologia muito tradicional.
Enquanto que Lost Highway, assim como Shining antes dele, ou Crash bem
recentemente, poderia ser visto como um filme-instalação, que nos contempla tanto
quanto é contemplado, que nos persegue tanto quanto nós o encaramos. Neste sentido, o
trabalho de Lynch é tão próximo de Hitchcock quanto de artistas contemporâneos como
Bill Viola ou Gary Hill. Ou mais exatamente: ele é uma releitura de Hitchcock no
tempo das instalações especulativas. . As câmeras-cassetes de vigilância em Lost
highway são como naves exploradoras, sondas de imagens que criam um horizonte
virtual, um pouco à maneira das instalações de Gary Hill. Em outros momentos, a
utilização da multi-projeção e da superimpressão evoca diretamente a arte de Bill Viola.
Lost highway é uma fita de sonhos, como a estrada perdida que vemos desfilar a toda
velocidade nos créditos, mas é uma fita que teria integrado, nos tempos do vídeo e da
eletrônica, os avanços e retrocessos rápidos. Assim, pode-se, a todo momento do filme,
entrarmos em contato com não importa qualquer outro instante do filme. Dom de
ubiqüidade, ainda e sempre...
Se o cinema de Lynch é abstrato, é à força de ser figurativo. Carregado de todas as
imagens americanas, das mais artísticas- o fascínio de Lynch por Edward Hopper não é
desmentido aqui- às mais triviais- a publicidade e, claro,a pornografia-, passando pela
fotografia, as séries televisivas, ou ainda algumas obras fulgurantes ( A morte num beijo
ou A marca da maldade, ou mesmo seus próprios filmes, Eraserhead e Blue Velvet, sem
esquecer todos os outros que foram citados). No entanto, Lost highway é o contrário de
um filme-citação. Longe do maneirismo ou da referência, dir-se-ia que Lynch integrou
todas estas imagens em um fundo indiferenciado que faz coexistirem múltiplas
espessuras, a fim de melhor fazer assomarem suas próprias figuras. A figuração, que é o
grande assunto do cinema americano ( ver Mars attacks! De Tim Burton, filme que tira
sua força de uma arte estritamente figurativa), toma em Lynch uma dimensão
particularmente saturada. Este excesso de figuração, cujo emblema mais intenso será o
personagem de Patrícia Arquette, leva à iconoclastia ( a desfiguração ou o
esfacelamento), que igualmente é ultrapassada em direção a uma abstração que passa
pela “descarga” de todas as figuras, e se aparenta muito nitidamente ao processo
cibernético de compressão de dados. Tendo assim realizado sua própria revolução, Lost
Highway pode desta maneira flutuar no éter, aberto a todas as virtualidades, máquina de
pensamento que marca a espantosa irrupção de um grande cinema figurativo-abstrato.
Thierry Jousse
Cahiers du Cinéma, número 511
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. Film boîte: Filme caixa, fechado em si mesmo, tendo a si mesmo como referente.

O esplendor na relva. Sobre Nouvelle Vague

Nouvelle vague ou o retorno de Godard sobre os espaços de uma história. Delon e seu
duplo em busca de sua identidade. Eu sou um Outro. Em Cannes e em qualquer outro
lugar, a natureza, o amor, o dinheiro, o encontro, o poder. Elle est retrouvée- Quoi?-
L’éternité.
Nouvelle vague. A ambição de Godard, confessada desde a primeira frase de Nouvelle
vague ( ou Vague Nouvelle) pela voz-off de Alain Delon, consiste hoje em escrever
uma narrativa. O que pressupõe uma história, uma trajetória, um modo de narração.
Diz-se repetidamente que Godard era incapaz de contar uma história, de manter a
distância da narrativa para se dar ao luxo de maravilhar-se. No entanto, talvez pela
primeira vez, ele consegue ganhar a aposta da história. O enunciado é aliás bastante
simples, límpido como a água do lago que Godard sente prazer em filmar. Basta
reportarmo-nos ao texto de apresentação que Godard se deu ao trabalho de escrever
( Cahiers, 431-432). Ao termo de uma dupla prova, um homem e uma mulher se
reconhecem. É uma história de duplos, de amor, de dinheiro, de ressurreição.
A verdadeira novidade de Nouvelle vague está no tempo. Tradicionalmente, o tempo de
um filme de Godard é de natureza intensiva, ou seja, jamais está ligado ao desenrolar da
fita da película durante a duração da projeção. É uma espécie de presente perpétuo que
não acumula uma energia cronológica, que é indivisível em passado, presente e futuro.
Pra usar uma metáfora matemática, trata-se de um tempo expresso
“compreensivamente” ( en compréhenson), ou seja, de um único jorro, em uma única
vez, e não em extensão, como o exigem as leis da narrativa; um tempo puramente
espacial, que não remete à “curva” ( courbe) , à parábola de uma história preexistente ao
filme. A inverso disto ou quase, Nouvelle vague nos dá a sensação de ser o primeiro
filme de Godard escrito, narrado no passado simples, o tempo da narrativa. Faulkner e
Chandler, abundantemente citados, são espécies de arquétipos ou modelos, os últimos
grandes escritores do esplendor romanesco. Chandler nos chama a atenção, por sua
presença virtual, para o fato de que toda história é policial, e que ela contém um
mistério em si mesma. Quanto às frases de Faulkner, com freqüência fazem alusões ao
ritmo das estações: “o versão estava desgovernado”, e sobretudo “Todos eles perfilados
sobre o fundo do verde luxuriante do verão,e o abrasamento real do outono e a ruína do
inverno, antes que a primavera florisse novamente” ( frase já citada em Grandeza e
decadência de um pequeno comércio de cinema). É sem dúvida inspirado por esta
referência que depois do primeiro afogamento, a primeira cisão da narrativa, Godard
filma o desenrolar das estações, a pura e simples passagem do tempo. Alguns planos da
Natureza- o sol, a chuva, o vento- bastam-lhe amplamente. Mas estes breves instantes
de suspensão criam um verdadeiro corte na narrativa. E, ainda à maneira de Faulkner,
Godard pode retomar a segunda onda ( vague) em curso ( Delon/Lennox já retornou,
dois dias depois), e entrar por refração no segundo tempo da narrativa para melhor
acompanhar a sua história. Em suma, reina em Nouvelle vague uma espécie de
fatalidade trágica que não havíamos sentido desde, digamos, Pierrot le fou. Não é por
nada. De onde vem esta história de um homem que retorna? Difícil de dizer. Sem
dúvida, não diretamente da literatura, como a de Prénom Carmen, mesmo se pensarmos
nas grande narrativas mitológicas de retorno à pátria, como a de Ulisses; da Bíblia
tampouco, como em Je vous salue Marie, mesmo se evidentemente trata-se aqui de
ressurreição e que não possamos nos impedir de entrever no personagem de
Delon/Lennox uma figura crística. Mais simplesmente, creio que esta história vem do
passado. Ela remonta lentamente à superfície para chegar até nós. Do passado do
próprio Godard, que não hesita a se referir diretamente ao mundo de sua infância,
mundo onde, como aqui, o dinheiro reinava sem divisões; mas também de um passado
mais indefinível, atravessado por memórias do cinema.
A imagem se encontra no passado, portanto. É este mesmo o tema do filme. É a história
de uma repetição, de uma imagem que volta, de uma imagem enterrada sob uma outra.
A escolha de Delon é aliás intimamente ligada às reminiscências, às harmonias que ele
contém e sugere. Durante o afogamento, é O sol por testemunha que ressurge e, face ao
personagem de Roger Lennox ( o do primeiro tempo), não podemos deixar de pensar no
garagista atordoado de Notre histoire ( Bertrand Blier), um filme que Godard confessa
amar bastante. O sentimento ambivalente do já-vivido domina Nouvelle vague. “A
lembrança é o único paraíso do qual não podemos ser expulsos. A lembrança é o único
inferno ao qual estamos condenados”, diz uma voz um tanto fúnebre. Tudo é duplo
como Delon e seu fantasma, que assombram a tela. A imagem é forçosamente virtual e
alojada em uma outra imagem. Aliás, a idéia de uma segunda chance, da “onda”
( vague) que retorna e que seleciona não nos deixa de lembrar do roteiro de Vertigo. Um
pouco à maneira de Scottie/Stewart, Alain Delon/Lennox busca fazer reviver uma
imagem atualizando-a, tentando modificar-lhe o fim e a destinação. Mas em Hitchcock,
o eterno retorno conduzia à morte, enquanto que em Godard, ele atinge, pelo contrágio,
o renascimento. Os dados são relançados. O tempo sai de sua garagem para partir
novamente, sobre novos trilhos. Foi dito aqui e ali que Nouvelle vague era um filme que
exalava a tristeza e a melancolia. Se há um poeta elegíaco em Godard, em particular no
simples sentimento da fuga do tempo, eu creio no entanto que Nouvelle vague é o filme
do renascimento, da ressurreição da imagem.
Como todo filme de Godard, Nouvelle vague propõe uma interrogação sobre a imagem.
Qual o seu status? Sua natureza? Qual o seu lugar? Em uma curta seqüência, Godard,
pedagógico, nos propõe um exemplo. Uma imagem: A neve sobre a água= o silêncio
sobre o silêncio. Este instantâneo joga ao menos sobre dois níveis. Primeiro enquanto
definição da imagem e de sua manifestação. A imagem é, em Nouvelle vague, o que
quer escapar à palavra, o que se situa para aquém do ato de nomeação, o que advém em
um movimento de suspensão que precede ao nome ( era já este o sentido de Prénom
Carmen). Res non verba, nos diz um intertítulo latino do filme- as coisas, não as
palavras. “A imagem é autista. Eu quero dizer que ela não fala. A imagem não diz
nada”, dizia Fernand Deligny ( Cahiers, número 428). Estas palavras do psiquiatra-
filósofo, Godard poderia fazer suas. Pois a imagem em Nouvelle vague luta para existir
mineral ou vegetativamente, como em um movimento de retorno às origens. Salvo que a
origem aqui não se situa no antes, mas no depois, reconquistada pelo cinema hoje. Os
planos de árvores ou cavalos, assim como os de Delon ou Domiziana Giordano, estão lá
ontologicamente. Não significam, eles se impõem.
O segundo nível é aquele da metáfora, ou mais exatamente da alegoria. Mas Godard
opera uma inversão da alegoria, enquanto figura literária. Não se trata da viagem do
abstrato em direção ao concreto, para a encarnação, o sentido tradicional da imagem de
que restavam, sem dúvida, traços nos equivalentes corpos-natureza de Je vous salue
Marie; aqui, trata-se do contrário, de ir do concreto para o abstrato. A neve sobre a água
produz o silêncio sobre o silêncio. A força de Nouvelle vague consiste em exprimir,
através da imagem de existências, puras essências. O amor, o dinheiro, o encontro, a
natureza, o poder. A imagem, seu segredo, é o segredo da própria essência. A árvore,
diante da qual se encontram a condessa Torlato-Favrini e Roger Lennox, torna-se
imediatamente a árvore do conhecimento (aquele diante do qual adquirimos
conhecimento, dixit Godard em um raccourci cujo segredo ele detém).
Quanto à esfera do dinheiro, é a que detém o papel mais explícito. Todos estes
personagens que gravitam em volutas e arabescos em torno do núcleo central do casal e
da natureza não exprimem nada além da natureza abstrata do poder econômico. Este
mundo das altas finanças, este concentrado da grande burguesia européia desempenha
provavelmente aí um papel duplo. Não podemos nos impedir de ver, uma vez mais, a
figuração literal do dinheiro que foi usado para fazer o filme. Contraditoriamente, pode-
se dizer que o filme existe ao mesmo tempo graças ao dinheiro e contra o dinheiro, em
um movimento simultâneo de corrupção e de construção. Mas a economia que preside à
história tornou-se puramente abstrata. O dinheiro tornou-se invisível, não é nada além
de um signo, e a economia nada além de linguagem. Não há mais valor de uso, mas
apenas valor de troca em um movimento de pura circulação não figurativa.
A alegoria invertida é um deslocamento. E o deslocamento, sob a forma de um
travelling lateral ou horizontal recorrentes, é a figura-mãe de Nouvelle vague, a que
estrutura o filme à maneira de um leitmotiv ou de um refrão. Para parafrasear a frase de
Rivarol, citada no filme, “Pois as paixões nos dilaceram, mas a sintaxe de Godard ( e do
cinema) é incorruptível”. O que nos garante este instante de pura felicidade onde, em
um duplo travelling invertido, Godard nos dá novamente uma definição instantânea do
cinema. Luzes que se apagam e que se acendem. Positivo e negativo. O cinema como
Noite Transfigurada. E é ainda o travelling que transmite o sentimento aquático da
fluidez, o movimento do fluxo e do refluxo, da onda que vai e retorna. É provavelmente
o que dá a Nouvelle vague seu caráter apaziguado, quase clássico, em todos os casos
profundamente decantado, ao contrário de Soigne ta droite, filme em crise que expõe
sobre a tela a profunda derrisão da imagem e sua incapacidade a existir ainda nos dias
de hoje. Parece-me que Nouvelle vague inaugura um período de verdadeira maturidade,
ao mesmo tempo em que assinala um novo começo na obra de Godard. Eis aí a segunda
chance.
Thierry Jousse
Cahiers du Cinéma, número 433, junho 1990.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Feuillade e seu duplo

Vemos imediatamente o que liga Judex- que se inscreve naturalmente no mundo


excessivamente reservado de Franju- à continuidade de uma obra de que começamos a
conhecer as referências e os pontos de apoio, como este bestiário favorito de pombas e
cães, estes malefícios noturnos e calmarias diurnas ( depois, o contrário), ou ainda esta
criatura mediúnica assumida por Edith Scob desde La téte contre les murs, de filme em
filme. Estabeleçamos antes que se trata em Judex do primeiro Franju “em
repouso”( passado este Pleins feux, irrealizado), digamos, de reconciliação. É fácil
constatar que toda sua obra gravita e se organiza a partir de duas linhas de força
essenciais, igualmente líricas, mas uma corresponde a um impulso de insurreição,
denunciador( Le Sang, Hotel, La tête, Thérèse), a outra a um movimento de nostalgia e
de apaziguamento ( Le Grand Méliès), a primeira veia ligando-se à representação de um
trágico-documentário ou transposto- mas presente, a outra procedendo antes de um
olhar menos crispado que tenta unificar , por intermédio assumido da arte ou de uma
reflexão sobre a arte, o passado ao presente. Em comum, uma atenção segura no sentido
de preservar e enriquecer uma eficácia didática de observação pela contribuição de uma
poética pessoal que refere, ao fim das contas, o lirismo da criação ao próprio
movimento desta criação.
Nesta ordem de idéias, Judex parece uma variação nova do fundador da Cinemateca
Francesa sobre o nascimento do cinema, uma meditação “romanceada” sobre Feuillade,
completando a meditação documentária sobre Méliès; seja porque, em ambos os
criadores, face a uma avant-garde que deve sua sobrevivência unicamente à História, se
conciliavam as aspirações da arte popular e os germes do cinema moderno, “Le Grand
Feuillade”, depois de “Le Grand Méliès”, constituíam ao mesmo tempo homenagem,
análise e crítica que são apenas três formas de amor: a exaltação do realismo onírico do
primeiro “prova” o cinema contra o onirismo realista do segundo ( e vice-versa), como a
ficção persegue a realidade, como as atualidades reconstituídas do mágico Méliès
julgavam e fundavam os marcos da autenticidade.
A atividade desacreditada do “remake” encontra portanto aqui uma justificação pouco
comum. “É preciso recompensar os plagiadores”, repete Jean Renoir, sempre razoável;
não que esta arte possa ser reduzida aos parâmetros da cópia e da imitação, pois nos
encontramos justamente nos antípodas da fraude e da facilidade. Mas seria divertido
imaginar o elogio sistemático da retomada ( reprise) , do elogio ou, segundo o caso, da
traição, da apropriação, da contradição. Que um Logan “desvie” Pagnol em proveito
próprio só depende de uma substituição, de qualquer forma legítima, de folclore. Mas
entre A cadela e Scarlet Street, ou A besta humana e Human desire ( ou ainda entre The
diary of a chambermaid e Le journal d’une femme de chambre), é com o decalque
impossível, com o confronto entre dois universos inassimiláveis ( e que, no entanto, se
roçam pela graça de um tema em comum, de um sub-reptício “a partir de”) que temos
de lidar, cada um dando a mais justa medida , à sua maneira, da irredutível do outro; o
jogo da restrição e da liberdade exposto à pureza mais imediatamente visível, mais
reconhecível de seu próprio mecanismo. Mas Franju-Feuillade é ainda outra coisa.
Seríamos tentados a dizer: como Picasso impondo a Courbet ou a Velásquez um
imperioso renascimento, soberbo ( mesmo que às custas de uma violação), renascimento
que os destina a uma modernidade conquistada pela segunda vez.
Violação e renascimento, mas também luta singular entre dois saberes totalitários, um
jogo de “quem perde ganha” invertido sem cessar que confirma uma certeza: os grandes
pintores foram ( são ainda) os primeiros depositários de suas construções teóricas. Eles
são raramente inocentes- ou o são em demasia, mas então se distanciam da pintura para
reencontrá-la em seu além ( Van Gogh) ou em seu aquém ( Rousseau). A fusão
contemporânea entre o saber e a inocência que assombra o artista se oculta em algum
lugar no secreto território das origens. Em Giotto, em Monteverdi. Com Feuillade
também.
Retorno às fontes, mas também através daquilo pelo qual as fontes permanecem vivas:
presentes. Compreende-se que um único espírito está em julgamento aqui ( un esprit
seul est en cause), e que Franju tenha sonhado com o Fantômas, e que a Judex seja
apenas reservado o anedótico. O essencial, e o que intensifica a dimensão da
“peregrinação” em direção às origens é a posição privilegiada de Feuillade, que
François Lacassin chama “o terceiro homem” ( depois de Lumière e Méliès), ao mesmo
tempo o último dos primitivos e o primeiro dos modernos. Judex, em oposição a tantos
filmes com referências ancoradas na vida ou na literatura, opõe um cinema referenciado
a si mesmo: às suas origens, a seus segredos ( nós o vimos), mas origens e segredos que
podem ser redescobertos menos através de hipotéticos mistérios de fabricação que pela
superposição, como que por surpresa, procurando esta inocência tão dificilmente
capturável, pois sempre comprometida pelos desvios impostos pela astúcia ou pelo
saber. Unicamente neste estágio encontra seu sentido esta reconciliação de que falamos
mais acima, já que a démarche de Franju não conseguiria ter evitado as armadilhas da
retórica se este não tivesse imposto à busca pelo cinema perdido a uma outra, menos
espetacular, mais apagada: o reencontro de uma infância que pressentimos ligada aos
sortilégios deste cinema. E da mesma forma com que Breton pode afirmar que é preciso
abandonar sua “infância” para saborear a de Rimbaud, foi preciso que o homem-Franju
se desse conta com precisão de emoções distantes no tempo para oferecer-lhes uma
outra espécie de metamorfoses.
Pois o que separa o Judex de 1916 do Judex de 1963 é, evidentemente, a distância de
uma mitologia “atual” e de seu reflexo historicizado, ou aquilo pelo qual a segunda se
esforça de reproduzir a primeira em seu duplo movimento de convenção e de convicção:
aqui emerge uma forma ( nostálgica) de crítica, e em primeiro lugar nas inevitáveis
modificações do roteiro inicial, desnudado de suas motivações psicológicas e de um
grande número de meandros explicativos. Retomando o velho mestre à sua conta e
risco, Franju vai se sobrepor ao espetáculo , e se abandonar a uma ironia de bom grado
solene. À simples cópia do estilo, ele reserva o destino de um “como se” cúmplice mas
um pouco distante, as entidades morais sendo abolidas sob um olhar poético, unitário,
em uma celebração plástica das aparências, espionadas, negadas, ressuscitadas, ou seja,
em um Parecer que não é mais da ordem do embelezamento, mas a própria estrutura do
filme; a redução da narrativa se efetua ao nível do signo ( o plano como aquilo que o
habita), mas fora de todo simbolismo, de toda metafísica; o signo existe unicamente em
razão de si, mas totalmente.
Primeiro nível: a constatação, o apelo ao resgate. Com Feuillade na cabeça,
evidentemente. No entanto, ainda mais Les vampires que Judex, realizado por questões
de comodidade. Vampires, serial altamente estimulante, evocado por blusas negras ou
pelo ritmo de uma certa java. Também temos Fantômes, que nos é engenhosamente
transferido aqui na figura de vizinhos cúmplices ( Diana Monti-Francine Bergé). Temos
ainda, para além de Feuillade, o acolhimento de todos os ancestrais; de Gasnier, para
irritar os fantasmas de Monsieur Gaumont, e de outros seriais esquecidos, além de
Lang: vejamos Judex, sua organização diabólica, seus homens de negro e seus mil olhos
que nos perseguem, embora as razões sejam diferentes, a partir de Mabuse ( ele tinha
direito, segundo Franju, “como precursor de uma moral autêntica, à estima
revolucionária”). Ou mesmo- por que não?-, de Griffith: em filigrana da candura de
Edith Scob, sempre ofertada à violência, aflora às vezes a vulnerabilidade dos sorrisos
constrangidos de Lillian Gish.

Desde a abertura da íris- primeira referência- sobre a inquietude do banqueiro Favraux,


este olho mágico que prefigura outros olhos, este olhar indiscreto e tenaz que vai
encadear a narrativa na mais ínfima de suas articulações estabelece seu poder sobre a
célula dramática originária, o plano, que tem aqui todas as suas virtudes restabelecidas.
O plano que, para Franju, já sabemos, é um vidro que se deve preencher- herança
expressionista, enquanto que, para nós”veristas”, ele se preenche muito bem sozinho: se
este aparente anacronismo confessa desde logo um pertencimento a um cinema dos
tempos fortes e da exuberância imagética, é porque o tema assim o exigia. Que importa
então ( ou antes: tanto melhor!) que Chaning Pollock seja um ator “inexpressivo”?, já
que é à sua capa negra de justiceiro, à sua destreza ou imobilidade no cadre que são
confiadas a função de exprimir o que sua máscara impassível recusa. Mas se as silhuetas
que assombram o filme participam de um mundo de sentimentos imediatamente
inteligíveis, as motivações convencionais dos personagens se prolongam numa espécie
de “profundidade de campo”sugerida que é a matéria de seus próprios sonhos: seria
injusto que o imaginário permanecesse unicamente reservado ao autor e não fosse, vez
ou outra, corromper a docilidade de suas criaturas. É paradoxalmente por este
estratagema ( ruse) que Franju, em um segundo estágio, recupera sua criação e restitui a
Judex, depois de tê-lo reconciliado com o cinema de seus pares- de onde este veio-, um
lugar no horizonte de suas obras. Eu quero falar aqui de Edith Scob, cujo papel consiste
justamente em relacionar a sucessão casual das partes a uma coerência lateral, a um
totalmente outro. Tão necessária quanto o fora Marlene para Sternberg ( embora mais
discretamente), ela tem por missão, desde sua entrada furtiva na igreja em La téte contre
les murs, criar unicamente por sua presença um frisson que não tem nada de cênico, e
estabelecer uma continuidade irreal que nenhuma anedota conseguiria perturbar: a
própria essência da poética de Franju ( seu emblema), reconduzida de ressurreição em
ressurreição, morta improvável, vivente incerta, móvel ideal a diferir os enigmas
sempre até a próxima vez.
A nudez final do plano da praia absorve o barroquismo dos décors anteriores em uma
nova expectativa: a última pomba se desgarra da mão do mágico, sem dúvida em
direção a uma outra noite, onde ela encontrará sua confidente favorita, prometida aos
ultrajes dos próximos malefícios.
Jean-André Fieschi.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Le plus-de-voir História(s) do cinema por Alain Badiou

De que se trata? Falando de seu afresco, que ele chama de emissões, e que nomeamos
como o “filme”, Godard monta a ficção de um arquivista, evoca Foucault, situa seu
empreendimento entre História e Idéia. Mas esta não é uma intenção derivada, uma
espécie de estrato suplementar, que se poderia integrar a tudo o que se profere a partir,
ou em torno, do homem com cigarro na boca e iluminado por uma fluorescente ( grande
artista-sábio, sob o ícone de Groucho Marx), homem este cujo retorno, com o clicar das
teclas de sua máquina de escrever, assinala , no “filme”, que todo este terror visual
intitulado História (s) do Cinema é a biografia intelectual de um único homem?

Ou ainda: a definição abstrata do cinema constitui o cruzamento entre uma imagem-


movimento e um real. É por meio deste cruzamento que o “filme” edifica sua matéria,
pelos artifícios maiores da montagem virtuose, da superposição de imagens, do
intervalo brusco entre o audível e o visível, do murmúrio que, para além das máximas,
não cessa de se fazer ouvir, como se toda verdade tivesse de ser laboriosamente
extirpada de um ruído de fundo compósito? Mas grandes conglomerados maciços
textuais, a imagem que pára sobre o rosto angelical de uma cartomante, tudo isto é um
obstáculo a esta idéia de um constante descruzamento e recruzamento ( dobrar e
redobrar, diria Deleuze) que só teria por objetivo ruminar a inalcançável justiça das
imagens, ou sua notória injustiça. Ao invés disso, vemos surgir a cesura entre um artista
exageradamente solitário e este enorme buraco negro do século que teve por nome
“Segunda Guerra Mundial”.
Ou ainda: se disse que o tema de Godard era a genealogia da potência do cinema. Mas
da mesma forma não é a sua “impotência” que está em questão? O impossível a se
filmar assombra Godard desde sempre; a fábrica, o sexo, o extermínio. De maneira que
este imenso palimpsesto, o “filme”, visaria a identificar, através dos recursos
acumulados da super-potência ( podemos fazer, deste conglomerado de imagens e de
sons, o que quisermos), o ponto de impotência que é, ao fim e ao cabo, todo o real do
cinema, e a razão última de sua dissipação. Daí também o status ambíguo dos livros,
que no “filme” Godard tira de sua biblioteca, cujos títulos ele cita, ou fragmentos. Ao
mesmo tempo o conglomerado da potência ( ou poder) incorpora os livros, os manobra,
os inscreve em sua polifonia, e por aqui e ali subordina sua força à força de que o
cinema é capaz- tanto por sua amplidão de recepção ( no cinema, conta-se por milhões,
no livro por milhares) quanto pela gravidade real da montagem das ficções ( l’Espoir, o
filme, contra l’Espoir, o livro 1); ao mesmo tempo, ele sugere que os livros permanecem
“em reserva”, que sua visibilidade é apenas aparente, e que esta disponibilidade em
retração do escrito talvez monte, em relação ao real, uma guarda mais segura do que a
garantida pelas imagens.

Ou ainda: uma totalização sinfônica. Uma “restituição integral do passado”, não pelos
meios de sua citação ou narração, mas por aqueles, combinados, de uma desarticulação
temática ( como o cinema cruza o caminho da guerra, do amor, a beleza das mulheres,
as revoluções, os massacres, as mitologias, as nações...?) e de uma contração local, que
reúne em um único ponto todas as interpretações disponíveis. Daí um procedimento de
composição que se poderia com justiça comparar ao de Mallarmé em Un coup de dés.
Alguns enunciados maiores, com freqüência apresentados na tela em letras maiúsculas (
HISTÓRIAS DO CINEMA, FATAL BELEZA, VOCÊS NÃO VIRAM NADA, UMA
ONDA NOVA, etc), induzem a subtextos, escoltados por um rumor quase inaudível, ou
metamorfoseados por motivos musicais, enquanto que as citações fílmicas são tratadas
como suportes de variações infinitas, por coloração, câmera lenta, superposições de
imagens, retrocedimento de imagens ( marche en arrière), cortes, incisões disparatadas,
recorrências, delimitações, círculos, mutilações visíveis. Aliás, construções secundárias
funcionam não “abaixo”dos enunciados cruciais, mas ao lado, como fortificações nuas.
Isto se dá particularmente no caso dos títulos dos filmes, que tecem pouco a pouco, à
parte de todo o resto, a lista nominal, impávida, inalterável, do que permanece.
Mas podemos também rever o “filme” a partir do que constitui exceção a este
tratamento emaranhado, ou o escalonamento simultâneo do múltiplo visível e audível
conduzido à superfície, como o oceano faz com o barco; não apenas a organização
semântica do “filme”, mas o conjunto das associações, virtualmente infinitas, que um
pensamento a todo instante móbil e vigilante descobre na menor afirmação, e que
simbolizam, no próprio nível dos enunciados fundamentais, as tentativas combinatórias
sobre as letras ou as palavras ( assim, a passagem de NOUVELLE VAGUE a UNE
VAGUE NOUVELLE, ou a injunção subjetiva TOI tirada da palavra HIS( TOI) RE,
sem contar as brincadeiras do tipo SI JE NE MABUSE, e vários outros anagramas).
Exceção: o doce terror de uma seqüência de O mensageiro do diabo 2, a das crianças na
barca, que deixam repousar sobre o rio noturno sem alteração nem corte. Ou o retorno
calculado da seqüência da metralhadora em Esperança. Ou determinado momento de
palavra nua carregado por um rosto. Ou determinada insistência musical, espécie de
graça de uma lentidão advinda ao tohu-bohu do visível. Ou mesmo a inserção fugaz de
uma cena pornográfica, cuja feiúra brutal se distingue como uma mancha sobre a seda.
E nos dizemos então que a extrema percuciência da montagem, que faz do “filme” o
equivalente de uma conversação multiforme agenciada por um Deus, só está lá para que
sejamos levados a desejar sua suspensão, como quando buscamos no mundo devastado
os signos esparsos, e quase imperceptíveis, de uma paz superior.
Ou ainda: sustentar o desafio desta outra arte do visível, a pintura. São incontáveis os
momentos no “filme” em que um rosto da Renascença vem espraiar sua cor nas
margens de uma seqüência, ou detrás de um fotograma em preto e branco. E aqui trata-
se da mesma ambigüidade relacionada ao livro. É preciso compreender- o que é sempre
designado pela abertura da imagem cinematográfica em direção ao esplendor pictórico,
como se este lhe fosse subjacente-, que o cinema continua a refletir, nisso fiel à pintura,
as bodas conflituosas entre a selvageria da história e a evidência corporal do amor? Uma
outra técnica mostra-se mais incerta, a que organiza o entrechoque extremamente
rápido, quase doloroso, entre uma imagem de cinema e um fragmento de pintura. Poder-
se-ia quase ver que o cinema, ao invés do herdeiro, seria antes o suplício da pintura. A
expressão de Malraux, “a Moeda do Absoluto”, é um dos sintagmas cruciais do “filme”.
Mas às vezes nos perguntamos se “moeda”, em se tratando do cinema, não é um termo
tão mais importante que “Absoluto”, a ponto de que, para termos um equivalente em
película a qualquer Adão e Eva de Michelangelo, seria necessária a poeira acumulada
por todos os rostos amantes de toda a breve história do cinema.
Ou ainda: a melancolia. Ela seria o verdadeiro tema de todo o “filme”. Sabemos em
demasia que o estilo de Godard, ao encurralar os outros e a si mesmo contra o muro,
obrigando-os à confissão de suas doentias incertezas, captando o fluxo mortal dos atos,
ou exibindo- no contraste entre sentenças definitivas ( seu lado moralista francês,
Chamfort, La Rochefoucauld) e a pobreza tocada pela graça da paisagem plana, ou da
mesa de ferro branco, o pouco de fé que ele se pode reservar a seus próprios impulsos- é
materialmente melancólico. No "filme", esta melancolia é complexa. O cinema é seu
suporte privilegiado, aquele que apenas em aparência é a arte de seu tempo.Um
enunciado do "filme" é: " O cinema, arte do século 19, carregou o século 20" ( a porté le
20e). Melancolia advinda da constatação de que sempre seja tarde demais, até porque o
cinema, sem dúvida, está morto, como o sugere a inscrição, quase terminal: " ERA O
CINEMA". O "filme" diz também: "Podemos fazer tudo, com exceção da história do
que fazemos". De maneira que esta "história(s) do cinema" , ou é impossível, ou atesta
que aquilo de que é testemunha, o "fazer" do cinema, é de hoje em diante forclos
( barrado, interdito). Godard, testemunha melancólica de uma certa abolição de seu
próprio "fazer artístico"? Contribuiria para isto que a "vague nouvelle" ( nova onda,
nova moda), cujo terno emblema é a imagem de Truffaut, seja designada como uma
espécie de "paraíso perdido" onde, guiados por Langlois ( ou seja, já guiados pelas
histórias do cinema), os jovens arrancavam uma arte à sua lenda acadêmica mortífera
para expô-la às intempéries do "lado de Fora" ( ressources du Dehors).
Mas também este paraíso, a ser visado segundo o monumento real da História, estava
envenenado, diz-nos Godard, pois pleno, até o limite de suas bordas, das “ilusões
perdidas”, da dor das revoluções, o obscuro comunismo, e finalmente o misto
irrepresentável ( ao qual Godard faz, em meu ponto de vista, demasiadas concessões à
la mode) dos tiranos simétricos, Hitler e Stalin. De maneira que a melancolia se volta
contra nós. Pois no poder de exprimir o que foi abolido, na abertura polifônica do
dossier completo do que se manteve interdito, no zelo empregado em complicar até o
infinito ( estilo barroco, à la Leibniz, as mônadas do cinema) as “dobras e rebordos” da
imagem e do real, na desmistificação do que toda impostura carrega consigo de verdade,
o artista desvela uma outra época, mesmo que ele não saiba de que época se trata. Um
pouco como na caso da saturação retrospectiva, igualmente marcada por um inimitável
tom melancólico, das sinfonias de Mahler, opera sem o saber a redefinição de
Schoenberg. O rosto fechado de Godard sob a lâmpada, que não é sem relação à
máscara de Mahler, é o rosto de um arqueólogo virtuose e triste? Ou aquele de um
homem que habita, com toda a sisudez puritana da Suíça, a mais essencial coragem, a
coragem de vencer a melancolia com suas próprias armas, investindo-a com o tom e o
estilo de uma promessa criptografada?
Ou ainda: o platonismo anárquico de Godard. É marcante que “no filme” toda imagem
seja o índex possível de uma outra imagem, e ao mesmo tempo o estofo de vários textos
simultâneos. A imagem jamais se refere a um referente, todo o mimetismo é excluído. A
imagem é antes a rachadura entre ela mesma e todo o povo que habita no visível e no
dizer. O “filme” é o movimento destas “rachaduras” ( écarts) superpostas, entrelaçadas.
O cinema tem por vocação, pronunciar-se, ligar, pôr em relação, o que usualmente não
mantém relação, precisamente pois ao cinema é dado aproximar, engendrar
consonâncias, tramar polifonicamente, pelo próprio meio de uma separação ( écart).
Assim, os Judeus e os Árabes ( ISRAEL E ISMAEL, intitula “o filme”), ou Judeus e
Alemães em uma única imagem, separada de si mesma: dois jovens soldados alemães
carregam o cadáver de um deportado. Mas então, a questão se torna: qual é a essência
da imagem, se ela não reproduz nada, mas se distancia sinteticamente de todas as outras,
em proveito de uma invisível justiça do visível? No fundo, a organização serial do
“filme”, sua esmagadora sutileza no detalhe, sua mobilidade tática, compõem os meios
de uma retomada da essência, a respeito da qual alguns planos suspensos ( uma mancha
azul no negro, um rosto de mulher lentamente deslocado, uma casa cujas janelas se
fecham...) destilam o símbolo, e cujos constantes recursos às inscrições abstratas são
como os sinais indicativos, ou os resumos que um Sócrates convertido à essencialidade
da imagem forneceria a seus jovens auditores, a quem tanta aparente sofística
confundem.
Obra-prima, sim, no sentido artesanal do termo: realizada e completa, solitária,
vagamente maníaca, tramando diversas perspectivas, sem hierarquia estabelecida.
Objeções? Sim, claro. Um certo peso, uma seriedade excessiva, nas bordas da ênfase,
bem assinalada no “filme” pela voz claudeliana de Alain Cuny. O cinema é convocado
diante do tribunal de sua responsabilidade histórica e de sua fatalidade artística. Isto
significa render-lhe justiça? Esta arte impura é a arte do sábado à noite, da família que
sai pra se divertir, dos adolescentes, dos gatos que se aninham sobre os muros. O
cinema oscila desde sempre entre o burlesco de cabaret e o titânico da feira. Ao mesmo
tempo o palhaço e o “homem mais forte do mundo”. Não seria necessário lhe dar o
crédito de que ele é, sobretudo, inocente? Como tudo o que fascina e reúne, ele foi
propagandista, é claro,e publicitário e estúpido. E fugidiamente incapaz, por uma
espécie de depuração interna de seus materiais indignos, da mais elevada destinação.
Seria preciso, em relação ao “filme”, onde como sempre em Godard se impõe a questão
deletéria da Salvação- o amor contra o Estado, a responsabilidade do visível contra os
cães exaustos da “comunicação”, o texto duro contra a imagem deliqüescente, etc...-
uma contra-história rarefeita, onde se veria que não é preciso fazer, sobre o cinema,
tantas história(s). Tão grande quanto seja, e tão imbricado em nossa época, ele se
enraíza sempre, esta arte da “comunhão” geral ( rassemblement general), no gosto
compartilhado por todas as classes, de todas as idades e de todas as ações, pelo
espetáculo de um homem poderoso que um vagabundo asperge de estrume, de um
imenso navio que flutua, de um monstro horroroso surgido das entranhas da terra, do
Bom que, em plena luz do Sol, depois de tantos desapontamentos, enfim mata o Mau,
do policial-detetive que agarra o ladrão-mafioso, dos estranhos costumes dos
estrangeiros, e de cavalos na planície, e de guerreiros fraternais, e do drama sentimental,
e da mulher nua estilhaçada pelo Amor. Os maiores artistas desta arte, Chaplin, ou
Murnau, apenas corresponderam 3 a esta origem vulgar, sem jamais- muito pelo
contrário- tentar aboli-la.
Se o cinema é idéia, visitação casual da idéia, é no sentido em que o velho Parmênides,
em Platão, exige do jovem Sócrates que ele admita, ao lado do Bem, do Justo, do
Verdadeiro, das idéias absolutamente ideais, algumas outras menos convencionais: a
idéia do Cabelo, ou a da Lama.
Alain Badiou, ( Le plus-de-voir) Art press, O século de Jean-Luc Godard, novembro
1998
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Notas:

1. L’Espoir ( A esperança), romance de André Malraux, aparecido em 1937, que evoca


as primeiras lutas da guerra civil espanhola, onde Malraux foi chefe de esquadrilha da
aviação estrangeira que foi para a Espanha, a fim de lutar pelo regime republicano.
Esperança foi filmado por Malraux, com o apoio do governo republicano; a filmagem,
começada em Barcelona em 1938, foi interrompida pelo avanço das tropas franquistas
do General Yague. Malraux só terminou o filme meses mais tarde, nos estúdios de
Joinville em Paris, intitulado então Sierra de Teruel. Apenas depois da Libertação o
filme, chamado finalmente A esperança, foi lançado na França.
2. Primeiro e último filme realizado por Charles Laughton em 1957.
3. No original, relever: assinalar, enfatizar, ou fazer jus a.

Jaime, Antonio Reis. Por Jean Louis Schefer

Em 1973, Antonio Reis consagra um filme à obra de desenhista de um camponês, Jaime


Fernandes, rodado nos locais de seu isolamento psiquiátrico. Em primeiro lugar, sou
atraído pela sutileza do propos, enfim distanciado desta odiosa apologia da loucura
como fonte ou causa do talento, cujo modelo tem conhecido, de Artaud a Rodez,
irresponsáveis e desastrosos elogios. Talvez consista nisto toda a dureza poética do
filme: é um poema do sofrimento, da nitidez ( netteté) da solidão.

Trata-se de um filme sobre uma obra, sobre suas condições, sua incompreensível
solidão? Sobre um mundo distante, a alma exilada que ronda em torno de um hospital
construído como uma arena de touros; o detalhe da água, da pedra, da vegetação, as
linhas das colinas que fecham este circo, onde todas as coisas forjam uma fortaleza de
solidão?

Documento extremamente singular, catálogo, comentário da obra de desenho de Jaime.


Mas do que exatamente se trata, e porque chamar isto de um filme? Como se desde o
jato de água animado da fonte arredondada, centro extraordinariamente deslocado,
como um signo de luxo ou de piedade neste hospital rude, pobre, expondo brutalmente a
falta de dinheiro, a ausência de linguagem, de intimidade, de comunidade; como se
todas as coisas fossem postas à distância deste espelho de água e do balbucio desta
fonte. Se refletirmos bem, esta que jorra, recortada, retomando desesperadamente sua
coluna de influxo é aqui a única imagem da vida, e a única palavra que jorra de um
corpo. Aprisionada em seu espelho redondo, não está ao alcance da mão, frágil,
intocável, perpétua e dura; ela fala, mas é como a haste líquida postada no centro desta
arena trágica.
Trágica? Por que este rigor, esta inteligência sensível e implacável do que é uma coisa e
do que é um homem feito coisa, ou seja, privado de todo uso de si mesmo e dos outros -
dos homens ancorados, por exemplo, como galinhas sobre um poleiro de madeira, ao
longo dos muros-? Por que Antonio Reis, que maneja como nenhum outro pintor hoje
ao próximo e ao distante, a sombra e a luz ( e até mesmo num quarto de hospital, o
encontro casual de um guarda-chuva e de uma máquina de costura), por que e em nome
de que signo de desesperança e de vaidade do movimento e das aparências, por que ele
nos mostra a água? Trata-se de uma coisa que, tal como este coração gélido e este
centro líquido através do qual o Sigismundo de Calderón, aprisionado em sua torre,
transforma na metáfora de seu sofrimento e de seu desespero por não ser adorável?

O que significa então este mundo percorrido em compasso, este passeio dos olhos sobre
a linha das colinas, a vegetação espessa, a água do riacho que corre sobre as pedras, o
refeitório camponês, o dormitório silencioso e que se retrai sobre uma série de desenhos
de Jaime? Cabeças vagamente aparentadas a perfis de Brauner, gatos ou animais,
arredondados, dorsos musculosos, pêlos serrados como bolotas de lã, cuja silhueta faz
aparecer sobre suas cabeças a imobilidade e a fixidez de um olho egípcio.

Um filme de Antonio Reis? Admirável poema, feito de deslocamentos de imagens e de


coisas, deslocamentos efetuados sobre o que resta. O que resta não é a causa do que
parece concluir a obra desenhada de Jaime. Todas as coisas mostradas são como pedras
semeadas por uma criança perdida, não os marcos de seu caminho de retorno mas os
signos traçados, semeados de seu abandono. E até mesmo o olho vívido, móvel, úmido
da cabra, enclausurada numa espécie de tricot feito da lã de seus pêlos. Extraordinária
inteligência do desespero e do quimérico que presidem aos jogos das crianças. É o que
Paracelsus nomeava a prima matéria: “Ela é visível e invisível, e as crianças jogam com
ela na rua”.
O que constitui este filme é coisa muito distinta de uma memória ou progressão de
imagens, ou mesmo este perpétuo desenvolvimento de encadeamentos fatais de ações
humanas que conduzem ao túmulo, às bordas de um abismo ou aos limites de uma terra
habitada onde cessam ( em todo filme) as ações, as palavras e até mesmo a possibilidade
de sugestão das imagens.
O que este filme mostra com força ( a força das coisas conjuntas, como paisagem,
interior, décor) não é nem um processo, nem uma explicação ou denunciação do sistema
carcerário do hospital; as coisas que se sucedem como imagens ( o plano vazio, a fonte,
a taça e sua colher, a máquina de costura, o guarda-chuva, os homens e suas sombras,a
pobreza do hospital e da paisagem) são encadeadas sem causa. Todas constituem coisas
sem ação; isoladas como objetos encontrados ao acaso; se os filme as encadeia ou
enumera, elas se adicionam em uma soma misteriosa da qual não resultam estes corpos
negros, cerrados, duros, compactos, e no entanto de uma armação tecida sem falhas, os
estranhos animais de Jaime, ou gatos advindos de um outro mundo, cujas fronteiras eles
parecem guardar.
Pois é preciso velar por. O que faz aqui Antonio Reis? Ele não explica uma obra; ele
ilumina um pouco mais, por uma extraordinária contenção de seu tema ( algo assim
como um deserto) a magia e ambigüidade do cinema. Capto rapidamente que esta
câmera que estreita o real possui, no próprio movimento de seu cadre, na mobilidade
flutuante de seus travellings em diagonal ( os corpos das pedras, o fluxo da água, o
roçar das ervas), neste círculo insensível que limita este mundo a um curto horizonte,
delineando-se sinuoso sobre o dorso das colinas, integrado ao jato de água tremulante
da fonte como à ponta de um compasso; compreendo que esta câmera se apossa dos
corpos das coisas em seu abandono de objetos; a espécie de planalto desértico, de que
estes corpos constituem a paisagem e a população, é um mundo do qual cada parte
perdeu seu corpo; um mundo de metáforas errantes.
Não concordo que Antonio Reis filme ou fotografe naturezas-mortas (e, no entanto, ele
o faz melhor que ninguém), mas que todas as partes deste mundo estão ao mesmo
tempo isoladas e solidárias: que estes extraordinários portraits de gatos foram também
passagens de silhuetas estendidas sobre os lençóis do hospital lançados ao vento, que
estes animais ou estes homens, guardiões de um mundo desconhecido- e desconhecido
deles mesmos- eram também estes dois ou três homens em pé, dançando num pé
apoiado sobre o outro, alinhados sobre um banco de madeira como galinhas sobre um
poleiro, e cujas sombras dançavam, balouçavam, se imprimiam apenas por um instante
como um afresco provisório sobre a superfície côncava do árido branco do muro do
hospital. O poleiro das sombras, a única galeria desta arena no centro da qual apenas um
jorro de água se eleva perpetuamente, se estira para o céu e vacila indefinidamente,
como o único relógio no coração deste mundo feito de círculos acumulados e sobre os
muros sobre os quais estes se aninham, como as sombras dos homens arqueados ou suas
figuras imóveis, os magníficos guardiões do Desconhecido a céu aberto.
Também não faço idéia de como esta pura obra-prima perpassa pelos objetos como um
sopro desenfreado de viração; o que sabemos desde a infância: as coisas, os objetos, as
distâncias que os separam não são feitos para nós. Estes corpos abandonados são
metáforas vagabundas: foram o corpo de nossa solidão.

Jean Louis Schefer, Revista Cinémathèque, número 13, páginas 4-7. Primavera de 1998.
Tradução: Luiz Soares Júnior

Luz branca. Sobre o cinema de Jean-Claude Rousseau.

No primeiro plano do primeiro filme: o nome de um vilarejo sobre um mapa: Le Blanc.


É uma direção a seguir para cada filme que virá, uma orientação a manter. É isto o que a
jovem contempla pela janela, o imóvel branco diante dela; o cineasta solitário detrás de
sua câmera ( primeiro super 8, depois digital), é isto o que ele olha, o branco, as coisas
que retém a luz, o acontecimento sem limites e que, quando chega, se chegar, excede
todo cadre: um para além da janela, para além do plano. Todas as janelas da obra de
Jean-Claude Rousseau, e há muitas em seus filmes, contém esta tensão que se
encaminha a este além, que podemos apenas indicar, mas nunca absolutamente nomear (
daí o fato de que a linguagem, de um filme a outro, se reduza a conversações de tropeço,
insignificantes); todas nos orientam para o evento que chega, que acaba talvez por vir às
custas do tempo, da duração. Assim, um dos mais belos planos de toda a obra é, em
Keep in touch, aquele dos patinadores sombrios sobre a superfície branca do gelo: uma
longa agitação do negro sobre “ O Branco”, um certo estado da presença e nada mais.
Este é o caminho único e sempre recomeçado deste cineasta essencial. Um caminho
aliás paradoxal, uma imobilidade de trajetória em geral, onde os quartos de hotel, uns
após os outros, de Venise n’existe pas a Lettre à Roberto, valem como indicações de
deslocamento. Deslocamo-nos, e agora esperamos. Este “esperamos” é, claro, o próprio
cineasta, que se filma à vontade, com freqüência de costas, mas trata-se de qualquer um
1 também: um homem médio, indiferente, sem qualidades, um funcionário de si mesmo,
ocupando este lugar ( ele mesmo) como uma profissão que se exerce, um dever, como
uma folha que folheamos indiferentemente num magazine. Jean-Claude Rousseau
continua uma certa linhagem de herói da “desaparição” 2, que olha pela janela, e assim
vai: fora, há um mundo que, às vezes, por um milagre, é branco ou luminoso, e portanto
eu escrevo ( eu filmo) que existe um mundo às vezes branco: esta é a razão de tantas
folhas virgem que assombram seus filmes, estas extensões de neve em Keep in touch,
estes pedaços de bobinas super 8 que constituem refrações claras no negro, este caderno
vazio de Contretemps. E também estes planos inumeráveis e repetidos que filmam a
passagem do tempo como uma pura aventura da luz. Isto quer dizer que o mundo para
Rousseau, o mundo presente, carnal, real, não possui interesse ou sentido? Claro que
não. O mundo real possui um sentido, justamente.
O mundo real também designa uma direção: daquilo que se ausenta, que buscamos
invariável, infatigavelmente à janela. Desejo ou Eros são os nomes desta ausência, desta
presença ainda a conquistar, a possuir. Desejo vem do latim desiderare, literalmente
“cessar de ver o astro”. Cada filme de Rousseau é distendido em direção à janela como
um empregado espera que as horas passem, uma mulher que os homens voltem, como
um sentinela espreita as estrelas. Cada filme põe uma questão polimorfa: onde está o
astro? Onde, tua voz ( a do destinatário epistolar, por exemplo, que La valée close não
nos deixa ouvir)? Onde, teu corpo? Teu rosto? Onde está o teu rosto? Pois Rousseau
não possui fascínio distinto do que entretinha Simone Weil; ele faz de seus filmes a
experiência de uma vida radical, ou antes, a experiência radical de viver assombrado
pelo interesse constante pela “graça”, ou seja, do dom incompreensível daquilo que nos
falta. Os filmes dizem todos a mesma coisa, rondam sempre em torno desta mesma
questão do lugar inencontrável. “Onde?” Sem dúvida, certos filmes ( Jeune femme à la
fenêtre lisant une lettre ou Les Antiquittés de Rome) propõem antes uma resposta
espacial: são homenagens à geometria e às formas abstratas, constroem uma localidade
de linhas para a chegada do acontecimento ( eis o porque do mapa geográfico que abre a
obra). Outros ( Vénise n’existe pas, Keep in touch, ou Juste avant l’orage) buscam antes
a resposta no lento recolhimento da contemplação: barcos que passam sobre a laguna,
variações da luz, lentidão de uma refeição, patas de pássaros pousadas sobre a neve: a
questão “onde?” se experimenta agora no desafio de permanecer ali, a conservar sua
coragem de permanecer.
É uma dicotomia um pouco especiosa, pois evidentemente existe tempo no espaço e
inversamente, mas enfim, é uma forma cômoda de traçar as linhas de tensão dos filmes,
de classificá-los segundo certas lógicas de construção.
Depois chega Clément, o bem nomeado. Clément é o herói de um dos últimos filmes
( uma outra maravilha) de Rousseau: Faibles amusements. Ele encarna, pela primeira
vez, o nome, o rosto e o corpo do desejo. Embora o filme conserve uma certa
ambigüidade voluntária ( o cineasta e o herói compartilham o mesmo quarto, o mesmo
leito?), fica claro, no entanto, em um plano magnífico, que eles não compartilham o
mesmo olhar: um ( Rousseau), sempre postado em sua invariável janela, à espera do que
ele se priva de ver; o outro ( Clément), do lado de fora, no balcão, tão longe, tão
próximo. Esta irrupção de um rosto preciso muda portanto o caráter do dom, mas não
cura a ausência.
Certo, temos um avanço, um passo para, e Faibles amusements é o primeiro filme onde
Rousseau filma seu próprio corpo em deslocamento ( no caso, num barco), ao invés de
filmar de costas os signos do deslocamento- carro, caminho, barco, hotel, etc. Um
passo, portanto, foi dado: a graça tornou-se palpável: e daí? é preciso ainda saltar
através da janela, é preciso ainda saltar.
Stéphane Bouquet, junho 2005.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. No texto original: On, c’est le cinéaste certes (...) mais c’est “on” aussi bien. On é um
pronome de indeterminação em francês que se refere ( ou refere) a qualquer ( um?), a
nenhuma pessoa ( pronominal) em específico. Rousseau filma Rousseau, mas o filma
como alguém que pertence ao horizonte indeterminado, movediço e nebuloso do on:
como um qualquer.
2. effacement: apagamento ( de traço), desaparecimento, desaparição

Vigília fúnebre: O funeral, de Abel Ferrara

Ao longo de filmes que se sucedem em uma cadência cada vez mais desenfreada, Abel
Ferrara acabou por traçar um território quase autônomo, uma sorte de primado no
interior do qual ele parece ter encontrado hoje uma liberdade e uma flexibilidade
absolutas. Se este caminho aponta para a Europa, único território onde seus filmes são
realmente vistos e levados em consideração, este não é menos solidamente ligado ao
cinema americano. Com The funeral, Ferra assina um grande filme crepuscular em
torno da Máfia, cujas peças chaves já nos foram dadas por obras maiores como as de
Coppola ( O poderoso chefão), Leone ( Era uma vez na América) e De Palma ( Os
intocáveis). O que de saída singulariza The funeral em relação a seus ilustres
predecessores é sua secura, sua brevidade ( 1h39), ali onde Leone, Coppola e De Palma
tinham optado por uma forma bem mais ampla e sinfônica. O funeral é antes uma
sonata; a narrativa se concentra sobre uma única noite ( o tempo de um velório), a forma
é de uma grande concisão ( planos médios, muito próximos aos corpos, curtas focais e
muito pouca profundidade). O filme não restitui um mundo, mas antes o movimento de
uma ação, captada de forma bem concentrada, o mais próximo possível de seu centro
energético. Este movimento é o que conduzirá ao apocalipse de uma família, da
primeira morte ao genocídio coletivo, durante os anos 30, no meio da Máfia.
A grande força de Ferra como cineasta consiste em saber controlar as “pequenas
formas” e de manter uma vivacidade própria ao filme B. De fato, podemos distinguir
hoje dois Ferrara: o cineasta americano saído do cinema de gênero, de um grande rigor
formal, que trata sua matéria de forma sempre frontal e incisiva, e um Ferrara-autor,
cuja tendência autorista apareceu de forma cada vez mais clara deste O rei de Nova
York, culminou com Olhos de serpente e parece bem precisamente ligada ao autor ( de
seus roteiros): Nicholas St. John. Este Ferrara, metafísico de uma religiosidade
atormentada, cujas narrativas se aparentam a alegorias, é cada vez mais identificável,
como se os últimos filmes do cineasta explicassem mais claramente o conteúdo mais
informal e iconoclasta dos primeiros ( rever o incrível Mrs. 45, anjo da vingança). Mas
esta inflação do significado é sempre suportada por uma mise en scéne concreta, uma
energia de cineasta que filma tudo como se pertencesse à matéria viva, incendiária,
inclusive a palavra, em seus transbordamentos “logorréicos” ( The addiction, onde
longas digressões filosóficas não valem por seu sentido, mas por sua capacidade em se
propagar, como em um dripping). O que interessa em O funeral é, portanto, menos seu
conteúdo explícito- o esboço de uma reflexão sobre o bem e o mal, sobre a
responsabilidade ( o personagem de Christopher Walken é confrontado a uma série de
“casos de consciência”), o retrato de uma América tomada entre o poder subterrâneo da
América e o contra-poder em expansão do comunismo ( paralelo que, é preciso dizer,
logo cai por terra)- que a forma pela qual tudo isto se encarna na tela. Pois mesmo se se
fala cada vez mais nos filmes de Ferrara, seu cinema no fundo permanece muito pouco
discursivo. As demonstrações são sempre incoerentes, inacabadas, transbordadas por
uma energia insensata, a dos fluxos de violência e dos processos de destruição, único
verdadeiro centro palpitante de seus filmes.
O filme é verdadeiramente fundado sobre o princípio da cena. Cada cena é quase tratada
como uma totalidade, e reproduz um mesmo tema: o do crescendo. Os personagens
aparecem, começam a se falar de forma bem civilizada, depois a interlocução se
degenera e chega a um confronto quase físico. Repetindo este princípio ao longo de
todo o filme, Ferrara demonstra muita invenção. A briga entre os dois irmãos ( Chris
Penn e Vincent Gallo) em plena noite, parasitada pela intervenção da esposa, que se
mistura ao bate-boca ( Isabela Rossellini), impressiona pela virtuosidade de que faz
prova Ferrara ao fazer circular seus atores em um plano-sequência, a fazê-los entrar e
sair do campo, que evoca a filmagem de um match de boxe filmado ao vivo, no qual o
árbitro também levaria socos. Mais adiante, uma outra cena de conflito impressiona, ao
contrário, pelo minimalismo de sua filmagem. Chez ( Chris Penn) entra em casa, ordena
a sua mulher ( sempre la Rossellini, bem maltratada pelo filme) que ela tire a roupa para
transar com ele, mas finalmente explode em soluços e se desalinha em palavras de
expiação. Toda a seqüência é filmada sobre o rosto de Isabela Rossellini, primeiro
captada em sua expressão de terror, face contrita de vítima sacrificial que pouco a pouco
se torna o rosto de uma mãe consoladora, que dispensa apaziguamento ( uma espécie de
Virgem com a criança). O melhor do filme está na forma em produzir clímax, e os
clímax coincidem sempre com a emergência de uma força primitiva que ultrapassa os
personagens, uma força quase animal. Já era o caso em The addiction, quando os
convidados de um encontro universitário se metamorfoseavam em uma horda de bichos
ululantes, avançando sobre os outros convivas para os sangrar, ou em Body snatchers,
quando a aparência humana dos extra-terrestres era destruída sob o impulso de um grito
monstruoso que lhes deformava o rosto. Este grito é aquele lançado pelo irmão mais
bruto (sempre Chris Penn, absolutamente formidável), quando descobre o cadáver de
seu irmão e urra de dor, um grito inumano, que entra em discórdia com a ordenação
cuidadosamente ritualizada do funeral ( as flores dispostas, o irmão mais velho, que
organiza tudo como um metteur en scéne, as lágrimas bem teatrais das mulheres, postas
em cena como um coro de carpideiras). Este grito, ou quase o mesmo grito, nós
ouviremos de novo mais tarde, quando Ghouly dorme com uma prostituta. No momento
do orgasmo, ele lança um grito amplamente mais violento do que estamos acostumados
a ouvir nas cenas de sexo no cinema ( inclusive o cinema pornô, onde o orgasmo é com
freqüência sussurrado), o que leva sua amiga a comentar “Realmente, tu não passas de
um porco”. Nestes momentos, quando o homem torna-se novamente, em uma
fulminação, um animal, tocamos no nervo central do cinema de Ferrara. Aí também o
filme lança a descarga de uma energia bruta, espasmódica, irredutível a todo discurso, e
cujas chamas de glosa religioso-metafísica que vicejam aqui e ali não conseguem
esgotar.
O perigo de um cinema fundado sobre a fulguração e o clímax é, evidentemente, ter
dificuldade em manter uma narrativa. De fato, Ferrara não é um grande contador de
histórias. As articulações de suas narrativas são sempre frágeis. Este “relaxamento”
narrativo já produziu formas fortes ( a indolência errática de Bad lieutenant). Aqui, o
classicismo formal do filme, sua referência esmagadora ao teatro trágico ( todas as
ações se voltam para um único lugar- o quarto do morto, todos os flash-backs se
articulam em torno de uma unidade de tempo- a duração do velório) nos faz lamentar
certas fraquezas da narrativa ( Christopher Walken desmascarando o assassino de seu
irmão é certamente algo “feito nas coxas”, certas pistas narrativas são deixadas no meio
do caminho...). Mas em seus momentos mais inspirados, O funeral consegue “contar”
de forma freqüentemente a não se apoiar nas muletas da narração clássica. As cenas
finais, por exemplo, se encadeiam como que ao apelo da inspiração, um plano
suscitando outro segundo uma lógica puramente poética. Tiros circulam de um flash-
back a outro; passamos de forma abrupta da execução do criminoso por Ray ao seu
enterro por Chez, sem nenhuma ligação. Em duas panorâmicas, passamos da terra onde
é enterrada sumariamente a vítima de Ray ao céu, depois do céu à casa da família.
Aberto em uma sala obscura ( de cinema) onde se projeta um filme noir ( com
Humphrey Bogart), o filme trama uma tessitura de trevas que conduz à tela negra final,
onde o espectador compartilha o ponto de vista do cadáver sobre o qual se fecha o
túmulo. A fotografia de Ken Kelsch ( a quem se deve o belo preto e branco de The
addiction) nos dá admiravelmente esta sensação de um mundo encoberto pela noite e
pelas sombras, como se o filme inteiro portasse luto. Nesta evocação das forças
invisíveis que circulam de forma subterrânea, a energia do cinema de Ferrara encontra
seu regime de expressão ideal. Se a cena de violência final é tão impressionante, é
justamente por advir como uma erupção, sem ter sido preparada de antemão, como se
tomasse o filme de assalto. É esta tendência ao happening que dá todo o valor ao cinema
de Ferrara, e particularmente a O funeral. Então, mesmo que sua temática pessoal se
torne quase identificável em demasia, Ferra consegue sempre surpreender seu
espectador, lançando-lhe upercuts que o deixam KO.1
Jean-Marc Lalanne, Cahiers 508
Tradução: Luiz Soares Júnior
1. KO: Em artes marciais, seria o nocaute.

O coração é um caçador solitário: O cinema de Gérard Blain.

Para analisar o cinema de Blain, é preciso partir do que, deixando sempre o espectador
em seu lugar, se impõem à primeira vista em seu cinema as grandes oposições que
estruturam uma obra de uma coerência extrema de estilo e tema: amigo/inimigo,
proprietário/possuído, aquele que olha/aquele que é olhado, marginalidade/norma. É
preciso falarmos antes de tudo do signo distintivo fundamental deste cinema, a
frontalidade, imperativo estilístico herdado por Blain de seu mestre Robert Bresson, e
ao qual todos os seus filmes se curvam: Les amis ( 1971), Le Pélican ( 1973), Um
enfant dans la foule ( 1976), Um second souffle ( 1977), Le rebelle ( 1980), Pierre et
Djemila ( 1986), Jusqu’au bout de la nuit ( 1995). A frontalidade exprime
simultaneamente um duplo movimento, de ataque e de retração face ao mundo. Por um
lado a vontade, raramente dita mas claramente mostrada, de atacar ( de olhar face a face,
de lhe penetrar), e por outro o cuidado prudente de impor a si mesmo uma distância de
segurança, um limiar a não ser ultrapassado. O mundo se deixa apreender antes de tudo
pelo olhar, este às vezes fazendo-se contemplativo, na justa medida da distância que nos
separa do mundo. Quer seja um revoltado ( Le rebelle, Jusqu’au bout), ou que, ao
contrário, tente se deixar passar desapercebido ( Pierre et Djemila, Um enfant dans la
foule), trata-se sempre para o herói ( a palavra é mal colocada, mas é a única a nossa
disposição) de Blain de sobreviver- sempre mantendo a instável esperança de um
repouso por-vir. Sobreviver, pois a frontalidade ( e, simultaneamente, o recurso a uma
focal única) exclui absolutamente toda profundidade, ou seja, toda possibilidade de
penetrar o mundo e de nele se fundir. Nenhuma profundidade de campo ( e,
consequentemente, nenhum travelling- advindo com o fito de atravessar e explorar esta
profundidade), nenhuma profundidade dos seres no cinema de Blain: tudo se dá tal
como é, em sua opacidade nativa e acompanhado de uma espécie de “tomar ou largar”
que interdita de pronto toda réplica. É preciso escutarmos a confissão, informulada e
fundadora de toda obra, de que o mundo é um monolito postado contra o indivíduo e
que lhe é impossível abrir a menor brecha.
Pode-se dizer isso de uma outra maneira: o indivíduo está engajado em uma relação de
não-reciprocidade absoluta com tudo o que o circunda. Ele exige ( Le Pélican: viver
com seu filho; Le Rebelle: manter junto a si sua irmã pequenina), mas a sociedade
permanece surda; daí, em Blain, uma política inflexível do campo, do contracampo e do
fora de campo. Um olhar, aquele que um pai dirige a um filho por exemplo, é uma
solicitação; ora, salvo em ocasiões bem raras, e sempre em uma relação direta ao
cinema de Bresson, este olhar só atinge seu fito para além dos “remendos” que separam
dois planos. Apenas indiretamente este obtém a resposta solicitada. Neste sentido, o
início de Jusqu’au bout de la nuit é exemplar: François ( o próprio Blain), há pouco
saído da prisão, contempla através da janela do apartamento de sua mãe e só vê um
muro cinzento e opaco. Todo O pelicano, sem dúvida o mais belo filme de Blain, é aliás
construído sobre este mesmo princípio de não-reciprocidade e sobre esta
impossibilidade de criar um espaço ( um plano) onde os olhares possam coabitar. Um
pai ( sempre Blain), ao qual foi recusada a guarda de um filho, observa cada dia,
dissimulado atrás de um muro, este brincar no jardim de uma luxuosa casa suíça.
Podemos mensurar evidentemente o quanto esta concepção de um cinema
bidimensional- bloco contra bloco- pode ser esquemática: é verdade que a obra de
Blain, organizada em torno de imperativos ( a frontalidade é um destes, a elipse outro) e
de recusas, é com freqüência paralisada por sua obstinação em aplicar de forma estrita
os ensinamentos de Bresson e que, por exemplo, a interpretação dos atores ( mais
desajeitada que bressoniana) possa ressentir-se dolorosamente disto, em particular nos
últimos filmes. Os olhos sempre colocados no mesmo objetivo, Blain esposa de forma
tão total o olhar de seus heróis, e se lixa tão majestosamente para o ponto de vista
adverso, que finalmente ele acaba por estabelecer a seguinte equação: o inimigo é tudo
aquilo que está no fora de campo, este tornando-se a ameaça absoluta. É um fato que
um tal cinema obedece a uma lógica paranóica e que é demasiado limitado ( em todos
os sentidos do termo) para possuir uma verdadeira amplidão. Por este motivo, teríamos
todas as razões para nos desinteressarmos.

Nós somos contemporâneos de uma derrota essencial, um mundo onde os papéis estão
definitivamente distribuídos, onde os campos estão fixados- possuidores contra
possuídos, norma contra margem. Uma expressão, aliás, volta com freqüência na boca
de um personagem: é tarde demais. Neste caso, tratar-se-ia de complacência ou
pessimismo convencional da parte de Blain se alguma coisa, em seus filmes, não tivesse
a função de indicar a existência de uma cena primitiva que vai estabelecer esta ordem de
coisas. Esta cena- a partida do pai-, nós a encontramos em Um enfant dans la foule. A
história pessoal de Blain, que serve de matéria primeira a seus quatro primeiros filmes,
deve ser posta em relação com o cadre mais amplo no qual esta encontra um lugar.
Nesta perspectiva, podemos pensar que esta não-reciprocidade da relação ao mundo
encontra sua origem na relação de Blain com sua mãe, tal como ela nos é mostrada em
Un enfant, onde é frequentemente filmada de costas. O pai ausente, a mãe que vira as
costas, estes são os grandes pilares deste cinema, eis o porque dos personagens
procurarem um pai substituto ( Les amis, Um enfant dans la foule), eis o porque das
mulheres serem tão maltratadas ( Um second souffle, Um enfant dans la foule). Não se
trata aqui de julgar ou extrapolar o sentido de sua obra a partir da biografia de Blain,
mas simplesmente de ver a partir de que seus filmes, pouco ricos em matéria de
explicações, procedem, qual o seu ponto de partida.
Posto isto, o ódio ao espetáculo, sob todas as suas formas, é um dos principais motores
da obra de Blain. Para irmos direto ao ponto, digamos que encontramos três objetos
prioritários de ódio, três faces diferentes da obscenidade do sistema capitalista: o corpo
burguês, o dinheiro, o discurso. Robert Stack em Um second souffle, Michel Subor em
Le Rebelle, o patrão de Jusqu’au bout de la nuit: Blain adora os anjos mas contempla o
corpo burguês como uma máquina gélida, friamente alimentada, polida, acariciada e
oferecida aos olhares que a consomem. Sobre Le second souffle, um filme inteiramente
consagrado ao corpo ( o corpo de um médico de 60 anos, interpretado por Stack), ao
corpo que se contempla envelhecer e antecipando o luto de sua boa saúde, Bernard
Boland (Cahiers número 294) notava justamente em Blain esta “aderência do social e do
sexual, instituída em uma norma”. Basta vermos o próprio cineasta, observar em
Jusqu’au bout este rosto que dir-se-ia pintado por Bacon para compreender o quanto ele
tem horror a esta ilusão do corpo-máquina, orgulhosamente adestrado e oposto como
uma fortaleza contra o tempo. Da mesma forma, o dinheiro é obrigatoriamente
espetáculo: está em sua natureza determinar àqueles que não o possuem um único lugar,
o lugar do espectador impotente. O jardim onde se diverte o rapazinho de Le pélican ( o
magnífico César Chauveau, anjo e ator fetiche de Blain, cujo sorriso chega a esgarçar o
“envelope” bressoniano que lhe é imposto) é um teatro, uma cena onde se exibe, ao
longo do dia, sobretudo através dos ritornellos 1 lançados incansavelmente pela mãe- A
vida é bela, bela, bela- a vulgaridade auto-satisfeita do mundo do dinheiro, onde de
agora em diante vive a criança. Jusqu’au bout de la nuit: preso como refém, um grande
industrial de Lyon, filmado por um camescope empunhado por Paul Blain, deve tentar
convencer seu filho a pagar o resgate: nenhuma indicação lhe foi dada, mas o pai, em
grandes frases elegantemente torneadas, com uma sutil tremedeira na voz, declara que
será assassinado se seu filho não pagar, o que é falso. Temos aí um dos momentos mais
miraculosos do cinema de Blain. Com uma inultrapassável simplicidade, tudo é dito, e
em primeiro lugar a tendência natural do capitalismo a dar, em matéria de espetáculo,
sempre mais do que lhe é pedido. Quando entra no riquíssimo apartamento do novo
marido de sua esposa, Blain, em Le pélicain, não tem outra possibilidade além de querer
destruir tudo, de se esgotar , ao querer fazer cessar o eterno e insuportável espetáculo da
riqueza.
O que constitui um grande problema é a condenação prévia de toda forma de discurso,
mesmo que pouco articulado. Há em Blain a idéia de um homem originário, que viveria
para aquém de toda tomada de palavra, ou mesmo para aquém de toda
consciência( como a criança na multidão), na silenciosa harmonia de uma relação aos
outros jamais explicitada. Seu cinema não aceita nem a negociação nem o “concerto”
dos discursos ou vozes, e se define inteiramente contra, através da consciência, com um
sentido reconfortante, de que um indestrutível inimigo o acossa. Escutar o inimigo seria
torná-lo mais próximo, fazê-lo penetrar em nós, e isto, no interior do sistema formal
monolítico de Blain, é simplesmente impossível.
Na rota deste caminho que conduz irresistivelmente ao fracasso- a idéia de um destino
trágico é bem presente aqui-, restam, apesar de tudo, alguns instantes de consolação, a
possibilidade efêmera de tornar palpável sua presença no mundo. O que é notável é que
esta possibilidade passa antes de tudo pelo som e pela seleção dos ruídos, que estão em
ligação direta com o fluxo do tempo. O som vale antes de tudo como pegada carnal do
presente, o que explica o grande número de ruídos com um caráter rítmico- passos,
ondas, sinos, cavalos... Nestes momentos, trata-se de fazer sua a respiração do mundo-
da natureza, não da sociedade. Apenas os deslocamentos laterais e horizontais, que
figuram fluxos ( estes abundam na obra de Blain) permitem ao homem deslizar contra o
mundo e deixam entrever a eventualidade de um futuro reconciliado. Então, por alguns
instantes, parece possível, tanto para os personagens quanto para os espectadores, de se
deixar carregar pelo apaziguado rio da existência.

Emmanuel Burdeau

Cahiers du cinéma 508


Tradução: Luiz Soares Júnior
1. Ritornello: um mantra ou jingle, melodia repetida interminavelmente.

A filosofia na alcova: nota de intenção. Por João César Monteiro.

‘”Vocês me fazem morrer de volúpia!


Conversemos e dissertemos”.

Sade
1. Sobre os textos.
Utilizamos para o texto da Filosofia na alcova a edição da Plêiade, conforme a edição
publicada como obra póstuma, em 1795.
“Segundo os Princípios da Biblioteca da Pléiade, as grafias foram modernizadas. Mas
só transformamos a pontuação com a maior discrição possível, e mantivemos todas as
formas lexicais antigas que pertenciam à língua de Sade como homem do fim do século
XVII e como escritor, amante de neologismos e de criações verbais”.

É conveniente mostrar que a Filosofia na alcova se destinava provavelmente à


representação teatral. Para nos convencermos, basta ler a rubrica inserida entre o sétimo
e o último diálogos: “Os seguintes pronunciamentos se fazem sempre quando os atores
estão em ação”.
É agradável constatar que nada impede a conversão do texto em matéria
cinematográfica.
Cortamos, embora eu não jurasse isso pela alma de minha mãezinha, no quinto panfleto
o “Franceses, ainda esperamos de vós um esforço, se quiserem ser”..., menos por causa
de seu anacronismo ( sabemos que é um que programa de proposições republicanas
posterior ao fim do Terror) que por sua extensão, o que lamentamos. Devo dizer que
este corpus do Filosofia na alcova não tem nada de “estranho” para mim. Pensei muito
em Proust ( ou Stern?), mas provavelmente isto não passa de um deliriozinho.
Passemos.
Em seu lugar, introduzimos um texto de Leopardi intitulado “Diálogo de Torquato
Tasso e de seu gênio 1 familiar” ( Pequenas obras morais). (...)Enfim, igualmente
tomamos a decisão de terminar o filme com um enigmático “Fim da lição”.
Para além da pequena ironia desta inscrição, espero que me façam a bondade de não ver
nisto nenhuma pretensão didática de minha parte.
Reservamo-nos ainda a eventualidade de mudar a famosa epígrafe “A mãe vai
prescrever a leitura à sua filha”, inspirada, como bem se sabe, por um folhetim,
anônimo e difamador, contra Marie-Antoinette ( A mãe vai proscrever a leitura à filha)
2, por uma outra: “O pai vai prescrever a leitura a seu filho”,e também, por razões
compreensíveis, as descrições físicas dos personagens. Fora isso, nos mantivemos no
integral respeito à palavra sadiana, em toda a sua abrupta magnificência.

Como se sabe, o propósito da obra de Sade é a educação, no sentido pedagógico, de


uma jovem virgem, educação que se desenrola num período histórico onde se operaram
grandes transformações políticas, econômicas, sociais, etc,. que tiveram conseqüências
em todos os domínios do pensamento e das atividades humanas, dentre as quais
algumas perduraram ( e perduram) até os nossos dias, e constituem o que chamamos o
mundo moderno.
Se a educação de Eugénie só sem sentido à luz de uma revolução libertina que não se
deu ( e, neste sentido, Sade se enganou, mas pagou caro por seu erro), também é
verdade que seu caráter inatual e a-histórico a deixa ao sabor do vento e do saber
premonitório de qualquer um.
Não nos remetemos aqui ao anúncio da morte de Deus, da morte do homem e da defesa
indignada da abolição da pena de morte.
2. Sobre os cenários
Jamais cheguei a ver um cenógrafo. Encontrei um, chamado Max Schoenlorff, e fiquei
encantado com ele. Me pareceu ter as qualidades requeridas, ou seja, o saber de
projeção no espaço. O problema é que a criatura é desconcertante: embora se consagre à
pintura, o que lhe interessa não é a cenografia, mas a filosofia. Onde já se viu acordo
entre um filósofo e um célebre filófobo?

O salão ( diálogos 1 e 2). Completamente nu. 12 metros sobre 4. Em um dos muros,


uma série de quatro janelas, em arco, por onde penetra a luz. O muro que lhe faz face
não contém nada, talvez mesmo não exista. Duas portas opostas e semelhantes, de 2
metros de largura, a cada extremidade: uma aberta, a outra fechada, uma de luz e
sombra, outra de sombra e luz. Pela luz sai o cavalheiro e entra Éugenie, pela sombra
sai Mademoiselle de Saint-Ange e sai Eugénie.

O banheiro ( diálogos 3, 4, 5, 6 e 7). Um cilindro de 9 metros de diâmetro e 4 de altura,


com um círculo de espelhos em volta. Uma clarabóia no alto, por onde entra um fio de
luz que se desloca no sentido do movimento aparente do sol. Uma chaminé, situada no
segmento oposto ao muro. A espessa porta é a igual distância da janela e da chaminé, ou
seja, 90 graus de uma e da outra. Diante da porta, a 180 graus, um cubo de 2 metros,
cujo interior, mobiliado com um leito e possuindo uma iluminação autônoma de gás,
pode estar protegido por uma cortina branca. O solo é formado de 37 polígonos de um
metro cada. O polígono 27 é uma passagem escondida sob um tapete que dá acesso a
um subterrâneo.
Os móveis são poucos e funcionais: uma poltrona otomana, bancos
atapetados,biombos...
Uma mesa em forma de cruz, magicamente tirada para o banquete final, dominada por
um prato que contém um peixe imenso, debruçado em seu leito de sal grosso e alguns
patês de atum, que o marquês amava tanto, para tornar agradável o palácio aos quatro
personagens que permanecem até o fim: Saint-Ange, Augustin, Dolmancé, Éugenie, ou,
se preferirem,: S ( anjo), A, D, E.

Carnes vermelhas? Não posso sequer sentir-lhes o cheiro, quanto mais vê-las!

EXTERIOR NATURAL. DIA MUITO ENSOLARADO. SERRA DE


MONTESINHO.
Inicialmente, escolhemos situar o Diálogo de Leopardi, que “viaja” num interior
noturno, em uma floresta com um lago. Isto nos permite sair do espaço fechado e
colocar o personagem do jardineiro em uma serena natureza, aberta à plena expressão
de “seu” pensamento ( finalmente ele possui um, se aceitarmos o paradoxo), fora de um
espaço onde ele não passa do objeto de servidão, às ordens dos apetites eróticos de seus
senhores.
Pouco a pouco, fomos eliminando a floresta, para chegarmos a uma montanha dura
“seca e estéril”, e, na inversão do reflexo do duplo, destruindo assim toda ambigüidade
narcisista, e de uma certa forma o transformando, sob as súplicas das “ondinas”
românticas, em um eterno habitante das águas lacustres, negras e primordiais.
3. Sobre os figurinos.
As roupas devem ter um caráter intemporal, apenas retendo uma sugestão ou
reminiscência de época. Logo abriremos mão delas, quando seu uso não for mais
aconselhado. E isto por que? Pela simples razão de que o que se chama a ars erotica em
Sade não passa pela forma de se vestir nem pelo uso perverso ( moral). Sade não é
Versace, e ainda menos o “venusiano” SS Hugo Boss. Também não vai bem com as
roupas de V... e de seus semelhantes. O valor das roupas em Sade é implacavelmente
funcional. Neste sentido, pode-se consultar o livro de Barthes, Sade, Fourier, Loyola, na
coleção Tel quel.

A cada personagem sua cor:


Mme de Saint-Ange: azul safira; negro.
Chevalier de Mirvel: creme.
Eugénie de Mistral: rosa envelhecido; negro.
Dolmancé: violeta.
Agostino/Duplo: azul ( cenas, 5, 7, 8 e 9); negro/branco ( cena 6).
Mme de Mistival: branco perolado.
Lapierre: verde.
4. Sobre a imagem
A iluminação. No salão, a luminosidade terá uma tonalidade clara, proveniente das
janelas, queimando do exterior.
Na alcova, a luz de base será mais ou menos a penumbra, com exceção da luz que vem
da janela, onde será instalado um vitral multicolorido. A iluminação do cubo é
autônoma, bem contrastada, podendo mesmo criar um efeito de noite em pleno dia. No
sétimo diálogo, a luz rasante e crepuscular provém da porta aberta, de maneira a
favorecer a invasão de uma sombra propícia à entrada de Lapierre no círculo, e de uma
contra-luz bem violenta na saída deste, ou mais dócil à saída da mãe ou do cavalheiro
que a segue. No contracampo com a mesa, a noite cai. Que se poderia fazer além disso?
Acendem-se as velas...No exterior, é preciso para o lago um artifício que o torne
espelhante e um refletor que funcione como uma nuvem passageira, capaz de ocultar o
sol. Nos daremos conta assim do sonho criminoso e não consumado do marquês:
assassinar o astro-rei. Monarquista e royalista, sem nenhuma dúvida, apesar dos mal-
entendidos republicanos.

A representação imagética. A representação de práticas sexuais foi mais ou menos


mostrada em todas as épocas e todas as civilizações, segundo critérios mais ou menos
permissivos. Nós a encontramos, por exemplo, sacralizada nos templos hindus ou
miseravelmente vulgarizada pela teleglobalização de nossa sociedade. Em nossa
opinião, o que pode ser chocante nisso é a regressão contemporânea em direção a uma
baixeza de que crapulosamente ( se quisermos nos divertir um pouco e continuar a
embaralhar as cartas, encontramos no Robert o termo “crápula” associado por Proust ao
prazer sádico) se aproveitam os produtores.
Em Sade, a composição dos tableaux ( quadros) advém de um imaginário
fantasmagórico, provocado pela solidão de sua condição de prisioneiro. Se admitirmos
que o classicismo é o apogeu da forma, o maneirismo um formalismo, portanto uma
crise da forma, encontramos aqui uma organização especificamente barroca, ou seja, a
liberdade soberana da imagem e seus múltiplos e intermináveis jogos de espelhos.
Para pensar em cinefilia au vent 3 ( quel vent?), não estamos longe de uma coreografia à
la Busby Berkeley . Infelizmente, não pensamos como um cinéfilo “dans le vent”. Que
mal há nisso?
5. Sobre o som.
A “sonorização" agora, se faz favor.

Partis pris 4 feroz do som direto.Corpo acústico realista ( voz mais ambiências
campestres), nas cenas do salão e da floresta. Tomada de certas precauções na cena da
alcova: isolação do espaço sonoro de maneira a privilegiar a clareza e modulação das
vozes, através de uma pureza acústica próxima daquela que se pode encontrar numa boa
sala de concerto. Basta-nos visitar o quarto de dormir do duque Frederico de
Montefeltro , no palácio de Urbino, para nos darmos conta dos cuidados concedidos à
organização acústica. Trata-se de criar as condições que permitam a um ouvido bem
treinado fruir de todas as fontes auditivas, inclusive as da amplificação, como elemento
fundamental de erotização do espaço. A voz será então o elemento primordial de
sedução em um jogo de entrecruzamento das linhas melódicas. Kierkegaard, que não se
engana jamais, já o disse a propósito de Mozart.Dito isto, adoraria igualmente chamar a
atenção sobre a construção rítmica de Sade. Pode-se ver que ela se dá em dois tempos: o
tempo do logos e o tempo do eros. Ora, nossa economia cinematográfica não exclui,
tirando desvios seriais, esta cisão: ela será rigorosamente binária, um pouco como nos
filmes de Hawks, mas sem quebrar o que chamamos o movimento perpétuo. Digamos:
indo sempre adiante.
6. Sobre a caracterização dos personagens.
Dolmancé. Ele é o mâitre a penser 5 e o que conduz o jogo, subentendamos isso no
sentido teatral de mise en scéne. É um libertino com muitas convicções. É preciso
explicar o sentido do termo nos séculos XVII e XVIII? É suficiente talvez mencionar
seu ateísmo materialista e uma vida privilegiada, votada aos prazeres. Mas para
complicar um pouco nossa tarefa, ele é bem mais que isso: ele possui uma dupla
personalidade, que sobretudo não podemos confundir com o sentido moderno de
desdobramento, dado pela psicanálise. Seria um equívoco bem perigoso, e um tanto
quanto doentio! Em Dolmancé, este comportamento não provoca nenhuma perturbação.
Ele é lúcido o suficiente para separar as esferas.
Portanto, por um lado, temos um personagem que se move numa pequena sociedade,
fechada e secreta, a dos libertinos, e por outro, um personagem socialmente respeitável
e respeitado pelo poder político ou judiciário, onde provavelmente ele desempenha um
papel importante.
Já aí há muito do que rir, mas, para ficarmos sérios, precisamos acrescentar que este
comportamento resulta de uma enorme decepção do personagem, fundada sobre sua
experiência da natureza humana e da hipocrisia social.

Mme de Saint-Ange. No início, somos tentados a acreditar que a personagem possui


um apetite feroz e irrefreável por uma jovem virgem. Ela não pôde satisfazê-lo, dadas as
circunstâncias ( um convento).Tendo refletido sobre o objeto de seu desejo, a
personagem concebe e prepara um plano mais sofisticado, onde a educação será o tema
principal.
Sublinhemos que no diálogo com o padre, cúmplice incestuoso, a personagem confessa
seus furores uterinos e a fraqueza em não resistir a seu temperamento. Moderada pela
idade, a Saint-Ange não exclui a hipótese de tornar-se devota. A seqüência dos eventos
nos demonstra que, apesar de sua cumplicidade e devoção, raramente ela estará à altura
de Dolmancé.

Eugénie de Mistival. Se julgarmos bom o ensinamento dos Gregos, que pregam a


superioridade do discípulo sobre o Mestre, então estamos largamente satisfeitos aqui.
Com efeito, a personagem ultrapassa todas as expectativas; partindo do grau zero de
uma inocência que beira a inverossimilhança ( lembremo-nos de que Eugénie, com
quinze anos, não conhecia nem o nome nem a função dos órgãos genitais, apesar de sua
educação em um convento e de pertencer a uma família cujo pai, reputado libertino, é o
mestre e senhor, em oposição a uma mãe devota e submissa), ao termo de cerca de
quatro horas sua nova educação está perfeitamente realizada. Seu devotamento a
Dolmancé é total. Sua riquíssima e preciosa aquisição? O nascimento de uma mulher
livre. Encontraremos facilmente ecos disto em outras personagens femininas do
marquês. Em Juliette muito certamente, mas também, por que não?, em uma nova
Justine, uma über-Justine 6, no sentido nietzscheano da expressão.

Em nossa opinião, e contrariamente à opinião corrente, Eugnénie forma com Dolmancé


o verdadeiro casal ( se casal há) da obra no sentido de uma afinidade eletiva, mesmo se
esta união se mostra impossível: a liberdade absoluta é votada à absoluta solidão. Nos
desertos do amor, nenhuma religião é tolerada, nenhuma re-ligação. Estamos no pleno
domínio do inominável, para além de toda e qualquer ataraxia.7 A esfinge reina.

O chevalier de Mirvel. Noblesse oblige, claro, mas o personagem não está lá, segundo
sua irmã, para “fazer sermões”.
Sejamos claros, o cavalheiro convenceu o sodomita Dolmancé a fazer uma visita a sua
irmã a fim de que, num caso excepcional, este a sodomizasse. Felizmente: o gênio
consiste no erro no sistema. Em recompensa, Saint-Ange lhe promete o
“descabaçamento” da buceta de Eugénie, colocando-lhe a par de seus projetos
libertinos. Nos vemos diante de um híbrido dividido entre a herança libertina de seu
meio social e suas convicções rousseaunianas. Para além da satisfação de seu apetite
sexual ( prazer simples), é evidente que este rapaz de coração aceita a contragosto as
crueldades dos outros personagens. O cavaleiro possui uma função mais próxima da dos
criados, mesmo possuindo o privilégio do uso da palavra, e que se lhe conceda o
privilégio da leitura de um panfleto, menos pela virtude de seu órgão vocal que pela
beleza de seu órgão genital.

Agostino. Em Sade, o personagem do jardineiro é reduzido, segundo os hábitos da casa,


à sua condição de puro objeto erótico. Seu quase-dialeto provençal vem talvez de
Moliére, mas também é talvez pelo conhecimento direto que Sade tinha do dialeto.
Por sua condição de criado, Agostino executa tudo o que lhe é ordenado. Antes da
leitura do panfleto, ele recebe a ordem de sair: “Isto aqui não foi feito pra ti”.
Nós o seguimos, dando-lhe uma palavra, portanto um pensamento, o de Leopardi.
Podemos nos perguntar porque o texto de um poeta romântico, embora este romantismo
tenha saído do iluminismo, seja posto na boca de um criado. A resposta é inequívoca:
tenho horror à servidão, e a clemência do caçador não me é totalmente estranha.
Provavelmente também porque há em Leopardi um desespero ao mesmo tempo negro e
feliz. Se é verdade que este diálogo está mais próximo de Plotino que de Lucrécio ou
Sêneca ( ou, se assim o quiserem, mais próximo de Petrarca que de Laure), não é
também pelo fato de que as prisões da servidão e da solidão estão mais próximas umas
das outras? Dizendo de outra forma, sem esquecer a singularidade destas duas vias,
pensamos que com Sade e Leopardi estamos face à mesma busca ontológica da
felicidade. Impossível? Sim, talvez.

A título de curiosidade, queria chamar a atenção sobre uma das passagens mais
misteriosas e mais sutis de toda a história da literatura: a do famoso segredo que
Dolmancé confia a Agostino, no final do quinto diálogo. Leiamos:

Dolmancé (...). veja o pouco caso que faço. ( referindo-se ao cu de Agostino, que beija).
Vou lhes suplicar, madames, a permissão de ir um instante na cabine vizinha com este
jovem.
Saint-Ange. (...) Não pode fazer aqui tudo o que deseja fazer com ele?
Dolmancé ( baixo e misteriosamente): Não, há certas coisas que necessitam
absolutamente de véus. (...)
Saint-Ange. É portanto uma tal infâmia que não sejamos dignas de ouvir e ver?
Le chevalier. Calma, minha irmã, vou lhe dizer. ( Fala baixo com as duas mulheres).
Eugénie, com ar de repugnância. Ele tem razão, é horrível.
Meme de Saint-Ange. Oh,, eu estava duvidando...
Dolmancé. Agora entendem porque eu tive de vos calar esta fantasia; e concebam neste
exato momento que é preciso estar só e nas sombras para executar tamanha torpeza.
Eugénie. Deseja que vá convosco? Quer que eu o masturbe, enquanto o senhor goza
com Agostino?
Dolmancé. Não, não. Isto se trata de um assunto de honra, e que se deve passar entre
homens: uma mulher nos incomodaria... volto num instante, senhoras (. Sai, levando
Agostino).

Certos exegetas fazem alusões a prováveis práticas coprófagas como o horror dos
horrores. Oh, céus! Então, e as crianças; e os animais; e os freqüentadores do
McDonald’s? e Mme de Saint-Ange, que periodicamente peida na boca de seu marido
como se esta fosse a coisa mais natural do mundo? Então, e o pudico judeo-marxista-
cristão Pasolini que, no círculo da merda de Saló, festeja o casamento da alegoria
dantesca com a parábola sadiana com charmosos toletes de cocô bem retorcidos?
Como não é crível que o segredo seja desta natureza, assim como não é crível que seja
de ordem filosófica, sendo de ordem evidente que em Sade a filosofia- atividade de não
censura- deve tudo dizer, que espécie de coisa tão íntima poderia ser compartilhada com
um jardineiro, mas não revelada a estranhos?

Uma outra pista, no final do quarto diálogo:

Dolmancé (...) eu desejaria que pudéssemos ter, em nossa casa, ou em nosso campo, um
rapazinho bem robusto, que nos servisse de modelo, e para quem pudéssemos dar
lições.
Saint-Ange. Tenho precisamente o que necessita.
Dolmancé. Não será por acaso um jovem jardineiro, de uma deliciosa figura, mais ou
menos dezoito ou vinte anos, que vi há pouco trabalhando em seu jardim?
Saint-Ange. Agostino? Sim, Agostino, cujo membro possui treze de largura sobre 8 e
meio de circunferência.
Dolmancé. Ah, céus! Que monstro! E isso goza?
Monteiro, tomando o lugar de Mademoiselle de Saint Ange. Oh, como uma cachoeira!
Vou buscá-lo.
Sob os olhos dos presentes e por obra do acaso, havia um belo jardineiro cultivando
suas flores...
O quadro possui um ar idílico. Romper o único tabu de Dolmancé vale a pena? Eu acho
que vou manter o segredo.

Madame de Mistival. Sua devoção, ou mesmo sua beatitude, face ao Ser supremo e à
bela e forte caridosa sociedade é bem conhecida por todos. Não é necessário insistir
nisso. É verdade que seu marido a ultraja e sua filha a detesta. A razão de sua chegada é
inequívoca: ela vem buscar Eugénie e, para sua infelicidade, encontra-a já instruída.
Primeiro sinal inquietante: a desobediência da filha. Em seguida, o desencadeamento da
fúria desta. A punição será cruel: condenada a viver, ela não poderá mais ser mãe. Pior
que isso, ela não terá nenhuma outra atividade sexual, pois todos os caminhos não
levam mais a Roma: eles lhe foram cuidadosamente interditos. Sua virtude está
assegurada até o fim de seus dias.
Em uma palavra, e pra fechar a coisa: a filha prescreverá a leitura à sua mãe.
Resta a dizer que o realizador, sendo de natureza política, toma claramente o partido da
vítima, como Sade: o que o interessa é mostrar a dor de uma mãe diante da perda de sua
filha, e as humilhações e torturas de que é vítima.
Não sendo nós juízes, o que nos interessa aqui é mostrar a embriaguês e a incontrolável
ferocidade dos instintos dos carrascos.
Mas a subversão que mais nos interessa aqui está na “despsicologização” dos
personagens, que, em relação a um conjunto de elementos luminosos, musicais,
espaciais, pensados em uma grandiosa escala, ocupa apenas um lugar secundário.
O personagem sadiano, como nota Pierre Frantz, “é uma máquina, uma maquinação;
são lábios sem rosto, um discurso e uma voz sem origem senão a fictícia, quje não se
constroem mas se esgotam na representação”. É por isso que Sade pode se contentar,
para descrever uma emoção, com uma metáfora banal, e mesmo quando frequentemente
ele dá a impressão de se ausentar do texto escrito, ele continua sendo uma vigilante
presença no que concerne à direção de atores.
“Sade, que escreveu a maioria de seus livros em Vincennes e na Bastilha, representa-se
com extrema precisão as vozes, as entonações, as dicções. (...) é por meio de uma
brusca aceleração de tom que ele nos faz sentir a ativa canalhice de um indivíduo. Sade
sabe que não se trata de dar voz na cena a personagens tão criminosos quanto os que
imagina em seus romances. Confundindo em uma mesma paixão seu gosto do teatro
como arte do falso, triunfo ostensivo do artifício, e sua vontade em representar o vício,
é por sua falsidade que em primeiro lugar se caracterizam seus personagens perversos.
São impenitentes “enroladores”, que gozam com sua falsidade.(...)
Atitude rara à sua época, a paixão de Sade pelo teatro vai até o ponto de incluir a
simpatia, ou até mesmo uma certa estima pelos atores. No romance Alline e Valcour,
Léonore e Sainville percorrem o mundo inteiro para se encontrar. Como Justine e
Juliette, Léonore só encontra maldade por todos os lados. Com duas exceções: um
bando de ladrões e um de atores. Com os primeiros, aprende a dançar. Com os atores,
seu métier de atriz. Ela possui qualidades para isso, sua beleza, por sua elegância, sua
maneira de se movimentar. Mas teme se entregar a esta profissão por causa da péssima
reputação dos atores ( na época excomungados, interditos de possuírem uma sepultura
cristã). Seu interlocutor, M. de Brissac- ele faz no teatro os papéis dos pais nobres- a
tranqüiliza.
Os atores formam uma sociedade à parte, mas que por isso mesmo se protege.
O ator, como o bandoleiro, sem adotar a lei comum, escapa à solidão do fora-da-
lei.Sendo uma escola de talento, o teatro é também uma escola de sentimento: “Poucos
sabem o que encontramos de delicadeza nas pessoas que possuem este talento. Eh!,
como não deveriam ser honestos e sensíveis, em meados de suas vidas!”

Ao contrário de Rousseau, que vê no teatro uma escola de mentiras e um antro de


corrupção, e de Diderot, que, no Paradoxos sobre o ator, distingue a emoção
verdadeira da representada e preconiza um trabalho de distanciamento interior como
condição indispensável do verdadeiro talento do ator, Sade- e nisto consiste, sem
dúvida, uma das razões do caráter enigmático ou ambíguo de certos comportamentos
seus- faz da emoção representada o germe da emoção verdadeira, da teatralidade a
origem de uma verdade, ligada ao acaso, ao momento, à auto-sugestão, ou à cena que
representamos unicamente para nós mesmos”...
Eu bem que queria ficar aí, mas sou obrigado a algumas considerações sob o ponto de
vista cinematográfico Como na ostra de Ponge, há, no interior da Filosofia na alcova,
“todo um mundo a beber e a comer”: da improvisação mais espontânea ao rigor
geométrico mais spinozista.
Não sei se podemos falar de emoções num estado impuro, mas me parece que há em
Sade um número infinito de vocábulos que mereceriam uma reflexão bem maior, pois
não possuem nada em comum com o uso que se lhes atribuímos hoje em dia. Por
exemplo: paixão, crime, crise, energia, natureza, quimera, etc.
Se é fácil estar de acordo quanto ao fato de que não há em Sade nenhum vestígio de
sentimentalismo ou sentimentos, me parece no entanto que nos é preciso conferir às
emoções, contidas ou desenfreadas, um status antes orgânico, mais ligado às energias do
corpo que aos élans da alma. Corremos talvez o risco de confundi-los com as sensações,
mas um pobre cineasta será sempre inocentado, ao menos assim o espero, pela bondade
da sociedade da qual é parte integrante. Como quer que seja, a emoção experimentada
por qualquer um jamais toca a qualquer outro, como se esta curiosa forma de autismo
portasse em si o estigma de uma irremediável prisão- a negação do Outro, implicando a
negação de si.

Eugénie (...). Diga-me, eu vos suplico, com que olho o senhor olha o objeto que serve a
vossos prazeres.

Dolmancé . Com um olho absolutamente nulo, minha querida; quer ele compartilhe ou
não os meus gozos, quer ele experimente ou não contentamento, apatia ou mesmo dor;
contanto que eu esteja feliz, o resto me é indiferente.

Mme de Mistival implora por piedade, antes de desmaiar ( “Mme de Saint-ange quer
socorrê-la; Dolmancé se opõe”).

Eu sei de cor e salteado que a época do cinema físico passou; não estamos mais na idade
de ouro do velho cinema americano ou soviético, mas vejo como poucas as
possibilidades de sucesso deste projeto se os atores não se derem de corpo e alma, a fim
de transmitir uma verdade física que suporta muito mal o engodo dramático, e tem por
fim último uma metafísica do prazer.
A encarnação integral de um personagem sadiano não sendo possível, por
condicionamentos de ordem social, moral, política, psíquica, etc, será pedido aos atores
para que acumulem o máximo de energia e que sublimem as pulsões vitais que daí
emanam.
No que me concerne, guardo intacta a esperança de arranjar deliciosamente as posturas,
mais segundo meus gostos que segundo as práticas comuns.
Em não importa qual filme, há sempre, meu velho Epíteto, o que depende de nós e o
que não nos concerne. É um pouco injusto, mas é assim, e um pouco de pragmatismo
( ou de neo, como diria o senhor ministro de posse do dossier) não faz mal a ninguém.
Resta a dizer que o fantasma do marquês está um pouco em todos os lugares: nas
humanidades críticas e clínicas, nas jovens e vigorosas democracias, assim como nas
velhas e obsoletas ditaduras; no bravo merceeiro de esquina, assim como no inspetor de
polícia. Eu mesmo, cidadão acima de qualquer suspeita e acima de toda e qualquer
vigilância, recebo cada vez mais visitas assíduas deste íncubo miserável. Nada de
espantoso, então, que a espectral figura tenha chegado à literatura, às belas-artes, ao
teatro...

Como poderia o cinema escapar a esta gigantesca contaminatio?


Salvo erro ou omissão, ele até mesmo nos permitiu ver uma obra-prima: Monsieur
Verdoux.

Verde e doce, sem dúvida. 8


Este projeto de filme concebido por João César Monteiro em 1999 foi abandonado, em
acordo com seu produtor, Paulo Branco.

Texto inicialmente publicado na revista Trafic, número 44, inverno de 2002.


Reproduzido na revista Dérives.
Traduzido por Luiz Soares Júnior.
Notas do tradutor
1. gênio no sentido de demônio interior: o daimon grego.
2. jogo aqui entre prescrire ( prescrever) e proscrir ( interditar, proscrever).
3. au vent. Ao acaso, fazendo associações. Que acaso?
4. Tomada de partido, em favor de.
5. O que comanda intelectualmente o jogo.
6. Übermensch. O super-homem nietzscheano, no sentido conotado por Monteiro aqui,
não é o super homem no sentido da realização absoluta do homem ( metafísico, no
caso), mas justamente o contrário: de seu ultrapassamento, de um novo homem. Justine
( Justine ou os infortúnios da virtude), o ideal de pureza, seria uma nova mulher, à
semelhança de Juliette, sua irmã perversa, livre dos preconceitos e limitações da
condição “devota”, mas a que preço!
7. ataraxia: o ideal epicurista da serenidade absoluta da alma, votada unicamente à
contemplação.
8. Vert ( Verde) et doux ( doce) =Verdoux, num jogo de palavras.

O dom das línguas, Biette

O tigre de Bengala de Fritz Lang , revisto em versão original alemã no “Cinema da


meia-noite”, na FR3, é o tumular monumento de toda uma época do cinema. É o ponto
final de uma língua comum colocada por Hollywood no início dos anos 30, com o
começo do cinema falado. Uma língua que, durante uma dezena de anos, vai se permitir
os meios de desenvolver, seja grandes ficções sociais, seja modelos constitutivos de
gêneros cinematográficos ( o policial, a comédia, a comédia musical, o western, o filme
histórico,), seja os grandes romances ilustrados ( David Copperfield, Peter Ibbetson, E o
vento levou). Em meados dos anos 40- depois dos anos do cinema militante para o
engajamento dos EUA na Guerra- esta língua comum é com freqüência empregada a
refinar a si mesma e tende a uma escritura mais abstrata. Constata-se uma súbita
economia de insformaões na narrativa ( os jornais, e sobretudo a televisão, começam a
fornecer estas informações, de que os filmes podem agora abrir mão), e mais, cada filme
aprende da melhor maneira a encadear cenário e a luz ao découpage, e subitamente
descobre uma “mise en sourdine” 1 da teatralidade dos atores que, nos anos 30,
deveriam sempre portar seus diálogos como engenhosas tiradas, em grandes cenários. A
vitalidade da narrativa é concentrada, e esta ganha em concisão rítmica o que perde em
acumulação dos materiais. Esta redução quantitativa dos elementos, este esgotamento
do espaço visual e sonoro em relação aos grandes cenários dos anos 30, o emprego
menos grandiloqüente e mais flexível da música, imprimiram ao conjunto do cinema
hollywoodiano uma transformação estilística. Filmes como Monkey business ou The
big sky de Hawks ou Clash by night de Lang, que se situam em torno de 1951, são hoje
em dia maravilhosos arquétipos desta abstração, deste “apertão” ( tour de vis) dado não
apenas à narrativa mas a todos os componentes do filme.
Mais de trinta anos depois, hoje, podemos hoje reconstituir o caminho que um cineasta,
com a ajuda desta língua comum, teve de trilhar por si mesmo para chegar na essência
de seus temas. Nesta época da língua comum hollywoodiana, o ponto de vista restritivo
sobre a vida de um King Vidor, que divide o mundo em chefes predestinados e em
multidões infantilóides ( com exceção do belíssimo American romance), ou ainda o
golpe de força simplificador de um Elia Kazan, hipertrofiando o ator em detrimento da
polifonia do plano, esta redução do ponto de vista sobre a vida e sobre o cinema, que
apenas capta de um tema traços grosseiros, que prefere, à ambigüidade das condutas
humanas, imagens unívocas, tornou-se hoje uma lei estética, ou antes: um consenso
convencional. As paisagens e os meios sociais do planeta inteiro são registros
ilustrativos de um imenso reservatório, mas o conhecimento que podemos ter de
conteúdos autênticos é tão frágil, a comunicação potencial tão préviamente “trucada”, a
massa de informações disponíveis tão absurdamente extensa, o tempo de assimilação
dos conhecimentos e experiências tão derrisóriamente inferior à sua quantidade que em
relação à língua comum que havia sofrido uma decadência nos anos 50 ( em parte por
um enfraquecimento de sua necessidade), agora é uma nova língua comum que, lenta
mas seguramente, se constituiu: a língua do cinema internacional, espécie de
compromisso entre a modernidade dos hollywoodianos e dos europeus das recentes
gerações. Uma língua que toma emprestado, ao mesmo tempo, da eficácia do telefilme
americano, do pragmatismo preguiçoso do áudio-visual europeu ( de que Rossellini foi
o infeliz precursor) e das novas linguagens restritas e referenciais do comércio ( pubs) e
do espetáculo ( clips), a fim de se constituir em um pretenso instrumento de
comunicação universal, quando na verdade esta língua comum não passa de uma
retórica oportunista, sempre disposta a capitalizar não importa qual outra nova técnica.
Jean-Claude Biette, Le don des langues, Cahiers du Cinéma, julho/agosto 1985.
Tradução: Luiz Soares Júnior
1. mise en sourdine: posto de lado, secundarizado em relação a.

A mulher do aviador, Eric Rohmer

De todos os filmes de Éric Rohmer, A mulher do aviador é aquele que melhor resiste à
famosa "transparência". Ao fim da quase totalidade das intrigas dos Contos e provérbios
e de alguns filmes isolados, um ciclo parece fechado, uma trajetória resolvida, um
mistério resolvido. Ao menos o espectador aceita ( ou finge aceitar) crer nesta
resolução, e a mise en scéne é organizada com vistas a este fim. As cenas finais de A
mulher do aviador, no entanto, penetram muito mais profundamente na noite
( literalmente) que na clareza da evidência. Quando François descobre que Lucie tem
um amante, que este é seu colega de trabalho ( visto no início do filme) e que o interesse
que ela demonstrava por sua investigação poderia estar ligado ao acaso que o havia
levado a encontrar o mesmo rapaz trabalhando na agência postal, ele se encontra mais
perplexo que desapontado, até porque a conclusão de sua enquête destruíra todas as
hipóteses construídas ao longo do filme, ao propor uma solução mais ou mesnos
aleatória. Para que a loura que acompanhava Christian, o aviador, fosse sua irmã ( e não
sua mulher, como François pensava), foi preciso que o casal se encaminhasse a um
advogado, e que a loura desconhecida, que figura ao lado da verdadeira mulher do
aviador na foto que lhe mostra sua amiga Anne- ex-amante de Christian- fosse
realmente sua irmã, um conjunto de induções sem fundamento.
A maioria das narrativas dos Contos morais deixavam entrever as fraquezas dos
personagens, assim como a cegueira que sofriam em relação a si mesmos, mas se
redimiam- ao menos para eles- no último minuto, ao preço da pior má-fé, se
convencendo, e tentando convencer ao espectador, que a situação à qual os personagens
se resignam resulta de sua livre escolha. François tenta igualmente algo parecido, ao
postar, apesar de tudo, a carta destinada a Lucie, o que o leva ele a deter a última
palavra, ao colocar como real a "história" ( scénario, roteiro) que ele arranja. Se a
mulher do aviador é de fato sua irmã, este agia bem sinceramente ao romper com Anne,
que no entanto é livre para viver com ele. Mas Anne também vem explicar a François
que ela não saberia viver com um homem e tentar ( em vão) fazer-lhe compreender que
a tarde passada a seguir Christian e a mulher loura, e sobretudo a discutir sobre "o amor
em geral" com sua "amantezinha", demonstra uma disponibilidade da parte de François
que nega suas afirmações ( "Eu disse para mim mesma que, pelo contrário, só você me
interessava").
Se o tema do desprezo é característico dos Contos morais, como de uma grande parte da
Nouvelle vague, de Chabrol a Godard, o tema do equívoco ( la méprise: erro de
julgamento, quiproquó) atravessa as situações das Comédias e provérbios, onde os
personagens se equivocam tanto em relação a eles quanto ao mundo. Pois sua visão é
não apenas necessariamente parcial, mas também sempre subjetiva. O espírito humano,
"que não saberia não pensar em nada", como diz o provérbio com sentido desviado que
abre o filme, não cessa de preencher os buracos. Nesta intriga policial enredada por um
fio contínuo e com falsos culpados 1, os pobre Sherlock Holmes que são François e
Lucie apelam mais para a imaginação que para o raciocínio. As sonolências de François,
assim como a utilização do parque Buttes-Chaumont, caro aos surrealistas - e o título do
livro de Aragon que o evoca, Le paysan de Paris , descreve com precisão François, o
que nos confirma a canção final: "Paris ma englouti dans la fièvre de ses tourbillons,
dans la frénésie de ses agitations"- dão à obra de Rohmer uma dimensão com frequência
oculta sob a aparente lucidez do olhar: a do sonho. É sem ironia que o cineasta nomeou
aquela que interpreta um pouco o papel da Tentadora dos Contos Morais de Lucie, a
luz. Por seu senso crítico, seu espírito de dedução, sua constante atenção- é ela quem
reencontra constantemente o casal que François não cessa de perder de vista, isto
quando ele francamente não lhes dá as costas-, ela parece esclarecer um mistério na
exata medida em que o obscurece ( ela também é "Lucifer").
A beleza de Mulher do aviador reside ainda na distância máxima que o cineasta
estabelece entre o maior domínio possível da mise en scéne e a perda total de domínio
( maîtrise, controle, domínio) dos personagens sobre um espaço que lhes escapa, tal
como o espaço labiríntico de Buttes-Chaumont. Tornando, depois da Marquesa de O, a
uma filmagem com meios mais simples, Rohmer se permite a flexibilidade necessária
para identificar um espaço fugidio 2 ( o que há de mais fugidio que a geometria
artificial dos Buttes-Chaumont?), tão centrípeto quanto centrífugo, espaço do qual os
seus personagens não terão nada além de uma vista parcial, centrada em seus pobres
seres. O essencial permanece sempre fora do alcance, como o casal fotografado pela
turista asiática. "Ela deve ter achado que eles não ficariam bem na foto 3", comenta
Lucie. Última lição de moral cinematográfica que constitui este retorno aos princípios
estéticos originários da Nouvelle vague.
Joël Magny
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. Em francês no original: fauxs coupables. Referência ao título em francês do filme de
Hitchcock, The wrong man: Le faux-coupable.
2. fuyant: que nos escapa sempre, que se furta.
3. Lucie, que persegue com François o casal no parque, se deixa fotografar próxima a
eles por uma turista para conseguir uma evidência do casal "adúltero". Mas a mulher
exclui o casal da foto.

Os quatro reinos, Jean Douchet

Já que se trata do assunto profundo de Two weeks in another town, falemos de cinema.
"Todo grande filme é um documentário", escrevia Éric Rohmer. Ao dizer isso, ele
entendia que uma obra só haure sua força na verdade da descrição dos personagens e do
meio: que esta deve nos informar perfeitamente sobre o funcionamento do meio, com o
fito de nos permitir aprender tudo sobre os personagens. O último filme de Minnelli
responde a esta exigência; ele pinta fielmente a perplexidade da fauna hollywoodiana,
arrancada a seu meio natural, que deve se dobrar às duras leis da evolução econômica e
manter , em um cenário ( décor) totalmente distinto ( "in another town") uma forma de
viver, de sentir, de sonhar, assim como de conceber e realizar estes filmes, dos quais
esta não pode, para sua infelicidade e sua alienação, se desligar. Two weeks é ao mesmo
tempo um testemunho sobre um fenômeno bem atual do cinema americano ( vide nosso
recente número), e sua crítica. Mas há ainda mais. O termo documentário evoca
imediatamente estes filmes que registram objetivamente o processo da vida: vida
inorgânica dos minerais, orgânica dos vegetais, animais, homens; e também esta
"vida"mecânica das máquinas, fabricações humanas. O que importa aqui é a idéia de
transformação da passagem de um estado A a um estado B, em uma palavra: de
evolução. A noção de evolução ( bem mais adequada que a de movimento, muito vaga,
nada específica- a dança- e causa de inúmeras aberrações: cinema "puro", cinema-
montagem) me parece responder à questão da natureza fundamental do cinema. Pois, de
qualquer forma que visemos a este, vemos neste um único objeto: a vida. Captá-la em
sua fonte, exprimir seus frêmitos, seguir seu curso, captá-la no momento de sua
expiração, tal é a única e nobre missão do documentário. Esta exige o respeito, a
humildade, a compreensão íntima e quase amorosa da coisa olhada. Ela condena todas
as especulações da "coisa que olha"- o homem que manipula a câmera e a película, e
opõe uma tela à tela- , que nega o Outro para melhor se afirmar às suas custas.
Resta-nos concluir, portanto, que documentário e cinema são uma única coisa.Onde
chegamos com isso? A esta constatação: um grande filme, seja ele do domínio da mais
pura ficção, não pode prescindir deste aspecto documentário inerente à arte
cinematográfica. Digo inerente, pois a solidez documentária ( verificada de forma
diversa pelas ciências) de obras como A Odisséia, a Bíblia, os romances da Távola
Redonda, ou mesmo As Mil e uma noites e Don Quixote- e é intencional que eu só cite
obras com heróis e ações míticas- é a mais segura garantia de sua repercussão universal,
portanto de sua verdade, se a universalidade pode ser considerada como o melhor
critério do valor estético. Mas, no entanto, quem não vê a diferença? A literatura, que
deve descrever o real, transpõe para melhor restituir, e força o artista a inventar a
metáfora ( vide O celulóide e o mármore, de Rohmer). O cinema registra o real que lhe
é oferecido a olhar, mas então ele obriga o artista a se submeter inteiramente à própria
coisa ( la chose elle-même) e a seu devir: dele, ela simplesmente exige que o artista
reencontre, de uma forma imediata e intuitiva, a seiva que lhe forjou a casca. O milagre
do cinema é que a câmera filma esta corrente misteriosa, este movimento interior que
conduziu a coisa à sua aparência, a sua casca, ao mesmo tempo em que esta casca
parecia constituir um limite intransponível à investigação. Consequência: filmar o
homem objetivamente implica que o cineasta capte simultaneamente todas as etapas da
evolução que conduziram até o homem. Todo grande filme é igualmente um
documentário na medida em que ele constitui, em conjunto, todos os documentários
possíveis.
Two weeks o prova. Antes de tudo, um documentário sobre o homem. Ao mesmo
tempo sobre a vida de uma sociedade ( que se reflete na vida de um grupo particular,
pintado justamente em suas particularidades), e sobre a vida da máquina social, seu
funcionamento, sua mecânica, e sobre a obra que, pelo trabalho, esta máquina
constrange o homem , em luta com ela, a produzir. Mas também um documentário
animal, de tal forma é verdadeiro que tudo, no comportamento físico do homem, este
animal superior ( e esta espécie de documentário só pode ser concernida por este
comportamento físico), remete ao animal. ( E isto de tal maneira que não há grande
filme, em nosso conhecimento, que não possa ser totalmente transposto para o reino
animal). Vejamos Two weeks: desde o velho leão decaído que é Edward G. Robinson,
ou a leoa furiosa, sua mulher, passando pela flexível beleza da pantera que tem prazer
em "despedaçar" ( déchirer), Cyd Charisse, todos, nesta selva, lutam para conservar
intacta sua parcela de poder, de território. Trata-se, com efeito, nos olhares, atitudes,
gestos, nos impulsos e nos ardis dos personagens, de reações animais. Que a noção de
território se revele, ao final das contas, quimérica e ilusória, isso faz parte da dimensão
superior do homem: é seu drama. O homem, por intermédio aqui do herói, deve
aprender a aceitar sua evolução ( e a evolução), portanto se libertar de todas as etapas
anteriores, a mais próxima em particular, a animal, caracterizada pela vontade de
conquista e de possessão. Transposição também no domínio vegetal: os fenômenos da
vida das plantas encontram sua correspondência no homem ( fora do que chamamos
vida "vegetativa"): no domínio da afetividade. Uma afetividade que, em Minnelli,
depende do meio e se nutre deste: vejamos simplesmente todos estes seres
desenraizados de Hollywood buscando permanecer enraizados no meio do cinema.
Enfim, parece-me até inútil mostrar, de tal forma o cenário como projeção dos
personagens tem importância aqui, como o documentário também incidirá sobre o lado
mineral do homem, chumbo ou ouro, ferro ou madeira apodrecida. Que os personagens
de Two weeks prefiram a "inconsistência" de seu décor "de cinema", telas pintadas e
cartolina, à pedra suntuosamente barroca da Cidade Eterna ( este barroco mostrado por
Minnelli como o último estágio de evolução desta pedra: seu estilhaçamento, a própria
imagem do violento movimento interior que agita os personagens), manifesta em
demasia a fraqueza destes personagens, aparentemente mascarada por sua crueldade:
eles só se apóiam de forma tão desesperada sobre um mundo imaginário, sem arrimos.
Disso advém necessariamente que, atingido o topo de sua evolução, o artista cessa de
condensar temporalmente estas diversas etapas da evolução, para dispô-las no espaço.
Os quatro reinos se avizinham então, o homem evoluindo ( Tabu, Hatari!, O rio
sagrado), ou aprendendo a evoluir ( O tigre de Bengala, Intendente Sansho, Herança da
carne) harmoniosamente, assumindo enfim esta superioridade que lhe é tão difícil
demonstrar no início. Assim, se encontra abordado o problema temporal da evolução:
um passado surgido em um presente, um presente que se impõe ao passado ( é o caso de
Two weeks). De sua luta, depende um futuro que seja ou não liberto de entraves, e que
permita ao homem desabrochar.
Este conflito, no nível de um roteiro, de um indivíduo, engaja o destino da humanidade.
Se se trata, para o herói, de se libertar de tudo aquilo que bloqueia a sua plena
realização, trata-se em paralelo para a sociedade de denunciar uma mentalidade rígida
que entrava o seu progresso; e, para a espécie, de se desligar de etapas anteriores, das
quais ela emergiu. Assim, Kirk Douglas, ao mesmo tempo em que exorciza seu passado,
denuncia uma sociedade ( tanto aquela que fabrica o produto cinematográfico quanto
aquela que o consome) ligada a uma concepção apodrecida do homem e da arte, e assim
oferece uma espécie, por seu "sacrifício", de abertura à humanidade. Evidentemente, é
necessária uma solução espacial a este problema temporal da evolução. O movimento
que, no cinema,por intermédio do trajeto e do itinerário, permite que o processo de
transformação dos seres e das coisas "evolua" diante de nossos olhos, estaca sempre na
fixidez. Não basta que Kirk Douglas reintroduza o movimento ( um movimento barroco
acordado a Roma, que ele é o único que soube penetrar) na mise-en-scéne do filme, que
ele retoma no meio da filmagem, para resolver seu próprio problema. Isto constitui
apenas um paliativo. É preciso ainda que ele "reflua" ( remonte) completamente para
dentro de si mesmo, que vá aos confins desta fixidez que o obceca ( e da qual sua
esposa é menos o objeto que o pretexto, a fixação); é-lhe necessário redescobrir sua
verdadeira aspiração: a recusa em viver, a morte. Ele atinge este limite quando sua
mulher, no decurso da reunião de drogados, se deixando "levar" para melhor "levar", o
abandona. Nada pode liberá-lo agora de seu passado e da tentação da imobilidade que
sua louca corrida de carro, movimento excessivo, fluxo de vida através do qual o sonho
pernicioso será conduzido e destruído. De agora em diante mestre do movimento, ele
completa seu itinerário de Hollywood a Hollywood e funde seu devir- em sua trilha
própria- com o devir dos outros ( o jovem ator), que é o nosso. A ninguém mais
surpreenderá que este cinema documentário ( o único que amamos) entoe, para além de
seus tormentos, o elogio da loucura. Este é o destino do homem hoje: se libertar das
aquisições do indivíduo, da sociedade, da própria espécie, a fim de afrontar um futuro
que só nos parece de tal maneira angustiante por conter ( talvez) as mais espantosas
promessas quanto à evolução do homem. Todo grande filme é este documentário sobre
a coragem e a grandeza da loucura, da sabedoria humana.
Jean Douchet, Cahiers du Cinéma 154, abril 1964.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Viagem insólita, Joe Dante

Se Viagem insólita fosse um vinho ( e este possui as propriedades de euforia da bebida)


seria um vinho particularmente encorpado, como se diz. O filme de Joe Dante
amadureceu sob o sol da História do cinema e de predecessores visionários que sempre
pensaram que seu instrumento favorito era, antes de tudo, um instrumento de viagem.
Desde Méliès, grande número de diretores empreenderam toda espécie de expedições,
conquistas e odisséias cuja ambição consistia em fazer recuar cada vez mais os limites
do visível. Mas ninguém até hoje- salvo Richard Fleischer com seu Viagem fantástica-
havia imaginado que uma das aventuras mais fabulosas poderia estar ao alcance da mão
do homem (ou de uma seringa). O corpo humano como um território de geografia
variável. Cavalgada fantástica nas cavidades dos órgãos humanos, travessia sob as
cataratas da faringe, mergulho submarino nos riachos impetuosos do sangue. Mas isto
não é suficiente; é preciso que haja ainda um desafio. O desafio do filme de Dante é
burlesco, logo humano. Encontro entre a matéria e o espírito, a alma e o corpo. Viagem
insólita se apóia sobre o rompimento com um roteiro original, como ocorre sempre com
o cineasta americano ( ver Gremlins). Depois de uma operação de miniaturização, um
herói interespacial ( Dennis Quaid), refugiado numa nave microscópica, se encontra
ejetado no interior do corpo de um homem, ao invés do corpo de um coelho. O
"continente" é um pobre caixa de supermercado, totalmente neurótico, inibido e
hipocondríaco ( Martin Short, absolutamente hilário): o melhor cliente de um médico
que lhe recomenda justamente evitar as "emoções fortes". A força do filme está em pôr
em relação estes dois homens em um único, em estabelecer uma ligação entre o dentro e
o fora, a exterioridade e a interioridade, recusando-se assim em visar a viagem sob um
ponto de vista unicamente feérico. Dennis Quaid se comunica oralmente com Short se
colocando diretamente, como uma pulga, sobre sua orelha, e descobre em sua tela de
controle o que o corpo habitado vê do mundo exterior ( fixação dolorosamente cômica
sobre o nervo ótico). Como um espectador de cinema, ele "é todo olhos e orelhas". O
"miniaturizado" e a "grandeza natural" estão no mesmo barco; devem, portanto,
cooperar, coordenar seus esforços ( face aos espiões) para que um reencontre o seu
formato originário e o outro o seu conteúdo originário. É preciso então aprender a se
conhecer, e é através desta interdependência que Viagem insólita torna-se
profundamente humano, pois se abre para o desconhecido, ao Outro como potencial de
descobertas. Este Outro que vai me permitir espreitar de sopetão o corpo que eu mesmo
sou capaz de criar. Antes de chegar ao parto final por meio de um espirro, a viagem é
repleta de peripécias que mudarão estes homens: o complexado se transforma em super-
herói ( capaz de demolir não importa qual colosso) digno de James Bond. Enquanto que
o herói, já tornado minísculo como punição por sua arrogância ( início do filme), se
sente a um certo momento ainda menor, mas desta vez num bom sentido: ele acede à
humildade. Uma breve passagem no corpo de sua amada ( em seguida a um beijo) lhe
dá a oportunidade de descobrir um espetáculo único e grandioso: o feto de seu próprio
filho. A cena é de uma cativante beleza, até por ser bem curta. O pai chora de felicidade,
simplesmente. Ele acaba de ver a invisível verdade humana ao vivo, e não por
intermédio de telas e imagens parcialmente "desrealizantes" ( ecografia).
Hino de amor ao cinema e às suas múltiplas representações, Viagem insólita é um filme
clínico, metafísico, pornográfico e poético. Ele trabalha o corpo e suas secreções
( saliva, urina, sangue), o somático e o psíquico ( a angústia, o desejo, o medo da perda).
O minúsculo mundo de Joe Dante lhe ( nos) permite ver as coisas "de forma grande".
Jacques Morice
Tradução: Luiz Soares Júnior

Edward mãos de tesoura, Tim Burton

Em se tratando de um filme ainda recente, visto através do prisma da atualidade


galopante, a primeira revisão, em vídeo cassete ou na televisão, se mostra uma
experiência implacável 1. Do filme vemos apenas o esqueleto e alguns traços mais
salientes. A aura desaparece, em proveito de um olhar mais espectral e analítico. O
vídeo afina a lógica e o sentido do rigor; antes de tudo, ele nos fornece informações. A
questão logo se torna crucial: o filme resistirá? Ou antes, pelo contrário, vai "desinflar",
como um balão informe? Eu lhes asseguro: Edward mãos de tesoura é o melhor Tim
Burton feito até hoje, e permanece um objeto absolutamente único, que resiste
perfeitamente quando visto numa tela restrita.
O que seduz particularmente aqui é a irrupção do gótico na América doméstica e
contemporânea. Ao invés de se contradizer ou se anularem, estas duas características
opostas se reforçam mutuamente. O filme se apresenta, portanto, ao mesmo tempo
como um ensaio meio pictórico, meio social sobre os subúrbios pequeno-burgueses; e
como um conto fantástico e mitológico que nos remete diretamente à série dos filmes
sobre Frankeinstein e aos filmes da Hammer, pelo intermédio de Vincent Price. De fato,
o subúrbio toma, à primeira vista, o caráter de um espaço mítico e encantado, repintado
com as cores de Tim Burton, rosa, violeta, laranja, algo entre John Waters, Tashlin e
Tati. Aliás, sob sua aparência de conto filosófico que põe em cena um personagem
tradicional de homem-máquina, o filme também é um estudo fino e preciso, quase
documentário se quiserem, da vida americana. É assim que Burton radiografa certos
traços americanos, como a tendência à intolerância, ao matriarcado, circulação de
fofocas...
Mas há também em Edward uma característica precisosa, e mesmo rara: a infância. Não
quero dizer que o filme de Tim Burton se dirige antes de tudo ao público infantil, mas
simplesmente que ele toca diretamente nesta parte da infância reencontrada que, por
exemplo, um escritor como Nerval exprime com uma extrema sutileza. Adoro em
Edward mãos de tesoura as esculturas de arbustos, as sessões no cabelereiro, as
refeições na casa com a deliciosa Dianne West...Mas adoro ainda mais a última parte do
filme, quando ele deságua na história de amor louco ( amour fou) e de conto de fadas de
pesadelo. É graças ao personagem de Kim, interpretado por Winonna Ryder ( seu
melhor papel) que Edward ( aliás, Johnny Depp) adquire toda a sua grandeza. Assim,
todas as sequências que encenam as "mãos de tesoura" tem ao mesmo tempo algo de
perturbador e fascinante. Dois momentos dentre os mais belos do filme: Edward
"barbeando" literalmente os muros com este ruído de "guincho" que irrita os nervos ou
estilhaça a alma; ou ainda estes momentos onde os dedos ferem sem querer a criança ou
a mulher amada. Edward mãos de tesoura, portanto, acaba, graças ao casal impossível
formado por Kim e Edward e ao sentimento insólito e inelutável que se insinua entre
eles, por ser tomado uma "febre" digna de Nicholas Ray, sobretudo na sequência final,
quando os vizinhos, transformados em justiceiros- com a exceção de um gentil policial-,
perseguem o monstro humano, demasiado humano. Até então nos acreditávamos dentro
da Noiva de Frankenstein, e somos subitamente projetados ao final de They live by
night ou de Juventude transviada. É este deslizamento absolutamente inesperado que dá
em definitivo o valor do filme.
Thierry Jousse
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. Este texto foi retirado de uma edição da Cahiers de 1993, onde a equipe analisa os
filmes em relação à sua transmissão em vídeo e, portanto, todas as implicações em
matéria de linguagem desta transposição de mídias.

Forever Amber, Otto Preminger

Adaptado do best-seller, audacioso para a época, de Kathleen Winsor, é sem dúvida a


mais bem realizada das superproduções americanas. No entanto, as coisas tinham
começado mal, porque ao cabo de algumas semanas de filmagem o metteur en scéne
John Stahl e a vedete principal, Peggy Cummings, haviam sido demitidos por Zanuck
antes que Preminger, então sob contrato na Fox, fosse obrigado a retomar o projeto,
fizesse reescrever o roteiro e se tornasse totalmente o senhor do projeto. Situação um
pouco semelhante àquela na qual ele estivera, nas vésperas de rodar Laura, com duas
essenciais diferenças: aqui, o projeto não era de Preminger (ao contrário: ele se opunha
a este); e a intérprete que ele desejava para o papel ( Lana Turner) teve de finalmente
ceder o lugar para Linda Darnell, transformada em loira para a ocasião. Não se poderia,
no entanto, imaginar uma Amber mais perfeita. Através de seu personagem, Preminger
estudou o conflito da ambição e da afetividade, pintando uma heroína colocada na
situação, não de preferir sua ambição aos sentimentos, mas de imaginar que apenas sua
ambição pode servir a sua afetividade. Tendo escolhido um parceiro apático e indeciso,
sequioso de respeitabilidade, ela vai passar a vida a se aguerrir e a esperar que deste
endurecimento lhe venha por fim a felicidade. Ela vai viver uma série de decepções que
encontrariam bom lugar num melodrama, mas que Preminger preferiu colocar no mais
glacial dos estudos de costumes, situado no seio de uma reconstituição histórica com
um fascinante esplendor plástico.O filme torna-se assim um devaneio sobre a
impossível secura do coração, sobre o fiasco de uma heroína que não cessa de se perder
nos cálculos e complots que arma, e dos quais espera, de forma vã, a libertação. É a
irmã de numerosas outras heroínas premingerianas, por exemplo a Cécile de Bom dia
tristeza.
Sua frustração, sua tristeza, seu estado de decepção quase permanente se estiram diante
dela como abismos, enquanto que para o espectador a frieza da heroína a torna ainda
mais empolgante do que se derramasse torrentes de lágrimas. Sua breve e tumultuosa
trajetória vai se efetuar por entre a mais extraordinária coleção de cínicos, elegantes
crápulas e monstros jamais reunida em um filme. Amber foi em sua época um dos mais
caros produtos da Cidade do Cinema.Podemos ver isto na tela, e não teríamos palavras
para descrever o gosto, a riqueza dos figurinos e dos cenários, a suntuosidade do
Technicolor manejado com gênio por Leon Shamroy ( sobretudo nos closes de Linda
Darnnel). Todo este fausto serve de espelho à acidez impertinente dos diálogos e à
desilusão dos personagens ( ” Lutei toda tarde contra o fogo nas docas, diz Charles II à
sua amante; nunca teria me esforçado tanto para subir no trono se soubesse que exigiam
tanto de um rei). Para este adepto da técnica invisível que é Preminger, a arte dos
movimentos de câmera aqui se mostra no auge, e na curta cena do parto de Darnell, o
diretor nos dá o que talvez seja o mais belo plano sequência da história do cinema. Por
seu gênio plástico, apenas para citar um de seus gênios, Amber está tão distanciado de
nós e do que vemos hoje em dia no cinema quanto podem estar , por exemplo, um
quadro de Velásquez ou de Rembrandt.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Um americano tranquilo, Mankiewicz


O filme mais estranho e mais desconcertante de Mankiewicz, apaixonante como um
romance de enigmas. Mas este romance não contém, falando propriamente, um enigma:
ele próprio é integralmente um enigma. O domínio da construção não surpreende os
espectadores familiares ao estilo de Mankiewicz. Como na Condessa dos pés descalços,
uma substância romanesca extremamente rica ( em espessura, em perspectivas) é
segmentada em longas cenas teatrais com diálogo abundante, inseridas em um flash-
back. Aqui, à diferença da Condessa, há apenas um flash-back e um único narrador, que
nos conduz com ele em seus devaneios impotentes perante a realidade, sua confusão,
sua perplexidade, sua má consciência, em sua culpabilidade e hipocrisia, em suas
mentiras pueris, sempre rapidamente desmascaradas. Sua narrativa possui a textura de
um “pesadelo desperto” ( segundo a expressão de N.T. Binh, em seu primeiro livro
publicado em francês sobre Mankiewicz, Rivages, 1986) e se encaminha
inelutavelmente para um desenlace trágico que nada nem ninguém poderia impedir. Este
movimento para a tragédia é o único elemento claro no filme. Quanto ao resto, Um
americano tranqüilo é o filme do mal-estar, da incerteza, do porte-à-faux 1. Um destino
vacilante priva os personagens ( e sobretudo o narrador) de sua lucidez, ou a torna
derrisoriamente inoperante. Mesmo o importante papel atribuído aos diálogos acaba por
ser negativo. Quanto mais os grandes personagens falam, menos compreendem o
mundo, a história e a eles mesmos. Mankiewicz joga habilmente com as diferentes
línguas faladas pelos personagens, afim de intensificar, sempre com ironia, sua
confusão. A intriga mescla um aspecto sentimental e psicológico a um aspecto político,
mesclar querendo dizer aqui misturar, confundir, obscurecer. Longe de mutuamente se
valorizarem, estes aspectos se aniquilam, e este filme sem mensagem política coerente
apresenta uma das heroínas femininas mais ternas da obra de Mankiewicz. Este vivia,
na época da filmagem, um dos períodos mais tormentosos de sua vida. ( O estado
mental de sua mulher, a atriz Rosa Stradner, se degradava cada vez mais, e ela iria se
suicidar no ano seguinte, em 1958).

Mankiewicz explicou que seu interesse pelo romance de Graham Greene vinha
sobretudo do personagem de Fowler: “Eu sempre quis fazer um filme sobre esses
intelectuais glaciais cujo intelectualismo é apenas uma máscara que recobre reações
totalmente irracionais” ( citado no livro de Kenneth Geist sobre Mankiewicz, “People
Will talk”). A mensagem do filme consistiria assim em mostrar , em um ser
aparentemente evoluído e senhor de si, o triunfo desconcertante do irracional e do
emocional sobre a razão e a lucidez. Triunfo feito na medida para justificar esta cólera,
esta amargura misantrópica que Mankiewicz ressente, de forma intermitente, em relação
à humanidade, e sem dúvida, em primeiro lugar, em relação a si mesmo. Pois, em suas
trevas e sua ambigüidade, Um americano bem tranqüilo permanece, no interior da
carreira de Mankiewicz, uma obra extremamente pessoal e até mesmo íntima.

1. Em uma situação ou posição perigosa, instável, desequilibrada.


Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Pacto sinistro, Alfred Hitchock

Uma das cinco ou seis obras mais importantes mais importantes para o conhecimento de
Hitchcock. É o filme onde o tema hitchcockiano de base- a troca das culpabilidades-
aparece mais abertamente, e não apenas como tema mas como motor principal da
ação.Esta ação, constituída em sua linha principal pela armadilha na qual se debate um
dos personagens ( Guy, interpretado por Farley Granger), é refletida na luz cintilante,
metálica e glacial forjada pelo diretor de fotografia Robert Burks, aqui em seu primeiro
trabalho para Hitchcock. Enquanto falso culpado, Guy se encontra tão privado de
iniciativa e de liberdade quanto seu homólogo Henry Fonda em O homem errado.Como
Balestrero, ele expia uma culpa metafísica ligada ao pecado original. Para Hitchcock,
parece que não há “falso culpado” integral: Guy, que pensou em matar, que desejou
matar, já entrou no infernal círculo da culpabilidade. E o face a face central de Strangers
on a train é aquele entre o Diabo ( admiravelmente interpretado por Robert Walker) e
sua criatura. Esta no fim triunfará, depois de ter cortejado o abismo, pois Hitchcock,
moralmente falando, se alinha entre os otimistas, ou pelo menos tenta nos dar esta
impressão. Em seus últimos filmes, quando ele poderia ter escolhido- numa época mais
liberal- encerrar seus filmes com a vitória do Mal, e não com um happy end, ele sempre
recusou-se a fazê-lo. Seu estilo aqui é clássico, rigoroso, quase austero, mas com
acessos febris que correspondem aos momentos de extrema tensão e de mais intenso
suspense ( a sequência do assassinato de Miriam, a do paralelismo entre o match de Guy
e a ida de Bruno ao parque de diversões, e enfm a sequência final do carrossel). É aí,
quando o cineasta melhor tem seu público na mão, que ele se distancia da intriga
propriamente dita para se entregar a arabescos visuais que compõem uma sinfonia de
imagens e de sons onde o prazer de narrar cede o passo a um puro deleite plástico e
dinâmico. Mas Hitchcock sempre espera que o espectador esteja sob seu domínio para
enfim se dar o prazer de satisfazer sua verdadeira natureza: a de um formalista genial
que utiliza a duração, da qual é mestre absoluto, para cinzelar imagens infernais e
apocalípticas que exorcizam suas obsessões. Nestes instantes, que podem durar até
longos minutos, ele com freqüência encontra a ocasião de inventar e utilizar com
maestria tornada lendária todo um arsenal de truques, de efeitos óticos e fotográficos
que permanecem a maior parte do tempo um enigma à primeira visão, e às vezes nas
seguintes.
Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior

Ivã, o terrível

Em 1940, Eisenstein pensa em fazer um filme sobre o tsar Ivan IV, cujo roteiro ele
termina na primavera de 1941. A Mosfilm aceita o projeto um pouco antes da URSS
entrar em guerra contra a Alemanha. A empresa vê aí um novo pretexto, depois do
Alexander Névski, para exaltar o sentimento nacional. A filmagem começa em 1 de
fevereiro de 1943 no estúdio de Alma- Ata, a guerra impedindo que se filmasse em
Moscou. A segunda parte será filmada no estúdio Mosfilm entre setembro e dezembro
de 1945; ela compreende partes em cor realizadas a partir de um estoque de película
Agfa, tomado aos alemães no fim da guerra. A primeira parte é lançada em janeiro de
1945 com um grande sucesso,e obtém o Prêmio Stalin. Eisenstein termina a montagem
da segunda parte em fevereiro de 1946. A doença e as críticas oficiais suscitadas por
esta segunda parte o impedirão de rodar a terceira parte, apesar de esta ter sido
minuciosamente escrita e preparada. Lembremos que nesta terceira parte ( intitulada Os
combates de Ivan) Ivan, aliado à Inglaterra, deveria enfrentar vitoriosamente as tropas
livonianas. Kourbsky morreria em um castelo cuja explosão teria sido voluntariamente
provocada por um dos seus homens, a fim de evitar que este caísse nas mãos do
inimigo. Maliouta morreria também nesta explosão. O filme deveria ter terminado com
uma proclamação de Ivan, afirmando que de agora em diante a Rússia permaneceria no
Báltico. Absolutamente falsa historicamente, esta terceira parte beneficiava Ivan com as
vitórias conquistadas mais tarde por Pedro o Grande. Em setembro de 1946, o Comitê
central do PC Soviético condenou Eisenstein nestes termos: " O metteur em scéne
Sergei Eisenstein, na segunda parte do filme Ivan o terrível, revelou sua ignorância dos
fatos históricos ao mostrar a progressista guarda de Ivan o Terrível como um bando de
degenerados, do gênero Ku Klux Klan, e o próprio Ivan o Terrível, que possuía vontade
e caráter, como frágil e indeciso, um pouco à maneira de Hamlet". No entanto, o
Conselho artístico do ministério da cinematografia apreciou o filme, mas a última e
definitiva condenação veio do Kremlin. A segunda parte só saiu na Rússia e no mundo
em 1958. Viram neste Ivan, em seu amigo Maliouta e nos Opritchnicks uma metáfora
mal velada de Stalin, de Beria e dos homens da KGB.
As críticas concretas endereçadas ao filme foram as seguintes: ausência do povo na
condução da narrativa, importância primordial dada às intrigas da corte, formalismo. No
essencial, é impossível negar que estas críticas concernem ao corpo essencial do filme, e
se evidentemente temos de condenar a condenação, devemos assinalar que esta não é
baseada – uma vez que isto não costuma acontecer- num mal –entendido. Nas duas
partes da obra, Eisenstein deliberadamente sacrificou o histórico ao poético e ao trágico.
Seu Ivan é um personagem shakespeariano, invadido pela dúvida e incerteza, às vezes
mesmo roído pelo remorso, muito mais em luta consigo mesmo e contra seus próximos
do que contra o inimigo estrangeiro. Seus adversários privilegiados são a nobreza, os
boyards1, sua própria família e seus amigos; seu combate permanecerá individual,
solitário, até mesmo confinado, mesmo se os temas em jogo são nacionais e imensos.
Tirando a sequência do cerco de Kazan, o povo, as massas, e portanto a epopéia estão
ausentes das duas partes do filme. O povo só intervém concretamente na procissão que
encerra a primeira parte: sua única iniciativa consistirá em uma súplica com o objetivo
de fazer com que Ivan volte para Moscou, exatamente como este havia previsto, ao se
retirar provisoriamente em Alexandrov. Vistos por Eisenstein, a tragédia e o destino de
Ivan são aqueles de um homem que não pôde se tornar o herói épico que desejava ser,
constantemente impedido por seus próximos de se comunicar com o povo e de associá-
lo às suas lutas. Em um outro nível, o destino de Eisenstein foi também o de não ter
podido ser, por não ter nascido em uma boa época e meio, um poeta elizabetano, ou um
grande cineasta hollywoodiano dos belos tempos ( uma espécie de poeta épico, à
maneira de King Vidor por exemplo). As duas partes de Ivan, e mais especialmente a
segunda, testemunham da ambição de Eisenstein de utilizar o cinema como arte total;
mas a realização desta ambição se encontra limitada pelo caráter essencialmente teatral
da intriga e do personagem central. Nennhuma dúvida de que a segunda parte é superior
à primeira: podemos até mesmo dizer que ela não prolonga realmente a primeira, mas a
refaz, a repete enriquecendo-a e lhe conferindo maior densidade. O caráter trágico e
quase claustrofóbico do destino de Ivan torna-se mais e mais evidente, e a contribuição
da cor dá uma dimensão extraordinária à concepção cara a Eisenstein do cinema como
arte total. Ivan, o Terrível representa também o termo da evolução de Eisenstein em
direção ao formalismo, ao mesmo tempo que seu máximo distanciamento das massas
como o tema ideal de uma obra de ficção. Todavia, seria completamente errôneo dizer
que Ivan constitui o triunfo do indivíduo no cinema de Eisenstein. Isto equivaleria e
esquecer a total inaptidão do cineasta em representar o indivíduo em sua intimidade e
verdade concreta. Os personagens dos dois filmes são, mais do que seres de carne e
osso, marionetes alucinadas, ou máscaras, que tiram o essencial de sua força- que se
pode julgar ultrajosamente artificial- de sua posição no interior de uma geometria
plástica dos planos e do découpage. No plano visual, a metáfora do xadrez nos vem
imediatamente ao espírito, os personagens e sobretudo os atores do filme não sendo
nada além de peças manipuladas de cima pelo cineasta-demiurgo. É em relação a este
nível do filme que se oporão sempre, como adversários irreconciliáveis, os laudatores e
detratores do cineasta, os detratores constituindo uma minoria é verdade, mas no cinema
a verdade está com frequência do lado da minoria. Um dentre eles, Michel Mourlet,
escrevia na NRF ( Nouvelle Revue Française)quando do lançamento do filme em duas
partes: "Ivan o terrível se coloca na encruzilhada de uma arte pueril, ainda petrificada
em seu primitivo mutismo, e da decadência crispada de um esteta que alia a ingenuidade
das metáforas à vacuidade chinesa das formas. Uma direção de atores hierática na
exacerbação orna o espaço de letras maiúsculas, mas esperamos em vão pelo resto da
palavra.Não há nada por detrás da agitação das superfícies, nada por detrás destas
lentidões dispersas senão uma tentativa frustrada de grandeza, um sapo que incha e nem
chega a explodir".

1.Boyard. do russo Боярин, refere-se a uma classe de aristocratas de certos países


ortodoxos da Europa do leste.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Barry Lyndon, Jean Pierre Oudart

Há sempre uma profunda moralidade, ao mesmo tempo mercantil e humanista, do


cinema hollywoodiano, segundo a qual a ficção não deve jamais incorrer em perda
( travailler à perte 1); que esta deve ser ,de qualquer maneira, edificante. Apercebemo-
nos disso hoje, com o filme catástrofe, onde o gasto de dinheiro, cenários e talentos é
compensado por um ganho inaudito, inestimável: face ao apocalipse desencadeado na
tela, na obscuridade do desejo dos espectadores, pensa-se: “Somos todos um só”.
Unanimismo do espetáculo hollywoodiano, exigência de um assentimento profundo,
moral, sentimental, para com ideais coletivos cuja ficção deve ( é esta a sua regra, sua
lei) assegurar ao espectador a felicidade do reconhecimento.
Em aparência, Barry Lyndon é fiel a esta grande norma hollywoodiana. Sua ficção, que
se desdobra em um vasto afresco histórico, pode passar, com o fito de destilar uma
moralidade- a ascenção e a queda de um arrivista- como suporte de uma meditação
pessimista, distante e altiva, sobre os grandes valores do mundo. Aí vem o crédito de
Kubrick de ser um grande autor crepuscular, e seu filme um testamento, uma coletânea
de reflexões sobre o mundo: um belo presente para os espectadores e para os críticos,
afinal de contas.
Mas oras, é um filme que se subtrai de todas as maneiras possíveis. Em primeiro lugar,
visivelmente, por um excesso de heterogeneidade em sua forma, contrária ao realismo
hollywoodiano: os quadros ( tableaux), os planos, não se enquadram uns com os outros,
uns por excesso de pictórico, outros por excesso de verdade arqueológica. Estas
distorções não são decorativas; em todo caso, não tem nada a ver com o decorativismo
hollywoodiano, que é sempre utilizado ora no sentido de magnificar cenicamente os
personagens, ora de enriquecer os panos de fundo de notações históricas, de
personagens secundários, para vantagem desta figura feudal gloriosa que é o star.
Visivelmente, em Barry Lyndon, o luxo dos planos não serve aos personagens, não os
enquadra em uma postura gloriosa. A riqueza aparente tende antes a acentuar o
pouco(ou o mínimo) de glória que esta história contém, a marcar com um selo de
derrisão os personagens e suas ações. Mas sobretudo o excesso de verdade
arqueológica, o hiper-realismo das cenas de gênero ( o falar, a maquiagem, as maneiras
da época), longe de lhes conferir a marca da caduquice e o charme do “imagismo” rétro
( o prazer dos senhores de outro tempo), afeta-as com um coeficiente de estranheza
( etnográfica): a das seqüências sociais, dos ritos, de códigos cujo sentido estaria
perdido. Portanto, de valor nulo para o espectador, se compararmos com o poder do
imagismo rétro em evocar o prazer, o gozo ( jouissance) dos senhores no passado, e
constituir no presente o signo de sua glória, ou mesmo sua mensagem: na medida em
que o imagismo rétro , enquanto valor social, possui hoje o sentido de ser uma
promessa- a promessa da perpetuação de um plus-de-jouir 2, marcado simbolicamente
por uma ressacralização dos valores de luxo da burguesia. Tornarmo-nos nós mesmos
aristocratas, incorrendo em pura perda ( pure perte).
A estranheza da história reside menos nesta temática da carta truquée 3, da aliança
espúria (mésalliance) 4 e da má sorte, que ao fato de que todo o filme se desenrola sob o
signo do “trucagem”, do estranho, do semelhante, apenas para acabar sob a forma do
não-reconhecimento, da mutilação, da loucura; e que sua escritura, o ângulo de ataque e
a linha de fuga de cada seqüência, a inflexão da narrativa fazem surgir das situações
uma carga suplementar de horror.
A irrupção das máscaras assustadoras e grotescas, da violência, da morte, o personagem
tomado num circuito de máquinas sociais infernais e de procedimentos onde ele se
perde sem saber, fazem-se também como operações de escritura “a fundo perdido”, de
um secreto catastrofismo: a parada militar, o encontro com o cavaleiro, a morte da
criança, a assinatura do dote, déroutent 4 pela indecibilidade de sentido do ríctus do
oficial, a máscara empoada, o rosto marcial, e por fim através de um ato jurídico eivado
de loucura. Não se tratam de operações registradas pelo espectador nos termos de um
ganho de conotação, de recuo crítico em relação aos personagens, ou de derrisão para
com o melodrama e à cena hollywoodiana, mas de sobressaltos de ironia que o tocam
no cerne de sua convicção: que na falta de uma moralidade de situações ( comprometida
pela vacuidade psicológica dos personagens), ele pode contar com uma moralidade da
narrativa, com uma jurisdição de seu sentido, que também se encontra ausente aqui.
Cada vez que ocorrem reconhecimentos 5( du tuchè!), as máscaras se impõem como
figuras da falta de sentido ( non-sens); cada vez que a narrativa está a ponto de proferir
sua moralidade, o achatamento ( platitude) das imagens, do comentário em off, a
subtraem de nós.
Jean-Pierre Oudart, Cahiers du Cinéma, 271, novembro 1976. Páginas 62-63.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Notas:

1. travailler à perte: Fala-se da privação ( do privar-se) de algo inestimável,


vantajoso. Quando estruturalistas ( e depois pós-estruturalistas) como Oudarte
Daney falam em gain ( ganho), perte (perda), na verdade usam referências
psicanalíticas, embora a analogia metafórica repouse na “economia”: trata-se de
economia pulsional, no caso. A dificuldade da tradição literal reside justamente
em que são termos que “não tem muito sentido” na linguagem corrente, muito
menos na linguagem corrente cinematográfica; são específicos de disciplinas e
doutrinas específicas, como Psicanálise e marxismo.

2. un plus de jouir: um mais, uma plenificação na potência de gozar, de usufruir


( Psicanálise de novo!)

3. No sentido de carta marcada, jogo falseado, pois já está dado/decidido de antemão.

4. Casamento com alguém julgado de condição inferior.

5. Dérouter: No sentido de decepcionar, distrair, desviar do caminho da narrativa,


frustrar nossas espectativas em relação a estas.

Adolfo Arrieta, Por Jean Claude Biette


Quer ele avance sobre as “échasses” 1 de uma narrativa simulada, regida por roteiros
com caráter feérico ( o Castelo de Pointilly, Tam-Tam, Flammes), quer ele persiga com
uma intuição segura esta percurso em caracol de uma filmagem às cegas, que só
conseguirá ser retomada nas últimas decisões da montagem ( Le Crime de la toupie, este
extraordinário Imitação do anjo, Le jouet criminel, As Intrigas de Sylvia Kousky), a arte
cinematográfica de Arrieta exprime antes de tudo nas questões humanas aquilo que
desliza entre as malhas do real, o que se esfiapa entre os diálogos.
Poder-se-ia crer, vendo apenas um ou dois desses filmes, que Arrieta se empenha nos
diálogos, no que se diz e no que se troca. Errado: ele os utiliza apenas como
encantamentos que joga ao acaso. Os significados são piões, os diálogos simples lances
de paciência ( carpette) 2, e os personagens as peças, com frequência vestidas de anjos,
de um grande jogo misterioso que não é conduzido pelo destino, por Deus ou por uma
ideologia, mas pelos componentes tangíveis de uma concepção enigmática do cinema de
que Arrieta busca há anos, a cada filme, emitir novas provas. Ele flertam com um
número incalculável de sombras que nos encantam, mas que escapam a quaisquer que
tentam convertê-las em objetos.
Este jogo do cinema, que adquire às vezes em seus filmes a aparência do milagre, traduz
uma poética dividida, contraditória, que se burila, não sem dificuldade, para derivar no
sentido das duas direções indicadas na repartição feita acima.Esta divisão em duas
tendências da obra- cinco longas-metragens e dois curtas são suficientes neste caso
preciso para falar em obra- aparece na percepção simultânea da cor dramática, da forma
técnica e da tonalidade de conjunto ( o resultado estético) de cada um de seus filmes. Os
primeiros, claramente dialogados com seus textos gravados ao mesmo tempo que a ação
filmada ( em som direto), submetem um pouco à sua lei os planos de ação que
poderíamos, por economia e exigência de mobilidade, tornar mudos e acrescentar o
ruído em seguida, “por cima” ( sim, “fazer ruído”, pois Arrieta não hesita, por exemplo,
em emprestar sua voz à imagem de um cão que late). Estes filmes dão a impressão de
uma maior hierarquia entre seus componentes que os segundos. Estes, pouco
dialogados, com seus sons um pouco sufocados de conversações ou de julgamentos sem
respostas, propõem uma narração fantasma que não inspira medo mas, de forma muito
mais sutil, busca tranqüilizar.3
De que se trata então este jogo e em que ele é cinematográfico? Que são estes “trotes”
( pièges) vãos que no máximo nos enervam ( mas já se trata disso?) Neste dispositivo
que imita a negligência (dos raccords, da luminosa continuidade, da percepção auditiva
mediana, do jogo coerentee composto dos intérpretes)- e esta negligência exaspera-,
ocorre a busca obstinada ( e pouco prestigiosa) por exprimir em estado de filme a grande
desordem,raramente explorada, da vida , ou seja, de comunicar um sentimento tão forte
quanto possível ( não”mimado” por efeitos formais nem imposto pela vontade ou
aprisionado pelo roteiro, , mas ganho no espaço material do filme, em seus
componentes os mais prosaicamente técnicos) de liberdade. Os filmes de Arrieta
abrigam tesouros de olhares, de gestos e de frases sem sentido ( insensés): estes não
exprimem nada, eles estão aí para estarem aí e afirmarem imediatamente a existência,
aqui e não em outro lugar, de indivíduos atores ou não, que uma câmera que se diria
“chargée à blanc” 4 interrompe alguns segundos, no meio de uma conversação ou no
decorrer de um passeio. Nesta aptidão a combinar dispositivo obstinado e desordens, a
partir de uma cultura, de um ponto de saber, de uma biografia que diferem, Arrieta não
está muito distante de Jean Rouch ou de Jacques Rivette”.
Jean Claude Biette, Cahiers du Cinéma, número 290-291, julho-agosto 1978.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Notas:
1. pernas de pau.
Espécie de jogo de cartas ( paciência) que se joga entre dois jogadores.
2.

3. Joue à rassurer. Jouer tem o sentido, no caso, tanto de jogar ( ou interpretar, dirigir,
encenar) quanto de divertir, de brincar.
4. Diz-se de uma arma carregada com um cartucho em branco, sem balas

Ponto de vista. Por Serge Daney

2 de Dezembro 1989 – Velho princípio da “nossa” cinefilia: o ponto de vista. Para mim,
o ponto de vista é precisamente o que vem no lugar de um corpo que é elidido na
imagem, o que pode ser visto do ponto cego. O ponto de vista refere-se ao que pode ser
visto por um personagem que estaria sempre no lugar da câmera. Persistir com esse
ponto de vista diretamente significa confrontar problemas de mise en scène (desde que
haja imagens proibidas, o que não seria consistente com o ponto de vista único). A
questão do “ponto de vista” vem para perguntar quem está olhando. Quem é o
personagem adicional? Por exemplo, no filme de Depardon, outro guarda, o guarda
“que saberia”. O cinema do ponto de vista único está desaparecendo/ausentando-se (em
ambos sentidos do termo) em sua (mística, pictória) relação com o “real”. Ele abole a si
mesmo. Ele nunca teve muito sucesso, visto que confisca para si mesmo o imaginário (e
priva a audiência disto: Antonioni, Depardon). Obsessivo.
O cinema do ponto de vista duplo é o cinema popular por excelência, visto que este
acampa firmemente entre o plano e o contraplano (leia o livro de Warren), bancando o
“pequeno objeto a” ( petit objet a) entre dois objetos capturados numa luta de forças
(veja minha velha idéia sobre Tubarão: o tubarão e a perna da criança). É popular
porque cria uma identificação vertiginosa entre dois pólos: ativo/passivo, caçador/caça,
torturador/vítima, etc. Histeria.
Isto deixa o cinema com n pontos de vista; no fim, é isso o mais importante. Algumas
vezes é popular, mas não necessariamente. Ele tem que brincar/fazer malabarismo com
a paranóia, a lei, a loucura. Não consigo imaginar um filme melhor que The Night of the
Hunter nessa categoria, a categoria da polifonia, do carnaval (talvez junto com Ivan o
Terrível, 2001, alguns filmes de Ford).
Tiebreak (set de desempate): o cinema sem nenhum ponto de vista é possível? Não. Nós
teríamos que analisar televisão não com metáforas visuais mas táteis (“ponto de toque”,
acolchoamento tátil) e proxêmica1.
23 Julho 1988 – DEMY (tv). O fim de Duas Garotas Românticas. Estúpido, devastado,
emoção definitiva. Uma emoção tão forte que tudo que eu sempre pensei – e escrevi –
sobre Demy continua verdadeiro. Um cineasta difícil, não completamente sentimental,
mórbido e alegre.
Só uma “idéia”. Melancolia não é nostalgia. O mundo de Demy (o meu também,
suponho) é melancolia instantânea. Não há mundo perdido, nenhum ideal que se foi,
nenhum estado prévio pelo qual nos lamentamos. Pela simples razão (perversion oblige
2) que não queremos saber nada desse mundo “do qual viemos” (mais aliança do que
parentesco, etc). Melancolia é instantânea como uma sombra. Coisas se tornam
melancólicas imediatamente, graças à música e à música do diálogo. É a boa disposição
( good mood) com a qual os personagens falham em tudo (exceto talvez no essencial)
que é terrível e comovente ao mesmo tempo. Um não falha nas coisas porque não as vê
mas porque ele descobriu muito rapidamente um jeito de esvaziá-las do seu conteúdo,
de circular ao redor delas, de dançar. Darrieux descobre quem é o sádico e diz: “E ele
comandava tudo enquanto cortava o bolo!”
O essencial era o amor mas este seguiu perdendo suas cores. Já nesse filme a beleza do
“último minuto” porque todo final feliz é puro voluntarismo. Porém, mais tarde (Pele de
Asno, etc) este se atrita mais e mais. E voluntarismo é precisamente o assunto de Une
chambre en ville.
A força absoluta de Demy é relacionar tudo de um ponto de vista perfeito: o da mãe. A
mãe que nunca cresceu, que é frívola, que esqueceu de parar de ser uma garotinha. O
mundo é organizado a partir desse ofício cego.
A dançar: Gene Kelly.
26 Março 1988 – Ontem, entre a tarde e a noite, em frente à TV. Abandono rapidamente
8 ½, mesmo que nunca o tenha visto, mas me exaspera e me pego assistindo até o fim
um filme que objetivamente acho mal feito, mal contado, mal tudo: O Veredicto de
Sidney Lumet. Esquizofrenia da televisão: nós não só assistimos o que não é bom (não é
bem feito), mas nós vemos até melhor do que no cinema (edição, por exemplo), e
mesmo assim nós preferimos ver um filme mal feito do que um bem feito. Ou ainda: os
conceitos de “bem feito” e “mal feito” não são relevantes na televisão. Ou o filme tem
uma força tamanha que se impõe ou nós estamos na relatividade de um mundo de
imagens, numa banheira do imaginário, onde tudo é interessante. Isso depende do clima
do momento. Ontem eu preferi assistir Mason e especialmente Newman compondo com
idade, com tudo. Lumet é o arquetípico cineasta que filma do ponto de vista de
ninguém, portanto com uma eficiência abstrata, tão abstrata que é reduzida ao nonsense
de roteiro. Ele acelera quando não há razão pra isso. Um belo momento. Newman
finalmente encontrou a enfermeira que “sabe” o que aconteceu. Ela cuida de crianças
em Chelsea. Ela tem uma bela face de santa de sindicato. Ela está no playground;
Newman, que chegou de Boston, está abordando-a desajeitadamente. Close-up no
bilhete Boston-Nova Iorque, que cai de seu bolso. E lá, um pequeno truque do velho
Lumet, um pouco da verdadeira velocidade: contracampo em Newman que não está
mais aparecendo: "Você vai me ajudar?" Ela vai ajudá-lo, não porque o roteiro exige
isso, mas porque nós fomos colocados no lugar dela (pela mise en scène) e ela no nosso,
e porque o desejo de que ela o ajude foi inscrito no filme. Coisas velhas mas existentes,
pelo amor de Deus!
O exemplo do filme de Lumet, uns dias atrás (“Você vai me ajudar?”) soma tudo isso. É
impuro ( ou pouco refinado) mas suficiente. O plano de Newman – de um Newman que
pede ajuda e pede duas vezes: para o outro personagem (off) e a mim que – por um
instante – fui capaz de me colocar no filme no lugar desse personagem ausente da
imagem. E ele será ajudado duas vezes: no roteiro e por mim (neste momento, eu aceito
seguir com o filme, e então fazê-lo funcionar).
Notas:
1.O termo proxêmico foi cunhado pelo antropologista Edward T. Hall em 1966.
Consiste no estudo de distâncias mensuráveis entre as pessoas à medida em que
interagem. “Como a gravidade, a influência recíproca entre dois corpos é inversamente
proporcional, não apenas ao quadrado de sua distância mas até possivelmente ao cubo
da mesma”.
2.Paráfrase da expressão clássica em francês Noblesse oblige ( Nobreza exige, ou
obriga), referindo-se a regras fundamentais e imprescindíveis de etiqueta. No caso, de
perversão.
Traduzido do livro L'exercise a eté profitable, monsieur. Tradução original do francês
para o inglês por Laurent Kretzschmar.
Traduzido do inglês para o português por Luan Gonsales.
Revisão e notas: Luiz Soares Júnior.

O festim da aranha, Jean Narboni

É impossível falar de Bergman sem um mal-estar cuja causa essencial é esta: objeto de
falatórios inumeráveis, animados tanto pela admiração quanto pelo ódio, este autor
parece-nos hoje em dia “sem perigo”. Se a urgência e necessidade de uma obra
concernem aos novos sentidos que libera ou desnuda, além das questões que suscitam as
questões desta obra, convenhamos que a obra de Bergman esteve submetida por um
bom tempo a um movimento de neutralização: ou se contentaram de repercutir suas
interrogações com um eco respeitoso, ou tentaram nelas infiltrar – mal tinham sido
formuladas- a figura reconfortante de uma resposta, mesmo que de desespero.Ora, os
filmes de Bergman- nisto, são de uma absoluta modernidade- não são mais assombrados
pela questão: “do que se fala?” mas por esta: “quem fala?”, ou mesmo esta, que não se
pode igualmente descartar: “quem escuta?”

No final de Prisão, um metteur-en-scéne se recusava a fazer um filme sobre o Inferno,


pois o silêncio daquele a quem deveríamos colocar as questões implicariam- segundo
ele- na inutilidade do projeto: ignorante de que toda questão encontra sua resposta-
mesmo que esta consista num devorador silêncio-, e que deste silêncio Bergman iria
fazer seu tema essencial. Se desde este filme o autor introduz o cinema no cinema,
como fará mais tarde com a música e o teatro, não nos enganemos: é para se interrogar
sobre a Arte em suas interferências para com a vida, sua função, seus efeitos ou suas
figuras, mas não ainda sobre seu ser, que é a via na qual Bergman se coloca hoje.
“A criação artística sempre se manifestou para mim como uma fome(...). Agora, nestes
últimos tempos, em que ela tendeu a se apaziguar e a se transformar em outra coisa,
experimento a imperiosa necessidade de buscar a razão de minha atividade artística. “
Deveríamos aproximar esta declaração de Bergman ( Cahiers du Cinema, 188, A pele
da serpente) de outra, muito próxima desta, de Jean Renoir: “ Acho que num filme não
deve haver nada de passivo. Um único personagem deve ser passivo e sofrer tudo, deve
ser uma boca engolindo tudo, um estômago ingerindo tudo, é o autor do filme. Mas
todos os elementos que ele absorve devem ser ativos: o cenário, os personagens, tudo
isso tem de ser vivo; ou seja, é preciso “nos fazermos de mortos”- não, não de mortos,
de adormecidos: abre-se largamente a boca, e absorvemos tudo, não é?, e depois
digerimos, o devolvemos de uma outra forma...” ( Cahiers 186).
Não se trata de estabelecer aqui uma comparação entre Bergman e Renoir, e muito
menos de constituir numa oposição no modo através do qual, enquanto autores, eles se
comportam em relação às suas opiniões sobre a criação como “ato de devorar”. Trata-se
apenas de indicar que, numa frase na declaração do segundo, se vê precisada a opinião
do primeiro: “é preciso nos fazermos de mortos- não de mortos, de adormecidos”.
Proposição capital, pela qual se explica a démarche dos últimos filmes de Bergman. A
trilogia, Toutes ses femmes e Persona constituem, com efeito, uma das interrogações
mais radicais às quais um autor de filmes se submeteu e submeteu sua arte, e aqui ainda,
como em outros pontos que não nos cabe evocar agora, o parentesco entre Bergman e
Godard aparece-nos de forma marcante. A má consciência do artista se exprime em agir
por “desapropriação”, escamoteamento do outro, roubo de sua substância e assimilação
da mesma à do artista. Mas esta avidez não demanda nenhum esforço para ser satisfeita.
O artista não é mostrado perseguindo suas presas, mas “se fazendo” de morto, de
adormecido, ou mesmo em silêncio; camuflado, invisível ou desapercebido, falsamente
ausente, para que suas criaturas venham até ele. Ele dispõe, em relação a elas, de um
espaço de retração, uma zona de atração ou imantação; suas criaturas, quando
ultrapassam a fronteira, estão aprisionadas, submetidas ao mecanismo e insensivelmente
conduzidas até ele, reduzidas a não serem nada além da etapa última e central de sua
construção.

A teia da aranha figura bem adequadamente o jogo e a configuração de semelhante


armadilha. Desde esta etapa decisiva, segundo vimos, que constitui para ele Prisão,
Bergman vai se referir a isso: dois personagens projetam num sótão um slapstick 1 de
solavancos, onde vemos um esqueleto que pula de um cofre e um homem despertado
por um ladrão, além de uma imensa aranha suspensa por um fio. Slapstick que vai
ressurgir no início e no fim de Persona ( os planos não são exatamente os mesmos, mas
semelhantes os personagens, como se tratasse de um “remake”, ou de rushes ulteriores,
utilizadas do primeiro). A etapa intermediária desta metáfora aracnídea é constituída por
Através de um espelho, com este Deus aranha vampiresco, com o qual Karen se assusta
( vemos aí se sucederem uma cadeia de substituições, onde figuram alternadamente ,e às
vezes ao mesmo tempo, o pai, o artista e o nome da divindade). Quanto a Todas estas
mulheres, longe de ser um filme aberrante ou marginal na obra de Bergman, inscreve-se
abertamente na linha deste pequeno filme: aparentam-se com efeito seus movimentos
dissonantes e sua coreografia cadenciada , certa jovialidade pessimista, o excesso e a
estilização de suas figuras. Os conjuntos e os tableaux que as criaturas que evoluem
retomam periodicamente em torno do caixão do professor evocam estes movimentos de
auto-expiação aos quais finalmente consentem em obedecer, e que precipitam os
sobressaltos falsamente libertadores das vítimas que participam da armadilha do
professor.
Demarcar esta gravitação esbaforida em torno de um silêncio, de uma ou várias vítimas
na iminência de serem tragadas pela danação, este é o propósito de Bergman a partir daí
( Persona é o filme que propriamente destila a impressão da queda final no abismo).A
reação de Karen, ao descobrir no diário de seu pai que ele não pode se impedir de
observar com interesse a deterioração de seu psiquismo é um esboço en mineur do
movimento de ruptura que afeta Persona no momento em que Alma se apercebe de que
a atriz, protegida por seu silêncio, a vigia e se deleita com seu tormento. Estes
casamentos perigosos, estes transbordamentos do ser, estes jorros de palavras duras,
indispensáveis à sobrevivência do Outro ligam ( raccordent) os filmes de Bergman ao
tema do vampirismo. Um silêncio absorve e reabsorve uma palavra através da qual o
Outro se esvazia e se rompe, ao entregar-se. Não nos espantemos enfim ao ver se
operarem estranhas interferências entre o vampirismo e o cristianismo. Em Bergman,
Deus é o vampiro supremo, aquele que disseminou seu sangue, sua substância, mas
sobretudo que espalhou sua palavra pelo mundo, distribuiu seus germes nocivos em um
movimento de ilusória generosidade, cujo poder se reativa durante a comunhão, quando
os fiéis absorvem seu corpo e seu sangue. Mesmo assim, este estado de possessão do
crente ( ou tomada de posse: prise de possession) não é o mais pernicioso. O verdadeiro
horror acontece quando a divindade silencia, e as vítimas contaminadas não
reencontram mais seu sabor, quando se faz sentir a ausência e a privação que conduzem
os fiéis à busca de seu mestre e senhor, a segui-lo em sua retração, a se perderem em sua
cripta de proteção e de recuo. Ainda mais que na alusão ao Deus-aranha de Através de
um espelho, ou no abandono desolador de Os comungantes, a fulgurância do plano da
crucificação da mão, no começo de Persona, conjuga os dois grandes temas mortais de
sua obra.

É preciso retomarmos sempre uma mise en garde2 , no sentido de que se não tomemos o
que ficou aqui descrito por um catálogo ou inventário de temas e obsessões no
aprofundamento dos quais Bergman se empenharia hoje. Se fosse apenas assim- se a
vertigem da queda, a ausência, a perda e a dissipação fossem os únicos temas a serem
evocados a propósito de seus filmes- ,e se mesmo se, assim sendo considerados, eles
não participassem intimamente da matéria da narrativa, tanto quanto da própria,
correríamos o risco de fazer Bergman recair sob a reputação desagradável de “cineasta
de idéias”. Ora, Bergman se coloca contra este clichê exatamente na medida em que as
forças da “desapropriação autoral” afetam estruturalmente seus últimos filmes. Não que
se manifeste neles uma abstração cada vez mais marcada, este ressecamente e gosto por
agenciamentos matemáticos através dos quais uma convenção deseja que se reconheça
um autor que chegou à maturidade. Não percebemos, do primeiro ao último filme,
nenhum desperdício importante de conteúdo, nenhuma “desencarnação” em proveito de
uma ordem estritamente relacional das figuras ou de uma acuidade gráfica: pensemos,
neste sentido, na presença plena e opressora dos corpos, no calor e na umidade de O
silêncio, ou na acumulação de incômodos e de entraves físicos que atormentam os
personagens de Os comungantes ( Luz de inverno). Parece-me apenas que o espaço e a
luz onde se dispõem os corpos sofreu uma mudança. Como se um universo esférico,
denso e saturado, estreitado sobre sua plenitude e seu peso tivesse pouco a pouco sido
submetido à forças de disjunção, eriçado de lacunas, esvaziado, penetrado por um poder
de dissolução, disposto em uma espécie de concavidade voltada para nós, tomado em
um movimento de arruinamento que teria conservado intacta uma única plataforma,
sobre a qual as criaturas se disporiam como fantasmas. Fantasmas agitando-se no
precipício da obra e designando como obra- como o tema e o próprio perigo da obra-
esta zona branca onde os personagens não mais existem. Por longo tempo mantidos no
limiar dos filmes, as forças silenciosas e o poder de gerar o vazio foram insidiosamente
deslizando na própria textura da obra, dissipando os seus volumes, borrando seus
contornos, tornando menos nítidos os seus relevos e menos precisas suas fronteiras.

Concebemos então que os filmes cuja proposta está em jogar com o risco destas
ameaças escapam à certeza psicológica, , e que os próprios filmes sofrem esta
“regressão” que ocupa em sua totalidade a obra de Bergman. O silêncio, o mutismo, não
são mais acordados a algum personagem em particular. A cadeia metafórica onde se
alternam as figuras do pai, de Deus e do artista não admite mais nenhum destes três
termos como autoridade superior ( durante um longo tempo, acreditou-se que a figura
divina, ou sua ausência, fossem a instância suprema da obra bergmaniana e sua
transcendência). Nenhuma precedência é mais acordada a um dos termos sobre outro,
cada termo aparecendo como um acidente passageiro ou a figuração momentânea de um
poder mais profundo, neutro, impessoal, indiferenciado.

Se em O Rosto, o ilusionista Vogler ( nome que é o mesmo de Elizabeth em Persona)


cultivava o silêncio, era, confessava ele ao fim do filme, por não estar seguro de seus
poderes de mágico. Desde então, o silêncio em Bergman não é mais designado como
um poder, um atributo do qual qualquer um disporia a seu bom grado; agora, ele excede
a decisão e a escolha, torna-se este poder através do qual aquele que é por ele afetado
sofreria o mesmo grau de soterramento espiritual e regressão que o silêncio provocara
no Outro.A força de apelo e de retirada ( retrait) 3 submete à sua lei tanto aquele que
padece da mudez quanto aquele que fala diante dele. A atitude da atriz em Persona não
se motiva. As explicações , tanto do médico- que evita se identificar com as opiniões de
um meio medíocre- quanto de Alma, ditada pelo orgulho, são do domínio da
psicologismo. E esta não é a armadilha menor deste filme- simular o silêncio de
Elizabeth como algo advindo por vontade própria dela, silêncio decidido e guardado,
acontecido, palavra bloqueada-, depois reduzir a nada esta interpretação, revelando este
silêncio como aquele que não se pode guardar( deter a guarda), que escapa e submerge,
fusiona por todas as partes, silêncio em direção ao qual remontamos como à fonte
culminante de toda linguagem, silêncio anterior à toda palavra.

Refiramo-nos aqui a um texto de Bergman onde ele conta o terror que lhe causava,
quando era vítima de uma doença infantil, uma cortina que balançava. ( O que é fazer
filmes?, Cahiers du cinéma, número 61, p.16): “ Era uma cortina preta, dessas mais
comuns mesmo, que eu via no meu quarto de criança, na aurora ou ao crepúsculo,
quando tudo adquire vida e se torna um pouco assustador... Era sobre a superfície que
as coisas se encontravam: nem homens bons, nem animais, nem cabeças, nem rostos,
mas coisas para as quais não existia nome!...Elas eram implacáveis, impassíveis e
assustadoras...”
É na tentativa de reencontrar estas formas inomináveis, esta indistinção originária onde
se reabsorvem todos as figuras que o autor se esforça hoje. Lugar aterrorizante, núcleo
onde se desfazem as significações, zona de a-simbolização primária. O sem-figura, o
sem-rosto, falando propriamente o inqualificável. Indiferenciação primitiva que não
constitui o retorno à unidade- onde tudo viria a se resolver e se apascentar, na plenitude
do Único-, mas o sem-coerência, sem-certeza. As horas que afetam Bergman, aurora e
crepúsculo, são- além das propícias à formação e à dissolução dos vampiros-, as horas
onde ainda não se efetuou a divisão das luzes, onde ao mesmo tempo o dia cai e a noite
ascende.
Ao fim, restaria apenas, para a compleição do processo, tender à própria dissolução.
Trabalho côncavo que se efetua em muitas regiões em Persona: inscrição do filme em
uma projeção de filme,” invagination” 4 da narrativa em si mesma ( o campo-
contracampo já célebre onde o mesmo texto se encontra escutado por aquela que fala e
dito por aquela a quem este se dirige), ameaça de interrupção marcada pela
“queimadura” da película no exato momento de seu desenrolar, a obra esboçando nesta
inscrição o movimento de se abismar em sua própria fissura. Momentos onde se
confirma a relação direta de Bergman a Murnau como cineasta do horror, mas cineasta
onde a obra se destinaria a tornar-se o próprio horror.

Jean Narboni, Le festin de l’araignée, Cahiers du Cinéma, 193, setembro 1967


Tradução: Luiz Soares Júnior

Notas do tradutor:

1. Slapstick: Tipo de comédia, muito comum no cinema mudo, envolvendo ações


tresloucadas e intensa violência física. Mack Senett, Fatty Arbuckle e The Keystone
Cops foram alguns de seus representantes mais famosos ( e mais esquecidos hoje).
2. Pôr-se em guarda contra, defender-se de.
3. Retrait: a palavra é usada aqui no sentido de uma metáfora que indica o poder
movediço, de “retirada de cena” que a força superior exerce sobre o personagem, como
se este tivesse sido “sugado” para o interior da cripta do vampiro, para fora do campo –
o caráter sinistro da expressão e a analogia com filmes de terror não me parecem
casuais- por uma força misteriosa, e sobretudo silenciosa, irrepresentável. Qualquer
analogia igualmente com a pulsão de morte freudiana também não me parece mera
coincidência.
4. Invagnation: Em português: intussuscepção. Termo médico que designa a
incorporação de um segmento do intestino numa região mais profunda do mesmo. No
caso, a narrativa incorpora ( ou deglute) a si mesma, em Persona.

As lixeiras verdes de Gilles Deleuze, Por Luc Moullet

Com frequência, nas provas de meus alunos na Universidade de Paris III, encontrei
referências a um certo Gilles Deleuze. Intrigado, fui à biblioteca municipal mais
próxima, onde tomei emprestadas as duas obras deste autor consagradas ao cinema.

A imagem-movimento e a imagem-tempo...Eu pensava que leria no primeiro volume


estudos sobre Renoir ( o balé dos personagens na Regra do jogo ou em Carruagem de
ouro), sobre Ophuls, Mizoguchi, Fuller ou Téchiné, e no segundo uma análise da arte de
Stroheim, Ford, Duras, Pagnol, Rozier, Leone, os grandes mestres do tempo. Bem, nada
disso. Ocorreu até mesmo o contrário do que eu esperava. Ophuls só é citado na
Imagem-tempo, e Stroheim apenas na Imagem-movimento. Pagnol, Rozier, Leone são
totalmente esquecidos.

É que, para Deleuze, o movimento não é o movimento, e o tempo- de forma menos


agressiva, no entanto- não é exatamente o tempo. A imagem-movimento seria “um
conjunto acentrado de elementos variáveis que agem e reagem uns sobre os outros
( p.291), o jogo que conduz uns aos outros. Sob esta perspectiva, poderíamos sustentar
que Apotheosis, de Yoko Ono, feito de um único plano seqüência, um perpétuo
travelling vertical, não é imagem-movimento, mas imagem-tempo ( voltarei mais tarde
nisso aí). Ok. Esta definição talvez ficasse mais clara se Deleuze tivesse falado de
movimento dialético.
Na página 291, Deleuze enumera várias categorias de imagem-movimento, ,
notadamente a imagem-percepção ( “conjunto de elementos que agem sobre um
centro”) e a imagem-ação ( “reação do centro ao conjunto”). É no mínimo curioso que
estas variedades da imagem-movimento se refiram a um centro, já que Deleuze define a
imagem-movimento como um conjunto descentrado. Tenho dificuldade em entender
isso...

Deleuze nos propõe um exemplo preciso de imagem-percepção: no Broken lullaby,


Lubitsch mostra um grupo de homens, de pé, vistos à altura do chão, a câmera colocada
“sob a perna que falta de um inválido”, igualmente de pé. Eis um enquadramento que
parece totalmente gratuito. Mas o plano seguinte revela que se trata do ponto de vista de
um cul-de-jatte 1. O que tomáramos por um simples maneirismo era na verdade a visão
subjetiva de um indivíduo. Há aí um movimento na narração e na consciência do
espectador que nos permite chegar a esta conclusão.

A imagem-afecção, segunda variedade da imagem-movimento, “é o que ocupa o


intervalo entre uma ação e uma reação, o que absorve uma ação exterior e reage
internamente”. Primeiro exemplo: o close de um rosto, reflexivo ( em que você está
pensando?) ou intensivo ( o que você está sentindo?). É verdade que, com frequência, o
close mostra uma reação do rosto ao que se passara no plano precedente, geralmente
mais amplo, mas esta constitui uma técnica vulgar, primária mesmo ( que pode dar
resultados magníficos, mas que foi super explorada por todos os cineastas tarefeiros).
Portanto, não se pode escrever que o close constitui um intervalo entre uma ação e uma
reação, já que ele próprio é a reação, contém em si mesmo a reação, que se situa aliás
quase sempre no início do plano.
E limitar o close a este valor de resposta para uma ação ( o que é estudado por Deleuze
ao longo e ao largo de vinte e cinco páginas) leva a mascarar de forma muito redutora
os outros usos, mais inovadores e criativos, do close, aqui omitidos: se um filme começa
pelo close, ou constitui-se em uma série de closes, como no húngaro Princesa ou na
Jonana D’arc do Dreyer, não se trata forçosamente de uma “seqüência” à ação, ou da
absorção de uma ação exterior. Mais de cem fotogramas de Gérard Courant ( únicos
closes-sequências de rostos) são sem referência a uma ação prévia ou exterior.
Tampouco quando uma personagem em close come, escova os dentes, morde seu
vizinho ou faz um gesto zombeteiro pra platéia. Neste último caso, é inclusive a ação
que provoca a reação, o exato inverso do que afirma Deleuze, contradito também pelo
close pillow-shot ou plano de corte, ou a sequência lírica de closes breves, mais ou
menos idênticos, ou mesmo o plano de um homem que recebe uma bofetada no campo:
neste caso, o intervalo entre a ação e a reação é imperceptível, da ordem de vigésimos
de segundos. E aqui a ação não é de forma alguma exterior.
Estes dois modos de dialética presumida, que Deleuze completa pelo estudo do par
sombra-luz, se fundam sobre uma certa especificidade do cinema, ligada à sua
gramática, à sua técnica ( découpage, close, flou, iluminação). Ora, é bem evidente que
as linhas dialéticas, no cinema, ultrapassam estas especificidades. É justamente por isso
que Deleuze inclui uma terceira forma de imagem-movimento, dita imagem-ação que,
ao que me parece, não tem nada a ver com a definição popular de ação no cinema.
Trata-se de uma dialética entre o indivíduo e a sociedade, o detalhe e a totalidade, a
ação particular e a situação geral. Quando o cineasta parte do indivíduo para atingir a
sociedade, chama-se “pequena forma” ( Lubitsch seria o mestre nisso), e quando dá-se o
contrário, a “grande forma”: assim, as superproduções de Cecil B. DeMille. A distinção
é às vezes meio ociosa: se Male and female ( DeMille, 1919) começa por planos bem
gerais ( o céu, o mar, o canyon do Colorado, uma citação da Gênese), chegamos em
trinta segundos à vassoura, ao balaio e ao balde d’água,e permanecemos mais ou menos
nesse nível durante o resto do filme, salvo- no meio- quando do episódio babilônico.
Teoricamente, trata-se da grande forma, mas este começo fanfarrão é tão breve...é o
mesmo problema no caso de vários filmes americanos, que começam por apresentar de
forma breve uma cidade ( Beyond the forest, Pride of the marines, The seven year itch)
antes de se ligarem definitivamente a um itinerário individual. As idas e vindas do
particular ao geral se emaranham, se invertem freqüentemente, e desemaranhar a
pequena da grande forma muitas vezes equivale a recair na velha questão da prioridade
do ovo sobre a galinha.
Neste catálogo de movimentos dialéticos, vamos constatar um número de notáveis
esquecimentos, quer sejam as dialéticas fundadas sobre técnicas do trabalho, overplay e
underplay ( Kazan), visível-invisível ( Tourneur), gênero e não-gênero ( Monte
Hellman), sobre noções mais vastas, como natureza e cultura ( Boudu), cidade e campo
( Vidor), lentidão e velocidade ( Rising of the moon, Ford), risos e lágrimas ( Chaplin),
trivialidade e sublime ( Godard), lógica e absurdo( Hawks, Buñuel), amor e ação ( o
cinema hollywoodiano), ou sobre valores ideológicos, nacionalidades e classes sociais
( A grande ilusão), racismo e tolerância ( La derniére chasse), eficácia e justiça ( Marca
da maldade), isso sem falar das dialéticas medíocres ( os bons e os maus, a fuga pro
México ou a prisão) que atravancam a maior parte das telas. Algumas destas categorias
ao menos poderiam ter sido objeto de menção neste díptico de vastidão enciclopédia.

Ao invés disso, espremida entre a imagem-afecção e a imagem-ação, Deleuze introduz


uma nova categoria, a imagem-pulsão, que cai aí como um cabelo na sopa. A pulsão,
segundo Deleuze, seria ligada ao naturalismo, onde o movimento se criaria na passagem
do homem ao animal ( o que nos prova bem que Deleuze não dispensa sistematicamente
as dialéticas com fundamento extra-fílmico, e que se livra delas quando bem quer,
aliás).
A história toda é um pouco dura de engolir, sobretudo pelo fato de que o “animal” ( no
naturalismo) é com frequência colocado desde o começo do filme ( Foolish wives,
Manèges de Allégret), e não é portanto o resultado de um movimento visível. De fato,
pulsão e naturalismo seriam antes dois pólos antagônicos, pois a pulsão, frequentemente
pulsão de um personagem que reflete a do realizador, está muito distante do princípio
do naturalismo ( a realidade deve ser descrita sem alguma interpretação, devida ao
espírito do autor). Calor da pulsão, frieza do naturalismo.
Os exemplos dados por Deleuze deixam o leitor estupefato. Poderíamos crer que
Deleuze, a propósito do naturalismo, citaria os filmes do Kammerspiel, o Rail, a Noite
de São Silvestre, a Última gargalhada, a Rua sem alegria, Um homem anda pela cidade
de Pagliero ou Manéges, ou os Renoir como On purge bébé, A cadela ou Boudu,
Umberto D., Honeymoon killers de Kastle. Bem, nada disso. O naturalismo seriam
Vidor, Ray, Losey, Fuller. Todos, é verdade, muito dependentes de suas pulsões. Mas
que autor se distancia mais do naturalismo que Vidor? Apenas The crowd e, em certa
medida, Cenas da rua poderiam ser classificados como filmes, digamos, realistas.
Podemos dizer de Vidor que ele é romântico, lírico, delirante, expressivo, idealista,
assim como Gance e Dovjenko, a quem o comparam sempre. Mas o mundo de Ruby
Gentry, de Fountainhead, de Hallelujah, da Grande parada é totalmente irrealista,
surrealista mesmo. O cúmulo é que Deleuze qualifica seu Duelo ao sol de “western
naturalista”, quando se trata do sumo do artifício hollywoodiano , da loucura romântica
wagner-nietzscheana. No Jornada tétrica de Ray, que Deleuze descreve como uma
“obra-prima do naturalismo”, a paisagem tem uma grande importância ( assim como no
Duelo ao sol), então nos damos ao direito de achar que Deleuze cometeu um erro
crasso, digno de um colegial, algo que julgávamos inadmissível de sua parte. Ele
confundiu o naturalismo à la Zola, onde a arte deve reproduzir a natureza em todos os
seus aspectos, mesmo os mais feios e repulsivos, com o trabalho do naturalista, que
estuda plantas, minerais e animais. Devido à pobreza da língua francesa, um convite a
isso, ele pôs no mesmo saco Emile Zola e Bernardin de Saint-Pierre, Huysmans e
Buffon: era de se esperar...Não há outra explicação: o barroco do bordel no Jornada
tétrica, a truculência de Gueule-de-Cotton que, agonizante, chama os urubus: “Vinde a
mim, sou gordo e roliço”, se junta ao hénaurme 2 de Jarry, Hugo, Rabelais ou Céline, e
não tem nada a ver com o escalpelo de Zola. Ray testemunha um lirismo que exprime
conivência até mesmo com seus personagens mais negativos. Outros supostos nomes do
naturalismo, Fuller ( que não recua diante de nenhuma inverossimilhança, e realizou o
filme mais louco de todos, Shock corridor, com um negro que milita pela Ku Klux Kan)
e Joseph Losey...
Poderíamos, em um certo limite, aceitar o epíteto realista no caso de filmes como The
big night, the lawless ou Imbarco a mezzanotte( realistas no mesmo sentido que centena
de filmes americanos ou italianos um pouco “medíocres”), filmes que Deleuze não cita.
Em revanche, os exemplos que evoca, Time without pity, Secret ceremony, Eva, The
damned, Mr. Klein, The servant, não tem nada de realmente realistas, ainda menos
naturalistas. Os dois últimos são fábulas, e os outros se ligam ( assim como seus
personagens) a um frenesi neurótico totalmente irrealista.
“Não há poucas diferenças entre o naturalismo de Stroheim e de Buñuel”, avança
Deleuze ( página 183),que precisa que a diferença entre Stroheim e Buñuel seria
concebida não tanto como entropia acelerada, mas sim como repetição precipitante,
eterno retorno”. O problema é que, em Buñuel, há naturalismo e repetição, ok, mas os
dois jamais estão ligados: o naturalismo pertence à primeira parte da obra ( Las Hurdes,
Los olvidados, El bruto, mesmo Suzana e o Diário de uma camareira), em uma época
em que Buñuel não possuía muitos meios, e poderia dificilmente filmar algo que não
fosse a realidade. Este naturalismo recusa frontalmente a repetição, que vai dominar em
sua obra nos anos finais, melhor dotados financeiramente ( O anjo exterminador, Belle
de jour, O discreto charme da burguesia, Este obscuro objeto de desejo), e que expulsará
de sua órbita todo naturalismo. Há, claro, aqui e ali, evocações breves de perversões
sexuais, a presença dos W.-C, vestígios do naturalismo, mas que ora são tratados como
elementos oníricos ou irônicos, ora possuem um status incerto e indefinível, uma terra
de ninguém que permanece também totalmente alheia ao naturalismo.
Portanto, não vou me demorar mais tempo nesta imagem-pulsão, de longe o pior
capítulo do díptico deleuziano; partirei para a imagem-tempo...

Até aqui Deleuze tinha se esforçado para dar definições de seus neologismos, mas ele
não consegue precisar em que consiste a imagem-tempo. Ele define o tempo ( páginas
49 e 50 do tomo 1) em ocasiões “como intervalo” - mas Deleuze não se demora nesse
intervalo no cadre da imagem-tempo. Antes assim!, pois este intervalo parece-se muito
com o intervalo da imagem-movimento, e sobretudo da imagem-afecção. Ou então
define o tempo “como tudo”, ou seja, os dois extremos, o dia e a noite. A imagem
tempo me lembra essas lixeiras verdes onde, no meio dos compartimentos azuis para os
jornais velhos, compartimentos amarelos para as embalagens e brancos para garrafas,
enfiamos todo o entulho que nos vem à cabeça na hora. Podemos dar da imagem-tempo
uma definição negativa: é tudo o que não é imagem movimento, ou mais exatamente
tudo o que não está subordinado a ela ( como está indicado na página de abertura da
Imagem-tempo), o que constitui um centro, enquanto a imagem-movimento é um
princípio sem centro. Da noção de centro ( intervalo), que pressupõe a existência de
extremos, passa-se à noção de conjunto, de todo, que pressupõe a inexistência de
elementos exteriores. E o todo seria o resultado da montagem, e constituiria também o
tempo, pois é também a montagem que cria o tempo do filme. E o todo estaria em
relação direta com o tempo. O todo e o tempo, aliás, combinam muito bem entre si, pois
tanto um quanto o outro- ao contrário do movimento- tendem a nos escapar, e
permanecem indecomponíveis e misteriosos. Sabemos quase tudo do movimento- se
ligarmos este termo ( seguindo a definição clássica, e não a deleuziana) à noção de
espaço-, sobretudo desde Magellan3 e Neil Armstrong4, enquanto que o tempo passado
é cheio de obscuridades, e sempre permaneceremos ignorantes em relação ao tempo
futuro, o tempo – é certo!- que nos matará.
Curioso amálgama esta aliança centro-todo-montagem-tempo... Deleuze se vira por
meio de astúcias. “Eisenstein não cessa de nos lembrar que a montagem é o Todo do
filme, sua Idéia”. Mas é Eisenstein quem o diz. Ok, é um cara genial, mas em que isto
implica que ele tem necessariamente razão? Podemos sustentar que a montagem talvez
fosse “tudo” para ele ( como também para Godard, Resnais e talvez Welles); mas não
seria forçosamente “tudo” para os outros, para seus detratores, nem mesmo para ele,
Eisenstein: seu último filme, Ivã, o Terrível, é uma obra-prima onde há um mínimo
trabalho de montagem. Talvez esta idéia da Montagem identificada ao Todo fosse uma
idéia de juventude de Eisenstein, que ele teria abandonado ao fim da vida, e que teria
nascido do fato fortuito de que, no começo de sua carreira, com os racionamentos na
Rússia da época, ele só dispusesse de pequenos pedaços de película.

Quanto aos outros... Aos nossos amores de Pialat permanece um imenso filme, embora
seja mal estruturado, mal decupado e, portanto ( quase forçosamente) mal montado
( nesse sentido, como separar – a não ser em relação ao documentário e ao filme
improvisado- o que pertence à montagem e ao découpage? Os Oscars e Césars de
montagem sempre me deram vontade de rir...). Em certos cineastas minuciosos ( tipo
René Clair), o todo é mais o découpage que a montagem, e este é terminado antes
mesmo da filmagem. Para uma série de grandes cineastas, o todo está antes nos atores
do que na montagem ( assim, o caso de certos filmes de Doillon, Cukor, Ray ou Renoir,
que era provavelmente o maior de todos, mas que não era um montador muito bom).
Ganância, Soberba, A mulher na praia ( e também Que viva o México!) atingem os mais
altos níveis de cinema, mesmo que seus autores não tenham podido controlar a
montagem e tenham renegado a versão montada. E que dizer da montagem no filme
com plano único ou em plano seqüência, tipo Jancso?

Ok, quase sempre é a montagem que cria o tempo do filme ( quando não se trata do
plano seqüência ou do fluxo do plano curto), mas este tempo criado é o tempo no
sentido de tempo, de ritmo, de duração, de respiração, mas quase nunca – ao contrário
do que pretende Deleuze- o tempo no sentido de uma oposição presente-passado,
flashback ou flash-forward. Jogando 5 com as palavras, como é seu hábito, Deleuze
coloca esta tempo sob as sub-categorias da imagem-tempo.A relação presente-passado,
quase sempre prevista no roteiro ( DeMille, Godard, Intolerância, As três luzes de Lang,
François Ier) participa quase sempre de uma dialética: trata-se da imagem-
movimento( com exceção de certos filmes de Resnais).

Apercebemo-nos que a imagem-tempo, tal como concebida por Deleuze, só existe


muito raramente, e com freqüência não onde ele a situa. Hegel nos dizia que tudo era
dialética, e portanto movimento. Às vezes, quando não percebemos o movimento
dialético, é que ele se mostra de forma muito sutil, muito sub-repticiamente
dissimulada. É o caso quando o diretor é genial. Filmes como La choette aveugle ( Ruiz,
1987) Puissance de la parole ( Godard, 1988) parecem à primeira vista magmas ( termo
mais conveniente que o de imagem-tempo), mas um esforço de análise acaba por
precisamente esclarecer as linhas desta dialética. Exagerando um pouco, eu diria que a
existência da imagem-tempo não passa de um atestado das insuficiências do espectador,
da minha portanto. Não há imagem-tempo na equação espaço-tempo ( com a exceção de
Resnais) ou no neo-realismo, que Deleuze descreve erradamente como o preâmbulo da
imagem-tempo. Segundo ele, o neo-realismo seria a “irrupção de imagens puramente
óticas e sonoras ( tomo 2, pg. 9), como para um documentário bruto. Ora, na verdade, se
o neo-realismo, evocando o magma bruto da realidade, oferece certas características do
documentário, ele as perverte pela existência de um roteiro, pela música, pela intrusão
de personagens principais, pelo sentido social, pelo pathos. O primeiro tema do neo-
realismo é a relação do indivíduo com o mundo, do homem com a sociedade, é portanto
a imagem-ação no sentido deleuziano, assim como o filme americano clássico. Com
exceção do raro caso em que não haja um personagem principal, a identificação é
soberana ( nos identificamos com o ladrão de bicicleta e com a criança). E o mesmo
Ladrão, pela composição de uma luminosa atmosfera, que reflete o mood dos
personagens, não está tão longe assim do expressionismo estudado na imagem-afecção.
O indivíduo ( ou o casal) que se sente estrangeiro ao mundo mostrado, que luta contra
ele, esquema típico do cinema-ação, nós o reencontramos em Viagem a Itália,Europa
51, Stromboli ( Deleuze tinha previsto esta objeção, mas se sai dessa enrascada por
meio de uma pirueta: com os Bergman-Rossellinis, trata-se de um “cinema de
clarividente”, e não mais de ação. Nova categoria a inserir na imagem-tempo, o cinema
do clarividente... Mas Mr. Smith e Mr. Deeds são também clarividentes, e eles estão no
meio do cinema da imagem-ação...), Alemanha ano zero, Roma, cidade aberta, Ladrão
de bicicletas. O neo-realismo descrito por Deleuze é um neo-realismo idealizado, tal
como deveria ser, tal como jamais existiu. Talvez haja exceções, o Umberto D... em
minha opinião, a única verdadeira exceção se situa em 1968, no período posterior ao
neo-realismo, com Fuoco de Baldi, magma fundado sobre a pulsão e aparentemente
desprovido de dialética.

Deleuze- o delusivo 6 Deleuze- dá às palavras significações que não tem nada a ver com
as significações correntes. Ok. Mas o hic é que, no calor do discurso, ele re-introduz
estas palavras com seu sentido corrente e assim conforta suas teses, assegurado da
aprovação do leitor, que vai coincidir plenamente com as reaparições “aliviantes” da
palavra em seu sentido banal. Se seguirmos a lógica deleuziana, seríamos levados a
reconhecer que Ladrão de bicicleta e Viagem a Itália permanecem perfeitos exemplos
de imagem-ação. Mas como há pouca ação nestes fIlmes, podemos aceitar mais
facilmente a exclusão dos mesmos desta categoria. Da mesma forma, seríamos tentados
a incluir os Dez mandamentos de 1956 na grande forma do cinema-ação, por ser um
filme caríssimo e espetacular. Mas a grande forma, isto é, a passagem do geral ao
individual, inexiste neste filme, pois Moisés não possui um comportamento que o
individualize e permanece o perfeito autômato a serviço do Deus cristão. Como o filme
se lambuza no geral, sem jamais dele sair, poderíamos sustentar que não se trata de
imagem-ação, mas de imagem-tempo, com este magma típico das altas esferas do
dogma religioso convencional e da estilística sulpiciana 7. Não vou aliás tão longe, pois
este querido filme se funda sobre uma linha dialética muito pobre: o Deus cristão contra
o Deus egípcio. Mas eu sustento vigorosamente que um filme recheado de ação como A
guerra do fogo, precisamente por não ser nada além de ação, não pertence à imagem-
ação ( pela falta de uma dialética entre a ação particular e a situação geral),e ainda
menos trata-se de um filme da grande forma; trata-se de um filme da imagem-tempo,
pois eu o sinto como um magma puro.E finalmente, um dos melhores exemplos do
cinema-ação da grande forma é, não uma superprodução, mas um filme relativamente
pobre, Jeux interdits, com quinze minutos de guerra violentíssima em seu começo, e em
seguida o itinerário íntimo de duas crianças.

Outra vez Deleuze troca as bolas com suas definições contraditórias. Vimos isto com a
dialética passado-presente, classificada de forma abusiva na imagem-tempo ( quando
esta dialética é frequentemente da ordem do movimento); e o duo naturalismo-
naturalista, Paul, Emile ( Zola) e Virginie. Ou ainda, quando ele fala da crise da
imagem-ação, refere-se unicamente ao cinema americano, por ser um cinema fundado
sobre a ação. Ao invés de falar em imagem-movimento e imagem-tempo, seria melhor
falarmos, por exemplo, de nelbugoz e de dagmalouak, isto teria lhe poupado muitas
contradições...
Ele dedica um capítulo à imagem-cristal. O cristal, para Deleuze, é o aspecto multifaces,
estilo Ophuls, Dama de Shangai, a polivalência barroca. Mas pouco depois ( tomo 2.
pág. 176), fala de “descrições óticas e sonoras, puras, cristalinas”. O termo cristal
designa aqui portanto a pureza, a limpidez. Multifaces e limpidez: dois sentidos muito
diferentes.

Ele retoma aí os jogos de palavras godardianos ( sem o humor), abusivamente


transferidos da esfera artística para a filosófica, que deveria ser a de Deleuze. Da mesma
forma, ele coloca a pulsão na imagem-movimento, antes de se contradizer, feliz e
inconscientemente, afirmando no cadre do estudo da imagem-tempo ( tomo 2, pág.
207): “ O Todo não é mais o Logos que unifica as partes, mas a embriaguês,o pathos
que as banha e se espalha por elas”. Me sinto no direito de aproximar a noção de pulsão
daquela de embriaguês e pathos, e portanto de deduzir que a pulsão seria, não da
imagem-movimento, mas uma forma do todo, e imagem-tempo.
Ao fim das contas, se fizéssemos um inventário das situações da imagem-tempo,
poderíamos definir cinco sub-grupos:

- O todo definido pela montagem, que repousa ( o próprio Deleuze o reconhece) sobre
movimentos dialéticos prévios, e que, em geral, apenas os “re-copia” de forma servil;

- o todo definido pela montagem, que se exprime pela criação de um tempo resultante
de linhas dialéticas temporais ( adágio-allegro), que Deleuze estuda de forma muito
apressada, também elas avalizadas pela montagem;

- o todo definido pela montagem, que se exprime pela criação de um tempo sem
dialética; trata-se talvez do caso de Pagnol, Rozier, Leone, esquecidos por Deleuze, de
Duras ( que ele evoca na Imagem-tempo, mas sobretudo para assinalar seus movimentos
dialéticos entre som e imagem, entre voz off e voz on, sem estudar seu trabalho sobre a
respiração do filme), e enfim de Stroheim ( que ele limita, por um contra-senso
flagrante, ao naturalismo, sem analisar o status da duração em sua obra);

- a montagem totalizante que destrói- caso raríssimo- as veleidades dialéticas do roteiro


( Wild river);
- o todo definido pela montagem, e que exclui a dialética; entraria aqui o cinema
experimental, Michael Snow, Serge Bard, Carmelo Bene, a Cicatriz interior de Garrel, a
Femme du Ganges ( Duras), a Vingança de Kriemhilde ( Lang), Honeymoon killers
( Kastle), a Idade da terra ( Rocha), Jeanne au bûcher ( Rossellini) e também alguns
nabos espetaculares do tipo Guerra do fogo ou superproduções americanas ( o espantoso
Evil dead) que são apenas seqüências de atos violentos.

De fato, estes três últimos setores são os únicos que correspondem à imagem-tempo
deleuziana, e são apenas parcialmente analisados por Deleuze, que se contenta com
observações muito pertinentes sobre Snow e Bene. É preciso dizer, em sua defesa, que é
difícil escrever sobre esses filmes, que oferecem uma superfície muito escorregadia,
pouco propícia à glosa.
A imagem-tempo compreende, portanto, filmes ambiciosos e de qualidade- que
merecem amplamente que nos debrucemos sobre eles-, mas que constituem apenas uma
parte ínfima da produção de filmes interessante e uma parte ainda mais ínfima do
conjunto da produção. Separar a imagem-tempo da imagem-movimento, o magma da
dialética, é portanto um exercício um pouco vão ( até porque às vezes os dois se
encontram no mesmo filme). Ainda mais vão me parece opô-los: é David e Golias, o
pote de barro e o de ferro, o 2D e o 3D. Quer se trate do tempo ou do movimento, com
centro ou sem centro, isso não vai nos levar muito longe.
Podemos nos espantar então que a Imagem-tempo contenha cem páginas a mais que a
Imagem-movimento. Deleuze deve ter tido medo que seu Imagem-tempo fosse muito
curto, recheou o quanto pôde o seu livro de coisas aqui e ali, em ordem aleatória, ao que
parece. Os três últimos capítulos da Imagem-tempo ( pensamento, corpo e cérebro,
componentes), que ultrapassam constantemente suas barreiras entre si, são os melhores (
ainda que o fio de Ariadne seja bem artificial, com classificações arbitrárias: Doillon
unicamente colocado sob a rubrica corpos): aqui, Deleuze não desperdiça tinta, tentando
inserir suas matérias em uma das duas grandes malhas conceituais.
Na verdade, me parece que os dois títulos estão lá porque “soam bem”, para ajudar
Deleuze a vender seu peixe- um intrusivo ( e inconsciente) MacGuffin, um pouco como
o título Pierrot le fou atraiu dinheiro e multidão para o filme de Godard, sem que o
filme mostre uma única vez o célebre bandido homônimo. O trágico em Deleuze é que
ele entulha seus capítulos injetando filmes e teses sem ligação com o assunto, mas tem
uma hora que lhe dá a vontade de foder com tudo ( a repetição buñueliana no interior do
naturalismo, o naturalismo no interior da pulsão...). Encher lingüiça,- vc tem de encher,
se quiser cobrir a totalidade do cinema em 700 páginas-, então se cola uma única
etiqueta, forçosamente equivocada, em cada um: Mizoguchi pequena forma, Ford
grande forma, Vidor naturalista ( assim como há o mestre do suspense, o plano no nível
tatami de Ozu, as vacas gorduchas fellinianas). Ainda a mania patológica da
classificação! A razão disso também é que Deleuze quer conferir ao cinema um
prestígio de que este não tem a mínima necessidade, referindo-o a seus conceitos
bergsonianos. Seria antes Bergson, filósofo sem público ( e cinófobo) quem ganharia
com o cinema! Mas os pensadores extra-fílmicos adoram este gênero de equação que os
valoriza: há pouco tempo, um cara bizarro consagrou todo um livro para provar que
Virgílio era pré-cinema, porque a escritura da Eneida evocava a de um découpage...
Vocês podem me achar muito severo em relação a Deleuze, mas é que seu verniz
filosófico mascara suas qualidades. Deleuze pode ser apaixonante, vivificante, se
evacuarmos suas histórias de movimento e de tempo. Deleuze é um Skorecki que se
toma por Spinoza...Quanto mais o sistema é nulo, mais as percepções pontuais são
excitantes, tonificantes ( não sempre, mas frequentemente).
Em primeiro lugar, é talvez o primeiro historiador do cinema que se apóia
exclusivamente sobre bons filmes ou filmes ambiciosos, no presente imediato
( Syberberg, Straub, Jacquot, Eustache, Garrel) e no passado. Enquanto que Metz,
Cohen-Séat, Marcel Martin e Rijon se comprazem com as nulidades. Com Deleuze,
estamos sempre em boa companhia, em família. Deleuze é cinéfilo, e ama o bom
cinema.
Por outro lado, ele sabe degustar, sobretudo em revistas um pouco esquecidas como a
Cinématographe e Études Cinematographiques, as mais interessantes fórmulas
concernentes a um filme, fazer uma síntese das melhores citações, vindas de fontes bem
variadas, sobre um autor. E sobretudo, o próprio Deleuze exprime seus pontos de vista
originais sobre obras, em geral bem oblíquas. Quase sempre são opiniões jogadas às
cegas, em impromptus 8, mal colocadas, mal expressas e mal desenvolvidas em poucos
parágrafos ( o sumário final é mais útil para seguir o pensamento de Deleuze que o
próprio texto...); mas que importa...

Por exemplo, há observações que oferecem um primeiro esforço de síntese, que abrem
horizontes, sobre a crise da imagem-ação na América, ligada a cinco fatores: a “situação
dispersiva” (multiplicação dos personagens), “ as ligações deliberadamente frágeis”, a
“forma-balada”, “ a tomada de consciência dos clichês” e “a denunciação do
complot”( p.283).
Ou ainda sobre Sternberg: “A luz não tem mais nada a ver com as trevas, mas com a
transparência, ou translúcido ou o branco. Portanto, os cortinados e os véus de
Sternberg se distinguem profundamente dos cortinados e dos véus do expressionismo, e
seus flous do chiaroescuro deste. Não mais a luta das luzes contra as trevas, mas a
aventura da luz com o branco: é o anti-expressionismo de Sternberg.” ( p. 133)

Ou ainda sobre Duras versus Straub: “A primeira diferença seria que, para Duras, o ato
da palavra a atingir é o amor total ou o desejo absoluto. (...). A segunda diferença
consiste em uma liquidez que marca cada vez mais a imagem visual em Duras. (...). A
imagem visual, à diferença dos Straub, tende a ultrapassar seus valores estratigráficos
ou arqueológicos em direção a uma calma potência fluvial e marítima que representa o
Eterno”.( tomo 2, p.337).

Deleuze é homem da observação pontual, da comparação ( bem godardiana) , não da


teoria totalizante. A bem dizer, esta nunca deu grande coisa no domínio do cinema, com
exceção da fabricada pelos cineastas em sua obra pessoal. Difícil imaginar uma teoria
global da literatura. Acreditaram que poderia haver uma para o cinema por este, quando
de seu nascimento, existir em um espaço muito restrito, ainda mais limitado pelas
contingências econômicas. Os anos, o desenvolvimento internacional e a popularização
do exercício fílmico destruíram esta ilusão totalizadora. O geral é um engodo. Apenas
existe o local, o pontual. As grande teorias do cinema se limitam a ser um “Abre-te
Sésamo”, uma fórmula para tudo e para nada, uma chave: a montagem interdita
baziniana, a câmera-caneta de Astruc, o travelling como questão de moral
( Godard), a dialética Ageliana do cinema como oferta( oblatif) 9 ou como captura
( capitatif), o cinema de prosa e o cinema de poesia pasoliniano, o olhar à altura do olho
hawksiano, o cinema-emoção fulleriano- ou como dizia Auriol, “o cinema é a arte de
fazer belas coisas a belas mulheres”.
Luc Moullet, La Lettre du cinéma número 15, automne 2000).
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Notas do tradutor:
1. cu de bacia: Homem que teve ambas as pernas amputadas.
2. Deformação irônica da ortografia com sentido hiperbólico; enorme.
3. Magellan. Sonda espacial francesa, lançada em 1985, cujo nome é uma homenagem
ao navegador português Fernão de Magalhães.
4. Astronauta, piloto de testes e aviador americano, foi o primeiro homem a pousar na
Lua.
5. en jouant avec les mots. Jogando, brincando com as palavras, no sentido de jogos
semânticos, ambigüidades, metáforas, etc
6. De delusão: iludido, logrado. Jogo de palavras entre Deleuze e delusive, ou iludido,
enganado.
7. Iconografia católica típica de igrejas francesas construídas no século 19, século que
conheceu uma renovação da fé católica no país.
8. Improvisos.
9. oblatif: palavra derivada do latim oblativus ( que se oferece por si mesmo, que se doa,
voluntário). Altruísta, devotado.

Entrevista Jacques Rancière

B. A tentação do ícone e da metáfora insistente do Véu da Verônica no Histoire (s) du


cinema de Godard fazem eco a um certo retorno ao ícone, que se pôde exprimir nas
teorias da arte, como a de Georges Didi-Huberman por exemplo, valorizando noções
como as de presença e de traço, rastro ( empreinte). Como explicar este fenômeno?

R. A agitação intelectual de hoje em torno da imagem e do ícone conduzem a alguma


coisa que é constitutiva do regime estético das artes, ou seja, a valorização de uma
presença sensível impondo-se por si mesma. O que se opõe ao universo da
representação é, de um lado, a auto-afirmação de uma presença sensível, e de outro a
construção linguajar ad infinitum. A tensão entre estes dois pólos da “anti-
representação” nunca deixou de trabalhar todo o regime estético das artes e suas
imagens, sempre presas entre o status da presença bruta e do elemento linguajar. Se
falamos hoje em dia em ícone, não se trata nem de um retorno a uma problemática
representativa da cópia nem de uma preocupação ético-religiosa para a origem da
imagem, o protótipo. Este “retorno ao ícone” antes radicaliza as contradições deste
regime estético.

Podemos retomar os exemplos que vc citou, de um lado Godard, de outro Didi-


Huberman. Em Godard, a insistência sobre a imagem como presença imediata se
alimenta, em primeiro lugar, de uma certa constância de teorização do cinema que vem
de André Bazin e de toda um pensamento fenomenológico da presença. Mas há também
este fato que o estatuto da imagem no regime estético das artes sempre foi ambíguo, a
imagem sendo ao mesmo tempo duas coisas contraditórias: de um lado, um elemento de
um discurso ou uma manifestação cifrada que clama por uma decifração, e de outro,
uma presença in-significante que se impõe por si mesma, de maneira que com
freqüência a idéia de imagem pode se identificar à idéia de ausência de sentido. No
próprio centro da idéia da imagem, ocorre uma tensão entre estes dois pólos, entre a
relação do cifrado à decifração ou a relação de uma imagem a outra imagem,
constitutivo de uma linguagem, e ao contrário disto a idéia da não-relação, da presença
pura a-significativa oferecendo-se por si mesma.

Em Godard há a princípio esta referência fenomenológica, que é uma das maneiras


canônicas de interpretar este privilégio da presença sensível não mediatizada. Mas há
também um desespero em relação ao que fora o estatuto dialético da imagem, onde a
imagem era encarregada de portar um discurso oculto ou revelar um mundo. Há aí
qualquer coisa que me recorda a posição de Barthes na Câmara clara, um certo
desespero em relação à própria idéia de uma leitura das imagens, de uma decifração do
mundo, e ao mesmo tempo a supervalorização da presença sensível. Isto em Godard é
completamente contraditório, porque esta declaração sobre o ícone se acompanha de
uma prática onde todas as imagens são obrigadas a ser postas em discursos, a emitir
discurso se a colocamos diante de qualquer outra, na presença de não importa qual.
O discurso de Didi-Huberman remete, de uma outra maneira, à contradição interna ao
regime estético das artes. Este regime quis ser o da presença sensível contra a
representação , da tela simplesmente coberta de formas coloridas, contra todo e qualquer
tema. Mas ao mesmo tempo ele foi o regime do museu, do livro, da historicização. O
que faz com que o discurso dominante sobre a arte que acompanhou historicamente o
desenvolvimento da arte abstrata tenha sido, pelo contrário, o discurso “iconográfico”.
No começo do século 20, ocorreu uma conjunção ideal entre o desenvolvimento da arte
abstrata e um certo discurso sobre a história autônoma das formas plásticas, o discurso
de Wörringer. Foi esta conjunção que Deleuze procurou reanimar setenta anos mais
tarde. Mas apesar de tudo o que acompanhou historicamente o desenvolvimento da arte
abstrata, temos um outro discurso, o de Panofski, que busca a significação nos quadros e
diz que não se pode nem ao menos interpretar a relação entre as formas se não
soubermos de que história se trata. A história das artes se fez essencialmente como uma
continuação, no regime estético da arte, dos regimes da representação. É esta tradição
que hoje continuam Ginzburg e Baxandall. Há toda uma relação com a pintura que
afirma que tudo só pode ser visto se for interpretado, justamente com o fito de definir o
momento decisivo, o momento da ação. Esta contradição entre o desenvolvimento não-
figurativo da pintura e o privilégio iconográfico na história da arte foi denunciada por
teóricos como Louis Marin e Didi-Huberman. Eles reivindicam uma espécie de acesso
direto à tela ou à experiência da tela, suscitando uma outra história da arte, contrária à
de Panofski. Mas esta outra História se pensa nas categorias maiores do regime estético
das artes: o que se opõe à leitura iconográfica é a leitura da tela como registro de seu
próprio processo. E o que propõem Marin e Haberman é ler o pictórico como processo
inscrito no quadro/sob o quadro, a história do quadro inscrita à superfície do quadro,
quer seja o gesto pictórico ou a dimensão litúrgica. Penso na análise que Didi-
Huberman fez deste falso mármore pintado em “trompe-l’oeil” por Fra Angélico sob a
Madona das sombras. A interpretação institui uma espécie de fronteira freudiana entre o
que está “acima”, a representação dos santos em torno da Virgem, e o que está embaixo,
o informe, a chuva de manchas coloridas que ao mesmo tempo simbolizam o gesto
pictórico de projeção das cores e o gesto sacramental da unção. A encarnação religiosa e
fenomenológica se revelam então como a verdade da pintura sob a representação. A
pura presença é aqui afirmada sob o modo da presença “em forma de
sintoma”( simptômale), contra a iconologia representativa.
Esta polêmica de inspiração lacaniana é diferente da travada por Barthes e Godard; em
Barthes, mesmo se ela passa por uma mesma referência freudiana, constitui o inverso de
um amor desiludido pelas promessas dialéticas da leitura “sob” a imagem, e igualmente
pelas promessas da iconoclastia. Estas lógicas contraditórias vem se emaranhar no
presente e produzir uma valorização da imagem como ícone. O discurso teológico-
ontológico de liquidação da interpretação dialética e de retorno a uma presença mais ou
menos sacralizada está em consonância com todos os “fins de utopia” e todos os
“retornos à moda”. Mas ele repousa também sobre as contradições constitutivas do
regime estético das artes. Dizem que não querem mais a imagem como elemento de um
discurso, ou interpretação das imagens, e aí vem Godard , que permanece inteiramente
na ordem das imagens colocadas em discurso, imagens “para ler”, em uma combinação
do visual, do textual e do sonoro que não possuem nada a ver com uma suposta pureza
da imagem ou irredutibilidade do afeto.
B. Godard interpreta a obra de Hitchcock como se esta pertencesse ao regime estético,
impulsionando a imagem pura contra a ficção. De um ( Hitchcock) a outro ( Godard),
parece-nos, no entanto, que passamos do regime representativo ao regime estético.
Podemos datar ou analisar mais amplamente esta passagem para um regime estético na
história do cinema? Se este for o caso, o corte da era representativa para a era estética
não nos arrisca a nos reconduzir à cisão deleuziana entre imagem-movimento e
imagem-tempo?

R. Ao distinguir regime estético e regime representativo, eu quis me opor à visão


tradicional, que separa uma era representativa e uma era não representativa, sob o
modelo da passagem da figuração à abstração na pintura. Isto se torna uma espécie de
standard da história da arte: assim, o cinema legitimaria a si mesmo, ao legitimar sua
passagem de uma arte representativa para uma arte não representativa. Mas de fato é
muito difícil fazer esse esquema funcionar. Se tomarmos por exemplo o argumento de
Bazin, vemos que ele coloca uma oposição um pouco tortuosa: haveria antes uma
primeira era do cinema, a era da montagem, a era das imagens consideradas como
linguagem. Bazin constrói um modelo onde esta primeira era seria aristotélica,
acreditando em uma certa linguagem das imagens, de ordenamento, através do
découpage e da montagem, de uma história coerente. A isto se opõe o mundo da
profundidade de campo e do plano seqüência. Mas podemos colocar o modelo inverso,
onde o que vem primeiro é a anti-representação. Em Delluc, Epstein, Gance, assim
como em Vertov e Eisenstein, temos a proposição de uma língua das imagens, ou da
sensação, típica da era estética, e oposta à velha tradição narrativa e psicológica. E,
inversamente, a segunda era do cinema aparece então como a de um cinema novamente
tornado narrativo. A complexidade em fazer este esquema funcionar consiste no fato de
que o cinema é uma arte ambígua, uma arte da narrativa em imagens, que funciona
segundo uma dupla lógica: ele pertence à era estética, nasce do olho duplo da máquina e
do operador, da idéia de uma linguagem do sensível. E ao mesmo tempo, nasce da
racionalização otimizada da lógica aristotélica do encadeamento das ações. Esta dupla
lógica, segundo penso, torna toda divisão ilusória: a de Bazin, que oporia uma era naïf a
uma crítica, assim como a de Deleuze, que em minha opinião constitui uma dicotomia
espúria. A oposição entre imagem-tempo e imagem-movimento é propriamente uma
oposição filosófica: o que Deleuze opõe não são duas eras distintas do cinema. mas dois
pontos de vista diferentes. Podemos pegar qualquer filme e lê-lo em termos de imagem-
tempo ou imagem-movimento. A imagem-movimento é a imagem considerada do ponto
de vista de sua materialidade, como uma certa modalidade do “aparecer”. A imagem-
tempo é a imagem considerada como coisa do pensamento, do ponto de vista de sua
idealidade. Poderíamos dizer, em termos spinozistas, o ponto de vista do pensamento,
posterior ao da extensão ( étendue), ou ainda o ponto de vista da arte posterior ao dos
materiais.
Esta oposição é em si mesma perfeitamente a-histórica. Deleuze tenta fazê-la coincidir
com uma dimensão histórica que retoma a teoria baziniana , e faz esta teoria
corresponder a uma espécie de grande drama histórico, fazendo coincidir a super
problemática ruptura das “ligações sensório-motoras” com o traumatismo da Segunda
Guerra Mundial. Creio que esta construção é muito artificial.
Para voltarmos a Godard “transformando” as imagens de Hitchcock, podemos dizer
duas coisas. Em primeiro lugar, as imagens em Hitchcock parecem essencialmente
funcionais. Hitchcock diz que nunca olha pela câmera. A imagem pode ser assimilada
ora a uma palavra ora a uma espécie de estímulo que deve fazer um efeito sobre o
espectador, o contrário do iconismo. Pode-se, então, ver no cinema de Hitchcock a
lógica aristotélica do agenciamento de imagens visando a produzir um efeito máximo
sobre a sensibilidade. Godard tentou transformar estas imagens, com o propósito de lhes
tirar pequenos ícones: o copo de leite, as rodas do moinho, a chave, os óculos, etc. De
uma lado, trata-se de uma “desnaturação” das imagens de Hitchcock. Mas ao mesmo
tempo, esta transformação só é possível pelo fato de que as próprias imagens de
Hitchcock pertencem a uma dupla lógica. O fato de que a angústia seja simbolizada pelo
copo de leite e que o copo de leite seja acompanhado por esta espécie de pantomima da
impassibilidade que é típica de Cary Grant, o fato de que a angústia passe por aí, e não
pelo rosto de Joan Fontaine, remete a toda uma lógica propriamente estética, onde o
elemento que se encarrega de traduzir e provocar sentimentos não é mais um certo
gestual, nem uma certa posição dos corpos, mas objetos mudos. Se compararmos este
modo de expressão à lógica representativa, por exemplo, a dos quadros de Greuze
analisados por Diderot,- onde todos os sentimentos se pintam sobre os rostos, nas
atitudes ou nas relações de um corpo com outros- , veremos que o cinema de Hitchcock
já é bem diferente, uma vez que a lógica dos afetos em seu cinema é conduzida por
objetos, que são as imagens dos objetos que simbolizam os afetos e os transmitem.
Portanto, as imagens são inteiramente implicadas na lógica da ação, mas ao mesmo
tempo esta lógica da ação é uma lógica pática, que é diferente da lógica patética
tradicional da expressão. São os objetos que carregam os traços expressivos, são eles
que atraem nossa atenção. Então, há em Hitchcock um uso duplo dos objetos, funcional
e contra-funcional. Pois, atraindo nossa atenção para eles, o copo de leite, as rodas do
moinho e os óculos fazem recuar a lógica pática. No regime estético das artes, mesmo o
esquema mimético tradicional é “redobrado” ( doublé) em seu interior por um esquema
contra-mimético. É isto que permite a Godard tomar imagens que são essencialmente
“porta-afetos” para transformá-las em ícones puros da presença.

B. Ao invés de opor a imagem e a ficção no regime estético, não podemos pensar que
elas permanecem solidárias, mas num modo diverso do implicado no regime
representativo?

R. Não penso que a imagem apenas intervenha como ruptura com a narrativa. O que
caracteriza o tipo de narrativa típico do que chamo regime estético das artes, é esta
função condutora que a imagem possui: ela é ao mesmo tempo o que engendra a ficção
e o que eventualmente a faz estacar. Eu estudei isso mais pela tradição romanesca, mas
penso que nesse ponto a tradição cinematográfica é bem ligada à romanesca: são mais
as imagens que as ações ou sentimentos que conduzem a narrativa. Mas precisamente as
imagens conduzem a narrativa na medida em que são habitadas por diferenças de
potencial. Há três grandes modos de funcionamento da imagem. A primeira forma é a
da imagem que se auto-apaga. Ela está no cinema, assim como no romance. No
romance, não distinguimos os traços descritivos, no cinema não temos que visualizá-los,
eles simplesmente nos são impostos, sem parar. Há um segundo modo, onde a imagem
se impõe como um elemento significante forte: foi o que se elaborou na tradição realista
romanesca e foi transmitido ao cinema, a imagem se apresentando como o lugar de um
enigma a elucidar ou a “fazer ressoar”, e apresentando a narrativa como a instância de
sua elucidação ou o meio de sua ressonância. Enfim, há um terceiro modo, onde a
imagem aparece como aquilo que destrói a narrativa, o que a torna vã. Mas
precisamente a ficção romanesca e, em seqüência, a ficção cinematográfica são feitas da
possibilidade de deslizar, de forma contínua e imperceptível, entre estas três funções, a
possibilidade de ver mais ou menos e de ler mais ou menos, ou seja, de tratar mais ou
menos o que vemos como uma coisa a ser lida. O que caracteriza a ficção estética é esta
possibilidade de jogar com esta relação tripla, este jogo podendo ser um jogo que
homogeneíza, como no exemplo flaubertiano, ou no exemplo de um certo cinema de
Hollywood dito clássico, onde a imagem realiza estas três funções, mas em um
pressuposto de homogeneidade que faz com que o tempo da narrativa e o tempo da
imagem coincidam ao longo do percurso. E também a imagem pode funcionar como
ruptura. O tempo da imagem e o da narrativa se dão como heterogêneos. É o modelo
proustiano, por exemplo, mas também o modelo de um cinema dito moderno, Godard
ou os Straub, o modelo de um cinema onde o que se evidencia é a disjunção. Portanto,
creio que não há de forma alguma oposição entre imagem e narrativa; há efetivamente
uma lógica clássica das ações, há uma lógica da narrativa em imagens, onde a
característica técnica do cinema remete a algo de fundamental, qual seja, uma lógica
estética onde é a imagem o elemento constitutivo da própria narrativa.

B. Mas mesmo em Flaubert a imagem é uma ruptura...


R. Sim e não. Há uma ruptura, podemos estacar diante da imagem, mas também não
estacar. As imagens obedecem a esta lógica de “esteira rolante “ de que falava Proust,
elas se engendram umas às outras, e a história no sentido tradicional é como que
esvaziada em seu interior, substituída pelo encadeamento de micro-eventos. Mas este
encadeamento pode finalmente vir a se identificar com o encadeamento tradicional; para
retomar os termos deleuzianos, o molecular pode constituir uma cadeia que preenche a
narrativa molar, de tal forma que não ocorrem fricções, asperezas. É esta lógica que
funciona na tradição clássica da narrativa cinematográfica. Isto supõe a existência de
uma coisa que seja exterior à tradição propriamente representativa. Assim, a descrição
flaubertiana dá à imagem uma função propriamente genética em relação à narrativa, que
não corresponde de nenhuma forma ao regime representativo. Temos, é claro, uma
ruptura, mas esta ruptura é capaz de se auto-anular, pois uma história de costumes pode
se dizer em uma história de micro-sensações. No regime estético, temos então um triplo
jogo em ação: ora a imagem indiferente, ora a imagem que porta um mundo
significativo para ela mesma, ora enfim a imagem como pura passividade. Esta
combinação dos três tipos de imagem pode dar origem, ora a uma forma perfeitamente
“lisa, deslizante” ( lisse), ora a uma forma estilhaçada, onde os elementos se encontram
confrontados uns aos outros. No exemplo de Flaubert, é claro que a textura é
heterogênea, mas ele mistura o heterogêneo com o homogêneo. De forma súbita, o
espetáculo indiferente visto da janela de Charles ( Bovary) vem invadir o espaço da
narrativa, suspendê-lo de sua pura passividade, mas esta mesma suspensão engendra
uma narrativa onde o personagem adquire as propriedades do quadro ( tableau),a beleza
do inerte: Charles emagrece, sua figura se torna interessante, etc. Ou então teremos uma
estrutura claramente em ruptura, segundo o modelo proustiano da oposição entre
narrativa e epifania: a imagem se impõe e a narrativa se desvanece. Temos o mesmo
problema em Virginia Woolf, por exemplo, onde uma textura homogênea, um tapete de
micro-sensações acaba por originar uma história linear ( lisse) que se opõe à narrativa
em rupturas à la Joyce ou Proust. Temos um pouco a mesma coisa no cinema. Os
romances de Flaubert ,por exemplo, me fazem pensar nos últimos filmes alemães e nos
primeiros filmes americanos de Lang, onde tudo pode se congelar a cada instante, ou
seja, congelar “na marca”, o M nas costas, o olhar fascinado diante da vitrine, ou então
o visor do fuzil no final de You only live once. Penso de forma mais intensa ao M, O
vampiro de Dusseldorf , quando o policial olha os arranhões na madeira do parapeito da
janela, com os traços escritos. A cada instante, há uma suspensão possível da imagem.
Você tem elementos que são elementos significantes tomados em uma lógica descritiva
e que ao mesmo tempo são como uma aglomeração de átomos insignificantes, como em
Flaubert. Neste caso, pode-se dizer que há um “recobrimento” de uma lógica
propriamente estética e de uma lógica representativa. O encadeamento das imagens se
encaminha a seu termo narrativo; ele poderia cada instante se paralisar na fascinação
diante do que ocorre, e ao mesmo tempo, apesar de tudo, “o que ocorre”( o balão ou o
assobio em M) é o condutor. Aliás, as imagens às quais faço referência aqui não são
forçosamente closes, mas antes detalhes. Se tomar por exemplo o balão em M, é um
detalhe, mas não é um close. Podemos pensar também no copo de leite em Suspeita, que
não está tão em close quanto parece estar, e que , em certo sentido, se opõe ao que seria
um close da angústia sobre um rosto.

B. Mas o objeto possui um status privilegiado? Porque, de qualquer maneira, podemos


pensar no cinema de Sternberg, que funciona muito em cima do close sobre o rosto. É
aliás muito difícil falar aí em “detalhe”. No entanto, estamos plenamente colocados no
regime estético.

R. Certamente, isso passa também pelos rostos, pelos gestos, pelas paisagens. Não
confiro um privilégio particular ao objeto. Mas na lógica de Godard, é o objeto que se
presta ao icônico. Os ícones hitchcockianos de Godard não são rostos, e mesmo quando
se trata de Vera Miles no Homem errado, um dos ícones retidos por Godard, o
importante para ele não é este rosto na iminência de naufragar na rigidez da psicose-e
que Deleuze, por este motivo, toma como exemplo da passagem de um regime de
cinema ao outro-, o importante é a escova de cabelos que ela agita.Ora, a função estética
do close é precisamente uma função de aproximação entre a humanidade dos rostos e a
inumanidade das coisas. É o que Deleuze resumiu na idéia de devir-inumano: esta
lógica passa pelo devir-paisagem do rosto, ou o devir-expressivo do objeto, e assim
destrói as hierarquias tradicionais, onde você tem o sujeito e o acessório. É sempre por
um procedimento de heterogeneidade que uma coisa gera imagem, quer seja uma
heterogeneidade de objetos, ou de registros expressivos- quando um acessório não
“fala” mais como acessório, mas como paisagem- quando uma descrição se encontra
como paralisada, etc Poderíamos dizer, em termos deleuzianos, que o esquema
sensório-motor não funciona mais, embora eu não goste muito desta oposição, mas eu
diria que, efetivamente, há um sistema de apropriação que é quebrado.

B. Temos a sensação, nos exemplos citados, que a imagem toma sempre como “motivo”
um objeto imóvel, “parado”, ou imobilizado por um gesto da descrição e reificado.

R. Não necessariamente reificado, mas numa relação suspensa com a significação.


Podemos pensar no animal. O animal pode funcionar como portador de índices, de
direções: é o cão que sente, que indica alguma coisa, que late e em seguida se lança na
direção da coisa pressentida. Mas o animal pode ser também a figura onde o código
expressivo não é visível, a figura onde o sentido vem “entrar em impasse”. É a história
do personagem que tenta entrar no pensamento do veado que vai morrer, contada por
Karl Philip Moritz e comentada por Deleuze. O animal é uma figura de transição entre o
humano e o não-humano, entre o sentido e o não-sentido. Em resumo, é uma figura que
preenche as três funções da imagem. Ele se presta ao índice, ao símbolo, mas também à
pura cristalização do sentido. Mas a mesma função-imagem se efetua diversamente, no
cinema e em literatura. Eu comentei isso no exemplo das lebres do Jornal de um padre.
Em Bernanos, o importante é a indistinção dos coelhos mortos, que agora não passam
de detritos. O cinema não pode retomar tal e qual a lógica romanesca, porque no cinema
vemos os coelhos, vemos que eles vem do criadouro e que é preciso deixar de lado este
traço de indistinção entre o humano e o inumano. Então, vemos a representação das
linhas do jornal e a neutralidade da voz off, que vão assegurar o equivalente da
“imagem” literária das lebres. Todas as figuras privilegiadas no regime estético das
artes são figuras de transição entre o humano e o inumano, o vivo e o inerte, o
significante e o insignificante. Por exemplo, quando Flaubert fala do boné de Charles
Bovary,e diz que ele possui os traços do rosto de um imbecil, é uma espécie de curto-
circuito, de circuito complicado, onde Charles é qualificado por seu boné e onde o boné
é qualificado por sua semelhança ao rosto de um imbecil. Ele fala como fala um rosto
que não fala. Há toda uma lógica de objetos com potencial variável que é extremamente
forte, eles representam tudo o que pode ser, seja o acessório sobre o qual o olhar desliza,
seja o índice que induz um movimento, seja o puro indecifrável, em relação ao tanto que
este possa ter de indiferente, repulsivo ou inquietante. A imagem não tem
necessariamente esta relação extrema ao sentido no regime estético, mas ela é
fortemente caracterizada por esta polaridade: falar enquanto signo, hieróglifo, portador
de sentido oculto, ou então falar enquanto coisa muda, destituída de sentido.

B. O modelo de imagem que você propõe, tanto em literatura quanto em cinema, parece
sempre um modelo de “imagem simples”. Mas a imagem não seria também plural, ou
seja, com a capacidade de engendrar outras imagens, como em Proust por exemplo,
onde uma imagem chega sempre numa série ou um circuito (réseau) de outras imagens-
o que implicaria levar em conta uma virtualidade de imagens com as quais elas podem
comportar posições em séries, índices de memória, etc

R. Tomei exemplos de imagens que podemos chamar de simples precisamente para


criticar a ilusão icônica da simplicidade da imagem, para mostrar que a imagem era
sempre uma relação, um intervalo ( écart): um intervalo entre uma função de
significação e uma função de “mostração”, mas também um intervalo entre imagens,
entre a imagem mostrada e outras imagens que seriam possíveis. Seria preciso pôr
radicalmente em questão a identificação entre a idéia da imagem e a idéia do dado
visual. Mesmo quando falamos, como Deleuze, em imagem áudio-visual, temos sempre
dificuldades em considerar o som como um elemento, e não um complemento da
imagem. Mas também há que toda imagem está “no lugar” de outras imagens, ela atrai
ou repele outras, ela toma o lugar de imagens que poderiam ter sido feitas e não o
foram. É neste sentido também que a podemos chamar de plural , ou antes: pluralizada.
Ao mesmo tempo, temos a tendência a identificar sempre a imagem ao plano, embora a
própria noção de plano não seja estável: trabalhamos sobre o modelo do quadro, mesmo
pretendendo o contrário. Não podemos jamais estritamente delimitar
cinematograficamente a unidade imagem. A imagem é sempre constituída por coisas
que escapam à unidade visual. Dizer que “vemos”, então, é uma expressão ambígua. Os
entusiasmos “naturalistas” na descrição literária já não colocavam nada de particular
diante de nossos olhos. Ao contrário, eles desconectavam as palavras das representações
visuais às quais estavam ligados pelo regime da descrição funcional. E mesmo no
cinema, a imagem-intensidade não é uma intensificação visual, é uma intensidade
diferencial que coloca uma história num quadro ( tableau) ou um quadro em história,
que os encadeia a outras imagens e outras histórias, outros sons e outras palavras. Um
rosto torna-se paisagem, um traço de expressão torna-se uma história. Ocorre uma
imagem, esteticamente falando, quando há um salto intensivo de um registro a outro.
Uma imagem vem como um operador de desestabilização de um certo regime do
sensível, por exemplo um regime descritivo, ou o que Deleuze chama de regime
sensório-motor. Ela é um operador de diferença e, efetivamente neste sentido, ela
funciona em série. Em Proust, é marcante constatar que as imagens constituem uma
espécie de “torneio” ( tour) sobre elas mesmas, como regimes da natureza: as imagens
vegetais se transformam em animais, em marinhas, aéreas, é a roda das imagens, a roda
das metáforas, que constitui a verdade da imagem singular. A imagem exprime sempre
a transformação, ela é portanto o operador de um regime de metamorfose, e penso que
isto também caracteriza propriamente a imagem no regime estético das artes. No
exemplo flaubertiano, as imagens transformam uma conversação em paisagem ou uma
sala de recepção em um deserto. O melhor equivalente cinematográfico encontraríamos
talvez na forma com que, em Chantal Akerman, o gesto se metamorfoseia em cantarolar
e faz, em um único modo, penetrar o mundo num quarto e uma infinidade de histórias
num face a face intimista. A imagem escapa sempre à especificidade visual para induzir
um regime de metamorfose que é um meio de desestabilização das formas fixas. É
preciso distinguir a função imagem da idéia de unidade visual, assim como da de
unidade técnica. Assim como não podemos mesurar a imagem pela forma visual
instantânea, não podemos limitá-la ao começo de movimentação e de fixidez da câmera,
ou a qualquer outra referência técnica. Uma imagem é sempre um intervalo e uma
expansão. Além do mais, a isso se acrescenta no cinema a impossibilidade de “parar” o
encadeamento temporal. Há empiricamente uma sub-percepção constante da unidade
visual, que nos remete fortemente a este fato teórico de que a imagem é sempre uma
relação. A imagem, esteticamente falando, somos sempre nós quem a “decupamos”;
assim, podemos dizer da imagem: é um plano no sentido tradicional mas também um
evento singular que se passa nesta imagem, ou o processo que liga três planos num
conjunto, etc. É importante ter consciência que a unidade não é constitutiva. Ela
pertence a uma estratégia artística e também a uma estratégia de leitura.

B. O senhor falaria então na idéia de imagem mental?

R. É uma idéia complicada. Claro que há a imagem mental no sentido em que foi
pensada para ser na imagem visual, assim como em nossa “cabeça”. Mas a imagem
mental é também a infinidade de processos de associações que faz com que
reconheçamos diversas coisas sobre uma tela ( écran), uma página, uma tela ( pintura), e
que iremos associar de maneiras infinitamente diversas. Deleuze brinca com a idéia de
que o universo inteiro pode ser associado a um plano, por exemplo. Quando ele fala de
um filme, é-lhe no fundo indiferente argumentar sobre um plano, um elemento do
roteiro, ou uma palavra pronunciada por um personagem, assim como sobre elementos
de leitura crítica. Ele fala de um filme enquanto ele pertence a todo um universo de
imagens mentais que o constitui. Há também a imagem mental no sentido de Schefer,
onde o que vemos sobre a tela se encontra acondicionado num universo imaginário que
lhe ultrapassa completamente. Mas acho ruim raciocinar em termos de imaginário, em
todo caso tento sempre não fazê-lo. Nos encontramos numa démarche contraditória:
sabemos muito bem que o que vemos não se encontra nem um décimo sobre a película
ou sobre a tela, mas ao mesmo tempo, por disciplina, é preciso tentar se fixar sobre o
que nos é dado pelo filme e sua objetividade. É um jogo complicado. O discurso sobre a
imagem móvel é sempre duplo, funciona sobre um esforço de objetivação que remete
constantemente a um processo de subjetivação, de associação, de derivações múltiplas,
correspondentes à captação de dois elementos essenciais da imagem estética: esta
constitui um intervalo e é uma expansão. O discurso sobre a imagem cinematográfica é
em suma sempre um discurso ilegítimo ( bâtard), sem nuance pejorativa.

B. Ao mesmo tempo, a imagem não produz apenas efeitos subjetivos, mas também
efeitos de imagens. Assim, o cinema não remeteria em questão a idéia de imagem, ou
lhe imporia uma outra forma de apreensão?
R. Por subjetividade não compreendo apenas associações singulares, ou delírios
particulares. Penso também neste trabalho de interpretação necessária que Gombrich
descreve no domínio pictórico e que se produz a uma escala infinitamente superior com
a imagem cinematográfica que, em seu desfilar, nega sua própria autonomia. A noção
usual de imagem remete a uma fixidez que é totalmente ilusória, mas isto não concerne
apenas ao cinema. Se pensarmos na imagem literária, nada é propriamente mostrado,
pode-se ingerir páginas de descrições sem ver o que quer que seja. Já a imagem
cinematográfica mostra tudo, mas inserindo este todo em um fluxo que impede a
fixação do que aparece na tela e que obriga a reconstruir o filme de outra forma. Esta
reconstrução é para mim diferente de uma espécie de imaginário, o que me parece ser,
penso eu,a tese de Schefer. Há de um lado uma consistência própria das imagens,
mesmo se, por um lado, o “desenrolar” fílmico a absorve e, de outro, nós as reinserimos
em sistemas de associações e derivações infinitas. A expansão das imagens não é um
imaginário.

B. A imagem não seria então produzida numa espécie de contra-fluxo, de contra-


efetuação, para retomarmos uma expressão de Deleuze, que seria assumida pelo
espectador?

R. Não sei se podemos empregar aqui o termo com o rigor com que é empregado por
Deleuze. Mas certamente as imagens fílmicas vivem das contra-efetuações que nós
operamos. Vão se constituir quatro ou cinco imagens que são “as imagens” de um filme.
Podemos retomar a fita cassete, parar o filme, estas imagens se tornaram inteiramente
autônomas da unidade que supomos pertencer ao filme. A vida das imagens se faz com
outras imagens. Uma imagem está morta se ela está dada e se interrompe. É por isso que
é tão importante falar sobre os filmes. Há um universo das imagens do cinema que
talvez só seja constituído pela palavra. Para que as imagens se projetem, constituam
uma espécie de memória do filme, é preciso que escrevamos, evocar outras imagens que
são “falsas”, deslocadas em relação ao filme. Eu durante muito tempo vi o cinema de
Nicholas Ray através do plano da aparição de Cathy O’Donell de macacão na garagem
de They live by night. Esta aparição instantânea de fato não existe: pelo contrário, o
personagem é introduzido progressivamente por esboços ( esquisses) paralelos. E no
entanto esta imagem resume tão bem o poder de efração das imagens do filme e de um
cineasta que recentemente encontrei o mesmo “erro” compartilhado por outro
“espectador”. Fui impactado de forma inversa, relendo os textos da grande época mac-
mahoniana, em constatar até que ponto a sua celebração enfática da presença não
permitia que se visse nada, só se referia a ela mesma. Algo permanece quando se cria
indefinidamente outras imagens com outras palavras, outras imagens. É por isso
também que o estudo narratológico “plano a plano” é geralmente tão decepcionante. A
idéia de evidência visual se evapora de forma absolutamente vertiginosa, a partir do
momento em que a utilizamos.

B. Que obras do cinema contemporâneo lhe ajudam a pensar a noção de imagem? E em


qual (s) direção (s)?

R. Digamos em primeiro lugar que minha cultura cinematográfica é muito descontínua e


seletiva para abarcar uma unidade recuperável sob o rótulo “cinema contemporâneo”. A
isto se junta que a contemporaneidade se define tanto pelas novidades quanto pelos
filmes de diferentes épocas que nos é possível ver em um dado momento, o que, para
nós, fez de Ozu mais um contemporâneo do “après-Nouvelle vague” que Renoir. Disto
isto, podemos distinguir três grandes momentos na idéia da imagem cinematográfica:
houve o tempo em que a imagem visual foi pensada como elemento de uma língua
específica e onde a originalidade do cinema foi assimilada a uma espécie de nova língua
universal das imagens, teorização que aliás não cessava de desmentir as formas
concretas da narrativa cinematográfica. Houve a época de Bresson, Bergman e da
Nouvelle Vague, que fixou o status artístico da imagem cinematográfica, marcando a
distância entre imagem estética e unidade visual. É o momento onde cessou de se opor
uma ilusória “pureza” da imagem visual à mescla cinematográfica do visível e da
palavra, da narrativa e do plano, onde apareceu que a imagem era em primeiro lugar
uma diferença de potencial, um prolongamento ou uma aceleração do tempo, um
intervalo entre regimes de “imagismo” (imageité). Esta clarificação, ao mesmo tempo,
oscilava entre uma idéia crítica de cinema, assimilando a dissociação dos componentes
da imagem a uma função de crítica positiva, e um outro pensamento da pureza
cinematográfica. As formas de cinema contemporâneo que me interessam são aquelas
que permitem sair de deste dilema, ao explorar de diversas maneiras as formas de
composição e decomposição que forjam a imagem cinematográfica, e confrontando-as a
formas de heterogeneidade próprias à imagem pictórica ou literária. Penso por exemplo
em alguns filmes de Kitano que jogam em cima das transformações, instantâneas ou
progressivas, do narrativo, em sua velocidade devoradora das imagens, no puro
pictórico. Este jogo é ao mesmo tempo uma maneira de repassar as eras do cinema , ao
utilizar as formas do cinema mudo e a gesticulação do clown, para transformar o
movimento em imobilidade e a ilustração funcional em fogo de artifício gratuito. Penso
também em certos filmes de Hou Hsiao Hsien, que deslocam a oposição do clássico e
do moderno ao isolar um plano não sob a forma do “corte irracional” mas sob a forma
de uma saturação e de uma complexidade internas que no entanto não obedecem ao
paradigma baziniano da profundidade de campo. Complexidade do mesmo gênero, em
relação aos cortes da história do cinema, se encontra nos procedimentos de Wong Kar
Wai, que, a princípio, parecem ornamentos ( fioritures) pictóricas ( planos aproximados
absorvendo o corpo, à maneira de Bonnard, em uma espécie de papel pintado
multicolorido, véus e espelhos embaralhando as fronteiras do real e da aparência, do
objetivo e do subjetivo), mas que estabelecem sobretudo uma indecisão entre os traços
pictóricos e os traços narrativos ( assim, estes brancos e estes negros que desempenham
um duplo papel de componentes do plano e de separação entre os planos, de elementos
plásticos e de figuras discursivas). Em alguns cineastas, o enriquecimento ( surenchère)
plástico que desejaria isolar o visível em sua pureza acaba por reencontrar de outra
forma a heterogeneidade da imagem cinematográfica. Penso aqui na tentativa de
Sokurov, que me parece significativa até em suas contradições. Pretendendo liberar o
cinema da ilusão perspectivista e assim aproximando-o de uma inencontrável pintura,
ele nos faz sobretudo sentir até que ponto o som funciona como “terceira dimensão” da
imagem cinematográfica, e a sonoridade dostoievskiana arcaica de Sokurov é bem
próxima da sonoridade “neo-realista” suburbana que encerra os personagens
contemporâneos do Ossos de Pedro Costa. E ele permite repensar este caráter paradoxal
do “ruído”, que torna a imagem visível cinematográfica, com seus micro-eventos,
parente da “quase-imagem” do livro. Penso enfim nas obras de Kiarostami, que jogam
sistematicamente sobre a transformação das formas, fazendo do filme o
desenvolvimento de um poema ou de um quadro, com as rupturas de escalas visuais e
os conflitos de imagens que isto pressupõe, desde o plano da criança-micróbio
percorrendo o terreno em ziguezague geometricamente traçado sobre a colina de Onde
fica a casa do meu amigo?, até a janela fechada de O vento nos levará. São exemplos,
não um ranking. Eles se situam fora da linha dominante americana- pela qual meu
interesse é bem fraco, ou simplesmente minha preguiça forte- e da sub-dominante
francesa, ou antes francófona, onde são ainda os “clássicos da modernidade”, Godard ,
os Straub ou Chantal Akerman, que encarnam a potência disjuntiva das imagens e
continuam o diálogo com a imagem literária ( penso no crescendo da declaração da mãe
em Sicília!, ou ao decrescendo dos últimos planos marinhos de A cativa). A importância
dos cinemas extra-europeus hoje vem sem dúvida do leve interstício que desloca as
filiações e organiza encontros do cinema “moderno” com diferentes tradições. Assim,
em Kitano, vemos os códigos do filme de yakusa trabalhados pelos códigos do Nô e os
“desvios do código” típicos da tradição burlesca. Em Wong Kar-Wai ou Hou Hsiao
Hsien, podemos encontrar a reatualização de uma tradição pictórica e caligráfica que
torna equivalentes traços pictóricos e escriturais; em Sokurov, um encontro entre os
princípios da modernidade cinematográfica e da tradição do ícone. Ou ainda, em
Kiarostami, o encontro entre a forma de “imagética” dominante do poema, mas também
com todas as outras formas- historicamente não contemporâneas umas das outras- do
desejo da imagem, da necessidade da imagem ou do interdito da imagem.

Entrevista realizada em junho de 2000 por Sophie Carlin, Stéphane Delorme e Mathias
Levin para a revista Balthazar.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

A lentidão de Deus: Maneiras e maneirismo na Comédia de Deus, de João


César Monteiro

“Lentamente, retendo seu fôlego para que nada se sobressalte à sua passagem, o senhor
João de Deus vai se postar detrás do balcão e, muito docemente, começa a preencher um
cornet de sorvete”.
João César Monteiro, Que Deus me ajude.1t
Falar de maneirismo a respeito de um filme como A comédia de Deus ( 1995), do
cineasta português João César Monteiro, supõe a priori que não reduzamos os contornos
deste campo estético aos limites estabelecidos pelos redatores da revista Au hasard
Balthazar1. Em um número importante, os autores desta revista adotam, com, efeito,
uma posição firme e categórica sobre a problemática do maneirismo cinematográfico.
Uma vez que esta posição procede de uma releitura crítica de trabalhos anteriores
consagrados à questão, e por restringir consideravelmente a pertinência da noção de
maneirismo no campo do cinema, ela pode, a princípio, servir como um contraponto de
referência, a fim de proporcionarmos maior relevo à concepção de maneirismo que será
desenvolvida neste estudo.

Uma concepção exclusivamente figurativa do maneirismo

No editorial1b deste número, a “redação”( uma vez que é “ela” que assina o artigo),
recapitula brevemente os usos do termo maneirismo que existiram no domínio da crítica
de cinema, desde o famoso e fecundo artigo de Alain Bergala “De uma certa maneira”2,
aparecido em 1985 no Cahiers du Cinema, até sua evolução sob a pena de Serge
Daney3. Em vista destes conceitos, uma visão de conjunto se impôs à redação: a
flutuação semântica que permanece associada a esta noção de maneirismo “presa em
tenazes entre os partidários do maneirismo ‘amaneirado’ e os pensadores do maneirismo
genérico”4. Coube a Stéphane Delorme, num artigo muito interessante intitulado “
Sobre uma estética maneirista”, propor uma definição do maneirismo em sua
abordagem “exclusivamente figurativa”5: o maneirismo ou “anamorfose sistemática e
obsessiva de um motif ( tema?) magistral 6”. Se seguimos esta definição,- mas vejamos
que Delorme fala de uma “estética”7, o que podemos compreender como uma estética
dentre outras- pertenceriam, de forma típica ou mesmo exclusiva, à estética maneirista
os filmes que deliberadamente se inscrevem em um jogo de relação entre uma obra
originária e uma obra segunda 8, obra esta que opera, a partir da primeira, um trabalho
de distorção, de exageração e de deformação figurativa 9- o exemplo típico seria a
retomada e a re-elaboração maníaca por Brian de Palma , em vários filmes, do tema do
chuveiro, subtraído ao Psicose de Hitchcock. 10
Embora apaixonante e produtiva, esta parece ser uma concepção muito restritiva do
maneirismo. Ela elimina uma acepção do termo que permanece fundamentalmente
ligada à noção de maneira, substrato etimológico do termo maneirismo. A maneira, em
todos os sentidos que este termo11 pode revestir, e cujo sentido mais interessantes e
contundente é justamente ligado ao “que a língua comum denomina ‘ as maneiras’12”,
ou seja, estas formas claramente “sobrecarregadas” que são o preciosismo, a afetação, a
gratuidade,a pose, a canastrice, etc Portanto, o que os autores desta revista, assim como
vários de seus predecessores13, recusam é um maneirismo “amaneirado”, um
maneirismo que não se diferencia da concepção original de “maneira”. Ora, para dar
conta de certas particularidades estilísticas de um filme como A comédia de Deus,
parece-me útil conservar esta dimensão do amaneirado no cadre do cinema- esta forma
de maneirismo tão minoritária e “anedótica”.14

Sobre um “maneirismo amaneirado”

É sem dúvida Robert Klein, em um artigo intitulado “ A arte e a atenção à técnica”,


compilado em sua obra A forma e o inteligível 15, que propôs a definição não-
histórica16 do maneirismo que mais permanece tributária do termo “maneira”.
Buscando estabelecer a relação entre uma arte e sua técnica- a atenção à técnica de uma
arte procedendo de uma interrogação sobre o como ( como isto foi feito?) , e não mais
sobre o que,- Robert Klein estabelece, ao cabo dos dois movimentos lógicos de suas
rigorosas análises, uma definição formal 17 da arte entendida como “uma produção de
efeitos”18, como uma “maneira” parcial ou totalmente autonomizada ( tomada como
objeto) enquanto produtora de efeitos19. A arte a maneira são, portanto, aparentadas 20.
E o terreno que lhes é comum é aquele nomeado por Klein como a “conduta”21. Assim,
escreve, “a maneira é tanto mais sensível na arte, na medida em que a forma que esta
nos oferece melhor preserva os traços , ou melhor, oferece as aparências de uma
conduta, ora concretizada pro gestos, ora puramente ideal ou simbólica: o traço do
desenhista, a “pesquisa” por uma imagem poética, a cadência de uma frase, a repartição
dos suportes ou escolha dos materiais na arquitetura, os movimentos da câmera e os
ângulos de tomada de cena- em resumo, todos os aspectos que fazem sentir ou supor
existir uma vontade artística, uma real gratuidade e uma “mão” real ou metafórica”.22
Em que consistirá, nestas condições, o maneirismo ou o amaneirado, já que Klein
estabelece uma equivalência entre ambos os termos? Ele aparecerá na criação artística
quando se fizer presente uma atitude similar ( falando-se por analogia com um certo
tipo de atitude humana) ao que chamamos de “afetação”, se afetação “consiste em
desviar a atenção aos fins naturais de um ato, e orientá-la para a maneira, tomada
praticamente como objeto e fonte dos efeitos.” 23 O maneirismo supõe, portanto, como
Klein nos diz da afetação, uma “objetivação da maneira”24, esta maneira objetivada
tornando-se assim o objeto principal sobre o qual o maneirista vai colocar as exigências
de seu trabalho criativo.O maneirista “amaneirado”- como podemos, com efeito, tentar
qualificá-lo25, para distinguir a maneira de outras concepções de maneirismo- aparece
como um prolongamento lógico da concepção que consiste em deslocar a atenção do
“que” ao “como”, situando-se não apenas do lado do prazer estético do espectador mas
também do artista, e da produção dos efeitos buscados. O “maneirista amaneirado” será
aquele que se inscreve em um movimento de “deslizamento do que ao como”, onde daí
se implica uma sequência onde interviriam os como dos como”, cada novo nível sendo
“artificial, ou mesmo afetado, em relação ao precedente, que representa o pólo relativo
ao natural”26. Daí a definição do maneirismo ( ou amaneirado por Klein: uma hiper-
arte, ou antes: uma arte da arte”.)27

Afetação e efeitos maneiristas.

Além da reflexão sobre a maneira que nos proporciona, duas razões nos tornam preciosa
a concepção de Robert Klein do maneirismo como “arte da arte”, em nossa abordagem
do cinema de Monteiro. Em primeiro lugar, como disse Daniel Arasse 28 ao comentar a
definição 29 proposta por Klein, esta permite-nos postular que o maneirismo nasce
“quando uma arte se interessa a seus instrumentos de representação, seja na técnica
concernente aos próprios instrumentos ou na técnica da representação.” Segundo esta
concepção, o maneirismo não designa uma corrente estética particularmente concernida
30, caracterizada por certo número de traços definidores e à qual podemos afiliar este ou
aquele artista. “O maneirismo amaneirado” não é uma escola artística ou um movimento
da história da arte. Tampouco constitui uma repercussão do sentimento de “ter vindo
depois”, e de ter por tarefa necessária e primordial situar-se em relação a um modelo
inultrapassável 31, com o objetivo de trabalhá-lo, ou até mesmo destruí-lo.32 O
“maneirismo amaneirado” é uma atitude estética que podemos encontrar em todas as
formas artísticas 33, desde que o artista concentre sua atenção, sua reflexão e esforço
sobre a técnica e a tecnicidade com o fito de atingir a expressão, e produzir a emoção
estética pelo singular uso que ele faz da técnica consubstancial à sua arte34. Além disso,
visto desta maneira, o termo maneirismo não serve forçosamente a qualificar , em toda a
sua extensão, o estilo de um criador, em particular numa arte como o cinema, que
mescla técnicas bem diferentes. As tendências maneiristas de um autor, por procederem
do interesse pelas técnicas artísticas constitutivas de uma arte, podem se manifestar
mais em certos pontos da obra que em outros- tal cineasta revelando-se maneirista
sobretudo pelo uso extremado da composição e refinamento de seus enquadramentos,
outro pelo virtuosismo ou ênfase35 de seus movimentos de câmera. Neste sentido, ao
lado da idéia de maneirismo como categoria genérica, é preciso postular a existência,
em certas obras, de simples efeitos maneiristas, relativamente isoláveis, às vezes bem
pontuais ou mesmo em segundo plano. Deste ponto decorre que um princípio
metodológico que estabelece que não se trata, nos limites deste estudo, de defender a
hipótese que um filme como A comédia de Deus apresenta em seu conjunto uma
estética maneirista. Trata-se de colocar a ênfase e de pôr em relevo certos aspectos
precisos e escolhidos do filme, aspectos portadores de uma dimensão amaneirada.

A definição de Klein nos oferece também o grande mérito de anular os preconceitos


habitualmente reservados à afetação36. Pelo contrário: ela nos permite fazer da afetação
uma categoria estética própria, suscetível de ser utilizada para dar conta da
especificidade de uma démarche artística. Com Klein, é como se a obliqüidade de “fazer
maneiras” encontrasse direito de cidadania na esfera estética e ao olhar analítico. Ora,
no cadre do cinema, onde ,em primeiro lugar podemos encontrar o lugar da afetação,
senão em certas atitudes e gestos dos atores? É preciso recordar, para tomarmos um
exemplo que não tem nada em comum com Monteiro, das poses contorcionistas de A
(Delphine Seyrig) no Ano passado em Marienbad, de suas posturas artificiais e
complicadas que a “figuralizam”em um estranho e inacessível objeto feminino , e que
contribuem a excitar o desejo de X. Não é por acaso, aliás, que Klein faz referências
freqüentes ao trabalho dos atores-intérpretes, quando intenta ilustrar de forma concreta
suas elaborações37. Sem adotarmos a perspectiva do “maneirismo amaneirado”, o jogo
do ator, ao mesmo tempo como técnica de encarnação e uso de um impressionante
repertório de instrumentos que o corpo oferece à sua disposição- o gestual, as
entonações e inflexões da voz, as expressões, mímicas, modulações do rosto,
velocidades de deslocamento, agilidade ou rigidez das posturas, etc- aparecem como um
dos primeiros objetos de atenção para a leitura de um filme, em termos de maneirismo.
Fazer maneiras, adotar uma pose, ser afetado: estes movimentos coquettes, quando
aparecem ostensivamente em um filme, seriam suficientes para colocar esta obra no
campo de uma poética do maneirismo? É esta a hipótese que será proposta e explorada
aqui, tomando apoio sobre uma análise de traços sintomáticos do maneirismo no jogo
do ator João César Monteiro em A comédia de Deus. Mas é necessário precisar que
estas maneiras, estes efeitos de estilização amaneirada participam de um projeto
figurativo. O “maneirismo amaneirado”, com efeito, não é alheio à expressão figural:
ele faz das próprias maneiras o terreno de expressão das figuras. Georges Charbonneau,
no limite de suas preocupações, nos dá perfeitamente a medida deste ponto: “Adotar
uma pose é sair de sua própria vida viva , com o objetivo de penetrar no mundo das
figuras, para se figuralizar38”. Talvez seja neste nível que a diferença é maior entre as
duas concepções de maneirismo que tentamos resumir. Sua relação fundamental à
figura não é a mesma. No primeiro caso, uma figura primordial e maior preexiste ao
processo de anamorfose, e é isolada, separada e congelada pelo cineasta, para ser
retrabalhada- é o “tema magistral”. No segundo caso, a figura essencial não preexiste
enquanto tal às “maneiras”: ela constitui uma repercussão do trabalho operado a partir
das maneiras, transformadas em objetos de expressão. Ora, na Comédia de Deus, um
grande número de efeitos maneiristas, ligados ao personagem João de Deus, convergem
para a expressão de uma figura singular: a figura da lentidão.

“O movimento lento é essencialmente majestoso”.

A Comédia de Deus, primeiro filme de um díptico40 de que As bodas de Deus constitui


a segunda parte, nos narra um período da vida de João de Deus, interpretado pelo
próprio João César Monteiro, agora inventor de perfumes de sorvetes por obra de um
feliz acaso que permanece secreto para o espectador. A narrativa segue a rota
descendente do devir deste personagem, ou seja, sua destituição do Paraíso- a loja de
sorvetes da qual ele é o gerente, que se chama “Paraíso do sorvete”. João de Deus havia
dado uma forma muito particularmente sua a este micro mundo, esta pequena utopia,
como nos permite compreender os primeiros planos do filme onde, sentado no centro da
imagem, ele é a “alma da casa”, o pivot em torno do qual gravitam os empregados e os
fornecedores, reduzidos ao papel de satélites do mestre supremo. Mas ao fim do filme
João de Deus é expulso do Paraíso, que agora, sob os auspícios de uma galopante
americanização, se metamorfoseia no Inferno41. Eis a consequência das liberdades
tomadas pelo personagem para com uma ordem moral hipócrita e de seus abusos na
prática de perversões refinadas. João de Deus não se contentou em criar perfumes
capitosos ou de reger um conjunto de jovens ninfas, trabalhando sob suas ordens. Ele
ultrapassa os limites, levando uma das moças, Rosário,e depois a filha do seu
açougueiro, Joaninha, a práticas sensuais ou sexuais reprovadas, que redundam em
escândalo. João de Deus recolhe então os frutos amargos: a indignação de todos, a
violência física, o saque de seu apartamento, a redução a cinzas de seu Livro dos
Pensamentos. No entanto, de um extremo a outro do filme, sua fleuma testemunha uma
mesma impávida calma, a extrema contenção no registro de sua voz permanece idêntica,
seu andar a passos contados não se acelera de forma alguma, e é impassível, sorriso nos
lábios e fechando os olhos que ele se oferece ao açougueiro que lhe quebra a cara. João
de Deus vive num modo onde a lentidão é soberana, e é lentamente que ele se
encaminha para sua catástrofe.

“Cá está. Pontualidade britânica. O movimento lento é essencialmente majestoso”42. É


este o retrato, tão sucinto quanto sugestivo, de João de Deus, oferecido por uma das
moças empregadas no Paraíso. Ele ainda se encontra fora de campo,a moça o espera
com uma outra colega, diante das portas envidraçadas da loja. Esta réplica, que se
encontra no plano seguinte aos créditos43, tem um valor de incipit 2t: ela coloca o filme
sob a epígrafe da Idéia da Lentidão congênita ao personagem de João de Deus, e
possibilita acentuar-lhe o relevo.Mas ao antecipar a aparição do personagem, ela
também permite in-formar a visão do espectador: antes de ser um personagem, João de
Deus, em primeiro lugar, torna-se para o espectador aquele que, ao penetrar no plano,
confere corpo à idéia de Lentidão que o precedia e, de alguma maneira, o esperava.

Figura da Lentidão.

Esta relação entre um corpo e uma Idéia44 que este se encarrega de encarnar é o que
permite, em primeira instância, configurar a Lentidão em uma figura na Comédia de
Deus. Sabemos, desde a investigação filológica de Erich Auerbach em Figura45, o
quanto a noção de figura é polissêmica, e sobretudo intrinsecamente ambivalente. Como
bem resume Olliver Schefer, “ao mesmo tempo forma-exterior, ou aspecto visível”, real
de uma coisa, e “modelo abstrato”, ela não é propriamente “nem um nem outro
separadamente, nem mesmo ambos de forma conjunta, mas se encontra inscrita , e eis a
causa de sua fecundidade, entre os dois: entre visível e invisível, aparência exterior e
modelo inteligível.46 Pode-se dizer portanto que a “figura visível”, ou mais exatamente
aquilo que da figura constitui sua parte visível ( ou mais amplamente sensível) se
ordena “de acordo com seu modelo”, sua matriz “invisível, que ela tem por tarefa
manifestar”47. A figura se caracteriza, portanto, por este interstício ( entre-deux),
encontrando sua função e sua virtude em uma mise en rapport ( pôr em relação,
relacionar) entre domínios separados, ou mesmo disparates. Pascal resumiu de uma
forma sugestiva esta característica da figura, quando em seus Pensamentos ele escreve
que “figura porta ausência e presença”48. Se a lentidão relacionada ao personagem de
João de Deus é eminentemente figura, é por ser gerada nesta lógica do interstício, do
“entre”. A lentidão não é apenas o traço característico deste personagem libertino,
austeramente hedonista ( vive como um monge, mas asperge sua vida de prazeres) e
sensualista, igualmente caracterizado, em registros diferentes, por seu físico atrofiado,
sua obsessão pela higiene, sua erotomania ou seu gosto por petiscos refinados. A
Lentidão é a Idéia invisível que o define de antemão, e que seu corpo em seguida se
encarrega de figurar. Quando João de Deus confere o Livro dos Pensamentos, onde
conserva pequenos sachets de celofane contendo pêlos pubianos vindos dos quatro
cantos do mundo, é para se debruçar longamente sobre cada página, verificando aqui e
ali a inflexão de frase que lhe fora inspirada por tal triângulo pubiano, ou soprando
delicadamente sobre alguns pêlos que escapam dos sachets, para vê-los flutuar sobre a
cartolina. É por ser lido na velocidade de uma meditação erótica que este livro é o
suporte de pensamentos.

A lentidão inerente ao personagem de João de Deus também pertence ao domínio da


figura por ser apenas um modo de manifestação particular de uma Idéia mais geral de
Lentidão que age em todos os níveis da representação. É a economia fílmica em seu
conjunto que é lenta. Nada de mais alheio à Comédia de Deus, por exemplo, que a
noção de montagem rápida que dinamiza o encadeamento de planos curtos, e imprime
ao filme um “beat”49 tônico que pode dar ao espectador a sensação de ser levado por
um crescendo sempre uniforme. Na Comédia de Deus, a montagem se faz sobretudo
“mostragem”, no sentido particular de transmitir uma “de-mostração”: o corte e a
aparição do plano seguinte se fazem frequentemente depois que um plano sequência
permitiu que a situação que ele deu a ver se prolongasse em excesso, com o risco
inclusive de esgotar a paciência de certos espectadores50. As escolhas da cenografia e
da mise en scéne reforçam a impavidez inerente aos longos planos fixos: abundam com
frequência um certo hieratismo dos personagens, a raridade ou fraqueza das ações51 e
dos efeitos de composição, devidos à disposição estrita ou aos movimentos coordenados
dos personagens no espaço, que contribuem a transformar estes planos em tableaux
vivants , ou mesmo em imagens-tempo, onde a lentidão se torna um dado sensível. É
esta aliás a intenção de uma sequência onde uma habituée do Paraíso retraça as grande
etapas da invenção do sorvete, dos primeiros sorbets romanos até o “inundado” ice-
cream: instalar a dramaturgia plenamente na lentidão. Filmado em plano de conjunto,
quase no centro do cadre, “entalada” atrás de uma das mesas do Paraíso, onde se
sentara, esta dama com cabelos grisalhos52 não faz nada além de se deleitar em contar
esta história, destacando cada sílaba com a mesma “devida reserva” ( segundo seus
próprios termos) com que, minutos depois, saboreia cada colherada de sua taça de
sorvete. O caráter ronronante de seu fraseado, seus gestos contidos e lânguidos, sua
inércia física e seus profundos suspiros dão forma a uma lentidão exibida como arte de
viver, ou mesmo ética: a lentidão, modo de vida na contracorrente do frenesi liberal,
imprime uma tonalidade tranqüila ao cotidiano, e aqui dá-se a ler como a chave para
abrir o baú das delícias da vida. Concluímos, destes distintos elementos, que a lentidão é
um dos sinais mais destacados e distintivos da estética de João César Monteiro. Uma
das figuras essenciais de sua arte poética.

Jogo maneirista.

Para impor a Idéia de Lentidão enquanto figura, o corpo de João de Deus apenas a
assume. Por dar-lhe uma forma, ele a torna particularmente visível. Com este fito, Max
Monteiro53 elabora um tipo de interpretação inédita que, em nossa análise, se revela
profundamente maneirista. Este maneirismo provém, em primeiro lugar, das atitudes
afetadas, preciosistas ou canastronas que ele empresta a seu personagem; ele mantém
ostensivamente seu cigarro entre o dedo maior e o anular54, se fixa no café em posturas
indolentes e refinadas, falsamente naturais, que impressionam Rosário e contrastam
com a “falta de jeito” da moça. Ou, pelo contrário, ele pode simular uma postura que o
torna infinitamente frágil diante da mesma Rosário, antes de iniciá-la nas regras de
higiene, com a cabeça voltada para frente, os braços cruzados sobre o dorso. Desta
maneira, ele traduz corporalmente a forte impressão que a beleza da moça lhe causa.
João César Monteiro propõe uma arte da pose, um maneirismo de posturas trabalhadas
ao qual a lentidão é ontologicamente necessária, e que ele contribui para exprimir na
medida em que “fazer uma pose” significa não apenas permanecer em posições
corporais que nos dão a sensação de tornar o tempo mais lento ( ralentir) mas sobretudo
“dar-se o tempo” de se instalar nestas posturas e manifestar que se vive sob um modo
lento. Monteiro também inventa para seu personagem um repertório gestual maneirista
dos mais singulares, quando eleva os olhos para o céu, querendo dizer “não falem
comigo”, ou quando levanta os braços acima da cabeça, para dar maior amplidão a um
“Que sei eu?”, que acompanha sempre este gesto. O maneirismo dos gestos vem em
primeiro lugar de sua recorrência: João de Deus parece cultivar um catálogo
relativamente restrito de gestos eleitos e cultivados, gestos que ele convoca ao sabor de
sua vontade ou das necessidades do momento, e que ganham em expressividade na
mesma medida em que perdem em espontaneidade. Mas o caráter maneirista deste
gestual provém também da lentidão com que Monteiro executa estes gestos escolhidos.
Sublinhados pelo tempo suplementar ao que seria necessário para sua execução, estes
gestos se tornam outra coisa: formas, que se dão a ver e compreender enquanto puras
maneiras, modeladas pela Lentidão, e que tem por função exprimi-la.

De uma forma mais essencial, o maneirismo da interpretação de Max Monteiro repousa


sobre uma “maneira de interpretação” paradoxal, cuja complexidade, natureza artificial
e virtuosismo proporcionam seu valor poético. Sua interpretação representa, com efeito,
uma mistura heterogênea entre grave sobriedade e insana excentricidade. É quando
procura comover que se mostra mais lúdico: quando uma de suas empregadas, Virgínia,
recusa seus avanços sexuais, João de Deus molha os dedos em seu copo d’água e
asperge as bochechas, para que a moça acredite tratarem-se das lágrimas, frutos de um
doloroso desgosto que ele sofrera. A interpretação de Monteiro embaralha ou
problematiza diferenças simples entre certos tipos de atuação a priori opostas,
adaptando-as às suas conveniências. Podemos, para colocar em evidência esta questão,
fazer referência à tipologia delineada por Luc Moullet no seu Política dos atores55. Ele
opera uma distinção, cômoda e eficaz, entre o underplay, ou atuação contida, ou seja, a
capacidade do ator em interiorizar e apagar de seu rosto e corpo as expressões muito
marcantes, e o overplay, ou sobre-atuação, a exteriorização demonstrativa que pode, por
exemplo, tomar a forma de um desencadeamento pulsional de violência ou se
manifestar sob os aspectos da canastrice. Ora, a particularidade do ator Monteiro56 não
consiste apenas, como talvez seja o caso de Harvey Keitel57, em trabalhar as formas da
passagem de um registro ao outro. Posta a serviço de um personagem que é um
verdadeiro oxímoro58 vivo, a especificidade da atuação de Monteiro é de mesclar
simultaneamente, no decorrer das mesmas posturas, o underplay e o overplay,
submetendo partes distintas do seu físico a lógicas contrárias. Quando ele alteia o tom
de voz e bate o pé em cólera contra uma de suas empregadas, que se recusa a limpar o
muro do banheiro coberto de excrementos, João de Deus não deixa de nos transmitir
uma impressão de controle total de si, de contenção no comportamento que traduzem a
extrema rigidez de seu porte e a impassibilidade mineral de seu rosto. Assim, enquanto
a agitação de seu pé demonstra uma forma minúscula e localizada59 de overplaying, o
resto de seu corpo se situa no underplay. De forma sutil, ocorre a Monteiro subverter o
overplay pelo underplay, atuando com comedimento e mantendo sob retenção as
emoções fulgurantes e tempestuosas. Quando Joanninha, tal qual uma aparição60, entra
no Paraíso, João vive o evento sob o efeito de um estupor erótico: “senhor João de
Deus, jogando seu jornal sobre a mesa e colocando as mãos sobre a nuca, se instalou da
melhor maneira que pôde sobre a cadeira, com a intenção irreprimível de “tirar um
cochilinho”61, mas reabrindo os olhos,um instante depois de tê-los fechado, encontra-se
fulminado pelo esplendor de uma Joaninha , de quem emana cristalina luz. Ao invés de
exprimir os trejeitos que exprimiriam a emoção do personagem, João decompõe, como
se estivesse em câmera lenta, as micro ações que o levam do repouso-sentado, mãos
cruzadas atrás da nuca, pernas alongadas ao longo de uma cadeira- a ficar em pé, rosto
de mármore e olhar congelado pelo evento, em um movimento de ereção cujo caráter
metafórico não temos dificuldade em captar.A lentidão aqui está serviço de um jogo de
deslizamentos, onde a “nonchalance” underplay da execução assume a energia
emocional “overplay” que atravessa João de Deus e que, como uma onda, o faz se
mover. Trata-se aí de um mini gestus62 , que faz da maneira com que João se inscreve
no encadeamento de uma postura à outra o tema fundamental deste plano, uma vez que
é ela que o exprime. Deste exemplo e do precedente, vemos que é a lentidão com que
Monteiro age que permite ao espectador realizar facilmente a distinção entre o que
advém do obverplay e do underplay. Não realmente overplay nem exatamente
underplay, o jogo maneirista de Monteiro pode ser qualificado de under-overplay lento.
Cerimônias de Deus.

Este under-overplay lento contribui a transformar as ações afetadas de João de Deus em


pequenos cerimoniais, que, quando proliferam, estão na base das grandes cerimônias
lúdicas63, estranhas e preciosistas que este personagem afeta e confecciona, dentre as
quais figuram a sessão de natação, no apartamento e a cerimônia da champanhe. Nestas
cerimônias, João de Deus dá-nos a medida plena do refinamento de suas maneiras
afetadas, orientando-as a uma finalidade de sedução. Quando da cerimônia do
champanhe, inventada em homenagem à graça travessa da Joaninha, João estende o
tempo do processo de sedução, dividindo-o em pequenas etapas que parecem constituir
um crescendo em direção à marcha das delícias: vestir-se com um kimono, degustar a
Champanhe, fazer a Joaninha tomar um banho de leite, no qual esta deve colocar seu
perfume, para que João de Deus confeccione um sorvete que vai levar seu nome, fazê-la
provar o sorvete do “Paraíso”, o sumo de sua arte, antes de sentá-la numa rede em
forma de “cornucópia” ( corne de l’abondance”), cheia de ovos frescos, para que a
menina cure seus problemas intestinais. Cada “estação” da cerimônia a conduz ao ápice
de refinamento, com o objetivo de mesclar sutilmente ao prazer do instante o desejo de
atingir um instante ainda mais prazeroso, desejo e prazer se amplificando de maneira a
serem dispostos diligentemente no tempo. A conseqüência disto é uma “pesquisa”
( recherche) exacerbada do erotismo: Joaninha assume um papel em um teatro64
fantasmagórico, onde as atitudes “amaneiradas” que João de Deus lhe instiga sublimam
estas curvas nascentes e ainda incertas. Estas cerimônias são importantes porque nelas
as maneiras de agir de Monteiro repercutem65 sobre as moças para as quais são “postas
em cena” ( il les met en scéne): graças a estes rituais, estas podem se tornar espécies de
bonecas maneiristas, adequadas aos propósitos fetichistas de João de Deus.
A mesma coisa na seqüência da natação no apartamento, onde Monteiro, demiurgo
delicado e inspirado, confere ocasionalmente ao seu papel de educador de moças a
função de mestre de natação-dançarino. Em torno de Rosário, João de Deus- inventor
desta situação que a princípio nos parecera surrealista e incongruente, mas que, à
medida em que se prolonga, destila sua beleza- cadenciado por tiques de transe e por
élans de calmaria etéria, seduz metodicamente a moça, abrindo e fechando os braços em
amplos movimentos, que parecem tanto celebrar a beleza de Rosário quanto entoar um
hino à bunda da jovem que ele em seguida vai enrabar. João de Deus dá a impressão de
animar o corpo da Rosarinho , iniciando-a aos três tipos principais de nado, a braçada, o
crawl e o crawl de costas. Aqui, como se inebriada pelo efeito de uma contaminação
estética, a jovem se transforma em marionete maneirista, depositária graciosa de um
conjunto de gestos lentos que ela recebe de seu mentor. Cada gesto seu se encontra
marcado por uma delicadeza musical que entra em perfeita concordância com as
harmonias líquidas e melancólicas da Morte de Isolda de Wagner, que banham toda a
seqüência. O gestual maneirista faz-se aqui musical.

Maneirismo do discurso

A lentidão de João de Deus também está a serviço de um profundo maneirismo no


discurso, cuja finalidade é essencialmente crítica. Ele usa a palavra e a linguagem de
formas singulares. Há, está claro, sua voz arrastada e às vezes quase inaudível que,
mesmo quando ele clama por sua “pobre mãe”, ao ver o muro do toilette das mulheres
coalhado de merda, destaca com minúcia cada sílaba: ela representa um modo de
expressão e de enunciação contrárias às vociferações de Judite, caricatura em forma de
ex-puta do patronato sem escrúpulos que é o braço armado do capitalismo. Falar
lentamente, para Monteiro, certamente traduz uma forma de ação política. Desta forma,
por exemplo: a maneira caricaturalmente lenta com que João lê o discurso interminável
sobre seu “savoir-faire” em matéria de sorvetes- escrupulosamente anunciado como
breve, a princípio- , discurso infligido à assembléia de canalhas da pior espécie- reunida
para assistir ao julgamento de seu sorvete por Antoine Doinel ( Jean Douchet), célebre
confeiteiro francês. Esta forma de lentidão acentua o caráter provocador e corrosivo
deste texto em forma de diatribe onde ele esculhamba, na presença de alguns de seus
representantes, os corpos políticos, religiosos e econômicos: as fórmulas cortantes tem o
tempo de ressoar como golpes violentos, mais violentos ainda na medida em que
enunciados com tranqüilidade. Mas de forma ainda mais fundamental que o discurso
escrito, são as maneiras espontâneas que tem de falar que são profundamente
maneiristas no personagem. Assim, ao invés de pronunciar um “sim” franco e maciço,
João prefere sempre dizer um “Não digo que não”, tomando o tempo de complicar as
afirmações mais simples. Este maneirismo oral culmina em uma fórmula definitiva, que
é o: “Eu preferiria não” ( Je préferèrais ne pas”), frase célebre do escriturário
Bartleby3t, o perturbador anti-herói de Hermann Melville. Fórmula onde, segundo nos
ensina Deleuze66, encontramos o maneirismo em si. Armados com esta fórmula,
nenhuma necessidade de outra forma de discurso. Perto do fim do filme, diante da voz
tonitruante do açougueiro Evaristo, que lhe ordena “arriar as calças” ( capitular, de
forma covarde), determinado a lhe cortar o sexo, ao saber do que João de Deus “fizera”
à Rosarinho, João de Deus apenas redargüi com um “Eu preferiria não”, dito com a
lentidão que o caracteriza em tudo; portanto, nem no momento de “subir ao cadafalso” o
personagem cede67, e se recusa obstinadamente a desmentir o seu modo de vida
libertário.

Burlesco da lentidão.

Por ser um personagem feito de excessos, não podemos nos espantar de ver culminar a
lentidão maneirista de João de Deus em momentos extremos. O extremo está, por
exemplo, na cena em que João, despertado no meio da noite pela patroa Judite, que soa
a campainha até o momento em que este vem abri-la, permanece indefinidamente no
leito. Na penumbra, após o primeiro toque da campainha, percebemos o corpo de João,
que começa a se remexer sob os cobertores.Ao invés de se inquietar ou mesmo se
surpreender com o toque da campainha, de se precipitar à porta, João em primeiro lugar
acende a luz do abajur, depois, ainda deitado, pega os óculos sobre cabeceira, senta-se
sobre o leito e observa a hora, põe sobre o cobertor os óculos e se espreguiça ainda
diversas vezes antes de finalmente pôr os pés no chão e sair , titubeante, do campo. Esta
sucessão de pequenas ações fragmenta o tempo e nos dá a impressão de torná-lo lento,
subvertendo-o por efeito da insistência na lentidão. O corpo de Monteiro, por não estar s
serviço de nenhuma narração ( de um ponto de vista estritamente narrativo, esta cena
não serve literalmente para nada) assume integralmente, sob o modo do burlesco, a
figuração de uma soberana lentidão. Esta impõe sua temporalidade à cena e ocasiona a
“estagnação” do filme: a figura da lentidão , ao se exibir, domina.
Semelhante seqüência mostra que um dos pontos de chegada do maneirismo de
Monteiro é o que se convém nomear de “burlesco da lentidão68”. Monteiro inventa uma
forma singular, talvez única de comicidade, que consiste a renovar o burlesco por
excesso de lentidão. A interpretação maneirista de Monteiro é de tal maneira fiel ao
burlesco, apesar de assumir uma figura que lhe é a princípio oposta, se, como afirma
Fabrice Revaut d’Allonnes, “a obra e o homem burlesco se apresentam como paródias
críticas da sociedade contemporânea, industrial e mercadológica, com seu frenesi, sua
trepidação, seu super-consumismo”69. Ao invés de figurar e expor ao ridículo a vontade
de aceleração do tempo que acompanha as mutações do mundo moderno, ou mesmo
“super moderno”70, fazendo o personagem viver sob o modo de uma excessiva
trepidação, Monteiro o transforma num ser extremamente deslocado( decalé) 71, cujo
modo de vida lento é suficiente para produzir sua função cômica e crítica. Ao
desenvolver uma forma de burlesco intrinsecamente maneirista- nos referimos aqui
tanto ao maneirismo histórico quanto à interpretação de Robert Klein, pois ambos
concluem que a dimensão do excesso72 pertence de direito a esta corrente expressiva-
Monteiro, por intermédio de sua incomparável singularidade maneirista, mescla, em um
mesmo decisivo gesto cinematográfico, crítica e cômico.
Este burlesco da lentidão culmina no encontro face a face entre João e o açougueiro
Evaristo, entre o corpo magérrimo de João de Deus e o corpo pesadamente rotundo,
barrigudo e arredondado do açougueiro. A forma burlesca se deixa trabalhar aqui em
seu interior, com a insistência do João de Deus em não se deixar executar sem antes
fumar um último cigarro. O retorno do mesmo gesto, que atinge o nonsense, de levar,
custe o que custar, um cigarro aos lábios, cigarro ejetado da boca do personagem pelo
açougueiro com uma mão cada vez mais nervosa, inscreve o cômico da situação num
jogo de repetições que transforma o burlesco em uma mecânica distendida e alucinada.
O absurdo inerente ao burlesco não perde aqui nada de sua força, mas pelo contrário se
encontra multiplicado. Apenas o arbitrário pode pôr um fim- o fato de que não resta
nenhum cigarro na carteira- e estancar o delírio de um tempo que não avança, paralisado
pelo trajeto da repetição.

Desta forma, João de Deus pode girar o tempo a seu favor, conter seu avanço, adiar o
advento de um futuro catastrófico, ao aprofundar o presente em uma infinita lentidão. A
lentidão não o salva, pois o personagem vai, de qualquer jeito, “quebrar a cara”.Mas ela
representa um meio de resistência que frustra aqueles que decidem afrontá-lo. A
lentidão que emana de seu personagem pode levar ao riso, suscitar a ironia ou ser o
objeto de uma desprezível suspeição ( no primeiro plano do filme, uma das empregadas
suspeita que o patrão não seja lento por natureza, mas sim para atrasar a tudo e todos).
É, contudo, uma lentidão que acaba por se impor, e que traduz uma certa forma de
nobreza. Ela se oferece como o sintoma mais evidente de uma natureza altaneira que,
assumindo os riscos das “maneiras” e do grotesco, impõe na mesma medida o respeito.
Não nos é negado inclusive ver nela uma forma superior e aristocrática de carisma.

Notas autor:

1“Maneirismos” em Au hasard Balthazar. Desde este número, o título da revista mudou:


chama-se apenas Bathazar.

2 Alain Bergala, De uma certa maneira, Cahiers du Cinema, abril 1985

3 Serge Daney, Cinejournal e Devant la recrudescence des vols de sacs à main


4 Maneirismos, obra citada.
5. Os autores falam de maneirismo genérico tendo em vista os escritos de Serge Daney
e Jean-François Rauger, que se inscrevem em “uma linha teórica que vê no maneirismo
a vontade de prosseguir com um gênero em decadência".

6.Delorme, De uma estética maneirista. Delorme explicita claramente cada termo da


definição: “Uma anamorfose porque o retrabalhamento é fundado sobre a distorção da
imagem primeira. Sistemática pois é este retrabalhamento que dá sentido à obra.
Obsessiva pelo fato do maneirista nem sempre ter se desvencilhado da imagem
originária. De um “motivo” ( ou tema) pois uma figura é destacada da obra original e
eleita como objeto exclusivo. Magistral, já que a obra original é uma obra que atinge um
grau de maestria e de perfeição inultrapassáveis.”
7. Podemos, com efeito, assinalar que o tom categórico que percorre a maioria dos
artigos deste número a serviço da concepção do maneirismo defendida por Delorme, se
encontra nuançado por vasto gênero de opiniões, aliás bem explícitas e conscientes.
Assim, o título do número, Maneirismos, com um sugestivo plural, sub-entende uma
pluralidade de questionamentos, não necessariamente conciliáveis entre eles.

8. Um filme como A comédia de Deus não é de todo estranho a um tal jogo de “relação”
( mise en relation).O filme é recheado de alusões, citações, de piscadelas em relação a
obras anteriores ( Los olvidados de Buñuel, Foolish wives de Stroheim, a série dos
Doinel de Truffaut). Mas se trata de intertextualidade e de hipertextutalidade, não se
trata, em Monteiro, de um trabalho de re-elaboração figurativa.
9.Como escrevem os redatores da revista: “O maneirismo parte de uma figura congelada
e, por condensação, deslocamento, anamorfose , estilhaçamento, etc a des-figura ou re-
figura”.

10. Para uma análise bem detalhada deste conhecido exemplo, podemos nos referir às
páginas de Nicole Brenez sobre “Brian de Palma e os psicotrópicos”. Notaremos, de
forma interessante, que a autora não utiliza jamais o termo maneirismo, mas inscreve
suas análises no espaço de uma reflexão mais ampla sobre o conceito, criado por ela, de
“efeito visual”: Trata-se de um encontro frontal, de um face a face, entre uma imagem já
constituída e um projeto figurativo que se consagra a observar, ou dito de outra forma,
um estudo da imagem pelos meios da própria imagem”, Da figura em geral e dos corpos
em particular.”

11. Para um detalhamento da evolução do termo maneira através da história e uma


recensão de seus diferentes usos, ler Alan Rey, “Maneira”, em Le Robert historique de
la langue française.

12. Charbonneau. “ A presença amaneirada. "Aproximação fenomenológica das


maneiras”, em “Fenomenologia da experiência amaneirada”. Ficamos muito
interessados em constatar que esta revista de antropologia fenomenológica, aparecida
cinco meses depois do colóquio de Poitiers, desenvolve e pensa, através de estudos
diversos, uma concepção do maneirismo em sua dimensão amaneirada. Georges
Charbonneau analisa a experiência amaneirada através do que ele nomeia os “quatro
núcleos fenomenológicos”: a dissimulação sofisticada, fazer uma pose, a “deferência
preciosista” e a “presunção empertigada”.

13. Podemos achar também nos escritos de Alain Bergala, no campo da crítica
cinematográfica, assim como em W. Friedlander, no domínio da história da arte
pictorial, um uso depreciativo do termo “amaneirado”. Walter Friedlander em
Maneirismo e anti-maneirismo e Bergala op. Cit.

14. Argumentando a favor de sua concepção de maneirismo, os redatores da revista


escrevem: “O sentido do maneirismo, sua invenção e seu valor encontram-se
unicamente aí. O resto é anedótico”.

15. Richard Klein, A forma e o inteligível,

16. Por ser não-histórica, isto é, construída fora de toda referência direta com o
maneirismo pictorial, esta definição é particularmente apta a interessar o cinema.
17. Klein insiste no caráter formal desta definição: ela não visa a dizer a verdade da arte,
mas a dar conta da arte unicamente na medida em que esta se relaciona com a técnica.

18. É conveniente aqui precisar que os efeitos constituídos pela obra de arte fazem
efeitos justamente para um espectador. É a razão pela qual Klein considera que “cada
artista deve, na medida ( evidentemente variável) em que este “visa” aos efeitos que
produzirá sua obra, interiorizar o espectador intersubjetivo ou universalidade que
sofrerão seus efeitos”.
19. Ibdi, op. Cit.

20. Klein precisa: “Se uma maneira é virtualmente arte, é em primeiro lugar porque arte,
segundo certas concepções correntes da expressão, é uma maneira de fazer alguma
coisa”.

21. ibdi, op. Cit.

22. ibdi, op. Cit.

23. “Os movimentos preciosos, as atitudes cultivadas, a linguagem florida ou empolada,


e em geral toda conduta artificial ou induzida pela interiorização de certos espectadores
imaginários correspondem a esta definição” .

24. Ibdi. P. 392


25. Precisemos que Klein fala indiferentemente de maneirismo e de amaneirado, mas
não de “maneirismo amaneirado”. Não cremos, no entanto, estar traindo seu
pensamento ao utilizar esta contração num sentido positivo.

26. Ibdi. P. 393


27. Ibid. p. 393.

28. D. Arasse, “Conversação com Daniel Arasse” em Simulacros 2.

29. Para Daniel Arasse, esta definição do maneirismo, por mais justa que seja até certo
ponto, é muito formal. Ela não dá conta do que , segundo ele, constitui a particularidade
do maneirismo pictorial, categoria não apenas conceitual mas ancorada na história da
arte e na História simplesmente: ser uma arte ligada a uma dupla crise- crise e
contestação dos meios de representação clássicos de uma parte, mas também, e talvez
sobretudo, crise de confiança na política de outro lado. Mas o maneirismo é apenas a
constatação de um estado de crise: ele busca, e é isto o que para Arasse constitui sua
singularidade, trazer uma resposta a esta crise. As reservas de Arasse são evidentemente
relacionadas a seu ponto de vista de historiador da arte e sua vontade de remontar às
origens do maneirismo pictorial, ao que o funda: não há uma única razão para que estas
sejam aplicáveis in extenso em relação ao campo do cinema. Apesar disso, veremos que
o maneirismo de Monteiro não é destituído de dimensão política. É necessário então
sublinhar que Klein refuta frontalmente a acusação de formalismo feita à sua concepção
de maneirismo: “Esta definição do maneirismo ou do amaneirado não é mais, em nossa
opinião, exterior, descritiva ou formal: “é a primeira, entre todas as que propomos aqui,
que nos parece isenta deste defeito. O maneirismo é verdadeira e essencialmente uma
“arte da arte”, enquanto que a arte não é, verdadeira e essencialmente, “a atenção prática
dirigida ao como objetivado sob o ângulo da produção de efeitos”. Em outros termos, o
maneirismo supõe e leva a sério uma “definição formal e exterior da arte” ( sublinhado
pelo autor).
30. digamos “relativamente concernido”, porque as fronteiras do maneirismo pictorial
nos parecem amplas, até mesmo flutuantes. Assim, Arasse considera, como bem o
indica o titulo de sua obra consagrada à questão, que, longe de representar uma
decadência do Renascimento, o maneirismo participa consubstancialmente do
Renascimento: “é, finalmente, toda Renascença que é maneirista”. D. Arasse e A.
Tönnesmann, A Renascença maneirista.

31. Bergala resume perfeitamente este ponto: “[O maneirismo histórico] se caracteriza
pela percepção que puderam ter pintores como Pontormo ou Parmigianino de terem
chegado “tarde demais”, depois de um ciclo da história de sua arte ter sido cumprido e
um certo nível de perfeição sido atingido pelos mestres que os haviam precedido há
pouco, como Michelangelo ou Rafael. A “Maneira” constituiria uma das respostas
possíveis ( com o Academismo e o barroco) a este passado próximo esmagador”.

32. A contribuição mais original de Stéphane Delorme na reflexão sobre o maneirismo é


sem dúvida ter mostrado que os cineastas representativos da concepção de maneirismo
que o interessa ( de Palma, Peckinpah, Argento) devem, violar, enfear, ou até mesmo
destruir o tema magistral originário para terem a esperança de poder fazer surgir
novamente a beleza.

33. No decurso de seu estudo, Klein não hesita em tomar exemplos em formas artísticas
bem diferentes.

34. É a razão pela qual Robert Klein, se bem o compreendemos, parece ver no
“virtuosismo” um elemento constitutivo do maneirismo: “O virtuosismo é (...) uma
primazia acordada a uma meta-técnica, a técnica da produção das formas que produzem
efeitos. O que conta então para a consciência não é mais o como da obra ( sua forma),
mas o como de sua produção. O virtuose, digamos, não “comove” ( o efeito direto das
formas é diminuído), mas suscita a admiração ( o efeito que tem primazia é produzido
por um “objeto” não sensível que age indiretamente: a habilidade do executante).

35. Para retomar o termo usado por Michel Chion

36. Klein, com efeito, precisa esta nota: “Por pura convenção do vocabulário, que
podemos negligenciar aqui sem prejuízo, a afetação tomou, na maioria de suas acepções
correntes, o sentido pejorativo de uma inter-subjetividade fracassada, onde o
personagem afetado empresta ao espectador que ele interioriza sua própria falta de
gosto; daí o ridículo desta conduta. Mas para a definição essencial da afetação, basta
sublinhar a objetivação da maneira- um ato neutro do ponto de vista dos valores, e que
pode ser bem ou mal realizado, mas que implica sempre ( daí sem dúvida a prevalência
do sentido pejorativo) um certo artifício: o obscurecimento do but ( fim, objetivo)
natural”.

37. Por exemplo: um ator que se prepara a interpretar uma explosão de cólera. O
problema não está para ele em se pôr em cólera, mas de fazer de tal maneira que sua
explosão seja vista, que seja clara, eficaz, que evite o lugar comum, etc; ou seja, é
preciso que o ator chame a atenção para seus efeitos, que ele interiorize o espectador”.

38. art. Cit. P. 76

39. O que preexiste à expressão da figura é o “modelo inteligível” que a figura se


encarrega de tornar manifesto. Sobre a relação entre figura e modelo inteligível, ver cf.
infra.

40. Segundo Monteiro, Le bassin de John Wayne, rodado entre as duas partes do deste
díptico, era em realidade previsto para ser realizado antes da Comédia de Deus. Com o
recuo do tempo, Monteiro considera aliás este filme com muita severidade: segundo ele,
“é um filme de alcoólatra, rodado num estado de embriaguês permanente”. Ele romperia
portanto, a ligação entre A Comédia de Deus e Bodas de Deus. Cf Emmanuel Burdeau,
“Não ceder um único pêlo, entrevista com João César Monteiro”, Cahiers du Cinema,
dezembro 1999.

41. Ou seja: transformada em um fast-food do ice-cream, onde vicejam toda espécie de


Pom Pom Girls.

42. A última frase é de Balzac, retomada em sua Théorie de la Démarche ( 1833).

43. Um plano precede este, que serve de fundo aos créditos do filme: o plano cósmico
de uma galáxia que efetua evoluções lentamente, acompanhadas por uma música
religiosa de Monteverdi onde exultam algumas aleluias. Pelo conjunto possuir um
caráter extremamente majestoso, este plano pode sem dúvida passar por uma
prefiguração do “movimento lento essencialmente majestoso” de João de Deus.

44. Nosso agradecimento a V. Campan por sua releitura crítica do artigo que nos
permitiu precisar este ponto.

45. Erich Auerbach. Figura

46. O. Schefer, “O que é o figural?”


47. Op. Cit. P. 915
48. Pascal, Pensamentos. Para Pascal, toda a Natureza é figura, na medida em que tanto
encerra quanto revela Deus, e apenas aqueles que possuem fé se encontram capazes de
decifrar esta “ausência e presença de Deus” em um mundo literalmente figurativo.

49. Segundo a expressão de H. Damisch sobre a importância da noção de ritmo nos


escritos de D. Païni. Damisch, A imagem-ritmo, prefácio à obra de Païni, O cinema, arte
moderna.

50. S. Goudet considera, por exemplo, que a “própria duração dos planos (...) parece às
vezes “forçada” na primeira metade pela necessária homogeneidade do projeto ou pelo
“autorismo” do cineasta. S. Goudet, A comédia de Deus, Rigor e fantasia em Positif,
fevereiro 1996, p.22

51. É preciso entender a idéia de fraqueza das ações, no sentido em que raros são os atos
que implicam em repercussões narrativas maiores.

52. Não seríamos obrigados a concluir, no entanto, que o sentido da lentidão seja
privilégio da idade na Comédia de Deus. Há personagens maduros que agem com
precipitação. Assim, se a velha dama com a taça de sorvete se indigna com a velocidade
com que as jovens, neste momento na loja, abocanham seus sorvetes com grandes
lambidas indelicadas de língua, a maneira com que o açougueiro Evaristo se precipitava
violentamente diante das provocações do “selvagem” deixara, sequências antes, João de
Deus desconcertado e sem voz.
53. João César Monteiro utiliza este nome Max nos créditos da Comédia de Deus em
relação específica a seu trabalho de ator. A ressonância com Max Schreck- o intérprete
do conde Nosferatu no filme de Murnau- não é fortuita. Jean Louis-Leutrat havia, a
propósito de Recordações da casa amarela, notado e analisado em suas repercussões
fantásticas a semelhança entre o físico de João de Deus e do vampiro. Jean-Louis-
Leutrat, Vida dos fantasmas. Ver também sobre este ponto o que o próprio Monteiro
diz, em sua entrevista com P. Hogson, “Entrevista com um vampiro, encontro com João
César Monteiro”, Cahiers du Cinema, fevereiro 96, p.33.

54. Por prazer da anedota, notamos que João de Deus compartilha este traço singular
com o escritor M. Houellebecq.

55. Luc Moullet, Política dos atores. Se Moullet se interessa unicamente a quatro
grandes atores americanos ( Gary Cooper, John Wayne, Cary Grant e James Stewart), a
distinção que ele opera em seu prefácio é uma distinção geral, que funciona fora do
contexto americano.
56. João César Monteiro, a maior parte do tempo reservado, às vezes se deixa levar por
surtos de agitação desarvorada. Sublinhamos o momento na piscina em que ele reúne no
vestiário as moças que levara para a piscina. Antes de se engolfar pelas escadas que vão
conduzi-lo a elas, ele adota uma postura mefistofélica, levantando os braços acima da
cabeça e agitando seus dedos em castanholas , tal qual um abutre rompendo sobre as
presas, que pertence puramente ao overplay. Ainda mais também na cena em que
mergulha a cabeça na cornucópia com os ovos na qual Joaninha havia sentado antes. Ele
torna-se pouco a pouco uma criatura fantástica, que deixa livre curso à sua canastrice e
tem desejo de fazer, literalmente, qualquer coisa. Este traço é levado até o extremo em
Le bassin de John Wayne quando, de pé e nu, urina diante da câmera, ou quando ele
tagarela de forma interminável, em cena anterior, bebendo num chopp em forma de
falo.

57. Ch. Ortoli. “Les déchirures du male”, A propósito de Harvey Keitel, Lettre du
cinema

58. S. Goudet, sem se dirigir exatamente ao jogo “atoral” de Monteiro, sublinha a


importância da figura do oxímoro para dar conta do personagem de João de Deus: “No
cineasta português, o oxímoro não visa emaranhar as referências entre o real e o
imaginário, mas a tornar mais complexo um personagem que, não sabendo distinguir o
nobre do ignóbil, o alto e o baixo, toma literalmente seus desejos por realidades.
(...)Este maníaco da aplicação da ordem e da limpeza tem, no entanto, por outra
característica, uma atração obsessiva pelo interdito, o sujo, o obsceno, e um gosto
fortemente pronunciado por matérias excremenciais. A conjugação destas duas
tendências contraditórias explica e constitui a personalidade deste ser estranho, em
quem coexistem e se mesclam, como em um banho de leite mareado de urina, a
impureza e a pureza.”. Não podemos concordar em sua totalidade com este comentário
de Goudet. João de Deus não nos parece, em efeito, incapaz de distinguir entre o nobre
e o ignóbil: ele possui sobretudo uma outra concepção do nobre, distinta da comum.
Mas podemos reconhecer a importância do oxímoro neste filme.

59. Embora localizada, não menos importante. A arte poética de Monteiro é também
uma arte do detalhe.

60. Para aprofundar a intensidade desta aparição, Monteiro aplica aqui o princípio
bressoniano do efeito anterior à causa. Ele escolhe primeiro mostrar o personagem que
reage à visão de Joaninha, antes de nos mostrar a própria visão resplandecente. Sobre a
importância do efeito antes da causa para o cinema, Pascal Bonitzer, Le champ aveugle.

61. João César Monteiro “Que Dieu me vienne en aide”, Traffic, 1991. Outra marca de
seu gosto pela afetação, Monteiro assina este artigo fazendo preceder seu nome de uma
partícula, o que contribui a tornar mais incerta ainda a distinção entre João de Deus e
ele. Além do mais, veremos também aí uma homenagem ao Marquês de Sade.

62. Sobre o gestus, Gilles Deleuze, A imagem-tempo.

63. é a razão pela qual João de Deus pode brincar com as palavras e, propondo à
Joaninha vestir seu quimono de seda para participar da cerimônia da champanhe, pode
sublinhar que, embora seja conveniente vestir-se para a cerimônia, a casa não é tão
cerimoniosa assim.

64. Antes de fazer Joaninha entrar na grande peça do apartamento na qual vai se
desenrolar o essencial da cerimônia, João de Deus abre uma grande cortina em duas
pans, com a intenção de fazê-la entrar literalmente em cena.

65. Os comportamentos amaneirados são, de qualquer forma, uma constante na


Comédia de Deus, e se encontram aqui e lá, se podemos dizer, em outros personagens.
O exemplo mais manifesto aqui é o de Judite, a patroa de João, quando, instantes antes
da abertura de degustação do sorvete por Doinel, desce uma escada com o braço
esquerdo elevado, a mão derreada, de maneira tão gratuita, formal e afetada quanto esta
posição é a mesma assumida por um personagem pintado no muro diante do qual ela
passa e estaca um instante.

66. Deleuze, Crítica e Clínica.


67. Para retomar o título da entrevista dada por Monteiro em Cahiers du cinema por
ocasião do lançamento das Bodas de Deus.

68. Sem estarmos absolutamente seguros, parece-nos que esta expressão é perfeitamente
apropriada para Jean Michel Frodon.

69. F. Revault d’Allones, “O Homem burlesco”. Em Jacques Aumont ( dir.) A invenção


da figura humana, o cinema: o humano e o inumano

70. Sobre a percepção de aceleração do tempo como uma das três figuras do excesso
características da “sobremodernidade”, ver Marc Augé, Não-lugares , introdução a uma
antropologia da sobremodernidade.

71. Sobre isso, notaremos que o retrato pintado por d’Allones se aplica como uma luva
a Monteiro:”um ar estranho,(...) e uma natureza estranha, que intriga (...). uma figura de
inadaptação à sociedade en décalage, que mantém com o mundo uma relação, assim
como este a ele, individual e portátil, que fascina. Um inadaptado que, no entanto, pode
se adaptar a toda profissão, todo meio social, toda situação, apesar de permanecer
inalienável. Um indivíduo que vem de lugar nenhum e que vai para lugar nenhum”.

72. A idéia de hiper-arte, destilada por Klein, tanto quanto a ligação que estabelece
entre o virtuosismo e o maneirismo, convida-nos a considerar que o maneirismo é
portador de uma dimensão de excesso. Dentre os traços definidores do maneirismo
pictorial, se encontra a idéia de que “a graça excede a medida”.

Notas do tradutor:

1. Que Dieu me vient en aide : Em francês no original. Paráfrase irônica com o título
de um dos capítulos das Meditações de Descartes, De Dieu qui vient à l’idée.
2. Inciptu: consiste nas primeiras palavras de um texto literário ou nas primeiras notas
de uma partitura. Um parágrafo introdutório, explicativo.
3. Bartleby, o escriturário, uma história de Wall Street: Novela de Melville, publicada
em 1853, e que, segundo o autor, fora em parte inspirada pelas idéias de Ralph Waldo
Emerson, sobretudo seu ensaio, O transcendentalista. Contratado num escritório
próspero como escriturário, Bartleby é um personagem que se recusa a cumprir
qualquer dever ou atividade que lhe são prescritas no trabalho, respondendo sempre
com um “I would prefer not to”. Tão radical é a singular intransigência que este acaba
por morrer de fome, com o indefectível: “ I would prefer no to”.O personagem é
analisado por Deleuze em seu Crítica e clínica, num texto chamado “Bartleby, ou a
fórmula”.
Fabien Boully
Tradução: Luiz Soares Júnior

Die for Mr. Jensen. John Cassavetes: Uma mulher sob influência.

Ele não toma por ponto de partida as figuras que se abraçam,


não há modelos que ele dispõe e agrupa.
Ele começa pelos recantos, onde o contato se dá mais estreitamente,
como se nos pontos culminantes da obra;
ali onde algo de novo se produz ele inicia seu trabalho
e consagra todo o saber de seu instrumento às misteriosas aparições
que acompanham o nascimento de uma coisa nova.

Rainer Maria Rilke: Auguste Rodin. ( 1903).

Certos atos extremamente simples, em Uma mulher sob influência, a princípio nos
parecem incompreensíveis: este homem ( O. G.Drun) que Mabel encontra no bar, cuja
nuca ela acaricia desde que se dá conta de sua presença, para em seguida lhe perguntar
pelo nome, rindo, ela o conhecia ou não? Esta questão permanece indefinida ( trata-se
de um amigo próximo? parente? amical porque ainda desconhecido, inteiramente sob a
esfera do possível? amical por se assemelhar a qualquer outro homem?), e esta
indefinição é o que leva Mabel a reconhecer no dia seguinte, neste personagem casual, a
figura excessivamente íntima de seu marido Nick ( Peter Falk), e ao filme de colocar em
seu frontispício a silhueta de Garson Cross como o emblema da seguinte questão: o que
posso saber de um corpo? há algo a saber sobre um corpo, a reconhecer? Isto já não
equivaleria a uma admissão de que, de antemão, ele nos escapa? Uma mulher sob
influência é um filme concernido pelo princípio que talvez mobilize da melhor maneira
as potências figurativas da cinematografia: a plasticidade das criaturas.

Por outro lado, alguns fenômenos muito complexos, delicados ou que se encontram
entre os mais arcaicos na história da representação sofrem aqui um tratamento
resolutamente claro, não mais sendo trabalhados por valores indefinidos, mas agora da
definição: a loucura, a fraternidade, o que significa ser um ator. Encontram-se assim
implicados, de forma surpreendente mas com grande rigor, certos procedimentos
descritivos típicos do cinema. Cassavetes assinala um dentre eles, que identifica o
trabalho de construção de seu filme à tradição de experimentações modernas sobre a
estruturação de uma obra, por exemplo, a força que uma síntese temporal atribui a
temporalidades frágeis ou da discrição que é conveniente na abordagem de fenômenos
devastadores: “Quando vemos esta mulher sozinha ao telefone durante dois minutos, é
preciso sentir que ela pode enlouquecer.Na vida, o orgasmo ou o tédio podem nos levar
à loucura. Mas como descrever na tela que uma mulher pode enlouquecer por ter ficado
sozinha por trinta segundos?” A obra de John Cassavetes pertence à tradição de
Faulkner e Schoenberg , obras que trabalham as profundezas das formas, dinamizada
por esta idéia inicial de que “as formas da arte registram a história da humanidade com
mais exatidão que os documentos”, uma vez que, escrevia ainda Adorno, “ a arte se
dirige ao sofrimento real”, e não a uma aparência das paixões.

Spaghettis?
A loucura, em Uma mulher sob influência, aparece como um dom: no sentido do dom
de si e do talento que nos foi proporcionado. É o gênio da inventividade transbordante,
de que Mabel não cessa de dar provas na primeira parte do filme, antes de sua
internação, excitada por tudo o que ela encontra , inclusive a família, profundamente
atenta para com todos com quem ela interage, mesmo que apenas por um instante.
Sua loucura é aquela da grande solicitude, cujos antecedentes encontraremos na
gentilezza de São Francisco de Assis e de seus companheiros, e de imagens- sobretudo
gestos- nos Onze Fioretti de Saint François d’Assise, construídos sobre uma alternância
permanente entre o patético e o burlesco. Mas se o filme de Rossellini muda de registro
emocional de uma seqüência à outra, o personagem de Mabel fulmina de uma réplica à
outra: “Get back to your coffin!”, grita ela ao pobre dr. Zepp ( Eddie Shaw),
provocando a hilaridade em pleno furacão de sua grande e dolorosa cena de histeria.
Pois o dom de si provém desta faculdade de esposar todos os registros “pathiques” 1, de
captar ao menor frêmito cada afeto, cada impulso emocional do outro, disposto a
prolongá-lo por excesso, já que este ressoa intensamente em si. Ela preside à mesa do
almoço com os spaghettis, ordena às cerimônias de alegria, é sempre o centro, ora triste
ora ardente da reunião ( operários, crianças, amigos, parentes), suas aparições
subitamente organizam um espaço até então amorfo: Mabel, tal como é construída pela
mise en scéne, não é louca ao ponto de uma diferença irreparável para com os outros, ao
contrário: ela se encontra no próprio princípio da comunidade humana, Mabel recolhe a
sociabilidade de todos, até o ponto drástico de tornar-se seu único pretexto e meio de
advento.

Se ela não constitui a diferente( différente), uma característica no entanto a distingue


dos outros homens, uma vez que cada um se distingue de todos os outros: Mabel tem
um projeto, uma linha de conduta; ela parece viver segundo impulsos irracionais, que
nos dão a idéia de uma completa liberdade, uma vez que ela é a única fonte soberana de
suas ações. Seu programa, que revela ao marido quando da grande crise, consiste em
cinco argumentos, e é o programa do puro amor: “I have five arguments in my favor:
Love- Friendship- Comfort- I’m a good mother- and I belong to you”. Neste sentido, na
contracorrente das ações indecisas, hesitantes e coagidas pela instância social dos outros
personagens, a conduta de Mabel é fruto de uma clareza e simplicidade radicais.

Nick, ao contrário, não cumpre o que promete ( firme decisão de não partir para uma
noite de trabalho: logo o encontramos no canteiro de obras), não o conclui ( cena da
celebração fracassada que ele organiza para o retorno de Mabel da clínica: “I can’t do
it... Do you want me to do it?”) ou não sabe o que faz. Este último caso dá lugar à cena
mais sutil de Uma mulher sob influência, a seqüência em travelling do acidente de um
operário, “Eddie the Indian” ( Charles Horvath), ameaçado por Nick, quando no entanto
este personagem era o único que não tinha zombado da internação de Mabel. Súbito o
operário cai, desliza ao longo do imenso declive de pedra do monumental canteiro, que
se assemelha à cratera de um vulcão, compreendemos mal a causa desta queda
ocasional, entendemos apenas que Nick é o culpado, não vemos se o operário está
morto ou ferido; o tratamento plástico, os faux-raccords magníficos tornam o evento
ilegível, mas vemos perfeitamente que este concentra a angústia e o sofrimento de Nick,
atualiza sua estupefação. A cena do canteiro, de clima realista, se encontra estruturada
por um complexo: o da culpabilidade experimentada por Nick em relação a Mabel,
encarnada na forma de uma queda de pesadelo, literalmente, uma catástrofe.

A figura de Mabel, construída sobre o princípio desta infinita solicitude segundo a qual
a compreensão do Outro não implica na capacidade de compreender as coisas, leva o
filme a renovar as modalidades da descrição: deste ser diante de mim, o que me foi dado
a ver, o que permanece para sempre inassimilável: seu corpo, seu gesto, seu sopro?
Estes elementos esposam de maneira exata a forma de sua presença no mundo? que
traços seus eclipses ou sua desaparição deixariam? E por exemplo, a propósito da
própria Mabel: quem a toma por uma louca? São, notadamente, os transeuntes aos
quais, com seu vestidinho curtíssimo, que evoca irresistivelmente o de Barbara Lodan
em Wanda ( o outro grande filme americano moderno sobre o desespero das mulheres)
ela pergunta a hora com seu entusiasmo típico, salta e brinca diante deles, a feliz
excitação de esperar pelo ônibus que trará suas crianças da escola. É Mister Jensen
( Mario Gallo), para quem as crianças deverão morrer, ao dançar O lago dos cisnes, e
que não aprecia nada a ostentação da expressividade infantil. Parece-nos agora
impossível subscrever à leitura deles: a decifração do comportamento de Mabel apenas
pelo diagnóstico da loucura, a própria tarefa da interpretação mostram-se terrivelmente
insuficientes.

É preciso retornar ao real da visão e da escuta, ao sensível e à sensação. Rilke sobre as


“coisas” de Cézanne, ou seja, sobre os limites da representação figurativa:
“incompreensível, como queiram, mas tangível”.

Minnie e Moskowitz, o filme precedente de Cassavetes, se organizava segundo uma


dupla estrutura: podíamos assistir à tumultuada aliança entre Minnie e Moskowitz ora
como o prolongado mal-entendido de duas criaturas desvairadas, fugindo da depressão a
qualquer preço, ( e a extasiada seqüência final sobreviria como uma queda , uma
surpresa contra toda expectativa precedente), ora como a difícil cura de duas
consciências enérgicas ( e a seqüência final, cláusula lógica, só se encarregaria de
implantar a confirmação). Era possível ver em Minnie tanto o filme da patologia
cotidiana quanto das contingências de um amor inelutável. Ou antes: ao permitir estas
duas apreensões antagônicas, o burlesco ou o dramático, o filme, no intervalo
preenchido entre evidência e mau-entendido, encontrava seu sentido: do que me importa
absolutamente ( o objeto amado), não compreendo absolutamente nada, pois- princípio
de Mabel- eu lhe pertenço de corpo e alma.
Uma mulher sob influência se organiza também segundo uma dupla estrutura
simultânea, esta mesma estrutura redobrada no “sucessivo”. É claro, tratam-se das
relações entre uma mulher e seu marido mas, ao mesmo tempo e sem que haja a
prevalência de uma dimensão sobre a outra, se expõe a parceria de uma atriz e de seu
metteur-en-scéne. A casa, com suas fronteiras simbólicas, seu palco principal, suas
coxias ( onde se desenrola a cena mais intensa, em sombrios closes estabelecendo maus
raccords com os claros planos de conjunto de Mabel entrando, depois saindo deste lugar
fechado, tépido e abstrato onde, entre lágrimas e tormento, ela reencontra suas crianças)
e a faculdade que possui Mabel de transformar todo espaço em tripé ( inclusive uma
mesa da sala de jantar) abriga antes de tudo um teatro e sua trupe. Os diálogos dos
reencontros entre Mabel e Nick , diante da família espectadora , também esta
mobilizada ( “Come on! Stop with the jokes! Conversation! Normal conversation!
Family atmosphere!”) são a recitação dos conselhos rituais do diretor ao ator: « Just be
yourself. Be yourself ! Do what you want ! » e as interpelações naturais do ator ao seu
metteur en scéne: « How am I doing ? » E se Nick pede a Mabel para executar sua
expressão favorita, « Give a beh-beh ! Better than that, a real beh-beh ! », é o próprio
filme que pede a Nick, muito aplaudido também, - quando ele se recusa, ao telefone, a ir
trabalhar, ou quando tira a roupa, na cobertura do caminhão - pede a Nick para que
repita seu texto: a insignificante observação de Nick, a propósito da aparição súbita das
crianças na rua após meses de ausência, quando da seqüência do almoço com
espaguetes, nos é oferecida em duas versões, a primeira um pouco chã, como uma
leitura à la palco italiano, a segunda super-expressiva. Enfim, sobre a mesma situação,a
mesma trama narrativa, o filme nos dá sucessivamente a versão de Mabel, depois a de
Nick, e seria preciso comparar aqui a festa infantil para Mr. Jensen, orquestrada por
Mabel, e o piquenique marítimo organizado por Nick, completamente desastroso
também, mas que nos oferece uma sublime descrição da afeição paterna.

No entanto, esta estrutura dupla, se afirma em si algo a respeito da função do ator: que
seu trabalho não é uma metáfora, algo alheio à vida, um reflexo esvaziado de
substância, mas o que anima a vida em seu princípio, como desejo de “mise en relation”
2 e troca- ,esta não se apresenta de uma forma reflexiva, como nos filmes de Bergman,
por exemplo, onde a importância e a gravidade da questão colocada pelo ator ( a adesão
a si mesmo, a necessidade do duplo, etc) constituem o seu próprio fim. O filme impede,
interdita explicitamente semelhante fechamento, em favor de uma réplica de Mabel na
última seqüência, no momento em que ela desce novamente as escadas, depois de ter
enfim feito as crianças dormirem: Mabel se volta para Nick e subitamente, com uma
voz nada histérica, perfeitamente natural, mas de um natural que produz uma terrível
cisão, Gena Rowlands lança a seu marido ( Peter Falk/ John Cassavetes): « You know
I'm really nuts ». A irrupção de um corpo real, do corpo de Gena Rowlands, a serviço
desta “deformação” vocal , age no sentido de nos alienar definitivamente do referente:
pois o atordoamento provocado pela súbita passagem de um corpo verdadeiro remete o
conjunto da ficção ao registro da representação: nós não estávamos assistindo à aparição
de uma presença, apenas ao magistral espetáculo da plenitude criativa. Estávamos
vendo e entrevendo a totalidade do trabalho do ator, mas talvez não tenhamos visto nada
do próprio ator, que sem dúvida é inteiramente investido pelo personagem.

Ver um corpo, realmente vê-lo, vê-lo igualmente onde ele não se encontra, em seu gesto
e nos gestos que ele não executou, segundo a vibração de seu sopro e em suas
intermitências. O que o filme nos descreve da experiência sensitiva de Mabel, de sua
invenção permanente de eventos afetivos e ginásticos; estas matérias que às vezes
invadem a imagem quando Nick, graças a quem as paisagens adentram o filme, vem
ocupá-la (as torrentes de água, de areia, súbitas homogeneidades do plano
excessivamente vazio ou cheio, evocação da imagem em sua textura); o que o filme nos
descreve da apreensão e da inteligibilidade dos atos; tudo sempre nos conduz ao plano
mais sensível dos fenômenos. E isto nos indica uma função do ator segundo Cassavetes:
ele é aquele que se põe no limiar da inconsistência das coisas, onde a sensação não mais
constitui lei, onde a experiência ainda não começou, onde tudo ainda está por ser
inventado, neste lugar onde o primeiro, onde o mínimo gesto pode criar um mundo e o
encontro com o desconhecido. Talvez seja isto o que suscita a loucura, ser a matéria de
uma pura possibilidade, do aparecimento eventual e incondicionado de um movimento
ou de um afeto extraordinários.

Which self?
O ator em Cassavetes vem efetuar uma improvável ciência da subjetividade, no modo
de uma infinita e sem reservas abertura ao Outro, que passa também por um
reconhecimento da relatividade de si. Mabel aceita, acolhe, busca o outro como se
tivesse fome dele, e encontra, ao longo do filme, um número inacreditável de gestos
para representar seu desejo. O que é um corpo, do qual sou soberano, como tocar a este
homem? A atriz trabalha sob o império destas questões, que não admitem
necessariamente respostas, que não visam igualmente o conhecimento, mas que a fazem
advir, em cada uma de suas espetaculares entradas em cena, como a portadora do
mistério da pessoa. E sua criação própria consiste em tornar este mistério inesquecível,
em jamais o menosprezar ou recalcar, quando este é vivido na experiência comum.

Nisto, sua conduta se torna insuportável para quem prefere viver no esquecimento da
“precariedade das coisas”, que enxerga a si mesmo como o guardião do Ser e dos outros
( aí temos a tirada assustadora e burlesca a respeito da mãe de Nick: « I don't like this
woman in my house guarding the staircase. She's guarding the staircase from me. Up
above are my children in my home and she is the kiss of death ») ou guardião de si
mesmo: Mr. Jensen, que se recusa a dançar e brincar de morrer, recusa-se a assistir à
morte do outro, recusa a evidência do descontínuo e da intermitência.

O problema da criatura em John Cassavetes não concerne à identidade, nem a adesão a


si mesmo, e ainda menos a identificação do outro ( basta “dar uma cheirada nele”, como
no encontro de Mabel com Garson Cross). Ele concerne à qualidade de fusão entre dois
corpos, ou entre os elementos de um conglomerado de corpos- seqüência das crianças e
da avó, convidados a juntar-se aos pais no leito: a que grau vai se operar a fusão e quais
qualidades esta vai liberar? Modos de troca, densidade, intensidade, cintilações,
vertigens.
Esta abertura ao encontro sob o modo da fusão, às vezes decepcionante é claro,
engendra um repertório de paixões, de afecções e de signos resolutamente inédito, uma
vez que o próprio ator já está ciente de muitas outras retóricas. O gestual de Mabel toma
empréstimo ao repertório americano ( o « Stand up for me, Dad », tomado ao James
Dean de Juventude transviada), napolitano ( os gestos de maldição, por exemplo) e
remonta, com freqüência, às origens da arte do ator: a dança, a pantomima, e ainda mais
remotamente, os saltos acrobáticos, que engendraram a ambos, como quando Mabel faz
sua primeira aparição no filme, ao mesmo tempo verossímil e virtuose, equilibrando-se
sobre o velocípede de seu filho.

Mabel: I don't know what you want. How do you want me to be?
Nick: Yourself.
Mabel: You mean funny or sad or happy or shy, or what? Which self?

O ator, na intuição de que sua criação possibilita ao humano a experiência, o


experimentável, mostra-se aqui sabedor da origem e da diversidade do ato criativo.

Uma das invenções de Mabel, talvez a mais extraordinária, leva-a a se inclinar sobre um
corpo: um dos convivas, Willie Johnson ( Hugh Hurd), um operário negro levado por
Nick para o almoço, põe-se a cantar, ele canta Verdi, Celeste Aida, Mabel se aproxima,
se inclina, muito próxima a seu rosto, muito próxima de sua boca, muito próxima de seu
canto. Ela busca o segredo da voz, ela quer descobrir o segredo da beleza, ela se
aproxima deste homem como se estivesse a redefinir o corpo do outro, e como se ela
visse aquilo que só poderíamos ver a partir de sua intervenção: ela vê a sensação do
canto, e dela nos oferece a intuição.

O Ser é aquilo que exige de nós criação para que dele tenhamos a experiência.
( Maurice Merleau Ponty).
Notas:
1. pático: Termo da devoção mística: refere-se àqueles que permanecem sujeitos às suas
paixões.
2. Em francês no original: colocar em relação, relacionar.
Nicole Brenez, De la figure en general et du corps em particulier. L’invention figurative
au cinéma.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Jacques Tourneur, por Louis Skorecki

Por que acho que Tourneur é o maior dos cineastas? Tomemos como elementos de
resposta os dois únicos filmes que tivemos a chance de ver dele ultimamente: Leopard
man e Wichita. De Leopard man, pode-se dizer que é o melhor realizado, o mais
perfeito e representativo da série dos três filmes produzidos por Val Lewton ( é o
último. Os dois primeiros são Cat people e Walked with a zombie). Um cenário
praticamente único, uma rua, uma rua principal. Figurinos estereotipados, atores que
tem quase todos o mesmo talhe e os mesmos traços. (...). Enfim, quase todos. Uma
exceção: um personagem- central, principal ele também, embora secundário nos
créditos- que organiza o roteiro, que dá as cartas, que tem as cartas na mão.Desta
mediocridade, desta pobreza de contrastes, Tourneur tira o máximo, o filme que mais
perfeitamente dá medo da história do cinema: a estrutura da história ( uma rua, uma
mulher que anuncia o que vai se passar, alguns personagens em miniatura, como
bonecas feitas do mesmo molde) não é nada além disso ( nenhum a priori teatral ou
linear, nenhuma ambiência onírica e poética convencional), isto que se sabe o tempo
todo- confusamente- e ao longo do qual se avança, enquanto a monótona espera por
alguma iluminação que viesse pôr um termo ao nosso medo nos mantém na angústia
total, a angústia ordinária. Angústia causada, durante todas as etapas deste trágico e
triste trajeto, por um galho de árvore que se quebra sob o peso de um leopardo assassino
e invisível ou um rastro de sangue que escorre sob uma porta. Tudo sob uma
transparente luz, trans-lúcida.

Passa-se de outra maneira, e de forma semelhante em Wichita.De outra forma porque se


trata de um roteiro complicado, (roteiro que Biette errou ao tomar ao pé da letra, de
forma tão sisuda, em primeiro lugar porque não é um roteiro muito bom, mas também
porque Tourneur não se importa em nada com temas e tramas, só se trata para ele de
filmar o entre-deux -o interstício: o espaço, o vazio, o ar, o intervalo entre os atores,
com o cenário, e até mesmo o espaço entre os atores e seus personagens, seus figurinos,
suas roupas), um roteiro complicado e um filme entre dois orçamentos: nem a
superprodução, nem o filme B, um filme monstro, uma aberração. Semelhante porque
Wichita é, devido à sua hibridez, livremente aceita por Tourneur- que nunca, com uma
exceção ou outra, recusou um projeto de filme- do roteiro e de suas condições de
filmagem, um filme sobre o tédio e um filme onde nos entediamos. Não como se
deve( on doit) entediar- é algo habitual- com os grandes clássicos da pretensa história do
cinema. Nenhuma relação. Com freqüência se disse- e com freqüência é falso dizê-lo-
que todo grande filme é um documentário sobre sua própria filmagem. Neste filme isso
é verdade: um homem de mais de quarenta anos ( Joel McCrea), sem dúvida um homem
inteligente, sensível, orgulhoso, obrigado a se fantasiar de Wyatt Earp, o célebre
justiceiro do Oeste, a fim de impor a lei e a ordem na pequena e próspera cidade de
Wichita.

E tudo isto diante dos olhos do seu velho amigo Jacques Tourneur ( com quem ele
rodou,seis anos antes, um pequeno filme intimista, Stars in my crown, uma série de
vinhetas sobre a vida de uma pequena cidade americana, um filme que é para ambos a
mais bela lembrança e o mais belo momento de suas vidas...), um velho amigo com
olhar cético e divertido ( mas sempre correto) que devia estar se perguntando, porque
(,...) “ ele adorava a idéia do filme: homens que conduzem rebanhos durante meses e
esperam muito tempo pra tomar um trago. Quando o fazem, bebem muito e quebram
tudo. É real. Isso se passou, na época”, um velho e divertido amigo que devia estar se
perguntando, diante de Joel McCrea, incomodado em suas roupas de justiceiro em
missão implacável, como ao mesmo tempo e de forma bem correta filmar as inépcias de
um roteiro para crianças retardadas, e esta violência que explode mortalmente e que,
para ele, constitui a força da fábula. Na verdade, Jacques Tourneur não está se
perguntando por nada, porque ele escolheu: ele filma ao pé da letra e de encomenda os
protagonistas entediados e fantasiados desta mascarada histórica que reconstitui as
historiazinhas verdadeiras do Oeste folclórico ( e nos entediamos como eles ao vê-los
ocupar da melhor forma que lhes é possível todo espaço impossível a preencher do
Cinemascope, que no entanto Tourneur consegue ocupar inteiramente: mas nesse caso
trata-se de um tédio formidável, de uma inteligência e precisão fotográficas como só
nos podem mostrar dois mecanismos que possuem para nós, hoje em dia, status de pré-
história, mais de cem dentre os mais belos- e dentre os piores- westerns. Tudo está no
cadre. Nada de fora de campo. Nada existe- e isto é mais do que suficiente- senão a
complexidade fiel e minuciosamente transcrita de um découpage impossível de se
acreditar mas possível- e para Jacques Tourneur tudo é possível- de ilustrar,de filmar,
tal qual); mas Tourneur filma também a morte, em pessoa: no cadre de uma janela, no
cadre de uma porta, arrastados por duas balas perdidas e precisas, uma criança e uma
mulher, ( culpados simplesmente por serem parentes dos atores do drama), passam, num
piscar de olhos, na velocidade mais terrível e mais inexorável, do estado de vida ao
estado de morte. O que ainda se movia há um instante é marcado definitivamente pelo
selo da imobilidade, da rigidez. A morte é a parada( arrêt) brusca e irreversível de toda
vida, de todo movimento. E não há nada mais a dizer. “Para Jacques Tourneur, os
personagens de uma história são perfeitos desconhecidos, cujo mistério não deve ser
esclarecido ou explicado” ( Jean Claude Biette). Acrescentemos: nada existe além da
fidelidade a mais escrupulosa possível ao découpage ao qual Tourneur escolheu se
submeter, nada existe além do que está na tela, no cadre. O cinema de Jacques Tourneur
é sim o cinema do invisível, mas de um invisível que é capaz de se ler e se desenhar
sobre a tela: os traços estão lá, as pegadas, e as sombras, e basta, em seu pequeno fora
de campo apaixonado e pessoal, não velar os próprios olhos diante da persistência do
real, destas manchas do real que são as efetivas marcas sobre a tela de uma experiência
única do invisível; basta olhar o filme, isso dá medo, é assim, assim se vê.
Tourneur não existe. No momento de seu esplendor ( ou seja, para ele, quando filmava
em Hollywood e, para nós, quando o descobrimos, deslumbrados, no começo dos anos
60, nos cinemas dos bairros podres, e sob forma de Versions françaises tão podres
quanto), ele já estava além ( il était dejá ailleurs). Além: inconsciente de sua própria
importância, arrasado de tanto cinema, mas muito intoxicado de admiração por um
modelo por essência fora de alcance ( seu pai, Maurice, cineasta prestigioso que
Jacques, toda sua vida, se persuadiu de jamais poder igualar),e sobretudo distanciado de
seus colegas, os mais dotados artesões do filme B ( Ulmer, Dwan, Heisler, Ludwig), por
uma espécie de orgulho de último minuto que sempre lhe permitiu saber que ao fim de
contas o gênio era ele.

(...) Jacques Tourneur: “Reparei que , na maioria dos filmes, os atores tem tendência a
gritar. O mesmo diálogo, dito bem mais baixo, é melhor apreendido, tem mais
intensidade. Fora isso, o próprio som é muito importante, não gosto de misturar os sons.
Sigo sempre de muito perto a sincronização e montagem sonora de meus filmes. Às
vezes tomo grandes liberdades. Se alguém vai falar, se levanta ou vai caminhar, corto
todo o som e não se ouve o ruído dos passos. Se um malfeitor entra numa casa e vai
subir uma escada, sei que, depois eu ir embora, os técnicos vão manter todos os sons, a
escada,a porta, os passos. É por isso que faço minha própria dublagem de som no
estúdio. Assim que o ator terminou de falar ou de abrir a porta, corto o som e ocorre um
grande silêncio, enquanto ele atravessa a sala ou sobe a escada. Assim,eu sei que
quando o filme estiver terminado e eu não estiver mais lá, os técnicos não farão besteira
na dublagem. Com freqüência, faço isso: deixo primeiro o ator interpretar a cena, como
ele quiser. Depois, lhe digo: Muito bem. Refaça exatamente a mesma coisa, mas fale
duas vezes menos forte. Me criticam dizendo que dessa forma minhas cenas ficam um
pouco sem brilho ( ternes), inexpressivas. Talvez tenham razão, mas acredito que isso
lhes acrescenta, de qualquer modo, um elemento de verdade”.
Tudo está dito. Que outro cineasta hollywoodiano ( salvo talvez John Ford, que
desconfiava de tal maneira dos montadores que evitava filmar um metro de película a
mais, que poderia servir para forjaram uma outra versão às suas costas), que outro
cineasta desenvolveu um sistema holywoodiano bis, duplo- sempre preservando-o
previamente das alterações que Holywood número 01 com certeza decidiria impor?
Nenhum, não conheço outro.

O mais miraculoso é que a obra de Tourneur permanece exatamente igual ao que ele
descreve. Revejam Appointment in Honduras ( se puderem arranjar uma cópia):
efetivamente, vocês vão ouvir atores, Ann Sheridan em particular, que não gritam.Coisa
rara: personagens que murmuram seu texto. E , claro, toda a mise en scéne que se segue:
uma maneira única( e inimitável) de filmar os atores como dóceis fantasmas, sombras
familiares. Esta ternura pelos atores- espectros ( revenants), aliada a uma insensata
preciosidade do trabalho sobre as cores ( a robe amarela de Ann Sheridan, que
literalmente desbota, eclipsando tudo ao redor dela), é isto o que ainda hoje constitui o
gênio inacreditavelmente tímido do cinema de Tourneur.

Um cinema que, confessemos tudo, nos é a cada dia mais inútil, a nós, que esperamos
tolamente dos filmes que não continuem a se atolar neste neo-classicismo amorfo,
último sobressalto de cine-teleastas desesperados por terem perdido a receita
( estúdios+ grana+ engenhosidade dos artistas-artesões + inventividade de uma arte
industrial em pleno boom) do velho verdadeiro cinema clássico. Um cinema cuja fase
perversa mais consumada é representada por Jacques Tourneur.
Então, põe-se uma única questão: que fazer desses filmes tão perfeitos, destas essências
de obras-primas, quando por acaso os encontramos? Esta questão se pôs no domingo
passado ( exatamente, 28 de outubro de 1985) quando Brion exibiu no Cinéma de
minuit, na FR3, um dos mais raros filmes de Tourneur, Canyon passage ( 1946). (...)
este Tourneur trata-se de uma absoluta maravilha. Mas para realmente vê-lo, para
apreciar sua inteligência clássica, que esforço é preciso fazer! Esquecer de forma ativa
os filmes com que o cinema e a tv nos galvanizam há anos, desaprender os “frou-frous”
de imagens e de sons que nos jogam na cara em golpes furiosos de zooms, mudar o
ritmo da visão. É preciso lavar os olhos. Unicamente sob esta condição ( que é mais
fácil de enunciar que de “preencher”) pode-se penetrar em Canyon passage: da abertura
mizoguchiana ( em primeiro plano, a chuva respinga sobre o teto, um cavaleiro se
aproxima,a câmera desce para se pôr à sua altura) a uma sucessão de preguiçosas
vinhetas que desfilem no ritmo mais speed imaginável- o ritmo da elipse. Disputas de
sombras sobre um muro, um ladrão visto de relance que foge por uma janela quebrada,
paisagens de sonho atravessadas com a velocidade do technicolor: todo Wenders aqui
desfila em trinta segundos! E ainda: peso opressivo dos corpos, sentimentos em
suspensão. Como nesta inacreditável provocação de Bryan Donlevy a Dana Andrews:
“Você faria melhor?”, ao acabar de beijar sua noiva, Susan Hayward. E Dana não perde
tempo: tasca em Susan um guloso beijo na boca, Brian permanece imóvel, seu corpo
atarracado teso. A moça em um instante é eclipsada. Passamos aí a uma outra coisa.

E ainda: uma casa que se constrói coletivamente, convivialmente – o sentimento da


felicidade que perpassa ( talvez pela primeira vez) sobre a tela. Índios seminus que
subitamente aparecem- como se jamais tivéssemos visto índios no cinema. E assim vai.
Que outro cineasta saberia, no tempo de um único filme, inventar uma cena cega na
qual um homem ( Ward Bond) despeja toda sua fúria sobre um poste; uma outra onde
uma idéia nasce literalmente sobre um rosto ( Brian Donvely decide tornar-se
assassino); uma outra cena, que capta o olhar terrificado de duas crianças ( com a
velocidade da bala assassina- de criança também- de Wichita)?

Ninguém. Não há ninguém à sua altura.

Tourneur não existe, ele é o único. Não o último cineasta: o único. Canyon passage: ao
mesmo tempo uma saga americana, um western documentário, uma história de paraíso
perdido, uma epopéia doméstica, o afresco de mil desejos que se entrecruzam e o mais
belo melodrama homossexual jamais encenado.
Ninguém filmou assim antes, ninguém filmará assim depois. É isso. Lumiére inventa as
imagens. Tourneur se encarrega de destruí-las. Cinema, anti-cinema, depois chega. Bom
dia, Madame Televisão.
Jacques Tourneur: Alguém disse outro dia uma coisa divertida: uma flor que colhe a si
mesma comete um suicídio”. ( Câmera/stylo número 6, maio 1986).
Louis Skorecki.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

O quarto verde, François Truffaut

Posto que, para quem tem dois olhos para ver e ouvidos para escutar ( o cinema também
é som, não é?), trata-se do mais belo filme francês destes últimos anos-, falarei em
primeiro lugar de Truffaut ator. E antes de tudo, de sua voz. Esta voz é um sintoma: o
sintoma da preguiça e da imbecilidade de uma boa parte da crítica de cinema na França.
A preguiça e a imbecilidade se notam quando se ouvem os epítetos “monocórdio,
bressoniano”, quando nesta voz ressoa totalmente um outro som, uma emoção alheia às
modulações expressivas habituais. Ora, a voz de Truffaut é, do começo ao fim do filme,
a todo instante tensa, profunda, perturbadora. A inteligência de sua interpretação é
marcante: “monocórdio, bressoniano”- estes enunciados sugerem, a quem não viu o
filme, ( e estão aí para desencorajá-los a ver, é claro), alguma atonia e mortificação da
voz em proveito do texto. Mas se o diálogo é constantemente admirável, a voz de
Trufrfaut o leva à incandescência, com um acento violento, vigoroso, o próprio tônus da
paixão. O que ouvimos ao longo de todo o filme na voz de Truffaut, de Julien Davenne,
é esta violência da paixão- da idéia fixa e do coração inflamado- e também uma espécie
de eco amplificado do grito mudo dos mortos, da muda solicitação, exigência
infatigável, súplica dos mortos, em sua extrema debilidade diante do tempo e do
esquecimento. Tal é o personagem e tal é o ator, perturbador e admirável. E seria
preciso falar também do olhar de Truffaut, destes olhos realmente estranhos, sem
nenhum reflexo, que sugerem uma indefectível angústia. Não se compreendeu que não é
sem razão que Truffaut encarna seu personagem, e que neste, Julien Davenne, o ator e o
personagem se entrelacem de forma tão estreita. Raramente um filme, enquanto
enunciado cinematográfico, ou conjunto de enunciados, foi capaz de bombardear de tal
forma as marcas do sujeito da enunciação como este aqui. Para dizer as coisas com mais
simplicidade, raramente um cineasta “ se pôs” , se implicou a este ponto- implicando
seu próprio corpo- em seu filme. E implicando seu corpo ( que se capte toda a
ambigüidade da palavra,em relação a este filme fúnebre), até chegar aos seus mortos,
mesclando os mortos de Julien Davenne aos mortos de François Truffaut, na capela
ardente onde culmina o filme.
O filme também nos apaixona porque o sentido flui e reflui em uma dupla direção: do
general ao mais particular ( o sentido que este filme tem para Truffaut, a paixão de
Truffaut), do particular ao mais geral ( a ligação tão secreta quanto notória do cinema
com a morte, a relação que nós, espectadores, interpelados um a um, temos com esta
moderna capela ardente , onde o amor se nutre da morte, o cinema como arte necrófila).

Esta história tão singular, tão avessa em aparência às preocupações mundanas, tão
semelhante ao seu herói solitário- mas sim, encontramos filmes que se assemelham aos
personagens que figuram neles- é realmente um manifesto do cinema, e Truffaut não é
apenas autor, ator e personagem, mas também crítico, tudo isto enredado, cerrado,
inextricável. A câmara verde, a capela dos mortos, com a fotografia de Cocteau e até
mesmo a de Oskar Werner ( curioso arrependimento do autor do “Diário” de
Fahrenheit...): é claro que estas câmaras obscuras, onde brilha uma chama às vezes
material, o fogo sutil de um delírio de eternidade, estas câmaras são o cinema. É claro
que estes cadáveres captados no limiar de sua morte, sobre filmes de atualidades, em
movimento ( créditos, com a superposição do rosto de Davenne-Truffaut en poilu1), ou
fixados, não para sempre, mas fragilmente sobre placas de vidro ( quebradas pela
criança muda em uma cena breve), é claro que eles nos transmitem a verdade do
cinema. E é claro que é preciso aqui citarmos André Bazin, em sua dimensão mais
metafísica, mais religiosa: “Só se conhecia, antes do cinema,a profanação dos cadáveres
e a violação de sepulturas. Graças ao filme, pode-se hoje violar e dispor à nossa vontade
o único de nossos bens temporalmente inalienável. Mortos sem requiem 2, eternos re-
mortos do cinema!” ( “ Mortos todos depois do meio-dia, em O que é o cinema?)
Manifesto do cinema. Bazin em seu texto denunciava o que ele chamava uma
“obscenidade ontológica”, esta pornografia da morte que dá o valor ignóbil de certos
documentários, ao mostrar “ na dura” , de forma direta, homens realmente na beira da
morte; e o escândalo desta morte violenta, vendida como documento sensacional; e o
escândalo desta morte para sempre privada de paz, transformada em história de seu
próprio calvário pelo cinismo das projeções permanentes. Em aparência, a história de
Julien Davenne, inspirada no Altar dos mortos de Henry James ( também ele presente,
através de uma fotografia e uma breve biografia, na capela de Truffaut), e de alguns
outros textos do mesmo autor, diz-nos exatamente o contrário, já que trata da
importância vital, se assim podemos dizer, de conservar a imagem dos desaparecidos.
Ns realidade, o filme sustenta o mesmo discurso que Bazin, é a mesma preocupação que
o anima.
Conservar a imagem dos desaparecidos, sem dúvida ( e qual filme não se mostra
comovente ao mostrar como vivos os desaparecidos?). 3 Mas não a imagem de sua
agonia ou de seu cadáver, pois aí começa o que devemos chamar ( e aliás o que Bazin,
no mesmo texto, designa por) de perversão. Julien Davenne não é de forma alguma um
perverso, um necrófilo, não possui nenhum “gosto vicioso por cadáveres”, como diz o
narrador do Bleu du ciel; seu amor pelos defuntos é destituído de todo erotismo. Tal é o
sentido, perfeitamente claro, da cena- aliás, uma das mais belas do filme- onde Julien
Davenne, tendo encomendado uma imagem em cera da mulher desaparecida, reage com
um horror violento diante da realidade desta fantasia ( realidade no entanto impossível
de ser melhor “realizada” pois,se vi bem, esta figura de cera é de fato a atriz que
encarna a morta, maquiada para a circunstância, como nos filmes de Cocteau, com olhos
abertos pintados sobre as pálpebras fechadas) e exige que esta seja destruída pelo
escultor.
Nenhuma explicação nos é dada sobre o horror, quase pânico, do personagem. No
entanto, é evidente que esta “figura de cera”, este corpo duplamente inanimado, aparece
como uma monstruosa paródia da morte, e que esta, de alguma forma, a leva a morrer
uma segunda vez; daí a necessidade de destruí-la, de matar esta imagem sacrílega. Esta
cena, pelo menos do meu conhecimento, não está em James, ela é muito
cinematográfica para não ser reivindicada unicamente por Truffaut: como não ver que
Davenne, na ocasião, se comporta exatamente de forma contrária ao personagem dos
personagens de Buñuel( Archibaldo de la Cruz , por exemplo?) Esta cena faz Buñuel
parecer superficial. Como não ler em filigrana um desgosto, um horror, um protesto
diante de um certo impudor do cinema, desta facilidade suspeita e ignóbil em produzir
os corpos,a imagem dos corpos, em lugar do que deveria ser interditado à
representação? 4
Assim como James, Truffaut não crê na existência de relações sexuais ( se preferirem:
não crê em sua capacidade de representação) se, como James, ele parece nos dizer que
unicamente a arte, enquanto obra de amor, poderia preencher esta falha, esta
inexistência...Poderia, mas ela fracassa, pois a arte é indefectivelmente lacerada pelo
que a assombra, a famosa” imagem no carpete” , ou, no Altar dos mortos, no Quarto
verde, este círio faltando necessariamente no edifício de fogo, já que ele pertence ao
guardião, ao oficiante e à testemunha, ou seja, ao artista que não pode fruir de sua obra.

O passional projeto de Julien Davenne evoca um outro no cinema. Não me refiro ao


Homem que amava as mulheres, que de um modo um pouco mais trivial e num tom
menos altaneiro, descreve em efeito uma trajetória análoga, mas à aventura de James
Stewart em Vertigo. É possível que Truffaut, escrevendo com Gruault a cena da figura
de cera, tenha pensado em Buñuel, com a intenção de se opor a ele. É provável que
tenha pensado em Hitchcock. Em todo caso, o espectador pensa em Hitchcock. E
remetamos ao diálogo entre os dois cineastas:

Hitchcock: Há um outro aspecto que eu chamaria “sexo psicológico” e é aqui a vontade


que anima esta homem de recriar uma imagem sexual impossível; para dizer as coisas às
claras, este homem quer transar com uma morta; trata-se de necrofilia.

Truffaut: Justamente, as cenas que prefiro são aquelas em que James Stewart leva Juddy
ao costureiro para lhe comprar um tailleur idêntico ao que vestia Madeleine, o cuidado
com que ele escolhe os sapatos, como um maníaco... ( O cinema segundo Hitchcock).

A diferença é que não se trata, repito, no Quarto verde de “dormir com uma morta”, mas
de lhe conservar o amor intacto. Mas o essencial é que a tentativa é igualmente
impossível, igualmente desesperada ( na cena que se segue à do manequim de cera, no
cemitério, é justamente este desespero que Davenne confessa sentir ao túmulo de sua
esposa). O “maníaco”, ou seja, o homem refém do impossível, é uma exigente definição
do artista.Que um filme, tanto quanto um livro, não possa realmente conservar vivo um
morto ou um amor; que, como bem escrevia Proust ( presente também em efígie na
capela do filme), “ nosso coração muda, e esta é a pior dor”, esta é a corda de que O
quarto verde retira sua vibração essencial. Que a comunicação com o que perdemos seja
impossível, o que sem dúvida é representado pela criança muda no filme ( irmão de
Antoine Doinel e do menino selvagem, como bem nos lembra a cena do roubo) mas
também que esta impossibilidade é a prova de uma fidelidade que é a única coisa que
conta.

Pode-se amar os mortos tanto quanto aos vivos; pode-se-lhes consagrar todas as
atenções; pode-se, incansável e unicamente a eles, falar-lhes a sós: são mudos e não nos
respondem. Então, é preciso morrer. Diante do argumento do filme ( que é igualmente o
da novela) , resumido assim, compreende-se os escárnios com que por ocasiões o
público francês acolheu o filme. Mas quem não vê que “os mortos” aqui são apenas a
imagem extrema destes a quem perseguimos com nosso amor, e que não podem dar, de
maneira nenhuma, a resposta secreta que deles esperamos? Aí, estes escárnios adquirem
um outro sentido. É arriscado no cinema, mais que em outras artes, tentar fazer escutar a
linguagem nua do amor: Truffaut, com O quarto verde, correu ao máximo este risco. E é
isto o que faz de O quarto verde obra tão bela e tão forte”.
Notas:
1. Em francês no original. Apelido dado aos soldados franceses da Primeira Guerra,
referente à significação da palavra “poilu” ( peludo), que em argot se refere a alguém
corajoso, viril, como se diz em português: alguém que tem pêlos nas ventas.
2. Requiem ( latim): Missa fúnebre.
3. Nota do autor: Ellie Faure: “Você vê reviver diante de si a mulher que amou vinte
anos antes, e que vive ainda ao vosso lado, e que você deixou de amar, mas então, há
vinte anos, quando o separaram bruscamente dela, vocês esteve prestes a morrer? Você
vê reviver a criança morta?” ( Trata-se de Função do cinema, Gonthier). Se esta citação
situa bem, a meu ver, o argumento do filme de Truffaut, parece-me claro que este toma
seu ponto de partida em uma essencial insatisfação diante da emoção um pouco boba
sugerida aqui por Elie Faure.
4. Nota do autor: A “facilidade” em questão se chama, em filmologia, impressão de
realidade.
(Cahiers du cinéma , maio 1978)
Pascal Bonitzer
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Moonfleet e Rio Bravo

Moonfleet 1:
"O pai é aquele que não responde às questões que não lhe são colocadas. Isso muda o
que? Tudo. O pequeno Mohune, criança apagada, criança efeminada, criança
aventureira, sonha ser um cavaleiro branco, como um Ballantree de opereta. Tu achas
que ele vai questionar seu querido Stewart Granger? Stewart Granger é um verdadeiro
herói underground. Não estamos em Warhol ou Kenneth Anger. Não estamos nas
bichas. Faça-se uma idéia das telas pintadas e das canções de Luis Mariano, que tramam
em suas profundezas o universo de Moonfleet. Eu sei que o cinéfilo de Moonfleet tem
os cabelos verdes, os cabelos de cor indefinida. Não estamos em Losey, 1948. Estamos
em 1955, onde tudo começa ( Hitchcock apresenta), antes que tudo fosse acabar, meses
mais tarde, com o desastre Presley, a gangsterização Sinatra, e em breve John Wayne
como travecão pós-cinema em Rio Bravo. Em Moonfleet, o pequeno Mohune é
oferecido em holocausto, sim ou não? Não. A Criança sacrificada é aquela de Bigger
than life ( Nichjolas Ray, 1959). Ok, mas o pai de Moonfleet é um cafajeste, não?
Stewart Granger? O que te leva crer que ele é o pai? A criança ama seu pai, não? Não.
(...)... exatamente, foi Lang sim quem filmou os embates amorosos de um jovem rapaz
com trejeitos de moça ( Jon Whitley) e de um pai substituto, charmoso demais para ser
honesto ( Stewart Granger). Vão te dizer: mas não é verdade!, Mooonfleet é apenas um
filme de aventuras à la Louis Stevenson, um Maitre de Balantree languiano. Não é falso,
mas também não é o mais importante... "
Moonfleet 2: "Este filme não é apenas uma etapa no país da cinefilia. É mais que isso,
muito mais. É de onde se parte para nunca mais voltar. Aquele que não retorna
permanece em estado de exílio, em estado de infância, de maravilhamento. Aquele que
retorna não é mais o mesmo. Ele viu demais para coincidir novamente com o que um
dia foi. Ele descasca pouco a pouco de si mesmo, e os transeuntes casuais encontram
pedaços dele dispersos pelo vento, fragmentos de pele do cinéfilo, que vem planar sobre
a lua, como tantas juras de amor perdidas. Trata-se de dizer aqui, com as pobres
palavras de que dispomos, do que o cinema é feito, e do que o cinema se desfaz. Ele se
desfaz como pode, o coitado do cinema. Em 1955, já estava fodido. Explodido,
quebrado, em estilhaços. Não é por acaso que neste mesmo ano Hitchcock vai para a tv,
com suas indestrutíveis miniaturas em preto e branco. O minimalismo televisivo
hitchcockiano carrega tudo à sua volta, até mesmo o suntuoso Cinemascope que Fritz
Lang inventa para Moonfleet.O que ele dizia do Scope, Lang? Esqueceram, é,
gracinhas? “O cinemascope é bom pra filmar serpentes e enterros.” Lang sabia que
Moonfleet enterrava Moonfleet. Ele sabia que esta lição de cinema era uma lição
perdida. Ele sabia que o exercício só era útil1 para aquele que o quisesse esquecer. Pois
é, é isso. Esquecer a lição, a dor, esquecer o cinema. E basta. "
Moonfleet 3: "Moonfleet de novo? de novo. Sim, de novo. Em nome do cinema do
presente? Sim, o cinema no presente. Sim. De novo. E de novo novamente. Rio Bravo
também? Claro. E por que? Porque é Rio Bravo que estrutura Moonfleet. Mas como Rio
Bravo, que saiu em 1959 pode estruturar Moonfleet, que vimos em 1955? Você não vai
me dizer que se trata de pós-crítica, pós-cinema, vai? É pior ainda. O cinema começa
pelo fim. O fim, que fim? O fim, é tudo. Devemos olhar para trás, não? Sim. É o
travestismo terminal de Rio Bravo que nos ilumina o travestismo precoce de Moonfleet.
Perucas e minstrel shows, é isso, né? É, é isso...

“Rio Bravo ajuda a entender que Moonfleet está no centro de Moonfleet. A iniciação, o
terror, o sadismo. O sadismo está no centro de Moonfleet como um travesti emperucado
e maquiado. Ah, é? Claro. Stewart Granger é Daney, né? Não, é o contrário; é Daney
quem interpreta 2 Stewart Granger. E a criança? A criança é Louis. Louis? Sim, a
criança é Louis, é sempre Louis. Sim. Ao fim da linha? Sob o rolo compressor? Sim. E
Moonfleet? Moonfleet é o rolo compressor. Tem certeza disso? Ah, sim, claro... (...)
Tanto em Rio Bravo quanto em Moonfleet, trata-se de iniciação. A iniciação, do que se
trata? Aprender. Aprender o que? Aprender a aprender. Tá bom, então? Que esteja bem,
nada a ver. E o que é que temos de ver, então? Que é a mesma coisa. Que mesma coisa
é essa, então? Uma lição de cinefilia, uma lição de Rio Bravo. O que é uma lição de Rio
Bravo? Moonfleet. Como Moonfleet ( 1955) pode ser uma lição de Rio Bravo ( 1959)?
É assim, oras! Como “é assim, oras!”? Como o último Skorecki, Cinéphiles 3 ( Les
ruses de Fréderic). É seu último filme? É. É uma lição de Rio Bravo? Sim. Só existem
lições dadas por Rio Bravo. Não se trata de data ou de conteúdo. Ah, é? É, é a lição para
a criança. O terror? É. O sadismo? É, pois é. (...)”
Rio Bravo 1:

“Falava-se outro dia do filme horroroso de George Cukor, Sylvia Scarlett. Falava-se
também de Jane Bowles3 e de travestismo. O travestismo último, no cinema, está em
Rio Bravo. Eu já disse isso cem vezes, direi mil mais, até que um ou dois leitores
entendam. Que dois leitores entendam, já basta, estou no caminho certo, menos só. Se
sentir menos solitário, para um homem do frio como eu, isso esquenta o coração. É de
fora que eu vejo essa coisa. É de fora do cinema que eu vejo o fantasma do cinema. Por
que “fantasma”? Porque sim. Porque em 1958, ( se estamos falando da filmagem), ou
1959 ( se estamos falando da data do lançamento), Rio Bravo já era o espectro do que
tinha sido o espectro de uma arte usina defunta, um western travesti onde Jane Bowles,
a queridinha de Tennesseee Wiliams e de Truman Capote, não teria do que se
envergonhar.
Se o roteiro de Sylvia Scarlett tivesse sido escrito por Jane Bowles, o único travesti
literário do século passado4, Sylvia Scarlett teria sido uma obra-prima. Teríamos visto
Katherine Hepburn, adorável rapaz travestido, sucumbir ao sex appeal do crocante Cary
Grant, e lhe passar a língua sobre a covinha do queixo. Ela o barbearia com a língua,
destramente, assim como Angie Dickinson barbeia Dean Martin em uma bela cena
cortada de Rio Bravo. Sylvia Scarlett é um dos piores filmes do mundo, e dos mais
charmosos também. “Quando eu te vejo, diz o homem ao travesti Katherine Hepburn,
eu me sinto um pouco estranho, um pouco queer”. O filme é belíssimo, mas Rio Bravo
vale cem mil Sylvia Scarletts, mesmo se chega pelo menos vinte anos tarde demais.
1934-1959: meçam a distância vertiginosa entre estes dois filmes travestis. Mas o que
chega muito cedo ( Sylvia Scarlett) está longe de dar tão certo quanto o que chega tarde
demais , ou seja, aquele que vem em seu tempo certo, este Rio Bravo idealmente
sincronizado com seu tempo, com o tempo do pós-cinema travesti.( Libération, 8 de
maio 2006).”

Rio Bravo 2: “(...) Eu me chamo Fréderic, Rio Bravo é teu filme preferido, repita
comigo. É a última fronteira, o western em frangalhos que se autoparodia, o filme de
gênero que recapitula todos os outros, a linha vermelha além da qual o teu ingresso não
vale mais nada. Depois de 59, depois de Rio Bravo, o cinema decide viver no dia a dia,
à luz do dia. O cinema “ de dia”, caso não saibam, é a televisão. Muita água rolou desde
então, o cinema hoje é a tele-realidade. Vocês não concordam comigo, tou pouco me
lixando. Vocês pensam que as séries televisivas, 24 horas, Nick/tup, Oz, Les Soprano,
tomaram o lugar do cinema. Vocês estão atrasados em pelo menos vinte anos, estes
anos capitais do pós pós-cinema onde ocorreu justamente o contrário: foram os filmes
de cinema que se puseram a pastichar à toda a televisão, as séries de televisão em todo
caso. Rio Bravo só existe hoje como minstrel movie, um filme que se esgota no
travestismo de seu roteiro e de seus atores. Os minstrel show do século 19 permitiam a
um público branco ver os negros sem se assustar além da medida, precisamente na
medida em que brancos maquiados de forma ultrajante os interpretavam, só
conservando dos corpos negros os excessos, o grotesco e o patético, como mais tarde os
travestis farão com os corpos das mulheres. Vocês vão me dizer: qual a ligação com
John Wayne, Angie Dickinson, Ricky Nelson? Ora, não ver na peruca de John Wayne,
em seu corpo volumoso, em seu ar de mocinha assustada com uma mulher grande
demais, ou vestida com colantes cor-de-rosa demais ( ou seja: os atributos da drag
queen); não ver que Angie Dickinson e Ricky Nelson são ainda mais explicitamente
travestis e maquiados que ele, não ver isso é recusar o cinema, o cinema à luz do dia.
Mas afinal de contas, por que não, não é? ( Fréderic Beigbeder em Les Cinéphiles: Les
ruses de Fréderic, 2006).”

Notas:

1. Il savait que l'exercice n'était profitable: referência a um livro de Serge daney sobre
tênis, L’exercise a eté profitable, Monsieur.
2. em francês no original: C'est le contraire, c'est Daney qui joue à Stewart Granger.
Este verbo “jouer” é bem ambíguo, e tem a acepção tanto de interpretar um papel
quanto de brincar, jogar ou encenar. Ambigüidade esta essencial à retórica de Skorecki,
gênio do paradoxo e dos jogos semânticos de sentido.
3. Jane bowles ( 1917- 1973) escritora norte-americana bissexual, mulher de Paul
Bowles. Autora de um único romance, Two serious ladies e de uma peça de teatro, In
the summer house, era idolatrada por Tennessee Williams, John Ashbery e Capote
como uma das grandes escritoras de seu tempo.

4. O século passado a que Skorecki se refere é, naturalmente, o século 20.


Louis Skorecki.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Uma arte de laboratório

Losey é acima de tudo um pesquisador; sua mise en scène, um método. Seu objetivo
declarado: conhecimento. Seu único instrumento: inteligência, ou particularmente
lucidez. Sua abordagem toma como modelo a do cientista. A mesma atitude básica
diante do fenômeno sob observação, o mesmo procedimento: revelar a experiência
vivida (lived experience) em sua totalidade, registrá-la como um objeto, fazer deste
objeto o campo de investigação, resumindo, instalar a experiência vivida em condição
laboratoriais. Losey restitui à câmera sua função original de instrumento científico. Esta
é a marca de sua originalidade.

Isto quer dizer que outros cineastas não são incitados pela mesma ambição? O conceito
a priori de realidade, a realidade filtrada e ideal de um Fritz Lang, que cria um universo
abstrato no qual paixões reduzidas ao essencial confrontam-se mutuamente, de um
Mizoguchi, assombrado pela eterna oscilação entre um mundo exterior e um mundo
pessoal, de um Raoul Walsh, que glorifica a aventura, mostra que esses cineastas não
tem os mesmos interesses que Losey, mesmo que suas mise en scène’s sejam similares e
muito frequentemente superiores à dele. Mas e Nicholas Ray e Rossellini? Eles também
consideram a experiência vivida como um todo a ser levado em consideração a priori.
Conhecimento, pra eles, consiste então na súbita penetração intuitiva de uma realidade
que foi antes preparada pela análise. O processo é o mesmo pra ambos: ir do exterior
para o interior, através da sensibilidade.

Isto significa que, a despeito do ponto de partida em comum, seus procedimentos são
radicalmente opostos aos de Losey, visto que ele sempre parte do interior para o
exterior. A um conhecimento instintivo que é puramente artístico, no senso tradicional
da palavra, Losey prefere um conhecimento lógico, no qual intuição e dedução estão
subordinados à inteligência. Esse tipo de atitude levanta o problema da estética do
cinema moderno, que vai muito além do escopo deste artigo. ‘Este era um dos
princípios de Brecht, e o único com o qual que eu estou em total acordo’, Losey nos
contou, ‘que o momento em que a emoção interrompe a linha de pensamento da platéia,
o diretor falhou’.
Se um termo pode caracterizar a mise en scène de Losey, acho que deve ser ‘uma
explosão aberta à vista’ (bursting open to view). Não é totalmente verdadeiro dizer que
ele parte do interior para o exterior. Ele se prende às aparências, observando
cuidadosamente relações objetivas e se recusando a interpretá-las. Qualquer outra
atitude seria não-científica e então, em sua visão, não-artística. Porque para ele o
interior é a reflexão de um fenômeno externo, a projeção de um conflito interiorizado.
Os gestos referem o que os motiva e nada mais. Efeitos revelam somente suas causas e
o que gerou estas causas: a pessoa desnuda. Losey é o primeiro cineasta que tomou
como seu único material de investigação – sem nenhuma referência à moralidade,
metafísica ou religião – a verdade do ser humano. (O argumento estético que Jan, o
jovem pintor holandês, expõe em Blind Date é, neste ponto, muito claro)

Mas se a pele está na iminência de romper-se, se a pessoa é, por fim, para ser revelada à
luz do dia, a realidade tem que ser posta em condição de laboratório, isto é, fechada e
sujeita à uma pressão alta o suficiente para produzir a ruptura. Isto pressupõe uma
situação dramática intensificada até os limites do teatral. Deve haver uma crise aguda,
uma temperatura febril, uma operação emergencial. Portanto aquele estilo que é tão
particular a Losey, um estilo que é bruto, tenso, excitado, incisivo. Um estilo que choca.
Como Time Without Pity e The Criminal, Blind Date é um filme sobre uma irrupção.
Um terremoto estilhaça toda ilusão de estabilidade. É a manifestação visível de pressões
tremendas que se desenvolveram sob a crosta da terra.

Se admitimos isto, tudo em Blind Date se torna claro, gesto e décor, plot e estrutura
narrativa. A história começa, então: Jan está correndo para o apartamento de sua
amante. É a primeira vez que ela permitiu sua visita. A porta está aberta. Ele entra. Não
há ninguém. Ele aproveita a oportunidade para descobrir que tipo de ‘décor’ sua amante
tem, como se isso o ajudasse a conhecê-la melhor. Ele ri de sua falta de organização, é
surpreendido pela decoração berrante do banheiro, tranquilizado (reassured) por um
pequeno quadro de Van Dyck, e, descansando no sofá, tentado (mystified) a achar um
envelope recheado de notas. Ele espera. A polícia chega. Sua amante foi assassinada
enquanto ele olhava o apartamento. Ele se torna o primeiro suspeito.Vamos parar por
um momento nessa sequência de abertura e na descoberta do apartamento de Jacqueline
por Jan, descoberta da própria Jacqueline também. A câmera só observa
meticulosamente a sequência de eventos, a manifestação de fenômenos e suas relações
objetivas. Antes de tudo, a própria personalidade de Jan. Excitado por sua aventura, seu
verdadeiro ego (true self) se revela em suas atitudes tanto quanto em suas reações, e é
evidente em cada um de seus gestos. E porque eles são reflexos daquele verdadeiro ego,
seus gestos são tão raros quanto refinados (e às vezes, admito, nos limites do
preciosismo). Como na maneira em que nosso jovem amante pára de repente , apoiado
em uma perna, no vão da porta do quarto, uma posição enfatizada ainda mais pela
mudança do ângulo. Tudo em Jan denuncia uma inocência sem mácula, o coração
intacto de uma criança ávida para ser encantada pelo amor.

Muito ávida, de fato, para observadores imparciais como nós, e não podemos evitar a
idéia de que há um hiato entre a natureza de Jan e o tipo de mulher que ele ama,
enquanto seu apartamento a denuncia. Este pertence claramente a uma prostituta de alta
classe. Algumas das reações de Jan deixam claro que ele está atento a isso, mas então
um objeto de bom gosto traz sua confiança de volta. Ele está de fato desejando ser
arrebatado. Ele está cego por seu amor e sua confiança. Ele está no limite da submissão,
sua inocência é ameaçada. Este é o coração da matéria (subject-matter) de Losey. Jan
tem que avaliar a si mesmo, ter a noção exata de seu valor, se calcular, em resumo, se
estudar, i.e. alcançar a lucidez através de um auto-exame crítico nos termos de sua
relação com o mundo exterior.
O assassinato cria as condições necessárias para um experimento desse tipo. Ele
constrói um mundo enclausurado no qual as maiores pressões são induzidas a agir. Elas
transportam as pessoas com uma intensidade crescente, subsumidas por estas condições,
levando-as a uma espécie de ruptura brusca que é dada visualmente pela mise en scène e
que é, me parece, a dinâmica básica de Blind Date. Essa ruptura brusca nasce com a
lacuna entre Jan e o décor. É desenvolvida imediatamente após a chegada da polícia,
quando o inspetor Morgan também dá uma olhada no apartamento. Desta vez é uma fria
e clínica inspeção que não deixa dúvidas a respeito da inconstância do caráter de
Jacqueline ou sobre a indiscrição e a impetuosidade claras de Morgan (seus gestos, seu
sotaque gaulês, sua reação ao espelho em frente à cama, etc)
O confronto de duas visões divergentes de um mesmo apartamento e, portanto, da
mesma mulher produz uma ruptura até mais violenta, o flashback. Este se opõe
visualmente, por sua áspera, branca iluminação Nórdica e pela pobreza do décor, à
fotografia cinza e ao apartamento desorganizado da primeira parte. O flashback, gerado
simplesmente pela lógica da situação, é tanto uma evocação sensual de um caso de amor
quanto uma análise precisa de um relacionamento entre dois amantes e um julgamento
de seu amor. Como uma investigação feita necessária pela lógica interna da situação, ela
traz à tona a incompatibilidade óbvia entre a Jacqueline que Jan ama e a dona do
apartamento, enquanto a polícia junta as peças na base de evidências e objetos.
É isto que Morgan não pode deixar de notar – ele tem um bom faro, mesmo com o nariz
entupido. Losey gosta de sobrepôr a luta por lucidez com essa espécie de obstáculo
físico (embriaguez de Redgrave em Time Without Pity, a gripe de Morgan em Blind
Date), um obstáculo que tem seu contraponto na paixão cega de Jan. Deve-se lutar
contra a névoa de sua própria mente. Morgan também está envolvido nesse caso, tanto
quanto Jan. Ele se vê envolvido na mesma busca por verdade, e assim pela sua própria
verdade. Daí as pressões às quais tem de se submeter. Pressões sociais impõe uma hiato
entre seu desejo por uma promoção no trabalho e, o mais importante, seu respeito
próprio. Uma simples questão de dignidade. O problema para Morgan e para Jan é o
mesmo: resistir à corrupção, preservar sua integridade. Uma vez que eles percebem isso,
após a pequena briga que as questões ofensivas de Jan provocam no escritório de
Morgan, a resolução não está muito distante. A mulher – Jacqueline/Lady Fenton – é
redescoberta, sob a dupla pressão exercida por Morgan e Jan, sua duplicidade é
translúcidamente clara. A mentira amaldiçoa a verdade. O ego conquistou as aparências.
A inocência é libertada.
Nós estaríamos, então, julgando mal Losey, estaríamos interpretando de modo
completamente errôneo sua obra se nos recusamos a ligar sua estética a um
racionalismo de Esquerda.. Até, como Domarchi sugeriu, da extrema esquerda, visto
que Losey recusa categoricamente qualquer apelo ao sentimentalismo a que a então
chamada “esquerda artística” está tão ligada. Sua arte é uma arte de laboratório. Coloca-
se um bloco completo de experiência vivida num pote. Cria-se as condições mais
favoráveis para o experimento. Então analisa-se meticulosamente todas as relações
objetivas que se formam e descobre-se que a luta é a origem vital de toda realidade. A
luta de indivíduos (Jan e Jacqueline, Jan e Morgan), a luta de classes, etc. Mas visto que
o conhecimento do observador é sempre determinado pelo da pessoa observada, a luta
permite que este conhecimento se desenvolva. Nessa temperatura de conflito dramático,
a violência quebra estruturas ossificadas, pressionando o ego de volta à superfície.
Dominar e organizar as vibrações internas do ego: essa exigência que Jan faz de
Jacqueline enquanto ela está desenhando (apesar de que ela, refletindo sua classe,
procura somente ocultá-las) é o que Losey exige de sua arte. Uma arte que despreza o
ornamento, que usa lucidez para destruir o mito, que irrita e abala. Uma arte que fere
porque não permite concessões. Mas uma arte com sede de verdade. É por isso que
ainda repele a tantos.
JEAN DOUCHET
Cahiers du Cinéma nº 117, março de 1961
Tradução: Luan Gonsales.

O quarto verde

É sem dúvida o filme mais original e cativante de François Truffaut. Surpreende-nos


uma maturação de temas e de estilo pouco freqüente na obra de Truffaut e no cinema
francês contemporâneo em geral. Três novelas de Henry James, « L’autel des morts », «
Les amis des amis » , « La bête de la jungle », ajudaram Truffaut a precisar e encarnar
dramaticamente sua reflexão sobre a morte. O filme é o reflexo íntimo dessa reflexão,
sem dúvida mais longa em seu autor que a saga semi-autobiográfica de Doinel. A
morbidez de Davenne é vista sob uma abordagem positiva, e esta constitui a primeira
originalidade do filme. Davenne luta de todas as maneiras contra a ingratidão e a
indiferença dos vivos, tão comuns para com os mortos. Que Davenne termine por amá-
los mais que aos vivos – atitude condenada pela heroína – dá ao filme uma coloração
fantástica e conduz o personagem à monstruosidade. Mas aí o toque de Truffaut é
ligeiro e empolgante; outra originalidade. Embora isto nunca seja dito, essa morbidez
tem a ver com a infância; ela é em parte um recuo infantil diante da ação, da sociedade e
da vida. Julie representa para Davenne um tipo de mãe perfeita e, em todo caso,
insubstituível. Como disse Jean Mambrino (no prefácio da publicação do roteiro em
“L’Avant-Scène”), o filme é, enfim, “dolorosamente materialista” pois Davenne não
pode imaginar a presença dos mortos sem ligá-los a um souvenir tangível da existência
deles (objeto, foto, etc.), a um culto material dedicado a suas memórias (capela, velas,
etc.). O classicismo seco da mise en scène de Truffaut, o lirismo muito contido dos
diálogos e da interpretação (Truffaut pensou em Charles Denner para o papel principal),
a bela fotografia obscura de Almendros (talvez demasiada lustrosa e superficialmente
elegante) oerfazem uma obra que não é em si mesma mágica e sobrenatural, e nem
deseja sê-lo. Ela orienta, no entanto, para além das intenções do autor, a emoção e a
reflexão do espectador nesse sentido.
N.B.: o fracasso comercial do filme não é nada inexplicável, pois na França a morte e a
fortiori o culto dos mortos são, como a doença incurável, temas tabus que, no cinema,
afastam o público quase automaticamente.
Jacques Lourcelles
Tradução: Matheus Cartaxo

Le voyage à travers l'impossible (1904) - Georges Méliès

Ocupa os números 641 a 659 da Star-Film (septuagésimo oitavo dos cento e quarenta
título conservados até a data de 1981). É um tipo de refilmagem e uma amplificação de
Viagem à Lua. Na sua enquete sobre « O primeiro Wells », Borges escreve: « Verne
escreveu para a adolescência, Wells para todas as idades do homem. Há entre eles uma
outra diferença, já indicada pelo próprio Wells na ocasião: as ficções de Verne são sobre
o devir provável [...], as de Wells sobre o puro possível. » Méliès, que terá se inspirado
em Verne e Wells, mescla sem vergonha e sem complexo as duas fontes. Para ele, a
ficção cinematográfica engloba o documentário e a ficção-científica, a descrição do real
e do imaginário, o sonho sobre o provável e o possível. Esses limites, que a ficção-
científica moderna quer apagar (cf. O Enigma de Andrômeda de Wise), Méliès negou
desde a origem. Inventor do espetáculo cinematográfico, Méliès sente que tudo aquilo
que aparece sobre uma tela deve ser por essência espetacular, ou seja, fascinante e
crível, quer se trate das atualidades reconstituídas ou da féerie mais delirante. Essa
intuição pulveriza as distinções falaciosas, e a história do cinema (a despeito dos
próprios historiadores) lhe dará inteiramente razão. Efetivamente, um filme como Una
voce umana de Rossellini (uma mulher ao telefone sozinha num aposento durante 35
minutos) e Os Dez Mandamentos de DeMille são tão espetaculares um quanto o outro.
Notemos brevemente que, com suas atualidades reconstituídas, Méliès terá se
antecipado sobre a política-espetáculo. Sua formação de prestidigitador era a melhor
possível, não somente para inventar o espetáculo cinematográfico, mas para lhe fixar os
valores essenciais, ainda válidos hoje em dia. A mise en scène consiste em efeito, como
a prestidigitação, em dirigir e se apropriar do olhar do espectador, em fazer com que ele
veja aquilo que se quer que veja, à exclusão de todo o resto. As qualidades psicológicas
e as intenções do prestidigitador são também aquelas do verdadeiro cineasta. Tanto um
como o outro nos fazem descrer na realidade, ao substituí-la pela deles. Eles tornam o
maravilhamento inseparável da inquietude, o fantástico e o humor indissociáveis da
vertigem. No o plano técnico, certos exegetas modernos querem a todo custo que haja
montagem em Méliès, como se isso aumentasse sua modernidade. Ao contrário, os
planos longos e generosos aos quais estava restrito e que apenas desejava enriquecer
através de uma profusão de trucagens, e eventualmente de personagens, unir-se-ão ao
cinema mais moderno, ou antes: serão reencontrados por ele. Dando a ver ao espectador
a porção do real que escolheu (pelo lugar da câmera e pelo quadro), fornecendo-lhe uma
(falsa) impressão de liberdade em relação ao conteúdo desse quadro, seu cinema
anuncia, para citar apenas dois nomes, o de Tati e o de Fritz Lang. A reflexão sobre
Méliès está apenas começando; ela não está perto de chegar ao seu término porque
,nesse precursor genial, as noções de base do cinema como espetáculo já se encontram
largamente exploradas.
Jacques Lourcelles
Tradução: Bruno Andrade

Allan Dwan por Serge Daney

Discreto a ponto de passar desapercebido, frequentemente identificado com o que em


profundidade ele não é, Allan Dwan não é nem o último sobrevivente da grande fase da
Triangle ( o autor do famoso Robin Hood com Douglas Fairbanks) nem o pau mandado
incansável , o símbolo característico dos diretores de filmes B. Ou melhor: ele é mais
que isso. Ao curso de uma abundante ( e desigual) produção de filmes igualmente
fracassados, interpretados por atores de terceira ordem, marcados por uma mesma
precariedade de meios, se delineia aquilo pelo qual ele deve ser chamado: um certo
olhar sobre o mundo.
É que a modéstia e a paciência são suas qualidades: cineasta maldito, Dwan faz da
maldição o tema de seus filmes. Maldição estranha,que faz com que ninguém jamais
seja julgado segundo suas motivações. Vemos correntemente em Dwan um dos
representantes típicos do cinema de aventuras; ora, o que torna seu cinema precioso é,
ao invés do culto da aventura, o momento onde esta se dilui e se perde. O momento
também que o cineasta suspende-lhe o desenrolar para substituí-lo por intermináveis
digressões. Os filmes de Dwan são feitos destas digressões, destes parênteses: tal filme
que começa com uma cena de violência se coloca, dez minutos mais tarde, sob os traços
de um melodrama familiar ou de uma comédia leve. Haviam julgado mal Dwan: se
esquecemos nele os remendos da intriga ( ou antes: se estas são tão pouco ocultadas), é
para melhor descobrir os fios da aventura, a verdadeira, aquela que se tece na intimidade
dos seres.
Secreta, a arte de Dwan já o seria por sua modéstia, por sua recusa ao exibicionismo, se
os heróis também não reivindicassem para eles esta mesma vontade de se calar, este
mesmo empenho em salvaguardar- no próprio seio da violência- a intimidade dos
dramas pessoais. Exigência de pudor, onde os mal-entendidos valem mais que as
indiscrições, onde a incompreensão é preferível à exposição dos sentimentos. O
verdadeiro problema se coloca, desde logo, não nas peripécias da ação mas todas vezes
que a vida íntima dos heróis é ameaçada. Cada um vive com seu segredo, a coisa que
lhe pertence intimamente, e de onde tira a gravidade de seus gestos e de suas palavras.
Perder este segredo é um pouco como perder a sua razão de viver, sua justificação no
mundo. Daí o empenho em preservá-lo. Para impedir seu amigo de se casar com uma
piranha, John Payne está disposto, em Tennesse’s Partner, a correr os maiores riscos, a
sacrificar tudo, até mesmo esta amizade. Em Surrender, onde a situação é a mesma, há
perpetuamente um décalage ( um hiato, um desnível) entre o herói e o xerife que o
persegue: em nenhum momento o xerife compreende as motivações verdadeiras do
outro, e isto até o fim do filme, quando ele o mata. É ainda, em Slightly Scarlet, a
amizade entre duas ruivas, Rhonda Fleming disposta a tudo para que o passado de sua
irmã permaneça em segredo. Em outros, são estas vinganças pessoais, silenciadas até o
fim ( Cattle Queen of Montana) ou ainda, em Sweetharts on Parade, o que para os
outros é um simples “esbarrão” constitui para o herói comoventes reencontros. Assim,
sempre os atos serão mal interpretados, suas razões profundas insondáveis, mas em
Dwan, é este segredo, esta possibilidade de intimidade o que faz a diferença.
Para além dos inevitáveis mal-entendidos, as últimas cenas de Tennesee’s Partner- a
obra-prima do nosso autor- nos dão a melhor imagem desta cumplicidade reencontrada,
deste segredo enfim compartilhado, definitivamente recusado aos outros. O movimento
dos seus filmes é, portanto, este: obrigar seus personagens, excessivamente fechados,
muito vulneráveis, a se abrir lentamente. Cada filme é um pouco a aventura de um
segredo e de sua desaparição: ou o levamos conosco para o túmulo, ou o dividimos com
os outros.A partir daí, uma ligação simples se instala entre criador e criaturas: estas
desejariam se precipitar, atravessar a tela, sem olhar em torno de si: um atirador rápido
não tem tempo a perder, mas o cineasta tem todo o tempo a sua disposição. Exemplar
em relação a isso é The restless Breed, que é também a história de uma vingança
secreta. Desde o momento em que Scott Brady decidiu vingar seu pai, o cineasta se
esforça em suscitar à sua passagem tudo o que o possa retardar ou distrair: um padre,
uma dançarina, um velho xerife lhe exortam para que deixe a cargo da justiça o direito
de vingá-lo.

Aí, as digressões, o tempo perdido, os saltos no tom não são mais os caprichos de um
cineasta sem rigor, mas a prova que mesura a importância dos segredos. O caminho
mais curto entre dois pontos não é mais a reta; é o meando que é necessário; o filme se
torna um longo desvio entre o ultraje e a reparação. Ao curso dos encontros, o cineasta
parece esquecer seu filme, e os personagens seus projetos: nesta vasta
“cavidade”( creux), tudo pode acontecer, o acaso torna-se cúmplice do cineasta que o
serve e que dele se serve.
Assim se explica que Dwan, capaz de se virar com qualquer coisa ( faire feu de tout
bois), se acomoda da melhor forma possível à precariedade de meios: inversamente, não
é seguro afirmar que ele conservaria, no cadre de uma superprodução, esta parte de
invenção que lhe é necessária. Cinema disponível onde sempre chega o inesperado.
Onde tudo é pretexto para descobertas. Descobertas cuja mais simples consiste na
constatação de que o tempo é o bem mais precioso; é preciso perdê-lo em demasia para
lhe dar valor. Nada de espantoso, portanto, em que Dwan, o Decano dos cineastas de
aventura, é também aquele que se arrisca mais.

Dicionário do cinema, Éditions Universitaires, 1966.


Tradução: Luiz Soares Júnior.

Era uma vez no Oeste, por Serge Daney

Era uma vez no Oeste marca o apogeu ( e talvez o colapso) de uma série de filmes
assinados por Sergio Leone cujo interesse é a priori imenso: eles constituem a primeira
tentativa , embora pouco conseqüente, de cinema crítico, ou seja, não mais em
confronto direto com a realidade (mesmo que às vezes o recurso à verdade histórica-
que Leone conhece bem- tenha um valor estratégico), mas com um gênero, uma
tradição cinematográfica, um texto global, o único que conheceu uma difusão mundial:
o western. Não é pouca coisa.
Como um cinema crítico é possível? Desde muito tempo, os Americanos renunciaram
ao western racista e beato ( DeMille); daí,a partir dos anos 50, um jorro de filmes
humanitários ( Daves) ou crepusculares ( Ford, Peckinpah). Senso crítico, mas não
cinema crítico. Este só poderia se elaborar “de fora”. Mas de onde, de que “fora”? De
um dos raros países que possuía também um cinema de série, paralelo, tradicional e
popular: a Itália. Ou, mais exatamente, Cinecittá no momento preciso em que o péplum
corre perigo, minado por paródias ( já Sergio Leone aí). Ora, o essencial está aí: não que
alguma demiurgia tenha decidido um dia fazer cinema crítico, subversivo e vagamente
político, mas que este cinema seja antes de tudo ( ou em última análise) o único produto
de uma evolução econômica. Trata-se apenas para Cinecittá de re-investir homens,
cenários, figurantes e capitais em um novo gênero de filmes. Trata-se de “amortizar”
( reconstituição do capital empregado em uma compra). Estas origens vis e baixamente
comerciais fazem ( farão/fariam/poderiam ter feito: o futuro nos dirá) a grandeza do
western italiano. Por duas razões (ao menos):
1). Porque de que até então havia razões ruins para amar os filmes B, e é conveniente
modificá-los. Admitamos que em alguns países onde o cinema constitui uma indústria
robusta , o cinema B delimita uma espécie de lumpen-cinema ( cinema do
lupemproletariado1), bom de qualquer modo pra fazer a máquina girar, amado de forma
esnobe e contraditória ( em uma espécie de cinefilia “operária”) não podendo aspirar à
qualidade, nem mesmo à consciência clara dos elementos ( temas, situações) que ele
ilustra porque esta (a consciência) é reservada aos filmes de qualidade: digamos, mais
pra Zinnemann que para Dwan.
2). Admitamos hoje que na Itália alguma coisa que Hollywood não podia realizar era
possível: a tomada de consciência deste lumpen-cinema, efetuando, sob a máscara das
velhas formas ( portanto, sem negar seu caráter popular), um eufórico trabalho de
desconstrução. “Uma força não sobrevive se em primeiro lugar se ela não toma de
empréstimo a máscara das forças precedentes, contra as quais ela luta” ( Nietzsche).
Este trabalho pode ser bem realizado sob uma condição: que o western italiano conserve
seu caráter de massa. Não se trata mais, sucumbindo à obsessão utilitária, de
desmistificar em um único filme toda uma tradição, todo um conjunto de convenções e
reflexos. Os resultados práticos de semelhante operação foram nulos, mesmo se os
filmes belos ( Tourneur). Isto quer dizer que o western italiano deve ser produzido em
massa e para as massas. E isto apesar do grande obstáculo: a recuperação pelo cinema
de qualidade ( a arte e o ensaio, a burguesia) de individualidades excessivamente
videntes, o que é o caso, hoje em dia, de Sergio Leone.
Quanto aos meios deste trabalho, começam a ser conhecidos ( mas admitamos que só
foram seriamente utilizados nos filmes de Leone e do misterioso Sollima). Constituem
ora a mostrar o que o western clássico ocultava, ora a exagerar o este mostrava. A força
dos filmes de Leone está em extenuar a retórica habitual do western, em fazer da
surenchére (supra-oferta) o equivalente de uma negação. Em relação a isso, seria
interessante mostrar como ao western convencional, construído sobre o morceau de
bravoure ( High noon, The tin star) Leone opõe uma seqüência ininterrupta de tempos
fortes que se anulam reciprocamente: ao máximo de intensidade corresponde um
mínimo de sentido. Interessante de ver também como este cinema se dá a escolha dos
meios (chamada também de gratuidade por toda uma tropa de bem-pensantes que é
preciso obrigar urgentemente a ler os textos decisivos de J.J. Goux), como da beleza
( dos atores, e paisagens), da justeza de tal ou tal estilo de narração ( elipse ou tempos
longos) ele faz um uso estratégico a tal ou tal momento. ( Isto no caso de Sollima e do
magnífico Colorado). Etc. Quanto a Leone, de quem pouco se tratou aqui, é igualmente
possível empreender desde hoje a decifração de uma obra já pletórica (superabundante,
com muitos elementos) em tiques e “tropes” ( retórica, artigo decorativo).
Serge Daney.
Nota 1. Na terminologia marxista, parte do proletariado constituída por aqueles que não
dispõem de recursos e caracterizados pela ausência de consciência de classe.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Ottobiografia

Preminger brada a todos os ventos: sou um cineasta realista. Piada? Não. Se ele roda um
filme inteiro numa pequena cidade do Michigan, se filma em Chicago, Londres, no
Canadá, em Saint-Tropé, em Israel, é para gozar de uma maior liberdade que em
Hollywood? Pra encontrar um novo meio de publicidade, que vai desbancar todos os
records atingidos até então? Creio que as razões essenciais são outras: em primeiro
lugar,a redução do orçamento. Anatomy, aliás, foi filmado à incrível velocidade de
quatro minutos de filme por dia. Depois, Preminger, móvel como sua câmera, adora as
viagens. Ele tem necessidade de mudar de cenários, de abandonar os sunlights, outrora
essenciais à sua arte, a fim de poder se renovar. A arte evidente mas indizível de
Preminger necessita de um contato direto com a ordem da razão, um “botar os pés no
chão”, um tema, um cadre bem precisos. Tanto melhor se as coerções realistas se opõem
ao estilo clássico de Preminger , provocando de parte a parte algumas rupturas de tom.
Há dez anos, entregue a si mesmo, Preminger não teria rodado cenas crepusculares sem
iluminação nenhuma, não teria sublinhado os detalhes de nossa vida cotidiana, ele teria
orientado a interpretação de Lee Remick para uma fascinação bem artificial, como a de
Gene Tierney, e não em função de uma ótica realista. Aqui, em Anatomia de um crime,
ganhamos nós, pois temos ao mesmo tempo a fascinação e o realismo mais cru.

Admirável é o realismo da interpretação dos atores secundários. Critica-se com


freqüência aos Cahiers não falar dos atores. Pois bem, falemos! Dos vinte e cinco que
figuram nos créditos, não há um ao qual se possa fazer a menor crítica. Eu falo de
realismo. Mas, me refutem vocês, quase todos os comparsas do filme são
estereotipados, inclusive James Stewart. Alguns gestos inclusive são frequentemente
recorrentes nele; nunca tem fósforos, etc. É que a composição não exclui o realismo,
este se situa ao nível do resultado, não da abordagem. Ela acentua a verossimilhança: a
maioria dos personagens que se exprimem em público se incumbem de inventar uma
atitude particular. É interessante notar as forçosas repetições destas atitudes e suas
diferenças de um personagem a outro. A passagem detrás da barra de testemunhas
evidencia estas diferenças: Paquette, empregado do bistrô que tem o hábito de enxugar
os copos toda noite e que não quer falar, não sabe o que fazer com as mãos. Ao
contrário do psiquiatra, o doutor Smith, muito descontraído, que enxuga seus óculos
com este gesto largo e contínuo, tão típico em intelectuais americanos. Notemos aliás,
em relação a estes personagens, a importância das aparências, do figurino em
Preminger. O’Connel se decepciona ao ver um psiquiatra jovem e imberbe, portando
um nome americano ao invés de um germânico ou sei lá o que, que foi imposto ao júri.
Esta filosofia do figurino, a que devemos os mais belos toques humorísticos do filme, é
a mesma de Carlyle, a quem a firma Preminger presta uma discreta homenagem.
Preminger, como Carlyle sugeria que todo escritor fizesse, “looks through the shows of
things, into things themselves». Mencionemos igualmente a espantosa complexidade de
relações entre o advogado e seu ajudante Dancer, no papel do qual George C. Scott nos
oferece uma composição de primeiro nível.

O personagem do velho bêbado que rouba e bebe uma centena de litros de uísque nos
mostra que todos estes cúmplices se definem mais ou menos como personagens
negativos. Sobre eles, gentil mas firmemente, Otto crítico, Otto zombador. Enquanto
que, com o personagem de Paul Biegler ( James Stewart), Preminger “propõe”. É o
herói positivo do filme. James Stewart, sublime, encontra aqui o papel da sua carreira.
Apenas ele é o tema do filme; possui a idade, os modos, o humor de Preminger. E creio
que devamos considerar Anatomy of a Murder como uma obra autobiográfica. De
Preminger, encontramos a alternância entre a sisudez e o diletantismo, alternância que
acaba por tornar-se identidade. Se o nosso cineasta, (ops! Perdão), nosso advogado é
mais forte que os outros, se ele ganha o jogo, não é porque ele não leva a sério sua
profissão, já que passa a maior parte do tempo pescando, tocando jazz. Ele ama a boa
cozinha, tem por auxiliar um velho alcoólatra que toma iniciativas descabidas mas bem
frutíferas. Por seu jogo, por sua forma de agir, Stewart-Preminger nos mostra bem esta
confusão de valores. Ele é o mais forte porque está mergulhado na vida mais concreta
possível.
É de qualquer maneira uma definição do honnête homme1 do século 20 que Preminger
nos propõe. Alguns a poderiam qualificar de cínica. O maquiavélico Biegler não nos
mostra um brio inacreditável na astúcia? Tão mais inacreditável por não ser
especialmente enfatizado; brio que temos a surpresa de descobrir em seu estado natural,
sem comentário, ao mesmo tempo que o espectador do processo. É preciso vê-lo
interromper o interrogatório de Laura Manion sob falacioso pretexto de que Dancer se
interpõe fisicamente entre a testemunha e ele para nos darmos conta de sua esperteza.
Mas a astúcia levada a tal ponto denota uma inteligência muito grande para não ignorar
a sensibilidade. De todos os grandes cineastas, Preminger é talvez um dos mais cruéis,
dos mais lúcidos, mas certamente um dos menos malvados. Os cínicos são pessoas
necessárias.
“Sobre um tema sério reencontramos aqui a mesma vontade de mesclar o divertido ao
trágico que em A Grande Guerra, e a mesma ambigüidade sobre a significação do filme,
que parece afeito antes de tudo para divertir e seduzir. Sem falar das insolências verbais
que valeram, ao que parece, alguns incômodos ao realizador, e que se limitam a detalhes
escabrosos e de mau-gosto, tais como as que se encontram em todos os processos, mas
que não nos parecia indispensável reproduzir in-extenso em um filme de ficção. A
menos de que se trate, neste caso, de habilidade e intenções publicitárias duvidosas”.
Confesso não compreender esta crítica, expressa por Jean-Louis Tallenay no Radio-
Télevision Cinema. Estas intenções publicitárias, evidentes, são ao mesmo tempo parte
integrante do filme e absolutamente estranhas a ele: elas zombam daqueles que se
chocam de escutar vinte vezes as palavras espermatogênese, slip, etc Estas diversas
ambigüidades, que encontramos também em Hawks e Hitchcock, testemunham um
humor superior. No momento em que o espectador pretende julgar um filme em função
de critérios superficiais e extra-cinematográficos, é ele que passa a ser julgado pelo
filme. O que é realmente cômico é igualmente profundo e sério. Não precisamos criticar
em Preminger seu hábito do jogo duplo. É o público que cria a baixeza e enobrece o
filme. Preminger é um verdadeiro idealista, que se opõe a estes falsos idealistas
demagogos, marxistas ou puritanos, insinceros ao ponto de alijar da matéria de suas
obras tudo o que lhes parece estranho a elas. Face a esta hipocrisia que bem rapidamente
se revelou estéril, já que se funda sobre uma condenação da realidade em nome de um
suposto “bom-gosto” que nosso tempo teve o mérito de sacrificar a valores superiores,
Preminger nos propõe a inocência sob as aparências da culpabilidade. Ao puro, tudo é
puro.
Luc Moullet, Cahiers du Cinéma, número 101, Novembro 1959
Nota:
1. Gentleman, cultivo simples e moderado da sensibilidade, oposto, na tradição literária
e cultural francesa, ao homme précieux ( Préciosité), artificial e pedante.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Richard Fleischer

Não podemos contar com Richard Fleischer, nascido no Brooklyn em 1916, filho de um
dos mestres da animação em Holywwod, criador de Betty Boop e Popeye, rival de Walt
Dysney, etc, se quisermos gemer de forma romântica , hipócrita ou imatura sobre os
obstáculos intransponíveis aos quais teremos de enfrentar quando carregamos um nome
célebre e nascemos célebres.

Assim Fleischer inicia o livro que escreve sobre seu pai ( Out of the Intwell, 2005),
livro que nos informa abundantemente sobre sua família e suas origens,
complementando suas memórias( Just tell me when to cry, aparecidas em 1993):
‘Dizem que é difícil ser o filho de um homem célebre, que vc vive à sombra dele, que as
comparações com ele são insuportáveis. Bem, eu fui o filho de um homem célebre, e
não achei nada difícil esta experiência. Na verdade, foi formidável. (...)Longe de
dolorosamente viver à sua sombra, eu me aproveitei da chance de poder me banhar na
luz de sua glória.Quando eu era pequeno, bastava dizer ao dono de um cinema que eu
era filho de Max Fleischer para ter uma entrada gratuita.”. E Fleischer continua, neste
tom amável, reconhecido, sereno, a evocação da carreira de seu pai e, indiretamente, da
sua.

Dirse-ia que o fato de ter nascido num meio confortável acentuou ainda mais neste
homem qualidades sem dúvidas inatas: a serenidade de suas relações com seu próprio
ego, a discrição, a modéstia, uma forma de equilíbrio íntimo na forma de trabalhar, de
abordar e aprofundar um tema, do mais anódino ao mais atroz. Antes mesmo de abordar
o que em sua obra releva da noção de autor no sentido estético-filosófico que este termo
adquiriu no interior da expressão “política dos autores”, convém encarecer em Fleischer
o autor de uma série de sucessos, o superdotado da mise em scéne que, em cada gênero
que ilustrou, ( e Deus sabe o quão numerosos foram!) , buscou, consciente ou
inconscientemente, mas sempre com a mesma paradoxal humildade, a inscrever o filme
mais bem realizado, mais desconcertante, mais inventivo , mais definitivo. A tal ponto
que muitos espectadores que mal conhecem seu nome reservam à camada mais
profunda de suas lembranças cinematográficas um lugar à parte para uma ou outra obra-
prima sua. Citemos casualmente alguns de seus sucessos: devemos-lhe entre outros o
melhor filme de aventuras ( Os Vikings, documental e lírico, e jamais ultrapassado em
seu gênero), a melhor adaptação de Jules Verne ( Vinte mil léguas submarinas), obra
que se constitui também em um dos melhores filmes para crianças na dupla acepção do
termo, ou seja: filme que deve encantar a crianças e adultos; um dos melhores filmes de
guerra jamais realizados ( Between heaven and hell) , com seus personagens
perturbadores, ambíguos, descritos com uma audácia insólita para a época, qualidade
que vamos reencontrar em La fille sur la balançoire, evocação brilhante de um fato
criminal e mundano. Não esqueçamos Soleil vert, fábula de ficção científica ecológica,
intrigante e eficaz, e muito menos Barabbas talvez o melhor filme bíblico dos anos 60,
filme ao mesmo tempo subestimado e muito imitado, que aqueles que o puderam ver em
sua versão original em 70 mm jamais esquecerão.
Em todas as instâncias age o virtuosismo de Fleischer, tanto nas profundezas como nas
superfícies. Ora ela delimita definitivamente certa tendência de um gênero afirmado ( a
claustrofobia do filme noir encontra sua ilustração limite em The narrow margin, rodado
em sua maioria em um vagão de trem), ora ela abre possibilidades que irão servir tanto a
obra de Fleischer quanto a de outros. Desde 1949, com Follow me quietly, Fleischer
inaugura, no interior do filme noir, a narrativa baseada na busca de um assassino
psicopata ( ou “serial killer”), fundando um gênero à parte, que ele retomará em O
estrangulador de Boston, e em The Rillington place, obra-prima absoluta na
reconstituição documental de um incidente atroz, que coloca em causa a própria noção
de humanismo. Em Viagem fantástica, ele lança o filme de miniaturização que se passa
no interior do corpo humano, tentativa que Joe Dante vai concretizar de maneira
brilhante vinte anos mais tarde, com Adventure interiérieure.

Durante muito tempo, acreditei que Fleischer havia aperfeiçoado seu virtuosismo nos
filmes de ação de orçamento precário dos anos 40, feitos na RKO, em Eagle Lion. De
fato, isto não é verdade. Ele já estava em seu primeiro filme, e desde este, Child of
divorce ( 1947), permaneceu invisível por anos ( este primeiro Child eu vi apenas em
1980, quase um quarto de século depois da descoberta de Fleischer , autor brilhante de
Violent Saturday e La fille sur la balançoire). Em Child of divorce, todo Fleischer já
está presente, em tudo o que possui de melhor e mais original. ( É preciso sempre
escrutar com atenção os primeiros filmes dos grandes cineastas: são com frequência eles
que nos informam mais essencialmente sobre eles). Child não é de forma alguma um
filme de ação, mas antes uma espécie de poema sociológico, ao mesmo tempo perspicaz
e comovente, que mostra as conseqüências do divórcio de seus pais em crianças ,
deixadas pouco a pouco, não sem uma certa hipocrisia, num abandono afetivo quase
total. Child of divorce antecipa os filmes ulteriores de Fleischer ao revelar em plena luz
suas intenções ocultas, a saber, que para ele a utilização, a mise en valeur ( a colocação
em relevo) características do filme de ação ( tempo vívido e cativante, acuidade e
riqueza narrativas, crueldade insidiosa, violência) são apenas um meio eficaz para
penetrar em profundidade em uma realidade moral e social que o interessa antes de
tudo. E todo progresso técnico que possa servir a esta ambição, como o Cinemascope,
será bem-vindo.
Como Preminger, Fleischer vê imediatamente como o novo formato pode ser usado para
enriquecer suas intenções. Ele vai ajudar, por exemplo, em Violent Saturday a
exteriorizar os diferentes aspectos de um tecido social particular, religando mais
estreitamente e de forma mais natural , as evoluções dos personagens uns em relação
aos outros no interior do plano, e permitindo que bom número de planos, aparentemente
simples a visualizar, tenham de fato a mesma densidade e complexidade de certos
planos seqüência ultra-sofisticados realizados no antigo formato ( 1’66). Com efeito,
nos melhores filmes de Fleischer a descrição do tecido social onde evoluem os
personagens ( ou seja, a mise au jour- a atualização- de um conjunto de segredos, de
hierarquias, de lutas pelo poder, mais ou menos dissimuladas, a revelação das relações
que cada um, de um extremo ao outro da escala social, entretém com o tema onipresente
da violência) não é apenas um cadre, um pano de fundo, um cenário mas o próprio tema
da obra.

Nesta ótica, Fleischer se interessa tanto pelo devir dos indivíduos quanto das
sociedades. Poeticamente, sua imaginação dramática se curva às vezes a um esquema,
ao mesmo tempo descritivo e explicativo, que fascinou gerações de historiadores e de
artistas: o esquema ou ciclo que encadeia e une irremediavelmente grandeza e
decadência.Em The vikings, este esquema chega a um acréscimo de fausto e de beleza
pois aqui a decadência ( e a morte) do Viking agrega ao tema uma segunda beleza, uma
segunda grandeza que vem se reunir à primeira. Ao contrário disso, em The new
centurions, o olhar documentarista do autor pousa sobre uma decadência da noção de
civilização, redundando na desordem trágica de uma sociedade que pretende viver sem
interdições e sem regras ( “The donts are dying” é o leitmotiv da narrativa). E o filme
aparece como o termo desta “sociologia desoladora” de Fleischer, inspiração à qual
devemos uma parte de sua obra. Durante quatro décadas, apoiando-se sobre a
diversidade de gêneros, tons, orçamentos que estavam à disposição na Cidade do
Cinema e que faziam sua força, a obra de Fleischer é um dos exemplos mais brilhantes e
criativos do milagre hollywwodiano. O menos espantoso nesse caso é que Fleischer
tenha podido participar deste milagre até meados dos anos 70, ou seja, numa época em
que o cinema de Hollywood iria ser definitivamente enterrado, obedecendo assim ao
esquema “grandeza e decadência” que Fleischer tinha utilizado várias vezes em seus
filmes.

Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Introdução a obra de Cecil B. DeMille

Se me pedissem para eleger o mais belo plano do cinema religioso, eu deixaria de lado
Dreyer, Bresson e Rossellini, e proporia aquele que afeta o espectador com um
insuportável encantamento:uma perna de mulher abandona a máscara luxuosa de um
biombo e se estira como uma serpente, quando duas perfeitas mãos igualmente saem de
seu refúgio para orná-la de seda; ou então o plano onde podemos contemplar uma outra
mulher seminua se extasiar com a carícia dos fluxos de ouro e pedras preciosas que ela
dissemina pelo seu corpo.

Estas imagens que tentei descrever não pertencem a Mizoguchi, mas figuram em dois
filmes do único grande cineasta cristão, Cecil Blount Demille. Trata-se de The affaires
of Anatol e de Sansão e Dalila que, com um hiato de trinta anos, impõem a retidão
exemplar de uma arte sempre juvenil e madura , mas também de um espírito que jamais
se curvou.

Cecil Demille é um cineasta bem-aventurado. Seus filmes foram oferecidos a multidões


e exigiam dos homens o exercício de um coração singelo e reto e de um julgamento são:
sabemos que DeMille não se decepcionou com o acolhimento esperado. E os raivosos
ataques da inteligência nada puderam contra seu magnífico e insolente sucesso.Meu
professor de Letras comentava ironicamente Os dez mandamentos,e dizia: “Fala-se ali
como na Bíblia”...Concordo com ele em que os diálogos dos filmes de DeMille e o
estilo de Roland Barthes não se assemelham. Mas por detrás do tom ressentido do
professor se oculta uma ingênua verdade, digna de uma criança de Anderson: é
exatamente à altura da Bíblia que respira a obra de DeMille, e sem querer meu professor
lhe acordava um certificado de grandeza e beleza.
A obra religiosa de DeMille é encarnada, e por este motivo especificamente
cinematográfica e cristã. Ele não asfixia os frêmitos da carne e as palpitações do
coração, como Robert Bresson, não recorre abusivamente a símbolos, como Rossellini.
Sua fé recolhe sua riqueza da vida, e seus filmes, cheios de carne, ouro e sangue,
destilam os confrontos às vezes épicos entre as graças e as desgraças, sem intenção
demonstrativa. Eu não sei se DeMille é um autor. Eu não lhe reconheço uma temática
ou um universo interior. Os cristãos das catedrais talhavam na pedra sua fé, sem se
inquietar com direitos autorais. A mise en scéne de DeMille é talhada vivazmente no
real , e a unidade de sua obra é a única realmente digna de interesse, ou seja, uma
implacável fidelidade às fontes das emoções, quando a vida de um homem ou de uma
mulher se transfigura em felicidades e sofrimentos. Que não venham criticar os temas
bíblicos de alguns de seus filmes. A reprovação é em si absurda. DeMille, o cristão
DeMille, age neste caso com lealdade, e não vejo porque os intelectuais europeus lhe
recusam o que concedem a Veronese ou Poussin. Mas deixemos os intelectuais
opinando e busquemos adquirir a serenidade imperturbável do nosso metteur en scéne.
Cecil B. Demille não é um moderado. Os transbordamentos de luxo em Sansão e Dalila,
as orgias terrificantes em Dynamite ou as crueldades em Godless girl irrompem
glacialmente na tela do cinema. A fabulosa Duesenberg de Kay Johnson em Dynamite
ou as jóias de Heddy Lamar em Sansão são o escrínio eterno do pecado. DeMille não
profere nenhum anátema, e aos discursos ele prefere o espetáculo nu dos vícios e
perdições, fulminados por uma mise en scéne severa e intransigente, garantida pela
profunda inocência de seu autor.
Em Belluaires e Porchers, podemos ler a admirável resposta de Léon Bloy aos
acusadores de Barbey d’Aurevilly. Ele escrevia: “Ele, melhor que qualquer outra coisa,
vê a alma humana nas vilanias e convulsões de sua Queda. É um mestre imagista da
Desobediência, e nos faz pensar nestes escultores desconhecidos da Idade Média , que
inocentemente mencionavam todas os horrores dos réprobos sobre os muros de suas
catedrais”. Eu fico tentado a me apropriar deste julgamento definitivo e a aplicá-lo a
DeMille. Este, com efeito, pertence à raça chamejante dos grandes cristãos violentos e
sexuados, dos grandes aristocratas da fé, belos contendores dos bem-pensantes e do
bom senso. E Demille é forte o suficiente para não subtrair destas imagens o terrível
aparato da sedução. O que fascina em Sansão e Dalila não é tanto Victor Mature quanto
o esplendor arrogante de Heddy Lamar, e sobretudo este cúmulo de cinismo e
indiferença , quando o palácio desaba quando o rei de Gaza ( Georges Sanders) soergue
um brinde de adeus, o rosto iluminado pelo sorriso libertino.
Pois Cecil B. DeMille, metteur em scéne generoso, idolatra demais tudo o que vive e
que sofre para odiar seus personagens, fossem embora os mais detestáveis do Velho
Testamento1: DeMille não julga, mas mostra. E seu olhar alia a compaixão à lucidez.
DeMille não é prisioneiro de nenhum sistema religioso ou estético. Em sua obra, a
emoção é um maravilhoso instrumento de conhecimento, pois a emoção é livre e
simples, não velada pelas possibilidades opressoras de uma ideologia ou formalismo.
DeMille, cineasta cristão, é também um homem livre. Se sua fé não sofre nenhuma
acomodação, sua liberdade de espírito jamais suportou compromissos. Seu tenaz
individualismo leva, enfim, a dizer que este é um grande cineasta americano, aparentado
aos maiores.
Em Dez mandamentos, um povo geme sob o chicote, crianças e velhos sucumbem sob o
peso da pedra: a inocência torturada sugere a DeMille belas cenas, que contam entre as
mais duras que se pôde ver no cinema (vejamos igualmente The sign of the cross). A
este apaixonado pela liberdade afeta particularmente a infelicidade , e no entanto
nenhuma complacência enternece estes grandiosos planos de escravidão e opressão,que
compõem o inevitável corolário do pecado: a luz insana do enxofre que brilha ilumina
ainda a soberba liturgia do Mal. Neste sentido, Godless girl oferece a mais assustadora
visão das obras de Satã, onde crianças e adolescentes são entregues aos suplícios
monstruosos organizados meticulosamente para eles numa casa de correção nos Estados
Unidos. Este espetáculo infernal de jovens espancados ou jogados em uma pocilga
horroriza e espanta ao mesmo tempo: Godless girl possui uma tal densidade de
selvageria e brutalidade que apenas abordaram os grandes contendores do Mal. No
entanto, gostaria de me abster de qualificar este filme de fantástico, pois esta lucidez
trágica e intuição religiosa se confundem, de fato, com um realismo simples e terrível,
despido de toda intenção polêmica ou demonstrativa. Apenas uma sociedade jovem e
leal, a sociedade americana, pôde engendrar um cinema tão preciso, tão adequado e tão
indomável. Eu não me prolongarei de forma abusiva sobre os infernos de DeMille, e
aliás demonstrarei como o cavaleiro do Santo-Sepulcro conheceu, de forma
diametralmente oposta, a visão do Éden, e que este grande poeta da infelicidade e da
violência é antes de tudo o poeta da alegria e da doçura.
Cineasta americano, DeMille é em primeiro lugar pelo seu caráter religioso. Há em seus
filmes uma vontade de simplicidade dramática e de clareza um tanto brutal que só
surpreendem europeus absorvidos pelas delícias de Capoue, muito felizes de se ver
justificados pelas maquinações eclesiásticas 2. Ora, o cinema americano, primeiro o de
Ince e de Porter, depois o de Walsh e DeMille, era o fruto de uma civilização virgem, ,
onde não se via Igrejas a elevarem a Cruz nos altares, mas homens e mulheres
purificados pelo exílio construírem, Bíblia na mão, uma nação. É preciso um esforço
corajoso da imaginação para compartilhar a fé destes homens do Novo Mundo,
pioneiros, escritores ou cineastas, que tomaram da Escritura o princípio exclusivo de
seu pensamento e ação. A paixão européia pelos westerns se assemelha a uma confusa
nostalgia por uma era quase mitológica, enquanto que estes americanos são
contemporâneos das épocas que ilustram.
A biografia de DeMille escrita por Michel Mourlet é bem esclarecedora, pois se
identifica exatamente à história do Cinema americano e que tem como medida a própria
América: é a vida de um pioneiro e de um fundador, mas também a síntese e o símbolo
de um grande sucesso coletivo. Paul Morand escreveu: “As estradas são a expressão da
inteligência, da cultura e da liberdade de uma ação”. Transcrevi esta bela frase pois me
permite introduzir um gosto original de DeMille, cuja importância não deixaremos de
assinalar. Union Pacific, magnífico western, é também, se ouso falar assim, um grande
filme de “amor ferroviário”. Construir rotas, estabelecer grandes vias de comunicação:
ao contar a história de uma linha ferroviária, DeMille eleva sua arte ao coração da
América juvenil e conquistadora. A energia maravilhosa deste filme extasiado e
musculoso , onde o trilho e a locomotiva resplandecem de potência, glorifica o espírito
de uma nação.
DeMille adora as viagens, os meios de locomoção e particularmente os caminhos de
ferro, - pois estes caminhos de ferro, ainda mais que as estradas, estão à altura da nova
coletividade, justificam a ambição e a consciência de uma civilização essencialmente
voluntarista e confiante. Cecil DeMille é provavelmente “ o mais americano” dos
grandes cineastas americanos. Que me compreendam bem: não penso que sua obra
iguale a universalidade e a riqueza de Raoul Walsh. Mas se gerações futuras quisessem
conservar um único testemunho da civilização americana, talvez devêssemos salvar
Union Pacific. Em uma larga medida, DeMille fundou o cinema americano. Por isso ,a
ninguém surpreenderá que seus heróis favoritos sejam “fundadores de impérios” e que
estes, se não esmaecem sob a fachada da coletividade, tornam-se suas pedras de toque: o
herói de Union Pacific não tem outro propósito senão servir.

Este sangue de grande raça faz florescer em força e brilho a obra inteira de DeMille;
enfim, este talento perfeito que é ser Americano triunfa em uma obra-prima
encantadora, The Greatest show on Earth. As crianças, que ainda não tiveram o gosto
pela vida e a liberdade do amor seviciados pela escravidão universitária, foram os
grandes cúmplices do sucesso mundial do filme. O circo! Quando a gigante tela se
ergue, se infla, se desdobra e se estende soberbamente em torno dos mastros , quando o
padre abençoa a locomotiva que conduzirá o circo através da América e as hastes se
afogueiam sob a grandiosa respiração do vapor, o coração palpita como se assistisse ao
nascimento de um mundo e uma arte conjugados. The Greatest show on Earth reúne as
condições exemplares do desabrochamento de um gênio lúcido e totalmente sob
domínio: cada plano faz ressoar a vida em plena luz, a narrativa e a viagem a conduzem
sob o ritmo aleatório dos grandes expressos intercontinentais. Cendrars ficou
maravilhado por este filme onde as paixões, as alegrias, as dores se engendram e se
dispersam no entrelaçamento dos espetáculos do circo, onde sua intensidade varia
segundo a dificuldade de um trapézio, o capricho de um elefante e o número de
quiilômetros de um trilho. Sinto-me singularmente desamparado para apenas sugerir a
prodigiosa vitalidade desta mise em scéne, sua complexidade e sutileza. A energia de
que falava a respeito de Union Pacific se intensifica em The greatest , ela se dispersa
por todos os lados, nas coxias, sobre a pista, entre os espectadores. Recebe sua apoteose
ao fim do filme, depois do acidente de trem, quando DeMille mostra, em um
extraordinário plano de conjunto, a cavalgada improvisada pelos sobreviventes conduzir
para um “théatre de fortune” ( teatro de variedades em Paris) a multidão em delírio, e a
maravilhosa Betty Hutton em cima de um elefante cantar ao amor, o amor do circo, o
amor da vida.

Barrès deu a uma de suas heroínas o nome de “Nossa Senhora do vagão do Sleeping-
car” ( Três estações de psicoterapia): o trem é talvez o objeto que mais fascinou alguns
civilizados excitados pela modernidade (Cendrars, Morand, Honegger),e desde sua
origem o cinema americano lhe consagrou as mais belas sequências: Edwin Porter: The
great train robbery; Raoul Walsh: Colorado Territory, White heat; Fritz Lang: Human
desire; enfim, Cecil B. DeMille. Como as princesas da corte de Louis XVI que se
deixaram seduzir pelos balões de Montgolfier, estes príncipes do espírito não
desdenham o prazer da velocidade e de uma cadência novas, a beleza do ferro e dos
cavalos a vapor. Se DeMille ama a tal ponto os caminhos de ferro, é porque as virtudes
de uma Crampton ou de um Pacific 23 são também as de sua mise em scéne: poderosa,
rápida, nervosa, violenta, elíptica, sólida sob todas as dificuldades, mas monumental e
ruidosa.Uma arte nova se inventa para trabalhar matérias e energias novas: a arte de
Cecil B. DeMille é essencialmente moderna. Maurice Barres foi o primeiro a
compreender que os sentimentos não vagabundeavam mais ao ritmo das diligências, que
não se poderia mais escrever Adolphe ou Le Lys dans la valée, e que a língua francesa
deveria buscar em si um novo classicismo, lição recebida por Paul Morand, Jean
Cocteau, Roger Vailland ou Jacques Laurent.

Assim, os melhores planos dos filmes de DeMille fulminavam verdadeiramente pela


surpresa da elipse, da violência e da singularidade do tema, a síntese e concisão da mise
en scéne, a acuidade do enquadramento. Já aqui evoquei várias vezes, e não descreverei
mais, o catálogo destes objetos preciosos que fazem a narrativa se romper como certos
versos de Racine , e aos quais atribuiríamos as qualidades dos metais raros. Enumerarei
três, cuja evidência súbita desempenha um papel audacioso. Dois primeiro em The
greatest show on Earth: o primeiro em que Cornel Wilde cai do trapézio e se esmaga
sobre a pista, projetado brutalmente até o solo por um movimento descendente de
câmera, o segundo onde Charlton Heston , intrigado pela demissão de um sorridente
Cornel Wilde que acabara de voltar do hospital, aparentemente restabelecido, arranca o
impermeável que cobre seu braço esquerdo e descobre bruscamente um horrível coto de
braço. Só os iguala em vigor este plano noturno em Union Pacific onde vemos, face à
câmera fixada sobre um trem em marcha, um cavaleiro assomar neste trem e saltar
sobre um vagão, enquanto o cavalo permanece no alto do trem!

Cecil B. DeMille, cineasta moderno. Fiquei bem tentado a escrever que este Americano,
que este cristão era profundamente anti-moderno, à maneira de Raoul Walsh ou Allan
Dwan, ou seja, da forma como entendia Péguy. Em conjunto com um sereno desejo de
construir um Novo Mundo, DEMille herda da velha América e de Fenimore Cooper
uma desconfiança da civilização urbana que se desvela nas deliciosas comédias satíricas
do cinema mudo , dentre as quais a melhor permanece sendo The affairs of Anatol,
crônica ácida e refinada da alta burguesia de Nova York. Mas DeMille é muito
orgulhoso e reto para sustentar um paradoxo: de fato, quando digo que sua arte é
essencialmente moderna, afirmo que DeMille praticou uma mise en scéne que elevava
sua época, dando-lhe uma alma.

Paul Morand é sem dúvida o único escritor que soube nos falar de uma Bugatti ( Buda
Vivo), mas o autor de Da Velocidade nos ensinou também o gosto pela lentidão, o
charme de um grande rio preguiçoso, os prazeres eqüestres: Milady. Giraudoux não se
enganou- estes loucos pelo volante são apaixonados por suas aldeias. A obra de DeMille
converge para uma necessidade de equilíbrio, um desejo de calma e de repouso, uma luz
mais doce e paisagens menos tormentosas. The squaw Man ( 1931), belo filme pudico,
conta-nos a busca infeliz da felicidade conjugal. Um ternura infinita, um sorriso ferido
não podem impedir a fulgurante destruição de uma paz íntima que DeMille descreve
com um tato admirável. Esta obra-prima de emoção e de delicadeza atinge ápices de
nobreza: quando a índia oferece a seu filho o cavalinho de pau que fez para ele e o
pequeno o troca pelo trem mecânico que lhe deu o pai, a infeliz, imóvel, petrificada,
olhos inundados de lágrimas, ressente de súbito a crueldade e o peso da infelicidade, o
atroz estilhaçamento de uma felicidade perdida.

Os filmes de DeMille reservam, entre os gritos de danação, as lágrimas das vítimas ou


os estrondos das máquinas, oásis agrestes de silêncio e de frescor onde parecem se
realizar os idílios frágeis. Encontramos em Sansão e Dalila, Dez mandamentos e
sobretudo em Godless girl estes radiosos instantes onde natureza, o herói e os
sentimentos, purificados de toda impureza, se ordenam sob o milagre da candura divina:
incursões fabulosas dos sonhos de um cristão que não se consola com a Queda.

Pradarias visitadas por santas, uma pequena camponesa tocada pela Graça, um pobre
casebre da Lorena em que se reconhece Georges de La Tour: as aldeias secretas de
Cecil B. DeMille assemelham-se ao Paraíso. Joan the Woman revela a intimidade
absoluta do cineasta com seu sonho, na adoração cúmplice para com a jovem Santa do
povo. A vida de Joanna D’arc suscitou muitos filmes, mas nenhum que seja animado de
uma fé tão assegurada, de uma fidelidade e humildade tão exemplares. Esta santidade
triunfal que ilumina as angélicas cenas da infância ou os êxtases sobrenaturais dos
combates reconcilia na realidade das obras de Deus as duas aspirações de uma mise en
scéne que aspira à serenidade e conduzida à ação.
Joan the woman: o classicismo de uma arte recém-nascida, plenitude espontânea de um
olhar e de uma mise en scéne tão exatos que Louis Delluc podia ver na Joanna D’arc do
Americano uma grande obra “francesa”.
Michel Marmin.

Notas:
1. Nos Dez mandamentos, aliás, Ramsés é um personagem bem mais comovente que
Moisés, ,que é apenas um instrumento de Deus, e o combate desesperado que ele
empreende pelo seu Criador lhe confere uma grandeza que situa o filme numa
perspectiva essencialmente trágica.
2. Os Dez mandamentos, talvez o filme mais sóbrio na história do cinema, conduz a
tragédia com um despojamento exemplar, recusando rigorosamente o que não lhe é
essencial, - daí a pureza quase abstrata de seus cenários e figurinos, a condensação
teatral da mise en scéne, a sobriedade hierática da direção de atores ( Charlton Heston e
Yul Brynner igualmente admiráveis), características que nos remetem irresistivelmente
a Poussin.

Tradução: Luiz Soares Júnior.


Revisão: Matheus Cartaxo.
Du coté de Racine

Em uma época na qual qualquer um proclama a importância de qualquer coisa, é


temerário tentar exprimir o que enxergamos na obra de um cineasta há dois anos atrás
desconhecido, ainda muito pouco considerado hoje em dia e que apresenta as
características mais passíveis de excitar o desprezo grosseiro dos pensadores de
primeiro grau. Chamo de pensadores de primeiro grau a inumerável corte de intelectuais
sem gosto, sem julgamento e sem gênio que lotam os cafés, revistas e certos
cineclubes ,ébrios de cultura e política, incapazes de dominar um mundo que eles
apreendem através de filtros teóricos com colorações e deformações estranhamente
variadas , incapazes por isso mesmo de sentir em uma obra a vida ou a ausência de vida.
Eles pensam “em primeiro grau” porque apenas se importam com as aparências da obra,
a ambição de seus temas, a complicação de suas formas, suas referências culturais, a
tudo o que constitui este envelope mais ou menos ricamente ornado que não pensam em
abrir.
Estas banais constatações devem ser atualmente repetidas, uma vez que os mal-
entendidos não cessam, já que, depois de Fellini, depois de Bergman, agora é Antonioni
ou Resnais que precisamos suportar. Nossos infelizes contemporâneos confundem
tenazmente o estetismo e a beleza, o tédio e a gravidade, a inteligência e os professores.
Mas assim se deu em todas as épocas, e este preâmbulo teve apenas por objeto situar
Cottafavi em seu verdadeiro posto de meteorito, “sereno bloco aqui decaído por um
obscuro desastre”. Não um metteur em scéne a mais, entregue como pasto ao esnobismo
devorador das multidões, não um “gênio” a mais, descoberto depois de mil outros por
alguns adolescentes excitados, mas um dos raros cineastas que merecem que se tome a
palavra , a fim de assinalar sua importância a alguns espíritos fraternais.
Se é preciso insistir sobre a possibilidade de um mal-entendido a respeito de Cottafavi, é
por estima a uma obra que de forma alguma se inicia com Revolta dos gladiadores, ,
que não tem estritamente nenhuma ligação, a não ser por necessidades de roteiro, com
problemas de ordem histórico-mitológica romana, ao contrário portanto do que se vê
evocado nos artigos elogiosos, assim como antes quiseram discernir um auto-retrato no
M de Losey. A verdade é que o melhor desta obra se situa antes do período
cinemascope, em filmes em preto e branco, como Milady e os mosqueteiros, O carrasco
de Veneza e Fille d’amour. Centrados ao extremo sobre dois ou 3 personagens, eles se
estabelecem em um agudo registro passional, mais conforme às preocupações do
metteur em scéne, como aliás se depreende de suas declarações, registro cuja existência
se explica aqui pela relativa liberdade que tais produções com orçamento limitado e
fraca difusão paradoxalmente permitiram.
É por isso que o entusiasmo de certos jovens diletantes pelo que seu representante mais
dotado nomeia de forma galhofeira como “neo-mitologismo” aparece-nos como menos
imprudente do que parece. É preciso ouvir Cottafavi falar, com a ironia aveludada que
estende em torno de si como um véu, destas grandes máquinas ruidosas e coloridas que
ele constrói, segundo ele, no espírito de desenhos animados para as crianças ( ele fala
isso a propósito de Hércules). Ele também se mostra surpreso ao ouvir os elogios ou as
críticas endereçadas a um “marivaudage’ antigo intitulado Les Vierges de Rome, filme
do qual se diz responsável por apenas alguns planos cujo número se pode contar nos
dedos.

Vittorio ainda não deu o melhor de si mesmo, embora seja necessário rever Milady,
talvez inteiramente admirável. Mas este filme desertou de nossas telas há 2 anos, nos
impedindo portanto de verificar um julgamento mais precoce.Uma mise en scéne
espantosa se encontrava definida, preciosa e paroxística , que não devia nada a ninguém,
sobretudo nada ao neo-realismo, então triunfante. Um cinema de paixão, de torturas, de
terror e de amor se inventava diante de nossos olhos maravilhados, em gestos raros, em
olhares de pedra, de gelo e de metal, em silêncios ensurdecedores. Podemos reencontrar
em seguida, principalmente no Carrasco de Veneza, e em um grau menor na Revolta
dos gladiadores e Legiões de Cleópatra, apesar do interesse intermitente que o autor
portava a estes dois filmes, os mesmos reflexos de uma sensibilidade superaguda em
torno de certas jovens mulheres, tratadas com extrema crueldade, flageladas, marcadas a
ferro e fogo, devoradas pelas feras, esmagadas, mordidas pelas serpentes, e isto a tal
ponto que não se poderia falar impunemente em coincidências, pois o verdadeiro tema
destes filmes reside efetivamente no sofrimento da carne, sua angústia e sua morte.
A cada plano uma tragédia de ordem física se instaura, um mondo radioso torna-se uma
potência eriçada de grilhões onde a criatura aprisionada se debate, transida de horror.
Mas a tragédia é entrecortada de momentos de felicidade, que talvez fosse melhor
qualificar de alegria, ou mais fisicamente ainda de prazer , prazer tão exacerbado quanto
a dor que ele suprime, de tal forma é verdade que esta sensibilidade só existe como
suplicante ou exultante, em todos os casos violentamente eletrizada. Eu vejo apenas nos
filmes de Cottafavi este caráter ensolarado da fotografia, que determina uma crueza de
negros e brancos, brancos quase calcários , algo que convém tão perfeitamente às cenas
nas folhagens ou à beira da água.
Aliás, crueza que indica na técnica de Cottafavi desta época um amadorismo menos
recomendável, mesmo se certos resultados sejam para nós fonte de encantamento, pois
não admitimos o principio em voga, desde alguns meses, segundo o qual uma câmera
que treme indica forçosamente genialidade , ou uma fotografia grisalha de atualidades
possua mais estilo que as iluminações precisas que proporcionam a vida e o brilho.
Mas Cottafavi, dizíamos, inventa o cinema: é preciso lhe perdoar estes ‘maladresses”
( mal jeito, falta de jeito) de autodidata, preciosismos juvenis, enquadramentos
desajeitados, découpage às vezes “travada”- o motor desengata, e parte novamente.
Recordemo-nos que Fritz Lang começou a dominar sua mise en scéne aos cinqüenta
anos de idade e vinte de carreira. O que conta aqui são algumas penetrações mais
profundas, para além da malha dos hábitos e a máscara vermelha do Príncipe.

No início de Milady, o rosto da heroína, quando escuta o galope dos cavalos, se


petrifica, enquanto ela murmura: “Os Mosqueteiros”... No Carrasco de Veneza, um
duque se bate em duelo. Acaba de ser ferido. Ele se encontra fora de campo, mas torna,
a figura e o corpo estupefatos, imerso na morte; ele entra marchando, como se
descobrisse com um espanto imenso seu próprio fim, e pouco e a pouco é invadido por
este, até finalmente tombar. Na Fiamma che non se spegne, anda não distribuído na
França, uma cena nos mostra uma jovem que acaba de saber que seu marido foi morto.
Ela compreende a notícia através de uma troca de olhares, pelo peso do silêncio que a
acolhe quando entra em casa. Retira-se para seu quarto. Nós não vemos imediatamente
seu rosto, mas ela se volta para a câmera com lágrimas que marejam seus olhos.
Assistimos à invasão lenta e inelutável de uma alma pela dor , filmada face a face neste
quarto, nesta solidão absoluta, como se, tendo penetrado aí por efração,
contemplássemos com horror sagrado aquilo que ninguém deveria contemplar.
Estes exemplos ilustram uma dimensão capital da mise em scéne de Cottafavi, a noção
de “irrupção” ( envahissement), que domina os instantes de crise. É o único cineasta que
filma sistematicamente a instalação da crise, ao invés de passar diretamente à sua
expressão “já instalada”. Toda atenção é fixada nesta passagem entre a calmaria e a
tempestade, segundo infinito onde o ser é surpreendido em uma íntima transformação,
que o desapossa de sua liberdade e de sua consciência lúcida, orienta-o totalmente em
direção a um único fim e, de alguma forma, mineraliza-o em sua paixão.É esta
petrificação do ser que a câmera descobre , dando-nos a vertiginosa sensação de violar
um segredo, de penetrar em uma zona interdita, como o que se pinta no rosto de uma
mulher no instante em que o prazer a invade e absorve.
Da mesma forma, nas cenas decorativas, no sentido nobre do termo, onde o sublime não
é de natureza íntima mas espetacular e coletiva, utilizando, no limite de suas
possibilidades, a simetria dos gestos e do cenário, que conduz à uma liturgia da
preparação: preparativos de revolta, de execução capital, estes eventos são precedidos
de uma “mise en place” do sistema , de que eles decorrerão como uma consequência
geométrica; mise en place que retém a quase totalidade da atenção. Assim, no final de
Fiamma, um soldado vai ser fuzilado. Toda a sequência é fundada sobre uma geometria
dos deslocamentos dos soldados em relação a volumes regulares, falésias brancas,
caminhões estacionados. À “irrupção” ( envahissement) interior corresponde o mesmo
movimento exterior; o mundo toma uma única significação, que o preenche pouco a
pouco até o transbordamento, até o desencadeamento do evento narrado.
Este é o mecanismo da tragédia. Estamos muito distantes da démarche fútil do
“behaviorismo”, onde todos os gestos e eventos se equalizam, diante de uma exploração
maníaca do tempo e do espaço. Se quisermos bem considerar que esta tragédia se
ordena em torno do amor, do esfacelamento ( déchirement) secreto das paixões, em
torno de certos rostos de mulheres, em um mundo de príncipes, vamos ser obrigados a
reconhecer que Cottafavi está do lado de Racine , o que nos parecerá singular, paradoxal
e exemplar.
Michel Mourlet
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Apologia da violência.

A violência é um tema maior da estética. Ultrapassada ou presente, latente ou virulenta,


ela reside no seio de toda criação, mesmo enquanto primeiro momento de uma
démarche que a negou. A negação da violência em uma obra de paz compromete esta
obra nas dimensões mais secretas de seu ser, nos confusos limbos de sua gestação, mas
também no exercício desta força que conforma a matéria à forma com um furor
obstinado. A violência é uma “descompressão”: resultante de uma tensão entre homem
e mundo, ela explode no ponto extremo desta tensão, à semelhança de um abscesso que
vaza. É preciso passar por ela, se quisermos encontrar algum repouso. Assim, podemos
dizer que toda obra a contém ou no mínimo a postula, se entendermos a arte como um
caminho em direção ao apaziguamento, por meio do conhecimento dos termos do
conflito, e o poder de resolução concedido por este saber.

Às vezes, falamos de cinema por aqui. É a arte por eleição da violência, já que vem ao
mundo nos gestos do homem, no momento em que a força acumulada extravasa, rompe
os diques, se impulsiona em jatos crescentes sobre seu obstáculo. Este momento, que as
outras artes só podem sugerir ou simular, a câmera se apossa de forma natural, e
empunha a tocha que a literatura lhe estende. Stendhal é superior a Losey, até o instante
em que o tema de sua descrição efetua a passagem do ato intencional, da convulsão
mental à sua encarnação no universo dos corpos e dos objetos. Neste preciso momento,
Losey torna-se incomensuravelmente superior a Stendhal.

Exaltação do ator, a mise en scéne vai encontrar na violência uma constante ocasião de
beleza. O herói destroça os malefícios, introduz em uma ordem nefasta sua desordem
pessoal, que consiste na busca de uma harmonia mais real e superior. Assim, se
encontra definido um tipo de herói cujos modelos são Charlton Heston, Fernando
Lamas, Robert Wagner e Jack Palance. Herói brutal e nobre, elegante e viril, concilia a
força à beleza ( ou, para Palance, uma feiúra admirável de grande felino), e representa a
perfeição de uma raça senhorial, feita para vencer e pressentir ou conhecer a todos os
êxtases.Exercício de violência, conquista e de orgulho, a mise en scéne, em sua essência
mais pura, tende ao que certas pessoas qualificam de “fascismo”, na medida em que este
termo , por uma confusão sem dúvida interesseira, recobre uma concepção nietzcheana
da moral sincera, oposta à consciência dos idealistas, dos fariseus e dos escravos.
Recusar esta busca de uma ordem natural, esta alegria do gesto eficaz, este brilho do
olhar depois da vitória, é condenar-se a nada captar de uma arte que consiste na busca
da felicidade a través do drama dos corpos. É necessária a simplicidade de certos
teólogos para relacionar sua significação a uma entidade política que substituiu para eles
o Diabo , e que eles vêem em todos os lugares, com seu pote de tinta preta. 1

Charlton Heston é um axioma. Apenas ele já constitui uma tragédia, e sua presença num
filme é suficiente para provocar a beleza. A violência contida testemunhada pela
sombria fosforescência de seus olhos, o perfil de águia, o arco orgulhoso das
sobrancelhas, a saliência dos pômulos, a curva amarga e dura da boca, a potência
fabulosa do torso, eis o que nos é dado, algo que o pior dos metteurs en scéne não
consegue envilecer. É neste sentido que podemos dizer que Heston , unicamente por sua
existência, independnete de todo e qualquer filme, nos dá do cinema uma definição ais
justa que filmes como Hiroshima mon amour ou Cidadão Kane, cuja estética ignora u
recusa Charlton Heston. Por ele, a mise en scéne pode aceder aos confrontos mais
intensos, e resolvê-los pelo desprezo de um deus prisioneiro, agitado por vagalhões
surdos. Nisto, Heston é um herói mais languiano que walshiano.

Pois o cinema nos propõe diversos tipos de violência. No nível mais baixo, a violência
de Kazan, frenesi de guignols alcoólicos cuja expressão ideal é atingida pelo inominável
Karl Maden. É o império do falso, do artifício, das mais derrisórias crispações. O
infantilismo do pensamento rivaliza com o grotesco das formas, e não há nenhum
conhecimento real do ator nesses excessos gratuitos, nestas experiências de esteta
neurótico, inscritas sobre marionetes manipuladas por fios, que fazemos gritar ao
pressionar seus ventres.
A violência de Welles é mais sincera, ela parece mesmo puramente autobiográfica, mas
é curta, miserável, “em impasse”, sem ressonâncias para além do tohu-bohu sonoro
onde ela se compraz. É a reação da criança que chuta o móvel onde se feriu: a cena onde
o cidadão Kane se lança a depredações do mobiliário é significativa deste estado de
espírito. Cego por seu próprio personagem, Welles só sabe destroçar figurinos de
cartolina que ele desfila diante de nós, enquanto ruge nos alto-falantes.
Deixemos de lado a violência em Buñuel, em quem toda expressão, todo élan passional
se encontram a serviço de algumas idéias de que ele não conseguiu se desembaraçar
desde a idade ingrata ( Quantos de nós não descobriram o cinema, aos 17 ou 18 anos,
graças a ele, a Welles? Mas nossa ingratidão a nós mesmos, esta não tem limites).

Uma escala acima, Nicholas Ray oferece da violência uma imagem mais carnal e ampla,
mais verdadeira, infelizmente desenfreada: não a pressão formidável de uma massa
d’água que sua liberação transformará em correnteza, mas a inundação permanente, o
terreno lamacento, James Mason constantemente entre as lágrimas e as tesouras. Há
alguns anos, um crítico dizia que, em Ray “a violência ‘inflama’ diretamente, é uma
espécie de aura que acompanha cada gesto do herói; é mais uma violência que canta que
uma violência que mata”. Este crítico não se apercebeu que procedia, com palavras que
julgava lisonjeiras, ao julgamento sem apelação de uma mise en scéne desvitalizada por
perpétuos transbordamentos. Toda intensidade real se torna impossível, a paixão se
esgarça em intermináveis farrapos.
É com Walsh que encontramos, pela primeira vez, a verdadeira beleza da violência,
centelha à passagem do herói, manifestação de seu poder, sua nobreza, em um instante
postos em questão. Esta violência clara e retilínea não designa sua derrota, mas traça um
caminho triunfal. Violência da guerra ou do conquistador solitário, exprime a coragem
de viver, o reconhecimento de um confronto dos homens com os elementos, do homem
com os outros homens, e o desencadeamento da força para a vitória. A obra de Walsh é
a ilustração do aforismo de Zarathoustra: “O homem é feito para a guerra, a mulher para
o repouso do guerreiro, e o resto é loucura”. À ilustração desta fórmula visam todos os
honestos filmes de aventuras e de combates, mas unicamente os de Walsh se alçam de
forma plena aos níveis da epopéia ou da tragédia.
O universo asfixiado de Fritz Lang é particularmente propício à eclosão e manutenção
da violência, mas em um sentido muito diferente. Contida, refreada, presente e
dissimulada em todos pos gestos e todos os olhares; ao invés de se diluir por rarefação,
como em Ray, pelo contrário, ela se recolhe e se concentra, como o salto nos músculos
do tigre. Se a violência de Walsh é solar, a de Lang é subterrânea , e sua dimensão
trágica mais constante. Ela apenas se libera no terror; o mundo em torno desta desaba e
enterra o herói.
Mas o cineasta que melhor soube mostrar e penetrar na violência foi Losey, é claro;
Losey cujo discípulo incompreensível , Roberty Aldrich, delineia com ênfase a
caricatura. Seria mais conveniente aproximar de Losey, ao invés do diretor de The big
knife, certos espantosos reflexos de ator em Ida Lupino ou Mizoguchi. A abordagem
loseyana da violência se situa no nível mais íntimo da carne; ela capta a palpitação
frenética do ser no momento em que este se exaspera contra os obstáculos, a cada
enervação amplificada do sangue. Ao apreendê-la, ela capta também a calmaria, a
desintumescência. Esta violência abre uma brecha em direção à paz e anuncia estranhos
excessos de felicidade.
Michel Mourlet
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. Referência do autor a Martinho Lutero, que segundo consta, dizia que o Diabo lhe
aparecia e lhe atirava um tinteiro à cabeça.

A Revolta dos Gladiadores

Certo, um filme de época não é algo sério, necessariamente. Além do mais, este aqui
está cheio de erros históricos. Por exemplo, Tito Lívio nos fala de um cão fidelíssimo,
pertencente ao procônsul da Armênia, que atendia pelo nome de Medorus. Onde está
este cão? Enfim, o roteiro é infantil, e só vejo o argumento da Flauta encantada de
Mozart para rivalizar com ele em termos de ingenuidade e inverossimilhanças.
Vittorio Cottafavi é um jovem metteur em scéne italiano que realizou uma quinzena de
filmes com títulos proibitivos, completamente desconhecidos dos amateurs de cinema.
Pudemos ver na França: Femmes libres, Fille d’amour, L’’affranchi, Repris de Justice,
Milady e os Mosqueteiros, O Carrasco de Veneza, Le Prince au masque rouge e esta
Revolta dos gladiadores, co-produções dubladas, com um aspecto miseravelmente
“alimentar”, distribuídas- com exceção da última- entre Belleville e a Porte Saint
Martin. Todos estes filmes são interessantes, quatro ou cinco contém belezas às quais
nenhum outro cineasta europeu pode aspirar emular, duas são obras-primas: Milady e
Femmes libres.

Sem dúvida, Revolta dos gladiadores não constitui uma excelente introdução ao
conhecimento de Cottafavi. A mise en place, até agora extremamente íntima, fundada
sobre as possibilidades maiores de surpresa, de “surgimento” e de seleção, oferecidas
pela tela normal, tem tendência a se diluir nesta primeira confrontação com o formato
Cinémascope, provocando um certo relaxamento geral, e tempos longos desnecessários.
No entanto, há ainda muitos planos tensos, “esfolados vivos”, agudos e ferinos como
diamantes, para servir de suporte e referência a algumas proposições sobre o gênio de
seu autor. Deixando seus compatriotas tateando nas brumas neo-realistas, este, à
semelhança de Preminger e Mizoguchi, cinzela seu delírio em filmes preciosos,
paroxísticos, oscilando entre os dois pólos de sedução, do amor e da morte, fantasmas
maiores que se resolvem em uma sublimação dos gestos. Que me importam os
pretextos, se os eventos se dissolvem na magnificência da expressão? Mais que
qualquer outro, Cottafavi se liga aqui à beleza dos rostos, beleza crucificada,
magnificada nos suplícios, nostalgia de um universo de príncipes onde apenas os jogos
de príncipes são permitidos. Máscaras, venenos, flagelações, palácios, pesados
cortinados, punhais (e seus equivalentes modernos) só conhecem duas conclusões
possíveis , esta “lentidão “ ( ralentissement) súbito do homem que estaca diante de sua
própria morte, os olhos perdidos, janelas sem fundo, ainda aqui e já fora do mundo, e
nos oferecendo, em um último estilhaçamento, o segredo de uma divindade dolorosa, ou
então esta cintilação de dois corpos enfim reunidos, grupo esculpido no instante e, no
entanto, de dimensão eterna. Assim se encontra ilustrada a mise en scéne que amamos ,
seqüência de impulsos e de repousos, espelhamentos, gritos, jogo gratuitos e “fora de
propósito” ( hors de propos) que nos falam do essencial.
Michel Mourlet
Tradução: Luiz Soares Júnior

A Terra do Milagre. Rohmer sobre Viagem a Itália

O termo "neo-realismo" se tornou tão discutível que eu hesitaria em usá-lo em relação a


Viagem à Itália se o próprio Rossellini não o tivesse de fato invocado. Ele vê neste
filme uma expressão mais pura e profunda de um “neo-realismo” que em qualquer um
de seus filmes anteriores. Ao menos esse foi seu comentário para um membro da platéia
na estréia em Paris. Pode-se certamente falar sobre evolução no trabalho do autor de
Roma, Cidade Aberta. Se é verdade que seus filmes mais recentes só podem em parte
ser colocados junto com todas as outras produções italianas – incluindo os filmes de
Fellini, que é seu colaborador mais duradouro e o mais próximo a ele em idéias – não é
verdade que ele negou seus amores antigos: ele somente se contentou em sair na
dianteira, condenando seus rivais por estarem a salvo em seus lugares. Com cada
tentativa ele se exibe (goes through the roof) com tamanha diligência que nós não temos
nem tempo para ajustar nossos instrumentos e avaliar sua performance.

O público reage de um jeito particular com o que é novo. Observemos novamente os


julgamentos nas primeiras exibições dos impressionistas ou do fauvismo, a primeira
performance da Sagração da Primavera: ouvimos exclamações do tipo “Ele não sabe
pintar”, “Eu posso fazer algo tão bom quanto”, “Não é pintura, não é música, não é
cinema”. Assim como os estudantes de arte do último século forjaram uma convenção
da "pose", então emergiu num salão sombrio uma convenção do natural. Tão deliberada
quanto a recusa de Manet ao chiaroscuro, o autor de Viagem à Itália despreza a escolha
mais fácil - de uma linguagem cinematográfica coberta com cinqüenta anos de uso.
Antes de Rossellini, até o mais inspirado e original dos cineastas se sentiria obrigado a
usar o legado de seus precursores. Ele estava familiarizado com todos os caminhos que,
por algum tipo de reflexo condicionado, poderia provocar emoções particulares em uma
platéia – encantada com o menor gesto ou movimento; e ele jogaria com esses reflexos
mas não tentaria rompê-los. Ele criaria arte, isto é, um trabalho pessoal, mas feito de
uma substância cinematográfica compartilhada. Para Rossellini essa substância não
existe. Seus atores não se comportam como os atores de outros filmes, exceto no sentido
em que seus gestos e atitudes são comuns a todos os seres humanos; no entanto, eles nos
encorajam a olhar para outra coisa por detrás deste comportamento, algo além do que
nosso papel natural de espectadores nos induziria a reconhecer. A velha relação entre
signo e idéia é rompida: em seu lugar surge uma relação nova e desconcertante.

Do mesmo modo é a alta e novíssima idéia de realismo que descobrimos aqui. Não foi
há muito que elogiei Stromboli ou Europa ‘51 por seus aspectos documentais. Mas em
sua construção, Viagem à Itália não está mais perto do documentário do que do
melodrama ou do romance de ficção. Certamente nenhuma câmera de documentário
poderia ter gravado a experiência deste casal inglês desta maneira, ou, mais
adequadamente, com este espírito. Tendo em mente que até a cena mais direta e menos
planejada é sempre inscrita na convenção da edição, continuidade e seleção, e tal
convenção é denunciada pelo diretor com a mesma virulência demonstrada em seu
ataque ao suspense. Sua direção de atores é exata, imperiosa e ainda assim não é
totalmente "atuada". A história é solta, livre, cheia de fraturas, no entanto, nada poderia
estar mais distante do amador. Confesso minha incapacidade em definir adequadamente
os méritos de um estilo tão novo que desafia toda definição. Até se pensarmos somente
em seus enquadramentos e seus movimentos de câmera (onde até os maiores diretores
não alcançam inovações há muito tempo), este filme é diferente de qualquer outro.
Através de sua magia somente, ele consegue dotar a tela com aquela terceira dimensão
tão perseguida nos últimos três anos pelos melhores técnicos nos dois lados do
Atlântico.

Estou ciente da possível objeção: "Não atribua a uma habilidade suprema o que só pode
ser o resultado acidental do descuido". Certamente não! Não se produz literatura tirando
palavras da cartola, não se cria uma peça verdadeira de cinema tão original como esta
vagando pela estrada com uma câmera de 8mm em mãos. É estranho como tudo em que
a regra falta é como uma escrita automática. As novas e maiores erupções só podem vir
da fenda mais estreita e menos perceptível. Com uma simples baforada de seu cigarro
no declive do Vesúvio, a heroína desata uma abundante nuvem de fumaça - é assim que
Rossellini, mestre da magia, mais do que doma sua matéria. Ele conta com esta
cumplicidade como um músico tocando numa caverna usaria o eco a seu favor.

Confesso que enquanto assistia ao filme meus pensamentos se desligaram pra direções
distantes daqueles da própria trama, como alguém que vai ao cinema pra matar o tempo
entre compromissos e, com a mente mais em suas próprias preocupações do que
naquelas do filme, é surpreendido ao se pegar tentando olhar o horário num relógio que
um dos atores está usando. Este tipo de ilusão certamente não é aquela que um ator teria
orgulho em criar. Eu admito que fui mergulhado em todos os tipos de absurdos fluxos
de consciência: o modelo da jaqueta de George Sanders, quantos anos ele deve ter, o
quanto ele envelheceu desde Rebecca ou A Malvada, o estilo de cabelo de Ingrid
Bergman, pra não mencionar a forma dos crânios nas catacumbas ou os novos métodos
arqueológicos – algo que não seria permitido numa trama com o tempo mais sustentado.
Mas notei que até mesmo quando minha imaginação parecia vagar, de tempo em tempo
ela cruelmente me forçava de volta à própria matéria do filme. Neste filme em que tudo
parece acidental, tudo, até a mais maluca digressão mental, é parte essencial dele. Este
argumento não será levado além do necessário. Diante de um trabalho desta estatura
uma declaração de circunstâncias atenuantes é inapropriada.

Viagem à Itália é a história da separação de um casal e sua subseqüente reconciliação.


Um tema dramático dentro dos padrões, e também o tema de Aurora. Rossellini e
Murnau são os únicos cineastas que fizeram da Natureza o elemento ativo, o elemento
principal da história. Ambos, devido à sua rejeição da facilidade do estilo psicológico e
seu desprezo pela narração incompleta (understatement) ou pela alusão, tiveram o
extraordinário privilégio de nos conduzir para o interior da região mais secreta da alma.
Secreta? Deixem fazer-nos entender: não nas zonas problemáticas da libido, mas na
vasta e iluminada consciência. Por eles se recusarem a iluminar seus mecanismos
(mechanics of choice), ambos os filmes protegem sua liberdade tanto melhor. Assim a
alma nos é entregue em sua própria origem e não encontra objetivo mais digno que o
reconhecimento da ordem no mundo. Ambos os filmes são dramas com três
personagens de fato; o terceiro é Deus. Mas Deus não tem a mesma face em ambos. No
primeiro uma "harmonia pré-ordenada" governa de uma vez e ao mesmo tempo os
movimentos da alma e as vicissitudes do cosmo: a natureza e o coração do homem
batem com a mesma pulsação. O segundo vai além desta ordem – e sua magnificência
pode revelar-se igualmente - descobrindo aquela suprema desordem que é conhecida
como milagre.

Durante sua entrevista aos Cahiers no ano passado, Rossellini falou a respeito do "senso
de vida eterna" e da "presença do milagre" que foram revelados a ele no solo de
Nápoles. Essas duas frases são eloqüentes o suficientes em si mesmas e me eximirão de
um comentário mais longo. Do museu de Nápoles às catacumbas, da fonte de enxofre
do Vesúvio às ruínas de Pompéia, nós acompanhamos a heroína ao longo do caminho
espiritual que guia da superficialidade dos anciãos sobre a fragilidade do homem à idéia
Cristã de imortalidade. E se esse filme tem sucesso - logicamente, você pode dizer -
através de um milagre, é porque aquele milagre estava na ordem das coisas, a qual, no
fim, depende de um milagre. Tal filosofia é estranha à arte do nosso tempo. Os maiores
trabalhos - até aqueles mais tingidos com misticismo - parecem achar sua inspiração
numa idéia um tanto quanto oposta. Eles apresentam uma concepção do homem como
uma divindade - senão completamente Deus - que é uma enorme tentação para nosso
orgulho e que quase nos desfaleceu. Há preocupação sobre o desaparecimento da arte
sagrada: o que importa, se o cinema está tomando o lugar das catedrais! Eu irei além: o
que faz o Catolicismo tão maravilhoso é sua extrema abertura, seu poder infinito de
enriquecer-se. Não um templo tomado pela hera, mas um edifício cujas pedras
aumentam com o passar de cada século, enquanto sua unidade permanece inalterada. E
não só através de seus dogmas (estou pensando no recém-proclamado dogma da
concepção), mas de sua capacidade de se renovar na vida e na arte, ele cada vez mais
despreza o frágil suporte da filosofia natural. Pela graça de sua música talvez uma missa
de Bach possa nos encaminhar para mais perto de Deus do que a magnificência das
catedrais. É essa a tarefa do cinema, trazer para a arte aquilo que as grandes riquezas de
todo gênio humano ainda não souberam descobrir: a noção do milagre?
MAURICE SCHÉRER (Eric Rohmer)
Cahiers du Cinéma, 47, maio de 1955.
Traduzido de francês para inglês por Liz Heron. Traduzido de inglês para português por
Luan Gonsales.

A marca da maldade

Grilhões do passado e A marca da maldade constituem o ápice do barroco wellesiano. O


barroco, de que Borges deu uma definição breve e radical ( “eu chamaria barroca a
etapa final de toda arte, quando ela exibe e dilapida seus meios”), convém
maravilhosamente a Welles para a descrição de um mundo deteriorado, apodrecido, no
limiar do estágio último de sua decomposição, neste fim de segundo milênio. Aliás,
nenhuma das histórias contadas nestes filmes poderia se passar senão no século 20, em
um universo terrivelmente velho aos olhos de Welles, que sempre tentou criar e
encarnar personagens à imagem e à medida deste universo. Nesta empresa, sua
juventude o incomodou bastante, e eis uma das razões de seu gosto pelas maquiagens e
postiços, de que sempre usou e abusou. Se os que usa em Arkadin são quase tão
catastróficos quanto os de Cidadão Kane, em A marca da maldade ele nos dá uma
cativante composição de um destroço inchado e à deriva que nos faz completamente
esquecer que o ator à época tinha apenas quarenta e dois anos. Tecnicamente, os estilos
de Arkadin e Marca da maldade podem parecer opostos: montagem curta, chuva de
planos criando um ritmo esbaforido e rico em surpresas em um, planos sequência cuja
duração infla até se esvair em outro. No entanto, estes dois estilos chegam a um
resultado idêntico, o de delinear o retrato e o balanço de um mundo em agonia,, cujos
últimos sobressaltos são fixados com paixão pelo autor.

Aliás, Welles explicou que recorria aos planos curtos quando tinha pouco dinheiro, e
aos longos, aos planos seqüências, quando tinha um pouco mais. É preciso ficar bem
entendido, no entanto, que Welles utiliza o plano sequência numa ótica oposta a de um
Preminger, que através do plano quer fazer esquecer o découpage e a montagem, neste
sonho idealmente clássico de um filme que seria composto de um único plano. O plano
sequência de Welles se designa e se reivindica como tal em cada um de seus segundos.
É uma proeza, destinada a tirar o fôlego do espectador e a engendrar um suspense
interno que concerne menos à ação propriamente dita que ao virtuosismo do diretor. No
primeiro plano de Marca da maldade- trajeto do carro com a bomba( sem dúvida o mais
espantoso e significativo de toda a carreira de Welles)-, estes dois suspenses coexistem
e coincidem absolutamente. Quanto ao resto, ou seja, a fotografia violenta e contrastada
( Welles é o cineasta para quem o uso da cor é essencialmente alheio) o uso das curtas
focais e dos enquadramentos insólitos ( plongées e contra-plongées), os dois filmes são
idênticos e recriam este espaço crepuscular, percorrido por fantasmas expeditos , espaço
este que o cinéfilo mais debutante reconhece como inegavelmente wellesiano.

Os dois filmes, no plano do roteiro, são de um nível muito inferior, mas este é um
estímulo para que Welles se interesse mais pelos personagens que pela ação, e ainda
mais pela atmosfera que pelos personagens. Os temas da corrupção e do poder, da
memória inalterável e mortificante, da impossível mudança de identidade ( sublinhada
por esta profusão de máscaras e de lugares diferentes onde os personagens buscam de
forma vã se ocultar) ressurgem perpetuamente entre as linhas e as imagens. O roteiro de
Arkadin é ligeiramente superior ao de A marca da maldade, pois toma sua construção de
empréstimo de certos filmes noirs, cujo precursor foi Cidadão Kane, e também por não
conter nenhum maniqueísmo. Todos os personagens “estão no mesmo barco”, e
participam da universal corrupção do mundo. Já o roteiro de Marca da maldade é o mais
cheio de convenções, complacências e inverossimilhanças que já se viu num policial
depois da guerra. Pouco importa, pois permitiu a Welles encenar, uma última vez, em
todo seu esplendor minado “ de dentro”, o seu teatro de sombras e pesadelos.

Nota: Sem dúvida, é abusivo colocar Welles entre os grandes artistas deste primeiro
século de cinema. O tempo fará justiça a este erro, cometido ao lado de outros por
histórias do cinema que ainda tem muito a explorar em uma arte tão difícil ainda de
julgar, em vistas de sua novidade. Seria também injusto negar a Welles as qualidades
que lhe pertencem: as qualidades de um grande “pequeno mestre”, que soube persuadir
seus contemporâneos de que tinha gênio, as qualidades de um príncipe do artifício , ou
de um brilhante megalômano cuja megalomania tornou conhecido e superestimado para
além de toda medida e que foi, ao mesmo tempo, privado de realizar a obra abundante e
constante, secreta e definitiva, que outros em Hollywood pacientemente construíram no
ingrato conforto da obscuridade. Mas este não seria o destino e a última pirueta de
certos barrocos? Inspirar-nos o lamento, através da dilapidação de seus dons, pelas
obras sublimes que poderiam ter nos proporcionado?
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior

Festim diabólico

Primeiro filme de Hitchcock em cores, primeiro dos quatro rodados com James Stewart,
, primeiro onde o diretor aparece como produtor. Data importante na carreira de
Hitchcock, Festim diabólico é também um dos filmes mais sérios jamais filmados. É
baseado na fórmula que, durante mais de quarenta anos, vai seduzir os públicos do
mundo inteiro: um extremo formalismo posto a serviço de emoções elementares, de
temas universais, ligados em sua maioria à moral. Realizar um filme de um único plano
foi sempre o sonho- mais ou menos confesso e consciente- de um bom número de
diretores. De fato, este sonho corresponde à passagem ao limite de uma das duas
principais atitudes estéticas possíveis no cinema: dada a inevitável fragmentação da
criação cinematográfica, ou podemos acentuá-la e tomar como ponto de partida
pesquisas estéticas que valorizam a montagem e a multiplicação dos espaços, ou
podemos negar esta fragmentação ao forjar uma continuidade que absorva todos os
espaços em um único espaço, todos os planos em um único plano. O cinema da
fascinação ( Lang, Preminger, Siodmak, etc), cultivado nos anos 40 nos Estados Unidos,
vai levar esta tendência ao seu mais alto grau de refinamento, ao desenvolver o uso do
plano seqüência. E não é espantoso que Hitchcock, que considera cada filme como uma
desafio, um exercício de estilo, uma nova maneira de estarrecer o público, tenha tido
nesta época o desejo de estender as possibilidades do plano sequência à dimensão de um
filme inteiro. Pragmático, formalista, mas não esteta, Hitchcock vai levar a cabo este
desafio em primeiro lugar tomando-o ao pé da letra: um plano é um plano; portanto,
nada de mudança de local, portanto tempo contínuo, portanto nem um único raccord
visível ( o que vai implicar a utilização de astúcias e truques visuais , uma vez que,
tecnicamente, nenhum plano pode durar mais que dez minutos de projeção). O desafio
proposto nos leva assim ao teatro mais fechado e claustrofóbico, enquanto que, por
exemplo, no espírito de um Preminger , o sonho do filme em um único plano possui
algo de cósmico: trata-se de abater as muralhas em torno da realidade a fim de
apreendê-la em um único fluxo uniforme e em um espaço contínuo.

Curiosamente, em Festim diabólico, o “parti-pris”, a lógica do ponto de partida se


perdem no meio do caminho ou, se preferirem, se desvanecem em um harmonioso
compromisso. A razão estará em que a virtuosidade cansa facilmente o mestre do
suspense? Em todo caso, uma mudança de plano será absolutamente normal e visível, o
plano seguinte vai se efetuar sobre as costas de um personagem ( fusão sobre preto,
“fondu au noir” disfarçado), e o último “fondu au noir” vai se dar excepcionalmente
sobre a cobertura do baú.. Enquanto que um filme em média comporta entre duzentos e
seiscentos planos, Festim só tem onze ( respectivamente, o de 1’54, 9’36, 7’51, 7’18,
7’09, 9’57, 7’36, 7’47, ‘0’, 4’36, 5’39). As dez mudanças de planos se operam da
seguinte maneira: 1) mudança de plano correspondente a uma mudança de lugar ( é o
único do filme: passamos do exterior ao interior do apartamento); 2) sobre as costas de
John Dall; 3) normal; 4) sobre as costas de Douglas Dick; 5) normal; 6) sobre as costas
de John Dall; 7) normal; 8) sobre as costas de John Dall; 9) normal; 10) sobre a
cobertura do baú onde está o corpo.
Aliás, este filme que recusa a montagem é extremamente découpé e autoritário em sua
mobilidade e sua maneira de apreender o espaço. Aí também ele vai na contramão da
ótica do plano sequência segundo Preminger, que visa a fazer esquecer ao espectador a
existência da câmera. Aqui, a câmera permanece, do começo ao fim, muito presente:
ela, como sempre em Hitchcock, é o personagem principal da história, conduzindo, em
seu percurso, um espectador submisso e satisfeito. Encenado com deleite por Hitchcock,
este “huis-clos” onde a câmera circula no meio de compartimentos escamoteáveis e
móveis com rodilhas contém a mais bela “descoberta” da história do cinema ( maquete
de Nova York pouco a pouco tomada pela noite) e só visa a um único fim: acentuar de
forma surpreendente a tensão e o mal-estar suscitados pela intriga. Nenhum filme de
Hitchcock, tirando Psicose ( onde o mal-estar, a intervalos regulares, deságua no terror),
engendrou uma atmosfera tão irrespirável. A abjeção dos dois assassinos é elevada a um
outro nível, em face da mediocridade dos outros personagens ( notemos que Hitchcock
evitou colocar em suas bocas o menor diálogo brilhante). O próprio pai, posto por
Hitchcock à parte da mediocridade ambiente, participa do mal-estar geral enquanto
vítima pateticamente impotente- depois, é claro, do próprio morto- deste absurdo
holocausto. Quanto ao personagem de Stewart ( o professor), ele é aos olhos do diretor
o mais culpado de todos. Neste sentido, Festim diabólico é um filme relativamente
excepcional na obra de Hitchcock: o espectador não pode se identificar a nenhum dos
personagens, a não ser talvez ao morto no baú, que espera ( ?) que seus assassinos sejam
reconhecidos e julgados. Festim ocupa um lugar central no seio do edifício
hitchcockiano , uma vez que consolida justamente a moral tradicional- universalista em
seu princípio- do autor e elimina como monstruosa toda tentativa de uma moral
individualista, elitista, que daria a um único ser ou a uma única categoria de seres um
lugar à parte na sociedade. O filme sublinha também a responsabilidade do intelectual,
cujas palavras, escritos, teorias, paradoxos devem ser considerados, tanto pelo autor
como pelos outros, com tanta seriedade quanto se constituíssem atos. Vejamos que o
filme não brinca em serviço. Outro aspecto do segredo de Hitchcock: ninguém antes
dele ousou ser tão grave, sabendo permanecer extremamente divertido.

Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior

Alexander Névski

Como O Encouraçado Potenkim, trata-se aqui também de uma encomenda


( pessoalmente mantida por Stalin) que Eisenstein realiza. Os fins do filme são
patrióticos e realizados com vistas a um futuro imediato. Não se trata mais de exprimir a
ideologia marxista, mas de ilustrar uma propaganda nacionalista, e isto a tal ponto que
Brasillach e Bardèche puderam apreciar no Névski “ o mais comovente dos filmes
fascistas”. Efetivamente, Eisenstein emprega a figura da “metáfora histórica desviada”,
utilizada com frequência na época no cinema fascista italiano e no cinema nazista. Com
a ideologia marxista desapareciam também em Eisenstein os parti-pris formais que ele
engendrou e a criatividade que estes tinham trazido para A greve e Encouraçado
Potenkim. Aqui, o formalismo eisensteiniano se limita a construir para o herói
Alexandre uma estátua decorativa, mas se mostra mais feliz quando se presta a
pesquisas plásticas e estetizantes no célebre “morceau de bravoure” da batalha sobre o
lago.
O cinema falado não trouxe nada para Eisenstein. Este não possui nenhum sentido do
diálogo dramático, e as discussões entre personagens filmadas em planos aproximados
demonstram um crasso academicismo; cada ator declama seu texto como um folheto
verbal. O esforço de caracterização dos dois amantes de Olga é extremamente
desajeitado, assim como as cenas do epílogo, após o combate. Este filme de 1938
poderia ser de 1932 ou 1933. O cinema falado só interessa a Eisenstein enquanto
sonoro, e permite anexar às imagens o contraponto da admirável música de Prokofiev e
dos coros cantados em off. No que se refere ao combate do lago, esta longa sequência
de trinta minutos, a única que merece atenção no filme, vale sobretudo por seus planos
gerais. Sua beleza plástica é devida aos capacetes e armaduras dos cavaleiros, aos
movimentos da multidão quando esta é reduzida a colisões pictoriais de volumes,
massas e linhas. Os planos aproximados, mostrando soldados russos que proferem uma
ou duas frases enquanto combatem os adversários, se integram mal ao conjunto e são
frequentemente catastróficos. A idéia do lago que se fende, espetacular em seu
princípio, só se mostra enquanto tal na tela em um único plano, extremamente elíptico:
o plano do cavaleiro parcialmente afundado no lago, cuja túnica acaba por ser tragada
pelas águas. ( É verdade que a seqüência do lago foi rodada em julho, em terra firme).

Neste filme ilegítimo e desigual, que o próprio diretor julgou a mais superficial e menos
pessoal de suas obras, Eisenstein está à vontade com as armaduras, os capacetes, a
estratégia abstrata do combate, as massas brancas do lago e do céu, os cavalos, a
natureza. Mas ele não sabe o que fazer dos homens. Eles só aparecem no prólogo e no
epílogo ( que mesmo assim ocupam dois terços da duração do filme), para destilar a
mensagem patriótica e nacionalista. Eisenstein, em Alexander Névski, ainda não
aprendeu a integrar o homem em seu formalismo, agora que este formalismo suplantou
em sua obra a ideologia. Para tanto, lhe seriam necessários ainda as duas épocas, os
tormentos e a maldição de Ivan, o Terrível.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Vittorio Cottafavi: entrevista com Michel Mourlet e Paul Agde . Présence


du Cinema número 9, dezembro 1961

Como você chegou à mise en scéne de cinema?

Comecei a me interessar sobretudo pela música, mas como não tinha nenhuma aptidão
para música, passei à literatura. Escrevi dois ou três contos quando jovem, mas não
tinha nenhuma vocação pra literatura. Assim, fracassei também na literatura. Me
cansava muito, a página em branco me dava pesadelos. Então, pensei em fazer pintura.
Não tinha nenhum sentido das cores, e também fracassei na pintura. Fracassando em
uma, fracassando em outra, cheguei ao cinema. Talvez eu também tenha fracassado na
mise en scéne, mas enquanto isso persisto nessa linha.

A primeira vez que pensei em fazer filmes, foi por paixão esportiva. Fiz em minha
juventude muita escalação de montanha. Com 28 anos, era uma jovem promessa do
alpinismo. Escalava com um guia famoso de montanha, Emilio Comici, que
infelizmente morreu num acidente na montanha em 1940. Enfim, eu era uma promessa
que não vingou, porque à uma certa altura da minha vida fiquei com medo. Nesta época,
eu fazia muitas fotos, e era muito hábil em tirá-las com uma iluminação que sugeria
uma certa obsessão da vertical, propícia à expressão dos corpos nos rochedos. Emilio
Comici me pedia sempre fotos, pois em suas conferências ele fazia projeções para
ilustrar suas explicações técnicas. E comecei a me interessar pelo documentário em 16
mm. Estudei a montagem, comecei a descobrir certas leis, a repetição por exemplo, e
que se você repetia três vezes o mesmo movimento, este tornava-se obsessivo. E meu
amigo me dizia: “Mas não, não é preciso montar, trata-se de um documentário, não de
um filme”. Assim, descobri algumas pequenas coisas que começaram a me interessar
como possibilidades. E tive ocasião de ver filmes franceses de vanguarda na época,
como Entr’act e Sangue de um poeta.

No entanto, nunca fiz um filme sobre a montanha. Há uma história que amaria filmar,
foi a primeira coisa na qual pensei quando tive a possibilidade de começar a dirigir: um
romance de Ramuz que acho extraordinário e que se chama O grande medo na
montanha. Justamente, nesta montanha, há o sentimento do pânico, a morte. Os
produtores acharam que não era comercial. No entanto, não perdi toda esperança de
realizar este filme no futuro.

Depois deste primeiro contato com a câmera, tomei mais interesse pelos filmes e passei
a vê-los de um ponto de vista totalmente diferente. Interessava-me muito menos pela
história que pelos seus sentimentos secretos, a composição da imagem e a ligação dos
planos, os movimentos de câmera, os problemas de iluminação.

Você deixa espaço para a improvisação ao rodar seus filmes?

O espírito de improvisação, de que Rossellini é mestre em seus filmes, nos obriga


sempre a fazer o filme em cima do découpage menos completo possível, menos
maturado possível, a fim de dar ao imprevisto mais possibilidades. Quanto mais
experiência adquiro, mais compreendo que é perigoso, e que é preciso, ao contrário, ser
de antemão bem exato em cada ponto, com exceção da disposição dos planos. O que eu
jamais entendo é quando leio num découpage “traveling”, ou close, ou plano geral.
Estas subdivisões, nunca devemos prestar atenção a elas, pois atrapalham: é a própria
cena que deve sugerir o movimento a ser feito. Nunca devemos chegar ao local de
filmagem já “ domados”, com tudo o que devemos fazer na cabeça. É preciso estar com
a cabeça completamente livre, e começamos a visar o primeiro ponto de vista que,
segundo sugerido pelo texto, pode ser o décor, o conjunto, um detalhe, um movimento,
etc, a não ser no caso de certas cenas que nascem à medida em que trabalhamos o
découpage, como se justamente estivéssemos prestes a filmá-las. Isso aconteceu em
particular com diversas cenas de Fille d’amour. Se dispusermos os planos na mesa de
trabalho, literariamente, torna-se forçado, falso, convencional, enfim. Chegamos ao
cenário, começamos pelo começo - é um erro começar pelo começo, não? - e visamos o
primeiro ponto de vista, executamos o primeiro movimento; a partir do primeiro, o
segundo torna-se quase uma necessidade, ou seja, temos um ritmo de imagens, um
ritmo teórico que não corresponde ao ritmo nascido da realidade concreta da filmagem.
Entra aqui a questão da composição e da decomposição das imagens, que é o ponto de
vista, digamos, do espaço-tempo.
Em um quadro, o pintor nos proporciona o movimento como na montagem, ou seja, o
olho pousa sobre uma coisa antes das outras: o pintor nos deu um ponto de vista, uma
luz particular das coisas, que nos afeta em primeiro lugar. Depois o olho transita e vê
outra coisa. Ou então o pintor nos dá uma totalidade, o olho agarra esta totalidade,
depois viaja e vê os detalhes. É a montagem do pintor, e este movimento sugere uma
direção que confere ao quadro uma amplidão que ultrapassa até mesmo seus limites
materiais. O cinema, ao contrário, não deve convidar o olho a determinar o plano - já
que é o próprio cinema quem se encarrega disso. É preciso que este o faça portanto com
uma tal exatidão que o olho encontre precisamente o que espera ver. O plano é ruim,
segundo penso, quando o olho busca alguma coisa, busca o detalhe quando lhe dão o
total, ou então busca o total quando lhe dão o detalhe. As boas tomadas são aquelas em
que, no movimento, na ação, ou mesmo na intensidade expressiva dos olhos, nos
sugerem a passagem ao plano seguinte. Isto é muito difícil de pré-organizar no papel, o
découpage deve dar a construção fictícia, o projeto. Se é verdade que o cinema é uma
expressão, uma linguagem, digamos que é a idéia de fazer uma certa linguagem, o
cinema não é a própria linguagem. Quando se publica o découpage de um filme, seria
preciso dizer “o découpage tirado de tal filme”. Me incomoda sempre que os editores
não publiquem o découpage de antes do filme e o découpage de depois. Ver-se-ia que,
na maioria dos diretores, dos bons diretores, há muitas mudanças entre o que haviam
previsto e o que fizeram no filme. E queria poder contar quantas vezes se colocou: “ O
ator sorri, contente” e se depois, se filmou o mesmo ator com lágrimas nos olhos. Isso
acontece porque, enquanto filmamos, vemos que uma expressão, uma posição de
cabeça, um sentimento não se assemelham, na vida verdadeira do filme - que nunca é a
verdadeira vida, mas uma abstração, uma transformação - não se assemelham ao que
havíamos escrito. É por isso que penso que, para um diretor, ter tudo pré-ordenado,
certamente dá uma segurança, mas não o frisson que devemos sempre experimentar
enquanto estamos realizando essas coisas, o frisson da descoberta. Para dar um
exemplo, direi: uma árvore é sempre uma árvore; mas se, enquanto coloco a câmera em
seu lugar, eu procuro “capturar” esta árvore, eu a descubro pela primeira vez. Digo para
mim mesmo: “Oh, eis uma árvore”. Neste momento eu encontraria o lugar exato da
câmera, a luz exata, eu lhe daria sua essência de árvore, sua força expressiva de árvore,
enquanto que se eu estivesse com o espírito prevenido a respeito da árvore, esta seria
uma árvore como qualquer outra. Não se pode falar em improvisação em tudo isso, é
melhor falar em descoberta.

É um tema que me afeta muito, a morte, em todos os seus graus, pois todos os dramas
da vida são degraus para alcançar a grande morte final. E a morte, todos a conhecem,
todos a viram, mas a cada vez que vou filmá-la, busco descobri-la. É por isso que acho
que fiz bem. Na Fille d’amour, a morte da moça, é uma descoberta da morte. A moça
não está lá, ela já está no caixão(estão prestes a fechá-lo), os outros estão se lixando, só
querem mesmo é fechar o caixão. Todo mundo viu isso, teve um amigo próximo que
morreu, e a quem fecharam o caixão. À cada vez a morte deve ser descoberta segundo o
caráter, a linha geral do que estamos em via de buscar. No Legiões de Cleópatra, eu
buscava visar uma morte sob o ponto de vista histórico, ou seja, uma sinfonia de cores
que dá conta também de uma presença metafísica da morte: a morte de um grande
personagem deve ser a morte de todo grande personagem. Isto me sugeriu a idéia da
cor, da posição, no momento em que ia filmar. Estava prestes a situar o morto, na hora
eu me disse: “Não, não é isso”; eu o mudei de posição, pensei no manto vermelho, que
pousei sobre ele; depois coloquei o amigo do morto com este encarnado, do outro lado.
Enfim, eu construí esta morte pedaço por pedaço, a fim de descobrir a morte do grande
personagem histórico.
Augusto chega diante do corpo de Antonio e se dá conta de que não se trata do
suicídio de um desesperado, mas uma morte gloriosa, a realização de uma vida.
Neste momento, ele compreende a grandeza de Antonio.
Não sei se consegui exprimir tudo que queria nesta cena, mas queria dar a idéia que em
Augusto, neste instante, havia três sentimentos; e isto deveria ser mostrado apenas pela
atitude, pois não se poderia fazer um close de Augusto, que não teria significado nada
numa cena onde se deve respirar o cenário de um só fôlego. Logo, em suas atitudes,
gestos e poses, eu queria exprimir três coisas: o ódio que ele sentia por seu adversário, a
admiração e o sentimento romano, ou seja, a satisfação em que um Romano tenha
morrido como um grande Romano. E estes três sentimentos devem ser dados pelo que
ele mostra em relação à morte, sua curta estacada, sua maneira de voltar a cabeça para
Antonio, sem nenhum signo de respeito ou saudação, mas apenas contemplando-o com
um certo orgulho, depois se deslocar pela escadaria, afastando-se do corpo. Não sei até
que ponto meu propósito foi atingido pois, como sempre em um filme, os sentimentos
secretos que devemos comunicar ao público não devem chegar até ele com a clareza da
explicação, mas de alguma forma no inconsciente. Depois disso, podemos dizer ao
público: “Escute, isto quer dizer isso e isso e isso”. Se este responde: “Ah, é verdade,
não tinha pensado nisso”, conseguimos um sucesso no nível da comunicação fílmica. O
público pode descobrir o sentimento, se o examina, se discute.
Se trata-se de um sentimento secreto e que precisamente você o mostra com
clareza, você só pode mostrá-lo em segredo, ou seja, obrigar o público a descobri-
lo.
Ah, sim, tenho horror de ser muito explicativo. Em A Verdade do Clouzot, há um pouco
de verdade demais. Clouzot, como Cayatte, explica muito muitas coisas. Ele não dá
jamais o puro sentimento. Um sentimento explicado torna-se impuro. A câmera possui
um poder extraordinário, incrível, de ver dentro das coisas. Não é preciso exteriorizar.
Me dá um pouco vontade de rir disso. Eu faço filmes de capa e espada, de aventuras,
mas o que busco também através deste gênero de filmes, é captar algumas pequenas
verdades interiores, dentro, para sugeri-las ao público, não fazer declarações de
princípio. Arrisca-se sempre nos filmes de passar da expressão artística para a expressão
política - esta talvez seja a melhor forma de dizer. Na política, não se faz jamais
sentimento, faz-se política. Em relação aos filmes, devemos nos manter no estado de
alma que convém, o sentimento se cria sem que haja necessidade de explicá-lo em
termos lógicos.
Poderia nos precisar o sentido de sua mise en scéne, quando esta se conforma a um
esquema geométrico determinado, precisamente idêntico na maioria de seus filmes
em certos momentos?
Você disse muito bem: geométrico. Há cenas onde esta geometria é de tal forma
declarada que talvez incomode o espectador. Assim, na Fiamma che non si spegne, toda
a cerimônia durante a qual vão fuzilar o homem é construída segundo uma forma
geométrica quase maníaca, composta de volumes e sublinhada por travellings,
geometria de linhas longitudinais e transversais que pode aparecer a muitos como um
formalismo. Assim como, nas Legiões de Cleópatra, a batalha tende a se tornar, em
certos momentos, um ballet. Posso dificilmente explicar o que tento exprimir, pois isso
nasce de uma profunda necessidade do meu espírito. Existem situações para as quais
sinto a necessidade de orientar a totalidade dos eventos segundo uma certa construção
na imagem.
Não se trata então do desejo de dominar totalmente o mundo em um certo
momento?
Sim, de fazê-lo destilar um certo som. Para ser claro, eu direi: amo Bach demais para
não tentar emulá-lo em um filme. A cena da execução na Fiamma é um pouco à maneira
de Bach, ou seja, construída com sons verticais e horizontais. A forma desta cena
nasceu da necessidade de dar uma ordenação às coisas materiais, a fim de que sejam
liberadas certas coisas do espírito.
Trata-se muito exatamente de uma liturgia.
Um homem vai ser morto com todo um cerimonial. O que devemos fazer? Liturgia. As
ordens dadas pelo chefe do pelotão, ele as dita como se dissesse uma missa, pois o
milagre está prestes a se realizar. O corpo vai tombar sobre a terra, a alma se libertará.
Alguma coisa vai acontecer. É uma outra possibilidade de ver a morte. Eu poderia dizer
o mesmo da multidão. A multidão me dá sempre pesadelos, como se fosse algo de
inumano. Então, procuro dar-lhe duas direções em diagonais, já que tal composição a
torna para mim um pouco mais humana. A desordem ordenada. Penso que o homem
está à procura de uma ordem. Eis o motivo, aliás, porque nas ciências ele consegue
paralisar numa ordem a desordem da criação.
Esta liturgia em forma geométrica é também o próprio movimento da tragédia, ou
seja, ela instaura uma ordem inelutável, uma engrenagem que não se pode fazer
parar.
Sim. Uma vez no interior desta ordem, impossível dela sair. Se começamos com este
princípio de geometria, devemos ir até o fim, nos liberar. O milagre deve acontecer,
quer seja o milagre do sentimento, da morte ou da vida. Chegado a este termo, posso
abandonar a liturgia, retomar uma desordem indolente na situação dos personagens. Eu
cheguei ao limite de um certo jogo de linguagem.
Não há um perigo nesta ordenação dos eventos, o da teatralidade?
Não se pode fazer comparação entre cinema e teatro pois, no cinema, a geometria é
rítmica: em suma, é uma geometria de movimentos de câmera e uma geometria de
movimentos de atores na câmera. É uma geometria de montagem. O próprio som, o
jogo do som, o fato deste se distanciar e se aproximar. Tudo se torna geometria.
Enquanto que, no teatro, a geometria é puramente formal, apenas uma composição nos
limites do quadro. Não é uma geometria criativa. No entanto, sim, há um perigo aí...
Nos Nibelungos, Fritz Lang fez geometria, mas um pouco decorativa e superficial. No
entanto, quando vi esse filme, eu era muito jovem, jamais o esqueci. Mesmo em sua
exterioridade, ele me trouxe algo que ficou na minha memória: as escadarias, a dama de
branco, a dama de negro, com sua seqüência , preto de um lado, branco de outro. Tudo
isso, que foi construído um pouco teatralmente, possuía uma presença na tela muito
expressiva, carregada de significados. Quando Lang fez esse filme, não era ainda o
grande Fritz Lang que é hoje. Mas já víamos a busca de uma solução formal do
problema dos sentimentos. Era um pouco infantil vestir Brunehilde de negro e
Krimhilde de branco, isto era do teatro expressionista, mas no entanto dava uma
“direção”. Assim como no Gabinete do doutor Caligari. Estas experiências me
interessaram por um certo momento, eu buscava saber o que poderia tirar daí.
Você, de alguma forma, prolongou estas pesquisas, interiorizando-as...
Sim, você disse bem: “interiorizando”. Eu falava há pouco do poder da câmera. Eu diria
melhor: “da inteligência da câmera”. Nos acreditávamos mestres da coisa, depois nós
percebemos que ela trabalhou por conta própria. Ela viu por si mesma, tem um poder
próprio: eu creio ter captado a expressão de um ator, vejo os rushes; flagramos uma
outra expressão. O que aconteceu? Foi a câmera que mudou, que escolheu. Por isso é
preciso conhecê-la bem. É preciso estar em boas relações com ela, com amizade, porque
senão ela lhe prega uma peça.

Esta faculdade de “penetrar na interioridade” com a câmera, nenhum outro meio


artísticos a possui. O pintor nos dá a interioridade pela potência de suas pinceladas. Um
quadro abstrato pode exprimir uma interioridade extrema. Eu penso até que se pode
chegar à interioridade na pintura muito mais pelo não-figurativo que pelo figurativo.
Enquanto que, no cinema, trabalha-se sobre o concreto. Uma imagem abstrata na tela
perturba, constitui algo de incompreensível. Ao contrário, o caráter concreto da câmera
permite um travelling espiritual que ultrapassa a forma do rosto para entrar no
sentimento. Mas para fazê-lo é preciso antes de tudo renunciar ao que, designando o
personagem, nos separa dele. As palavras, os diálogos são inimigos que é preciso abater
para penetrar na interioridade da consciência, do espírito, do sofrimento. Quando se
ultrapassa um certo nível de sentimento, quando este sentimento deve invadir a
interioridade do espectador, ele deve invadir ao mesmo tempo em que penetra na
intimidade do personagem. As palavras criam uma distância, uma situação sujeito-
objeto. Enquanto que os silêncios já estabelecem uma identificação. E o silêncio vai se
prolongar, até o momento em que não mais será silêncio, ou seja, em que o espectador
não estará mais em situação de dizer: “ O personagem não fala mais”. Neste momento,
ele pode começar a se identificar. Não é fácil determinar a duração do silêncio
necessário para atingirmos este ponto, pois, infelizmente, poucos espectadores possuem
a mesma receptividade. Não é bom portanto prolongá-lo de tal forma que os mais
receptivos se cansem de esperar, e também não reduzi-lo de tal maneira que ele não
atinja consciência da maioria dos espectadores. Esta experiência eu realizei com Fille
d’amour, onde as melhores seqüências são completamente mudas.
O senhor chegou a este paradoxo de que, desde a invenção do cinema falado, os
melhores filmes são mudos?
É verdade! Mas acreditem-me, enquanto os filmes mudos obrigavam a achar
equivalentes à palavra e ao som, hoje não somos mais escravos das palavras. Uma vez
que os filmes são falados, e que se disse tantas palavras, estamos livres para nos
calarmos. Com a invenção do som, colocamos o som num saco. Na Fiamma, quando as
pessoas correm em direção ao lugar onde vão fuzilar o homem, e em toda a cena da
execução, com os preparativos, não são palavras que ouvimos, mas sons. As ordens
dadas aos soldados, as traduções do intérprete, sons que não somos obrigados a
compreender, de seguir como um texto, porque são, de alguma maneira, ruídos da
natureza. O anúncio da morte à mulher, na primeira parte, é igualmente um trecho
totalmente mudo. Nesta última cena, aliás, a importância do silêncio é ainda mais clara.
O homem que traz uma carta de seu marido pergunta: “Boas notícias, Madame?”. Ela
começa a ler e responde: “Sim, sim, boas notícias!”, depois corre pra casa relendo a
carta e grita: “Papa, Giuseppe escreveu!”. E ela entra e vê o rosto onde a infelicidade se
inscreve. Deste momento, não se fala mais até o fim da primeira parte, quando a criança
se põe a chorar.
Da mesma forma na Fille d’amour, há quatro sequências inteiramente mudas. A dos
vagões-leito, muito longa e plena de emoção, onde assistimos a invasão pelo desespero
da mulher que se sacrificou. Mas ela não pode levar seu sacrifício até o fim, porque nela
algo se quebrou. Até o homem compreende isso, e que ele não pode fazer mais nada. Só
sentimos esta espera por um fim qualquer. Há a cena da tuberculose, há uma das últimas
cenas , quando ele descobre que ela está morta, e há a cena onde o jovem, , no bar, ouve
dizer que a moça está em Milão; no entanto, ela havia lhe dito que ia voltar pra casa da
família. Ele compreende que o industrial, que estava em viagem durante o tempo de
seus amores, estava de volta a Milão. Então, ele salta em seu carrinho, e pára diante da
“villa”, onde já se encontra o carro do industrial. As ligações sexuais do velho com a
moça se passam nos olhos, sobre o rosto do jovem que, do lado de fora da villa, espera
para ver quem sairá da casa e saltará no carro. Há, interposto àquela que se vê de longe,
o chofer que marcha ao longo da entrada, há esta atmosfera de espera , depois a porta se
abre e ele vê o homem sair. É uma longa sequência onde o sentimento mudo torna-se
claríssimo. Expor a situação pelos diálogos neste momento não é mais necessário. É
necessário apenas abandonar o espaço à invasão de sentimentos secretos que se deve
exprimir. O que eu chamaria interiorização. Neste sentido, espero fazer um filme onde
os problemas de interiorização possam ser facilmente transmitidos ao público, é uma
adaptação de Bernanos: Um crime. Há dentro da história uma sólida construção policial.
Mas nesta construção policial, há a relação do homem com o crime, do homem com a
justiça, do homem com os outros homens e do homem com Deus. Acho que podemos
fazer um drama que seja bem acolhido pelo público, e ao mesmo tempo dar a este a
possibilidade de penetrar na interioridade de uma consciência, de participar de um
drama, mas... dramaticamente, com uma participação concreta, resultado buscado toda
vez que fazemos um filme.
Esta questão do cenário nos leva à questão do Cinemascope.
O Cinemascope, no início, pensei que fosse mais uma loucura da indústria.. Não tinha
ainda compreendido suas possibilidades. Achava que ele suprimia os movimentos da
câmera, rompia um certo ritmo, enfraquecia a montagem. Era talvez simplesmente,
como sempre ocorre diante de um aperfeiçoamento técnico no domínio das artes,
timidez em relação à nova máquina que haviam inventado. Em pouco tempo, vi que o
público tinha se adaptado à imensidão da imagem. Seus olhos já se fixavam no ponto
focal que nos interessava (...).
O que ainda não se resolveu, foi a composição da imagem. O ideal seria dispor da
possibilidade de mudança das imagens. Ora de se servir do formato normal, ora dum
cinemascópio vertical, ou horizontal. Mas apesar do respeito que tenho por Abel Gance,
seria mais uma atração de circo que expressão artística. Então, pode-se resolver o
problema cortando a imagem do interior. Ou seja, dizendo de forma mais geral,
trabalhando sobre a imagem. Por exemplo, se existem muitas coisas à direita e à
esquerda, reduzimos sua importância, restringimos a imagem ao seu centro de interesse.
Diziam sempre: “No Cinemascope, precisamos estar distante dos atores”. É uma idéia
absurda. É preciso estar perto dos atores. Podemos colocá-los a 60 centímetros da
câmera, se estas assim o permitirem. Podemos muito bem valorizar um detalhe, à
condição de que o resto da imagem não tenha nenhuma importância. É preciso fazer
aquilo de que falamos sempre, a montagem interior da própria imagem.
A vantagem do Scope eu encontrei num filme que estou prestes a rodar (Hércules na
conquista da Atlântida), e que é em technirama, ou seja, um cinemascope um pouco
mais aperfeiçoado, mais alargado, com uma aparelhagem um pouco mais pesada
(mamute) que as outras, portanto um pouco mais difícil de mover. Mas à parte este
excesso de peso, a vantagem de tal formato é que ele corresponde a uma atmosfera. O
movimento horizontal, que é a dinâmica deste gênero de aventuras (um homem bem
forte, de costas muito largas) corresponde à largura da tela. O movimento segundo
linhas geométricas é reforçado, pois as diagonais do cinemascope são prolongadas e
menos verticais que no formato normal. Pode-se jogar muito mais com seu
entrecruzamento, portanto. O cinemascope hoje, segundo penso, é um meio de
“escrever cinema”. Há filmes que devem ser feitos em Scope. (...)
Entre os filmes que adoraria fazer hoje, faria em technirama A vida é um sonho, e em
cinemascope preto e branco um outro filme, baseado num romance de Dinu Buzzatti,
chamado O deserto dos tártaros. (...) é um romance estranho, que se passa numa
fortaleza militar, na montanha. Este filme, eu o faria em Scope preto e branco porque
sinto que o sentido e o cenário exigem a amplidão da imagem, e estou certo de que, no
seio desta amplidão, podemos penetrar nas consciências e arrancar-lhes o segredo dos
sentimentos. Mas no que se refere a um filme de hoje, o filme de nossos sentimentos
cotidianos, as proporções do cinemascope não correspondem às proporções de nossa
vida. Nossa vida cotidiana não se faz em cinemascope, mas em formato normal.
O cinemascope não está exatamente à medida do humano , no sentido em que Le
Corbusier , por exemplo, constrói suas casas segundo certas proporções do homem
com o braço estendido.
É justamente por isso que eu digo: é um formato poético. Um formato feito para conter
certas fábulas, certas histórias que são próximas do homem, mas de forma alguma “no
homem”; se quisermos fazer um filme “no homem”, eu lhes digo francamente, é preciso
tomar as proporções pitagóricas do formato normal.
Há uma constante na maioria de seus filmes, a presença do sofrimento físico. O ser
humano é como que aprisionado no mundo, e se debate em sua dor.
(...) Eu diria de uma forma geral que considero, do ponto de vista dramático, duas coisas
na vida humana. Uma é o fracasso. Somos compostos de uma parte que é o espírito, a
alma, que possui o desejo de se exprimir, no amor, no ódio; é o sentimento mais belo e
o pior, é o espírito em todas as suas possibilidades, que deseja se comunicar com os
outros, participar, se identificar. Mas o veículo deste espírito é o corpo, com seus
defeitos, limites e sofrimentos. E os limites do corpo aprisionam a alma nos olhos, no
rosto, na pele, nos nervos que se crispam. É portanto uma forma de expressão que
convém ao cinema enquanto arte.
Uma tragédia psíquica.
É isso. O fracasso contínuo do espírito que não consegue se libertar, que participa do
sofrimento do corpo e lhe inflige sofrimento. Quantos sofrimentos de nosso corpo
nascem da alma!, muito mais que o inverso.
O sofrimento me interessa mais que a alegria. A alegria, eu a vejo como uma força feita
para penetrar a dor; o gozo, como estes sons em fuga vertical que se assentam sobre um
substrato horizontal, é sustentado pelo sofrimento precisamente. Eu peço que me
perdoem por citar tanto Bach, mas acho que Bach nos deu algo que ainda não
conseguimos exprimir com o cinema. É por isso que eu o tomo como exemplo a seguir.

O segundo aspecto do drama humano, é a impossibilidade de se identificar. O que é o


amor? Falo um pouco como existencialista, mas são termos que correspondem hoje ao
nosso sentimento da vida. O amor é o desejo de se identificar com o ser amado. Esta
possibilidade de identificação é como sempre destinada ao fracasso, uma vez que os
corpos são obstáculo a isso. Beijar uma mulher, o que isso significa? Uma tentativa
física de se identificar, de tomar parte, de entrar. O ponto perfeito do amor é o momento
em que homem e mulher buscam se dar um ao outro, se anular um no outro. Esta
tentativa é um fracasso, e um fracasso dramático. É por isso que, nas histórias de amor,
o que me interessa é a força do amor e a impossibilidade de atingir seu ponto de
perfeição; isto deve explodir em um drama.
Em todos os seus filmes há uma certa crueldade, uma certa tendência a torturar as
mulheres; como devemos interpretar isso, em relação ao que você dizia do
sofrimento físico e do amor?
O ser humano é como um vaso, dentro do qual a alma é como um líquido. O vaso é
construído de uma maneira diferente, em se tratando do homem ou da mulher. E acho
que o vaso-mulher contém muito mais possibilidades de desespero e de sofrimento, de
possibilidades de doação que o homem. O homem está mais colocado sobre o espírito
que sobre o sentimento, sobre o sofrimento moral mais que o físico. Talvez, pelo
espírito, se posicione ele um pouco mais alto que a mulher, mas pelo sentimento ele se
coloca muito mais embaixo. No cinema, busco sobretudo o sentimento.Eis a razão pela
qual me interesso muito mais pela mulher que pelo homem. Não é preciso dizer que no
homem também existe um lado feminino, mesmo no homem mais brutal. Não é questão
de sexo mas de dosagem de personalidade. Naturalmente, é o lado do homem que me
interessa mais.
Quanto ao erotismo, é um aspecto exterior do sentimento, um momento do sentimento
que se extingue muito rapidamente. Um acidente do sentimento. Eu me interesso pelos
limites do sentimento, não pelo “além” dos sentimentos. Portanto, não creio que faria
um filme “erótico”. Um filme de sentimento onde houvesse o momento erótico, sim.
Mas como momento exato do sentimento, e não em si mesmo.
Em seus filmes, a presença física e moral das crianças é com frequência definida de
uma forma bem precisa; isto não ocorre em muitos cineastas.
Na criança, o que eu acho extraordinário, é a presença parcial do homem. O homem está
prestes a se fazer, se construir. O problema desta construção, que cada dia faz progredir,
que começa a participar de certas coisas e se recusa a outras, é muito importante.
Infelizmente, no cinema, precisamos fazer as crianças com crianças. Não se pode fazer,
como em literatura, crianças com palavras; ou na música, com sons.
(Vocês se lembram de Pedro e o Lobo, de Prokofiev). E este é um problema quase
insolúvel, pois a criança que interpreta um papel, interpreta mal. Pode-se tirar
instantâneos das crianças, não se pode fazer um filme inteiro com elas. Há um grande
mestre de crianças na Itália, é De Sica. Ele nos deu as crianças mais verdadeiras, mais
representativas do homem em seu berço. Vi muitas vezes Ladrões de bicicleta pela
criança. É um exemplo perfeito de uma criança que atinge uma certa verdade da vida,
ao descobrir o sofrimento, a humilhação.
Adoraríamos falar dos personagens de crianças em seus filmes.
Acho que eles ainda são muito artificiais, falsos. Falsos porque são históricos. A criança
é o personagem menos histórico possível. Podemos fazer reis, rainhas, soldados
bárbaros com muita verossimilhança (verdade). O que é dado de forma falsa , pode-se
torná-lo verdadeiro nos limites da própria história, por meio de uma certa pesquisa da
construção do personagem e do jogo dos atores, e a isso a criança escapa. A criança,
mesmo em roupa de época, permanece uma criança, não adere a este gênero de história.
Eu acredito nas crianças da vida de todos os dias. As crianças de hoje. Com eles,
podemos, numa certa medida, chegar à verdade. É preciso muita paciência e
experiência.
Entre a criança e o homem, se situa a puberdade. O problema é evocado na Fiamma che
non si spegne, mas se trata de uma puberdade feliz, inconsciente. Eu a quis inconsciente
porque é a história de um homem que executa o que se chama um “salto qualitativo”.
Isto quer dizer que em um homem, em certo momento, a continuidade não é mais
respeitada. Há uma ruptura e um impulso para frente. Então, eu queria que tudo o que
precedesse esse “impulso para frente” (situado nos sessenta últimos metros do filme)
fosse simples, feliz, quase banal. A puberdade do rapaz deveria ser extremamente
cândida. O amor e a aproximação da mulher deveriam levá-lo um pouco a rir, a brincar,
como o cachorrinho que anda mal com suas pequenas patas. Inábil, enfim, com a
mulher, assim como é inábil durante a guerra e em tudo o que ele faz no seminário. Eu o
quis desajeitado porque ele deve chegar a dar este “salto”, que no homem religioso
constitui o dom do céu, a santidade, com muita humildade.
Que pensa você do neo-realismo, tal como este foi definido por Zavattini?
O termo neo-realismo não é muito apropriado; devemos antes chamar esta escola “neo-
verismo”. Mas você sabe: “Tot capita, tot sensus”, diziam os latinos. E cada um pode
dizer o que lhe passa pela cabeça, , tem sua parte de razão, sua parte de erro. Eu penso
que a importância do neo-realismo italiano não está na descrição minuciosa da vida
cotidiana, como o afirma Zavattini, mas no esforço de liberação de certas convenções
dos meios cinematográficos. Um dia, deram a um oficial de marinha chamado De
Robertis – ele morreu há uns dois anos - a possibilidade de rodar um filme sobre a
história de um submarino que vai zarpar. Ele fez um filme bem documental, com
verdadeiros marinheiros como atores. Mas era, no entanto, um filme dramático, com
sentimentos, situações, só que realizado num espírito de documentário. Outra coisa: este
senhor não conhecia as possibilidades técnicas da câmera. Não tinha a menor idéia da
ligação de um plano a outro. Ainda assim ele filmou. O resultado? Muito interessante. A
insuficiência da linguagem tornava-se um elemento de verdade. É deste filme que
nasceu na Itália o neo-realismo. Deram-se conta depois, com Roma cidade aberta, seu
primeiro monumento. Rossellini rodou este filme em circunstâncias e em um estado de
espírito singulares. Todos os estúdios estavam destruídos, ninguém trabalhava então, ele
filmou por necessidade das coisas reais. Filmaram nos abrigos, com uma luz
lamentável. O câmera, que era um bom técnico, me dizia: “Não se faz filmes assim, não
se pode iluminar”. Ora, o resultado foi notável. Estes paradoxos nos permitiram
descobrir que uma aderência à realidade cotidiana pode nascer de uma certa inadaptação
técnica, uma impossibilidade de atingir a perfeição formal, em particular estas
iluminações que os americanos nos haviam proposto como critérios do domínio extremo
da linguagem cinematográfica. Descobriu-se a beleza das coisas inacabadas.
Michelangelo deixou-nos esboços que possuem um poder expressivo extraordinário.
Isto corresponde um pouco à descoberta do neo-realismo. Tendo obtido, pela força das
circunstâncias, certos resultados fascinantes, formulou-se a teoria, aplicaram-na
voluntariamente e sem necessidade nas mesmas circunstâncias, e a refinaram. Rossellini
é o grande mestre do gênero. Ele fez tudo o que lhe passava pela cabeça com total
facilidade e falta de respeito pelas regras. Já que ele nos indicou as possibilidades, mas
também os limites do neo-realismo, é bem difícil falar deste movimento agora. Mas esta
experiência passada certamente nos trouxe algo de importante. Eu poderia fazer um
paralelo com outra experiência, poética esta, e oposta à do neo-realismo. Durante o
fascismo, as artes eram um pouco controladas do ponto de vista político, a poesia foi
parar num hermetismo onde a imagem se fantasiava completamente de sons, em
iluminações sucessivas, graças a palavras de significações cada vez mais ambíguas. Esta
experiência, que foi muito forte na Itália durante vários anos, tinha o mesmo caráter de
contingência histórica que o neo-realismo. São os movimentos extremos de uma
necessidade moral, espiritual, poética enfim; ao termo destas experiências,
contemplamos o vazio, o limite, voltamos atrás, partimos de outra direção, mas nada foi
perdido. Hoje, dizer: “Este filme é neo-realista” pareceria um pouco estranho. Mas dizer
de um filme que ele nasce de uma experiência neo-realista, isso já é alguma coisa.
Penso que nosso cinema atual contém as consequências destas experiências. Antonioni
tem seu estilo particular, seus temas próprios, mas tudo o que não representa mais o
neo-realismo se aproveita de seus resultados. O que é La dolce vita, senão o neo-
realismo transformado e integrado numa experiência poética de hoje?
Este é o ponto de vista histórico. Poderia o senhor definir sua situação pessoal em
relação ao neo-realismo?
Para mim, o problema nunca se colocou nestes termos. Fiamma che non si spegne, eu o
rodei exatamente no tempo do neo-realismo. Mas não vejo que ponto em comum, de
contato encontrar esta escola e meu filme. Os dados eram completamente diferentes. Os
alemães de Fiamma não eram os alemães do neo-realismo, mas os Alemães de todos os
séculos. Meu herói não era o herói particular de um episódio particular. Era o homem
que opera o “salto qualitativo”. E assim em todos os meus filmes, até mesmo em Fille
d’amour, que à primeira vista parece neo-realista. No neo-realismo, não havia esta
busca desesperada por uma certa deformação da alma, este sentimento de
incompreensão humana. Trata-se de uma idéia romântica que não tem nada a ver com o
neo-realismo. Não tem nenhuma importância que a história se passe hoje, e nas ruas de
Milão. Ela poderia se passar, penso, igualmente na África Central. Os cenários não
tinham importância sob o ponto de vista do realismo, mas em relação ao desespero, à
incompreensão, à impossibilidade de adesão de um ao outro, a esta coisa horrível:
amando-nos, podemos chegar a nos arruinar mutuamente.
Assim, eu sempre me interessei pelo neo-realismo e seus resultados, mas sem ter tido
ocasião de participar dele. Talvez, quando esta questão já não for tão decisiva, eu tenha
oportunidade de rodar um filme neste espírito...
No entanto, parece que se você não fez filmes neo-realistas, não é tanto por não ter
tido ocasião de fazê-los, mas antes porque o movimento de sua mise en scéne é bem
contrário a esta démarche. Por sua vontade de ir além das aparências, pelo
interesse que devota à crise, à sua formação e explosão, você está necessariamente
do lado de Racine.
Para resumir exatamente o que você acabou de dizer, usaria as palavras: “Esfacelamento
interior” (déchirement interieur).Eu quero reduzir os limites deste estado ao essencial,
ou seja, ao universal. E paradoxalmente creio que o universal é contido muito mais no
singular que no plural, que na banalidade cotidiana e coletiva. Um personagem se
destaca dos outros, e aí torna-se possível a cada um se identificar com ele: sua
singularidade tornou-se universalidade. Eu digo: um personagem, eu não disse: um
herói.
O heroísmo, eu o vejo sempre como uma espécie de santidade. Se não há santidade no
heroísmo, ele é apenas loucura e egocentrismo. A maioria dos heróis são personagens
abomináveis. Eles vem da parte mais selvagem do homem. No neo-mitologismo, o
herói é o homem forte que mata e nada compreende das almas, não se põe nenhum
problema, salvo talvez o último Hércules, um pouco mais compreensivo em relação a
certos problemas morais. Ele permanece um herói, mas ligeiramente fantasiado de
personagem.

Quanto ao personagem tal como eu o concebo, eu poderia lhe dar um exemplo com um
conto de Kafka chamado A construção (La taupe, A toupeira, em francês). Esta toupeira
é um personagem. E nos identificamos de tal maneira a ela que, quando li esta história,
me senti totalmente uma toupeira. Ela tem medo, faz seu buraco, depois, com medo de
que a descubram, ela dissimula a entrada e a aprofunda. Então, ela ouve um ruído, cava
outros buracos pra descobrir onde está o inimigo, cava uma saída de emergência, aí se
diz: “Mas se ele entrasse por essa saída...”, e ela tapa a saída. Este personagem somos
nós mesmos. Somos toupeiras. Em todos os lugares, está o inimigo. Estamos sempre na
iminência de construir nossa pequena defesa, moral, psíquica. É um tema que adoraria
definir em um filme, exprimindo este medo pânico que o homem experimenta hoje em
dia. O medo que leva o homem à guerra. Comunica-se de um a outro, torna-se coletivo.
Até que nos sintamos fortes o suficiente para esmagar o inimigo, ficamos na defensiva,
cavamos buracos. Quando nos sentimos suficientemente protegidos, advém a loucura de
suprimir o inimigo. A loucura coletiva que nos valeu a última guerra irrompeu na
Alemanha, talvez a nação mais kafkiana. A luta contra os judeus representa exatamente
o que dizia Kafka, que enquanto judeu teve uma exasperada sensibilidade dessas coisas.
E acho que esta loucura tem um poder extraordinário. Ainda não pensei em fazer um
filme disso. Talvez seja muito difícil, talvez um esforço que meus músculos não
poderiam suportar. Poderia eventualmente conseguir, individualizando a situação em
personagens, ao o invés de colocá-la como situação coletiva.
O que é para o senhor o tema de um filme?
Penso que é um estado de alma. Um estado de alma genérico sobre um problema, uma
tese, um sentimento, que lentamente se precisa no personagem. O ponto de partida
abstrato se concretiza em um personagem, e em torno deste, os eventos adquirem vida.
Creio que o nascimento do tema é mais ou menos a mesma coisa num romance. Com
exceção de que, num romance, a idéia se materializa imediatamente em uma linguagem
composta de palavras e em uma construção determinada, enquanto que, na gênese do
filme, a idéia deve permanecer no “vago” do découpage, na pré-ordenação do material.
Por outro lado, se é evidente que o tema imaginado pelo diretor é mais próximo de sua
personalidade que o que vem de fora, existem comunicações espirituais de tal monta
que podemos encontrar em outros autores mais coisas semelhantes a nós do que
podemos imaginar. Assim, entre os escritores franceses, gosto muito de Julien Green.
Em seu Diário, ele escreveu coisas que me tocam profundamente. Adrienne Mesurat é
uma história à qual, se a adaptasse pro cinema, creio que não mudaria quase nada, de tal
modo eu participo deste drama terrível, deste crime, este sofrimento, esta compressão,
esta busca por uma liberação impossível. Isto corresponde exatamente à forma
dramática de minha concepção de vida. Há também Bernanos. Um dos meus maiores
desejos seria adaptar Sob o sol de Satã. Enquanto isso, espero adaptar Um crime, que é
mais cinematográfico, mais aceitável pelo público, embora comporte elementos do
outro livro.
Pode-se portanto acolher uma obra já acabada, de uma outra linha expressiva, uma outra
linguagem, como o romance, aderir a ela e transformar num filme. Em cada imagem
literária, há a possibilidade da imagem fílmica. Não é preciso dizer que os escritores, em
sua maioria, acham que foram desrespeitados. Os escritores que não compreendem a
linguagem do cinema. Mas os que a entendem se dão conta de que é o equivalente da
imagem literária; mesmo se há um desvio na “letra”, o essencial é que se permaneça fiel
ao espírito. O trabalho de transposição aliás é tão difícil que se renuncia quase sempre, e
se limitam a transportar o material literário ao filme. É evidente que foi algo que não
deu certo, porque fica literatura filmada. Mas se temos a força, a perseverança, a
vontade de acertar, penso que a maioria das obras literárias que correspondem a nosso
verdadeiro sentimento de autor de cinema podem encontrar um equivalente exato na
imagem.
Esta equivalência é o verdadeiro objetivo de seu esforço, ou será que a obra
literária não desempenha antes o papel de trampolim de sua inspiração, de um
material, além de um simples roteiro?
Penso que você exprimiu exatamente a verdade, embora de forma um pouco
intempestiva. A mise en scéne não é uma coisa abstrata, talvez mesmo no domínio das
artes seja a coisa mais concreta. Trabalho com atores, com cenários, com a câmera, eu
trabalho com a história. É um dos dados concretos. É claro que devo transfigurá-la,
transformar em mise en scéne o que é literatura. Mas não posso dizer: isso não existe.
Por esta re-criação de elementos literários, chegamos a uma outra forma que talvez
acabe por trair em parte a obra original, mas lhe permanece inteiramente fiel, na medida
em que o cineasta nela se reencontra e reconhece.
É evidente que se adapto uma obra que não me interessa, que não me corresponde,
destacada de mim, autônoma, eu faria o filme, sem dúvida, um filme talvez perfeito,
votado a grande sucesso, mas que não possuiria o frisson da criação, este algo que toca,
quando a expressão artística atingiu seu fim. Então, podemos arruinar completamente
um filme, mas em compensação temos uns 100 metros de película onde vemos o poeta.
Como aborda o problema da direção dos atores?
Acho que o ator é um ser que, quanto mais ator ele é, mais sensível, delicado, mais ele
deve ser ‘bem levado”. Falo dos verdadeiros atores, pois os que não são, é preciso lutar
com eles, pressioná-los pela força. Mas o verdadeiro ator, aquele que está maduro, que
tem o desejo de se exprimir, o dom de comungar com o público, a primeira coisa a
fazer, é se aproximar dele com amor, com interesse, compreendê-lo, até mesmo seus
defeitos. Não lhe dar porradas, fazer pressões. Tomá-lo pela mão, ajudá-lo, adulá-lo,
dar-lhe segurança, a alegria de se exprimir e lhe dizer: “Sim, sim”, mesmo se às vezes
seria preciso lhe dizer não. O “não” , é preciso dizê-lo em certas circunstâncias, não em
outras. É preciso se explicar longamente, sempre pronto a renunciar ao que se pretendia
obter, se não obtivermos sucesso. Enfim, o trabalho com o ator é um casamento. O
casamento é um esforço contínuo de “saber levar”, de dom, de sacrifício pelo
companheiro de sua vida. Com o ator, é um pouco assim.E sobretudo é preciso evitar
lhe impor um “som” que não lhe seja harmônico. O segredo do diretor é utilizar o ator o
mais adequado possível a seu papel. Depois de ajudá-lo a aderir; de sustentá-lo, de
fortificá-lo sem que se veja o esforço. Isto para os atores realmente atores.

Há também aqueles que possuem apenas uma profissão. Pode-se obter muito deles, mas
é um outro trabalho. Um trabalho no plano do profissionalismo. Eles possuem um
profissionalismo tão sólido que podemos explicar claramente tudo o que desejamos , e
eles procuram te dar. Ajustamos um pouco mais forte, um pouco menos, mais à direita,
um pouco mais à esquerda, até que a expressão adira ao personagem. Podemos trabalhar
com esses como quando conduzimos um carro: mudamos de velocidade, desviamos o
volante. Em um certo sentido, para o diretor, estes atores profissionais dão mais
satisfação que os atores “atores”, ou seja, os atores poéticos.
Você chega até o ponto de deixar a este tipo de ator uma certa liberdade de ação?
Não, não uma liberdade de ação, eu demando uma colaboração. Trabalho com o ator, eu
busco uma confiança recíproca. O Confiteor. Devemos nos confessar
(no sentido de se abrir, entrar em comunhão com) um ao outro. O diretor do tempo
romântico da mise en scéne, se posso falar assim, o ditador que dava ordens e queria
que as executassem, cometia um grande erro. Não, o diretor dá conselhos que ele deseja
que sejam executados. Ele mesmo pede conselhos aos atores, sugestões. Quando um
ator me diz: “Não posso fazer isso, não o sinto, preferiria fazer assim”, eu o escuto
sempre, pois seria um crime não ouvir um homem que tem sensibilidade e cujas
possibilidades de expressão estão amadurecidas, sobretudo se ele compreendeu bem o
personagem. Eu poderia lhe responder: “Não, não estou de acordo, não faça assim, te
imploro”. Mas por que renunciar, em nome de uma autoridade exterior, a esta
colaboração fecunda? Acho que, em nosso trabalho, a falta de humildade é o pior
perigo.
Claro, falo em teoria, porque em um filme que estou prestes a filmar( Hércules à
conquista da Atlântida), há pouquíssimos atores. Há tipos que desempenham seus
papéis da melhor maneira que podem, com seus físicos imponentes, seus belos gestos,
suas cabeças romanas, suas roupas de época, que os fazem parecer mais uma torta que
homens. Com eles, o trabalho é de outro gênero. Torna-se muito mais mecânico,
sobretudo mais simples, porque só damos o tom fundamental: não se pode executar uma
sinfonia de Beethoven, executa-se simplesmente- nem mesmo uma sonata, um som. Eu
não trabalho mais com uma orquestra, mas com um diapasão. A um eu dou um fa e
tang!, ele trabalha em fa. A outro um mi, e ting”, ele trabalha em mi. Eu falei da busca
pelo dilaceramento interior. Atualmente, trabalho em filmes que demandam uma
construção, uma grandiloqüência exterior, o herói no sentido próprio e antigo do termo,
o mito enfim. É preciso portanto buscar um natural- não o natural do cotidiano- , mas o
natural da “roupa de época” (costume). Cada filme possui sua verdade. Um filme em
roupa de época tem sua verdade em roupa de época. A roupa deve ser empunhada de
uma certa maneira, o movimento da boca, a expressão dos olhos devem estar adequadas
aos figurinos e cenários. É um natural particular no “não-natural” do cenário e da
situação.
Depois, há a última espécie de direção de atores, quando se trabalha com não-
profissionais. Aí eu me refiro a De Sica, que é verdadeiramente um especialista da
questão. Ele faz o que eu tento fazer às vezes, com o anão Salvatore, por exemplo, que
não é ator. Que fazemos, buscamos, não? Buscamos, fazemos ele dizer uma réplica;
não, não está bem. “Então, vejamos, faça assim”. Ainda não está bem. Depois, certo
momento, captamos no jogo de uma ceninha que vamos repetir um tom que deu certo.
Isto foi conquistado! Cuidado pra não perdê-lo, pois se não são profissionais, perdem
tudo facilmente. É preciso manter firme o ponto alcançado, e modificar o resto em
função deste fragmento de verdade do senhor que não é um ator. É um trabalho muito
lento e com freqüência ingrato, mas que, graças a esta falta de “profissionalismo”, de
quiproquós profissionais, em certos filmes do neo-realismo deu resultados bem
interessantes.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Revisão: Luan Gonsales e Matheus Cartaxo.

La dé-faite. Sobre Hurry Sundown, de Otto Preminger

1. Para alguns, os grandes filmes de Preminger são sobre a criação. Não deixam de ter
razão. Mas seria mais legítimo falarmos na impossibilidade de toda criação. Desta
impossibilidade nos vieram algumas obras-primas, depois alguns filmes tocados pela
loucura, e hoje a amarga insignificância de Hurry Sundown. Preminger falava da
criação, mas de uma criação estranha, pouco satisfatória, pouco natural, espantosa
apenas pela soma das energias postas em jogo. Não o élan ( impulso, dinamismo) que
proporciona a tudo e a todos seu lugar no mundo, a chama indivisa que impulsiona para
frente, sem remorsos, e que a análise não consegue atingir. Preminger não é homem
desta criação, embora ela tenha sido sua grande preocupação: a esperança, o assombro
de suscitar, de descrever uma criação inocente. Nos filmes que lhe valeram sua
reputação ( Fallen angel, Laura, Whirlpool), esta inocência é aquela do inseto que se
enrosca na teia, que ignora que jamais esteve tão próximo da aranha, inocente pois
hipnotizado, preso na armadilha, fantoche, cego fantasma criador, criador porque cego.

2. Filmar é tornar o incompatível evidente. Esta é a lei que corrói o cinema de


Preminger, a exigência sobre a qual este cinema é construído, brilha em todo o seu
esplendor e se consome em pura perda. Filmar dois personagens é sublinhar sua
diferença, torná-la insustentável. Então, é o espaço que os aproxima- que os separa- que
é o objeto do filme ( e da famosa “mise em scéne”), um espaço que uma soberana ironia
( o poder de distinguir) mantém ( Anatomia de um crime), isso quando uma
sensualidade progressivamente devoradora não o fratura sem fim ( Bom dia tristeza).

Pressionados pelo roteiro, pelas exigências de uma “história”, a compartilhar o mesmo


espaço, os homens se roçam , e retém deste contato- dado, retomado- a certeza de sua
maldição como o maior dos prazeres , prazer perverso e sem recompensa, desvario da
proximidade, até que o olhar se turve ( brouille), que uma raiva fria, uma sensualidade
já decadente se desencadeiem- em vão. “Mise em présence”, inquietantes e como se
fossem contra natura, relações sem liga e sem “ligadura”, porta aberta a todas as
violações por frigidez, orgias por impotência. O homem é diferente. Às vezes filmar
reconcilia: em Renoir, Ford, as diferenças, uma vez filmadas, não mais diferem: o
espaço que elas repartem torna-se sua terra de acolhimento, o primeiro de seus pontos
em comum. Preminger é dotado do talento contrário: os que passam diante da câmera já
se distanciam uns dos outros, votados à dispersão que é sua lei, ou a uma junção
desajeitada e imperfeita, que os restituirá mais seguramente à condição de fragmentos.

3. A arte da mise em scéne não era- como se acreditou, de forma leviana- panacéia
universal ou meio privilegiado de fazer cinema. O exercício da mise em scéne é também
a expressão de uma falta, uma carência ( un manque): suscitar em torno dos
personagens, encerrados em sua solidão, vítimas de suas diferenças, um espaço que
fosse sua prisão comum: arquitetura dos vazios, onde o vazio ameaça. A “fascinação”
exercida pelos filmes de Preminger é o efeito desta distância que procuramos reduzir o
máximo possível, até se confundirem olhar e coisa olhada. Mas esta confusão- que seria
a proximidade máxima- está fora de questão ( a não ser, como aparecerá mais adiante,
na morte, na destruição,o Apocalipse). Mas esta confusão- esta coesão- é também o
papel do artista: a abolição feliz das diferenças, a comunicação restabelecida, o corpo-a-
corpo assumido. Quando filma Exodus, Preminger se situa no coração de sua criação: a
vitória da coesão sobre o fragmentário. É preciso levar a sério a cena de Exodus onde
vemos Ari bem Canaan pronunciar a oração fúnebre de Karen e de Taha, personagens
que tudo separava e que uma mesma terra, um mesmo túmulo vão acolher: o plano dos
dois caixões, de talhe tão diferente ( diferença insustentável e que, verdadeiramente,
“salta aos olhos”) contém, para Preminger, o mais pesado dos sentidos.

4. A arte da mise em scéne consiste portanto em articular este vazio que desliza
fatalmente entre dois seres, entre dois momentos de um filme. Ela é o cimento de um
edifício onde nenhuma pedra se assemelha à outra, e sua importância vem do fato de
que ela- e unicamente ela- garante a solidez do edifício. Se este poder, esta “ligadura”
( chamado também de savoir-faire, ou habilidade) vier a faltar, a obra inteira será votada
ao reino do fragmentário e do detalhe ( Hurry Sundown). A partir de 1960, Preminger é
este homem que só buscará a fusão, a coesão na morte ou na aniquilação. Seguem-se
terríveis excessos de “estranhamento”: uma vez que os homens são fragmentos,
suscetíveis apenas de serem justapostos, é preciso reconstruir o mundo pacientemente,
mas reconstituir o mundo inteiro, a partir destes pedaços. Paradoxo que poderíamos
enunciar da seguinte maneira: descrever uma multidão onde poderíamos, a todo
momento, chamar cada um por seu nome.
5. Decisão que não se assume sem consequências. Que um homem seja algo de
fragmentário, pouco suscetível de um encontro harmonioso, mas destinado à tensão
raivosa da proximidade, capaz unicamente de violar ou se dispersar, é isto que constitui
o fundo das coisas. O resto, isto é, o desvio que tomou a obra de Preminger estes
últimos anos, é apenas uma tentativa de justificar esta verdade, dando-lhe palcos
plausíveis. Assim, temos os “grandes temas”: o episódico, o inacabado não possuem
nada de assustador, se são garantidos pela amplidão e pelo mistério de um grande tema,
onde a fragmentação é justamente a lei, a única maneira de descrever. Ninguém está em
possessão do jogo completo das causas e dos efeitos, mesma nas altas esferas da política
( Advise and Consent), da Igreja ( The Cardinal), ou do Exército ( In Arm’s Way). A
vista sobranceira, à medida em que se distancia de seu objeto, conforta: uma multidão
onde só encontramos rostos conhecidos.
6. Outra consequência: os filmes sofrem- em sua própria estrutura- uma evolução
análoga. Cada cena não precisa mais ter relação com o todo, a não ser de forma bastante
distanciada, à maneira de um “relais”. O filme como conjunto de elementos, soma de
energias, está também ameaçado de dispersão, sequência de elos ( maillons) que
ignoram o destino da cadeia- se cadeia houver. Em In Harm’s way, vemos uma meia
dezena de dramas e de problemas pessoais que parecem ter suscitado Pearl Harbour. É
bem evidente que no espírito de Preminger o cálculo foi inverso: tratar-se-ia de
encontrar um tema grandioso o suficiente para justificar a violência gratuita destes
dramas, sua impossível resolução, seu encadeamento arbitrário. Assim, na medida em
que o fragmentário acentua seu domínio, exige um cadre mais geral, um horizonte mais
universal.
7. Dir-se-ia que é um cálculo desonesto. Certo, Preminger pôde dar- pôde se dar- a
ilusão de tratar de alguns grandes temas, mas esta ilusão não se sustenta mais, os
pretextos cessaram de ser plausíveis.Assim, o problema racial nem explica nem é mais
explicado por Hurry Sundown, mas é um palco convencionalmente explosivo onde
pode se posicionar esta outra violência, a de um casal que se precipita em direção ao seu
desastre- défaite- ( “défaite” como se diz de uma coisa que ela se desfaz - défait). Se o
filme choca, é porque não é mais possível- em 1967- falar dos Negros como Preminger
o faz, e se este trata mal deste tema, é porque o problema para ele é apenas um caso
particular da regra; a regra que é, sabemos bem, a recusa de uns de se entregarem aos
outros, a fim de se conservarem na consciência infeliz de sua diferença.
8. Há também outra coisa. In Harm’s way era um filme admiravelmente realizado. A
arte do cineasta, a rapidez da execução, a escolha de certos atores, a mise em scéne no
ponto de clímax dos seus poderes conferiam ao filme esta “liga” que o preservava, in
extremis, da dispersão. In Harm’s way era a soma falsa de elementos justos. Não é o
caso neste Hurry Sundown. O mal que roía os personagens acabou por corroer o próprio
filme. A dispersão, a entropia, a falta de sinceridade despontam em cada plano. À ruína
moral dos personagens corresponde aqui o retorno do filme ao caos, ao reino do detalhe,
às imagens sem filme. Os espaços brancos do texto devoraram o texto, os interstícios
consumiram as pedras da construção, e contemplamos esta distância que ninguém
poderá preencher. Também sob este ponto de vista, a obra se desfez ( se dé-faite).
Serge Daney, Cahiers du Cinéma, dezembro de 1967.
Tradução: Luiz Soares Júnior

Cinema e prostituição. Fortune Coockie, Billy Wilder

1. Se há um ponto em comum a Billy Wilder e seus personagens é um empenho


extremo na eficácia. Daí vem as travessuras dos personagens e a arte do cineasta, com
frequência tachada de vulgaridade, baixeza e outras infâmias. Que Wilder seja infame, é
algo que não contestamos. Observemos igualmente sua predileção por tudo o que é
mentira, prostituição, imposturas, temas dos quais ele é o prosador soberano, mestre de
seus meios de expressão até o limiar da vertigem. The fortune Coockie confirma isso.
Wilder não mudou. Nem ele, nem seu pequeno mundo de admiráveis crápulas ou de
cretinos honestos: os primeiros destilam um riso vulgar como de hábito, e os outros
preservam esta parte de “emoção” que julga a imagem complacente com a“ternura
detrás da ferocidade”, enquanto que ela não passa da face dupla e da última
consequência de um frenético gosto pela eficácia.

2. Da eficácia nos veio o cinema americano, e graças a ela, este se distancia de nós. A
lei foi a do rendement maximum (rendimento máximo). Mais que uma lei, uma estética:
a convicção de que tudo, sempre, pode servir, e que um bom filme é em primeiro lugar
o que esgota todas as possibilidades (o riso, o medo, as lágrimas, etc) de um roteiro. Daí
a beleza destes filmes - os mais inocentemente perversos - , indiferentes à matéria que
abordam, aos demônios de onde nasceram, indiferentes à imagem, que acreditam
pertencer a um mundo e uma civilização que lhes foram dados de uma vez por todas.
Seu único empenho é fazer brotar um sentimento, uma emoção, todas as vezes em que a
ocasião se apresenta. McCarey é um homem que nos diz que é triste filmar um casal de
velhos executado numa igreja (Satan never sleeps) mas que podemos, por meio de certo
enquadramento, acrescentar um elemento de beleza à cena. É tocante que uma belíssima
jovem (The bells os Saint Mary’s) narre suas desilusões amorosas, mas se esta jovem
fosse feia e ridícula, teríamos dois sentimentos ao invés de um. Ganho inapreciável.

3.Pensemos no que Claude Lévi-Strauss chamou de “bricolage” intelectual: fazemos


isto com os meios à nossa disposição (les moyens du bord), mas que meios são estes
(sur quel bord est-on embarqué)? O bricoleur não é responsável pelos instrumentos
improvisados de sua arte, tanto quanto um cineasta americano não é responsável pela
América. Esta ausência de um ponto de vista pessoal - até mesmo um minguado ponto
de vista pessoal, ou um ponto de vista “à perigo” - sobre a matéria que organizam faz
dos americanos admiráveis bricoleurs, e da América o maior dos autores americanos.

Isto não deixa de ter implicações. O princípio do rendimento máximo se desdobra


automaticamente em um cinismo que os maiores entre os Americanos transformaram
em seu bem precioso, descoberta rude mas cheia de ensinamentos. Admiráveis
contadores de histórias, de tal forma que um plano e um olhar lhes basta para criar um
mundo, excessivamente seguros de seus meios, ou seja: não visando mais aos fins. O
excesso de eficácia é a morte da eficácia, assim como, para além de certo limiar, os
sentimentos não contam mais, não fazem diferença - como o queria McCarey - mas são
remetidos ao nada, em uma grande confusão. O métier, a habilidade dos Americanos era
um meio de não deixar nenhum vazio em seu cinema, já que tudo, do último acessório
ao último figurante, poderia servir. Ao mesmo tempo, o cinema “europeu” aprendia a
abrir as portas a este vazio - excessos ou silêncios inutilizáveis, espécie de “parte
maldita” (part maudite) da qual seria impossível “se servir”. Era uma sábia política, pois
o vazio também perseguia o cinema americano: quando o excesso de cinema (trop de
cinema) mata o cinema, cada filme esmerando-se diabolicamente em nada dizer.

Alguns filmes recentes testemunham esta desordem e esta modernidade inesperada.


Gideon of Scotland Yard, In Harm’s Way, The Chapman Report , e talvez os próximos
filmes de Billy Wilder, oferecem o espetáculo de um domínio absoluto, olhar soberano,
justo e rigoroso pousado sobre diversos mundos ao mesmo tempo, e cujo resultado é a
maior das entropias, cada mundo dando as costas um ao outro e o mundo remetido ao
seu movimento impessoal.

4. Wilder não está nessa. Ainda não. Mas é preciso observar que o seu universo é este
mesmo descrito acima, o mundo da eficácia, onde cada homem tenta se vender ao
melhor preço e sob as melhores condições. O tema dos últimos filmes de Billy Wilder é
a prostituição, involuntária (The Apartment), alegre (Irma la Douce) ou extasiada (Kiss
me stupid!). E se não existe prostituição sem publicidade prévia, é preciso admitir que o
cinema foi por muito tempo o veículo ideal desta publicidade. Por isso não nos espanta
que The fortune Coockie seja um filme sobre a mise en scéne. Por um lado, Wilder é
seguro o suficiente do domínio de seus meios para não sentir a necessidade de ser eficaz
a cada instante; por outro, Willie Gingrich, sublime canalha, é sempre mostrado sob os
refletores do “morceau de bravoure”, ou seja, agindo como se soubesse que está sendo
observado (e o filme prova que ele tem razão), e nisso ele é um cabotino supremo, mas
visto com um certo recuo. Este recuo, esta margem - Wilder de súbito não mais
solidário com seus personagens, menos empenhado em ser eficaz que de falar de
eficácia, de mostrar-lhe os mecanismos - remete cada coisa a seu lugar e o filme ao
filme; é um pouco a coxia do cinema, o reverso do rendimento máximo, o outro lado.
Mas não é preciso dizer que o cinismo tem a última palavra: de agora em diante, a
eficácia consiste em denegrir a eficácia.
Serge Daney, Cahiers du Cinema, 195, novembro 1967
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Cinema esperanto. Sobre O Messias de Rossellini

1. Jesus, que se irrita por nada, expulsa os mercadores do templo a golpes de corda.
Cena duplamente esperada, pois figura no roteiro do filme ( de Rossellini) e no roteiro
original ( os Evangelhos, supervisionados por Deus). No plano seguinte ( depois de um
corte, num filme que comporta pouquíssimos cortes), Jesus, em close, enxuga sua fronte
coberta de suor. Gag sutil. Mas a platéia, acreditando na dignidade do filme, não ri.O
mesmo plano, assinado por Buñuel, teria feito a sala explodir em gargalhadas.
2. Nestes dois planos, o que provoca o sorriso é a irrupção de um reflexo( de um gesto
natural: Jesus é um homem, afinal de contas; ele se cansa facilmente) que é também um
gesto inesperado ( geralmente não esperamos de um Deus este gênero de “pequenos
fatos verdadeiros”). Vale a mesma coisa para o ligeiro movimento de surpresa de João
Batista , quando se prepara para verter um pouco de água do Jordão sobre a testa de um
candidato ao batismo que ele ainda não notou, e a quem reconhece de súbito: mas é
Jesus! Estas imagens são maculadas por um certo ridículo que é igualmente o que lhes
dá o seu valor ( e que desde sempre constituiu o coração do cinema de Roberto
Rossellini).
Ridículo ligado à resistência e aos reflexos mínima dos corpos dos atores de hoje
superpostos ao livro de imagens bíblico, necessariamente cecilbedemilleano e pobre que
temos, volens nolens, na cabeça. Corpos entregues a si mesmos, não dirigidos(vide
Caprioli, grotesco no papel de Herodes, que ele representa como interpretou Salumi em
Toute va bien).

3. Neste ridículo, reside o humanismo de que Rossellini se tornou, ao longo dos anos, o
cantor indecente. O humanismo rossellianiano é este, trivial, típico da frase que se usa
como desculpa: é o humano, afinal( après tout). Afinal( après tout). Depois ( après) do
fim do mundo. Em 1976, o ridículo consiste em reivindicar como um projeto positivo o
que chamamos, nos Cahiers, cinema esperanto. O famoso “ apagamento” do cineasta
torna-se um axioma. Transparência generalizada. O cineasta não escolhe nem seus
temas nem suas mídias. Em relação às mídias, a modernidade de Rossellini esteve em
proclamar nestes anos que o cinema e a televisão são a mesma coisa, uma vez que só
existe – afinal, depois de tudo ( après tout)- a comunicação. ( Da mesma recusa de se
deixar aprisionar na questão da especificidade Godard tirou outras lições , de uma outra
forma menos ecumênicas que as de Rossellini). Em relação aos “temas”, ele declara
com orgulho que sua escolha não deve nada a seus caprichos ou a suas concepções, mas
a uma espécie de necessidade objetiva que lhe impõe falar dos grandes momentos ( ou
seja, dos grandes homens) da história do pensamento judaico-cristão, de Sócrates a
Jesus, de Alberti a Marx.

4. Por trás desta reivindicação da comunicação pela comunicação, pode-se ver ( não
sem comoção) o estado mais indolente de uma espécie de comunhão dos santos laica(no
elemento da Cultura para todos: filme como hóstia) ou uma farsa bufa(pantallonade)
essencialista a mais. Algo como uma Enciclopédia Alpha audiovisual que só
comunicaria a idéia da comunicação, a idéia imperialista de uma comunicação fácil e
obrigatória. Pode-se também pensar que o público de O Messias não existe, que se trata
de um público “por vir”, de um público de sobreviventes à catástrofe que, segundo
Rossellini, acossa o Ocidente. É para este público que ele trabalha. Público sonhado sob
medida pelo delírio didático, e para quem a história do Ocidente seria tão opaca quanto
para nós a dança das abelhas.
Constituir arquivos e manuais para este público é falar esperanto quando estamos certos
de que já não há ninguém para compreender o que quer que seja.
Serge Daney
Cahiers du Cinema, mai 1976
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Du visage au cinéma, Prólogo

Foi há trinta anos atrás. A prosperidade crescia a olhos vistos, construíam-se auto-
estradas. A França do crescimento industrial fazia o possível para esquecer. Esquecer
Montoire e Auschwitz, esquecer Hiroshima, esquecer Dien-Bien-Phu, a Algéria. O
estruturalismo começava a disputar as manchetes das revistas com a Nouvelle Vague.
Era 1963, ou talvez em 1962, uma jovem chorava no cinema.
Neste mundo que queria esquecer a derrota, todas as derrotas, que se aturdia fascinado
com o progresso infinito da vida material, o que poderia ainda provocar as lágrimas de
uma jovem, um transbordar de lágrimas irreprimíveis, abandonadas, quase voluptuosas?
Evidentemente, a contemplação de um rosto, nada mais. Um rosto em grande close,
monstruosamente cortado de seu corpo, terrivelmente sofredor, torturado, isolado sobre
um fundo branco que lhe acentuava o desespero. As lágrimas eram o signo visível de
que alguma coisa se transmitia do sofrimento representado na tela àquela que o
observava, que o atravessava: que a observadora havia se identificado ao sofrimento,
que havia se tornado a sofredora.
O rosto da jovem em lágrimas também era um close de filme: Anna Karina, a Nana de
Viver a vida, em contracampo de Falconetti, a Joanna D’arc de Dreyer. Depois de trinta
e tantos anos, anos que viram tantas coisas se encenar na história do cinema e na
história do mundo, um encontro permanecia eficazmente possível entre estes dois rostos
de mulher, com a condição de que um pedaço de celulose os reunisse. A paixão de
Jonna d’arc, apresentada então em uma versão degradada, com sonorização pesada, já
era à época um eterno monumento. Hino à alma, à humanidade da alma humana, -
apesar do kitsch sulpiciano de planos de vitrais, acrescidos ao filme por Lo Duca- , o
filme parecia feito para tornar visível, de uma vez por todas, esta assustadora e essencial
nudez da alma, do rosto da alma.
A alma tem um rosto? Sim, respondem os místicos, é o rosto do “homem interno”, que
vive para além da morte. Seu rosto, sua face tornam-se então uma imagem, semelhante
“à sua afecção dominante ou a seu Amor reinante”, de que o rosto só constitui a forma
exterior:
“Todos, quaisquer que sejam, são reduzidos a este estado, de falar como pensam, e
mostrar, através de seus rostos e seus gestos, a sua vontade. Daí resulta que as faces de
todos os Espíritos tornam-se as formas e as efígies de suas afecções” ( Swedenborg, O
Céu e as maravilhas do Inferno).
É um tal rosto, querido e posto como Absoluto, “com todos os pensamentos, as
intenções, os prazeres e os temores que o haviam agitado” que oferecia Dreyer,
realizando de uma forma quase ideal esta utópica perfeição do rosto humano, a
transparência.É neste rosto absoluto que imergia Nana, e Godard, há trinta anos atrás,
ainda acreditava que a alma pudesse falar à alma, até a dimensão física das lágrimas. No
fim da primeira seção de Vivre sa vie, Nana e Paul disputam uma partida de fliperama.
Paul ( André. S. Labarthe) comunica à Nana uma brincadeira de criança que ele acha
muito divertida. Sua voz, de súbito muito próxima, abandona a ambiência do café onde
se encontram, e ele recita: “A galinha é um animal que se compõe de exterior e interior.
Se tiramos o exterior, resta o interior, e quando tiramos o interior, vemos a alma”. Um
ano antes, Bruno Forestier, o “pequeno soldado”, anunciava à mesma Anna Karina ( ela
se dizia chamar Veronika Dreyer então), no momento de fotografá-la:
“Quando fotografamos um rosto, fotografamos a alma que se encontra por detrás dele”.
Muito tempo se passou desde então, e não apenas sob a forma de uma leve suspeita. A
alma pode realmente falar à alma, a humanidade de um rosto à humanidade de outro
rosto? O cinema pode ainda crer neste encontro efusivo , mostrá-lo simplesmente, como
se imediato e natural? Nada é menos certo: o potencial de humanidade, de alma não são
mais no cinema um dado ( donné), e não apenas pelo fato da “alma” ter se tornado uma
noção duvidosa. Na verdade, foi justamente no território onde ela possuía o valor mais
eminente, no cinema de arte europeu, que a alma foi mais duramente posta à prova.
Alguns anos depois das lágrimas de Nana, um outro filme multiplicava os closes sobre
um rosto de mulher à beira da crise. Mas nada era mais simples, imediato, nada mais
“jorrava da fonte” ( ne coulait de source), nem mesmo as lágrimas. Esta mulher em crise
não tinha mais diante de si a imagem mítica, sacralizada de uma Alma absoluta e santa-
mas uma outra mulher, frágil e fraturada como ela, que ora lhe estendia um espelho
acusador e desapiedado, ora ameaçava de tal forma o seu ser que chegava ao ponto de
trocar com ela nomes e rostos, lhe disputava o espaço do plano. De qualquer forma, não
era mais uma putinha ingênua e idealista, derretendo-se de simpatia ao impacto de uma
grande dor, mas uma atriz célebre, à qual a dor do mundo havia imposto a afasia, sem
que a ela fosse dada a chance de se reconhecer, e ainda menos esquecer.
O próprio título do filme, Persona, o dizia: era uma história de máscara, não se tratava
mais de uma alma “por detrás de um corpo”, alma diante da qual a verdade estacaria.A
“verdade” não passava de uma trama inapreensível, circulando de rosto em rosto sem
jamais se fixar. Nos primeiros planos, víamos uma criança talvez morta tentar, de forma
vã, ao tocar-lhes com os dedos, “dar uma alma” a rostos gigantes; nos últimos planos, a
criança tateante ainda se encontrava lá, e os rostos não cessavam de lhe escapar
definitivamente. O filme era a explicação desses rostos, mas o que ele explicava era
apenas isso: um rosto é uma tela, uma superfície. Não há nada “por detrás”, e tudo o que
nele se inscreve permanece-lhe alienígena – poderia da mesma forma se inscrever em
outro lugar, sobre um outro rosto ( ou então os rostos podem se agregar, superpor,
acoplar, como se fossem superfícies in-diferentes).
Neste curto espaço de tempo que separa os dois filmes, alguma coisa havia ( qual?)
precipitado a situação de um estado a seu extremo oposto? E se Vivre sa vie é o
“revelateur” que acrescenta a lupa de seus closes aos closes de Dreyer a fim de fazer
ressurgir uma alma de suas bobinas, que filme hoje em dia nos permitiria elucidar as
monstruosas “ampliações” bergmanianas?Seria preciso retornar ao cinema primitivo e
suas “grosses têtes”?Ou ao contrário, procurar perto de nós, na ausência glacial de
profundidade sob os rostos, que por vezes nos surpreende nos filmes, os últimos signos,
enfim revelados, de um anti-humanismo que Bergman genialmente apenas pressentiu?
Este livro não constitui uma história do rosto, nem uma história das representações do
rosto. Tomando o cinema por testemunha, ele visa a se interrogar sobre o papel
( suspeito) que artes eminentemente humanistas da representação desempenharam no
sentimento atual de uma deserção (déreliction) da face e do humano. Em suma, ele tenta
se questionar sobre como a representação afetou, no mais alto grau, o status de todos os
seus objetos mais caros. Se houvesse uma tese a enunciar, seria a de que, de tanto nos
deixarmos “dévisager” ( olhar longamente, escrutar, examinar), perdemos a face. Os
cinco anos que separam o filme de Godard do de Bergman condensam esta perda, perda
que é preciso agora desdobrar, dispor diante de nós, com o fito de compreendê-la um
pouco. E com este objetivo, remontar bem antes de Godard, bem antes de Dreyer, à
questão do rosto, questão humana eterna e essencialmente posta...
Jacques Aumont, Du visage au cinéma
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Noite dos mortos vivos, Romero 1968

No decorrer dos anos 60, dois cineastas totalmente independentes e à margem dos
grandes estúdios foram particularmente inovadores. Herschell Gordon Lewiks, cujo
Blood Feast, 1963, e 2000 maniacs, 1964, engendrarão a moda do “gore” ( fantástico
sanguinolento radicalizado com uma complacência mesclada de humor até os extremos
limites da repugnância) e Georges Romero, cujo Noite dos mortos vivos, variação
contemporânea sobre o tema do zumbi, marca uma espécie de intrusão bem eficaz do
realismo no fantástico mais horrífico. Quatro elementos principais darão ao filme sua
força e originalidade: 1) a condensação da ação e da duração no seio de um crescendo
dramático constante; 2) a intervenção permanente na intriga das mídias ( rádio, tv); 3)
utilização conjunta da audácia visual ( ponto comum com Herschell Gordon) e da
discrição nas cenas sanguinolentas; 4) recusa das convenções e clichês em uso no
gênero.
Ao invés do happy end corrente, o filme acaba em um mal-entendido sangrento que
radicaliza ainda mais, de um modo irônico,o horror de tudo o que já fora mostrado.Por
estas diversas razões, o filme provocou em eu lançamento uma surpresa e mesmo certo
escândalo, que acentuou seu sucesso. Em relação à audácia visual, ela está muito
distante da complacência grand-guignolesque e guignolesque estrita dos filmes de H.
Lewis. Ela é justificada pelo rigor da intriga e pelo ciclo infernal onde embarcam todos
os personagens. Aliás, a influência exercida pelos dois cineastas não foi igual. A de
Lewis, de qualquer forma irrecuperável no plano estético, foi muito maior, e suscitou
por um longo período ( que dura até hoje) uma degenerescência do filme fantástico e de
horror, ilustrada por exemplo por um filme como Massacre da serra elétrica, Tobe
Hooper, 1974. ( A notar que esta degenerescência se dá paralelamente a uma
revitalização do cinema de ficção científica, até meados dos anos 70).
Apesar de ter relançado o tema do zumbi, a lição realista de Romero ficou, por assim
dizer, sem eco, e mesmo seus filmes seguintes não estiveram à altura deste rascunho de
mestre, realizado com um orçamento irrisório.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

La fiamma che non si spegne, Cottafavi 1949


Baseado num fato real, ilustrado nas últimas sequências, este severo elogio das virtudes
morais e do senso de sacrifício, reconduzidos de geração a geração, estava de tal forma
na contracorrente da época ( estamos em pleno início do neo-realismo) que suscitou
uma polêmica no Festival de Veneza de 1949. Crônica de ritmo fluido e cativante,
Fiamma che non se spegne é iluminado, em seus momentos mais fortes, por um lirismo
de caráter trágico: perseguição do carabineiro no início do filme por marginais, em um
depósito de locomotivas; seu casamento precipitado e noturno, quando de uma folga no
serviço; a cena onde sua esposa recebe a notícia de sua morte ( “ Nós não vemos de
imediato seu rosto, escreve Mourlet, mas ela se volta para a câmera com lágrimas que
nascem. E assistimos ao assalto lento e inelutável de uma alma pela dor, filmado face a
face nesta câmara, nesta solidão absoluta, como se, ao penetrarmos aí por efração,
contemplássemos com uma espécie de terror sagrado, aquilo que ninguém deveria
contemplar”); e, claro, a execução final, a mais bela seqüência da obra de Cottafavi, a
respeito da qual o realizador confessou que se deixou guiar, na direção da cena, por sua
admiração pela música de Bach. Ao longo de todo filme, as cenas de ação e as cenas
íntimas se encontram situadas em um mesmo plano de intensidade quase litúrgica,
realização das pesquisas formais do cineasta. A liturgia suprime o Tempo, dirime a
História; ela recoloca cada ação trágica em uma continuidade de ordem religiosa que é
uma espécie de eternidade: a chama que não se extingue.
Assim, o retrato da execução de um soldado anônimo em uma guerra com milhões de
mortos terá a mesma grandeza, merecerá tanto esmero em sua composição quanto o
suicídio de Marco Antônio e Cleópatra. É porque ele visa, antes de tudo, à eternidade
que o cinema de Cottafavi ignora -soberbamente- o neo-realismo.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Il cavaliere di Maison Rouge, Cottafavi

A carreira cinematográfica de Vittorio Cottafavi teve a duração de um raio e a forma do


paradoxo. Cottafavi não gostava de gêneros- comerciais- onde teve de trabalhar. Longe
de ridicularizá-los, pelo contrário ele tenta magnificá-los, à sua maneira, por um estilo
de dignidade altaneira que não queria ter nada de popular. Il cavaliere é o exemplo mais
bem realizado deste trabalho. O filme participa de quatro gêneros diferentes- capa e
espada, melodrama, drama psicológico, tragédia histórica- e não pertence a nenhum em
particular. ( Eles são citados na ordem crescente de interesse que parecem ter para
Cottafavi). A maior originalidade do filme diz respeito à sua construção, e se refere ao
entrelaçamento, em alguns conjurados ( ex: o casal A. Franciolini e Y. Lebon), de sua
busca pela felicidade individual e de seus esforços impotentes a pôr um fim ao martírio
histórico da rainha. A última meia hora do filme é, sem dúvida, o que Cottafavi realizou
de mais convincente: é aí que os quatro gêneros se mesclam e se harmonizam da melhor
maneira, que a velocidade da ação se acelera e que cada personagem, sofrendo o peso
do destino que lhe cabe, se revela em sua identidade própria, sua grandeza e solidão. A
liberdade não existe no universo fatal de Cottafavi. Mas estes personagens possuem
sempre a escolha entre a elegância e a mediocridade, entre a bestialidade e uma forma
de nobreza que os tornaria quase semelhantes a deuses.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Traviata 53, Cottafavi

Uma adaptação moderna da Dama das Camélias. Ao contrário de Riccardo Freda,


Cottafavi sempre fez cinema comercial ( popular) contra sua vontade. Tão logo pôde,
foi para a RAI e dirigiu trabalhos mais nobres ( adaptação de peças ou romances
clássicos). Ele tenta aqui transformar um melodrama a seu ver muito canhestro em uma
evocação raciniana da impossibilidade de amar e ser amado. Suas ambições com
frequência o denunciam, e fazem dele uma espécie de “Antonioni do pobre”. Vide as
cenas de party onde os personagens se entediam, e a descrição convencional dessas
figuras deslocadas ( mal dans sa peau) e sem força de caráter, perdidas em seus
problemas de comunicação e melancolia. A sensibilidade aristocrática de Cottafavi só
consegue se exprimir plenamente na direção de atores- sobretudo de atrizes. Bárbara
Laage, como uma falsa vagabunda que permanece ingênua e vulnerável, empresta
densidade à sua personagem e nos faz ressentir intensamente seu desequilíbrio íntimo.
Ela está constantemente dividida entre os élans espontâneos de ternura que desejaria
reprimir e uma dureza calculista. Pouco a pouco submergida pelo amor, perde sua
ambigüidade e se torna uma personagem transparente e trágica: uma vítima, destruída
muito mais por sua melancolia que pelos acidentes materiais de sua vida movimentada.
Com o auxílio de uma mise em scéne fundada sobre a interiorização e o silêncio,
Cottafavi é vitorioso em sua alquimia, e metamorfoseia uma personagem de melodrama
em uma heroína de tragédia. Mas isto a despeito do contexto social e realista do filme.

O mensageiro do diabo, Charles Laughton 1956

Este filme inclassificável, que foi um fracasso comercial e impediu Charles Laughton de
continuar uma carreira de metteur em scéne, foi sempre muito apreciado por alguns
cinéfilos. Tomando emprestado característica de diversos gêneros cinematográficos
( western, filme noir) , não se encaixa em nenhum mas , no plano literário, se inscreve
nesta linha de contos negros, narrativas de aventuras mais ou menos fantásticas e “de
pesadelo” , onde as crianças são ao mesmo tempo os heróis e as vítimas ( Moonfleet de
Lang, adaptado do romance de John Meade Falkner, Tempestade na Jamaica de
Mackendrick, adaptado de Richard Hughes, Our mother’s house, de Jack Clayton,
adaptado de Julian Gloag, etc). Em sua autobiografia, Elsa Lanchester, esposa de
Laughton, afirma que ele começou a escrever o roteiro com David Grubb, autor do
romance original, depois encomendou uma adaptação a James Agee, que ele julgou
muito longa e realista. Laughton a remodelou e encurtou, com o objetivo de que esta
reencontrasse uma parte do onirismo e do insólito da obra original, que havia perdido
( James Agee morreu em 1955 com 45 anos e não pôde ver o filme terminado).
O relativo “desajeito” do filme no plano dramático reforça ainda mais sua estranheza. O
desenvolvimento da história, articulada em três fases, onde se mesclam confusamente
um ponto de vista objetivo do narrador e o ponto de vista subjetivo das crianças, conta
muito menos no filme que a atmosfera e os personagens. Se é absurdo dizer, como foi
feito, que Mitchum encontra aqui seu melhor papel e foi descoberto a partir deste filme
(!), não há dúvida de que seu personagem é dotado de originalidade incomum. Ele
possui muito de Barba Azul, de ogre e todos esses seres míticos que fascinam e
aterrorizam a imaginação infantil. Alguns, sobretudo em razão da cena final da prisão,
quiseram ver em Powell um substituto da figura paterna para as crianças. Embora
aparentemente encorajada pela substância do filme, este tipo de exegese psicanalítica
corre o risco da gratuidade e nos deixa insatisfeitos. É sobretudo plasticamente que o
filme é surpreendente. Deve muito isso ao trabalho do operador Stanley Cortez. Os
cenários de inspiração gótica e expressionista evocam também o universo escandinavo,
o de Dreyer em particular. Os interiores ( recriados em estúdios) tem em comum uma
compósita qualidade de irrealismo- ou de surrealismo- que dá ao filme sua bizarra
coerência. Para além de toda racionalidade, a narrativa é pontuada de imagens e cenas
inesquecíveis: o cadáver de Shelley Winters no fundo da água, o cântico que Lílian
Gich canta, sentada na varanda, um fuzil pousado nos joelhos, e Mitchum que a
persegue no jardim. Embora noir sob o ponto de vista plástico, o filme está longe de ser
inteiramente pessimista. Uma parte importante de sua mensagem ( na última parte) visa
a mostrar que a resistência natural das crianças e sua inocência podem acabar por vencer
a loucura, a cupidez e o mal que são o quinhão de muitos adultos. Mas o que se tornarão
elas quando crescerem?
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Laranja mecânica, Kubrick

Menos inovador que 2001, obra precedente de Kubrick, Laranja mecânica é o exemplo
típico do filme que vem exatamente na hora que tem de vir, responde a uma expectativa
do público, embora provocando nele um choque e uma surpresa, e assim o preenche
totalmente. Em primeiro lugar, o filme é totalmente de sua época, tomando emprestado
a uma variedade de gêneros literários e dramáticos ( conto filosófico, alegoria, filme de
tese, teatro, sátira e humor noir), todos afetados por um importante coeficiente de
fantástico e ficção científica. No fim dos anos 60, nenhum gênero cinematográfico
possui mais um status dominante. No plano criativo, o fantástico ou a ficção científica
suplantaram ou contaminaram, mais ou menos, a todos. É o caso aqui. O fantástico e a
FC intervém no cadre cronológico da ação, linguagem dos personagens e no tipo de
tratamento aplicado ao herói. Mas sobretudo eles dão uma dimensão apocalíptica à
aventura.
Do ponto de vista temático e sociológico, o filme trata do problema número 1 da
maioria das sociedades modernas ( presente em um grande número de filmes), ou seja, a
violência. Mas Kubrick o estuda sob um ângulo original, comparando a violência do
indivíduo à da sociedade. Kubrick inova também utilizando um estilo onde,
paradoxalmente, o formalismo mais desenfreado reforça, no nível das emoções sentidas
pelo espectador, o caráter cruel, bárbaro e insuportável desta violência. Quando se
mostra mais brilhante, o estilo de Kubrick repousa, em efeito, sobre um equilíbrio
extremamente eficaz entre a sofisticação e a brutalidade. O sentido da fábula de Laranja
mecânica ( que deixa, como em toda fábula digna deste nome, uma parte não
desprezível à reflexão e às hipóteses do espectador) é que a violência da sociedade é
ainda mais nefasta e perigosa que a do indivíduo. Kubrick denuncia o absurdo de uma
sociedade que buscaria estabelecer a ordem e a saúde através de indivíduos
enfraquecidos e doentes ( pois é exatamente uma doença que é inoculada em Alex). Em
um desenlace particularmente noir e corrosivo, Kubrick mostra que a sociedade, que
talvez não tenha tido tanto sucesso como acreditara no tratamento imposto ao perverso,
procura recuperar a violência de Alex e de seus companheiros.
Laranja mecânica representa o filme mais típico de seu autor, pela ambivalência clássica
e barroca. Esta ambivalência aparece tanto no plano formal quanto moral e filosófico.
Pela justeza, o bom senso ( e seríamos quase tentados a dizer pela banalidade) de suas
vistas, pela claridade bem distanciada do que expõe, não deixando mesmo de recorrer a
paralelismos teatrais ( encontros idênticos de Alex antes e depois de seu tratamento) e
pela sã habilidade de uma retórica bem aplicada, Kubrick é um classicista. Por sua
vontade de demonstração a qualquer preço, pela insistência com a qual ele tende a
impor seus efeitos e convicções, e sobretudo por sua recusa do realismo, da precisão e
do particularismo, recusa pela qual ele pensa atingir um público ilimitado, sob todas as
altitudes, Kubrick é um barroco. Mas sua recusa do particularismo, e o fato, por
exemplo, que a intriga se passe numa “terra de ninguém” ( no man’s land) vagamente
anglo-saxônica e em cenários inspirados pelo filme noir e pela ópera, levam às vezes a
uma certa confusão, sobretudo se o espectador busca colocar etiquetas políticas muito
precisas sobre os personagens e o tipo de sociedade onde eles vivem. Este barroquismo
“pela metade” assumido de Kubrick é sem dúvida também a parte mais frágil e mais
vulnerável ao envelhecimento de sua obra.

Nota: Na retranscrição do filme com o auxílio de fotogramas publicada por Kubrick, ele
não esconde seu ecletismo formal e mostra com clareza que faz uso de todos os meios
( il fait feu de tout bois), utilizando segundo a ocasião o estatismo da câmera, amplos
movimentos de aparelho ou efeitos de câmera na mão, quando se trata de valorizar um
cenário, uma situação ou o jogo de um ator. Ele comenta também seu interesse pelo
romance de Burgess: O que me atraiu nele foi a narração, o personagem e as idéias”.
Mas ele admite também “que o diálogo de Burgess no romance é quase perfeito” Sua
principal modificação ao livro concerne ao desenlace: “Há duas versões do livro, mas eu
só li a versão com o capítulo suplementar após meses de trabalho no roteiro. Eu estava
estupefato, pois não tinha nada a ver com o estilo satírico do livro, e penso que foi o
editor quem convenceu Burgess a terminar o livro com uma nota de esperança ou coisa
assim. Honestamente, não podia crer no que tinha diante dos olhos, ao terminar o último
capítulo. Alex sai da prisão e volta para casa. Um dos rapazes se casa, o outro
desaparece, e no fim Alex toma a decisão de se tornar um adulto responsável”.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

2001, uma odisséia no espaço, Kubrick

Como disse Jacques Goimard: “2001 é o primeiro filme desde Intolerância que é ao
mesmo tempo uma superprodução e um filme experimental”. Ao contrário de várias
superproduções holywoodianas, este filme emana, no sentido e na forma, de um único
homem, sem passar de mão em mão, apesar de possuir uma gênese longa ( 1964-1968),
durante a qual o orçamento inicial cresceu de seis a dez milhões e meio de dólares.
A contribuição do roteirista e escritor de Ficção científica Arthur Clarke foi muito
importante. No início de 1964, Kubrick propõe a Clarke escrever um roteiro com vistas
a um filme de ficção científica , mas que primeiro teria a forma de um romance escrito a
duas mãos. O ponto de partida do romance e do filme foram as novelas de Clarke “The
sentinel” ( escrita em 1948) , “Encounter in the Dawn” ( 1950) e “Guardian Angel”
( 1950). O trabalho de escritura e preparação do filme duraram até 29-12-1965, data do
primeiro dia de filmagem. A filmagem se estendeu por cerca de 7 meses ( nos estúdios
Boreham Wood, na Inglaterra) , e a pós-produção ( mais de 200 planos do filme
necessitaram de efeitos especiais) só chegou ao fim no começo de 68.
O trabalho e a inspiração de Kubrick visavam dois fins paralelos: realizar o filme de FC
mais espetacular feito até ali ( com as maquetes, os efeitos especiais mais bem cuidados
e sofisticados, graças ao talento de Douglas Trumbull) e destilar uma espécie de poema
filosófico sobre o destino do Homem em sua relação com o Tempo, o progresso e o
universo. Esta dupla ambição conduz a uma obra de construção muito original e
arriscada, feita de quatro blocos relativamente autônomos, o que coloca também em
relevo o virtuosismo de Kubrick e sua vontade de percorrer o campo quase completo do
gênero ( como bem o coloca Bernard Eisenschitz em Cahiers du Cinema 209: “O
domínio de Kubrick aparece na justaposição e combinação de quatro grandes motivos
característicos: FC pré-histórica, antecipação a curto prazo, viagens interplanetárias,
enfim grandes galáxias, mutantes no hiperespaço”).
Basicamente, 2001 é um filme de angústia- uma angústia difusa, glacial, cuja substância
é , por assim dizer, consubstancial à existência do homem no universo. É a angústia-
física e metafísica- do homem perdido nos espaços infinitos, mas também acossado, em
todas as épocas, pela próxima etapa- inelutável- do progresso científico, que não deixará
de ser para ele ainda mais destrutivo que construtivo.
Mas 2001 é também um filme de especulação: a influência dos extra-terrestres ( que se
manifesta nos monólitos), a mutação final do herói engendrarão talvez uma forma de
vida e de desenvolvimento menos decepcionante, menos imperfeita que aquela
conhecida por nós. Sob esta perspectiva, o filme pode ser julgado otimista. Mas
enquanto o pessimismo de Kubrick é ressentido como uma evidência durante a maior
parte do filme ( onde mesmo a vida cotidiana dos personagens, tornados simples servos
das máquinas e do cérebro que os comanda, engendra uma deprimente monotonia,
semelhante ao “tédio mortal da imortalidade” de que fala Cocteau), seu otimismo
permanece puramente especulativo e, enquanto tal, existe apenas como um imenso
ponto de interrogação. Otimismo a bem dizer muito relativo, uma vez que tudo o que
poderia advir de melhor para o homem viria “de fora”, e sem que este o tenha decidido.
Kubrick parece mesmo emitir a hipótese de que toda evolução científica do homem
pode ser determinada pela intervenção de extra-terrestres.
No plano formal, Kubrick alterna com uma maravilhosa plenitude o aspecto
contemplativo ( evolução das naves no espaço) e o aspecto dramático ( vide o
extraordinário duelo entre Keir Dullea e o computador Hal 9000, que não terá a última
palavra). Ele irisa os vastos espaços de angústia disseminados pelo filme com estreitas
zonas de humor. Humor ora relativamente secreto ( troca de banalidades entre os
astronautas) , ora mais evidente ( utilização da música de Johann Strauss). Tudo o que
se sabe a respeito da elaboração do filme, das hesitações e tateamentos de Kubrick
mostra que ele desejou ir cada vez mais longe na direção do silêncio, da economia, do
segredo e do mistério. Nesse sentido, ele suprimiu o comentário em off do início,
reduziu ao mínimo o número de membros da equipe da Discovery, renunciou a mostrar
os extra-terrestres. Esta direção foi muito benéfica para o filme. Estimulou, como nunca
antes num filme com tal orçamento, a imaginação do espectador. ( E é significativo que
a maioria dos comentários escritos sobre 2001, tanto na Europa quanto nos Estados
Unidos, sejam no geral de um altíssimo nível). Ela teve igualmente por efeito dirimir no
estilo a tendência de Kubrick a sublinhar pesadamente seus efeitos e suas intenções: de
todos os seus filmes, 2001 é o mais sóbrio, mais completo e mais bem acabado. No que
concerne à história da Ficção Científica cinematográfica, 2001, que criou em seu
lançamento um choque cujo eco ainda hoje não se extinguiu, se situa na crista de uma
década na qual o gênero deveria tornar-se enfim predominante, depois de ter sido
considerado minoritário e marginal durante cinqüenta anos em Holywood.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

O gênio de Howard Hawks. Jacques Rivette, Cahiers du Cinéma 23


( maio 1953)

A evidência na tela é a prova do gênio de Hawks: basta assistir a O Inventor da


Mocidade para saber que é um filme brilhante. Alguns recusam-se a admiti-lo, no
entanto; eles recusam a persuasão pelas evidências. Não pode haver outro motivo para
que não o reconheçam.A obra de Hawks é igualmente dividida entre comédias e dramas
– uma ambivalência notável. Ainda mais notável é a fusão desses elementos para que
cada um, ao invés de danificar ao outro, sublinhe a reciprocidade: um afia o outro. A
comédia jamais está ausente por muito tempo nos enredos mais dramáticos, e ela, longe
de comprometer a sensação de tragédia, remove o fatalismo complacente para manter os
eventos num equilíbrio perigoso, uma incerteza estimulante que colabora para a força
do drama. O secretário de Scarface fala um inglês comicamente embolado, mas isso não
o impede de ser baleado; nosso riso no decorrer de À Beira do Abismo é inseparável do
receio do perigo; o clímax de Rio Vermelho, quando não estamos mais certos das
nossos emoções, avaliando qual lado tomar e se devemos nos deleitar ou assustar,
coloca nossos nervos em pânico e nos instala num estado tão atordoante e vertiginoso
quanto o do equilibrista na corda-bamba cujo pé vacila sem escorregar, um sentimento
tão inquietante quanto o término de um pesadelo.Enquanto a comédia confere à tragédia
hawksiana sua efetividade, ela não consegue dissipar (não a tragédia; não vamos
estragar nossos melhores argumentos ao ir longe demais) a forte impressão de uma
existência em que nenhuma ação pode desatar-se da teia da responsabilidade.
Poderíamos ser expostos a uma visão de vida mais amarga que essa? Tenho que
confessar ser um tanto incapaz de aderir às risadas de uma sala lotada enquanto sou
arrebitado pelas viravoltas da fábula (O Inventor da Mocidade) que retrata – alegre,
lógica e impiedosamente – os decisivos estágios de degradação de uma inteligência
superior.Não é um acaso que grupos semelhantes de intelectuais apareçam tanto em
Bola de Fogo e O Monstro do Ártico. Hawks, porém, preocupa-se menos com a
submissão do mundo à visão fria e enfadonha da mente científica que com o retrato das
desgraças cômicas da inteligência. Hawks não está preocupado com a sátira ou a
psicologia; para ele, as sociedades não significam mais que sentimentos; ao contrário de
Capra ou McCarey, ele está exclusivamente interessado na aventura do intelecto. Se ele
opõe o velho ao novo - o conhecimento humano acumulado do passado às formas
degradadas da vida moderna (Bola de Fogo, A Canção Prometida), ou o homem à besta
(Levada da Breca), ele se atém à mesma história – a intrusão do inumano, ou da
manifestação mais crua de humanidade, na sociedade altamente civilizada. Em O
Monstro do Ártico, a máscara finalmente cai: no confinado espaço do universo, alguns
homens da ciência estão engalfinhados com uma criatura pior que o inumano, uma
criatura do outro mundo; seus esforços pretendem enquadrá-la nos parâmetros lógicos
do conhecimento humano.Mas, em O Inventor da Mocidade, o inimigo adentrou o
próprio homem: o sutil veneno da fonte da juventude, a tentação do infantilismo. Esta
sabemos há muito tempo ser uma das menos sutis astúcias do Mal – a um tempo na
forma de cão de caça(hound), outrora na forma do macaco – quando enfrenta o homem
de rara inteligência. E é a mais infeliz das ilusões que Hawks ataca com crueldade: a
noção de que a adolescência e a infância são estados bárbaros dos quais somos
resgatados pela educação. A criança é dificilmente distinguível do selvagem que a imita
em suas brincadeiras: até o idoso mais distinto, depois de ingerir o precioso líquido,
imita um chimpanzé com prazer. Pode-se encontrar nisso uma concepção clássica do
homem, uma criatura cujo único trajeto para a grandeza reside na experiência e na
maturidade; ao fim de seu percurso, sua avançada idade irá julgá-lo.Ainda pior que o
infantilismo, degradação, ou decadência, no entanto, é a fascinação que essas tendências
exercem na mesma inteligência que as percebe como más. O filme não é meramente
uma história sobre essa fascinação; ele se coloca ao espectador como uma demonstração
do poder da fascinação. Igualmente, qualquer um que critique essa tendência deve
primeiramente submeter-se a ela.
Os macacos, os índios, o peixinho dourado não são mais que disfarce para a obsessão de
Hawks com o primitivismo, que também ganha expressão nos selvagens ritmos da
música tom-tom, na doce estupidez de Marilyn Monroe (o monstro de feminilidade que
o figurinista quase deformou), ou no momento em que a envelhecida bacante Ginger
Rogers retoma a adolescência e suas rugas esmaecem. A euforia instintiva das ações das
personagens confere uma qualidade lírica para a feiúra e a asneira, uma densidade de
expressão que eleva tudo à abstração: a fascinação por tudo isso confere beleza à
respectiva metamorfose. Poder-se-ia aplicar a palavra “expressionista” para a maestria
com que Cary Grant desdobra seus gestos em símbolos; olhando a cena em que ele se
disfarça de índio, é impossível não se lembrar do famoso plano de O Anjo Azul em que
Jannings olha o seu rosto distorcido. Não é de maneira alguma fácil comparar esses dois
contos da ruína: recordamos como os temas de danação e maldição no cinema alemão
impuseram a mesma variação rigorosa do agradável para o medonho.Do close-up do
chimpanzé ao momento em que a fralda escorrega do Cary Grant bebê, a cabeça do
espectador nada em constante turbilhão de imodéstia e impropriedade. E o que é essa
sensação se não a mistura de medo, censura – e fascinação?
O encantamento pelo instintivo, a renúncia para as forças terrenas primitivas, a
maldade, a feiúra, a estupidez – todos os atributos do Diabo são, nessas comédias em
que a própria alma sofre a tentação da bestialidade, tortuosamente combinados com a
lógica in extremis; o ponto mais afiado da inteligência é revertido contra si. A Noiva
Era Ele toma como tema simplesmente a impossibilidade de encontrar um lugar para
dormir e, em seguida, o prolonga até os extremos do aviltamento e da
desmoralização.Hawks sabe melhor que qualquer outro que a arte deve ir aos extremos,
mesmo os extremos da sordidez, porque essa é a fonte de comédia. Ele nunca teme usar
bizarras guinadas narrativas, uma vez estabelecendo que elas são possíveis. Ele não
tenta confundir as inclinações vulgares do espectador; ele as afirma ao levá-las um
passo adiante. Isso é também o gênio de Molière: suas loucas relações lógicas são
capazes de fazer o riso impregnar a garganta. É também o gênio de Murnau – a famosa
cena com Dame Martha em seu excelente Tartufo e várias seqüências de A Última
Gargalhada ainda são modelos de cinema molieresquiano.Hawks é o diretor da
inteligência e da precisão, mas é também um maço de forças negras e fascinações
estranhas; ele é um espírito teutônico, atraído por surtos de furor controlado que geram
uma cadeia infinita de conseqüências. A existência de sua continuidade é a
manifestação do Destino. Os heróis demonstram isso não tanto nos sentimentos, como
nas ações, observadas por Hawks com meticulosidade e paixão. É as ações que ele
filma, meditando sobre o poder autônomo da aparência. Não nos preocupamos com os
pensamentos de John Wayne enquanto ele anda em direção a Montgomery Clift ao final
de Rio Vermelho, ou nos pensamentos de Bogart enquanto ele bate em alguém: nossa
atenção é direcionada unicamente para a precisão de cada passo – o exato ritmo do
andar, de cada golpe - e o gradual colapso do corpo exaurido.
Mas ao mesmo tempo, Hawks exemplifica as mais altas qualidades do cinema
americano: ele é o único diretor americano que sabe como delinear a moral. Sua
maravilhosa fusão de ação e moralidade é provavelmente o segredo do gênio. Não é a
idéia o que fascina em um filme de Hawks, mas a eficácia. A ação prende nossa atenção
não tanto pela beleza intrínseca quanto por sua eficiência e pelos mecanismos internos
que regem seu universo.Uma arte dessas exige uma honestidade básica, e o uso que
Hawks faz do tempo e do espaço é testemunha disso – sem flashbacks, sem elipses; a
regra é continuidade. Nenhum personagem desaparece sem que o sigamos, nada
surpreende o herói se não nos surpreender ao mesmo tempo. Parece haver uma lei por
trás da ação e edição de Hawks, uma lei biológica, porém, como a que regula a vida de
qualquer ser vivo: cada cena tem uma beleza funcional, como um pescoço ou um
tornozelo. A deslizante e regular sucessão de planos têm o ritmo da pulsação sangüínea
e o filme todo é como um belíssimo corpo mantido vivo por uma respiração profunda e
resiliente.Essa obsessão pela continuidade impõe aos filmes de Hawks a impressão de
monotonia, do tipo geralmente associado à idéia de uma jornada a ser cumprida ou um
curso a ser percorrido (Águias Amaricanas, Rio Vermelho), porque tudo é apreendido
em conexão com todo o resto, tempo ao espaço e espaço ao tempo. Daí em filmes
predominantemente cômicos (Uma Aventura na Martinica, À Beira do Abismo), os
personagens são confinados em poucos cenários e se locomovem um tanto
desgraçadamente dentro deles. Começamos a sentir a gravidade de cada movimento que
fazem e somos incapazes de escapar à sua presença. Mas o drama hawksiano é sempre
expresso em noções espaciais e as variações nos cenários são acompanhadas das
variações temporais: seja no drama de Scarface, cujo reino encolhe da cidade que
outrora governava para o quarto em que é finalmente enclausurado, ou o dos cientistas
que não se atrevem a deixar a cabana por temerem a coisa (O Monstro do Ártico); dos
pilotos de Paraíso Infernal, presos na sua estação pela névoa e conseguindo escapar para
as montanhas de tempos em tempos, assim como Bogart (Uma Aventura na Martinica)
escapa para o mar partindo do hotel que ele ronda impotentemente, entre o porão e seu
quarto; mesmo quando esses temas são tornados burlescos em Bola de Fogo, com o
gramático saindo de sua biblioteca hermética para encarar os perigos da cidade, ou em
O Inventor da Mocidade, em que os passeios dos personagens indiciam a reversão para
a infância (A Noiva Era Ele trabalha o motivo da jornada de outra forma), sempre os
heróis caminham em direção ao seu destino.A monotonia é apenas uma fachada. Sob
ela, sentimentos estão amadurecendo lentamente, evoluindo passo a passo rumo ao
clímax violento. Hawks utiliza lassidão como dispositivo dramático – para transmitir a
exasperação dos homens obrigados a se reter por duas horas, pacientemente contendo
raiva, ódio, ou amor diante dos nossos olhos para repentinamente libertá-los, como
baterias lentamente carregadas que eventualmente soltam uma faísca. A raiva dos
personagens é elevada pelo habitual sangue-frio; a fachada calma é impregnada da
emoção, com o oculto tremer de nervos e almas – até que o copo transborda. Um filme
de Hawks freqüentemente possui a mesma sensação da agonizante espera da queda de
uma gota d’água.
As comédias mostram outro lado desse princípio da monotonia. O andamento da ação é
substituído pela repetição, como a retórica de Raymond Roussel substituindo a de
Péguy; as mesmas ações, eternamente recorrendo, que Hawks desenvolve com a
persistência de um maníaco e a paciência de um obcecado, repentinamente embaralham,
como que à mercê de um capcioso redemoinho.Qual outro homem de gênio, ainda que
estivesse mais obcecado pela continuidade, poderia ser mais apaixonadamente
preocupado com as conseqüências das ações dos homens, ou da relação dessas ações
uma com a outra? A maneira com que elas influenciam, repelem ou atraem uma à outra
se torna um mundo unificado e coerente, um universo newtoniano cujos princípios
governantes são a lei universal da gravidade e a profunda convicção da gravidade da
existência. Ações humanas são medidas e pesadas por um diretor-mestre, preocupado
com as responsabilidades do homem.A medida dos filmes de Hawks é a inteligência,
mas a inteligência pragmática, aplicada diretamente para o mundo físico, uma
inteligência que retira sua eficácia do ponto de vista exato de uma profissão ou de
alguma forma de atividade humana atrelada ao mundo e ansiosa por conquista. Marlowe
em À Beira do Abismo pratica a profissão assim como o cientista ou o aviador; e
quando Bogart aluga seu barco em Uma Aventura na Martinica, ele mal olha para o
mar: está mais interessado na beleza de seus passageiros que na beleza das ondas. Cada
rio existe para ser cruzado, cada rebanho é feito para ser engordado e vendido pelo
preço mais alto. E as mulheres, não obstante sedutoras, por mais que o herói se afeiçoe a
elas, devem juntar-se a ele na luta.É impossível evocar adequadamente Uma Aventura
na Martinica sem imediatamente lembrar a batalha com o peixe no começo do filme. O
universo não pode ser conquistado sem a luta, e a luta é natural para os heróis
hawksianos: briga corpo-a-corpo. Que entendimento mais próximo do outro poderíamos
esperar, se não uma batalha vigorosa como essa? Assim, o amor existe mesmo onde há
oposição perpétua; é um duelo amargo cujos perigos constantes são ignorados por
homens intoxicados pela paixão (À Beira do Abismo, Rio Vermelho). Da competição
surge a estima - essa palavra admirável englobando sabedoria, apreciação e simpatia: o
oponente vira um parceiro. O herói sente repulsa se tiver que enfrentar um inimigo que
se recusa a lutar; Marlowe, tomado por amargura súbita, precipita os eventos para
apressar o clímax de seu caso. Maturidade é a marca da qualidade desses homens
meditativos, heróis de um mundo adulto, quase sempre exclusivamente masculino, cuja
tragédia está nos relacionamentos pessoais; comédia advém da intrusão e mescla de
elementos alienígenas, ou objetos mecânicos que lhes tiram a livre iniciativa – aquela
liberdade de decisão pela qual o homem pode expressar-se e afirmar sua existência,
assim como um criador faz no ato de criação.
Não quero parecer estar elogiando Hawks por ele ser um “gênio alienado do seu
tempo”, mas é a obviedade de sua modernidade que me impede de detratá-la. Prefiro, ao
invés disso, apontar como, mesmo ocasionalmente levado ao ridículo ou ao absurdo,
Hawks concentra-se primeiramente no cheiro e na sensação da realidade, conferindo-lhe
uma pouco usual e profundamente oculta grandeza e nobreza; como Hawks dá à
sensibilidade moderna a consciência clássica. O pai de Rio Vermelho e Paraíso Infernal
não é outro senão Corneille; ambigüidade e complexidade são compatíveis apenas com
os sentimentos mais nobres, que alguns ainda consideram “tediosos”, mesmo que não
sejam esses sentimentos os primeiros a serem exauridos, mas antes a natureza bárbara e
mutável das almas brutas – eis o motivo de romances modernos serem tão chatos.
Finalmente, como poderia omitir menção às maravilhosas cenas de abertura hawksianas
em que o herói se estabelece firme e tranqüilamente? Sem preliminares, sem
dispositivos expositores: uma porta abre e lá está ele em sua primeira tomada. A
conversação avança e silenciosamente nos familiariza com seu ritmo pessoal; depois de
esbarrar nele assim, não podemos deixar de ficar a seu lado. Somos seus companheiros
ao longo da jornada enquanto ela se desenrola com tanta certeza e regularidade quanto a
película que atravessa o projetor. O herói move-se com mesma leveza e constância do
montanhista que inicia com passo firme e o mantém nas trilhas mais árduas, inclusive
até o final da marcha mais longa do dia.Partindo desses primeiros indícios, não estamos
apenas certos de que os heróis nunca nos abandonarão, mas também sabemos que eles
se agarrarão às suas promessas para além de qualquer limite, e nunca hesitarão ou
desistirão: ninguém consegue parar sua maravilhosa obstinação e tenacidade. Uma vez
estabelecidos, eles irão até o esgotamento das forças, levarão as promessas que fizeram
às conclusões lógicas, seja lá quais forem elas. O que é iniciado precisa ser encerrado.
Não importa que os heróis sejam quase sempre empurrados contra seus desejos: ao se
provarem a eles mesmos, ao atingir seus fins, eles vencem o direito de serem livres e a
honra de se chamarem homens. Para eles, lógica não é uma fria atividade intelectual,
mas a prova de que o corpo é um todo coerente, seguindo harmoniosamente as
conseqüências, em ato de lealdade a si. O vigor da força de vontade dos heróis é a
garantia da unidade entre homem e espírito em nome daquilo que, duplamente, justifica
a existência e lhe confere seu sentido mais elevado.Se é verdade que somos fascinados
por extremos, por tudo que é ousado e excessivo, e que achamos grandeza na falta de
moderação – então é dedutível que deveríamos nos intrigar com o choque dos extremos,
porque estes agregam a precisão intelectual das abstrações e a magia elementar dos
grandes impulsos mundanos, conectando tempestades com equações em afirmação da
vida. A beleza do filme de Hawks advém desse tipo de afirmação, persistente e serena,
sem remorsos e sobressaltos. É uma beleza que manifesta a existência pelo respirar e o
movimento pelo andar. O que é, é. (That which is, is).
Tradução de francês para inglês por Russel Campbell e Marvin Pister, adaptado da
tradução de Adrian Brine. Tradução de inglês para português de Nikola Matevski.

Il cavaliere misterioso, Freda 1948

Depois de Don César de Bazan e o primeiro Áquila nera, duas obras que restituíam ao
filme de aventuras italiano seu vigor, seu picaresco, seu dinamismo originais, em
oposição ao caligrafismo mórbido do período fascista, Freda assina este Cavaleiro
misterioso, uma narrativa de tom muito mais pessoal e uma de suas obras-primas. Seu
virtuosismo o leva a incluir um retrato original de Casanova ( Gassman aqui no início
de carreira- é seu sétimo filme- é o mais verossímil e “raçudo” de todos os Casanovas
da tela) em uma narrativa de aventuras polivalente que possui, ao longo das sequências,
a progressão enigmática e obscura de um récit policial ou a atmosfera insólita e
angustiante de um conto quase fantástico ( as cenas em Viena). Sem, evidentemente,
esquecer este clima de intriga e de “marivaudage” ( de Marivaux, escritor francês do
século XVIII) glacial, através dos quais Freda nos dá sua visão do século XVIII. Ele
coloca aqui com brio o seu universo pessoal: um mundo de perfídia, de cálculo e
crueldade, onde a sinceridade é sempre perdedora, iluminado por uma elegante luz
crepuscular. Como sempre em Freda, o aspecto plástico do filme ( cenário, figurino,
fotografia) é extremamente cuidado, mas de forma alguma cultivado por ele mesmo.Ele
se encontra sempre maravilhosamente situado em uma concepção ultra-dinâmica da
narrativa cinematográfica. Neste sentido, as seqüências finais da perseguição de trenós,
que utilizam todas as variações do branco, são exemplares. Possuem um belo fôlego
rítmico e destilam, mesclada à suntuosidade visual, uma nota de desencantamento e de
amargura características do autor.

Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

La leggenda del Piave, Freda 1952

Longe do neo-realismo, Freda assina com La leggenda del Piave um filme formalmente
riquíssimo que toma elementos emprestados do melodrama, do filme de aventuras, do
afresco histórico. A matéria do filme repousa sobre contrastes violentos: heroísmo e
covardia ( vistos aqui no interior de um mesmo personagem, portanto fora de todo
maniqueísmo) , doçura e brutalidade, exaltação e desânimo, vitória e derrota. Ela se
sustenta também na exaltação sistemática dos sentimentos fortes, que buscam a
retomada das fontes de toda aventura e de toda História. O filme acolhe o realismo, mas
com a condição de que este possua uma dimensão épica, que ultrapasse a anedota e a
simples verdade do momento.Trata-se, para Freda, de reencontrar na história particular
de um lugar e de uma época o que ela pode ter em comum, em seu registro do
grandioso, do heróico e do passional, com outros lugares e épocas. Freda é, com efeito,
animado pela visão de uma espécie de eternidade da História, que se poderia também
chamar de poesia. Sua mise em scéne é particularmente forte nas cenas de ação e
movimento, acolhendo o espaço onde se esvai uma multidão desvairada e indivíduos
tomados por sentimentos extremos. O découpage, vívido e variado, utiliza toda a gama
de planos. O filme tem também a originalidade de manter na narrativa, com igual nível
de interesse, um ponto de vista masculino e feminino ( dualidade que se encontrava já
no Passaporte rosso, de Guido Bignone). Esta originalidade implica aqui uma fusão
insólita e interessante entre o melodrama e o filme de guerra.

Nota: Como sempre em Freda, a filmagem foi muito rápida, sobretudo em se tratando
de um filme com muitos figurantes ( 4 semanas, nos arredores de Roma).
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Beatrice Cenci, Freda

Primeiro Cinemascope de Freda. Na tela larga, com um orçamento médio ao qual ele
sabe emprestar a aparência da magnificência, Freda celebra em imagens suntuosas as
núpcias do melodrama e da História. O que a História perde em veracidade, o
melodrama conquista em caráter febril, lirismo, intensidade na pintura de um passado
revivido no presente. Beatrice é metamorfoseada aqui em sublime heroína de
melodrama, e a continuidade da narrativa oferece, à maneira da ópera, uma justaposição
lírica e plástica de momentos fortes delineados sobre a trama de seu destino
inexoravelmente trágico. No entanto, o dinamismo e a capacidade de aliciamento da
mise em scéne de Freda são tais que o espectador, perto do fim, põe-se a imaginar que
esta história foi inventada, que ela se recria à medida em que é contada e que Beatrice,
por obra de intercessão de algum milagre, poderia escapar à sua sorte trágica. A
originalidade do estilo de Freda- uma permanente e viva contestação do academicismo-
repousa sobre uma igual atenção dispensada ao dinamismo do conjunto da narrativa e à
composição plástica de cada cena. Esta síntese da dinâmica e da plástica, sempre muito
natural em Freda, e que nos faz “passar por cima” de algumas imperfeições no roteiro e
na direção de atores, encontra neste filme uma de suas melhores aplicações. Outras
versões dirigidas por Mario Caserini ( 1908) e Guido Brignone ( 1941).
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Dillinger está morto, Ferreri

Descrição experimental e quase muda da angústia da alienação do homem


contemporâneo, perdido em seus objetos, seu conforto, nos sons e nas imagens
difundidos ao longo do dia pela televisão. O filme pode ser visto como um sonho ou
uma metáfora da insônia, aspiração para o Nada do sono ou da morte. Sua duração é
sufocante e castradora, seqüência de gestos privados do devir e de finalidade, filmados
em longos planos sequências voluntariamente desprovidos de dinamismo interno. Na
vacuidade desta durée, o assassinato da esposa representa para o personagem o gesto
mais gratuito e o mais significativo que este poderia cometer. A visão deste filme e a
visão do mundo que se exprime nele parecerão a muitos uma mauvaise farse ( ( uma
farsa de mau-gosto). É isto o que Ferreri deseja. No interior da obra desesperada,
iconoclasta, teratológica de Ferreri, Dillinger está morto é uma espécie de ápice, uma
anti-fábula, um anti-drama, algo como um longo interlúdio de televisão que podemos
assistir comendo ou pensando em outra coisa. Uma expressão limite da fascinação do
vazio.
Nota: Ferreri , 16 anos mais tarde, vai construir o desenlace de I love you utilizando os
planos do final de Dillinger.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Intolerância, David W. Griffith

Antes de fazer Nascimento de uma nação, Griffith tinha terminado um melodrama


intitulado The Mother and the Law, baseado no massacre de Ludlow, no Colorado, onde
dezenas de grevistas de uma mina dos Rockfeller encontraram a morte. O filme
apresenta também uma semelhança- mas trata-se apenas de uma coincidência- com o
caso Stielow ( um condenado à morte fora salvo no último momento da cadeira elétrica
pela confissão do culpado), que fez sensação na época do lançamento do filme. O
sucesso colossal de Nascimento de uma nação, assim como certas críticas endereçadas
pessoalmente a Griffith ( não o acusaram de racismo?), dispersaram suas ambições e o
levaram a imaginar, a partir do núcleo de The mother and the law, um filme no qual o
gigantismo e a mensagem de alcance universal impusessem o silêncio a todos. Ele
estava decidido a enriquecer o melodrama contemporâneo por meio de três evocações,
três metáforas históricas ( A Queda da Babilônia, a Crucificação de Cristo, a Noite de
São Bartolomeu) que dariam ao conjunto uma amplidão espaço-temporal jamais vista.
A filmagem iria durar 16 semanas e custar 400 000 dólares ( soma enorme para a época,
que depois os historiadores multiplicarão generosamente por cinco). Cenários
gigantescos foram construídos e, para as cenas que se desenrolam no cenário do palácio
da Babilônia ( 45 metros de altura), Huck Workman, o cenarista principal, fabrica um
“chariot” de travelling gigante, de 45 m igualmente, e do qual “ a plataforma no ápice,
-escreve o operador Billy Bitzer-, mediria cerca de dois metros de lado, e não estava
longe de ter 20 metros de largura na base.” A torre estava montada sobre seis jogos de
bogies com quatro rodas tomadas de empréstimo a vagões ferroviários, e havia um
elevador no meio. O chariot ( carro de vagão) se deslocava sobre trilhos posicionados à
distância, oferecendo recuo suficiente para que a câmera englobasse o conjunto do
cenário, sobre o qual estavam reunidos 5000 figurantes, e sobretudo os personagens
situados em torno das grandes muralhas do palácio. Esta gigantesca “tour a roulettes”
avançava e recuava sobre trilhos, impulsionada delicadamente por 25 manobras. Uma
outra equipe assegurava o funcionamento do elevador, que deveria subir enquanto o
“chariot” se deslocava para a frente. Os planos filmados com esta aparelhagem foram os
mais espetaculares do filme.
A notar que, assim como Griffith trabalhava sem roteiro, os cenários construídos para o
filme o foram sem plano de conjunto prévio. Eles foram se constituindo ao sabor das
idéias e das cotidianas inovações do realizador. A metragem da película impressa
durante a totalidade da filmagem equivalia a 76 horas de projeção, mas o filme, em seu
lançamento, comportava 14 bobinas ( 13. 500 pés), ou seja, em torno de 3 horas de
projeção. O sucesso, tanto na América quanto no estrangeiro, ficou longe de estar à
altura das esperanças, e sobretudo do capital investido. O filme perdeu o equivalente à
metade de seu orçamento, e deixou Griffith endividado por longo tempo. A fim de
recuperar um pouco o dinheiro, ele remontou e lançou separadamente em 1919 o
episódio moderno sob o título inicial, The mother and the law, e o episódio babiloniano
sob o título The fall of Babylon. O insucesso do filme foi o golpe fatal para a Triangle,
que tinha participado da produção. Ela foi dissolvida em 1918, depois de três anos de
existência. ( No ano seguinte, Griffith iria fundar com Douglas Fairbanks, Mary
Pickford e Chaplin, a Artistas Associados, que desapareceria sessenta anos mais tarde
com outro retumbante fracasso comercial, Heaven’s gate de Cimino).
Ao longo dos anos, os historiadores permaneceram muito divididos em relação aos
méritos da obra. Divididos não entre detratores e laudatores- ninguém negaria a
envergadura única da obra-, mas divididos no interior de si mesmos e em relação às
críticas e elogios que cada um faz ao filme. Embora admire o filme, Delluc fala de “tohu
bohu inexplicável”, Mitry de “monumento construído sobre a areia”, Sadoul critica a
“ideologia pretensiosa do grande homem, sua ausência total de senso do ridículo, seu
pedantismo de autodidata”, etc. Ele ridiculariza o modo como os personagens são
chamados, não sem cometer, ao mencioná-las, um monumental contra senso ( The Dear
One torna-se a Querida Numero Um, The Friendless One vira A Abandonada Número
um). Tirando alguns admiradores incondicionais, como Claude Beyllie, que estima que
a única forma de entrever a unidade do filme é ao assimilá-lo ao poema de
Whitman( que aliás inspira o leitmotiv visual da mulher com o berço), é sobretudo aos
teoristas que o filme encanta, e sobretudo aqueles que prezam a análise das
originalidades, as exceções, os grandes naufrágios da história do cinema, com o objetivo
de, através deles, adivinhar o que poderia ter sido o cinema se tivesse tomado outros
caminhos. Para eles, Intolerância é evidentemente o filme ideal, por representar o mais
fabuloso impasse do cinema, aquele no qual, guiado por sua vitalidade instintiva, o
cinema se preservou de perseverar. Tendo indicado um novo caminho para os cineastas
do mundo inteiro, Intolerância não foi seguido nem imitado por ninguém ( salvo talvez
por Buster Keaton em Three Ages, mas a título de paródia!). Mesmo os formalistas
russos, sobre os quais o filme mais exerceu influência, em nosso conhecimento não se
aventuraram em nenhum empreendimento análogo. Pierre Baudry resumiu bem ( em As
aventuras da Idéia) em que consiste a unicidade do filme: “O que é problemático aqui
antes de tudo é que, contrariamente à quase totalidade dos filmes da história do cinema,
o princípio de organização de Intolerância se estabelece sobre um material
deliberadamente heterogêneo (...). Que grupos de personagens e de situações que não
tenham na realidade nada em comum se encontrem reunidos no mesmo espaço ( a tela
da projeção) , este é o escândalo de Intolerância. (...). O filme de Griffith é o lugar de
uma tensão entre a heterogeneidade do seu material ficcional e a racionalidade que o
funda e unifica”.
Todo amador de cinema ( entendo do cinema tal como ele é e foi nas suas obras mais
duráveis) vê bem que esta tensão, se tivesse se tornado a lei comum, teria sem dúvida
provocado a morte desta arte tão frágil e ameaçada- justamente enquanto arte- a cada
etapa de seu desenvolvimento. O cinema compreendeu que em duas, três ou mesmo
quatro horas de projeção era-lhe impossível evocar, compreender e fazer compreender ,
e ainda menos ligar a uma intenção individual e particular, eventos históricos e políticos
distintos, infinitamente complexos e – além do mais- situados em épocas diferentes. Ele
compreendeu que sua vocação era ser um microscópio que serviria para escrutar
territórios menores, às vezes territórios mais vastos, mas então estritamente limitados
em seu cadre e suas perspectivas ( ver, neste sentido, o admirável rigor de um filme
como o primeiro Dez mandamentos de DeMille, que repousa igualmente sobre uma
metáfora entre diferentes épocas). Mais próximo da novela que do romance ou do
afresco, mais próximo da peça em ato único que da tragédia em cinco atos, o cinema
descobriu prematuramente em sua história que sua grandeza residia em sua modéstia e
intensidade na minúcia. Ele sentiu que a Idéia deveria desaparecer ( s’effacer) perante a
análise e a exposição dos fatos, e que unicamente este desaparecimento poderia , ao fim,
servir à Idéia.
Na oposição a isto, Griffith quer que a Idéia ponha os fatos, os personagens e as épocas
sob seu jugo. Ele tem por certo que a metáfora é, em si mesma, mais importante que os
elementos que ela põe em relação. Mas a Idéia, quando se torna tão dominadora, se
reduz no cinema a ser nada além que um vago truísmo sentimental, como aqui- a bem
dizer, sempre útil a repetir-, que um traço, um grito clamando a que nos elevemos
contra todas as formas de puritanismo, intolerância, injustiça. Quanto aos fatos, aos
eventos representados na tela, tornam-se meras ilustrações, monolíticas e desvitalizadas,
da Idéia.
A originalidade de Intolerância é, portanto, antes de tudo formal. Mas mesmo neste
plano ela permanece limitada a um nível bem particular. Por exemplo, ela não se situa
no estilo respectivo dos diferentes episódios. É significativo nesse sentido que os
historiadores antigos ( Sadoul, por exemplo) e os teoristas modernos ( Pierre Baudry)
estejam totalmente de acordo- uma tal identidade de visões é algo raríssimo- ao designar
os diferentes empréstimos estilísticos ( um a um reconhecidos e negados pelo próprio
Griffith) que determinam a especificidade formal de cada uma das histórias. O episódio
do Cristo evoca as Paixões produzidas pela Pathé e rodadas em torno de 1900
( sobretudo aquela de Zecca e Nonguet, 1902), tableaux vivants com caráter edificante.
O episódio de São Bartolomeu se refere aos Filmes de Arte , e notadamente ao célebre
Assassinato do duque de Guise de Le Bargy e Calmettes ( 1908), do qual ele toma
emprestada esta teatralidade solene e rígida que impressiona tanto os cineastas no
mundo inteiro, em particular Dreyer. The Fall of Babylon é claramente inspirada dos
primeiros peplums italianos, Quo Vadis de Guazzoni ( 1912) e Cabiria de Pastrone
( 1914), que Griffith sonhava emular. Quanto ao episódio moderno, é um melodrama na
linha dos numerosos curtas-metragens rodados por Griffith na Biograph, ao qual é dado
um acento social mais pronunciado.
A originalidade essencial de Intolerância reside evidentemente no entrelaçamento de
seus quatro episódios. Esta representa o produto de inumeráveis audácias e inovações da
montagem, e obedece a um princípio de aceleração constante. As partes de cada um dos
episódios, à medida em que o filme avança, tornam-se cada vez mais curtas. Esta
aceleração intensifica, no plano dinâmico, o conteúdo dramático de cada história.
Griffith dá assim ao suspense ( que ele não inventou, pois este se confunde com as
próprias origens do cinema) suas “cartas de nobreza”, assim como uma incrível
envergadura, abrangendo as épocas e os continentes. Depois de Griffith, esta lição foi
apreendida, mas reduzida a proporções mais modestas. É de se notar, no entanto, que
este suspense funciona muito melhor num plano mecânico e épico que lírico e
emocional, Griffith não tendo, ao contrário de um DeMille, o dom de fazer com que o
grandioso e o tocante, o monumental e o familiar se alternem reciprocamente. Visto
hoje, Intolerância aparece como a peça de museu por excelência, cuja sábia e complexa
construção é dissecada, autopsiada com paixão pelos teoristas. Mas no devir estético do
cinema, o filme se coloca claramente à margem das forças vivas que permitiram a esta
arte durar e marcar seu território.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Nascimento de uma nação, David Griffith

Primeira epopéia americana, primeiro filme longa-metragem “ realmente longo” rodado


nos Estados Unidos, Nascimento de uma nação é considerado pela maioria dos
historiadores como uma data capital para a evolução do espetáculo cinematográfico, ao
qual ele conferiu um status de nobreza.Tudo isto graças à originalidade e riqueza de
seus procedimentos narrativos, ao controle estético que o metteur-em-scéne exerceu
pessoalmente sobre uma vastíssima matéria, graças também- elemento não
negligenciável- ao sucesso colossal que o filme teve. Como fator determinante para o
reconhecimento mundial dos méritos do longa-metragem, pensamos que Cabiria,
filmado um ano antes de Nascimento de uma nação, teve um papel mais decisivo. Mas é
enquanto obra artística que a contribuição e preeminência de Nascimento são
incontestáveis e incontestados.
No plano material, apesar do filme contar com um bom orçamento, foi grande a
habilidade de Griffith em dar a ilusão de que se tratava de uma superprodução. Depois
de numerosas semanas de ensaios, a filmagem propriamente dita dura nove semanas ( a
partir de 4-7-1914) , e sabe-se hoje que o número de figurantes não ultrapassou 500
( Griffith falara, à época do lançamento, em 30 000 a 35 000 figurantes).O orçamento
passou de 40 000 a 110 000 dólares numa atmosfera regada a jogos de poker e
ceticismo exterior. Artesanal em sua concepção, financiamento e realização, o projeto
de Nascimento de uma nação será, no entanto, altamente profissional em seu
lançamento e publicidade. Lembremos que o filme faturou dezenas de milhões de
dólares, e que o escândalo (absolutamente compreensível) causado por ele foi muito útil
à sua “carreira”.
Sua principal originalidade estética consiste na tentativa de imbricação permanente da
história individual e da História coletiva. Todos os colaboradores de Griffith
mencionaram até que ponto ele estava literalmente absorvido por obras históricas,
documentos, fotos concernentes a esta época da História americana. Mostrando
personagens representativos e significativos criados pelo roteiro ( Austin Stoneman,
equivalente de Thaddeus Stevens) ou verdadeiros personagens históricos ( Lincoln, Lee,
Grant, etc), interpretados em um espírito de fidelidade absoluta, entrecortando a ação
propriamente dita de “tableaux d’histoire”, reconstituídos com o máximo de veracidade
( assinatura por Lincoln da libertação de 75 000 voluntários, rendição de Lee a Grant,
assassinato de Lincoln no Teatro Ford, etc), Griffith consegue perfeitamente o que
pretendia, durante a primeira parte do filme ( que termina com a temporada de Ben
Cameron no hospital). Até aí, a solenidade dos “tableaux” se alia admiravelmente ao
ritmo extremamente vívido e “bem sustentado “ ( très nourri) que os eventos impõem ao
desenvolvimento dos destinos individuais, em particular através do entrecruzamento dos
membros, civis e militares, das duas famílias Cameron e Stoneman.
Depois, na segunda parte, que trata da reconstrução e dos conflitos raciais no Sul, a
própria substância do filme se transforma: não se trata mais de história, individual ou
coletiva, mas de uma espécie de devaneio ( rêverie) paranóico e idílico, sobre a unidade
da América, devaneio desenvolvido visualmente a partir do núcleo privilegiado e
adorado constituído pelo próprio Sul, a Carolina do Sul, a cidade de Piemont, a rua onde
se encontra a casa dos Cameron, a própria casa e enfim o hall desta casa, que possuem
na imagem uma importância quantitativamente desmesurada, devido ao número de
repetições de planos passados nestes lugares, repetições estas que os valorizam como
nichos de um leitmotiv cada vez mais obsessivo. A união do Norte e do Sul é selada
pela rejeição de elementos considerados como estrangeiros à identidade americana, no
caso os Negros. Os Negros, representados em sua maioria por Brancos pintados,
representam, na economia ideológica do filme ( retirando-se aqui do termo ideologia
todo valor científico ou histórico), sua própria raça, mas também- e mais amplamente-
todos os elementos suscetíveis de perverter do exterior a identidade e unidade
Americanas. O conteúdo político desta parte será considerado, conforme o encaremos
com maior ou menor seriedade, como prejudicial ou nulo, até mesmo como absurdo, em
relação à evolução real da História americana. Mas é também nesta segunda parte que o
artista Griffith se revela de forma mais brilhante e pessoal. Especialmente nesta
impetuosidade, neste “açodamento” da ação ao longo do último terço do filme,
embasado por um lado na montagem estritamente paralela das ações e na separação
triangular de sequências situadas em locais diferentes, e por outro lado na exploração
lírica e máxima de certas convenções do melodrama, Nascimento de uma nação triunfa
enquanto espetáculo dramático e obra de arte. Ao fim, quando a cavalgada,
plásticamente sublime, do Klan venceu o perigo dos aventureiros negros disseminados
pela cidade, acabou com o cerco sofrido pelos Cameron em sua cabana, libertou Elsie
das mãos de seus carrascos, a narração desemboca em uma admirável fusão espaço-
temporal de todos os seus componentes, até então triste e dramaticamente separados.
Atinge igualmente uma apoteose lírica onde o público, por sua participação emocional,
tornou-se parte integrante da obra. É o triunfo do suspense ( na narrativa), do “fôlego
cortado” ( no espectador), das boas causas ( na moral). Uma moral idealizante e
sentimental, angelical por assim dizer, mas à qual ninguém, nesta etapa da ação, tem a
coragem de renegar, uma vez que o amor, a paz e a unidade reinam sobre tudo. Todas
estas figuras “positivas”, no plano dramático e visual do espetáculo cinematográfico,
serão utilizadas durante mais de cinqüenta anos pelos cineastas do mundo inteiro. Elas
existiam num estado embrionário nos inumeráveis curtas-metragens de Griffith ( os
quais muitos evocam a Guerra de Secessão). Testemunham, em Nascimento de uma
nação, uma amplitude, uma capacidade de síntese e adesão sem iguais para a época.
Jacques Lourcelles, Dicionário de Filmes
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Du Couté D’Orouet, Jacques Rozier

Hoje em dia, a experimentação é admitida, reconhecida e até mesmo encorajada em


todos os gêneros, menos na comédia, onde em geral é rejeitada ou ignorada. Rozier
pratica solitária e obstinadamente um cômico experimental em aparência muito simples,
bem sofisticado em realidade, cuja originalidade, tal como aparece em seus mais
característicos filmes, pode ser resumida em cinco pontos principais.

1. A pesquisa plástica conta muito nesta visão do cômico. Rozier pinta aquarelas em
movimento, que divertem e querem fazer rir. Para uma parte do público, já aí ocorre
uma incompatibilidade. O cômico deve ser brutal, grosseiro, cínico ou devastador. Não
que a ironia esteja ausente de seus filmes. Mas ela é voluntariamente difusa, diluída,
deslavada se poderia mesmo dizer, como a cor azul em um céu de chuva.
2. Uma comicidade bem contemplativa. Filmar Du couté d’Ouroet é filmar do lado de
Flaherty. Aqui,a imobilidade, o movimento lento são mais engraçados que o movimento
vívido. Outro obstáculo, e desta vez para um público ainda mais vasto: o autor, no
interior de seus filmes, comenta pouco e não explica nada. É preciso olhá-los ( les
regarder) para compreendê-los.
3. O único presente, o “puro” presente interessa a Rozier, cortado tanto quanto possível
de seus laços com o passado e com o futuro. O presente, ou seja, o instante, o
impalpável e inassimilável instante que unicamente a câmera consegue captar é então
dilatado, observado sob uma lupa pelo autor. Por sua milagrosa forma de filmar, este
presente torna-se também um presente mágico , recomposto, o presente da memória e
da poesia. Filmar Du couté de Orouet é filmar agora do lado de Ozu, e Du couté de
Orouet é o único filme francês que se assemelha, por exemplo, a Dias de juventude, do
mestre japonês. Os dois filmes exprimem, a partir da observação dos fatos mais simples,
uma insidiosa e poderosa nostalgia.
4. Nesta busca pelo instante, nada de “excessivamente preparado, controlado” ( rien de
trop preparé) deve contrariar a gênese e o desabrochar espontâneos do filme. O roteiro,
contido inteiramente na cabeça do realizador, se reduz a um canevas sobre o qual os
intérpretes vão estabelecer bordados, utilizando às vezes alguma coisa de suas relações
fora do set.
5. Rozier se recusa a fazer intervir qualquer evento importante na ação. Graças
sobretudo ao realismo dos diálogos e da pista de som, ele nos aproxima intimamente
dos personagens, dando a ver suas menores , mais derisórias aventuras, as mais fúteis ,
as mais estreitamente pessoais. Apesar disso, ou talvez por causa disso, seus filmes são
verdadeiras comédias de costumes, uma mina de observações, um espelho da época e
das pessoas. Ver em particular a perturbação dos personagens quando distanciados de
seus hábitos urbanos, sendo obrigados a reaprender a cozinhar, a se alimentar, etc. Ver
também, da parte deles, uma certa incapacidade para a felicidade, apesar justamente da
felicidade ser sua única preocupação, ocupar constantemente seus pensamentos e
desejos. Pode-se fazer aqui a mesma observação usada para Leenhardt e o seu Derniéres
vacances: são sempre os poetas que fazem a melhor sociologia.
Nota: o filme, rodado em 16mm, jamais foi “expandido” para 35mm, o que explica o
caráter confidencial de sua distribuição.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Apocalypse Now, Copolla

Em se tratando de um filme fora do comum como Apocalypse Now, o mais sábio é


partir do ponto que mais afetou a todos que viram o filme, ou seja, o lado
decepcionante, ou mesmo desastroso, da última parte. Diante de um filme como esse,
tornamo-nos todos espectadores de “primeira linha”, ou até mesmo excelentes críticos:
ou saímos tocados ou não. Adoraria já indicar aqui que o filme é a narrativa não de uma,
mas de duas, três ou até mesmo quatro subidas ( remontées”) ao longo do rio e que se,
como diz Blanchot, “o Apocalypse decepciona”, é porque pertence à sua natureza
decepcionar. Tudo o que o rio “carrega” ( charrie) não tem destino possível. Até mesmo
o horror.
Primeira subida. Do concreto ao abstrato: a guerra.
A história do cinema é em parte ligada à história das guerras. O Exército Francês foi um
dos primeiros utilizadores da invenção dos irmãos Lumiére. A guerra, tornada mundial,
feita por todos contra todos, trouxe em seu bojo todo o cinema moderno europeu, de
Roma cidade aberta a Tempos de guerra. Bazin falou do prazer suscitado pelo
“espetáculo das destruições urbanas”, que ele chamava de “complexo de Nero”, para o
qual o cinema parecia ser o lugar privilegiado. Na América, técnicas cinematográficas e
tecnologia guerreira andavam em um passo conjunto: matar e filmar “progrediram”
paralelamente. O espectador de cinema pouco a pouco se habituou a ser um
sobrevivente. É este o espectador visado por Copolla hoje em dia, aquele que escapou
aos massacres- ou que deles retornou-, mostrando-lhe a mais moderna das guerras,
aquela cuja imagem ainda não caiu em desuso. Da Guerra do Vietnam, Copolla só
retém o que a qualifica como uma guerra de um novo tipo ( mas um novo que integra o
arcaico: as trincheiras, os dardos) e dissolve tudo o que poderia remeter a uma certa
intemporalidade da guerra. Portanto, nada de cenas onde soldados discutem a respeito
da guerra, por exemplo, cenas ainda freqüentes em Hawks, Walsh e Fuller. Nada desses
discursos de combatentes onde se questiona sobre o horror da guerra em geral ( como
no The Naked and the Dead de Walsh, que situa o debate no antimilitarismo) ou do
aspecto bem-fundado em particular desta ou daquela guerra. É inútil, portanto, procurar
no Apocalypse Now uma tomada de posição sobre o engajamento americano no
Vietnam. Assim como The deer hunter, o filme participa de um projeto de amnésia
política, com a diferença de que em Cimino, ela se faz do ponto de vista de um nicho
reativo e em Copolla, a dimensão histórica é “curto-circuitada” por uma passagem
direta do físico ao metafísico, através de um roteiro inspirado em Conrad. E ao mesmo
tempo, Apocalypse é um testemunho sobre a guerra do Vietnam, “enquanto ela” não é a
simples repetição da Coréia ou do Pacífico, dando a ver- pela primeira vez com tal
intensidade- o que a constitui tecnológicamente em uma outra guerra. Quando, no The
Naked and the dead, vemos um campo queimado, temos aí, para o espectador, uma bela
imagem; em Apocalypse Now, quando Willard e seus homens encontram um batalhão
que está prestes a arrasar um campo de napalm, isto é em primeiro lugar um espetáculo
para os personagens do filme. Portanto, nada de pausas nem de tempos mortos, mas
uma aceleração constante, mudanças de velocidade, elipses no coração das cenas. O
som - um uso particularmente manipulador do Dolby- desempenha um papel
preponderante, não com o objetivo de ancorar a imagem, torná-la mais inteligível, mas
pelo contrário: para estilhaçá-la de seu interior, impedi-la de tornar-se o refúgio do
espectador, para provocar medo. Dito de outro forma: nada de fora de campo. O efeito
obtido é totalmente assombroso. O episódio com frequência citado como o melhor do
filme em relação a isso ( com justiça, penso eu, e voltarei a isso) é o da batalha de
helicópteros. Por que? Simplesmente pelo fato de que nós, tais como super-Fabricios
del Dongo em Waterloo, compreendemos que jamais havíamos realmente visto um
helicóptero. Encontramo-nos num “aquém” do sentido ( en-deçà du sens): um
helicóptero é um helicóptero, sem mais nem menos; uma explosão é uma explosão, um
morto um morto. Encontramos subitamente pelo caminho objetos que não querem dizer
nada para ninguém, mas que matam. A guerra é antes de tudo este lugar, concreto
demasiado concreto ( concret trop concret).
Suponho que se Copolla tivesse parado o filme antes do episódio Kurtz, ele teria se
exposto a um escândalo geral, e os distribuidores ( que aqui são os produtores) teriam se
recusado a mostrar o filme em suas salas. Inversamente, críticos de cinema ( nós, por
exemplo) teriam achado o filme admirável, uma vez que formalmente adequado à
ininteligibilidade da guerra , uma guerra vista de baixo, sem “subida”, elevação
( remontée). Ora, a dupla coação a qual Copolla não escapou é a seguinte: os
espectadores ( e se fazem necessários milhões destes para tornar o filme rentável) vêm
em primeiro lugar pelas cenas de guerra, mas dificilmente eles podem assumir este em
primeiro lugar, antes de tudo ( d’abord): é-lhes necessário um fim, um desenlace, a
inteligibilidade para justificar a posteriori estas cenas. O sentido último como cobertura
do gozo ( jouissance) do non-sens ( falta de sentido). Quanto a Copolla, ele desejou
filmar esta última parte, embora se saiba que teve grande dificuldade em decidir de que
esta seria feita. Há portanto um momento onde, subido o rio, passaremos do concreto da
guerra ( as coisas na cintilação de seu ser-aí, em seu “aparecer” mortal) à abstração ( as
coisas que se põem a significar, às vezes pesadamente, a carregar sentidos para além de
si próprias). É aí que o filme fracassa. Como se fosse impossível ( ou então, seria
necessário um tempo maior) conduzir o espectador do estupor atordoado onde até então
o tínhamos mergulhado para uma outra forma de relação com o filme, onde o
espectador seria convidado a “pensar por si mesmo”. Ou o atordoamos ou o
estimulamos a pensar, ou retemos o sentido ou o disseminamos. Copolla não escolheu
realmente. Além do mais, se ele é um extraordinário engenheiro, se filma as operações
militares com um real talento, com verdadeiras máquinas e verdadeiros corpos, ele está
bem menos à vontade desde o momento em que a imagem torna-se sobre-significante
( sur-signifiante) e a narrativa metafórica. Evidentemente, este jogo entre a suspensão e
a disseminação do sentido é a aposta das superproduções, dos filmes-monstros ( deixar
o espectador estuporado, abrir as interpretações, e sobretudo não concluir: vejamos
Tati, Fellini e sobretudo Kubrick, que sai terrivelmente engrandecido na comparação
com Copolla , neste caso). O paradoxo é este: estes filmes só podem ser feitos lá – os
Estados Unidos, a União Soviética, em todo caso em impérios- onde não é permitido
“não concluir”, não edificar.
Segunda subida. Do filho ao pai: o padrinho.

Mas o rio carrega outra coisa. Por exemplo, o que está na base de toda ficção: a subida
em direção aos nós fundadores da filiação, dos filhos para os pais, de Édipo para Laius.
Curiosamente, o roteiro de John Milius faz-nos pensar em um pequeno filme, uma obra-
prima, geralmente desprezada na outra parte do Atlântico, o Jornada tétrica de Nicholas
Ray. Neste filme também um personagem se retirou da civilização e reina sobre um
grupo de foras-da-lei e de destroços, no coração de um reino ao mesmo tempo
esplendoroso e nauseante: os pântanos da Florida. Em Jornada tétrica, um jovem
também vai ser progressivamente capturado pelo horror do que se trama neste reino,
horror que ele sente bem lhe dizer respeito. Em Ray, ecologista “avant la lettre”,
massacram-se pássaros, em Copolla é mais grave. Uma amizade confusa ligará dois
homens, o mais velho vai intimidar o mais jovem e será finalmente morto por ele.
Depois do assassinato, o jovem suspeita de que jamais será o mesmo homem.
“Horror!”, exclama Willard nos últimos planos da versão atual de Apocalypse now,
antes de embarcar novamente em seu barco. Ele descobriu o horror de toda filiação, a
passagem pela violência mimética ( ele começa a se assemelhar a Kurtz), etc. Mas este
horror é um truque. O verdadeiro tema- em Copolla, assim como em Ray, ou mesmo no
Welles de Mr. Arkadin-, é a atualização ( mise à jour) da ligação homossexual,
enquanto esta se encontra na base de toda sociedade, de toda “fraternidade”, portanto de
toda guerra. Mas esta ligação não se desvenda assim tão facilmente. Há certamente uma
situação edipiana, mas esta é vista do ponto de vista do grande esquecido do mito,
Laios. Um Laious que teria disfarçado seu suicídio de assassinato para privar Édipo de
sua verdade. Se descoberta há, ao termo da subida do rio, é que não se mata o pai, uma
vez que este desejava morrer desde sempre e que esperava seu assassino com
impaciência. Horror, portanto, mas não aquele que se supunha. Evidentemente, no filme
de Copolla, toda esta parte fica no nível teórico, já que não chegamos muito bem a
acreditar na identificação entre Willard e Kurtz. Era algo bem mais forte em Jornada
tétrica, com Burl Ives e Christopher Plummer- que no entanto são atores bem mais
limitados que Brando e Sheen-, mas também porque Ray é um imenso cineasta. O falso
pai, “o pai falseado” de Apocalypse now, é Brando, alguém que exerce antes um
protetorado que uma lei, antes um “padrinho” que qualquer outro papel, em todo caso
um mito vivo. Pois no influxo de Apocalypse now, há também a velha Hollywood.
Copolla pertence a uma geração de cineastas que teve de começar sua carreira à sombra
da geração dos grandes ancestrais, vivos ainda. Geração que começara na França,
quando Godard inscrevia literalmente o corpo e o nome de Fritz Lang ( em O
desprezo) , e que há pouco tempo chegou à América ( Truffaut no filme de Spielberg).
Aí também pode-se dizer que a “mise à morte” de Brando é uma operação infinita-
devido à posição bem particular de Brando na indústria americana: ele é um pouco o
Kurtz desta indústria-,infinitamente decepcionante também.
Terceira subida. O Um e o Outro: a América.
Apocalypse now é um filme excepcional, que seja. É também um filme americano
médio pós-Vietnam. O cinema americano, desde um certo tempo, não cessa de rondar
em torno de um tema que é a presença do Outro em nós. Outro no sentido de alien,
título do maior sucesso do verão nos EUA.”Nós”, é claro, é novamente o Americano,
considerando-se abusivamente como a espécie abusivamente como equivalente geral da
espécie humana. Salvo que “ser” americano não é jamais algo tão evidente nem tão
simples ( não insisto aqui sobre o melting-pot e outros mitos), e que me parece que se
esteja sempre pronto a fazer não importa o que para se ser “ainda mais americano” ( não
importa o que: Kazan). Ideológicamente, o objetivo de todos esses filmes ( Alien, O
Exorcista, The deer hunter, mesmo Encontros de terceiro grau) é tornar os Americanos
ainda mais americanos ao fazê-los exorcizar um Outro ( em geral maléfico) que os
assombra ou habita. A novidade e a força desses filmes está em que eles decidiram não
economizar nos meios ( a tecnologia ainda e sempre) para mostrar o outro, o alien em
nós. Até aqui eram sobretudo filmes B que se ligavam nesse tema ( nos anos 50, em
torno do anticomunismo), mas sem possuir meios, limitados a truques fracos ou a
refinamentos de escritura ( o fora de campo de Tourneur) , só conseguindo excitar
espectadores muito naifs ( ingênuos) ou muito sofisticados ( cinéfilos). A decisão de
mostrar o “Não-Mostrável” ( Immontrable) é muito recente. Há diferentes versões. Em
Cimino, o Asiático que é tido por responsável por despertar a besta que dormita em nós:
matamo-lo, ao mesmo tempo em que lhe impomos a vergonha de ter despertado a besta:
refrão conhecido. Em Ridley Scott, ( Alien), é o monstro proteiforme, literalmente
surgido do corpo humano e ocupando a astronave como um câncer, cujas imprevisíveis
metástases terrificam. Em Friedkin ou Kubrick, são os temas mais codificados, mais
literários, do diabo ou do duplo. Quanto a Apocalypse now, é sem dúvida aquele que,
no nível do roteiro, possui a maior dignidade literária ( Conrad). Aí, Kurts e Willard são
da mesma espécie, da mesma raça, do mesmo país, da mesma formação ( Exército). No
entanto, um deles tornou-se um monstro. Um monstro ao qual é preciso se identificar.
Copolla escala o rio da civilização em direção à barbárie, não a barbárie dos outros, mas
aquela da qual se provém, da qual toda civilização provém, do lado da horda paterna. Se
esta escalada também não chega ao seu destino ( aussi tourne court: não segue até o fim
do caminho, volta no meio) , é porque Copolla realmente não escolheu entre delírio
surrealista e crueldade etnográfica. Este “povo do abismo” que idolatra Kurtz não é
suficientemente verossímel para que o momento forte desta última parte, o abate
paralelo de Kurtz e do rebanho sacrificado , suscite todo o horror sagrado que se poderia
encontrar em um Pasolini ( em Pocilga: “Matei meu pai, comi carne humana, tremo de
alegria”...)

Quarta subida. O espetáculo e o homem de espetáculo: Copolla.


Copolla, sem dúvida, não é um cineasta tão profundo quanto Kubrick ( para ficarmos
nos gigantes). Vimos que seu jogo de pistas não leva realmente a lugar nenhum;
decepciona. No entanto, é esta outra subida do rio que leva Willard até Kurtz de
espetáculo em espetáculo, quase de “show em show”. É aí que Copolla é com
freqüência um grande cineasta. O que ele retém da guerra, desta guerra em particular, é
que ela se tornou para aqueles que a fizeram ( do lado americano) um vasto espetáculo
sem metteur em scéne. Desta guerra a respeito da qual não se discute mais, que não se
compreende mais, não se pode fazer nada senão tableaux vivants ( quadros vivos),show
business.Willard- totalmente sintetizado no olhar de Martin Sheen- é o espectador por
excelência: tudo o que ele encontra pelo caminho é ou vivido ou deliberadamente
organizado como espetáculo. Vemos isso no plano rápido onde Copolla filma a si
mesmo como jornalista televisivo, nas fantasmagorias do final, produtos do delírio de
Kurtz, passando pelo jovem Negro que canta ‘Satisfaction” no barco. Esta
espetacularização também se mostra na figura de Denis Hopper, armado com câmeras e
a aparelhos fotográficos, uma espécie de primeiro assistente de Kurtz, seu bufão e porta-
voz ( griot). Também na extraordinária cena do teatro no batalhão armado ( por um
instante, tive a impressão de que Copolla tocava na essência da guerra: sobre uma pista
de dança flutuante e em uma nuvem de fumaça rosa, a exibição noturna e sonhada de
moças diante de uma massa de rapazes). Igualmente na cena realmente apocalíptica das
trincheiras, onde todos confundem Willard com o oficial encarregado. Mas é sobretudo
verdadeira – esta espetacularização- no extraordinário episódio da batalha de
helicópteros e do personagem interpretado por Robert Duvall. Se esta cena é a melhor
do filme, é porque ela consegue manter a dosagem entre o real ( o ser-aí das coisas) e o
“espetáculo” ( desejado por qualquer um). Duvall não é o deus ex machina, o demiurgo,
que Willard busca; é um factótum ( bricoleur). Ele apenas pode bombardear uma cidade
por capricho ou fazer os soldados surfarem. É no filme uma espécie de antecipação de
Kurtz ( com o parênteses de que este personagem me parece infinitamente mais
convincente); Kurtz que, ao fim do rio e no coração do caos, é o último metteur em
scéne, que possui ainda atores para dirigir, um reino para decorar e um público para
ouvi-lo recitar poemas de T. S. Eliot. Mas justamente Copolla está mais para um
empreendedor- como o personagem de Duvall- que para um visionário, como Kurtz.

Logo, “o Apocalipse decepciona”. Em termos lacanianos, pode-se reprovar a Copolla


ter tentado o impossível: filmar o irrepresentável phallus. Mesmo o crânio de Brando
não é suficiente. Mas foi tanto por cálculo quanto por ingenuidade ( naiveté) que ele
deve ter feito o filme assim. Pois ele conseguiu rodar o filme exatamente como queria,
apesar das inumeráveis peripécias; conseguiu inclusive tirar um filme de duração quase
standard do enorme material filmado, um filme com um fim, etc. Talvez apenas tenha
lhe faltado o poder de assumir até os seus limites uma economia suntuosa ( une
économie somptuaire), de ganhar “o direito de não concluir”.
Serge Daney.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

O Franco atirador, Cimino

O grande filme americano dos anos 70. Com uma ambição imensa, Cimino tenta
construir um cinema épico e wagneriano que é também lírico e contemplativo e não
desprovido de densidade romanesca. No que concerne à força da mise en scène, Cimino
é o único cineasta da sua geração no qual se pode ver, através do seu filme, um herdeiro
de Walsh e, especialmente, de The naked and the dead. Isso não o impede de conduzir,
através dos outros aspectos do filme, uma busca absolutamente pessoal e original. Ele
atinge o poderia dramático das cenas pela duração desmesurada das mesmas, o que as
torna misteriosas e encantatórias, por um senso quase mágico do cenário e pela atenção
à certas características individuais dos personagens, sem qualquer preocupação de rigor
dramático aparente. A busca dele vai de encontro ao centro da sua proposta; não pelo
realismo, mas com o auxílio de um conjunto de alegorias que transformam o realismo
em elementos de reflexão moral e filosófica. Os temas privilegiados de tal reflexão
dizem respeito à energia e à vontade de poder da América. A caça, a guerra distante, o
jogo cruel da roleta-russa, tudo isso são os motivos dramáticos e visuais, extremamente
espetaculares, que permitem confrontar essa possibilidade de poder com o real. De
acordo com os personagens, veremos esta vontade se destruir, fraturar ou mesmo
perdurar, ao transformar-se e mudar de conteúdos. Epopéia de fracasso, O Franco-
Atirador é também um réquiem grandioso dedicado aos sofrimentos e à estupefação da
América diante da maior derrota da sua história.
N.B.: Um exemplo de pesquisa efetuada por Cimino acerca do cenário: ele explicou (em
«American Cinematographie», outubro 1978) como ele tinha construído visualmente o
sítio da sua pequena cidade da Pensilvânia, utilizando oito exteriores diferentes,
filmados em Ohio: único meio de conseguir, segundo ele, com que uma usina se perfile
no horizonte em cada um dos planos gerais de exteriores que figuram nas seqüências
que deveriam transcorrer na Pensilvânia.
Jacques Lourcelles
Tradução: Matheus Cartaxo

Suplício de uma alma, Lang

Último filme americano de Lang. Provoca , sobretudo nos espectadores que o viram na
continuidade cronológica da obra de Lang, um choque, uma perturbação como poucos
se ressentem na vida cinéfila. Depois de No silêncio de uma cidade, Lang tinha
encontrado um meio de acentuar ainda mais a abstração de seu estilo, de universalizar e
radicalizar ainda mais as suas intenções. Como frequentemente se dá entre os grandes
realizadores de Hollywood, o filme se encontrava relacionado ao precedente por
ligações poderosas, ao mesmo tempo internas e externas. Lang trabalhava para o mesmo
produtor e companhia. Os dois filmes se desenrolam em cenários similares e o
personagem principal, interpretado por Dana Andrews, poderia ser facilmente visto
como idêntico em ambos os filmes: assim, Beyond continua logicamente No silêncio de
uma cidade, mas com um orçamento mais modesto, um número mais restrito de
personagens, de atores brilhantes, cenários e lugares.
Em relação ao resto, Beyond obedecia ao princípio secreto que rege a maioria dos
filmes de Lang, a saber, uma antinomia essencial entre a vontade de depuração de estilo,
levada aqui ao extremo, e uma extraordinária profusão de peripécias, , surpresas,
reviravoltas em todos os gêneros, com consequências e prolongamentos incalculáveis.
Beyond começa como um estudo social ( sobre o controverso tema da pena de morte), e
progride, com a velocidade do raio e sem que nos apercebamos claramente, para a
fábula filosófica e metafísica. Esta fábula exprime, por uma série de desvios labirínticos
e envolventes, a universal culpabilidade do homem; e busca tornar evidente, com um
rigor impiedoso, o pertencimento de todos os personagens à esta raça maldita que é para
Lang a raça humana. Protagonistas e comparsas são apresentados aqui em um incrível
luxo de “arrières-pensées ( pensamentos subconscientes), gestos, atitudes e
comportamentos perturbadores que suscitam pouco a pouco no espectador uma
desconfiança , uma inquietude e perplexidade extremas. Elas estão longe de se esgotar
com o aparecimento do “Fim” na tela. No entanto, o mais espantoso paradoxo do filme
está em outro lugar: ele reside no fato de que estes personagens, e mais especialmente o
herói ( Dana Andrews), solicitam da parte de seu criador ( Lang) um olhar onde o
desprezo absoluto e uma compaixão de ordem trágica coincidem absolutamente. Em
relação a isso, é necessário lembrar que Beyond é destes filmes onde a última
reviravolta exige que sejam vistos pelo menos duas vezes, a segunda sendo parte
integrante da primeira. É nesta segunda visão que Dana Andrews , nos planos por
exemplo que o mostram oprimido na sua cela, depois da revelação da morte de seu
patrão, , aparece como o perfeito e impessoal herói trágico que Lang sempre buscou
representar. Na primeira visão, ele carrega o peso de sua inocência não reconhecida; na
segunda, carrega o peso de sua culpabilidade inevitável, e é um peso ainda mais difícil
de carregar. Em um universo revelado sem inocentes, o culpado, que não pode escapar à
sua condição, aparece de súbito como a vítima de uma espécie de maldição trágica e
universal. Por causa disso, o espectador, tendo-o julgado, não pode mais condená-lo
sem ao mesmo tempo reconhecer em si, quer isto lhe agrade ou não, um irmão de raça.
A pena de morte torna-se um castigo metafísico, inevitavelmente justo e injusto,
prometido a cada ser vivo. As ultimas reviravoltas ( Garret acreditando escapar à morte
pela descoberta póstuma de uma carta de Spencer, depois perdendo sua chance de
sobreviver com seu erro e pela confissão e traição de sua noiva) são para ele outros
suplícios que se juntam à sua condenação.
Toda ação do filme se desenrola em cenários voluntariamente neutros ( há gênio nesta
neutralidade), que não apenas exprimem com uma precisão implacável as diferentes
atmosferas dos lugares representados como valorizam com um relevo tremendo os
gestos dos protagonistas. Ver por exemplo a estilização da vulgaridade cúpida de
Bárbara Nichols , da violência contida de Dan Seymour ou do comportamento meio
frígido de Joan Fontaine. Lang chegou a este ponto de domínio onde a descrição de
cada personagem, a evolução global da intriga mas também um grande número de
planos isolados contém integralmente o sentido de suas intenções. Assim, este plano
onde Fontaine examina as fotos calcinadas diante de um cenário de fachada cinzenta,
perfurado por orifícios mais sombrios ( as janelas do imóvel defronte) que se
assemelham aos destroços que ela observa. Estamos mergulhados aqui num universo à
la Metrópolis, mas normalizado, banalizado e contudo completamente asfixiado. Este
universo nem ao menos possui esta monstruosidade espetacular e escandalosa que
poderia nos advertir de seu horror, de tal forma o cenário e a ação que nele transcorre
são integrados perfeitamente entre si. Trata-se de um mundo em ruínas do qual até
mesmo nos esquecemos que ele se encontra em ruínas.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

No silêncio de uma cidade, Lang

Penúltimo filme americano de Lang. Um dos ápices de sua carreira; em nossa opinião,
seu melhor filme. A partir de um romance, mas sobretudo de narrativas de diversos
fatos découpados nos jornais e que ele tinha o hábito -conservado até o fim de sua vida,
mesmo quando não mais trabalhava- de colecionar, Lang escreveu minuciosamente o
roteiro com Casey Robinson, e este será um dos mais sofisticados de sua carreira.
Preparação não menos minuciosa da filmagem que vai permitir utilizar- sendo o
orçamento do filme médio- os intérpretes prestigiosos reunidos para o filme ( George
Sanders, Ida Lupino, Thomas Mitchell, Rhonda Fleming) apenas por quatro ou cinco
dias cada um, embora se tenha a impressão de vê-los presentes ao longo de toda intriga
( Apenas Dana Andrews pôde obter um número de dias maior). A ambição do filme é
imensa, a perfeição de seus estilo, cujos elementos evitam se valorizar, sóbria e eficaz.
Lang quer dar a ver um panorama muito vasto da sociedade americana, fundada para ele
na competição e no crime. Como a competição e o crime vieram a estar
indissoluvelmente ligados, eis o seu tema, de onde decorrem as características de seu
estilo, obedecendo todas a uma estética da necessidade que nenhum outro cineasta levou
tão longe. Criador solitário e exigente, Lang não é contudo o mais inovador do cinema
americano. No silêncio de uma cidade integra e interioriza de alguma forma a revolução
trazida no ano precedente à narrativa policial por A morte num beijo. A partir de agora,
não há bons nem maus na intriga. A ferocidade da competição colocou todas as
individualidades no mesmo nível, no grau zero da moral e da consideração pelo outro.
Se examinarmos com uma lupa ( o que faz o filme) o comportamento de cada um dos
personagens implicados na ação, ver-se-á que nenhum deles tem a mínima idéia do que
lhes poderia servir de base moral, ou então- o que é pior ainda- que sacrificam às suas
ambições os poucos escrúpulos que poderiam ter, comportamento considerado normal
na sociedade onde evoluem. A partir disso, o criminoso que os jornalistas procuram tão
ardentemente , a fim de obterem um posto, torna-se não apenas sua presa mas seu
espelho. Este é de alguma forma mais digno de piedade que eles.
Lang conduz aqui a um grau de perfeição absoluta sua arte das ligações necessárias ou
mesmo fatais entre as seqüências. Quer seja por um elemento visual, do diálogo ou pelo
efeito de uma causa dramática particular, as seqüências se encadeiam umas às outras
segundo um ritmo e uma progressão lógica que parecem obedecer a algum Fatum,
quando em realidade não são mais que a conseqüência das iniciativas entrecruzadas de
cada um dos protagonistas, ocupados a suplantar, utilizar ou aniquilar o outro- vasta teia
de aranha onde finalmente todos se encontram presos. Refinamento supremo da mise
em scéne: estes compartimentos vidrados que, no interior dos escritórios do jornal,
separam os personagens, permitindo-lhes ver-se mutuamente, e que dão à narrativa a
possibilidade de desenrolar várias seqüências frontalmente ( de front), captadas em uma
permanente interação. Este entrelaçamento magistral é visto na luz soberba de uma
fotografia metálica, com cintilações gélidas. Depois de muitos avatares e metamorfoses,
encontrando-se repensado através da experiência e do estilo de um cineasta meticuloso e
genial, o microcosmo expressionista reaparece aqui- talvez pela última vez- lavado de
todas as suas escoriações, dotado de uma pureza expressiva cuja abstração e
concentração fascinam. É uma pequena porção do inferno onde as criaturas se agitam ,
acreditando-se livres e ativas, sob o olhar de um cineasta que não quer nada senão ver
bem e “dar a ver” bem o real, embora mantendo sobre todas as coisas o ponto de vista
de Sirius.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior
Postado por Júnior às 20:26 0 comentários

O túmulo indiano, Lang

Vinte e seis anos depois de sua partida da Alemanha, Lang retorna para dirigir esta obra
testamentária que se beneficiou de um importante orçamento ( mais de quatro milhões
de marcos). É um duplo retorno às fontes, geográficas primeiro, dramáticas em seguida,
uma vez que O tigre de Bengala e O túmulo indiano são uma nova versão do roteiro
escrito em 1921 com Thea Von Harbou e que Lang não pudera realizar então, devendo
contrariado passar a realização às mãos de Joe May. No seu lançamento, esta nova
versão suscitou numerosas polêmicas. Ela foi atacada não apenas pelos adversários
permanentes de Lang ( até aí, nada de extraordinário), mas também por uma grande
parte dos defensores do cineasta. Apenas uma minoria de admiradores o defendeu com
fervor, e pouco a pouco o filme adquiriu o status de clássico. É preciso sem dúvida
colocar a crédito de Lang essas polêmicas, que sempre teve o dom de, a cada etapa de
sua carreira, espantar, intrigar, ou mesmo desorientar e desencorajar seus próprios fãs.
A fidelidade que ele manifesta aqui a seu próprio universo é a mesmo tempo formal e
filosófica. Como é usual em Lang, a substância do filme se desenvolve a partir de uma
série de contradições internas que só podem se resolver na última perfeição estética da
obra acabada: depuração obtida a partir de uma extraordinária riqueza de meios e de
uma proliferação de peripécias; dinamismo perpétuo, resultante da imobilidade da
câmera; mensagem filosófica destilada com o auxílio de uma trama desenho animado.
Nos personagens, triunfa a mesma dialética. A maioria dentre estes é movida por um
objetivo único ( amor e fascinação erótica em Chandra, sede de poder em Ramigani,
desejo de vingança em Padhu, etc), que preenche suas almas e seus corações até a
plenitude ( trop-plein). Mas este trop plein ( plenitude, preenchimento total) é
igualmente um vazio, pois esta retira de seu ser não apenas o resto da humanidade como
também toda e qualquer forma de realidade que não aquela tomada por seu desejo. Do
choque destas vontades múltiplas, que são como obsessões, jorra a trajetória da
narrativa, semelhante, em seu rigor, simplicidade e sua absoluta lógica, a um teorema
matemático.
Em Chandra, personagem-pivot do filme ( de fato, ele é o único herói da história), é
quando a plenitude ( trop-plein) será aceita como vazio, ou seja, quando as paixões se
aniquilarão na renúncia, que a serenidade poderá enfim fazer sua aparição. Mensagem
que só aparentemente é positiva, pois implica a supressão do desejo, a abolição das
paixões, a fim de que sobrevenha uma paz que possui algo de sepulcral ( ou, dirão os
detratores, de absolutamente convencional). Esta paz é vista “ como que do fundo da
morte”, segundo a expressão de Michel Mourlet. “ O que há de mais profundo nos
filmes de Lang, escreve Morurlet, é uma certa maneira de olhar de muito distante, como
que do fundo da morte, os homens, as mulheres, o assassinato e a fatalidade. Nestes
quatro ou cinco últimos filmes, só distinguimos isso. Se não se capta este tom de
eternidade, não se capta nada. O silêncio e o vazio”.
A bem dizer, o que chocou os primeiros detratores do Tigre de Bengala, e que eles
detestaram ou até mesmo desprezaram na obra, é talvez exatamente a mesma coisa ( e
seria esta algo bem languiano) que seus fãs admiraram: uma “genial inatualidade” que
reduz o universo a alguns desejos monstruosos e contraditórios do homem, o amor
prenhe do crime ( ou da vontade do crime) , a sede de poder prenhe da destruição, e a
filosofia tornando-se ao fim esta inútil- mas fascinante- contemplação do Nada. Ás
vezes, Lang exprimiu esta visão por meio de narrativas com alcance social ou político, e
talvez tudo não passasse de um engodo. Aqui, em um serial, forma que representava
para ele o alpha e o ômega de toda ficção, ele a destilou de forma nua e sem álibis.
Jacques Lourcelles, Dicionário de Filmes
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Acossado, Godard

Tudo ou quase é tomado de empréstimo neste pálido decalque do filme noir


americano:o assunto, o gênero e o tema tirados do cinema hollywoodiano,a atriz Jean
Seberg, retomada tal e qual no Bom dia tristeza, de Preminger. Apesar disso, o filme
será considerado uma revolução no cinema francês ankylosé ( enrijecido, paralisado) da
época. No plano material e financeiro, o fato de que tenha custado três ou quatro vezes
menos que um filme médio e feito um sucesso imediato e considerável lhe valeu uma
corte de imitadores. No plano visual, seu estilo “rascunho” ( brouillon), brutal, que
suprime- é esta sua principal inovação- as ligações tradicionais da narrativa
cinematográfica ( ouverture au noir, fade in, fade out) vai aparecer como a própria
imagem da juventude cinematográfica. Em relação ao assunto, os “jovens”, entidade
vaga e disseminada, vão se tornar por um longo tempo o tema principal das ficções do
cinema francês. Claro, o cinema francês, atolado na ditadura de seus metteurs em scéne
quinquagenários e sexagenários ( geralmente talentosos), em sua rigidez sindical e
profissional, tinha com certeza necessidade de um banho de Juvência ( Juventude).
Mas sem dúvida o remédio foi pior que o mal. Todos os elementos constitutivos da mise
em scéne foram afetados. A ausência de preparação e construção no roteiro vai debilitar
todas as histórias ( a de Acossado, por exemplo, é exangue). A filmagem sistemática em
externas vai aniquilar, pouco a pouco, com a vida dos estúdios. A foto de estilo
“reportagem” tornará caduca- por um certo tempo- toda pesquisa nesse domínio.
Apenas a chegada como “vedette” de Jean Paul Belmondo pode ser considerado um
elemento inovador. Passando em seguida e sem esforço do filme “de autor” ao cinema
comercial, quebrando as divisões e categorias convencionais, Belomondo preparará o
caminho para um tipo de ator polivalente, para o qual Dépardieu fornece hoje o modelo.
Com o mesmo approach agressivo e glacial do real, Godard consagrar-se-á em seguida
a pintar, não sem complacência, a confusão geral de sua geração, ampla matéria a
dezenas de filmes. A única razão pela qual Acossado merece ser mencionado hoje em
dia é que ele marca, com o caráter de um marco limiar, a entrada do cinema na era da
perda de sua inocência e de sua magia natural. Entrada esta da qual um único filme não
poderia ser tido como responsável, evidentemente. Depois de Acossado, o cinema,
como que ferido de morte, será mais triste, menos criativo, mais consciente de si
mesmo- self-conscious, como dizem os ingleses com uma discreta nuance pejorativa.
Nota: Uma grande parte da História da Nouvele Vague está ligada ao progresso da
credulidade entre o público de cinema e no público em geral. Muitos se puseram a
acreditar no que os cineastas diziam de seus filmes, e em seguida saíram repetindo por
aí.Ora, a originalidade maior- esta sim incontestável- dos cineastas da Nouvelle Vague é
que ninguém antes deles ousou falar tão bem de si e tão mal dos outros. Alguns
exemplos, entre milhares. “ Sempre se acreditou que a Nouvelle vague era o filme
barato contra o filme caro. Nada disso. Era simplesmente o bom filme, qualquer que
fosse, contra o mau cinema”. “O seu cinema- dos cineastas que não pertenciam à
Nouvelle Vague- era a total irrealidade. Eles estavam distantes de tudo ( coupés de
tout).(...). Eles não viviam o seu cinema. Eu um dia vi Dellanoy entrar no estúdio de
Billancourt com sua sacolinha: parecia que ele estava entrando numa companhia de
seguros”. ( Pessoalmente, preferimos, com um certo recuo e mesmo sem nenhum recuo,
a “sacolinha” de Dellanoy e alguns de seus filmes à toda obra de Godard). “Antes da
guerra, entre, por exemplo, La belle equipe de Duvivier e La bête humaine de Renoir,
havia uma diferença, mas apenas de qualidade. Enquanto que agora, entre um de meus
filmes e um de Verneuil, Delannoy, Duvivier e Carné, há realmente uma diferença de
natureza”. Estas afirmnações de Godard ilustram o que Freddy Buache chamou, com
um pouco de exagero, “a arrogância fascista” da Nouvelle Vague, no Cahiers du
Cinema 138 ( 1962). Remake americano Breathless ( 83) por Jim McBride, com
Richard Gere e Valérie Kaprisky.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Postado por Júnior às 20:18 0 comentários

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009


O fantasma apaixonado, Joseph Mankiewicz

Uma das obras-primas de Mankiewicz e um dos mais belos filmes hollywodianos. Neste
terceiro filme realizado para a Fox, cujo roteiro não foi escrito por ele, mas apenas
corrigido, refinando (peaufinant) notadamente o personagem de Miles Fairley.
Mankiewicz se expressa tão profundamente quanto nas obras que ele tirou dos seus
próprios scripts. O Fantasma Apaixonado oferece uma mistura rara, quase única, entre a
expressão de uma inteligência solta (deliée) e satírica (caustique) e um gosto romântico
pelo devaneio, demorando-se sobre as decepções, as desilusões da existência. O filme
não pertence a qualquer gênero conhecido e cria ele mesmo o seu gênero para contar,
com uma poesia dilacerante, a superioridade melancólica do sonho sobre a realidade, o
triunfo daquilo que poderia ter sido sobre aquilo que foi. É igualmente um filme sobre a
solidão, sobre essas almas insatisfeitas e sonhadoras para as quais a solidão abre o
caminho em direção a natureza, a uma forma quase imaterial de felicidade. Todos os
elementos da mise em scène, dos atores ao cenário, dos diálogos à fotografia, são
soberbos e marcantes do selo da perfeição. Sublime composição de Bernard Herrmann.
Acompanhando a meditação do autor, ela sublinha às vezes até o limite da explosão o
contido lirismo da obra. Graças a ela, por exemplo, os planos de gaivotas e de ondas ou
aqueles onde Gene Tierney caminha ao longo da praia e que indicam a passagem dos
tempos figuram entre os mais belos do filme; no entanto, poderiam passar como
momentos dos mais banais.
Jacques Lourcelles
Tradução: Matheus Cartaxo

Hércules na conquista da Atlântida, Cottafavi

Apesar da sua popularidade, o péplum italiano dos anos 60 foi um gênero sacrificado,
até mesmo massacrado pela pobreza dos orçamentos e pelo descuido técnico da
realização. Por isso, os dois mestres do gênero (Cottafavi e Freda), que só foram
reconhecidos como tal após seu desaparecimento, tiveram que recorrer à astúcia para
fazer uma obra pessoal e criativa. Cottafavi utilizou, como aqui, com uma certa verve
vingativa, o humor e a piscadelas de olho ( clins d’oeil) das histórias em quadrinhos,
onde alguns quiseram ver uma forma de distanciamento brechtiano. Freda preferiu
reencontrar, no interior do gênero, os caminhos da aventura (Le Géant de Thessalie,
1960) ou um certo barroquismo (ou un certain baroque), bizarro e compósito
(composite) (Maciste em enfer, 1962), que reatava com as origens do pépum, na época
do cinema mudo.
Jacques Lourcelles
Tradução: Matheus Cartaxo

Minha vingança, Shoei Imamura

Em seus filmes, Imamura pinta a emergência das pulsões e dos instintos mais primitivos
nos seres pertencentes às sociedades ditas civilizadas. Ele adora contar a história ( ou a
contra-história) do Japão ao longo de várias décadas. O período do pós-guerra fascina-o
particularmente. Seu Japão é um mundo bárbaro, onde cada personagem tenta
sobreviver através do comércio de corpos e de bens, a astúcia, a violência. A história de
Enokizu, o herói de Minha vingança, que se vinga de estar vivo naqueles que
transmitem a vida ( seu pai, sua amante, grávida dele), é uma história de sexo e de
sangue, descrita, ao longo de uma narrativa entrecortada e ziguezagueante, por um
clínico, um entomologista que só acredita no behavorismo. Imamura desconfia de toda
explicação referente à psicanálise, à sociologia, embora seus filmes estejam repletos de
fatos suscetíveis de enriquecer estes diversos domínios. As causas, as intenções que se
poderiam descobrir sob cada ato humano são para ele um abismo, impossível - e
portanto, inútil- de sondar.
Sua temática, no interior do cinema japonês, não é exclusividade sua, mas ele a eleva,
na mise-en-scéne, a um nível de brutalidade, intensidade e impassibilidade
impressionantes. Ele busca sobretudo que seus filmes- particularmente Minha vingança-
sejam tão obscuros, impenetráveis e opacos quanto o próprio universo. Sob esta ótica,
Minha vingança é um dos poucos filmes da história do cinema que se poderia qualificar
de faulknerianos.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
O homem errado, Hitchcock

A liminar declaração de Hitchcock é clara: ele não usou o realismo de um fato qualquer
para obter um grau suplementar de verdade, mas para fazer a economia da
verossimilhança. Somos mergulhados em uma história cuja verossimilhança não precisa
ser demonstrada ( o que é o papel, com freqüência ingrato, de todo autor de ficção), uma
vez que ela realmente aconteceu. Richard Fleischer vai utilizar o mesmo procedimento
em O estrangulador de Boston, 1968, e em 10 Rillinghton Place, 1971.
Em um primeiro nível, o filme, utilizando genialmente a câmera subjetiva e os cenários
reais, é como o monólogo interior de um indivíduo médio, perturbado pelo que lhe
sucede, desprovido de cólera, cedendo e depois recusando-se a ceder ( é aí que sua
mulher assume a situação) à idéia que o destino fatal sofrido foi especialmente
preparado para ele e torna, em consequência, toda revolta e iniciativa inúteis.
Neste nível, O homem errado é o mais belo filme kafkiano da história do cinema. Em
um segundo nível, o filme desenvolve uma reflexão sobre a culpabilidade do homem:
esta é mostrada como cúmplice de sua inocência. Esta reflexão, contemporânea e
diferente daquela de Lang, pode no entanto ser-lhe comparada. Lang chegou, na última
parte de sua obra, a ser assombrado pela noção de indiferenciação ( pelo caráter
intercambiável) da inocência e da culpabilidade do indivíduo. Ele pensava ( vide While
the city sleeps, Beyond a reasonable doubt) que a humanidade é tão culpada, tão
corrompida que a inocência ou a culpabilidade de um indivíduo tornava-se algo de
imponderável e finalmente indiferente na economia geral do mundo. Hitchcock é mais
maniqueísta e menos desesperado. Seu maniqueísmo quer que a metade inocente da
humanidade não possa “lavar as mãos” da culpabilidade da outra metade e deva, de
qualquer maneira, responsabilizar-se por ela, pois de qualquer maneira a inocência não
poderia deixar de lhe sentir os efeitos. O sósia de Manyy é também seu duplo. É
relacionado a ele por uma ligação profunda que faz o mistério do filme. Hitchcock adere
aqui a uma visão cristã do mundo, da qual o pecado original é a pedra angular. E a
especificidade de O homem errado vem finalmente do fato de ser um filme kafkiano
originado por um filme cristão, resumo impressionante e sem dúvida invertido da
história espiritual do século 20. O sentido da obra, tanto quanto as peripécias da intriga,
reduzidas aqui a uma fascinante nudez, nutrem o suspense veiculado pelo filme. Robert
Brucks e Bernard Herrmann fizeram prodígios para colocar seu talento e sobriedade a
serviço do gênio de Hitchcock, que nunca foi tão evidente e empolgante como aqui
( salvo talvez em Murder). Henry Fonda à altura de si mesmo.

Biblio: importante artigo de Jean-Luc Godard ( sua melhor contribuição ao cinema)


aparecido , no lançamento do filme, em Cahiers du Cinema, número 62.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior

Fat City, John Huston

Primeiro filme rodado por Houston nos Estados Unidos depois de Os desajustados
( 1961). Como na maioria de seus filmes, este aqui, em forma de balada melancólica,
possui pouquíssima intriga, e Huston manifesta em relação a ela uma quase total
indiferença. Isto tornou-se cada vez mais corrente em seu cinema desde The asphalt
jungle. O que lhe interessa são os personagens, suas errâncias, suas conversações, ainda
mais erráticas que seus deslocamentos no espaço ( aqui Huston quase vence seu “irmão
caçula” neste domínio, Cassavetes), suas ligações amorosas, camaradagem, sua solidão,
e, é claro,a atmosfera social na qual eles se situam. O tema, hustoniano por excelência,
do fracasso aqui é completamente interiorizado nos dois personagens principais. Suas
reações, apesar de terem apenas dez anos de diferença, permitem mensurar o abismo
que separa a adaptação desvairada ao fracasso ( Tully) de sua descoberta ainda matizada
de esperança ( em Ernie). Contudo, é mais ou menos certo que Ernie, em dez anos,
estará na mesma exatamente na mesma situação de Tully. De forma acessória- mas será
tão acessória assim?-., o filme fala também do alcoolismo; os personagens bebem para
se consolar da realidade e em seguida falam interminavelmente, para se consolar por
haver bebido.
A partir dos anos 70, a obra de Huston encontra uma nova juventude, e vai se tornar
uma das mais tocantes do cinema americano, em uma época em que este havia
empobrecido terrivelmente.O que nos parece mais valioso nesta evolução não é uma
renovação dos temas ou dos assuntos, mas do olhar, como se Huston tivesse enfim
encontrado, depois de tantas tentativas, o ângulo justo ( justo de seu ponto de vista) de
onde observar a condição humana. Neste olhar, encontramos muito de compaixão viril (
o contrário de miserabilismo), um conhecimento íntimo do assunto mas também uma
certa distância crítica, que mescla amizade e ironia. O mais espantoso neste olhar é que
ele seja absolutamente o mesmo quando Huston pousa os olhos sobre personagens,
situados em algum lugar entre O’Neil e Steinbeck, que são como irmãos para ele
( Huston praticou boxe com 18 anos em lugares semelhantes aos descritos aqui); ou
quando ele examina “bonshommes” cuja experiência se encontra a anos luz da sua,
como os fanáticos e os obcecados religiosos de Wise Blood. É o olhar, estranhamente
sereno, de um cineasta clássico que entra em seu período pós-clássico e testamentário.
Interpretação fantástica. Fotografia soberba de Conrad Hall, que alia o realismo a uma
sutil sofisticação crepuscular para iluminar os lugares e as pessoas que Huston
conheceu, assim como vários intérpretes não profissionais. Um dos grandes filmes em
cores dos anos 70.
Jacques Lourcelles, Dicionário de Filmes.
Tradução: Luiz Soares Júnior

Os dez mandamentos, DeMille 1956

É, segundo suas declarações, a atualidade da mensagem bíblica que conduz DeMille a


empreender, no meio dos anos 50, um remake do seu primeiro filme bíblico de 1923. Os
Dez Mandamentos conta, com efeito, a odisséia alegórica do combate da Liberdade
contra todas as formas de autoritarismo. O destino quis que DeMille assinasse ali o seu
testamento, elaborado com mais cuidado ainda e numa liberdade de manobra, uma
tranqüilidade de espírito tão grandes como em nenhum de seus outros filmes. A
Paramount assinou, por assim dizer, um cheque em branco. Estimado em 8 milhões de
dólares, o orçamento subiu, sem problemas, até 13. A escrita do roteiro se estendeu
sobre três anos e uma preparação extremamente estimulada (poussé) e meticulosa
precedeu em dois as filmagens propriamente ditas. Um resumo das pesquisas e da
documentação reunida foi publicado por Henry S. Noerdlinger em um volume que faz
um apanhado do caráter polivalente e aprofundado das diferentes investigações
efetuadas antes das filmagens. Instintivamente, DeMille procurou sintetizar os aspectos
desconjuntados da primeira versão: a força ditatorial, a dramatização da intriga, a
estilização plástica da imagem, a busca pelo épico e pelo espetacular. No que concerne à
dramatização, ele escolheu contar a história do indivíduo Moisés, quer retomando
algumas teorias feitas por historiadores para preencher as lacunas biográficas da Bíblia,
quer formulando outras para o filme. « O dever de todo historiador é de fazer um relato
exato de fatos conhecidos e comprovados. O dever de todo dramaturgo é preencher as
lacunas entre esses fatos. » Uma parte da imaginação entrava assim no filme, dando ao
maravilhamento (ou maravilhoso) cristão uma nova juventude expressiva. Inventados
de todas as peças ou tirados da História e reinterpretados, diversos personagens
ganharam então uma sutileza, ou mesmo uma ambigüidade inesperada (cf. o
personagem de Nefertiri). Esta vez, contrariamente ao que se tinha passado em 1923,
DeMille pôde ir ao lugar e beneficiou o filme com recursos (moyens) mais colossais
ainda.
Inultrapassável no plano do espetacular ( a partida dos Hebreus do Egito é sem dúvida a
sequência mais “povoada” de toda a história do cinema), Os dez mandamentos, no
entanto, permanece fiel no plano plástico ao estilo voluntariamente arcaico de DeMille e
à sua visão de um espaço de duas dimensões. “ A disposição dos volumes e de sua
apreensão (...), escreve Michel Mourlet ( Cahiers du Cinema, 97) fazem de seus planos,
com frequência, uma pintura plana. Mas, em suma, por que DeMille preocupou-se tanto
com o espaço? Um homem e uma mulher , desnudos “à antiga”, palmas ao vento, uma
paixão simples lhe seriam suficientes para estabelecer, na ordem dos gestos, um
equivalente aos afrescos egípcios, dos quais a perspectiva está ausente, mas não o
coração”.
Sendo um dos mais sóbrios e menos delirantes de seus filmes, Os dez mandamentos
manifesta também a aptidão única de DeMille em manipular, dispor, integrar no
formato 1,33 dezenas de milhares de figurantes e de animais ( 20 000 figurantes e 15
000 animais) com a precisão maníaca de um miniaturista. Reconhecemos enfim a
dimensão mais preciosa de seu estilo nesta arte de estriar de detalhes familiares e
tocantes uma trama histórica e religiosa que, sem estes detalhes, arriscaria desabar sob o
peso do gigantismo e da desumanidade.
Nota: O prólogo ( cerca de 2 minutos) no qual DeMille vem apresentar seu filme ao
público diante de uma cortina de teatro é geralmente omitido das cópias de
relançamento e das que passaram na televisão. Ele figura em uma tiragem do filme em
vídeos americanos.
Jacques Lourcelles
Tradução: Matheus Cartaxo e Luiz Soares Júnior.

Cat people, Tourneur

Antes de tudo, não esquecer que se trata aqui de um filme essencial, não apenas na
carreira de seus dois principais artesãos ( o produtor Val Lewton e o realizador Jacques
Tourneur), na história do gênero fantástico mas também e sobretudo na evolução do
cinema como um todo. Borges consagrou uma de suas enquètes “, O pudor da História”,
a mostrar que as datas mais importantes da história não são forçosamente as mais
espetaculares. ‘Veio-me a suspeita , escreve ele, que a história ,a verdadeira história, é
mais pudica, e que as datas essenciais podem também permanecer por longo tempo
secretas”. Se isto é verdadeiro em relação à história política e social, o é ainda mais em
se tratando da estética. Cat people representa no cinema uma destas datas essenciais e
secretas. A gênese do filme é demasiado conhecida, já que Jacques Tourneur e o
roteirista DeWitt Bodeen a contaram ( respectivamente, em Présence du Cinema
número 22-23 e Films in Review, 1963) e que Joel Siegel, em seu notável “Val Lewton.
The Reality of Terror”, recolheu os testemunhos mais próximos do produtor. Charles
Koerner , o novo responsável pela RKO, pede a Val Lewton para realizar um filme a
partir do título Cat people, que lhe parece suficientemente excitante e atrativo. Ele julga
que os monstros do pré-guerra ( vampiros, lobisomens) já tiveram sua época e que é
preciso buscar alguma coisa nova e insólita.
Val Lewton encomenda o roteiro a DeWitt e a direção a Tourneur. Mas a história
propriamente será pensada a três. Val Lewton tinha primeiro pensado em adaptar uma
novela de Algernon Blackwood, depois decide contar uma história contemporânea,
inspirada de uma série de desenhos de moda franceses que mostravam modelos
carregados por manequins com cabeças de gatos. Cada um dos três autores trará sua
pedra à construção do filme e, por exemplo, a cena da piscina será suscitada por uma
lembrança de Tourneur, que quase tinha se afogado, sozinho numa piscina. Lewton
aprecia particularmente estes momentos de angústia, como na cena em que Alicem se
sente perseguida por uma presença invisível. Tudo passará, no estágio da escritura do
roteiro como na realização, pela sugestão, pela sábia progressão das cenas que
exprimem o terror e a violência sem que elas jamais sejam totalmente representadas na
tela. Os paroxismos serão obtidos por uma certa doçura insidiosa e paradoxal do estilo,
que se põe a seguir de muito perto os personagens e os mergulha em uma atmosfera
cada vez mais irrespirável, atmosfera esta que o espectador é levado a partilhar com
eles, embora esta não provenha de nenhum elemento horrífico concreto.
Rodado em 21 dias e ao custo de um orçamento bem modesto de 130.000 dólares, Cat
people será o primeiro de uma série de quatorze filmes produzidos por Lewton ( dos
quais 11 para a RKO) e, na carreira de Tourneur, o primeiro no qual ele se tornou
verdadeiramente ele mesmo, graças à influência ultra-criativa de seu produtor, Lewton.
Este o inicia, disse Tourneur, em uma “poesia da qual ele tinha muita necessidade”
( vide sua entrevista televisionada para FR3 por Jean Ricaud e Jacques Manley, maio
1977).
Uma vez terminado, o filme foi muito pouco apreciado pelos chefões da RKO ,e vai sair
como “tapa buraco” no Hawai Cinema de Los Angeles , que tinha acabado de terminar
sua exibição de Cidadão Kane. Cat people teve mais sucesso que seu ilustre
predecessor, e seu triunfo tirou da lama a RKO em 1941, ano muito difícil para a
empresa.
Cat people permitiu a Val Lewton produzir entre 1942 e 1946, sempre com orçamentos
muito reduzidos que lhe asseguraram uma total liberdade de concepção e execução, um
dos mais extraordinários conjuntos de filmes fantásticos do cinema hollywoodiano
( dentre os quais se destacam particularmente o sublime A sétima vítima e Bedlam, que
fecha a série). Cat people lança também a verdadeira carreira de Tourneur , que dará em
seguida na mesma linha duas obras ainda mais perfeitas ( I walked with a zombie e
Leopard man), antes de impor um olhar extremamente inovador sobre os outros gêneros
hollywoodianos que ele ilustra.
Com o passar dos anos, mais a contribuição do filme parece incalculável. Com ele, o
fantástico- que nunca será como antes- descobre que pode retirar sua máxima eficácia
da discrição, que pode inventar novos meios de empolgar o espectador dirigindo-se à
sua imaginação. A riqueza do trabalho sobre a luz sobretudo vai contribuir para
interiorizar o conteúdo do filme nos personagens e a provocar uma identificação mais
sutil e marcante do espectador com os personagens. É aí que, de forma pudica, se situa a
revolução radical do filme. Pode-se resumi-la com uma única palavra: é a revolução do
intimismo. Ela delineia, por assim dizer, uma linha de fratura entre o cinema do pré-
guerra e o cinema moderno. O que o cinema vai ganhar é uma maior proximidade, uma
maior intimidade- que se poderia quase qualificar de psíquica- do espectador com os
personagens, explorados nas profundidades de seus medos, suas angústias, seu
inconsciente. Esta contribuição não é contraditória- -longe disso- com o neo-realismo ,
que vai chegar igualmente, ao menos em Rossellini, a intensificar a intimidade do
espectador, sob o plano social e em seguida espiritual, com os personagens.
O recuo agora é suficiente para que Cat people e os primeiros filmes de Rossellini
depois da guerra apareçam, um secreta e subterraneamente,os outros de maneira
espetacular e talvez um tanto quanto tonitruante, como os filmes mais fecundos destes
últimos cinqüenta anos. O caso de Cat people é particularmente estranho, uma vez que
ele nos leva a privar de mais intimidade com uma personagem ( aquela de Simone
Smon) que não pode ser íntima de ninguém. Sua maldição está de tal maneira engastada
na profundidade de seu ser que apenas uma investigação aprofundada pode permitir
entrevê-la. Antes desse filme, o cinema era um espelho mais ou menos fiel , atravessado
ao longo do caminho. A partir de Cat people, ele tende a se tornar este instrumento de
mergulho que penetra no mais profundo dos personagens como em um poço. Durante os
anos que se seguiram, o filme noir vai reforçar esta evolução, colocando a seu serviço,
sob uma forma atual e contemporânea, as aquisições distantes do expressionismo,
casadas à uma descoberta recente e com freqüência rudimentar da psicanálise. Ponto de
partida da obra real de Tourneur, Cat people estabelece o que será o credo dessa obra e
seu modo de abordagem da realidade. Toda realidade é da ordem do mistério, do
estranho e do inefável. É preciso apreendê-la do interior, pela sugestão e pela
imaginação. O olhar que penetra mais profundamente nela tem todas as possibilidades
de ser o olhar de um estrangeiro, e Tourneur vai permanecer na América um dos
cineastas mais estrangeiros a este país, aberto a uma contínua surpresa, a uma
engenhosa e total engenhosidade. Elas vão fazer dele o pioneiro secreto, um explorador
radical de vários territórios diante ( e antes) do mundo.

Nota: a filmagem de Cat people é evocada sob forma de referência nos primeiro dos três
flash-backs que constituem a trama de Assim estava escrito, filme demasiado brilhante
mas um tanto convencional que queria ser para Hollywood o que A malvada de
Mankiewicz foi para a Broadway. O personagem do produtor Jonathan Shields ( Kirk
Douglas), arrivista e perfeccionista, não tem quase nada a ver com Val Lewton, e se
assemelha muito mais a David Selznick. No entanto, é este personagem que decide que
será preciso criar a atmosfera fantástica pela sugestão, pela discrição, a obscuridade e
mostrando o menos possível. Uma continuação bem distanciada foi dada a Cat people
em The curse of the cat people ( saído na França em 1971), com uma parte dos atores e
personagens de Cat People. O filme é um conto de fadas, aliás muito bem realizado, que
tem mais a ver com o maravilhoso do que com o horror. Ele foi começado por Gunther
Von Fritsch e terminado por Robert Wise, que assina aí, como co-realizador, seu
primeiro trabalho de direção. Remake homônimo de Cat people sem nenhuma magia
por Paul Schrader ( 1982) com Nastassja Kinski.

Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior

Os incompreendidos, François Truffaut 1959

Lançado em Paris em junho de 1959, Os Incompreendidos, primeiro longa-metragem de


François Truffaut, é, com Ascensor para o Cadafalso (janeiro 1958), Le beau Serge
(fevereiro 1959) e Acossado (março 1960) um dos principais filmes na origem do
movimento da Nouvelle Vague. Nota-se que ele obteve uma fama imediata graças ao
prêmio pela direção no Festival de Cannes, no mês anterior. Os Incompreendidos não é,
entretanto, uma obra revolucionária, ou mesmo inovadora. Está ligada por um lado à
Zero de Conduta ,de Vigo (revolta da infância e da adolescência contra o mundo dos
adultos) e por outro às aquisições do neo-realismo, tendência De Sica (cf. Vítimas da
Tormenta), com uma menor atenção ao contexto social. Truffaut procura romper com os
estereótipos do melodrama tradicional, dando ao seu filme o ritmo de uma crônica. Sua
narrativa, que ele pretendia relativamente não-dramatizada (dédramatisé), é
frequëntemente frouxa, distendida e carente de invenção no detalhe das cenas. Seu
principal mérito é chegar a suscitar, nas últimas sequências, uma emoção não solicitada
e até mesmo se apoiando sobre uma certa frieza de tom. A cena mais celebrada é
também a melhor: é a do interrogatório de Doinel por um psicólogo de quem se ouve
somente a voz. Nessa sequência, onde triunfa a espontaneidade de Jean-Pierre Léaud, o
filme transpassa o neo-realismo para encontrar o estilo de reportagem televisiva. Os
Incompreendidos é a primeira parte de um ciclo Doinel que continua em Antoine e
Colette, sketch de O Amor aos Vinte Anos (1962), Beijos Proibidos (1968), Domicílio
Conjugal (1970), O Amor em Fuga (1978). Junto com O Quarto Verde, o ciclo
constitui, notadamente por causa de seu caráter autobiográfico e da presença do mesmo
intérprete em todos os filmes durante vinte anos, a parte mais original da obra de
Truffaut.

N.B.: Contrariamente à opinião geralmente aceita, esse não é o filme em que Jean-Pierre
Léaud faz sua primeira aparição no cinema, e sim em La Tour, prends garde! de
Georges Lamplin, filmado no verão de 1957.
Jacques Lourcelles - Dicionário de Filmes.
Tradução: Matheus Cartaxo.

Blackbeard, the pirate, Raul Walsh

Obra totalmente menor de Walsh ( roteiro complicado e confuso, orçamento


insuficiente) e apesar disso indispensável à sua filmografia. É que a figura do Barba
Negra, a partir de uma série de episódios confusos e sem grande interesse, se
sobressai( sort) admiravelmente. Este monstro alegre e feroz, espécime de humanidade
como que vinda de outro planeta, nunca foi tão bem descrito em sua vitalidade, sua
truculência, sua amoralidade, sua desmesura. Criatura solitária, ele pertence a uma raça
da qual ele seria, por assim dizer, o único representante. Possui todos os vícios e todos
os apetites do homem, mas levados a uma dimensão sobre-humana que claramente
fascina e entusiasma de alegria nosso cineasta. Walsh o pinta em uma atmosfera plástica
refinada, que aparentemente não lhe custa nenhum esforço. Com apenas alguns
elementos de cenário, um mastro, uma vela, um pedaço de céu, mas também com a
beleza de Linda Darnell, ele desenha no movimento fugitivos tableaux de mestres
dignos, por seu esplendor, dos grandes pintores espanhóis.
Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Anjos do pecado, Robert Bresson 1943

Primeiro longa-metragem de Robert Bresson. O cineasta, que nesta época está longe de
ser um teórico, sente instintivamente que sua obra tem necessidade para se realizar de
um material forte, rico e ardente de um intenso fogo interior.Giraudoux, Cocteau,
Bernanos lhe fornecerão. Aqui,a língua pura, límpida e no entanto rutilante do autor da
Ondina ( em um de seus últimos textos antes de morrer), assim como uma intriga fina
mas fortemente dramatizada permitem ao cineasta realizar esta ascese visual em direção
à qual ele tende. O despojamento, que aqui é sobretudo questão de luz, se aplica
lógicamente a uma matéria rica; de que, sem isso, esta se despojaria? Se o teatro está
presente no filme pela construção da narrativa, a importância dos diálogos e dos
monólogos, não se deve negligenciar, em relação a Bresson, a parte, ainda mais
importante, do romancista, do criador de caracteres, já que nele o caráter é como se
fosse a “casca” ( écorce) da alma dos personagens. Com Anne-Marie, alma agitada,
orgulhosa, obstinada, que sua sede de Absoluto conduzirá a se destroçar contra os
obstáculos do mundo, Bresson nos dá neste filme um esboço do personagem do cura de
Ambricourt, o herói de Diário de um padre. Esboço também, de certa maneira, de todos
seus personagens ulteriores. Anne-Marie e o jovem padre são o testemunho desta
juventude eterna, ainda próxima da infância ( Renée Faure , em sua interpretação,
demonstra isso admiravelmente), a respeito da qual Bernanos escreveu: “Eu me digo
também que a juventude é um dom de Deus, e como todos os dons de Deus, ele é sem
arrependimento. Só são jovens, verdadeiramente jovens, aqueles que Ele designou para
não sobreviver à sua juventude”.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Pocilga, Pier Paolo Pasolini

Esta nova “máquina de sentido” é o pôr em obra de um jogo de palavras muito simples:
as palavras corpos e porcos entretém uma ligação anagramática , duas distribuições
diferentes das mesmas letras, de uma mesma Letra ( veremos qual é), assim como
Pocilga se coloca como a dupla narrativa de um mesmo evento.
1. O que há de comum – tirando as letras- entre Porcos e Corpos? São objetos de prazer:
os corpos são feitos para serem amados e os porcos devorados. Mas sob uma condição:
que eles sejam, por esta razão, desprezados. Sobretudo se são - como é o caso aqui-
inteiramente votados ao prazer, “prostituídos”: nenhuma parte do corpo que não seja
(mais ou menos) erógena, nenhuma parte do corpo que não seja ( mais ou menos)
comestível. Reconhecemos aí a moral cristã, que faz do ressentimento a condição do
prazer, tela de fundo de toda obra pasoliniana. Corpos e porcos serão, portanto, objetos
de uma mesma ocultação, de uma única depreciação: escondidos, negados, humilhados,
censurados. Refrão conhecido demais para que nos demoremos nele.

2. Oras, em Pocilga, um jovem, ao invés de amar um corpo, devora-os; um outro, ao


invés de devorar os porcos, ama-os. A razão disso é que eles se enganaram de palavra;
logo, de filme. Sua transgressão é em primeiro lugar o resultado fortuito de uma
inversão dos termos, de uma má leitura, de um erro de distribuição, dos quais Pasolini
assume todas as conseqüências, atento ao nascimento obrigatório de ( ao menos) um
sentido. O escândalo não está tanto na gravidade ou no horror dos temas abordados, mas
em que eles(o canibalismo, a zoofilia, ) tenham sido suscitados sem necessidade , por
jogo.

3. “ Eu disse: Deus, se soubesse, seria um porco. Aquele que ( suponho que, no


momento, ele estivesse mal lavado, despenteado) se imbuísse desta idéia até os seus
limites , o que teria de humano? Para além de tudo, distante e ainda mais distante, o
próprio sujeito em êxtase, à beira de um vazio. E agora? Tremo."( Georges Battaille).

4. Condenado e prestes a morrer, Clementi, em um momento magnífico, diz: “Matei


meu pai, comi carne humana; tremo de alegria”. Aliás, o pai de Léaud voluntariamente
se compara a um porco. Se aceitarmos ver por detrás dos Corpos e dos Porcos a imagem
única do Pai, os dois lados da alegoria se iluminam um pouco, mas em sentido inverso.
No primeiro, não é interdito a ninguém ver no personagem de Clementi o Cristo se
recusando a ser o filho de Deus: ao invés de se oferecer em repasto aos fiéis
( eucaristia), é ele quem come os outros ( inclusive alguns discípulos). Estranha
reconciliação entre o Crucificado e Dionísius. À morte do Pai corresponde a morte do
Logos, daí o silêncio de um filme sem Palavra. O logos, os discursos, a logorréia
triunfam, ao contrário, no filme de Léaud; é que, por seu amor aos porcos, Léaud afirma
sua submissão ao pai ( nazista). Também ele será devorado.
Serge Daney
Cahiers du Cinema 217, novembro 1969.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Sétima viagem de Sinbad, Nathan Jura 1958


Segundo de três filmes de Nathan Juran realizados com Ray Harryhausen (entre 20
Million Miles to Earth, 1957 e First Men in the Moon, 1964). Segundo filme de
Harryhausen em cores. Junto com Jasão e os Argonautas, realizado cinco anos mais
tarde, esse é o melhor êxito (meilleure réussite) do maior criador de efeitos especiais
dos últimos trinta anos. Foi na sua época um filme único e que, em seu domínio, nunca
foi ultrapassado. Um equilíbrio raramente atingido existe aqui, entre a invenção tão rica
e, com frequência, plena do humor do cenário, uma memorável interpretação (Torin
Thatcer e Kathryn Grant estão excelentes), a qualidade da cor e da música, a vivacidade
visual extraordinária dos efeitos especiais e do emprego de técnicas de animação das
mais sofisticadas. Assim, por exemplo, a miniaturização da princesa Parisa é
sabiamente utilizada tanto sobre o plano visual quanto no dramático (Parisa libera os
prisioneiros da jaula; ela desce na lâmpada). A atmosfera de um conto de «As Mil e
Uma Noites» (conflito de mitologia grega!) convém perfeitamente a Harryhausen, mais
à vontade no insólito e no maravilhoso que no horror. O duelo com o esqueleto é um
primeiro esboço da célebre sequência de Jasão. Harryhausen guarda um carinho especial
(cf. seu album «Film Fantasy Scrapbook», New York, 1972, onde ele comenta todos os
seus filmes) pela serpente-dançarina com quatro braços em que o mágico Sokurah
transforma o servo da princesa.
N.B. Ray Harryhausen ilustra novamente as aventuras de Sinbad em The Golden
Voyage of Sinbad, filme inglês de Gondon Hessler, 1974 (com bons efeitos especiais) e
em Sinbad and the Eye of the Tiger, outro filme inglês de Sam Wanamaker, 1977,
muito mais decepcionante.
Jacques Lourcelles – Dicionário de Filmes.
Tradução: Matheus Cartaxo

Johnny Guitar, Nicholas Ray

É uma destas obras-primas do cinema americano que, em seu lançamento, parecem só


ter sido compreendidos na França. No entanto, tudo é excepcional neste western mítico
frequentemente colocado, desde cerca de 20 anos, na frente da lista de melhores filmes
do gênero, estabelecidos pelos críticos e cinéfilos do mundo inteiro. Podemos nos
espantar que um filme tão original e pessoal como este tenha saído dos estúdios da
Republic, a firma americana mais pobre em matéria de autores (Praticamente, nenhum
autor da nova geração encontrou aí lugar. Dos antigos, só Dwan conseguiu se exprimir
de forma constante , entre 1946 e 1954. Ford e Borzage realizarão alguns filmes
importantes, e é necessário colocar à crédito da companhia a distribuição de House by
the river, de Lang).
Não menos surpreendente é o fato de que o personagem principal seja uma mulher ( o
filme foi concebido para Joan Crawford), mas também que os dois protagonistas mais
determinantes e ativos na intriga sejam mulheres, ligadas entre si por um ódio visceral,
um ciúme freudiano que se pode qualificar de único nos anais do western.
Quanto à Nicholas Ray, longe de buscar no western uma especificidade que os cineastas
de sua geração vão encontrar frequentemente no aspecto histórico ou moral do gênero,
ele escolhe utilizá-lo para contar uma história sentimental, lírica e desencantada, onde
alguns se aventuraram a reconhecer elementos autobiográficos, já que o realizador
tivera com sua estrela um caso alguns anos antes.
De qualquer modo, este “desvio” do gênero ( que inclui também uma parábola anti-
maccarthysta , presente em diversos westerns do período, vide Silver Lode de Dwan) dá
lugar a cenas de uma melancolia comovente. O amor, vivido como uma reminiscência,
se exprime através de lamentos, de questões, de falsas confissões encadeados em
diálogos soberbos e tornados célebres com justiça. Todos os personagens, mesmo os
mais modestos, possuem um grande relevo ( vide o papel de John Carradine, empregado
de Joan Crawford). Vários dentre eles servem à temática habitual do autor: um violento
que tenta recalcar sua violência ( Sterling Hayden ), um adolescente vítima desta mesma
violência que havia começado a praticá-la sem saber direito o que fazia ( Ben Cooper no
papel de Tucker).
Enfim, temos também o uso do Trucolor, que foi rapidamente abandonado devido a
seus defeitos, mas que suscita aqui interessantes pesquisas plásticas. Ray se esforça por
eliminar ao máximo o azul, que o sistema reproduzia mal, para acentuar- fenômeno
paradoxal num filme em cores- as tonalidades de preto e branco. O negro das roupas da
multidão em fúria. O branco do robe de Joan Crawford tocando piano em seu saloon,
semelhante a uma caverna.
Ao estreitamento clássico do tempo e dos espaço se opõem um conjunto de elementos
barrocos, relativos sobretudo ao cenário no qual se movem os personagens. E este
contraste, barroco em si mesmo, é um elemento a mais para a fascinação e originalidade
provocantes do filme. Eles testemunham a extrema liberdade de um poeta que evolui no
seio de um gênero ao mesmo tempo extremamente codificado e aberto a toda inovação.
Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Anjo vermelho, Masumura

Representante prolífico e eclético de uma certa nouvelle vague japonesa ( vide também
Paixões juvenis de Ko Nakahira, 1956), Masumura trabalhou para Daiei, a companhia
das últimas obras-primas de Mizoguchi ( de quem ele foi assistente) até sua falência em
1971. Ele explora novos territórios na audácia e violência. O universo paroxístico,
apocalíptico de Anjo vermelho se situa em algum lugar entre Goya e Céline. A
utilização extremamente trabalhada do scope preto e branco, notadamente nas cenas de
horror coletivo ( onde centenas de feridos uivam no hospital) confere à intriga uma
grandeza trágica, sensível também nos diálogos, por exemplo nas cenas entre a
enfermeira e o cirurgião. A pureza impassível dos traços da heroína imprime à sua
composição e a seu jogo uma poderosa fascinação. Seu personagem não é, falando
propriamente, nem benéfico nem maléfico. Compassiva em diversas circunstâncias,
unindo o sexo e a morte, ela é um ser mais sutil: uma espécie de emanação atroz e
lógica dos horrores da guerra, entre os quais ela evolui como um espectro, para além do
Bem e do mal.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Rancho Notorius, Fritz Lang

Este filme sublime passa completamente desapercebido em sua saída. Mesmo o Cahiers
du Cinema, apesar de atentos à carreira americana de Lang, não lhe consagraram
nenhuma crítica. Último dos 3 westerns de Lang, é o único onde o cineasta integra
completamente os dados do gênero a seu universo íntimo. Os temas languianos da
vingança, violência, solidão, das sociedades secretas encontram aqui uma expressão ao
mesmo tempo renovada e exótica, embora ela se insira admiravelmente no cadre
tradicional do western. Sobre o plano formal, o tempo é objeto de uma utilização
extremamente variada. Três tipos de tempo existem no filme: o tempo da narrativa
propriamente dita; aquele- concentrado- da sequência acompanhada pela balada-
leitmotiv do filme, que resume a longa busca de indícios empreendida por Vern; enfim,
o tempo dos três flash-backs que recompõem a figura mítica da aventureira Altar
Keane, um personagem inteiramente condiconado por seu passado ( o que vale também
para a própria atriz, Dietrich).No plano do sentido, este tempo é contudo absolutamente
uniforme, congelado, privado de projeto e liberdade: é o tempo da vingança e de um
mundo reduzido às dimensões de uma obsessão e de uma idéia fixa. O espaço do filme
reflete a mesma dualidade. Variado e rico no plano formal, suntuoso , pesado,
exuberante, quase barroco, é também um espaço fechado, morto, que não leva a nada
senão à repetição cíclica, fatal, sangrenta dos fatos que deram origem à narrativa. A
morte de Altar Keane no fim é um eco, entre outros, da morte da jovem assassinada na
segunda seqüência.
O cenário de estúdio ultrajosamente artificial, que marca a fronteira entre o mundo
exterior e o rancho, foi objeto de discussões e polêmicas entre os cinéfilos.Sem dúvida,
Lang , se estivesse mais livre em relação a seus meios, teria escolhido um cenário
natural. Mas tal como está, este cenário só faz reforçar, talvez de uma maneira um tanto
quanto demonstrativa, a estrutura asfixiante, fechada desta história “de ódio, assassinato
e vingança”, o caráter de absoluta impermeabilidade deste western pessimista e, até
certo ponto, expressionista. Pesa, com efeito, sobre os personagens uma maldição mais
pesada que a que resulta do pecado original nos filmes de Hitchcock. Estes personagens,
quer sejam animados de boas ou más intenções, se reencontram do mesmo lado da
fronteira- o mau lado. Ao longo de seu périplo, Vern Haskell pode apenas se destruir e
destruir aqueles que o circundam; mas ele também não pode deixar de se vingar.
Pertence a uma humanidade decaída, para a qual a noção de perdão não tem mais
sentido ou mesmo existência. Ele pertence, como todos os homens, a uma raça maldita.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Madrugada da traição, Edgar Ulmer

Tudo o que o cinema pode exprimir se encontra neste “pequeno” filme, meio-western,
meio-filme de aventuras, de uma limpidez e riqueza de sentido que se aproxima do
sublime. Em vinte e cinco anos de carreira, Ulmer teve tempo de digerir as influências
mais distantes e mais fecundas ( o Kammerspiel pela expressividade dos cenários
reduzidos, Murnau pela universalidade e densidade cósmicas do tema). Pressionado
pelas circunstâncias, ele cultivou igualmente, até os limites da genialidade, seu sentido
de economia dramática; na verdade, senso de economia em todos os sentidos.
Madrugada da traição representa a súmula de sua obra, mas ao mesmo tempo é um
filme tão simples, tão acessível que pode lhe servir de introdução. É uma “morality
play” ( fábula de dimensão moral, anterior à Renascença), gênero tão amado por seu
autor, que conta a história de um homem cheio de defeitos mas ainda maleável que
entra, graças a um irmão mais velho, por um caminho no qual ele tenha talvez a chance
de se aperfeiçoar. Seu mentor é um ladrão, personagem não-respeitável por excelência,
mas que tem a seu favor a experiência e a lucidez.Ao contrário do jovem, este não é um
falastrão e não se utiliza de “máscaras” na convivência social.
Isto é apenas a trama da obra, que contém também uma parábola de diversos níveis e
oferece uma série muito rica de variações sobre a errância e a vida sedentária, a
dilapidação e a acumulação de bens, a exclusão, a participação,a lucidez e a hipocrisia.
Toda verdade, nesta narrativa de diálogos literários e plenos de sentido, é nuançada por
seu contrário. Formalmente, o filme reflete esta dualidade. Para seu segundo filme em
cores ( o primeiro, Babes in Bagdad, 1952, era uma farsa onde a cor era utilizada de
forma burlesca), Ulmer confere às aparências uma doçura, uma luminosidade, uma
redondez, uma riqueza de pátina que poder-se-ia chamar de renoiriana ( ver com efeito
sua pintura do personagem de Betta St. John). Ao mesmo tempo, através do personagem
de Arthur Kennedy, o filme destila uma melancolia pungente, que facilmente se alça ao
nível do trágico. O talento único do cineasta está completamente contido na primeira
seqüência ( um aventureiro ajuda seu companheiro morrer). Aqui, a emoção atinge seu
auge, já se mostra uma emoção de fim de filme, embora a história mal tenha começado.
O grande Herschel Burke Gilbert ( Carmen jones, While the city sleeps, Beyond a
reasonable doubt) compôs a música do filme.
Nota: Nina e Herman Schneider: estes dois nomes nos créditos do filem durante muito
tempo constiruíram um enigma para os cinéfilos. Eles são de fato o pseudônimo de
Julian Harvey, roteirista posto na Lista Negra do qual o verdadeiro nome aparecerá mais
tarde nos créditos de Circus World ( Henry Hathaway, 1964) e de Custer of the West
( Robert Siodmak, 1957).
Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior

Josey Wales, fora da lei, Eastwood

A maioria dos filmes realizados por Eastwood são interessantes, e ele se revelou, desde
seu primeiro filme ( Play Misty for fire, 1971) como um dos maiores metteurs em scéne
americanos contemporâneos. The outlaw Josey Wales é até aqui o seu filme mais rico e
bem acabado- obra marcante da década de 70. Ela possui a dupla dimensão de uma
aventura individual e de um afresco cativante dando a ver, na desordem pós-Guerra
Civil, o fluxo inumerável de emigrados do interior que passam de um Estado a outro,
traficantes de todos os gêneros, desempregados e miseráveis improvisando expedientes
para ganhar seu pão.
No centro desta afresco, Josey Wales, camponês vítima da guerra, que se tornou um
fora da lei lendário. Contra sua vontade, ele se encontra à frente de um pequeno grupo
de losers, desclassificados, de Índios e desenraizados que obtém rapidamente, graças à
vontade do metteur em scène, a simpatia infalível do público. Um tom único de
crueldade e humanismo mesclados percorre este filme comovente e ao mesmo tempo
despido de toda sentimentalismo. O ponto de partida da intriga apresenta uma analogia
provisória com Run of the arrow ( Fuller, 1956). Desgostoso com os vencedores, um
vencido da Guerra Civil se imiscui nos territórios indígenas. Mas o que era fascinação
pelo impossível, tentativa suicida e tragicamente patética para mudar de identidade da
parte de Rod Steiger, o herói de Fuller, torna-se em Josey Wales projeto de vingança,
eliminação dos fantasmas do passado e reconversão inteiramente bem-sucedidas.
É que a personalidade de Josey Wales é feita de realismo e justa apreciação do possível.
Solitário na alma, individualista absoluto, buscando não se aliar a nenhum grupo racial
ou social definido, ele consegue, contra sua vontade, fazer adeptos que reconhecem
neste homem um companheiro seguro e um protetor. Este realismo, no entanto, só
representa uma pequena parte do personagem, pois no tocante ao resto, tanto por sua
força física, que beira a invulnerabilidade, quanto por sua força moral, que beira a
infalibilidade, o mítico Josey Wales possui qualquer coisa de um deus. Característica
habitual dos personagens encarnados por Clint Eastwood e que os faz ultrapassar os
limites do racional. ( Este salto qualitativo fora do racional é o próprio tema de outro
western seu, High Plains Drifter, 1973).
Formalmente, Clint Eastwood observou bem seus mestres. A Sergio Leone , que o
“inventou” mas que não vale um décimo dele, ele assimila esta dilatação do tempo nos
momentos de violência , através qual o personagem adquire uma dimensão quase
sobrenatural. De Don Siegel,ele aprendeu o gosto da meticulosidade e esta busca pela
tensão que progride de forma contínua de uma sequência à outra. Estas qualidades lhe
permitem dar a unidade a um filme no qual as peripécias, os personagens se
assemelham a um patchwork. Eles encarnam, com efeito, os fragmentos esparsos de
uma América em farrapos, que apenas poderia reconstituir e retomar seu tecido vital se
assimilasse todos seus excluídos. A dramaturgia e a mise em scène do filme estão,
assim como suas intenções, em busca de uma unidade perdida.
Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

No future. Fuga de Los Angeles

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Escape from Los Angeles pertence à veia mais iconoclasta do cinema de Carpenter e
marca seu retorno a uma forma voluntariamente mais rica, depois do rigor classicista de
Village of the damned. Esta continuação do seu Escape from New York ( 1980) toma
algumas distâncias em relação ao original: para utilizar a analogia de Bill Krohn sobre
Scorsese, Escape from L. A. é para Escape from New York o que El Dorado é para Rio
Bravo. Onde a Manhattan de New York 1997 representava uma figura alegórica, , a Los
Angeles de 2013 imaginada por Carpenter se distancia pouco da realidade. Como diz
Snake Plissken, o herói do filme, “the future is now”: o futuro é agora.
Snake Plissken ( Kurt Russel), sobrevivente de Escape from New York, é chamado a
cumprir uma missão quase similar à precedente. Este processo de retomada, de
repetição, inerente a todo filme seqüência, torna-se para Caepenter uma metáfora de sua
própria situação de cineasta a quem se encomenda repetir seu grande sucesso. Escape
from Los Angeles retoma a estrutura de New York 1997, a da aventura picaresca,
pontuada de etapas e encontros: ocasião para Carpenter de zombar dos clichês do modo
de vida californiano, do culto ao corpo ao surf. Sucedem-se assim uma série de
episódios irresistíveis, que conduzem Snake pelos quatro cantos da cidade: um centro
cirúgico estético povoado de zumbis, uma Disneyland transformada em campo de
batalha.
A América mudou, portanto e, em 2013, mostra-se mais moralista e puritana que nunca.
Escape from los Angeles visa à ditadura do “politicamente correto”, a fim de imaginar
os seus efeitos desastrosos sobre a sociedade americana. A personagem de Snake torna-
se então mais que um herói de filme de ação; ele é o porta-voz de um discurso virulento,
niilista que é o de Carpenter diretor: não se trata aqui de se conformar às regras
arbitrárias que poderiam lhe ser impostas pelo projeto do filme.
O filme pode também ser visto como um anti-Independence Day, uma vez que o medo
do Outro não é simbolizado por extraterrestes maléficos, mas por uma oposição
flagrante entre terceiro mundo e capitalismo. A América transformou los Angeles em
centro de deportação que as nações mais desmunidas utilizam para preparar a invasão
do país, graças à ajuda da filha do presidente, que se juntou aos rebeldes. Em uma das
mais belas seqüências do filme, os líderes da missão suicida de Plissken projetam-lhe
uma gravação em três dimensões da fuga da jovem: Snake é quase um prisioneiro da
imagem, assim como já aprisionado em uma ficção à qual ele está longe de desconhecer
( être le dupe).
Snake Plissken está em um “entre-deux” ( entre duas dimensões, dois mundos, no meio
de), tão desgostoso da hipocrisia dos políticos conservadores quanto do oportunismo de
ditadores de pacotilha. O que poderia se mostrar como uma contradição ideológica de
Carpenter , ao invés disso deve ser interpretado como uma espécie de manifesto político
impossível, aquele de uma sociedade ideal onde todos os indivíduos poderiam coabitar ,
para além das ideologias: não é por acaso que o personagem mais positivo do filme, a
filha do presidente, se chama Utopia. Cineasta hawksiano ( mais pela aproximação dos
temas que pelo estilo), Carpenter presta talvez homenagem aqui à poderosa mensagem
de Hawks em The big sky, filme onde os indivíduos se revelam mais fortes que os
modelos de sociedade de onde vieram. Em seu caminho, Plissken faz aliança com os
excluídos, ladrões, vigaristas, traficantes de todos os gêneros, até um transexual
especialista em guerrilha urbana. Carpenter toma deliberadamente o partido destes
“perdedores”, estes losers, no fundo mais envolventes que o presidente e seus
conselheiros, situados em uma base militar.
Carpenter faz prova aqui de um humor negro já presente em In the Mouth of Madness
( À beira da loucura, 1995), e opta por um estilo por instantes exuberante, em total
adequação com a virulência de suas intenções. Escape nos mostra um universo caótico,
quase carnavalesco, nas antípodas do bom gosto e do aspecto excessivamente
“suave”( lisse) das novas tecnologias do cinema de ficção científica. Los Angeles é
descrita como uma espécie de corte dos milagres, anunciadora de uma nova Idade
Média , prestes a se abater sobre o planeta.
Escape aliás pode ser visto como uma versão moderna da Ópera dos três vintéms, com
seu desfile variado de personagens ricos em cores, interpretados por atores magníficos
( Kurt Russel, Valeria Golino, Cliff Robertson, Stacy Keach e Steve Buscemi). Sem
dúvida, uma das grandes forças do filme é nos tornar quase familiar esta visão de
Apocalipse, como se este já estivesse às nossas portas; basta ver o admirável prólogo,
que mostra a destruição de Los Angeles por um tremor de terra titânico. Os planos são
filmados como arquivos, reforçados por uma voz-off feminina, quase neutra, que
descreve o fim de um mundo. Carpenter consegue criar um sentimento de conivência
entre o espectador e este imaginário pessimista, à maneira de Hyeronimus Bosch, no
qual o filme faz pensar às vezes. Mas Escape é também uma espécie de western urbano,
que progride com um ritmo regular, sem jamais se perder em demonstrações pesadas ou
precipitadas. É neste equilíbrio constante entre o aspecto lúdico do gênero e o
pessimismo da mensagem que Escape consegue se reconciliar com uma energia
destrutiva à qual o cinema americano parecia ter renunciado.
Sabia-se desde alguns anos que Carpenter estava prestes a se tornar um dos metteurs-en-
scène mais apaixonantes de sua geração. Sabe-se agora que ele é também um dos mais
importantes. Certo, Escape from Los Angeles é talvez menos “sustentado” ( tenu)
formalmente que alguns de seus últimos filmes, mas suas imagens são tão singulares e
poéticas quanto: um ballet de helicópteros em plena noite, uma corrida de surf nas
ruínas, uma viagem submarina nos destroços de uma cidade submersa... Os efeitos
especiais, com frequência utilizados de forma exagerada nas grandes produções, servem
aqui a colocar em relevo um mundo dominado pela mentira e pela ausência total de
comunicação entre os seres. Nesse sentido, a cena final do filme, que repousa sobre um
jogo de “faux-semblants” e de hologramas, é um modelo de inteligência e economia.
Mas com os anos Carpenter tornou-se um cineasta mais grave, mais lúcido, portanto
mais insolente. Snake encontra, ao longo de seu périplo, Taslima, uma jovem
aventureira que o salva das garras de um espantoso agressor. Ao curso de um curto
monólogo, Taslima descreve sua existência em Los Angeles , explicando que, apesar da
guerra e da violência, é-se mesmo assim livre. Sob os olhos de Snake, ela se deixa
subitamente matar por uma bala perdida. Cena trágica, dirigida sem pathos, e que nos
confronta com qualquer coisa de fugitivo, brutal e absurdo que é simplesmente a própria
vida. Esta breve sequência é o espelho do filme, de uma invenção e simplicidade
prodigiosas. Saímos de Escape com o sentimento inesperado de que o cinema pode
ainda ser febril, livre e jubilatório. Pois sob seus dilúvios de explosões e ruídos, penetra
paradoxalmente uma força e uma imaginação extraordinárias, aquelas de um dos
maiores cineastas de sua geração.

Nicolas Saada sobre Fuga de Los Angeles


Tradução Luiz Soares Júnior.

O cinema e a memória da água [Le Grand Bleu (Imensidão Azul) de Luc


Besson e Palombella Rossa de Nanni Moretti]
Quando durante os anos noventa nos debruçarmos sobre as metáforas de sucesso dos
anos oitenta, veremos que eram aquáticas. “Só água, só água”, dir-se-á, lembrando tudo
o que, em todos os sentidos do termo, flutuava. Da cotação das moedas ao fluxo das
imagens televisivas (o tema da "torneira de imagens"), do regresso olímpico da natação
sincronizada à promoção da "glisse"1, e, para acabar em beleza, da liquidação (a Leste)
do comunismo, sobre fundo de liquefação (a Oeste) do sujeito, é a mesma mensagem
que passa: o indivíduo novo, esse anti-herói das sociedades democráticas massificadas,
esse "átomo flutuante esvaziado pela circulação dos modelos e por isso continuamente
reciclável" (Lipovetsky) é, fundamentalmente, alguém que tem de saber nadar. Como de
resto fazer de outro modo num mundo onde um Baudrillard, de longe o melhor
jornalista da década, lhe descreveu freqüentemente a “ultra-fluidez”. Mas as metáforas
populares (“ça baigne”2) dizem também o espanto de não ir ao fundo, e, apesar da água
engolida, a euforia resignada de se manter, graças a alguns movimentos limitados, à
tona de água, longe das praias e das pedras da calçada dos anos setenta. A cultura,
doravante, merece a designação de “caldo”, é aí que a mercadoria flutua como uma
rainha e a sopa (não apenas a Campbell de Andy Warhol) tem mais comerciantes do que
nunca.Como é que o cinema terá sobrenadado neste caldo? Não muito bem. Duas
“histórias”, no entanto, a de um mergulhador em apnéia apolítica e a de um jogador de
pólo aquático comunista, terão marcado estes últimos anos. Uma, a do Grand Bleu
(1988), terá tido um sucesso meteórico junto do que resta do grande público e a outra, a
de Palombella Rossa (1989), terá permitido aos que ainda precisam de cinema contarem
quantos eram3.Os dois filmes não têm nada em comum a não ser o facto de falarem de
formas muito diferentes da mesma coisa. Nos dois casos, há um herói aquático e
sedutor, um “banho” ao qual o primeiro escapa “afundando-se” e o segundo ocupando a
superfície. Nos dois casos existe uma dificuldade de comunicar que torna o primeiro
quase afásico e o segundo doente da linguagem. Do lado de Édipo, o papá está no fundo
do oceano e a mamã à beira da piscina, não há mulheres nem ligação sexual e, mesmo
quanto às relações com outros homens, apenas uma ligação distante com a competição.
Um é imbatível, o outro é um derrotado-nato, mas cada um deles tem apenas um
“outro” a dominar que é ele próprio. Estes heróis, confrontados com o que Eric Conan
chamava aqui mesmo o “grau zero da alteridade”, são bem do nosso tempo.
Desde a sua saída, Le Grand Bleu incomodou os profissionais da cinefilia. Demasiado
inconsistente do ponto de vista estético, o filme tornou-se esta coisa triste: um
fenômeno social. Não é portanto o fenômeno que foi analisado mas sim o que revelava
do seu público jovem que, radiante, o via, a ele, dez vezes4. Ora Le Grand Bleu não é,
como Jean de Florette ou Camille Claudel, o lifting acadêmico de um cinema cujo prazo
acabou há muito, nem um enorme sintoma cujas falhas estéticas obrigam a abandoná-lo
aos sociólogos. Se deu a tal ponto a sensação de “acertar” foi precisamente porque tinha
qualquer coisa a ver com a estética. A única questão é saber se se trata ainda da do
cinema. Voltemos à água e mergulhemos mais à frente. O que é desarmante em Le
Grand Bleu é a forma como Besson parece contentar-se com o look que o mar há muito
tempo tem em todo e qualquer spot publicitário (lembremo-nos do aterrorizador Ultra-
Brite). Menos por inaptidão a filmá-lo do que porque o mar, para ele, é isso: um “grande
azul” de síntese no qual se “hidrodesliza” sem fazer ondas. Enquanto que Beneix tem
ainda um super-ego de artista que o faz sofrer imenso, Besson já utiliza a roupagem do
cinema para produzir esses “seres de síntese” que são os indivíduos pós-modernos. É,
neste sentido, o primeiro verdadeiro cineasta pós-publicitário, aquele que herda em
completa inocência todos os “conceitos visuais” da publicidade e que, por isso, já não
sofre com não ser “pessoal” e com alinhar apenas “lugares comuns”. É verdade que
rodar um filme continua a ser uma aventura e um desafio desportivos, mas já não é uma
aventura do olhar. A água é lisa e o seu fundo está vazio: já não há nada para ver5.O
que é que nos diz a publicidade? Que as coisas já foram olhadas, que os olhares são
arquivados e que o mundo é já visto. Besson sabe de uma vez por todas com que se
parece um mar, um mergulhador, uma mulher, um golfinho, um italiano (ou mesmo uns
peruanos). Tal como sabe intuitivamente com que se parecerá o “herói” do
individualismo democrático massificado: com um corpo sem órgãos, fora do sexo, fora
da linguagem, fora do desejo, programado para efetuar um único movimento. Com um
robô sedutor, um autômato auto-legitimado. Por mais que custe aos media, Le Grand
Bleu não representa forçosamente uma enésima “nova vaga” na história do cinema
francês. É perfeitamente possível imaginar que o parque de salas de cinema só possa ser
“salvo” do naufrágio por produtos audiovisuais como este (nem filmes de autor nem
filmes de produtor, mas filmes de “promautores”), situados a meio-caminho entre a
Disneylândia americana e os “sons et lumières” da cultura européia reciclada. O erro
seria pensar que estes produtos não têm conteúdo nem estética. O interesse do Grand
Bleu é, pelo contrário, fazer-nos admitir que a vizinhança, durante muito tempo
estimulante ainda que turva, entre “cinema” e “publicidade” não tem já talvez razão de
ser. Porque o cinema é demasiado fraco e a publicidade demasiado forte. O início dos
anos oitenta terá visto a legitimação cultural e depois estética da publicidade. Mas no
fim desta mesma década, ter-se-á começado a assistir à sua aplicação propagandista.
São os cânones publicitários que servem doravante para tratar os “grandes temas”, quer
dizer, para declarar guerra ao Mal (do clip antidroga ao negócio da telecaridade) e a
unificar o público do lado do “lado bom”. E a fabricar, para o fazer, o “corpo” de
síntese dos cavaleiros brancos.Le Grand Bleu (com uma candura muitas vezes tocante
que o astuto Ours [O Urso] de facto não tem) deriva desta fabricação. O indivíduo
contemporâneo já não é pensável através das velhas categorias de “pessoa” (pós-guerra,
neo-realismo) ou de “sujeito” (pós-1968, novas vagas), exige, também ele, um mito
fundador e é lógico que este, por seu turno, tenha algo a ver com a água. É do fundo do
oceano que, novamente, surgiu o elo que faltava. Pequeno celacanto botticelliano, o
mergulhador órfão tem como pai essa coisa simpaticamente lisa que é o golfinho. Neste
aspecto é o contemporâneo exato do actual vitalismo ecológico. Se os indivíduos
animais têm, também eles, “direitos”, têm certamente o de serem mitologicamente pais
dos indivíduos humanos.
É com tudo isto na cabeça que é preciso repetir, com a última energia, que Palombella
Rossa é um grande filme e Nanni Moretti o mais precioso dos cineastas. Palombella
Rossa é, num certo sentido, a resposta do cinema ao audiovisual. Resposta minoritária
porque o “cinema” passou doravante para a minoria (ativa, espera-se). O filme de
Besson “acerta” porque propõe a um vasto público o espetáculo de um indivíduo
autônomo, ao passo que o de Moretti “visa com verdade” porque fala a um público
modesto de um indivíduo plural, estorvante e estorvado, jogador e jogado, falante e
falado, insuportavelmente ligado aos outros.Voltemos então à água e mergulhemos de
novo. Esta água já não mitológica mas social, a água sobrepovoada de uma piscina onde
se ajusta ao mesmo tempo um grande número de contas: com a infância, com a outra
equipa, com a política, com as palavras, com o jornalismo, com o cinema, com a
memória. Onde a fundação mitológica exigia um efeito de profundidade, o laço social é
agora um efeito de superfícies e, cada vez mais, de interfaces. É, dos dois, o filme
“superficial” que é mais profundo porque vivemos num mundo onde este todo que é
privado aflora à superfície e se torna “público” (a publicidade é precisamente o agente
estético e econômico deste “afloramento”).É verdade que Moretti pertence à família dos
cômicos que – de Chaplin a Jerry Lewis – tomam tudo (e tudo é demais) a “seu cargo”,
mas pertence também àquela outra tradição que – de Keaton a Tati – renunciou a salvar
o mundo, pela boa razão que o mundo, para surpresa geral, não se “afunda” (flutua). A
água de Palombella Rossa não é nem a grande coisa amniótica de que se sai como de
uma câmara de descompressão, simpático e regenerado, nem esse elemento gag onde se
cai facilmente com um grande pluf: é o habitat doravante natural das sociedades
desreguladas, das economias e das atenções flutuantes, dos interfaces cintilantes e dos
encontros aleatórios (o “drible” como figura do laço social, como arte de apagar o
adversário).No seu filme precedente (La Messa è finita), Moretti filmava um rapaz
muito novo que não se cansava de atravessar a piscina de um lado ao outro: não o filho
do golfinho que regressa do fundo matricial mas o pequeno peixe (pescellino) que, custe
embora a alguns, “se masturba”6 enquanto desliza, à força de idas e vindas, nos
interstícios do social. A cena era sublime porque, ele próprio nadador, Moretti filmava
como David Hockney soube pintar: a materialidade da água, o movimento
reconquistado e a liberdade da cria humana (que não tem nada a ver com a autonomia
do mergulhador publicitário). A cena “respirava”, estava nos antípodas do que
caracteriza o mergulho em apnéia: reter o fôlego, não respirar mais.“É aqui que
estamos”, parece dizer Moretti. O cinema está aqui, apetece acrescentar. Não irá mais
além. Custar-lhe-á. É hoje o nosso único fio condutor e a nossa única memória neste
banho pós-moderno onde, à falta de combatentes, a ideia democrática triunfa sob os
nossos olhos (“cosa significa oggi essere communista?”), onde rosna a guerra
econômica, a aplicação das leis de mercado a todas as esferas da atividade humana e a
difícil “subjetivação” de um indivíduo multifacetado, certamente enganador mas talvez
mais “forte”7. Mais forte porque poroso, móvel e deslizante? Da água bessoniana surge
um mutante demasiado liso e um autômato demasiado perfeito para não inquietar. Na
água morettiana é toda uma população (italiana, européia) que se agita entre a nostalgia
da História e a fuga em frente. Cada um em suspenso, à imagem do pólo aquático, esse
desporto onde se nada menos do que se flutua. Porque flutuar ainda é trabalho.
Serge Daney.
Libération, 29 de Dezembro de 1989.
Texto recolhido em Devant la recrudescence des vols de sacs à main, — cinéma,
télévision, information (1988-1991), Lyon, Aléas Editeur, 1991, pp. 161-165.
Notas
1 Denominação reunindo esportes que implicam deslizar, como o surf, o ski, o
snowboard...
(NdT)2 Está tudo a correr bem.
(NdT)3 Estranho sentimento, à saída do filme, de um regresso de cinefilia grupal, “à
antiga”. Sentimo-nos de novo prontos a zangarmo-nos com o nosso melhor amigo caso
ele não gostasse de Palombella Rossa. A ponto de passar por cima dos defeitos que o
filme tem: um certo voluntarismo teórico, um certo desejo asfixiante de dizer tudo.
4 O psicanalista Jean-Jacques Moskowitz confiava ao autor que o seu jovem filho não
parava de ver e rever o filme para o compreender melhor. Mas o que é que há de tão
difícil de compreender nesta história tão simples? A resposta pode ser esta: Le Grand
Bleu diz que a morte existe. Di-lo a crianças que não confundem as gesticulações dos
mortos na televisão ou dos filmes gore com a morte, a verdadeira, aquela cujo
espectáculo lhes é cada vez mais cuidadosamente escondido. Do mesmo modo,
Sociedade dos Poetas Mortos, outro filme-culto para os adolescentes, começa com uma
cena onde é significado aos alunos que morrerão um dia.
5 Isto ainda vai mais longe. No seu terceiro filme, Nikita, Besson inventa uma curiosa
personagem, interpretada por Jean Réno e chamada “o Limpador”. A função do
Limpador é fazer de modo a que não sobre rigorosamente nenhum rasto material de
uma operação de espionagem que acabe mal. Ele atravessa portanto o filme como um
exaltado, com o seu banho de ácido debaixo do braço. Daí os gags anatômicos bastante
divertidos. Podemos ver no Limpador um herdeiro dos “Senhores Limpinhos” da
publicidade. E, ao mesmo tempo, podemos ver nesta necessidade de “criar vazio” uma
vontade bem firme de não herdar nada. Nem do mundo, nem do cinema.
6 Alusão furiosa à campanha publicitária que, na mesma altura, louvava a nova fórmula
dos Cahiers du Cinéma: “já não nos masturbamos”.
7 É evidentemente a questão central da época e nada seria mais temerário do que
responder aqui. O autor sente bem que faz parte daqueles a quem a porosidade do social
pós-industrial mergulha numa certa soturnidade. Não é o único, mas terá por isso razão?
Os apoiantes do “pensamento fraco” (do pensiero debole segundo Vattimo) não terão
razão? A circulação dos significantes, a flutuação dos significados, o apagamento dos
referentes não permitirão a uma sociedade de indivíduos resistir mais eficazmente a
tudo o que a ameaça, fosse embora ao preço de uma certa mediocridade e de uma
desqualificação progressiva do sagrado (pela secularização), do trágico (pelo “segundo
grau”), da arte (pelo mercado da arte) ou mesmo da cultura (pelo turismo)? Os “roubos
de malas de mão” serão um mal menor? E o “fim da história” não será apenas o começo
das aventuras do “mal menor”? Vertiginoso.

Bom dia tristeza, Preminger

No interstício entre dois períodos, o filme ocupa um lugar à parte na obra de Preminger.
É o único onde o autor deu a um tema pequeno, de caráter intimista e trágico ( caráter
este que figura em geral na primeira parte de sua obra), os atributos – o scope, a cor-
que ele reserva com frequência ao tratamento dos grandes temas políticos e sociais. A
fim de bem demarcar a dupla natureza, a natureza um pouco híbrida do filme,
Preminger rodou em preto e branco as sequências atinentes ao presente da ação. Os dois
tipos de sequência ( o passado em cores, o presente em preto e branco) são unificados
por um comentário em off muito importante no filme, pois ele orienta ao mesmo tempo
sua estrutura, seu conteúdo emocional e moral. Ele projeta a heroína e o filme em uma
espécie de eternidade gélida, apesar de excitante para o espectador, onde a narradora
revê e retoma indefinidamente uma história que a fez sair , sem dúvida
irremediavelmente, do universo livre e descuidado da adolescência e de sua conivência
com seu pai. A história de Bom dia tristeza é a de um paraíso perdido para sempre para
a heroína, sob os efeitos conjugados de sua lucidez e de uma vontade perversa de agir e
de triunfar. Junta-se a isso um desejo mais secreto de imobilizar o tempo a seu bel-
prazer. Cécile procura prolongar até os limites da saciedade o conforto de uma célula
familiar reduzida à sua mais simples expressão, aquela de uma relação pai-filha que
inclui em si mesma, com uma perfeição interdita, todas as outras relações que possam
unir dois seres.
A intenção de Preminger de adaptar o romance de Sagan não deve surpreender, já que a
intriga do romance se assemelha muito à de um de seus primeiros filmes, Angel face,
1953. Sendo a obstinação uma de suas virtudes principais, ele não se deixou desanimar
pelo insucesso monumental de Santa Joana, e retomou a parceria com a atriz que
descobrira, Jean Seberg. Ele descobriu e forjou em Seberg uma personalidade física, um
talento inteiramente novo e fascinante ( Santa Joana e Bom dia tristeza foram os únicos
grandes filmes de Jean Seberg, uma carreira que desejaríamos ter sido mais rica e mais
feliz).
Uma influência discreta da pintura abstrata (que Preminger adorava colecionar) faz-se
presente na mise-en-scéne do filme. O rosto- os rostos- de Jean Seberg se entrecortam,
ao sabor das sequências, sobre fundos unitários e coloridos, segundo uma dinâmica
plástica que ressona tanto sobre o caráter único e autônomo de cada sequência quanto
sobre a adesão e confrontação contrastadas das mesmas no conjunto da narrativa. Bom
dia tristeza é, ainda mais nitidamente que os outros filmes de Preminger, um filme tanto
de artista plástico quanto de dramaturgo.
Jacques Lourcelles Dicionário de Filmes. Tradução: Luiz Soares Júnior.

Objective Burma!, Raoul Walsh


Uma das grandes obras-primas de Walsh e a obra-prima do filme de guerra americano
(com The naked and the dead do próprio Walsh e Merril’s Marauders de Fuller). Em
dois filmes precedentes com Errol Flyn, Walsh havia pintado a Guerra como um jogo
(Desperate Journey), como uma ocasião insólita e inesperada de redenção individual
( Uncertain Glory). Ele a mostra em Objective Burma! como uma aventura coletiva
grave e que mobiliza de todas as energias. O jogo interpretativo de Flyn, sem arabescos
nem ironia, é o espelho destas intenções. É aqui o triunfo absoluto da arte clássica, onde
o concreto e o abstrato,a descrição analítica e sintética da realidade, o emprego dos
closes e dos planos gerais, o “subentendido” ( litote) e o espetacular se harmonizam
com perfeição e dão lugar a uma obra que, realizada com urgência” ( à chaud) em um
contexto e com fins militares precisos, atinge imediatamente ao intemporal. Ver-se-á
esta obra em cinqüenta anos com a mesma admiração que ela inspira hoje.
O filme é fascinante pelo gênio com o qual Walsh decompõe constantemente as
diferentes fases de uma ação, as diversas reações dos que as realizam, a fim de
recompô-las quase em seguida, dando uma visão global desta ação e da atitude física e
mental dos combatentes.Quer se trate das múltiplas atividades do campo interrompidas
pelo anúncio de um briefing em certa hora; da calma, nervosismo ou ansiedade dos
pára-quedistas antes do salto; do próprio salto; das diversas atitudes dos soldados
confrontados à fadiga, ao perigo, desânimo ou a uma renovação de esperança e energia,
Walsh opera uma síntese da realidade que engloba todos os seus aspectos, sem
privilegiar artificialmente nenhum. O filme não esconde que é a descrição de uma
vitória ainda não totalmente conquistada. Com uma espantosa sobriedade ( e que
contrasta com o tom um tanto pomposo dos filmes de guerra da época), Walsh mostra-
nos esta vitória em germe, e mais que em germe, na solidariedade profunda, tangível
dos membros da equipe e de seu chefe. Cada homem, tanto por vontade própria quanto
por necessidade visceral de sobrevivência, se funde no grupo e no processo da ação a
realizar.
Embora demarque cada personagem com características próprias, Walsh foge do
pitoresco fordiano, assim como destas observações neuróticas que abundam nos filmes
de guerra hollywoodianos dos anos 50. No coração do combate levado por seu país, ele
intenta testemunhar que o perigo, a urgência, a vontade de sobrevivência, a coragem
suscitam, na célula sã que ele escolheu para examinar, reações imunitárias contra os
riscos de destruição interna e reações de agressividade contra o inimigo externo. Ele
quer mostrar também que, em ambos os casos, estas reações são suficientemente
poderosas para obterem a vitória. Uma parte de esperança, outra de realismo ( uma parte
igualmente de sobrenatural cósmico, sensível na maneira de filmar e de apreender a
Natureza) animam também esta obra onde Walsh, graças a seus talentos de cronista,
pintor e poeta épico, pôde captar o instante com um imenso recuo, e conferir a uma
página da História imediata os acentos da Eternidade.
Nota: O filme, em seus diversos relançamentos, foi frequentemente amputado. O vídeo
comercial Warner Home vídeo apresenta a duração original do filme em v. original
legendada ( sob o título Objective burma!). Excelente restituição da foto de James
Wong Howe.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

À beira do mar azul, Barnet 1935

Soberbo pedaço de poesia do mais inspirado e “artista” dos cineastas russos. Primeiro
filme falado do realizador, À beira do mar azul guarda ainda um pé no mudo e permite
aos personagens se exprimir ora pelo silêncio, ora pela palavra ( poucas palavras), ora
pelo canto. Obra dionisíaca, tudo nela jorra e se transforma alegremente em seu
contrário. A intriga é composta por eventos minúsculos, imponderáveis, aliás com
freqüência improvisados no estúdio; e, no entanto, os personagens dão-nos a impressão
de viverem uma grande aventura. A maioria das sequências utiliza uma montagem
curta, entrecortada, mas que ao fim possui uma grande amplidão lírica, devido ao
interesse equilibrado que o autor dispensa às paisagens e aos personagens.
Estes últimos são pobres diabos desprovidos de tudo, espécies de clowns próximos dos
heróis de Gosho ou de Jacques Rozier, e no entanto dão verdadeiras lições de vida.
Desprovido de mensagemn política, o filme transmite uma mensagem de alegria,
felicidade e reconhecimento para com a vida. A crítica russa da época foi violenta ( vide
os documentos reunidos na excelente publicação do Festival de Locarno, Boris Barnet,
1985). Reprovou-se sobretudo seu vazio, seu formalismo, falta de imaginação,
ingenuidade, seu artifício. Um dos críticos ( Herrman Khokholov) lamenta que o mar
constitua de qualquer maneira o personagem principal do filme”, o que em certo sentido
não é falso, mas ele lamenta que “este personagem não possua nenhuma simpatia
particular”. A quem se interessasse por abordar o imenso continente cinematográfico
russo, não haveria melhor conselho a dar que o de começar por À beira do mar azul.
Pois não há obra mais original, mais livre de todos os cânones estéticos e ideológicos,
mais intimamente próxima do seu autor e mais de acordo com esta infinita vitalidade
cósmica do universo que os melhores filmes russos sempre tentaram restituir.
Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

As aventuras de Hadji, Don Weiss 1954

No cinema hollywoodiano do pós-guerra, a corrente do filme de aventuras orientais,


adaptadas menos ou mais das Mil e uma noites, foi quantitativamente pouco importante,
mas se ilustra por tendências variadas.
Na Universal dos anos 40, esta corrente deu lugar por exemplo a todo tipo de narrativas
espetaculares para a apreciação das crianças, onde a inovação recente da cor foi
particularmente valorizada ( Arabian nights, John Rawlins, 1942, ou Ali Baba e os
quarenta ladrões, Arthur Lubin, 1944). No fim dos anos 50, o conto oriental reencontra
seu caráter fantástico, favorecido por efeitos especiais especialmente atraentes ( A
sétima viagem de Sinbad, Nathan Juran, 1958). Situado entre estes dois períodos, As
aventuras de Hadji representa uma tentativa de certa forma única- ao menos por sua
qualidade- de valorizar, em uma narrativa não-fantástica, a dimensão adulta, elegante e
discretamente erótica do conto oriental. Don Weis, no que é sem dúvida o melhor filme
de sua carreira, demonstra um refinamento plástico- um refinamento simplesmente, na
verdade ( tout court)- absolutamente extraordinário, onde a contribuição do “color
consultant”, o célebre fotógrafo George Hoyningen-Huene ( colaborador de Cukor em
todos os seus filmes em cores, de A star is born a The Chapman Report) foi realmente
determinante.
O filme manifesta, com efeito, uma soberba qualidade em todos os seus níveis: na
natureza luxuriante dos cenários, sabiamente abstratos ; nos figurinos, fantasistas e
coloridos, de uma perfeita unidade de estilo; na beleza elegante de seus intérpretes:
soberbas Elaine Stewart e Rosemarie Bowe. John Derek não está mal também, um
distante primo de Fabrício Del Dongo. Com muita arte e leveza, Don Weis permite ao
espectador respirar o ar da grande aventura, purificada tanto de toda grandiloqüência
quanto destas facilidades burlescas que são frequentemente pecados do gênero. O leve
sorriso do contador de histórias também acrescenta constantemente a nota irônica sem a
qual uma obra deste gênero seria incompleta; uma certa insolência é aqui necessária ,
tanto àquele que conta a história quanto ao que a escuta.
Nota: A Crítica americana, tão raramente lúcida, ignora como sempre este filme, que ela
deveria incensar. Bosley Crowther, o crítico do The New York Times, revela seu
obsceno mau gosto ao declarar que preferia Bob Hope no papel de John Derek. O filme
deveu sua reputação apenas à clarividência de certos cinéfilos franceses , em particular
dos Mac-Mahonistas.
Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Eric Rohmer, por Serge Daney

Primeira qualidade do cinema de Rohmer: a paciência. Não somente no caso de um


homem seguro de si o suficiente para se impor- ao termo de um longa-metragem e de
alguns filmes pedagógicos- como um dos “grandes” do jovem cinema francês. Mas
também em uma obra onde tudo nos leva a esta virtude primordial: saber esperar,
aprender a ver; ambas as atitudes são, graças ao cinema, uma única e mesma coisa.
Como se o mundo não passasse de um imenso repertório de lições de coisas, repertório
este do qual nunca se fez realmente o inventário.
O primeiro olhar não ensina nada. Mas há por detrás da neutralidade das aparências –
em Rohmer, nada é sublinhado, e ainda menos privilegiado- uma lição a merecer, uma
ordem a descobrir, uma verdade a pôr em evidência. Esta lenta maturação constituirá o
próprio tempo do filme, ou seja: ela, longe de excluir os tempos mortos e os detalhes,
apenas será possível por meio destes.
O princípio é simples então: catapultar idéias contra experiências, observar
escrupulosamente e ver o que resulta daí. A experiência é para Rohmer um pouco o que
foi para Hawks: a única realidade, que nos informa onde estão o possível e o
impossível, recusando o segundo, buscando esgotar o primeiro. Toda idéia que não foi
experimentada- ou seja: encarnada, filmada- não existe. A mesma coisa com os
personagens: para que lhes seja consentido “ver” alguma coisa, é-lhes necessário um
périplo, uma iniciação, uma prova ao termo da qual eles terão merecido o que já
possuíam, mas que deveria tornar-se mais interior ( devenir plus intérieur), melhor
assimilado por eles. No Signo do leão, é preciso merecer a riqueza por meio de um teste
de pobreza que o obriga a redescobrir tudo; logo, a ver melhor. A mesma situação, só
que num registro menos grave em La Boulangère de Monceau.
A experiência exige a maior honestidade possível, muitos escrúpulos e meticulosidade.
Mas Rohmer é o cineasta assombrado pela geografia, as cidades, os mapas, as pedras,
tudo o que pode oferecer esta resistência impessoal que torna as aventuras humanas
mais exemplares.
A ficção, contudo, é sempre uma fraude; é preciso dissimular, gerir seus efeitos. É
justamente o contrário que ocorre com os filmes pedagógicos, onde Rohmer reencontra
a paixão da precisão, o ódio do “flou” e da entropia, a beleza de um raciocínio e o
caráter inelutável de toda experiência. Nos Cabinets de physique au XVIII siècle, que é
talvez sua obra-prima, é-lhe suficiente filmar uma experiência de Física, passo a passo,
para que nasça a emoção mais simples. E a mais estranha também, pois nascida
unicamente da exatidão.
Dictionnaire du cinema, Éditions universitaires, 1966
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Os carrascos também morrem, Fritz Lang

A opressão exercida em 1941 pelos nazistas sobre Praga e a resistência de seus


habitantes são o assunto desse filme realizado em 1942 por Fritz Lang, adaptado de um
roteiro original de Bertolt Brecht. A música é de Hanns Eisler e a foto é de James Wong
Howe, fotógrafo de Sua Única Saída e Um Punhado de Bravos de Raoul Walsh que
estão, junto a Os Carrascos Também Morrem, entre os primeiros filmes americanos de
grande importância. Insistiremos portanto quanto ao fato de que Carrascos... representa
uma colaboração entre Lang e Wong Howe. Após sua chegada nos E.U.A. foram, até
1942, diretores de fotografia de seus filmes: Joseph Ruttenberg, Leon Shamroy, Charles
Lang Jr., George Barnes, Edward Cronjager e Arthur Miller. A superioridade de Wong
Howe determina diretamente uma melhor expressão das intenções de Lang. Durante
cento e trinta minutos de projeção, Carrascos prova a que ponto os problemas de luz são
integrados à mise en scène, e como eles podem estimular a força dessa mise en scène.
Não existe a possibilidade de um trabalho completo sobre um ator fora de uma certa
comunhão de idéias entre o realizador e o fotógrafo, de uma colaboração íntima em
vista das metas a se alcançar. Um plano mal iluminado é imediatamente esvaziado de
seu sangue. Aqueles que conhecem a foto de Wong Howe para A Embriaguez do
Sucesso (The Sweet Smell of Success) de Alexander Mackendrick sabem que ela
permite imagens de uma grande brutalidade. Ora, basta se ter refletido pouco sobre o
que deve ser e o que pode ser a mise en scène para se pressentir a necessidade dessa
brutalidade. Todos os grandes romances, « Bon pied bon œil » de Roger Vailland, ou «
La Corrida » de Michel Déon, são brutais. Da mesma forma, encenar, é se engajar na
brutalidade em relação a si mesmo e ao mundo. A situação de um grande filme é sempre
de ir contra a cegueira de seus contemporâneos. Nós somos portanto persuadidos que se,
de uma maneira geral, as intenções de Fritz Lang não coincidem inteiramente com as de
Bertolt Brecht, ao menos elas estão longe de lhes serem alheias (o crítico brechtiano
Louis Marcorelles escreveu o contrário) e até mesmo se reencontram no que tange essa
questão. Daí o caráter próprio a cada filme de Lang como a cada filme de Losey de ser
teatral, de consagrar a duração do espetáculo à exposição dos fatos, dos impulsos e dos
sentimentos. Trata-se de fazer com que a verdade se instaure sobre uma questão, isto
quer dizer que se propague, que exponha as implicações sociais, econômicas,
sentimentais, sexuais e familiares. Nesse sentido, o diálogo de Brecht, que a cada
momento precisa onde está a responsabilidade de cada personagem, elimina todo o
mistério e precipita a ação.
Da mesma forma, a mise en scène de Lang, em Carrascos e em outros filmes, elimina
todo o mistério e precipita a ação. Como alcançar a mise en scène de Carrascos e a de O
Tigre de Bengala, quais são as qualidades requisitadas? Uma boa memória e um
exercício razoável dos sentidos. Em suma, não é falso crer que o talento ou o gênio não
existem, pois apenas o trabalho conta (o trabalho do artesão e do técnico). Lembremo-
nos de Joseph Losey falando de Bertolt Brecht: « A verdade não é absoluta mas ela é
precisa. » Um policial não se expressaria de outra forma e exigiria: a verdade deve ser
estabelecida com exatidão. Eis um desejo que é ao mesmo tempo o mais humilde e o
mais pungente. Carrascos não é mais que uma visão um pouco mais exata das coisas.
Espetáculo excepcional e todavia natural a quaisquer uns. Quem são esses e como
reconhecer suas vozes, a questão está alhures. Visto que tudo está no método, é
necessário citar Georges Bataille: « Se você tiver a paciência, a coragem também de ler
meu livro, estudaremos, conforme as regras de uma razão que não descansa, soluções
para problemas políticos procedentes de uma sabedoria tradicional, mas encontraremos
igualmente essa afirmação: que o ato sexual é no tempo aquilo que o tigre é no espaço »
Para concluir, diremos que a brutalidade é um método e a própria honestidade.
Marc C. Bernard Présence du Cinéma n° 10, janeiro de 1962
Tradução: Bruno Andrade.

The Gipsy and the Gentleman, Joseph Losey 1957

Terceiro longa-metragem de Losey em seu exílio londrino. Este filme extravagante e


barroco, na linha das produções Gainsborough, tipo The man in grey e The Wicket lady,
ambos de Leslie Arliss, 1943 e 45, é um pontos altos de sua obra menos conhecidos e
mal amados. Mal amado em primeiro lugar pelo próprio Losey, em razão das péssimas
condições de filmagem (desentendimento com o produtor Maurice Cowan; abandono do
filme antes do mixagem e a montagem final; cortes prejudiciais praticados pela
produção após este abandono). Em seguida, mal amado pelo público inglês, que se
entediou com o filme. No entanto, o projeto não havia começado mal: foi na época o
maior orçamento de Losey que, segundo disse, desejava fazer de seu primeiro filme de
época uma narrativa de caráter walshiano (veine walshienne). Gipsy não consegue
evitar certos defeitos de ritmo. Construído desde o princípio, e sem dúvida
precipitadamente, em curtas seqüências secas e incisivas, no seu desenrolar a narrativa
não consegue acelerar o ritmo, tal como exigido pela intriga. A partir da segunda parte,
ele arrefece um pouco para readquirir vigor ao final, que constitui um dos mais belos
finais da história do cinema. Mas em seu conjunto, Gipsy tem tantas qualidades que
pode-se mesmo chegar a considerar que é o último “verdadeiro” filme de Losey, aquele
em todo caso onde se exprime, sem dúvida pela última vez, seu talento mais autêntico e
precioso. Em particular, todas as seqüências caracterizadas pela irrupção de um
elemento violento na ação e pela valorização deste elemento na dimensão plástica do
filme atingem o gênio: a atmosfera do filme eleva-se em grau na tensão, elegância e
fascinação trágicas. (Ver por exemplo a cena, no entanto pouco importante na economia
geral da história, da vandalização da propriedade pelo cigano selvagem). O tema da
decadência aparece pela primeira vez claramente na obra de Losey (encontraremos as
premissas em Time without pity) e se inscreve concretamente nos aspectos visuais e
dramáticos do filme. A decadência não é um tema de discurso, um pretexto para
arabescos e figuras de retórica mais ou menos vãs, como será o caso frequentemente nas
obras ulteriores de Losey. A decadência, resultado ao mesmo tempo da situação de uma
classe na sociedade e da evolução individual de um personagem pertencente a esta
classe (aqui, Paul Deverill), é designada por Losey como o momento a partir do qual os
fortes tornam-se fracos e são incapazes neste estado de sobrepujar influências que em
outros tempos eles teriam rejeitado ou digerido sem nenhuma dificuldade. A partir deste
ponto, o equilíbrio psicológico e moral de um indivíduo, seu gosto do risco, sua vontade
de viver vão se abismar com ele em uma vertigem, uma atração mórbida pela
destruição, pelo naufrágio e pela morte.
Jacques Lourcelles. Tradução: Luiz Soares Júnior.

Sedução da Carne, Luchino Visconti 1954

A breve novela de Camilo Boito (1883) forneceu a Visconti a matéria de seu melhor
filme e de uma das obras-primas do cinema italiano. Poder-se-ia mesmo afirmar que se
trata do único filme “caligrafista” (calligraphique) italiano em cores. Visconti retorna a
este movimento estético e a esta inspiração nascidas, bem o sabemos, de uma secreta
oposição ao fascismo nos últimos anos do regime (e do qual Malombra é o filme-
chave). Eles constituem, muito mais que o neo-realismo, o seu verdadeiro universo de
artista. A intriga de Senso mostra o naufrágio de dois personagens em seu amor,
qualificado por eles mesmos como triste e vergonhoso, amor este que conduzirá à sua
recíproca destruição. Eles são um para o outro sua prisão e seu carrasco. Toda sua
aventura se desenrola “à parte” (à coté) da História, da qual sua fraqueza, passividade e
uma espécie de maldição social os impede de participar. São os representantes
impotentes mas lúcidos de um mundo prestes a desaparecer. O positivo está morto
neles, e eis a razão pela qual aqui é difícil falar-se em melodrama ou de ópera. Certo, a
ópera é a referência estética maior que acompanha suas trajetórias, mas ela age à
semelhança de um réquiem, do qual o lirismo gélido e fúnebre não nos permite
experimentar por eles a menor piedade. Visconti pousa sobre seus personagens um olhar
frio e distanciado, descreve-os em longas cenas anti-dinâmicas onde abundam os planos
gerais, que colocam entre eles e os espectadores o máximo de recuo permitido pela
mise-en-scéne. Sob o plano estético, o sucesso do filme (apesar das dificuldades e
obstáculos encontrados por Visconti) aproxima-se da perfeição. Os dois intérpretes
principais são inesquecíveis, e Alida Valli prolonga com uma coerência profunda o
papel que desempenhara no Piccolo mondo Antico, assim como aqueles de Isa Miranda
na época do caligrafismo. O mesmo refinamento caracteriza as cenas intimistas do filme
e os “tableaux” de guerra. Estes últimos figuram entre os mais belos de um gênero que o
cinema hesitava na época tratar em cores. Na parte consagrada à batalha de Custoza,
Visconti teve de suprimir algumas cenas, das quais a ausência prejudica a clareza da
narração (exemplo: aquela em que Ussoni recusa a seus partidários o apoio às tropas
regulares). Contudo, o “ponto de vista de Fabrício”, tão frequentemente de forma vã
chamado em defesa, permite aqui justificar sem artifício a confusão, plásticamente
soberba, desta parte da narrativa. A produção e a censura tiveram uma influência
conjunta para tirar do filme todo o lado negativo desejado por Visconti. Aliás, foi-lhe
proibido chamar o filme de Custoza, nome da célebre derrota italiana, como era o seu
desejo. É sob pressão que ele filma, a título de desenlace, a morte de Mahler, execução
que julgava inútil mostrar. Ele a filmou no castelo Santo Ângelo em Roma e não em
Verona, que a equipe já tinha deixado para trás.

Vejam a descrição dada por ele nos Cahiers du Cinema (número 93) a respeito da
seqüência que ele havia filmado para terminar o filme, ao invés da execução do tenente:
“ Vemos Lívia passar por entre grupos de soldados bêbados, e o fim mostrava um
pequeno soldado austríaco, muito jovem, no máximo 16 anos, completamente bêbado,
apoiado contra o muro, cantando uma canção de vitória como as que se ouve na
cidade.Depois ele parava, chorava e gritava: Viva a Áustria!” Não podemos,
evidentemente, julgar a respeito da qualidade deste final, mas o que conhecemos é
perfeitamente lógico e admirável. Ele acresceu ao filme alguns dos planos mais
significativos do estilo de Visconti. Nos vinte anos que se seguiram a Senso, Visconti
foi sem dúvida mais livre, mas não reencontrou jamais o gênio que manifesta aqui. Ele
se embrenhou pouco a pouco no academicismo e, comparado ao rigor e à plenitude
estética deste filme, seu tão elogiado Leopardo, onde ele tentou vulgarizar sua temática
e seu universo, é apenas um “pensum” extremamente cansativo.

Nota: o diretor de fotografia G. R. Aldo morreu em um acidente de automóvel no


decorrer das filmagens.
Jacques Lourcelles. Tradução: Luiz Soares Júnior.

O segredo da Porta Fechada, Fritz Lang 1948

Segundo e último filme da Diana Productions, sociedade fundada por Lang, Walter
Wanger , sua mulher Joan Bennett e Dudley Nichols. (Diana era o nome da filha de
Bennett e de seu primeiro marido). Depois do fracasso deste filme e do fim da Diana,
começará para Lang a fase mais errática de sua carreira. O segredo da porta fechada é o
mais onírico,, mais barroco , mais cheio de poesia de todos os seus filmes americanos.
A psicanálise, que aqui não é aprofundada enquanto método científico e terapêutico,
serve sobretudo de suporte concreto à revelação da obsessão criminal do herói, que se
liga de maneira central ao universo languiano. “Somos todos filhos de Caim”, diz o
personagem interpretado por Redgrave quando de seu processo imaginário; esta frase
poderia ser posta como princípio em todos os filmes de Lang. O fato de o personagem
não ser um criminoso literal, mas assombrado pela idéia do crime, torna-o ainda mais
languiano. Lang era intimamente convencido de que cada homem é um criminoso em
potencial, e o exprimia frequentemente em conversações privadas. Às vezes, perguntava
a algum de seus interlocutores, com um tom falsamente interrogativo, se este jamais
desejara matar alguém. A resposta negativa suscitava nele um ceticismo completo.

Uma das particularidades do filme (que engendra aliás seu poder poético) é sua
construção profundamente subjetiva, que nos permite penetrar nos pensamentos e
sentimentos da heroína, especialmente graças a um dos mais belos comentários off
jamais ouvidos em um filme. No interior da visão da heroína (que existe no filme
enquanto “sujeito”), o personagem masculino é considerado sucessivamente como
objeto de fascinação, amor, por fim de estupor e terror, os quais serão sempre mesclados
intimamente à presença do amor. A extrema liberdade da dramaturgia permite a este
“objeto” tornar-se, por seu turno, “sujeito”, na única e célebre seqüência do processo
imaginário que o herói intenta contra si mesmo. A foto, os cenários, o découpage,
minuciosamente pensados préviamente por Lang com a ajuda de Stanley Cortez, dão ao
menor interior uma intensidade expressiva próxima do fantástico. O plano típico do
filme é o da heroína atravessando algum corredor ou vestíbulo, transformado pelas
zonas de sombra e de luz em um lugar perigoso, ao mesmo tempo ameaçador e
fascinante. Ela deve percorrê-lo integralmente, com o propósito de atingir aos limites de
seu medo, do obstáculo, do enigma e do segredo que ainda a separam de sua felicidade.
Pois O segredo da porta fechada é, na cronologia da obra de Lang, o último filme onde
o autor ainda deixa a seus personagens uma chance - mínima que seja - de felicidade.

Jacques Lourcelles. Tradução: Luiz Soares Júnior.

A Carruagem de Ouro, Jean Renoir 1953

A obra-prima absoluta de Renoir. O mais civilizado e o mais europeu de todos os


filmes. Os motivos de admiração aqui são inumeráveis: construção em atos ainda mais
hábil, em sua genial simplicidade, que a de A regra do jogo; utilização refinada e sábia
da profundidade de campo no teatro, no palácio do rei e sobretudo no apartamento de
Camilla; esplendor harmonioso das cores, e esta luz dourada e clara que desde então não
mais se viu na tela. É muito mais fácil amar este filme que lhe penetrar os segredos.
Sem dúvida, estes se encontram no caráter proteiforme de Camilla, retrato ao mesmo
tempo da condição humana segundo Renoir, do próprio autor, de suas aspirações e visão
de mundo. Proteu: símbolo e encarnação do desejo faustiano de viver várias vidas.
Camille sente com plenitude, com uma intensidade avassaladora, o apelo da
exuberância da vida; mas ela lhe experimenta também a frustração. Uma vida é muito
pouco. Todas as vidas é impossível. Entre ambas, ou melhor, para além de ambas, há o
teatro, esta miragem encarnada, este remédio à melancolia e à todas as frustrações.

Certo, Renoir presta uma homenagem ao teatro, mas seria um erro reduzir o sentido do
filme à esta homenagem. O teatro aparece aqui, evidentemente, como realidade concreta
(Renoir não exprime nada que não passe em primeiro lugar pelo concreto), mas
sobretudo como metáfora. Ele é o receptáculo de todas as aspirações humanas à
totalidade, à plenitude; é o espelho da alma sensível e ávida da heroína e de seu autor. O
teatro representa uma ultrapassagem, embora real, da realidade: o teatro ou a metafísica
preferida do Ocidental. Síntese de arte plástica e de arte dramática, música e confissão
íntima, A carruagem de ouro é um desses filmes que permitem crer na superioridade do
cinema sobre todas as outras artes.

Nota: O filme existe em três versões: italiano, francês e inglês. A versão inglesa deve
ser considerada a oficial, já que nela se ouve o som direto da filmagem. No entanto
-pois tudo é paradoxo em Renoir-, a versão dublada em francês nos parece muito
superior. As vozes são mais variadas, mais pitorescas, mais engraçadas e, se pudermos
falar assim, mais concretas. Elas acrescentam à elegância e ironia medidas do diálogo
um elemento picaresco do qual não se consegue abrir mão, uma vez provado.Os atores
que dublam a si mesmos (Magnani, Odoardo Spadaro) estão ainda melhores na
dublagem que no idioma original. Por outro lado, Jean Debucourt, na versão inglesa, é
horrivelmente mal dublado. Quanto à versão italiana, ela apresenta o mérito de fazer na
Magnani falar em sua língua original. No entanto, enquanto versão dublada, ela parece
menos colorida e variada que a francesa.
Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes. Tradução: Luiz Soares Júnior.

CIDADÃO KANE. 1941, USA ( 119’) Prod. RKO/Mercury Theatre Production ( Orson
Welles). Realização: Orson Welles. Roteiro: Herman J. Mankiewicz, Orson Welles.
Foto: Gregg Toland. Música: Bernard Herrmann. Dec: Van Nest Polglase, Perry
Ferguson, Darrell Silvera. Intérpretes: Orson Welles ( Charles Foster Kane), Joseph
Cotten ( Jedediah Leland), Dotothy Comingore ( Susan Alexander Kane), Everett
Sloane ( Mr. Bernstein), Georges Coulouris ( Walter Parks Thatcher), Ray Collins
( James W. Gettys), Ruth Warrick ( Emily Norton Kane), Erskine Sanford ( Herbert
Carter), William Alland ( Jerry Thompson), Agnes Moorehead ( Mrs. Kane), Richard
Baer ( Hillman), Paul Stewart ( Raymond).
Tamanho foi o impacto de Cidadão Kane em seu lançamento e no imediato pós-guerra
que desde então ele foi sempre citado- e ainda o é- entre os 10 melhores filmes da
história do cinema em listas feitas pelos historiadores, críticos e cinéfilos. Ainda muito
recentemente, no “The top 100 movies” de John Kobal, Londres, Pavilion Books, 1989,
que reúne quatrocentas listas de filmes de todos os países, Cidadão Kane chega em
primeiro lugar.
Uma grande parte- e sem dúvida parte essencial- da originalidade do filme já existia “no
papel”, antes mesmo do primeiro dia de filmagem. Ela diz respeito à construção do
filme, que compreende ao menos três elementos novos. Em primeiro lugar uma espécie
de sumário, de lista de temas do filme aparece no cine jornal que resume no começo o
filme da vida e a carreira de Kane. Esta indica os principais pontos a serem
desenvolvidos pela intriga. Aqui, originalidade absoluta: em nosso conhecimento,
nenhum outro filme comportou até então este tipo de introdução. Segundo elemento
novo: a utilização sistemática e múltipla de flashbacks confere a Cidadão Kane a
estrutura de conjunto de um filme-investigação (enquéte).
Estes flashbacks emanam de cinco narradores diferentes, contactados pelo jornalista-
inquiridor. Um desses narradores, o tutor de Kane, Thatcher, que está na origem do
primeiro dos flashbacks, a princípio só nos aparece como autor de memórias lidas pelo
jornalista; mas nós o vemos em carne e osso em outro trecho do filme. Desvio
imprevisto, revivendo com virtuosismo a curiosidade do espectador: o primeiro narrador
encontrado pelo jornalista ( Susan Alexander) recusara-se a falar então, e seu
testemunho só aparece em quinta posição no conjunto de 6 flashbacks.
Embora não fosse o primeiro filme a utilizar o flashback - longe disso, aliás, pois este
procedimento aparece com força na história do cinema com The Power and the glory ,
Thomas Garner, de 1933, de William K. Howard sobre um roteiro de Preston Sturges,
filme que apresenta analogias de estrutura e conteúdo com Cidadão Kane; além disso, o
flashback também fora usado em Trágico amanhecer, 1939, de Carné-, o filme de
Welles marca uma data muito importante na utilização deste meio.
Terceiro elemento novo: embora a maioria das seqüências contidas nos flashbacks se
completem, como é normal ocorrer, em relação aos eventos que relatam, algumas se
repetem e dão-nos diferentes pontos de vista sobre o mesmo evento: a primeira
sequência de Salambô, por exemplo, é narrada sucessivamente por Leland ( quarto
flashback) e por Susan ( quinto flashback). Este tipo de repetição ou variação de pontos
de vista sobre um mesmo evento passado aparece, sem dúvida, pela primeira vez em um
filme. A posteridade deste procedimento será relativamente abundante: citemos as
célebres seqüências de Rashomon de Kurosawa ( 1951) , onde este procedimento
constituirá a própria base do filme, e A condessa descalça de Mankiewicz ( 1954).
Esta construção extremamente inovadora de Kane, no entanto, apresenta falhas, tanto no
plano da coerência quanto em relação ao equilíbrio das partes. Depois de ter mostrado
seus personagens unicamente através de testemunhos, escritos, cine jornais, o próprio
Welles renega este procedimento e torna-se novamente um verdadeiro “narrador-deus”,
com o propósito de revelar ao espectador, na última sequência e por meio de uma
narração direta, o significado de “Rosebud”.
De outro lado, a importância acordada à descrição de Kane como um Pigmaleão
fracassado ( em suas relações com sua segunda esposa) parece muito excessiva, em
relação a todos os outros aspectos da vida de Kane. De qualquer modo, esta construção
impressionou muito tanto o público quanto a crítica.
O relevo adquirido pela estrutura do filme se deu provavelmente ao fato de que o
personagem que esta se encarregara de retratar não estava à altura da sutileza estrutural
do filme, que este carecia singularmente de substância.
É aí que o filme parece muito inferior à sua reputação. Kane, o personagem, é sem
dúvida o mais belo “albergue espanhol” da história do cinema, no sentido mais negativo
da expressão: um verdadeiro balão inflado, um envelope vazio de onde a principal
realidade provém de dois elementos exteriores. O primeiro é a relação que mantém com
sua “figura chave” ( William Randolph Hearst), e que lhe dá, já que Hearst é um
magnata da imprensa e manipulador da opinião pública americana, um certo valor
sociológico. Mesmo que Hearst não seja a única inspiração para Kane- cita-se também
Basil Zaharoff, Howard Hughes, etc,-, a sua biografia e a de Kane são suficientemente
próximas e ricas em similitudes para que Kane possa ser considerado uma tradução
cinematográfica de Hearst.
O segundo elemento exterior é a semelhança que Kane entretém com o próprio Welles:
megalomania, vontade constante de se afirmar diante de si mesmo ou do mundo,
tentação e fascinação do inacabado, etc. No plano dramático, o mais belo acerto de
Welles foi suscitar para este vencedor a compaixão que o público habitualmente
experimenta diante dos perdedores ( loosers). (A notar que o próprio filme, à imagem de
Kane, perdeu muito dinheiro em seu lançamento, apesar do sucesso, e só tornou-se
lucrativo ao longo dos relançamentos).
Se certos autores, como Sartre em seu célebre artigo no “Écran Français” ( de 1 de
agosto de 1945), em parte renegado pelo próprio, criticaram o filme como
intelectualizante e estetizante, a reação destes deve ser relacionada com o caráter
paradoxalmente inconsistente de Kane “enquanto herói de ficção”. Kane é, com efeito,
quase que totalmente desprovido de espessura romanesca ou psicológica. Toda força do
personagem reside em seu mito, que faz dele um colosso com pés de barro.Ao longo de
sua carreira, Welles vai criar e interpretar personagens mais ricos, como Arkadin em
Grilhões do passado e o policial Quinlan em A marca da maldade.
No plano visual, Cidadão Kane contém uma série de procedimentos ( curtas focais,
plongés e contra-plongés, presença dos tetos dos cenários no quadro, objetos em
primeiríssimo plano, etc) que Welles não inventou, mas dos quais ele fez as figuras de
uma retórica barroca que lhe pertence plenamente de direito.
Este é o lugar de colocar duas questões. Cidadão Kane é um filme revolucionário? Um
filme moderno? Os lugares comuns que circulam através da maioria das histórias do
cinema impõem-nos de responder afirmativamente. Mas isto talvez seja incorrer em
precipitação.
Estilísticamente, a dívida de Welles com o passado é considerável: influência do
expressionismo nos cenários, iluminação e até mesmo no esquematismo de certos
personagens secundários, reforçado pela mediocridade na direção das atrizes ( os atores
masculinos, ao contrário, estão excelentes); influência do cinema russo na fragmentação
analítica e voluntária da construção ( jamais radicalizada desta forma antes) e do
découpage ( corte) propriamente dito. Sob este aspecto, Cidadão Kane, pelo retorno às
fontes russas, parece justamente o contrário de um filme moderno, o cinema moderno -
Lang, Preminger, Mizoguchi- caracterizando-se ao contrário como sintético e “ d’une
seule couleé” ( de um fôlego só, uma corrente única), procurando fazer esquecer ao
máximo a presença e o papel da montagem, neste desejo irrealizável de um filme
composto por um único plano longo e perfeitamente deslizante ( lisse).
A revolução wellesiana só tem sentido, então, em relação a certos hábitos
hollywoodianos. Resta a questão da profundidade de campo e do emprego do plano-
sequência, figuras que Welles utiliza e que são as bases do cinema moderno. Mas nele a
profundidade de campo é empregada de maneira tão demonstrativa, tão
“visionária”( voyante) que ela chama a atenção mais para si do que para a sucessão de
planos do découpage tradicional ( sem ser por isso mais rica de sentido).
No que se refere ao célebre plano em que Kane descobre a tentativa de suicídio de
Susan ( com o copo em primeiro plano), considerado como exemplo perfeito do plano-
sequência usado com profundidade de campo, longe de corresponder a um emprego
realista, global, sintético, totalizante do espaço cinematográfico, ele é resultado- sabe-se
hoje em dia- de um truque no interior da câmera. O plano foi primeiro filmado com o
foco sobre o primeiro plano iluminado, enquanto que o plano de fundo estava
escurecido e invisível, depois voltaram a película para trás para refilmar o plano
novamente, agora com o primeiro plano no escuro e o foco sobre o plano de fundo
iluminado. Welles aqui se revela, como Kane, um manipulador e um prestidigitador sem
igual; e as principais vítimas de sua manipulação foram seus asseclas, na primeira linha
dos quais figura André Bazin. Depois de ter julgado “natural” a mise-em-scéne deste
plano, Bazin fala do “realismo” deste découpage em profundidade. “Realismo sob
qualquer aspecto ontológico, escreve ele, que restitui ao objeto e ao cenário sua
densidade de ser, seu peso de presença, realismo dramático que se recusa a separar o
ator do cenário, o primeiro plano dos planos dos fundos, realismo psicológico que
recoloca o espectador nas verdadeiras condições da percepção, a qual não é jamais
totalmente determinada a priori” ( Em André Bazin: Orson Welles, Éditions du Cerf,
1972, Ramsay).
Nos três domínios onde Bazin o situa, este dito realismo não é nada mais que o produto
das manipulações de Welles, que tem por objetivo aprisionar a realidade em um cadre
do qual a rigidez, o extremo artifício, o caráter coercitivo e congelado saltam aos olhos,
mesmo se ignorarmos o modo como o plano foi fabricado. É aliás uma espécie de
aberração falar de realismo, e ainda mais ontológico, a respeito de Welles, que dele se
distancia tão radicalmente, por sua natureza barroca, sua vocação de prestidigitador e de
mestre dos artifícios, seu gosto do disfarce, da maquiagem e dos elementos postiços.
Estes últimos aliás são frequentemente detestáveis no Cidadão Kane, embora tornados
necessários pelo fato de que ele encarna com vinte e cinco anos um homem entre vinte e
seis e setenta.
Sartre escrevia: “Tudo é analisado, dissecado, apresentado na ordem intelectual, em
uma falsa desordem que é apenas a subordinação da ordem dos eventos à ordem das
causas: tudo é morto. As invenções técnicas do filme não são feitas para restituir a vida.
Há admiráveis fotos (...). No entanto, tem-se a impressão freqüente de que a imagem
“prefere a ela mesma” ( se prèfere); somos constantemente atropelados por essas
imagens excessivamente rígidas, mascaradas por excesso de cálculo (grimaçantes à
force d’être travaillées). Como um romance no qual o estilo foi radicalizado e levado
para o primeiro plano, enquanto os personagens foram esquecidos “ ( Este texto figura
na excelente obra de Olivier Barrot: “L’écran français Reunis, 1979).

Última questão: Cidadão Kane teve uma influência preponderante sobre a evolução da
mise-em-scéne cinematográfica? Aí também a maioria dos historiadores respondem
afirmativamente, e alguns de uma forma exagerada, que beira o delírio. Estéticamente, a
influência concreta do filme deve ser relegada ao filme noir, por meio de sua construção
de “filme-inquérito” e por sua temática da nostalgia da infância, do paraíso perdido,
bem resumido pela palavra-chave Rosebud. É com razão que Robert Ottoson, no
prefácio a seu “Reference Guide to the American Film Noir 1940-1950”, coloca
Cidadão Kane entre os oito fatores principais que determinaram o nascimento do gênero
noir ( depois do expressionismo alemão, o realismo poético francês, o romance policial
“hardboiled”, o uso das externas como elemento de economia no cinema do pós-guerra,
o clima de desespero engendrado pela guerra e pela dificuldade dos antigos soldados de
se readaptarem socialmente, o interesse pela Psicanálise e por Freud , e por fim o neo-
realismo italiano).
Tratando-se de um cineasta essencialmente barroco, a influência de Welles foi
forçosamente muito limitada, os barrocos tendo sempre representado uma ínfima
minoria no cinema de Holywood e outros. Fora sua influência sobre alguns pequenos
mestres que viveram em sua órbita (Richard Wilson, Paul Wendkos), Welles marca, em
uma certa medida, a geração de novos cineastas americanos dos anos 50: Aldrich
( sobretudo em A morte num beijo), Nicholas Ray e Fuller.
Mas onde Cidadão Kane teve o papel mais determinante foi na forma através da qual o
público, e sobretudo os cinéfilos e cineastas iniciantes, passou a olhar o cinema e o
lugar do metteur-em-scéne no interior da criação cinematográfica. Welles era
justamente o contrário de uma eminência parda; embora fosse um homem
empreendedor , buscando sempre provar aos outros o seu próprio gênio, acabou por
representar o emblema espetacular do metteur-em-scéne-autor. Seria ele considerado
assim se não tivesse também representado no filme o papel principal?
Para o primeiro filme deste jovem de 25 anos, que já tinha detrás de si as carreiras de
pintor, jornalista, ator, diretor de troupe teatral, homem de teatro e de rádio, a RKO
confiou um grande orçamento e uma total liberdade, inclusive o controle- privilégio
supremo- sobre a montagem final.. Sob este prisma, Cidadão Kane, antes mesmo do
primeiro dia de filmagem, já era uma bomba. O gênio publicitário e auto-publicitário de
Welles, que impressionou tantos cineastas da Nouvelle Vague francesa, fez o resto. A
tal ponto que se esqueceu, durante mais de 30 anos, a contribuição essencial do co-
roteirista Herman Mankiewicz, irmão mais velho brilhante de Joseph L., que ofuscava
tanto o brilho de seu irmão diretor que este declarou um dia: “ Eu sei o que vão
inscrever no meu túmulo... aqui jaz Herm... ops, Joe Mankiewicz”.
De qualquer forma, uma grande parte da substância e da construção do filme, assim
como o imortal “Rosebud”, pertencem a Herman J. Mankiewicz, que escreveu sozinho
os dois primeiros esboços do roteiro. ( Não podemos minimizar igualmente o papel do
operador Gregg Toland e do músico Bernard Herrmann, mesmo que o trabalho deste
aqui seja apenas um pálido esboço do que realizará mais tarde para Hitchcock ou
Mankiewicz).
Em conclusão, poder-se-ia quase dizer que Cidadão Kane foi mais importante para a
história da crítica cinematográfica que para a arte do cinema propriamente dita. Cidadão
Kane ensinou muitos espectadores a ver melhor os filmes e a melhor julgar a respeito da
importância do metteur-em-scéne no interior desta criação coletiva que é a realização de
um filme. Evidentemente, eles teriam chegado a esse estágio de apreensão dos filmes
sem ele.
Contrariamente aos que pensam que Welles modificou profundamente com este filme o
status do realizador em Hollywood, excetuando-se Ford, Hitchcock e 2 ou 3 diretores, a
maioria dos grandes metteurs-em-scéne hollywoodianos ( Lang, Walsh, Tourneur, Sirk)
permaneceu relativamente na sombra. Assim como Welles, aliás, antes e depois de
Kane. E para a maioria deles, esta discrição lhes era conveniente. Por que necessitariam
eles de Welles para se afirmar?
Dicionário de Filmes, Jacques Lourcelles.
Traduzido por Luiz Soares Júnior.

A REGRA DO JOGO 1939 ( França) ( cópia restaurada: 110’).Prod: N.E.F. Realização:


JEAN RENOIR. Roteiro: Jean Renoir. Foto: Jean Bachelet. Música: Roger
Désrormières, Mozart, Monsigny, Chopin, Saint-Saens, Vincent Scotto, Johan Strauss,
etc. Dec: Eugène Lourié. Intérpretes: Marcel Dalio ( marques Robert de la Chesnaye),
Nora Gregor ( Christine), Roland Toutain ( André Jurieu), Jean Renoir ( Octave), Mila
Parely ( Geneviéve de Marrast), Julien Carette ( Marceau), Gaston Modot
( Schumacher), Paulette Dubost ( Lisette), Pierre Magnier ( o general), Odette Talazac
( Charlotte de la Plante), Piewrre Nay ( Saint-Aubin), Roger Forster ( o homossexual),
Nicolas Amato ( o sul-americano), Richard Francoeur ( La Bruyère), Claire Gerard
( Mademoiselle de la Bruyére), Anne Mayen ( Jackie), Corteggiani (Berthelin), Eddy
Debray ( o mordomo), Larive ( o cozinheiro), Lise Elina ( a repórter), André Zwobada
( o engenheiro de Caudron).

Insucesso comercial notório quando de seu lançamento e de seu primeiro relançamento


em 1945, é sem dúvida o filme de Renoir que foi sucessivamente mais atacado e
louvado. Não apenas o público não o compreendeu e amou durante anos, mas até os
anos 50 os principais historiadores , em seus comentários sobre o filme, mesclaram aos
elogios gerais o seu veneno. Bardèche fala de “estranha miscelânia”, Sadoul de
“incoerência”, “obra desigual”, Charles Ford de “glória um pouco usurpada”. Em 1945,
quando o filme foi relançado, alguns, como Charles Charensol, ainda não tinham se
desarmado de suas invectivas de antes da guerra, e até lamentavam a reaparição do
filme: “A regra do jogo foi realizado às vésperas da guerra e hoje em dia estaria
esquecido se não tivessem a infeliz iniciativa de ressuscitá-lo”, escreve Charensol,
unindo a indignação pública do censor ao truísmo de um La Palice.

Vinte anos mais tarde, A regra do jogo será quase que unanimemente considerado como
o melhor Renoir e um dos maiores filmes franceses. Nesse ínterim, os cinéfilos do pós-
guerra haviam descoberto o filme, haviam-no visto e revisto nos cine clubs, tão
influentes na época. Este é um dos numerosos exemplos de reputação criada pelos
cinéfilos contra a crítica estabelecida oficial dos “profissionais” e dos historiadores.
Nesta época, o filme é frequentemente amado e descrito como um meteoro caído do céu
no meio da produção corrente da época, produção esta com a qual ele não teria nenhuma
relação, semelhança nem medida comum. Este ponto de vista, completamente errado,
deve ser colocado em relação com os preconceitos nutridos pelos cinéfilos do pós-
guerra e dos anos 50 em relação ao cinema francês, que eles conheciam muito mal aliás.
A partir dos anos 70, este cinema é redescoberto, re-estimado e, desde então,
apercebemo-nos de que A regra do jogo, longe de ser uma exceção na produção da
época, pertence, pelo contrário, a uma longa e rica linha de filmes que descrevem a
sociedade do tempo segundo uma visão crítica e panorâmica, apoiando-se sobre uma
série de personagens, pertencentes a todas as classes.
Quer se tratassem de filmes em formato de sketches, ou fossem eles assinados por
Guitry ( Ils etaient neuf célibataires), Yves Mirande ( Café de Paris, Derrière la façade)
ou Duvivier ( Um carnet de bal), estes filmes mesclavam o humor à crueldade,
declinando, sob todos os tons, o seu pessimismo; e todos, com uma lucidez mais ou
menos aguda, têm a consciência de descrever o crepúsculo de um mundo. Podemos
mesmo encontrar no argumento de um desses filmes ( Sept hommes... une femme, de
Yves Mirande, 1936) uma fonte possível para o roteiro de A regra do jogo: uma jovem e
rica viúva reúne em sua mansão sete pretendentes ( artistas, aristocratas ociosos,
financista, empresário, etc) para escolher aquele com quem ela se casará. Cansada das
mentiras, da cupidez e vulgaridade dos pretendentes, ela vai rejeitar a todos. Antes
disso, para diverti-los, ela organizara uma partida de caça, e o filme contém planos
quase idênticos aos de Renoir. Constantemente, se estabelece um paralelismo entre o
mundo dos patrões e dos empregados. Trata-se, é bom que se diga, de um dos filmes
mais preguiçosos e mal-sucedidos de Mirande, e aqui não se trata de compará-lo,no
plano criativo, à Regra do jogo. Mas a semelhança de ambos os panoramas diz muito
acerca do pertencimento de Renoir a um filão em voga na época. De uma maneira geral,
estes filmes tiveram grande sucesso. E o público, longe de se mostrar desorientado,
apreciava sua profusão dramática, suas rupturas de tom, seu niilismo mais ou menos
envolto em piada. Como explicar então o insucesso total de Renoir no interior deste
gênero? Alguns consideraram para este fracasso causas externas, como o lançamento
excessivamente tardio do filme, às vésperas da guerra. Quanto às causas internas para o
insucesso, elas são tão numerosas que hesitaríamos em enumerá-las, caso o gênio
específico do filme não fosse melhor explicado por algumas. Entre elas, pode-se citar
em primeiro lugar este parentesco tão profundo com uma tradição literária que vai de
Marivaux a Beaumarchais e Musset, que embora pudesse seduzir a crítica, deve ter
assustado o público ( aliás, um dos primeiros títulos do filme seria Os caprichos de
Marianne).
Em seguida, há esta distribuição de atores , variada mas muito insólita e às vezes
discordante. A melancolia desfalecente, indecisa de Nora Gregor,- princesa austríaca
que havia interpretado no Michael de Dreyer e em numerosos filmes alemães e
austríacos , antes de aparecer pela primeira vez aqui em um filme francês- certamente
decepcionou o público, assim como a volubilidade desajeitada e estranha de Renoir no
papel de Octave, personagem que contém em filigrana fantasmas de ordem
autobiográfica. Será que foi esta discordância que impediu o público de aplaudir as
interpretações mais clássicas de um Carette ou de uma Paulette Dubost?
Durante a preparação do filme, este elenco sofreu várias modificações: o papel de Nora
Grégor estava previsto para Simone Simon, o de Renoir para seu irmão Pierre, o de
Dalio para Claude Dauphin, o de Roland Toutain para Gabin e o papel de Modot para
Fernand Ledoux.
Mas certamente o fator de maior rejeição do público foi esta gravidade de tom que
progressivamente se instala na intriga e pouco a pouco recobre suas peripécias burlescas
e “guignolesques”. Com os personagens incongruentes, inocentes, vulneráveis, sinceros
de Jurieu e Octave, tão deslocados na universal mentira social que estigmatiza o filme,
Renoir abolia, em um só movimento, o cinismo, a distância e o recuo que o público
apreciava nos afrescos irônicos de Mirande. Distância e cinismo que, para o espectador
da época, eram parte integrante do seu prazer. Privado desta distância, insensível à sábia
construção da intriga, às suas referências permanentes a uma tradição literária, o público
aderiu ainda menos ao filme ao perceber neste a atmosfera de uma confissão íntima,
sobretudo quando esta exprime a impotência de certos seres ( Octave, Jurieu) para se
inserir no jogo do mundo.
As qualidades formais do filme só serão apreciadas no pós-guerra. Então, louvar-se-á
sem reserva esta virtuosidade espantosa no uso da profundidade de campo, dos planos
longos, dos movimentos de câmera, complexos e fluidos, que transformam um décor
teatral em uma seqüência contínua de espaços por onde desfila, como em uma
mascarada, toda uma sociedade. Longe de lamentar que este vaudeville, esta comédia de
erros se transforme -e se congele- em uma tragédia grotesca e razoavelmente
inquietante, um novo público de cinéfilos, de amadores passionais e de cineastas
aprendizes verá em A regra do jogo a síntese genial de um artista que utiliza a fundo a
escritura cinematográfica, em seus aspectos igualmente visuais e literários.
Nota complementar: Renoir é por excelência um “autor de obra”: seu gênio brilha, é
claro, em cada um de seus filmes, mas ainda mais na reunião dos filmes, em sua
confrontação. Se ele nos espanta por ser o autor de A grande ilusão ou da Regra do
jogo, ele nos causa ainda maior admiração por ter realizado ambos os filmes e de ter
desta forma tocado a todas as camadas do público, como um escritor que fosse capaz de
escrever ao mesmo tempo Os Miseráveis e A Cartuxa de Parma. A história das cópias
de A regra do jogo testemunha a vicissitude das recepções do filme. Em 1939, sai uma
cópia de 113 minutos, já reduzida a 100 minutos. Em vista das reações do público,
corta-se ainda uma dezena de minutos do filme e o papel de Octave é amplamente
amputado. Em 1945, relança-se sem sucesso uma cópia curta. Durante mais de 10 anos
circularão cópias de 90, 85 e 80 minutos. O negativo original foi destruído em um
bombardeio em Bolonha, em 1942. Em 1965, apoteose da reavaliação cinefílica do
filme, lança-se, aos cuidados da Sociedade de Grandes Filmes Clássicos, uma cópia
bem completa de 3000 m ( 110 minutos), estabelecida desde 1958-9 por Jean Gaborit,
Jacques Marechal e Jacques Durand a partir de uma cópia excessivamente longa,
reencontrada em 1946 e de um vasto stock de cortes. O esforço beneficiou-se dos
conselhos do próprio Renoir, e o filme conhece -enfim- o sucesso.
Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

La Punition, Jean Rouch

Dos espectadores da televisão francesa aos especialistas em cinema verdade, quase todo
mundo tem condenado La Punition como um tipo de cinema mentira. Sua atitude é
injustificada, uma vez que confundem três elementos bastante diferentes: filme,
verdade, e cinema verdade. Por exemplo, não teríamos o direito de dizer que La
Punition é ruim por ser inexato (os documentários de Rossif são verdadeiros, mas vejam
só o resultado), ou por não ser um real exemplar do cinema verdade (The Rules of the
Game também não o é), ou por seu diretor ou, mais precisamente, seu produtor (e a
quem nós poderíamos dar crédito mediante um desacordo?) pudessem incorretamente
associá-lo a tal. A verdade de La Punition não se torna aparente sem a participação ativa
do espectador, que em conversações paralelas ou diante de seus pratos, enquanto tentam
assistir ao filme, negligenciam sua correspondência. Não é este tipo de passividade que
um ataque de nervos dramático estimula em você. O público tem de interpretar o filme
ativamente para compreender a que nível de verdade ele se situa. Se a nossa atenção for
lassa, perdemos o sentido do filme. É possível ver La Punition três ou quatro vezes sem
que uma única vez aparente ser o mesmo filme. Mesmo que tivesse oito horas de
duração, seria igualmente atrativo. Aqui temos um filme excitante, isento de erotismo e
acessível a todos, que faria quebrar todos os recordes de bilheteria, caso o Francês não
preferisse, ao invés de um cinema simples, direto (La Punition, Adieu Philippine,
Procès de Jeanne), o maneirismo do cinema indireto (Melodie en sous-sol, La Grande
Evasion, La Guerre des boutons), cujas inúteis digressões, aridez e repetição, no final
das contas, refletem valores puramente comerciais.
Luc Moullet. Traduzido por Felipe Medeiros de Morais

A retrospectiva dedicada a Mario Bava (1914-1980) pela Cinemateca Francesa, também


co-editora de uma preciosa coletânea de textos sobre o mestre italiano, permite hoje
uma análise mais confiável. Como seus filmes saíam em Paris sempre nas mesmas
salas, todas associadas ao filme de terror – Atlas e Midi Minuit incluídas – se poderia
pensar que Bava, durante os vinte anos de sua carreira de diretor (1960-1980), tivesse
sempre realizado o mesmo filme, à exceção de alguns westerns ruinzinhos, e que ele era
homem de um só gênero... assim como Matarazzo, Leone ou Jacopetti, que realmente só
se sentiam à vontade no melodrama, no western ou no documentário-espetáculo.Na
verdade, colar uma só etiqueta na obra de Bava se revela coisa difícil, a marca do
Fantástico não se encaixando nem em La ragazza che sapeva troppo (Olhos Diabólicos),
nem em Banho de Sangue, que se situa na realidade contemporânea, sem pegar
emprestado nem ao passado, nem ao futuro, nem ao sobrenatural. A marca do Terror, da
qual fazem parte, de certa forma, esses dois filmes, só podendo ser atribuída a Perigo:
Diabolik, reconstituição muito divertida de uma história em quadrinhos de sucesso, e
nem mesmo – por causa de seu título – à Terrore nello spazzio (O Planeta dos
Vampiros), inteiramente marcado pela frieza e especulações futuristas.Dois gêneros,
portanto, são utilizados alternativamente, o fantástico e o terror.Mas estará o medo, que
faz figura de marca de fábrica (vejam esses títulos: I tre volti della paura, Operazione
paura ["as três faces do medo", "operação medo", traduzidos no Brasil como As Três
Máscaras do Terror e Mata, Bebê, Mata, n.d.e.]), realmente no encontro? As ações se
revelam inverossímeis demais. Personagens e atores são freqüentemente inexistentes1.
Pode-se temer, então, pela vida de personagens inconsistentes, que deixam a
identificação impossível, e que não se podem distinguir uns dos outros. Em O Planeta
dos Vampiros, raramente se vêem os rostos e os corpos dos atores, dissimulados atrás
de suas roupas de astronautas. O medo, se ele existe, aparece unicamente durante
aqueles poucos segundos que passam entre a primeira visão da arma do crime – de
preferência gilete ou canivete – e a visão realmente gore do corpo odiosamente
mutilado. Dois filmes, no entanto, procuram uma angústia quase contínua: Olhos
Diabólicos, por causa da protagonista perseguida permanentemente, situada no quadro
realista, à qual não podemos nos identificar, e, principalmente, por causa da
impossibilidade de não sabermos nem de onde, nem como, nem por que pode surgir o
perigo; e também Banho de Sangue, pois a acumulação estupefaciente dos quinze
assassinatos repartidos em todo o filme cria, além do medo pontual que mencionei
(causado mais pela particularidade visual atroz da morte que pela morte em si, que
sabemos inevitável, já que o hábito ajuda), uma impressão de mal-estar e de enjôo
contínuos.Pode parecer surpreendente que o humor seja consubstancial ao medo. Em
Banho de Sangue, onde se ri a cada clímax sangrento, com mais intensidade ainda
quando o crime é atroz. Tem nesse riso ao menos quatro razões:1. Reação frente à
inverossimilhança das situações.2. Expressão de uma necessidade de recuo, de
distanciamento em relação à acumulação macabra.3. Presença de um humor que decorre
do comportamento dos personagens: depois de ter visto o homem agonizante se arrastar
longos minutos sobre o chão, a mulher o interroga: "Mas tu estás ferido?". Ou ainda,
intrusão cômica de uma figura codificada estranha ao gênero do terror, a menina que vê
emergir da baía o corpo de seu pai, com polpa no rosto: "Mas é meu pai..."4.
Apreciação admirativa de invenção refinada na escolha de armas mortíferas, a cada
assassinato diferentes uma das outras. Banho de Sangue aparece, aliás, como a obra-
prima de Bava. Ele impõe ao espectador uma dinâmica irremediável fundada no
assassinato, e que remete ao cinema mais puro, na medida em que não deve nada, nem
ao roteiro, nem às ações – nada compreensíveis, por sinal – nem ao sentido, nem aos
personagens, nem aos atores.
Um cinema, uma lógica que funciona unicamente por ela mesma, sem muletas, da qual
não se encontra equivalente na arte fílmica, e que mergulha o público no estupor
admirativo.O mesmo estupor é acentuado pela utilização do travelling ótico. Se fosse
preciso encontrar um denominador comum ao cinema italiano posterior ao neo-
realismo, seria a reflexão em cima do zoom, fundamental em cineastas tão diferentes
quanto Rossellini (do qual Bava foi diretor de fotografia), Cottafavi e Bava. Com
Rossellini, o travelling ótico constitui um apêndice ao movimento lateral da dolly,
criador de vida, de respiração interna, de fluidez, de peso existencial, o oposto total da
utilização essencialmente dramática que descobrimos nos outros dois mestres
peninsulares. Curiosamente, Bava retoma freqüentemente a figura-mãe do zoom
cottafaviano, o brusco movimento antes seguido illico de um movimento traseiro não
menos rápido. Mas, enquanto que com Cottafavi, como por exemplo em Una donna
libera2, o efeito é muito raro – o cineasta se permite usá-lo não mais do que duas ou três
vezes por filme – criando um clima excepcional chocante pela sua raridade e pela sua
natureza contraditória, Bava, por sua vez, se serve dele até o abuso. O zoom é sua
imagem de marca mais do que a escolha de um gênero.Aqui, o zoom se revela criador,
não de vida, mas de medo. Essa equivalência torna-se tão institucional que, logo que
entra um zoom, ou um duplo zoom, ficamos com medo, mesmo que o objeto filmado
não tenha nada de aterrorizante. É o procedimento técnico que, por ele mesmo, suscita
medo, como um reflexo pavloviano... E Bava se diverte em nos enganar, em nos
orientar com pistas falsas. Eu detesto filmes que se apóiam no travelling ótico. Eu gosto
quando tem um ou dois por filme, ainda assim justificados e eficazes. Porém, quanto
mais eu avanço na carreira de Bava, mais os encontro, e mais percebo que funcionam.
Eu não contei, mas deve ter mais de cem no espantoso Lisa e o Diabo, infinitamente
mais apaixonante que as faixas da metade da década de sessenta, que tinham duas ou
três vezes menos. É o meio-termo, a justa (a injusta) medida que não funciona.
Chegamos a um delírio, a uma orgia, uma vertigem gratuita (lembrando o admirável O
Arquivo Confidencial de Sidney Furie) que nos arrasta, ligados a todo um arsenal de
artifícios formais que visam a confundir o verdadeiro com o falso, o ator e a boneca, o
sonho e a realidade. Uma reavaliação do cinema3, e ao mesmo tempo a sua afirmação
lírica pela importância do movimento que anima o filme.
Mas tudo isso se encontra hoje ameaçado pelo tempo: raramente projetados, mostrados
por difusores quebrados ou pouco exigentes, as cópias dos Bavas são reduzidas a uma
dominante rosa ou liga de vinho em todos pontos contrárias ao negativo original. O
enorme trabalho de Bava, que conseguia fazer esquecer a falta de recursos, se encontra
hoje destruído pelo apodrecimento da cor, que deixa o resultado envelhecido, brega,
pobre. Os italianos dedicam toda sua atividade em favor da preservação de obras
acadêmicas que não interessam a ninguém, como as de Genina, Camerini, Gallone ou
Bolognoni, que não tiveram a ocasião de trabalhar a cor ou nem tentaram. Enquanto
que, no sentido de conservação e preservação, não existe no mundo tarefa mais urgente
que a consideração pela obra de Bava, onde a cor é essencial, e que periga desaparecer
insidiosamente da memória.
Luc Moullet
Publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma a propósito de uma retrospectiva Mario
Bava na Cinemateca Francesa, mencionada no início do texto.
Tradução de Bolívar Torres.
1. Eu suspeito que Bava procurava os maus roteiros e os atores impossíveis, como se ele
quisesse se proteger do fracasso: o que eu poderia fazer com uma matéria-prima tão
chinfrim? O desprezo pelo ator (e do personagem) corresponde a uma atitude assaz
freqüente nos diretores de fotografia – função que Bava exerceu durante quarenta anos
–, para quem o intérprete não tem muito o que fazer, se tornando até um rival em
matéria de interesse concedido pelo diretor a seus colaboradores. Esse desprezo deságua
numa metafísica do diretor de fotografia, rebaixando o homem ao seu nível mais
insignificante.
2. Em 1954, talvez não fosse zoom, mas que parece, parece.
3. Em Il rosso segno della follia, Bava insere uma manchete de jornal francês carregada
de erros de ortografia, e um plano de Paris ridículo, como se estivesse troçando de um
produtor que lhe teria imposto referências francesas que o desagradasse.
Sorrisos de uma Noite de Amor, Ingmar Bergman

Filme que revela Bergman a imprensa internacional durante o Festival de Cannes de


1956. Algumas semanas mais tarde, o filme é lançado em Paris com grande sucesso.
Trata-se de um vaudeville ao mesmo tempo sério e irônico, onde os episódios mais
dramáticos acabam desembocando em reviravoltas cômicas: por exemplo, o mal-
sucedido enforcamento de Henrik que dispara, em sua queda, o mecanismo da cama
móvel, vinda do quarto vizinho, sobre a qual dorme sua bem-amada. "Sorrisos de uma
noite de amor" trata da guerra dos sexos de maneira a pôr em questão as diferenças
psicológicas que separam os homens das mulheres. Ao homem pertencem o egoísmo, o
pesar impostado ou despropositado, uma vontade de afirmar, notadamente pela
violência, uma dignidade constantemente ameaçada pelo ridículo. À mulher, a leveza,
as maquinações conscientes ou inconscientes, a conivência com a vida e finalmente, a
sabedoria. Em momentos privilegiados, estas diferenças irreconciliáveis se pulverizam
entre os jogos do prazer e do amor. O entrelaçar dos personagens, a qualidade literária e
o humor dos diálogos, a condução natural e clássica da narrativa, a variedade de tons e
de reviravoltas, o clima de erotismo e de sensualidade unido à poesia do momento e do
lugar, atingem aqui uma plenitude que Bergman jamais encontrará novamente. É
necessário apreciá-la uma última vez antes que ela seja estragada pelo pathos, o
intelectualismo e as pretensões metafísicas do autor. Este filme que fecha o primeiro
período da carreira de Bergman, o mais fecundo e rico (dezesseis filmes em dez anos
filmados por um diretor de trinta e sete anos), contém também um dos mais belos
quartetos de atrizes da história do cinema: Eva Dahlbeck, Ulla Jacobsson, Harriet
Andersson, Margit Carlquist.
Nota: Poucos roteiros originais suscitaram da parte da crítica a identificação de tantas
referências literárias. Foram claramente citados: Anouilh, Beaumarchais, Feydeau,
Kafka, Laclos, Marivaux, Musset, Pirandello,Shakespeare, Strindberg, etc.
Jacques Lourcelles
Texto contido nas páginas 1390-1391 do Dictionnaire du Cinema – Les Films (Aut.:
Jacques Lourcelles). Tradução feita por José Roberto Rocha.

Husbands, John Cassavetes

O filme mais característico de John Cassavetes. Trata-se de uma espécie de serão


fúnebre que toma progressivamente ares de reviravolta pueril, lúdica, acerba, trivial,
picaresca e absurda. Mais uma vez crianças e adolescentes, os três heróis vêem
repentina e claramente sua própria imaturidade, o impasse e o momento de bloqueio em
que se encontram suas vidas. Estas poucas horas de lucidez serão, sem dúvida, nada
mais que um parêntese no curso de suas existências, salvo talvez por Harry. Cassavetes
recusa a construção, a dramatização; ele utiliza, como Jacques Rozier, a dilatação
extrema do detalhe, do instante, da cena, e se volta à pesquisa de uma nova
autenticidade. Ele faz uso sistemático do close, encarregado de exprimir o desarranjo
dos personagens, seu desequilíbrio, a inexistência de qualquer inserção em um contexto
concreto e harmonioso. Uma vez esvaída, ou mesmo simplesmente atenuada, esta
potência de choque e de ruptura, não é certo que os filmes de Cassavetes prezem pela
durabilidade. Como a maioria dos filmes feitos contra um estilo ou um sistema (neste
caso o sistema hollywoodiano clássico), as obras de Cassavetes se arriscam a não serem,
em breve, mais que uma simples etapa, um momento significativo no desenvolvimento
cinematográfico de uma época. E, quinze anos apenas após seu lançamento, Husbands
já parece muito mais como um documento sobre uma certa maneira de filmar que como
uma obra viva e eventualmente durável..
Jacques Lourcelles .Texto contido nas páginas 717-718 do Dictionnaire du Cinema –
Les Films (Aut.: Jacques Lourcelles). Tradução feita por José Roberto Rocha.

Sobre uma arte ignorada

Há um mal-entendido sobre o cinema. Digo: no coração mesmo da elite que faz


profissão de elaborar ou de compreender a arte. Uma extrema confusão preside seus
julgamentos e seus trabalhos. Uma falta de abertura inclina uns a considerar o cinema
como um divertimento menor que abandonamos rapidamente para retornar às coisas
sérias, tais como a literatura. Uma falha de exigência incita outros a povoar seu panteão
em cinqüenta anos de uma centena de gênios, e a descobrir uma obra importante por
semana. Estes são os mais perigosos, pois a espécie dos primeiros se apagaria por si
mesma sob o peso do tempo e da evidência, caso ela não se achasse fortificada pela
parca seriedade dos segundos. E dentre esses últimos a discórdia não é menos viva. Não
tendo idéia do que buscam, como eles persuadiriam alguém a amar o cinema? Enquanto
as artes milenares dispõem de um termômetro pouco a pouco ajustado pelos
consumidores ativos, minoria que acaba impondo seu gosto sobre a passividade da
maioria – donde um acordo estatístico sobre os fins e sua realização –, o espectador de
cinema está entregue a si mesmo, jogado nu em sua poltrona, virgem de hábitos e de
leis. Ele precisa a cada vez percorrer todo o caminho, reinventar as tabelas de valores,
enquanto o apreciador de Música ou de Poemas, que os séculos liberaram da tarefa de
julgar, deixa-se conduzir confiantemente a seu prazer. Ele não é mais levado pela
cultura a uma reverência cujo protocolo o tempo fixou, essa cultura ao contrário entrava
sua compreensão de uma arte que para possuir seus recursos próprios deve
necessariamente não derivar dos mesmos critérios interiores[1] dos quais ela nos dá o
modelo. O espectador de cinema extrai de si mesmo exigência e lucidez, ele se forma e
amadurece só em contato com as obras; não há trapaça possível. O cinema é um potente
revelador. Daí a mistura e o ruído que surpreendem às vezes em habitués das salas
obscuras, onde o passivo e o ativo divididos em mil partes contraditórias têm a mesma
potência de voz. Já que, no entanto, desenham-se linhas de partilha, uma maioria
sobressai, e esta é naturalmente a da imobilidade mais míope.
Propõe-se esboçar aqui uma análise da res cinematographica considerada em seu ser e
sob os pressupostos que a mascaram. O cinema nasce com esforço, ele se procura e nós
o procuramos, ele toma lentamente consciência de si mesmo através de seus avatares.
Essa arte é a que mais exige disponibilidades, flexibilidade, aquela cujo deus adorado
no dia anterior deve poder ser renegado no dia seguinte. Imaginemos o espectador ideal
à beira da tela, monstro de inocência e de rigor...
O cinema começa com o sonoro.
Pode parecer estranho e mesmo contrário às proposições precedentes que a propósito
dessa arte adolescente e de evolução acelerada venhamos a falar de “essência”.
Pareceria que diante das figuras sucessivas que ele assume, deveríamos nos contentar
em aguardar, sem procurar defini-lo. Entretanto, seria interditado pensar que dessas
premissas estaríamos no direito de tirar certas implicações permanentes, porquanto
contidas no modo da apreensão cinematográfica do real? De fato, essas implicações
aparecem e desaparecem como um fio na trama histórica do cinema, separando o joio
do trigo, pondo em plena luz as formas aberrantes e as estruturas essenciais.
A arte sempre havia sido uma mise en scène do mundo, ou seja, uma chance dada à
realidade contingente e inacabada de se locupletar, de um golpe preciso, segundo os
desejos do homem. Mas esse mundo não podia ser apreendido senão por um meio
termo, era preciso recriá-lo em uma matéria indireta, transpô-lo, proceder por alusões e
convenções, na impossibilidade de uma possessão imediata. Linguagem, tela e cores,
mármore, sonoridades, convenções teatrais eram o lugar da alquimia onde o mundo
cambiava sua forma contra sua verdade. Nessas condições, a obra se media em valor
absoluto independentemente de sua técnica, a renovação desta não engendrando um
progresso, mas a simples exploração de um domínio novo. Dito de outro modo, a arte
criando sua própria matéria não era suscetível de aperfeiçoamento, e as obras mais
primitivas, por definição, igualavam as mais refinadas.
Ora, no fim do século XIX, um evento considerável vem bagunçar esses dados. O meio
de captar a realidade diretamente, sem mediação, sem essas convenções cuja
necessidade Valéry tinha compreendido muito bem quando se trata de recriar pelas
forças do homem, fora descoberto. Um olho de vidro e uma memória de bromato de
prata deram ao artista a possibilidade de recriar o mundo a partir daquilo que ele é,
portanto de fornecer à beleza as armas mais agudas do verdadeiro.
O princípio do cinema como modo de apreensão é fundado sobre o registro passivo das
deformações do espaço. Uma idéia que teve curso outrora queria que o cinema puro
fosse mudo, que somente o jogo das imagens pudesse dar conta dessa arte que se
tomava por uma espécie de pintura móvel. Isso era não enxergar duas coisas: a primeira,
que o som é uma implicação necessária das premissas visuais do cinema; a segunda, que
a linguagem metafórica das imagens mudas correspondia à obrigação de falar na
ausência do som, e não a uma finalidade interna. Que, muito pelo contrário, uma tal
deformação das aparências traía a vocação original da câmera, eis o que
experimentamos hoje no espetáculo das caretas e da gesticulação desses fantasmas, e
das sobre-impressões, das trucagens que conduziam a sétima arte sobre as vias de um
onirismo de camelô, sem medida comum com a revelação cortante de que ele tem o
poder.
Pretender que o som seja uma conseqüência previsível de A chegada de um trem à
estação Ciotat não é um paradoxo[2]. O registro das aparências visuais devia criar a
necessidade de uma apreensão completa do real, pelo movimento de sua dialética com o
mundo: indo rumo às formas sensíveis, ele era sentido em sua separação do universo
sonoro como algo obstruído no caminho, incompleto, em devir rumo a uma plenitude
que se apoderaria de todas as formas. Enquanto os técnicos buscavam o procedimento
que faria do cinema o que ele tendia a ser, os cineastas tentavam suplantar seu mutismo
de duas maneiras bem diferentes. A primeira, ao orientar a imagem rumo à significação
puramente plástica, o que levava ao monstruoso híbrido de uma arte da apreensão
objetiva da aparência dedicada ao registro do falso[3] (híbrido do qual o “caligarismo” é
a manifestação mais típica e mais insuportável): ao fazê-lo, o cinema perdia sua
extraordinária originalidade para se pôr na esteira das artes cuja matéria não é o mundo,
mas a metáfora do mundo. A segunda, ao fatiar o escoamento das imagens com
intertítulos, como Griffith ou Stroheim. Notemos que essa última solução preservava a
franqueza essencial de nossa arte: um filme de Griffith não é um cinema que traiu o
cinema, é um cinema ao qual falta a palavra, um cinema atento a seu ser e localizado
sobre a via central de seu porvir. Dessa via que passa por Griffith, Stroheim, Murnau,
divergem, conforme vimos, múltiplos vieses de garagem – plástico, pictórico, trucagens
surrealistas, expressionismo alemão, e todos esses filmes sofríveis, ditos de “vanguarda”
ou “experimentais”, que são o último sobressalto de uma estética minada por sua
contradição interna.
Assim, uma arte cuja singularidade é estar fundada sobre a técnica no sentido mecânico
da palavra se acha, por esse fato, suscetível de progresso, noção incompatível com a
concepção tradicional da arte. Seu primeiro princípio, o olho registrador, indica sua
vocação de posicionar o homem diante do mundo, e por conseguinte sua realização
ideal, que é estar dotado de sentidos tão sutis quanto os sentidos humanos[4]. Quanto
menos esses sentidos estão afinados, mais a obra dá uma sensação de inacabamento e de
mal-estar. É preciso ousar dizer que o cinema começa com o sonoro. Aquilo a que
costumamos chamar as obras-primas do mudo são apenas as etapas de um
desabrochamento; trata-se de recolocá-las em sua perspectiva balbuciante,
aproximativa, de qual teria sido o gênio de seus autores. Esse gênio não está em causa,
mas os meios a seu serviço. Imaginemos os Girassóis de Van Gogh desenhados com
giz, ou Mozart diante de seu tam-tam. E mesmo assim, os girassóis de giz se
acomodariam a esse postulado, o virariam a seu favor; Mozart inventaria uma
linguagem batendo sobre a pele esticada. Mas não há linguagem a inventar com o olho
irrefutável, não há convenções a estabelecer de partida; se eu planto minha câmera em
um canto e os atores vêm a seu turno declamar diante dela com gestos de teatro, eu não
“faço cinema”, eu transformo o espectador em um paralítico ao qual uma trupe
beneficente vem fazer uma representação. Eu não o coloco em contato direto com o
mundo, eu lhe ofereço o que o teatro já lhe oferecia, mas seqüestrando-lhe a motivação,
o ritual, para não deixar senão o resultado e a partir daí restituir-lhe seu artifício, como
se minha câmera estivesse parada diante da cena a fim de considerá-la de fora. Com
efeito, o espectador sente confusamente que esse olho congelado, posto sobre essas
formas, objetiva-as, despe-as de seu valor de linguagem, põe a nu sua mentira que não
procede mais de uma comunicação metafórica porquanto a cumplicidade foi rompida
entre o olhar e o objeto. Em outros termos, toda deformação da realidade com fins de
expressão, condição das artes tradicionais, pelo fato de que ela chega ao espectador de
cinema através da objetividade da câmera, se revela como mentira. O painel
elizabethano onde está inscrita a palavra “Floresta” sobre a cena é a melhor imagem da
floresta. Esse mesmo painel, filmado, será apenas um painel e a ausência evidente da
floresta. É que o lugar ideal não é proposto diretamente ao olhar prevenido, ele o é por
meio de um olhar intermediário cuja inocência e insensibilidade corroem na passagem
sua vontade de expressão. A heresia que mais atrapalhou o desenvolvimento do cinema
foi tomá-lo por um simples jogo de imagens suscetível de todas as combinações
possíveis (exemplo: as sobre-impressões), esquecendo o ponto de partida dessas
imagens: um olhar sobre o mundo sensível. Desse esquecimento resulta quase
inteiramente o caráter caduco de uma grande parte da produção de antes da guerra. Cada
vez que uma combinação entra em conflito com sua condição original (assim o vento
que sopra do espelho em L’Âge d’Or), o imenso poder de credibilidade da fotografia se
volta contra si mesmo para denunciar a inverossimilhança, multiplicado pela aparência
do verdadeiro. O que poderia ser poesia nas palavras, porque a linguagem está apta a
refletir as combinações ilimitadas do espírito, é apenas trucagem nos limites do olhar.
Notemos que o cinema deixa atrás de si os “cinéfilos” e não se permite mais tais
monstruosidades que os amadores ainda veneram. Haveria uma análise a fazer, que
excederia o propósito desse estudo, das excrescências que sufocaram num certo
momento uma arte intoxicada de si mesma e crendo explorar seus recursos enquanto se
destacava de sua verdade profunda. Assim os ensaios de câmera subjetiva que, ao
introduzir à força o espectador no espetáculo, propõem-lhe um duplo que ele não
reconhece.
A tomada de consciência progressiva de sua natureza própria, somada à faculdade de
aperfeiçoamento técnico na franqueza e na adequação ao real, acarreta uma
conseqüência irritante: à medida que o cinema progride, as obras antigas se
desvalorizam em proveito das novas. Há no público de cinema uma superstição das
velhas obras-primas que se explica de diferentes modos. O primeiro, por
sentimentalismo: teríamos pena de renegar suas primeiras e entusiasmantes descobertas,
mesmo se o charme se escondeu diante do aprofundamento do conhecimento e da
maturidade do gosto. Uma outra razão dessa superstição é que, a despeito da evidência,
não admitimos a diferença o cinema e as outras artes, e imaginamos que entre um filme
do período da infância e um filme adulto existe uma mesma relação que entre uma
escultura primitiva e uma escultura de Houdon. Mas isso é não enxergar que de uma
parte nós estamos em presença de duas era da humanidade, duas concepções do mundo
se exprimindo através de meios invariáveis, enquanto na outra temos o mesmo homem,
antes paralisado, mudo, atingindo perturbações visuais, depois em possessão de todas as
suas faculdades. Enfim, uma terceira razão é que o cinema mudo oferece mais prestígio
ao neófito, é mais facilmente acessível pela exterioridade de seu estetismo. Podemos
entender, no curso da projeção desses filmes de papel timbrado e de sombras chinesas,
donde um bom exemplo é Marcel l’Herbier, espectadores suspirarem após os felizes
tempos de um cinema repleto de maravilhas para os olhos. Não se pode debochar
demais. Nós todos fomos mais ou menos esse espectador de alma simples. O inquietante
não é começar por lá, mas lá permanecer, estagnação onde se compraz a maior parte dos
“cinéfilos”, raça estranha, pastora, dócil nos modos, em divórcio flagrante com o
cinema no reconhecimento de sua pureza e de suas aproximações do ponto de perfeição.
Tudo está na mise en scène.
A cortina se abre. A noite se faz na sala. Um retângulo de luz vibra em sua presença
diante de nós, e é logo invadido por gestos e sons. Nós estamos absorvidos por esse
espaço e esse tempo irreais. Mais ou menos absorvidos. A energia misteriosa que
suporta com alegrias diversas (bonheurs divers) a enxurrada de sombra e de claridade e
sua espuma de ruídos se chama mise en scène. É sobre ela que repousa nossa atenção,
ela que organiza um universo, que cobre uma tela; ela, e nenhuma outra. Como a
correnteza das notas de uma peça musical. Como o escoamento das palavras de um
poema. Como os acordos ou dissonâncias de cores de um quadro. A partir de um
assunto, de uma história, de “temas”, e mesmo do último tratamento do roteiro, como a
partir de um pretexto ou de um trampolim, eis o jorramento de um mundo do qual o
mínimo que podemos exigir é que ele não torne vão o esforço que o fez nascer. A mise
en place dos atores e dos objetos, seus deslocamentos no interior do quadro devem tudo
exprimir, conforme vemos na perfeição suprema dos dois últimos filmes de Fritz Lang,
O Tigre de Bengala e Sepulcro Indiano.
Documentário ou Féerie?
A arte se insere em uma falha. Toda atividade é o produto de uma falta, o movimento de
um desequilíbrio rumo ao equilíbrio. O fazer é um deslizamento ontológico rumo à
satisfação imóvel. Produzir arte significa construir com o já existente um existente novo
que de alguma forma exorciza o artista. Quando Lênin profetiza que os povos felizes
não mais terão arte, ele entrevê sob os nus da utopia uma verdade, mas a enfraquece
numa aplicação que só dá conta de sua parte mais superficial. O homem terá sempre
necessidade da arte porque o jogo ultrapassa em muito a condição social: ele diz
respeito ao Eu mais íntimo em suas relações de antagonismo e de acordo com o Resto.
A arte é a religião da lucidez.
Recriar um mundo que ao mesmo tempo exorciza o artista e gratifica o espectador, por
uma coincidência da vontade de potência do primeiro e do desejo de ordem do segundo
no seio de assombrações comuns, reconciliar, tal parece o fim da arte enquanto ato
destinado por sua essência de ato a preencher um vazio. À questão “Por que existe
arte?” sucede a questão “Como existe arte?”. Como esse fim pode ser atingido e o
espectador se sentir preenchido? É preciso, evidentemente, que haja a substituição mais
total possível do imaginário pelo real presente, uma absorção da consciência pelo
espetáculo, uma proximidade à beira do idêntico, antítese do distanciamento brechtiano
que arruína o poder do espetáculo para restaurar o vazio no coração do espectador.
O artista faz obra de arte para se livrar, para apaziguar suas contradições, para se
agradar e se seduzir, para se esquecer em um mundo onde ele cessa de “não estar no
mundo”, para “sair do inferno”. Seja por uma descida a esse inferno para conhecer-lhe o
fundo, se fascinar de seus excessos ao adorná-los dos prestígios da angústia e do medo,
prestígios naquilo que os seres que lá mergulham nos propõem do homem uma imagem
incandescente que nos projeta para fora de nossa banalidade cotidiana, em um universo
onde a alma se dilata, se rasga e ganha a medida de seus possíveis. Apertado por um nó
de angústia e de exaltação, o ser é revelado a si mesmo, projetado fora de si rumo a um
eu mais autêntico cuja paixão o preenche e o justifica, o seqüestra em uma vertigem
onde ele se reconquista em sua totalidade. A contradição levada a seu ponto extremo se
resolve em sua tomada de consciência e sua contemplação, que a alça ao sagrado de
uma necessidade, portanto de um aquiescimento, de um equilíbrio, de uma paz. É toda a
vocação do trágico na arte. O afrontamento, a “crise” visa a uma torção do ser sobre si
mesmo, onde tendo sido percorrido o círculo completo, o ser se reencontra no início em
sua nudez luminosa e apaziguada. – Seja por uma negação do inferno, uma emergência
simultânea na alegria, na luz, na calma, ou pelo movimento do prazer. Que tudo aquilo
que não deriva dessa ordem do sublime seja nulo, inútil e sem interesse, que toda arte
que não é exclusivamente íntima e passional, dedicada ao excesso, preciosa,
aristocrática, seja frívola e derrisória, é ao mesmo tempo a evidência de nosso desejo e
uma conseqüência lógica da função existencial da arte.
E, portanto, se o cinema fosse tomado como uma sensibilidade insensível, um olhar
impassível sobre o mundo, esse caráter poderia espessar ainda, se houvesse necessidade,
o mal-entendido que quer fazer da arte um reflexo passivo da realidade integral,
enquanto precisamente essa atividade é nascida da necessidade de reformá-la, de se
reconciliar com ela. Colocar o homem diante da imagem de um mundo que ele espera
exorcizar por meio dessa imagem (do contrário, não há necessidade de imagem, o
mundo basta) é o projeto contraditório do “realismo”[5]. Zavattini representa esse
projeto em seu estado de absurdidade explícita, o documentário de uma mediocridade,
90 minutos para nada, pois não valeria a pena alugar uma poltrona do teatro para ver o
que a rua nos oferece com o mérito de ser real.
Mas inversamente, toda imagem que escapa à realidade não responde de partida ao
papel definido por sua existência mesma, enquanto essa existência é suscitada por uma
falta na realidade, que não pode, portanto, ser remediada senão por objetos aferentes a
ela e se lhe integrando – encarada, nem em sua proliferação casual e banal, nem em um
direcionamento rumo ao impossível ou ao falso, mas em suas possibilidades de
equilíbrio entre o mundo e o homem. Desse modo os pleonasmos do realismo, assim
como os sonhos dos falsos poetas formam ambos fossos-limites entre os quais toda
atividade estética deve estar contida sob o risco de escurecer na estupidez ou na
inutilidade.
A essência do cinema como arte não é ser mais documentário ou mais feérie, se o
documentário se limita a restituir as aparências incontroladas e se a Feérie autoriza a
mentira, a trucagem e os artifícios de estetas; mas sim, ao mesmo tempo, o
documentário e a feérie, tratando-se da beleza imposta pela evidência do olho
irrecusável.
Vertigens e cintilações.
A substituição de seus possíveis dilatados pela armadura da banalidade-cotidiana abre o
espectador a uma plenitude que se trata de circunscrever em função das modalidades
particulares do cinema.
Porquanto o cinema é um olhar e um ouvido mediadores entre o espectador e as
aparências, porquanto a organização das aparências e sua apreensão mais eficaz
constituem a mise en scène, como esta será em si beleza, isto é, exorcismo de malefícios
e canto? A resposta é: pela seleção das aparências, a narrativa sobre um retângulo
branco de certos movimentos privilegiados do universo. Dito de outro modo, sobretudo
naquilo que elas têm de mais íntimo, as ações e reações de um homem em um cenário.
A proximidade mais aguda do corpo do ator veiculará as assombrações e a vontade de
sedução, engendrando uma direção de gestos raros, uma arte da epiderme e das
entonações de voz, um universo carnal – noturno ou ensolarado. Não uma
demonstração, uma sentença, o suporte sacrificado de uma operação superficial do
intelecto, mas a linha melódica, com seus crescendos, suas pausas, suas irrupções,
movimentos secretos do ser, nos concernindo ao mais vivo de nós mesmos pelas vias do
perigo e da exaltação. O ponto de chegada do cinema, atingido em raros instantes pelos
grandes dentre os grandes – Losey, Lang, Preminger e Cottafavi –, consiste em despir o
espectador de toda distância consciente para precipitá-lo em um estado de hipnose
mantido por um encantamento de gestos, de olhares, de ínfimos movimentos do rosto e
do corpo, de inflexões vocais, no seio de um universo de objetos radiantes, injuriantes
ou benéficos, onde alguém se perde para se reencontrar engrandecido, lúcido e
apaziguado. A paixão exclui a indulgência. O acesso a essa mise en scène de vertigens e
de cintilações, que se abre a uma liturgia ou à contemplação de uma ordem cósmica
reencontrada, pode explicar por que noventa e cinco por cento da produção
cinematográfica nos parece inexistente, miserável e sem relação com o cinema. Que,
após conhecer tais transportes, venhamos a recusar todos os filmes que não visam a esse
sublime, que se limitam a colocar sórdidos problemas ou a contar histórias “com
imagens” numa confusão dos meios e do fim, abandonando ao acaso ou a uma repetição
de procedimentos mecânicos o que deve ser dominado por uma intuição do coração e
uma precisão cuja menor falha rompe a curva de febre, não surpreenderia senão aqueles
que se satisfazem com pouco e que, crendo defender uma arte, sugerem-lhe a idéia mais
baixa.
A Fascinação.
A absorção da consciência pelo espetáculo se nomeia fascinação: impossibilidade de se
arrancar das imagens, movimento imperceptível rumo à tela de todo o ser tencionado,
abolição de si nas maravilhas de um universo onde até mesmo morrer se situa no
extremo do desejo. Provocar essa tensão rumo à tela aparece como o projeto
fundamental do cineasta. Em decorrência, o movimento, domínio específico de nossa
arte, deve se adensar de um jogo ou se encher de uma graça tais que ele impede a
irrupção da consciência crítica no encadeamento dos atos filmados. Recriando a cada
instante nossa expectativa, as metamorfoses contínuas do sensível desenham no espaço
o traçado de uma música inelutável e imprevista. No limite, não sabemos mais nada da
história que desfila diante de nós, de seu passado, de seu porvir possível, em uma
coincidência absoluta de nosso tempo com o tempo imaginário, em uma presença
ausente, uma espécie de esquema abstrato que é a beleza pura liberta das condições que
a sustentam. Assim, em certas circunstâncias excepcionais da vida, ficamos fora de nós
mesmos, como estrangeiros a nossa ação, inteiramente requisitados pelo exterior.
A montagem transparente.
Essa fascinação sempre foi a meta dos cineastas. Suas divergências provêm
simplesmente das diversas concepções que eles têm dos seus meios. As teorias sobre
montagem que outrora apareceram ilustram seu peso. Tratava-se de imprimir à sucessão
das imagens um ritmo análogo ao ritmo musical, de modo a submeter a consciência
espectatorial a uma arquitetura determinada, impondo-lhe linhas de força, parâmetros
que substituíssem uma necessidade interna pelo acaso. As primeiras pesquisas de
Gance, as de Eisenstein, ou a polivisão que é uma montagem espacial perpendicular à
montagem temporal, traduzem essa preocupação em aumentar a eficácia do plano por
sua disposição em um organismo calculado, como as notas de uma melodia se põem
mutuamente em valor. O erro dessas teorias (erro de toda teoria preexistente a uma
obra) é quebrar o natural, aqui ao colocar o espectador diante da contradição de uma
apreensão do real ao mesmo tempo objetiva e subjetiva: não é a lógica dramática da
cena que conduz a tela a liberar sua visão em uma continuidade onde o descontínuo dos
planos se dissolve por essa lógica mesma, mas a intervenção exterior e brutal de uma
vontade que se superpõe ao olhar da câmera e este, de transparente, puramente
mediador que deveria ser, se opacifica, se embaralha, até restabelecer entre o espectador
e o espetáculo a distância que se propunha a abolir. Esse erro é devido, conforme já
destacamos em uma outra ocasião, a uma identificação abusiva do cinema com as artes
tradicionais. Se o cinema coloca o homem face à realidade objetiva, toda ruptura de sua
impassibilidade com fins expressivos trai precisamente seus fins. A arte da montagem,
que se confunde então com a decupagem[6], consiste, portanto, em tornar os cortes
efetuados na massa informe do real tão invisíveis quanto possível.
Agora que o prazer do jogo novo desapareceu, como suportar esses choques de planos,
ou essas metáforas intercaladas, como as ovelhas de Chaplin após um plano de
multidão? A própria montagem paralela toma velocidades insistentes demais para ser
ainda admissível. A única montagem (ou decupagem, se consideramos a operação em
sua origem) adequada ao modo de apreensão cinematográfica da realidade é aquela que
adere, justo à identidade completa, ao desenvolvimento de uma série dramática dada,
por seleção e justaposição de planos essenciais, como um olhar que iria sempre direto
ao que importa na marcha de um evento. Assim, o espectador não é posto em face de
vários espetáculos ao mesmo tempo, ou de uma análise do espetáculo por um olho
absurdo que transgride as leis da atenção, situações que o distanciam brutalmente do
espetáculo ao defini-lo por contradição com este último; ele está diante do espetáculo,
diante do mundo, o mais próximo do mundo, graças à docilidade, à ductilidade de um
olhar que o seu desposa de tal modo que o esquece. Esse olhar não tem a ubiqüidade de
que conscientemente ou não o espectador se separa, ele não salta, não desliza como uma
serpente, ignora as curvas, as quedas, as provocações, tudo isso que os cinéfilos um
pouco retardados chamam de “movimentos de câmera fantásticos”. Ele é clássico ao
extremo, ou seja, exato, motivado, equilibrado, uma transparência perfeita através da
qual a expressão nua encontra sua mais eficaz intensidade.
DeMille superior a Hitchcock.
Uma vez devolvidos ao domínio da má literatura os ângulos insólitos, os
enquadramentos bizarros, os movimentos de câmera gratuitos, em suma, todo o arsenal
revelador de impotência, obtemos essa franqueza, essa lealdade sobre o corpo do ator
que é o único segredo da mise en scène. Para bem compreender, basta se referir ao
recente Vertigo de Hitchcock, ou ainda a um certo plano de O Homem Errado, como
exemplos do que não se deve fazer. O redemoinho da câmera em torno do rosto de
Henry Fonda para exprimir sua angústia, ou as colorações sucessivas de James Stewart
em meio ao pesadelo da vertigem, procedem da mesma impotência diante do ator, ao
suplantar uma incapacidade de revelar suas virtualidades passionais – do interior – por
uma crispação de tudo aquilo que não é o ator, de tudo aquilo que está fora dele, da
mesma forma que os escritores medíocres forçam o estilo e brutalizam as palavras para
tentar dar a sentir o que eles não sentem. É aliás interessante escutar da boca de
Hitchcock a descrição dessa mise en scène trucada: “Na maior parte do tempo pedimos
(ao ator) que atue com calma e naturalidade (...), deixando à câmera a tarefa de
adicionar quase todos os efeitos[7] e de enfatizar os pontos importantes. Eu diria que o
melhor ator de cinema é aquele que sabe melhor não fazer nada”[8]. Não saberíamos
mais explicitamente declarar que não se tem nada a mostrar além de uma certa maneira
de mostrar o que não há. Voltemo-nos agora a um ancestral de Hitchcock, Eisenstein:
“O realizador não considera nunca o ator como um verdadeiro ser humano, ele imagina
o que será o filme e escolhe cuidadosamente o material ao fazer evoluir o ator de modos
diferentes e ao decidir, em função do intérprete, as posições da câmera”. E eis a razão
dessas grandes máquinas de tela e de cartolina. Pudemos verificar graças à segunda
parte de Ivan, o Terrível, a fragilidade da mise en scène de Eisenstein, colosso de pés de
argila. Como em Welles, cujo modernismo agressivo e a originalidade gratuita
recobrem um expressionismo velho de um quarto de século, ela desenvolve um baixo-
alívio atormentado e fingido, galeria de monstros pitorescos, barroca se o barroco se
define por uma abundância ornamental do signo sufocando a significação. A obra de
Eisenstein nos faz inelutavelmente pensar nos pintores e nos literatos que, não sabendo
desenhar um homem, desenham um esqueleto e crêem fazer metafísica.
Se agora damos a palavra ao inocente da cidadezinha, Cecil B. DeMille, o que
ouvimos? “Eu devo conhecer a fundo cada ator, enquanto pessoa, assim como seus
métodos, e adaptar minha própria concepção do filme a essa personalidade. Eu devo
lhes oferecer minha ajuda, meus conselhos, devo guiá-los quando eles me solicitam e
lhes oferecer também simpatia e compreensão...”[9]. Essa linguagem nos tira das
brutalidades precedentes, e explica o prazer que podemos ainda experimentar em
Sansão e Dalila, enquanto Eisenstein, Hitchcock ou Welles se distanciam cada vez mais,
na noite de um cinema bárbaro que é apenas a convulsão de um olhar sobre objetos
medíocres, ao passo que o cinema deve ser uma contemplação de objetos raros e sem
preço.
Preeminência do ator
Dentre os objetos cuja nomenclatura constituiriam um catálogo precioso, refinado –
jóias gravadas em fogo sobre peles foscas, carros riscando o espaço com traços
flamejantes, jardins em flor, robes entreabertos, aldeias à beira mar, ou ainda, numa
outra série, navios longilíneos, choques de armas, robes esvoaçantes, casacos rasgados
sobre o peito do herói – o objeto privilegiado é, portanto, a imagem de nós mesmos, o
ator. Porque o cinema é um olhar que se substitui ao nosso para nos dar um mundo em
acordo com nossos desejos, ele nos colocará sobre rostos, corpos radiantes ou feridos
mas sempre belos, dessa glória ou desse fracasso que testemunham uma mesma nobreza
original, de uma raça eleita que, com embriaguez, reconhecemos nossa, último avanço
da vida rumo a deus. Não, como em Rossellini, a aproximação tateante da criatura rumo
a um criador, tema exterior à mise en scène, mas o homem tornado deus na mise en
scène, pela revelação de seus poderes, brecha aberta bruscamente na superfície das
coisas e nos arrebatando. Hino à glória dos corpos, o cinema reconhece o erotismo
como sua motivação suprema. Queremos dizer com isso que o cinema não escolheu o
erotismo dentre outras vias possíveis, mas que estando dada sua dupla condição de arte
e de olhar sobre a carne, ele estava dotado ao erotismo como reconciliação do homem
com sua carne. (Enquanto a literatura oferece um terreno favorável às florações mais
cerebrais do amor-sentimento, as palavras residindo por natureza no coração da
fascinação dos psiquismos, mas se revelando signos muito mais pálidos da fascinação
dos corpos.) A busca obsessiva de uma equação que reúne os termos equilibrados de
uma carne e de um mundo converge para esse plano de Contos da Lua Vaga em que o
amante se estende sobre a relva, banhado de sol, na admiração tranqüila do prazer,
exclamando: “Ah! Isso é divino!”. E é de fato o reflexo do divino, possessão perfeita do
mundo e de si mesmo, momento comparável a uma água pura desposando os contornos
do vaso. Losey, Preminger, Cottafavi, Don Weis, Lang, Walsh, Fuller, Ludwig,
Mizoguchi [10], somente eles souberam em graus inigualáveis o segredo dessa
empreitada sobre o ator e o cenário que Murnau ou Griffith não podiam levar até o fim,
e que Hawks, Hitchcock, Renoir, Rossellini apenas entreviram sem a controlar[11].
Quanto a Bresson, parece que ele quis controlá-la sem entrevê-la.
Essa revelação não é obtida pela câmera a partir do acaso e do vazio, como espera a
maior parte dos cineastas, ela se faz merecer por um trabalho preciso sobre os atores em
função de suas virtualidades. A escolha dos atores é portanto capital, e no fim das
contas um filme nulo e completamente desprovido de ambição, se ele comporta um ator
essencial (exemplo: O Egípcio, em que Bella Darvi está sublime), é mais atraente que
um filme ambicioso cujos atores são mal escolhidos. (Exemplo: Renoir utilizando
Valentine Tessier em Madame Bovary, portanto seu melhor filme). Um ator essencial é
aquele cujo rosto, voz e corpo são profundamente tingidos de uma capacidade passional
e de uma sedução. A arte do metteur en scène consiste então em provocar essa natureza
para que ela exploda ou radie, por uma espécie de simpatia direta e fulgurante, donde
deriva que cada metteur en scène possui seus atores benéficos, como cada escritor é
apegado a certos seres da linguagem mais que a outros, como cada pintor é atraído por
uma cor. Face ao azar e aos motivos grosseiros que engendram as escolhas da maioria
dos cineastas, que se colocam diante dos atores como a anta de Buridan, ponhamos a
fidelidade de Preminger a um tipo de mulheres, Jean Simmons, Gene Tierney, Maggie
McNamara (sobre um mínimo gesto), reencontrada ulteriormente através de Kim Novak
e Jean Seberg, mulheres feridas, secretas e refugiadas em um mundo de infância, de
onde elas lançam através da fixidez de seu rosto apelos apaixonantes que absorvem o
abismo de seus olhos. Ou aquela de Losey em duas linhas contrárias que se juntam em
uma busca comum da felicidade, uma de mulheres iluminadas docemente de uma luz de
calma e de pudor, de razão e de ternura, outra de panteras convulsivas ultrapassando em
um momento púrpuro as barreiras que as separam da selva e do bem-estar. Um exemplo
inverso e também convincente poderia em uma única fórmula resumir o que precede:
Fellini se casou com Giulietta Masina, logo seus filmes são grotescos. O que seria
preciso demonstrar.
O Mal-entendido.
Georges Sadoul, recentemente, provocou-me querela a propósito de algumas frases
sobre Preminger onde eu tinha exprimido a idéia de uma identidade entre filmes em
aparência tão diversos quanto Angel Face, Saint Joan ou Bonjour Tristesse. Se nessas
linhas eu me faço entender, tais reprovações derivam manifestamente de uma concepção
do “autor de filmes” inadmissível e sem cabimento, no nível do roteiro e das idéias
gerais, a partir da qual se pode dizer que René Clair ou Chaplin são autores malgrado o
caráter débil, sumário e mecânico de sua apreensão concreta da realidade. Crer que
basta a um cineasta escrever seu roteiro e seus diálogos, e orientar segundo temas
definidos e repetidos os atos de seus personagens, para ser “autor de filmes” é um dos
erros de base que forjam autoridade ainda hoje em uma crítica enevoada pela literatura e
cega à luz lancinante da tela[12]. A derrota dos intelectuais diante dos filmes que não
propõem à incerteza de seu julgamento a armadura de uma temática preexistente se
verifica graças ao cinema de aventura. Essas obras arejadas, sedutoras, amparadas de
todos os prestígios da cor, do espaço e dos sentimentos fortes, das quais Walsh
permanece o mestre incontestável (muito mais solar que Hawks), das quais o único
tema é o herói, seus amores, suas vitórias ou sua morte, por sua ausência de justificação,
sua gratuidade dionisíaca[13], seu classicismo cósmico, fazem eles perderem o chão e
chegarem ao cúmulo de se desculpar pelo prazer que sentiram. São cegueiras desse tipo
que permitem a René Clair, ainda ele, afirmar que as “obras-primas” da tela grande
estão saindo de moda; acrescentemos: precisamente porque elas foram consagradas por
uma crítica e um público onde reina a confusão dos valores! Mas Griffith, mas Murnau,
mas Stroheim – todas as reservas feitas à insuficiência de sua técnica – não saem de
moda, e O Ladrão de Bagdá, filme mudo de Walsh com Douglas Fairbanks, permanece
visível, enquanto ao redor dele tudo caiu. Da mesma forma podemos predizer sem
grande perigo de ser desmentidos que Welles, Kazan, Visconti, Antonioni e outros
senhores atuais se tornarão intoleráveis em vinte anos (eles o são desde sempre aos mais
sensíveis); quanto a Bergman, antes mesmo de rodar seu primeiro filme ele já era
démodé.
O que torna idênticos e quase intercambiáveis – senão no grau da beleza, ao menos no
caminho de aproximação da beleza – filmes tão diferentes pela fonte, pela anedota e
pelo “clima” quanto aqueles que pontuam a carreira de Preminger é um certo modo de
olhar os atores e os objetos, idéia certamente intraduzível para inúmeros amantes de
filmes, que não compreendem primeiramente por que o fato mesmo, o fato bruto, de
mencionar – algum conceito que aí se re-acopla – o nome de Bernard Shaw ao falar de
Saint Joan é a cegueira de uma ignorância, poderíamos dizer ontológica, do cinema
enquanto tal.
A noção de autor de filmes se define, portanto, pelo império que o cineasta exerce ou
não exerce sobre a matéria mesma de sua arte, sobre aquilo que a tela nos oferece, sobre
a luz, o espaço, o tempo, a presença insistente dos objetos, o brilho do suor, a espessura
de um cabelo, a elegância de um gesto, o abismo de um olhar. Enquanto isso, a quase-
totalidade da crítica se dedica ainda ao roteiro, o que equivale a comentar Le Radeau de
la Méduse e a definir Géricault citando as peripécias do naufrágio e a idade do capitão.
Assim, a pesquisa e a síntese das equivalências de roteiros em Hitchcock (as
transferências de culpabilidade, por exemplo) não interessam em nada ao que vemos
sobre a tela e que somente conta. O tema da transferência dá lugar a situações que em si
mesmas engendram uma mise en scène cujas próprias constantes são o que retêm nossa
atenção. Analisar a obra de um cineasta é mostrar em que seu acesso aos temas
fundamentais da mise en scène, ordenados em torno da presença corporal dos atores em
um cenário, é ou não é capaz de nos fascinar. Como ele desvela o desejo, o ódio, a
violência, o medo, a ternura, como olha a cidade, as árvores ou o mar. Essas noções
requerem o uso da metáfora e um caminho que torce a linguagem para dar conta de
seres estéticos novos.
É preciso concluir, se comparamos esses princípios elementares à sua aplicação, que o
cinema é tão desconhecido hoje quanto era a pintura no fim do último século.
Reprovamos a nossos pais terem colocado Meissonnier antes de Cézanne, mas não
vemos nosso século de luzes preferir as Noites Brancas de Visconti às Aventuras de
Hadji de Don Weis? Surpreende-se que as obras levadas num dia aos píncaros sejam
insuportáveis ou ignoradas no dia seguinte, sem compreender que isso não ocorre por
uma fatalidade misteriosa, mas simplesmente porque a maior parte dos espectadores não
aprendeu ainda a olhar, e filtra as imagens através de uma consciência inadaptada às
realidades da tela.
Michel Mourlet
Traduzido por Luiz Carlos Oliveira Jr.
[1] Não se tratam evidentemente dos critérios de finalidade, transcendentes à obra e
comuns a toda forma de arte.
[2] Esse parágrafo que eu acreditava dever defender da imprecisão foi escrito quando eu
tinha achado sua melhor justificação em um artigo de André Bazin, compilado em
Qu’est-ce que le cinéma? e intitulado “O Mito do Cinema Total”. Citemos: “Tudo me
parece ocorrer como se devêssemos inverter aqui a causalidade histórica que vai da
infraestrutura econômica às superestruturas ideológicas e considerar as descobertas
técnicas fundamentais como acidentes felizes e favoráveis, mas essencialmente
secundários em relação à idéia preliminar dos inventores. O cinema é um fenômeno
idealista. A idéia a partir da qual os homens o fizeram existia toda pronta em seu
cérebro, como no céu platoniano, e o que nos atinge é bem mais a resistência tenaz da
matéria à idéia do que as sugestões da técnica à imaginação do explorador”. E mais
adiante: “Se as origens de uma arte deixam perceber alguma coisa de sua essência,
podemos considerar os cinemas mudo e sonoro como as etapas de um desenvolvimento
técnico que realiza pouco a pouco o mito original dos exploradores. Compreende-se,
nessa perspectiva, que seja absurdo tomar o cinema mudo por uma espécie de perfeição
primitiva da qual o realismo do som e da cor progressivamente se distanciaria”.
[3] Cf. a definição de Valéry, contemporânea dessa época: “O cinema é a arte de fazer o
falso com o verdadeiro”.
[4] Importância da fotografia: de sua qualidade depende em parte a sensação do volume
espacial, o grão da luz, os jogos tênues da epiderme.
[5] “Fazer o verdadeiro” não é um fim mas um meio, o meio de fazer aceitar o fim que é
a beleza. Uma beleza que não é verdadeira não é mais tolerável do que uma verdade que
não é bela. O cinema cristaliza e realiza toda a vontade de verdade difusa nas outras
artes, ele é, nesse sentido, seu epítome. Mas ele se torna sua derrisão caso estacione
nesse degrau e fabrique, por exemplo, “reportagem vivida”...
[6] Trata-se apenas de uma simples operação de colagem, à exceção – totalmente
material – das cenas rodadas fora de sua ordem cronológica.
[7] Grifos meus.
[8] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 66.
[9] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 69.
[10] Haveria lugar sem dúvida para citar também Ida Lupino e Edgar Ulmer, ainda que
muito pouco conhecidos, La Déesse des Incas de Frantz Eichtorm, sem esquecer Allan
Dwan e alguns clarões em Douglas Sirk e Richard Fleischer.
[11] Reconheçamos nossa dívida perante a crítica “hitchcocko-hawksiana”, que
sobretudo com Éric Rohmer, Jacques Rivette e Philippe Demonsablon foi a primeira a
preparar o terreno, ainda que ela pareça hesitar em tirar as conseqüências de suas
premissas.
[12] Isso não significa que o roteiro não tenha importância. A mise en scène se funda
sobre as situações e depende de cada um que todas as situações não engendrem uma
mesma revelação do ator. É por isso que falo de trampolim. Somente importa a altura do
salto, mas ela depende da elasticidade do ponto de apoio tanto quanto das pernas.
[13] Distingamos essa gratuidade sobre o plano dos temas e da mise en situation, que
pode ir justo a uma grande independência face às exigências de roteiro, e se confunde
com a simples alegria de filmar um momento raro do universo, e a gratuidade que eu
reprovava em Welles por exemplo, gratuidade esta de mise en scène; assim os contra-
plongées sistemáticos e inúteis, ou a utilização, segundo seus próprios dizeres, de tal
objetivo porque seus colegas não o empregam.

Uma Lucidez Viril

Sabemos que há muito tempo alguns amadores tenazes, todos colaboradores ou


simpatizantes desta revista[1], afirmam que Raoul Walsh, velho cineasta lotado de
obras, é um dos principais criadores de uma arte cuja novidade não favorece o
entendimento. É preciso, para compreender as razões de um tal julgamento, ter visto
com os olhos da maior exigência e igualmente da maior simplicidade filmes como
Gentleman Jim, Colorado Territory, Pursued ou The Naked and the Dead, que
constituem tão-somente o exercício da nobreza e do natural, esse “tão-somente”
representando a forma da mais alta ambição de um artista. Se o acordo de um gesto e de
um espaço é a solução e a conquista de todo problema e de todo desejo, a mise en scène
será uma tensão rumo a esse acordo, ou sua imediata expressão. A arte é uma conquista
de si mesmo, primeiramente, e do mundo, se possível; daí três condições necessárias:
um método rigoroso, um orgulho sem o qual nada de vasto é concebido ou sequer
tentado e um grande respeito pelo verdadeiro. Que uma dessas três condições apresente
falha, e a obra carecerá do equilíbrio indispensável à sua função e à sua eficácia.
Da produção imensa e sem igual de Walsh, um certo número de filmes se destaca, que
responde a essas idéias e mesmo as provoca. Seu respeito da realidade, o cineasta o
definiu colocando o princípio de que há apenas uma forma de pôr em cena um dado
personagem em uma dada situação. Isso equivale a dizer que a organização ideal da
matéria visível e sonora em função das premissas livremente estabelecidas pelo roteiro
possuiria um caráter de necessidade incontornável análogo à ebulição da água a cem
graus. Compreendemos que o reconhecimento, a descoberta dessa solidez dos
fenômenos no seio de sua própria criação, exige do artista a liberdade e a clareza de
espírito totais: as chances de erro, em vista da única verdade, são infinitas. O orgulho
está na busca dessa verdade, mas é a humildade que a encontra. Fazer-se completa
transparência, olhar puro, poroso aos fenômenos, é a sabedoria do classicismo e o
segredo de uma juventude inalterada.
Quanto ao método, ele é simples; ainda assim é preciso a ele se ater. Não mostrar de
uma cadeia de eventos senão o indispensável a seu desenvolvimento e sua compreensão;
mostrá-lo da forma mais direta; sempre permanecer ligado ao centro. Construir, em
outros termos, uma arquitetura cuja beleza global nasce da exatidão do papel atribuído a
suas partes.
A arte de Walsh é clássica naquilo que ela manifesta e impõe, para além de toda
crispação, a virtude de uma impassibilidade soberana invisivelmente atrelada aos
reflexos da elegância, da raça, da nobreza física e moral. A lucidez viril de seu propósito
não é do domínio dos conformismos demagógicos, mas, diferentemente, de uma
continuidade profunda da aristocracia do coração.
Michel Mourlet
[1] Présence du Cinéma
Traduzido por Luiz Carlos Oliveira Júnior.

Sua Única Saída, Raul Walsh

Sua Única Saída é um dos poucos filmes - um punhado - que demonstram de maneira
definitiva os poderes do cinema, quando se encontra nas mãos de um artista genial,
como aqui Raoul Walsh. De um lado western psicanalítico, poema e afresco cósmicos
de outro, o território e a ambição do filme são imensos, quase ilimitados. A trajetória da
sina de um personagem atormentado pelo peso de seu passado (tema walshiano por
excelência) permite a Walsh estabelecer e explorar um universo que começa nas
profundezas do coração de um homem e vai se perder em algum lugar no infinito.
Narração concreta, física, de um ódio mais denso que a pedra (o de Grant Callum pela
família dos Rand), Sua Única Saída é também uma imaterial história de fantasmas onde,
por exemplo, uma noiva vestida de branco sonha cumprir, na noite de suas núpcias, um
improvável projeto de vingança contra aquele com quem acabou de casar. E a tragédia
do herói e da heroína, tal como é descrita aqui, é que precisarão triunfar não somente
sobre a hostilidade bem concreta de seus inimigos, como também de seus próprios
sonhos, de seus pesadelos e de todas as obsessões que conduzem seus imaginários. No
cinema, desfrutar de gênio, para um diretor, é antes de tudo e principalmente ser capaz
de o partilhar com os outros. Em Sua Única Saída, Max Steiner nos dá a quintessência
de suas partituras: uma música soturna, épica, grandiosa, que contém também um
lirismo secreto. Os céus negros, os rochedos, os interiores precariamente iluminados por
James Wong Howe são gravuras diante das quais, por instantes, a arte plástica de um
Dreyer se assemelha a um esboço de debutante. Quanto aos atores, Robert Mitchum tem
o olhar impenetrável daqueles que não conseguiram decifrar o enigma de seus destinos;
ao seu redor, Teresa Wright ,e sobretudo Judith Anderson, se sacrificam a uma ênfase
teatral, a uma solenidade vinda do fundo dos tempos, mas que se encontram tanto uma
quanto outra rejuvenescidas, reinventadas pelo cinema.
Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles.
Tradução: Bruno Andrade.

O Rio Sagrado, Jean Renoir

Após vários anos passados na América, que não constituem sob o plano criativo um
período crucial de sua obra, Renoir não retorna diretamente à Europa (onde realizará os
quaisquer filmes essenciais que encerrarão sua carreira). Ele faz um atalho pela Índia,
sobre a qual não se esquiva de exprimir um olhar de ocidental, e nos confia esse filme
magnífico que marca a um só tempo uma pausa na sua obra e uma dilatação filosófica
de suas perspectivas. O Rio Sagrado é representativo da dupla ambição que anima os
maiores cineastas do pós-guerra: ir ao mais profundo da intimidade dos seus
personagens e ressituá-los - eles e suas experiências - numa visão global e planetária da
realidade. Sob esse ponto de vista, O Rio Sagrado é o mais rosselliniano dos filmes de
Renoir. Graças a um roteiro refinado e sólido que une com uma maravilhosa fluidez um
grande número de elementos díspares, o filme instala seu objetivo numa série de níveis:
sentimental, familiar, social, racial, filosófico, espiritual e metafísico.
Da mesma forma, os espaços onde se situa a história vão do mais íntimo ao mais
cósmico: o coração de Harriet, a família inglesa, as beiras do rio e o próprio rio, a Índia
e o mundo. Em todos esses aspectos, o filme é uma homenagem ao esplendor das
aparências, à sabedoria da vida e à unidade do grande Todo. Com relação a essa
unidade, o indivíduo, no seu foro interior, na sua história pessoal, pode se sentir
separado, exilado, mas esta é uma ilusão perigosa que deve desaparecer e dar lugar ao
reconhecimento do equilíbrio superior dos ciclos vitais, ao consentimento à ordem
natural das coisas e à coerência do universo. A consolação suprema vem, aos olhos de
Renoir, do fato que no universo a parte é tão importante quanto o todo, é realmente, na
sua humilde proporção, o todo; e essa convicção se reforça no decurso de sua estadia na
Índia. A ambição filosófica do filme encontra seu correlato no minucioso êxito estético
de sua realização. A distância entre os atores (profissionais ou não-profissionais) e os
personagens que interpretam se encontra em O Rio Sagrado por assim dizer reduzida a
zero. Não seria esse o sonho de todo diretor? O documentário e o ficcional aliam-se na
história e recriam ao nível formal esta unidade que o filme defende no nível metafísico.
Quanto à foto de Claude Renoir, considerada a justo título com a de A Carruagem de
Ouro como uma das mais memoráveis da história do cinema, ela encarna nas suas
nuances e na sua riqueza o propósito do autor, a gratidão que sente em relação ao
universo e a perfeita serenidade que se propõe a atingir.
Jacques Lourcelles, Dictionnaire du cinéma - Les films
Tradução: Bruno Andrade

Melville e seus discípulos, Nicolas Saada


Desde os anos 60, o interesse de Holywood e do mundo pelo cinema francês parecia ter
se fixado principalmente sobre Godard e Truffaut: Godard era o moderno, Truffaut o
sensível, ambos tendo se tornado o ponto de referência último de certos grandes
cineastas americanos, que não cessaram de citá-los em seus filmes. Com Melville,
redescobriu-se um elo perdido que, com Becker, Franju e Bresson, marcava uma
transição histórica no cinema francês entre a tradição de antes da guerra e a Nouvelle
Vague.

Melville é talvez o mais americano dos cineastas franceses: do cinema noir, ele reteve o
fetichismo das armas e das roupas, a lógica quase fratricida da guerra de gangs e da lei
do meio. Seus personagens parecem evoluir em um mundo paralelo, indiferentes ao
tempo que passa e à sociedade, que acaba por aprisioná-los e matá-los. Por sempre ter
feito referência quase direta aos mitos do grande cinema americano, Melville foi
confundido, de forma equivocada, com uma figura nostálgica, presa ao passado,
enquanto seu projeto tendia na verdade a deslocar os signos do filme noir no contexto
depressivo do cinema de gênero à francesa

Nos filmes policiais de Melville, tudo a priori é clarividente: jazz, impermeáveis e


stetsons. Mas por trás destas referências imediatas, dissimula-se uma relação muito
particular ao cenário, ao quadro ( cadre) e à encenação. Os percursos de Melville
sempre o encaminharam em direção a um crescente perfeccionismo, uma precisão de
todos os instantes na progressão narrativa, de sua geografia e de seus personagens. Seu
estilo com o tempo tornou-se cada vez mais misterioso, impalpável, e sua influência
mais surda, distante. É por isso que pálidos imitadores focalizaram-se essencialmente
sobre detalhes menores, tais como as roupas, a música e sobretudo uma certa “pose”,
elementos que substituíam de forma desajeitada a essência de seu cinema,
profundamente insolente e melancólico.
Melville manifestava a impossibilidade da existência do gênero através de personagens
isolados e perdidos, ligados a ideais absolutamente ultrapassados.Esta idéia de errância,
de perdição se reencontra nas cenas filmadas na floresta em Os profissionais do Crime
( Le deuxième souffle) ou O círculo vermelho: sequências de fuga para frente
( dianteira, “fuite em avant”) dos personagens. Estes últimos só parecem encontrar seu
lugar num mundo desértico ou mental, do qual o quarto-caverna de Jeff em O samurai é
uma imagem marcante.

Não é por acaso que o cinema de Hong-Kong foi um dos raros a integrar de forma
excelente o universo dos filmes de Melville. Espremidos entre a tradição sufocante de
uma China que os rejeita e o absurdo de uma megalópole que reproduz freneticamente o
funcionamento das grandes capitais ocidentais, os heróis de John Woo são feitos da
mesma matéria dos desenraizados de Melville.
Eles não pertencem a nenhuma verdadeira História, e se isolam em uma visão romântica
do mundo que os conduz à sua perdição. É o caso do Assassino, personagem tão
excepcional quanto ultrapassado, consciente de seu isolamento. John Woo também
reteve de Melville a extrema inteligência de seus dispositivos geográficos: em uma das
mais belas seqüências de Os profissionais do Crime, um personagem inspeciona
cuidadosamente a situação de um cômodo onde perigosos gângsters, entre eles Denis
Manuel, marcaram um encontro com ele. Minuciosamente, ele busca um lugar onde
poderia dissimular uma arma sem que eles saibam. Em seguida, Denis Manuel fará o
mesmo e descobrirá o revólver escondido. Em John Woo, o espaço é cuidadosamente
esquadrinhado pelos personagens, a fim de ser utilizado em caso de confronto. O
território é marcado, assinalado, e possibilita uma espécie de cumplicidade com o
espectador, como em Better tomorrow, onde Chow-Yun Fat esconde um revólver em
um corredor que o conduz diretamente para um covil de gângsters.

Mas se Melville colcoava seus heróis em paisagens urbanas, vazias e desencarnadas,


verdadeiros lençóis se estendendo a perder de vista ( imóveis com corredores infinitos,
avenidas desérticas filmadas na aurora, os recintos das escadarias abandonadas), John
Woo abole o espaço através da montagem, único meio de quebrar os estreitos limites
desta cidade-mundo que é Hong Kong. Esta ligação radical à forma parte de uma
mesma constatação de fracasso, aquele da impossibilidade de inscrever no tecido social
a presença de silhuetas quase anacrônicas.

No Estados Unidos, a influência de Melville permaneceu muito parcial, mais visível em


cineastas cinéfilos como Scorsese que, com Travis Bickle em Táxi driver, oferece uma
variação em torno do personagem abandonado e solitário do Samurai. Bickle e Jeff
Costelo ( Alain Delon) possuem em comum o desejo de não deixar nada nas mãos do
acaso: vejamos como Bickle esconde cuidadosamente nas mangas de sua roupa
revólveres e punhais.
A sombra de Melville está mais presente nas seqüências rodadas no apartamento de
Bickle: como Jeff Costello, ele se isola numa espécie de covil separado do mundo.

Esta idéia está presente quase 15 anos mais tarde, em Ajuste final (Miller’s Crossing),
dos Irmãos Coen, filme profundamente mellviliano, tanto pelo tema quanto pela forma,
extremamente contida. O herói do filme, interpretado por Gabriel Byrne, é um
cruzamento entre o Delon do Samurai e o Belmondo de Técnica de um delator. Como
Jeff, ele se fecha em um apartamento deserto, que se torna pura projeção de seu espírito.
Assim como em Técnica de um delator, ele nos faz acreditar em sua traição, com o
propósito de desvelar a identidade dos traidores que gravitam em torno de seu melhor
amigo. Ajuste final retoma uma das imagens preferidas de Melville, a da imensa
floresta, indiferente à violência dos homens. Uma das mais belas sequências do filme é
aquela em que Gabriel Byrne deixa John Turturro viver: os Coen o filmam correndo
freneticamente no meio das árvores, repetindo o plano fulgurante da fuga de Gian Maria
Volonté no início de Círculo vermelho.

Foi um dos aspectos mais decorativos do cinema de Melville, transmitido sem dúvida à
sua geração pelo intermédio de John Woo, que inspirou Tarantino. Com Cães de
aluguel, Tarantino parece ter se concentrado sobre os detalhes mais imediatos do
cinema de Melville, principalmente a roupa preta, verdadeiro uniforme de gângester.
Tarantino certamente deve ter se lembrado do belíssimo plano da autoestrada, filmado
em pleno dia por Melville nos Profissionais do crime: vemos, no quadro, os quatro
cúmplices marchando lado a lado em direção à caminhonete blindada.

Le Bernin, à vista dos quadros de Nicolas Poussin, dizia, designando com o dedo a
testa, que este pintava “ dali, daquele ponto ali” ( de là). Da mesma forma, em Melville,
a visão do gênero torna-se uma espécie de meditação. Talvez por este motivo muitos
tenham confundido em seu cinema a melancolia com a nostalgia. Ele se inscreveu em
uma tradição profundamente francesa, e tentou reinterpretar uma idade de ouro ( âge
d’or) desaparecida.
Tradução de Luiz Soares Júnior.

Andrei Roublev

1967 - URSS (175’). Real: Andrei Tarkovsky. Roteiro: Andrei Tarkovsky, Andrei
Mikhalkov Kontchalovski. Foto: Vadim Youssov (Sovscope, alguns planos em
cores). Música: Vjatcheslav Outchinnikov. Intérpretes: Anatoli Solonitzine (André
ublev), Nikolai Sergeev (Teophane), Irma Raouch (a louca), Nicolai Bourliaiev
(Boriska), Ivan Lapikov (Kyril), Iouri Nazarov (o duque), Sos Sarkissian (o cristo),
Nikolai Bourliaiev (Boris).

O extremo formalismo do estilo de Tarkovski prolonga a tradição eisensteiniana e se


separa radicalmente das duas principais tendências do cinema russo nos anos 60 e 70: a
representação analítica e realista do presente (linha Panfilov); o desejo de reencontrar os
laços profundos que unem o presente ao passado (linha Kontchalovsky e Mikhalkov).
Assumindo o risco do esoterismo e mesmo da complacência esotérica, Tarkovski se
interessa antes de tudo por estes impressionantes movimentos de câmera que petrificam
o espaço de uma maneira sólida e surpreendente, às suas pesquisas de ambiências
apocalípticas e extra-temporais. O tema abordado - a procura tateante de um humanismo
espiritual, única trincheira contra a barbárie, o paganismo e os excessos da religião - lhe
permite mergulhar nesta Idade Média indiferenciada onde se banha a maioria de seus
filmes. Neste espaço fantasmagórico que é uma espécie de “berço do Ser”, o homem
parece estar em gestação, criatura embrionária e ainda aprisionada no limo original, mas
antes de tudo bestial, do qual é preciso arrancá-lo - e esta tarefa parece infinita - , a fim
de que ele alcance um dia a consciência moral. A consciência tão somente. Na
vanguarda deste esforço humano e sobre-humano se encontra o artista (Andrei Roublev,
ou mesmo o jovem construtor de sinos), que arrasta atrás de si uma multidão de
fantasmas, dos quais ele é ao mesmo tempo o pastor, o intérprete e a emanação
suprema.
Jacques Lourcelles. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

Sob o Signo de Capricórnio


Under Capricorn - 1949. USA (112’). Prod. Warner Bros. Transatlantic Pictures
(Sydney Bernstein e Alfred Hitchcock). Real. Alfred Hitchcock. Roteiro: James
Bridie, Hume Cronyn, a partir de R. de Helen Simpson. Foto: Jack Cardiff
(Technicolor). Música: Richard Addinsell. Intérpretes: Ingrid Bergman (Lady
Henrietta Flusky), Joseph Cotten (Sam Flusky), Michael Wilding (Charles Adare),
Margaret Leighton (Milly), Jack Watling (Winter), Cecil Parker (Sir Richard),
Denis O’Dea (Corrigan).

Entre Rebecca e Vertigo, um destes devaneios românticos de Hitchcock onde um retrato


feminino constitui o fundo da intriga. O roteiro foi escolhido por Hitchcock por agradar
a Ingrid Bergman, uma das vedetes holywoodianas mais incensadas da época. Por um
emprego sistemático e admiravelmente fluido dos planos longos e dos movimentos de
câmera - técnica retomada do seu Festim diabólico, mas aqui com uma outra finalidade
-, por uma lentidão e uma solenidade desejadas da intriga, uma dramatização mais
discreta que de hábito, uma elipse quase total das cenas de ação, Hitchcock dá a seus
personagens e às relações que se encadeiam entre eles uma estranha espessura
romanesca. O que se passa no interior de seus corações é a verdadeira matéria do filme.
Os temas hithcockianos do falso culpado e da confissão salvadora adquirem um papel
muito insólito na economia da intriga, uma vez que o falso culpado o é voluntariamente
e o conteúdo da confissão repousa na verdade sobre a revelação de um sacrifício do qual
o beneficiário não deseja mais ser o único conhecedor. Todos os personagens vivenciam
seus grandes sentimentos até o limite, e uma série de sacrifícios recíprocos encadeia uns
aos outros de forma mais sólida que em um complot. Mesmo o anjo negro do filme (a
governante Milly) age levada por um sentimento de amor profundo que, sem de forma
alguma absolvê-la, às vezes a coloca ao nível dos outros personagens.

Sob o signo de Capricórnio é também um dos mais belos Technicolor da história do


cinema. Soberba música de Richard Addinsell, o compositor de Sea
devils.Incompreendido pelo público e pela crítica (com a exceção dos redatores da
Cahiers du Cinéma), detestado naquele momento por Hitchcock, que viu no insucesso
do filme um grande motivo de vergonha (o que demonstra, afinal, muita humildade de
sua parte), este filme, onde a palavra tem uma extrema importância, especialmente
como uma forma de exorcismo do passado, é uma das jóias de sua obra.

Bibliografia: deve-se ler o admirável artigo de Jean Domarchi consagrado ao filme, “A


obra-prima desconhecida”, publicado no número 39 de Cahiers du Cinema (outubro de
1954, reeditado em 1980), primeiro panorama publicado sobre o cineasta. “Se a
literatura moderna não tem mais o tempo de contar uma história e se o mito do anti-
herói é um pretexto cômodo para resolver problemas que interessam unicamente aos
técnicos, quem, pergunta Domarchi, quem se encarregará de narrar ao homem a sua
própria história?”.
Jacques Lourcelles. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

They Live by Night

1949 - Usa (95’). Prod. RKO (John Houseman). Real. Nicholas Ray. Roteiro:
Charles Scheene, Nicholas Ray, a partir de “Thieves Like Us”, de Edward
Anderson. Foto: George F. Diskant. Música: Leigh Harline. Int: Cathy O’Donnel
(Keechie), Farley Granger (Bowie), Howard da Silva (Chickmaw), Jay, C. Flippen
(T. Dub), Helen Craig (Mattie), Will Wright (Mobley), Ian Wolfe (Hawkins).

Primeiro filme de Nicholas Ray, inscrito no campo ao mesmo tempo estrito e aberto a
todas as transgressões do filme noir. Desde sua primeira obra, e de uma forma quase
espontânea, Ray torna-se um expert na transgressão de gêneros. Ele negligencia, ainda
mais que Huston em The asphalt jungle, a ação propriamente dita, escamoteia várias
cenas espetaculares e passa de lado pela briga onde Howard da Silva (Chickamaw)
encontra a morte. O que lhe interessa é mergulhar seu casal de jovens inocentes, Bowie
e Keechie, em um mundo noturno e violento, composto quase unicamente de lugares de
passagem (motel, sala de espera, auto-estrada), onde se esvaem a melancolia e a
angústia dos personagens que os atravessam. O relevo selvagem dos personagens
secundários, Chickamaw o cego, Mattie a delatora, que em si mesmos interessam pouco
a Nicholas Ray, lhe servirá para exaltar a juventude e a vulnerabilidade dos dois heróis,
descritos com este tom de lirismo terno e empolgante que nunca teve tanta força quanto
em seu estilo.

Como em muitos de seus filmes, trata-se aqui essencialmente de uma obra poética, ou
seja, uma obra na qual a figura da metáfora orienta toda intriga do filme, tanto em seus
desenvolvimentos quanto em seus parênteses. A desorientação, a inadaptação ao meio
(a um meio degradado, apodrecido) que caracteriza os dois heróis representa a melhor
imagem que Ray encontrou para exprimir o exílio interior do homem e este sentimento
de estranhamento (étrangeté) a tudo , e em primeiro lugar a eles mesmos, que sentem
certos seres ao longo de sua vida.
Nota: John Houseman, que na RKO deu a primeira chance a Nicholas Ray e foi um dos
produtores mais criativos de Hollywood recorda (em Cahiers du Cinema, 143) que o
filme foi conservado 3 anos nos arquivos da firma, assim como The set-up de Robert
Wise. “Finalmente, quando Hughes decidiu vender a companhia, tiraram estes filmes
dos arquivos e os colocaram no mercado”. They live by night foi completamente
ignorado em sua primeira estréia americana como um filme B, e só foi realmente
conhecido bem mais tarde, graças à TV. Neste ínterim, porém, a Europa havia
descoberto o filme e Nicholas Ray. É preciso acrescentar que, apesar de algumas
superficiais semelhanças de roteiro, o filme não tem nada a ver com You only live once
(que Ray não tinha ainda visto na época) nem com Gun crazy (Joseph Lewis, 1948).
Remake sob o título Thieves like us por Robert Altman em 1974.
Jacques Lourcelles. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

Os Amantes Crucificados

Chikamatsu Monogatari 1954 (Japão, 102’). Prod. Daiei, Kyoto (Masaichi Nagata).
Real. Renji Mizoguchi. Roteiro: Yoshikata Yoda, Matsutaro Mawaguchi, a partir
de Daikyoji Sekireki, de Chikamatsu Monzaemon. Foto: Kazuo Miyagawa.
Música: Fumio hayasaka. Int: Kazuo Hasegawa (Mohei), Kyoko Kagawa (Osan),
Eitaro Shindo (Ishun), Sakae Ozawa (Sukeemon), Yoko Imanmida (Otama),
Haruo Tanaka (Doki), Chieko Naniwam (Oko).

O feudalismo descrito por Mizoguchi: um universo onde cada um tem seu lugar fixado
na hierarquia dos deveres e do respeito, onde cada ato é realizado como se fosse em
praça pública, onde a ordem assim estabelecida tende a eliminar toda vida privada e
liberdade. Mas esta reaparece no amor e no jogo imprevisto das paixões. É uma
liberdade trágica que recria, entre os amantes, deveres e um respeito que tornam
irrisórios os determinados pela ordem social. No plano estético, semelhante universo
convém idealmente a Mizoguchi. Para ele, o “ser” dos personagens só pode existir na
intensidade e na tragédia. Cada gesto e entonação, cada sentimento dos dois heróis
surge em um presente que é a Eternidade, onde o anedótico, o superficial, o finito não
encontram lugar. Intensamente felizes e infelizes, os amantes crucificados transgridem
as leis de seu universo social e estão para além de todo e qualquer julgamento. Eles nos
aparecem como os únicos verdadeiros seres vivos do filme e, sob este título, exercem
fascinação tanto sobre os outros personagens quanto sobre o espectador. A arte, a
certeza (dir-se-ia que toda “falta de jeito”- maladresse- lhe é desconhecida), a
determinação tranqüila com os quais Mizoguchi põe em obra esta fascinação nos
enquadramentos, no grão da foto ou no jogo dos intérpretes fazem dele, ao menos em
seu último período, o cineasta por excelência: uma espécie de igual, de contemporâneo
na eternidade de um Goethe ou Shakespeare, aos quais, aliás, o material literário aqui
utilizado poderia ser comparado.
Jacques Lourcelles. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

O Anjo do Mal

Pick up on south street 1953. Usa (83’). Prod. Fox (Jules Schermer). Real. Samuel
Fuller. Roteiro: Samuel fuller, a partir de uma história de Dwight Taylor. Foto:
Joe Macdonald. Música: Leigh Harline. Int: Richard Widmark (Skip Mccoy), Jean
Peters (Candy), Thelma Ritter (Moe), Murvyn Vye (Capt. Dan Tiger), Richard
Kiley (Joey), Willis B. Bouchey (Zara), Milburn Stone (Winoki).

Admirável lição de cinema da qual cada plano é marcado pela sensibilidade vibrante de
Fuller, Anjo do mal é ao mesmo tempo o mais impessoal e mais autoral de seus filmes.
Ele se inscreve na veia documentária do filme noir, ou seja: é um filme que utiliza
diversas externas e descreve uma investigação que poderia dar um excelente artigo de
jornal.

Quando era jornalista, Fuller com frequência andou pelos meios marginais aqui
representados. Os méritos de Pick up são aqueles de um bom filme de ação, sacudidos
ainda pelo frêmito elétrico que Fuller impõe a todas as suas histórias: caracterização
aguda dos protagonistas secundários, e mesmo das "pontas" (o homem se
empanturrando de arroz que vende informações para Jean Peters e cata com pauzinhos
as notas que ela põe sobre a mesa); tempo vivo e às vezes ofegante; sábia utilização da
profundidade de campo e de longos movimentos de câmera, com o fim de dar à ação
sua dose justa de pimenta e realismo. (Aliás, o barroco de Fuller privilegia sempre os
planos muito comprimidos ou muito largos, em detrimento dos planos médios).

Não esqueçamos também o humor, um certo humor sardônico e insolente que não é
exclusividade de Fuller (ver os filmes de Don Siegel) e que tem um duplo efeito
contraditório, muito freqüente no cinema hollywoodiano do pós-guerra; num certo grau,
este humor distancia o espectador do filme. Mas ao mesmo tempo liga este espectador
de modo mais eficaz à ação, solicitando sua cumplicidade. Fuller, aliás, deixa de lado
este humor quando lhe parece adequado, ou seja, no meio da história.

Podemos julgar a respeito de seu talento, virtuosidade e controle do filme pelo fato de
que a cena mais engraçada e a seqüência mais trágica da intriga tenham por protagonista
o mesmo personagem, a velha Moe (interpretada pela perfeita Thelma Ritter, cujas
composições foram inesquecíveis em Lettres to three wives, The mating season de
Mitchell Leisen, 1951, e Janela indiscreta, etc).

Na primeira destas sequências, ela vende Widmark à polícia, segundo seus hábitos
“profissionais”. Na segunda seqüência, ela se deixa assassinar, velha mulher fatigada,
corajosa e íntegra à sua maneira, clamando pela morte como uma libertação.
Passemos ao aspecto mais estritamente “fulleriano” do filme. Toda a ação é vista
segundo a perspectiva de dois exluídos socialmente, dois personagens que “de nada
valem”, segundo os valores burgueses da sociedade; vistos, portanto, como traidores
destes mesmos valores.

A semelhança profunda que existe entre Jean Peters, a aventureira e Richard Widmark,
o batedor de carteiras (passado suspeito, dinamismo e vitalidade poderosos, situação
precária de sobrevivência na selva das cidades) torna crível a paixão fulminante – “coup
de foudre”- que eles, entre uma porrada e outra , passam a sentir um pelo outro. (Aliás,
eles não vão parar de “se pegar” ao longo do filme).

O ponto de vista de Fuller é o de mostrar uma certa solidariedade, uma certa integridade
entre estes personagens marginais, assumindo mais ou menos sua condição e adeptos
semi-conscientes de uma moral que eles poderiam facilmente voltar contra os pilares
sociais.

Personagens deslocados, desorientados, constantemente em desequilíbrio entre o


universo dos bons e dos maus e sem pertencer propriamente a nenhum desses, eles
permitem ao autor exprimir, no seio de seu pessimismo explosivo, uma visão moral e
anti-convencional do mundo.

O anti-comunismo tratado no filme serve de critério de julgamento acerca da relativa


putrefação dos personagens. Aqueles aos quais Fuller particularmente se identifica,
como o batedor de carteiras interpretado por Widmark, se postam no limite do mal
absoluto, mas jamais ultrapassam esta tênue fronteira. Quando são tentados a fazê-lo,
seu anjo bom os impede (cena onde Jean Peters arrasta Richard Widmark).

Talvez por serem estes personagens os mais “superexpostos”, são também - dramática e
moralmente - os mais tocantes.

Nota: Em uma sequência de emissão televisiva Cinéma Cinémas, Fuller comenta na


moviola os primeiros planos de seus filmes e indica, em especial, que a estação do
metrô e a cabine são, contra toda espectativa, cenários construídos no estúdio.
Jacques Lourcelles. Tradução de Luiz Soares Júnior.

Rio Bravo

Eu detesto westerns. Eis a razão de adorar Rio Bravo. O gênero me aborrece porque,
embora os sentimetos que ele retrate sejam admiráveis, quase sempre baseiam-se em
princípios, não em fatos. A discreta direção do filme está preocupada com algo além de
si mesma – problemas pessoais, políticos, técnica. Ela nega o espírito do verdadeiro
western e toma partido de seu inverso: ênfase, decoro, lirismo. Rio Bravo é também
basicamente antagônico a um Johnny Guitar. Não há nada intrinsicamente poético a par
do filme, embora o fim que resulte seja um tipo de poesia. Como sempre ocorre em
Hawks, as regras do jogo são respeitadas, pelo menos até o ponto definido por Hawks
como suficiente. Rio Bravo é um filme extremamente original, um faroeste sobre
confinamento em que não há índios, paisagens ou cenas de perseguição. Ele realiza algo
raro na redescoberta da essência do gênero, e o faz a partir de um caminho fora do
comum (considerando que Red River e Big Sky chegam ao mesmo resultado sem
romper com a tradição). E traz à mente a lembrança de um thriller como To Have and
Not Have ou de um melodrama como Barbary Coast. Mas por que Hawks assinaria este
western, afinal? Porque permitiria ao diretor apresentar ações que não são
ordinariamente vistas todo dia no mundo, pela natureza de seres fora do padrão. Eu não
sou um xerife, ou Angie Dickinson, ou um faraó; nem mesmo alguns de vocês. Hawks
ainda nos mostra que o atrativo de tais indivíduos não está relacionado com aquilo que
seria de se esperar (o mundo da aventura, o extraordinário). O Hawks classicista sempre
rejeitou estes valores, satirizou-os, conduziu-os ao ridículo, até mesmo ignorando-os em
The Thing. Contudo, aceita igualmente o trivial: um homem é um xerife do mesmo
modo que é um peão ou um condutor de metrô. Há vários disparos em Rio Bravo, mas
nenhum deles real, nenhum deles apresenta qualquer valor dramático verdadeiro. Os
incessantes disparos acabam somente por se tornarem monótonos, e eles eliminam todo
suspense. Cada gesto repetido anula seu predecessor. E a inteligência blasé de Wayne,
longe de contemplar o ato, por alguma razão imediatamente fixa a extensão de possíveis
conseqüências. Como Wayne o faz é uma questão de telepatia, similar ao modo prévio
dos heróis hawkianos possuírem olhos atrás de suas cabeças.
Luc Moullet, Cahiers du cinema, Julho de 1959. Tradução de Felipe Medeiros de
Morais.

Apocalypse Now (Eles Vivem, de John Carpenter)

O filme se abre num clima de errância que caracteriza o cinema de Carpenter e sua
filiação ao western e aos seus heróis solitários. O herói é John Nada (interpretado por
Rodney Piper, ex-lutador) que chega, bolsa nas costas, a Los Angeles para encontrar um
emprego. Nada, sem abrigo nem trabalho, é recebido por uma pequena comunidade de
desempregados e vagabundos, localizada próxima a uma igreja, onde entrará em contato
com resistentes que lutam impetuosamente contra invasores misteriosos que controlam
a população. John Nada é, evidentemente, o próprio John Carpenter que, desde seu
grande fracasso comercial, “Aventureiros do Bairro Proibido”, voltou à produção B
após seu purgatório em diferentes majors hollywoodianas. É assim, com nada, que
Carpenter recomeça. Se é possível arriscar esta analogia, é porque Carpenter seguiu um
trajeto (produção B-televisão-majors-produção B) comparável ao de seu personagem
em “Eles Vivem”.

Em 1982, Carpenter declarou a Cahiers du Cinéma (nº 339), a propósito de seus


primeiros passos com as majors: “Uma parte do charme de Assalto a 13ª DP ou de
Halloween devia-se ao fato de que não havia dinheiro suficiente para mostrar as coisas.
Ao contrário, hoje me dão dinheiro para mostrá-las, então é necessário fazê-lo”.

Mostrar: o próprio tema de “Eles Vivem” (e a função de seu herói); certamente um tema
cinematográfico, mas também, para Carpenter, uma preocupação moral que o aproxima
de Fritz Lang. “Eles Vivem” ilustra, na verdade, o velho adágio languiano segundo o
qual a aparência não é a realidade, o visível não é a verdade. Provocação de Carpenter
ao espectador que não consegue mais fazer a triagem das imagens que lhe são enviadas
cotidianamente. Nada é ao início bastante ingênuo, crédulo (como poderia ter sido
Carpenter no início dos anos 80 antes de seu fracasso nas majors): “Eu acredito na
América, eu estou dentro do sistema”, declara ao início do filme. Depois, graças aos
óculos escuros fabricados pela resistência (a produção B), espécies de “decodificadores
portáteis”, Nada terá a prova de que não se pode confiar no sistema: este que rege a
América de hoje é nada mais que o fruto de um vasto complô fomentado por
extraterrestres (auxiliados por humanos sem escrúpulos) que embrutecem a população
lhes transmitindo mensagens subliminares primárias (“não pensem”, “não reflitam”,
“submetam-se”, “consumam”, “reproduzam-se”, “o dinheiro é seu Deus”). Este horror
da realidade é mostrado bastante curiosamente através de imagens em preto e branco,
que revelam esta visão decodificada do mundo. Carpenter poderia ter recorrido a outros
estratagemas visuais: na verdade, este preto e branco pertence a um cinema de ontem
(Hawks, citado por Carpenter como um pai em sua cinefilia) que joga nova luz sobre a
face absolutamente inumana da América deste fim de anos 80. A fonte de emissão
destas mensagens é naturalmente a televisão e seus programas (outro câncer do cinema
americano) que a resistência tenta sabotar, em vão, através de transmissões clandestinas:
John Nada e seu colega negro Frank vão destruir, fuzis às mãos, a estação televisiva.
Assim, “Eles Vivem” é também a história de uma mini-insurreição que se pode
interpretar ao mesmo tempo como política e, em outra medida, como de cinefilia.

Esta gravidade da proposta de Carpenter nunca é, felizmente, explicitada verbalmente


no filme. Em total adequação com seu tema, Carpenter prefere mostrar, através de
longas seqüências quase mudas, a extensão do mal ao criar um sentimento de inquietude
e agonia constante, arte na qual ele se tornou mestre (assim como na utilização da trilha,
tão opressora quanto possível). O resultado de “Eles Vivem” é deslumbrante,
notadamente em seu controle do scope, formato ingrato que Carpenter emprega para
isolar os personagens alienando-os no quadro, acentuando este efeito ao fimá-los em
espaços fechados, com perspectivas de profundidade limitada (ruelas, corredores,
becos).

Quanto ao aspecto “guéguerre” que alguns censuram no filme (a luta a mão armada
entre os resistentes e os invasores), ele não faz com que Carpenter caia nas armadilhas
do filme de gênero (filme de ação). Todas estas batalhas são dominadas por uma
distância plástica que as transforma em verdadeiros ballets, ritmados por uma
montagem, em certos instantes, digna do melhor cinema soviético: um insert,
magnífico, dos canos das metralhadoras marca a maioria destas seqüências. A cena pivô
do filme, uma briga de mais de dez minutos entre John Nada e seu colega Frank (que
ele obriga a usar os famosos óculos) ilustra dois princípios hitchcock-hawksianos. O
primeiro, hitchcockiano, é que tudo deve ser utilizado para as necessidades de uma cena
(como o avião de “Intriga Internacional” que fumiga Cary Grant). O intérprete de Nada,
Rodney Piper, é um ex-lutador: e nesta lógica ele deve, a um momento ou outro, brigar.
O segundo, herdado das brigas iniciáticas dos filmes de Hawks ou Ford, é menos uma
homenagem que uma necessidade: trata-se, para Frank, o negro, de sofrer a dor a fim de
melhor ver. Diante da papa em que se tornou o cinema comercial americano, este mal é
necessário: já o era para o herói de “Comando Assassino” de Romero, e também o é
para aqueles de Carpenter. “Eles Vivem” soube reencontrar esta beleza e este discurso
da produção B americana, que se podia dar por desaparecidos: isto é excepcional.
Nicolas Saada, Cahiers du Cinéma, abril de 1989. Tradução de José Roberto Rocha.

Aquila Nera, Riccardo Freda

1946. Itália (106'). Prod: CDI/Lux Film. realização: RICCARDO FREDA. Roteiro:
Mario Monicelli, Stefano Vanzina e Riccardo FREDA, a partir da novela
Doubrovski, de Alexandre Pushkin. foto: Rodolfo Lombardi. Música:Franco
Casavola. Int: Rossano Brazzi (Vladimir Doubrovski), Irasema Dilian (Mascha
Petrovitch), Gino Cervi (Kirilla petrovitch), Rina Morelli (Irene), Harry Feist
(Serge Ivanovitch) Paollo Stoppa (um bandido), Inga Gort (Maria).

Terceira adaptação da novela de Pushkin “Doubrovski”, depois da adaptação de


Clarence Brown com Valentino (1925) e do russo Alex Ivanovsky (1937). Segundo
filme de capa e espada de Freda, O Águia negra participa do renascimento do gênero,
renascimento iniciado pelo diretor antes mesmo da queda do fascismo, com seu Don
Cesare de Bazan.

O filme é um imenso sucesso comercial: esteve em primeiro lugar no circuito italiano


de 1946, primeiro ano no qual a Itália retoma uma produção quantitativamente normal,
com 46 longas-metragens. Daí vem sua dupla importância para a obra de Freda,
importância esta confirmada por suas escolhas, e para a evolução de uma parte do
cinema italiano.

Diametralmente oposto ao neo-realismo nascente, assim como ao caligrafismo


moribundo de Soldati e Castellani, o espírito e o dinamismo da mise-en-scéne de Freda
abrem caminho a uma renovação triunfal do filme de aventuras, seguindo diretamente o
fio desta tradição heróica e espetacular, consubstancial a toda história do cinema
italiano.

Freda se serve do filme de aventuras para exaltar as forças da vida, ao contrário dos
cantos fúnebres do caligrafismo (basta comparar seu filme a Um colpo di pistola, outra
adaptação de Pushkin, dirigida por Castellani).

Freda se interessa também a dar todo o relevo possível a personagens de heróis


individualistas, forjando seus destinos com as próprias mãos e contra todos os
obstáculos. Nisso também ele se encontra na contra-corrente. Ele vira as costas ao
acinzentado (grisaille) unanimista do neo-realismo, à sua resignação mais ou menos
confessa, assim como à sua prodigiosa faculdade de atenção ao presente.

Antes de tudo, sua obra é a de um estilista de qualidades múltiplas, cujas preferências e


tomadas de posição vão frequentemente no sentido do gosto do grande público.

Sábio ritmo do découpage; estilização esplêndida da reconstituição plástica; cenas de


ação coletiva, duelos e perseguições com um frenético brio; fantasia e poder: por que
estas qualidades seriam exclusividade do cinema americano?

Toda a obra de Freda, desde suas origens, se rebela contra esta idéia. Este realizador
tentou provar que a velha Europa, mesmo recém-saída de um conflito mundial que em
muitos sentidos a desvitalizou, possuía ainda uma fonte ardente, que ela era capaz de
ilustrar de maneira criativa e vigorosa uma história que, tais como as de Dumas, Dante e
Hugo - adaptados em seguida pelo mesmo diretor-, lhe pertence de direito.

Nota: Cinco anos mais tarde, Freda vai dirigir uma continuação extremamente brilhante
para este filme, chamada La vendetta di Aquila Nera (1951).

Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

ADVENTURE IN MANHATTAN, Edward Ludwig

1936. USA (73’). Prod. Columbia. Realização: Edward Ludwig. Roteiro: Sidney
Buchman, Harry Sauber, Jack kirkland, baseado em uma história de Joseph
Krumgold, sugerida por “Purple and Fine Linen”, de May Edington. Foto: Henry
Freulich. Música:Maurice Stoloff. Intérpretes: Jean Arthur ( Claire Peyton), Joel
McCRea ( George Melville), Reginald Owen (Blackton Gregory), Herman Bing
(Tim, o rapaz do café), Victor Kilian (Marc Gibbs), Robert Warwick ( Phillip).
Antes de encontrar seu domínio de eleição - o filme de aventuras exóticas e solares -
onde triunfará nos anos 50, Edward Ludwig, um dos grandes diretores desconhecidos
do cinema hollywoodiano, hesitou longamente entre diversos gêneros. De 1932 a 1944,
vários de seus filmes (The man who reclaimed his head, 1934, ou The man who lost
himself, 1941) testemunham seu gosto vivíssimo pelo insólito, assim como sua
indecisão sobre o tipo de filme que melhor lhe convinha. Adventure in Manhattan é a
mais bem realizada obra desta época que conhecemos dele.

Ludwig toma como campo da ação (mas não é nada além de um campo, um cadre) este
meio de jornalistas exuberantes e tagarelas ,tão caro à Columbia dos anos 30, e desenha
as premissas de uma falsa comédia americana que é também uma falsa comédia policial.
O tema real da intriga é o combate sem misericórdia entre dois estetas, mutuamente
respeitosos, se enfrentando por meio de ficções e estratagemas interpostos: um
melodrama mórbido oculta uma farsa e uma pequena vingança; uma representação
teatral extremamente dramática facilita um assalto. O gosto de afirmar sua superioridade
conduz cada um dos protagonistas à solidão, altiva e criminal para um, irônica e
insolente para o segundo.

Vamos reencontrar algo deste orgulho aristocrático nos personagens de aventureiros


criados mais tarde por Ludwig. Aqui, o espectador é constantemente surpreendido por
uma intriga rica em sequências de fundo duplo, em enigmas engenhosamente
construídos e resolvidos. Ludwig avança a passos largos em sua narração, sem se
importar de uma verossimilhança imediata. Ele despreza igualmente sublinhar seus
jogos de prestidigitador, o que lhes aumenta a eficácia. Ludwig arrasta atrás de si um
espectador intrigado e maravilhado por esta facilidade, esta estranha sobriedade de
grande contador de histórias.

Jacques Lourcelles. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

FEMMES, FEMMES, Paul Vecchiali

1974. France - (120’). Prod. Unité Trois, Stephan Films (Jean Feixe t Paul
Vecchiali). Réal. Paul Vecchiali. Roteiro: Vecchiali , Nöel Simsolo. Foto: Georges
Strouvé. Música: Roland Vincent.Intérpretes: Hélene Surgère (Hélène), Sonia
Saviange (Sonia), Michel Delahaye (o médium), Noel Simsolo (Ferdinand), Michel
Duchaussoy (Lucien), Huguette Forge (a cliente).

A obra de Paul Vecchiali se encontra repartida - ou talvez fosse melhor dizer


“dividida”- entre uma nostalgia por um cinema popular, tal como o que se praticava na
França dos anos 30, e pesquisas resolutamente experimentais e de vanguarda. Femmes,
femmes representa uma síntese improvável e insólita entre estas duas tendências,
unificadas no roteiro, ou mesmo na imagem, pelos temas, explorados até a náusea, do
fracasso, da velhice, da decadência e da morte. Tudo isto num universo fechado (huis-
clos) que se quer expressamente "à la Cocteau”.

Fascinado por estes temas ao ponto de neles submergir, Vecchiali acumula aqui uma
série de elementos que parecem reunidos com o propósito de afastar o público: preto e
branco sujo e débil, lentidão e ausência de ação, artifício do jogo e da dicção, irrealismo
exagerado dos personagens secundários, incongruência dos números musicais ( às vezes
muito bem realizados), atmosfera constantemente lúgubre e mórbida.

Excessivamente distanciado e ao mesmo tempo voltado sobre si mesmo, o filme, assim


como seus personagens, vive da nostalgia do passado, ao invés de simplesmente viver.
Ele é a prova de que, no cinema, assim como na vida real, é impossível ressuscitar aos
mortos.

Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

THE NARROW MARGIN, Richard Fleischer

1952. USA (71’). Prod: RKO (Stanley Rubin). Real: Richard Fleischer. Rot: Earl
Fenton, baseado em uma história de Martin Goldsmith e Jack Leonard. Foto:
George E. Diskant. Int: Charles Mcgraw (Walter Brown), Marie Windsor (Mrs.
Neil), Jacqueline White (Ann Sinclair), Gordon Gebert (Tommy Sinclair), Queenie
Leonard (Mrs. Troll), David Clarke ( Joseph Kemp) Peter Virgo (Densel), Don
Beddoe (Gus Forbes), Paul Maxey (Sam Jennings), Peter Brocco (Vincent Yost).

Laconismo, eficácia, tensão, mal-estar, ação incessante e sem tempos mortos: The
narrow margin leva todas estas noções ao seu limite extremo de virtuosismo,
especialmente devido à exigüidade do cenário do trem, onde se desenrolam três quartos
da ação, e constitui assim uma espécie de compêndio (précis) da mise-en-scéne
hollywoodiana, tal como a que se praticou em seu mais alto nível no filme noir e nos
filmes B. A espantosa perfeição formal do filme marca o fim do longo aprendizado
(uma dezena de filmes em cinco anos) sofrido por este superdotado da mise-em-scéne
que já à época era Richard Fleischer.

The narrow margin é, com efeito, seu último filme para a RKO, (onde ele realizou o
essencial de seus primeiros filmes), e o anti-penúltimo filme em preto e branco em
formato normal desta companhia (antes da deliciosa comédia realizada por Stanley
Cramer, The happy time).

Apesar de seu brilhantismo, o filme está longe de ser um puro exercício de estilo. É
também um completo filme de autor, sobretudo por esta ausência voluntária de humor e
de ambigüidade moral no herói, através da qual Fleischer afirma suas escolhas e o tom
de gravidade que ele pretende dar à sua história.

Por outro lado, The narrow margin mostra estranhas semelhanças com obras muito
posteriores de seu autor, como The new centurions (1972). Nos dois filmes, é o mesmo
aspecto trágico, absurdo, improvável e suicida da condição policial que é designado. O
que acontece em The narrow margin antes e durante a viagem de trem se assemelha
com efeito a uma terrificante tragicomédia de erros. Gus Forbes, o parceiro do herói,
morre por nada, assim como a mulher policial (Marie Windsor), que teria dado sua vida
para testar a honestidade de seu colega.

Quanto à verdadeira Sra. Neil, esta não tinha necessidade de ninguém para chegar sã e
salva em Los Angeles, e é justamente seu encontro (fortuito) com o policial que põe em
perigo sua vida! Diante desta impossibilidade real de agir, o policial interpretado por
Charles McGraw tenta sobreviver e realizar seu trabalho com esta obstinação taciturna e
petulante que encontraremos com frequência nos heróis de Fleischer, notadamente nos
personagens interpretados por George C. Scott em The new centurions e The last run.

No que diz respeito a The narrow margin, este pessimismo não é apenas a característica
convencional e estrutural de um gênero mas o índice certo, embora tratado de forma
menor e com uma grande modéstia estética, de uma grave crise moral da civilização
urbana americana, crise esta da qual os filmes de Fleischer , entre outros, são os
perturbadores espelhos.Como em muitos filmes de Fleischer, este compêndio de mise-
em-scéne é, também e sobretudo, um compêndio (précis) de decomposição.

Nota suplementar:

Impressionado pelo filme, Howard Hughes, então chefe da RKO, propôs refazê-lo a
Fleischer com um orçamento muito maior, tendo como stars Robert Mitchum e Jane
Russell. Isto não interessou a Fleischer, o que lhe custou um imenso atraso no
lançamento do filme. Realizado em 13 dias em 1950, o filme só foi lançado na
primavera de 1952, e obteve um imenso sucesso.

Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

O Monstro é quem Teme: The Elephant Man, David Lynch

Por Serge Daney

O monstro é quem teme

Este filme é singular em vários sentidos. E primeiramente por causa daquilo que David
Lynch realiza a partir da idéia de medo: o medo do espectador (nossos) e aqueles
pertencentes às personagens, incluindo o de John Merrick (o homem elefante). Deste
modo, a primeira parte do filme, até a chegada ao hospital, funciona um pouco por
assim dizer a exemplo de uma armadilha. O espectador é induzido a pensar que mais
cedo ou mais tarde ele terá que testemunhar algo insurpotável ao defrontar-se com o
monstro. Um grosseiro saco com um buraco para olhar é tudo que o separa do horror
que ele conjetura. O espectador é conduzido ao filme à maneira de Traves, a partir do
ângulo do voyerismo. Ele presta-se (ainda do mesmo modo que Treves) a ver uma
aberração (1): este homem elefante sucessivamente exibido e ignorado, abrigado e
agredido, sumariamente visto em uma espelunca, uma “excentricidade” para os
cientistas, levado e escondido ao hospital real de Londres. E quando o espectador o vê
afinal, ele é tão desapontador que Lynch simula praticar o jogo do filme de horror
clássico: noite, corredores desertos de hospitais, nuvens movendo-se rapidamente em
um céu carregado, e repentinamente neste ponto surge a tomada de John Merrick
levantado em sua cama, acometido de um pesadelo. O espectador o vê – realmente –
pela primeira vez, mas o que ele também vê é que aquele monstro o qual espera-se
temer é quem sente medo. É neste momento que David Lynch liberta seu espectador da
armadilha primeiramente estabelecida (a armadilha do “algo a ser visto”, como se
Lynch estivesse dizendo: você não é aquele que importa, é ele, o homem elefante; não é
o teu medo que me interessa mas o dele; não é o teu medo de vir a se chocar que eu
quero manipular mas o medo dele de assustar, o medo dele em se ver no olhar de outro.
A vertigem toma outro partido.

O salmo é um espelho

O Homem Elefante é uma série de ações bem-sucedidas de théâtre, algumas divertidas


(a visita da princesa ao hospital como uma “dea ex machina”), outras mais
transtornantes. Nós nunca sabemos como uma cena pode terminar. Quando Treves
deseja convencer Carr Gomm, o diretor do hospital (magnificamente vivido por John
Gielgud), de que Johm Merrick não é um incurável, pede a este que memorize e venha a
recitar em seguida o início de um salmo: mas tão logo os dois médicos deixam o
recinto, eles ouvem Merrick recitar o final do salmo. Impacto, coup de théâtre: este
homem o qual o próprio Treves considera um cretino sabe a bíblia de cor. Mais tarde,
quando Treves o apresenta a sua esposa, Merrick não pára de surpreendê-los ao mostrar
o retrato de sua própria mãe (ela é lindíssima) e por ser o primeiro a oferecer um lenço à
esposa de Treves, que repentinamente derrama-se em lágrimas. Há um discreto humor
na forma de posicionar o homem elefante como o único que sempre preenche a foto na
qual se configura, o único que marca a tela. É também um modo bastante literal e de
nada psicológico de conduzir a história: com dois saltos e uma lógica significante.
Assim John Merrick encontra seu lugar no painel da (alta) sociedade inglesa, vitoriana e
puritana, pela qual ele torna-se uma atração obrigatória. Ele é somente algo que esta
sociedade precisa, sem o qual ela não pode ser completa. Mas o que exatamente? O fim
do salmo, o retrato, o lenço, o que eles são no fim das contas? Quanto mais o filme
progride, mais claro fica para aqueles ao redor dele: o homem elefante é um espelho.
Eles vêem menos e menos, mas eles mesmo se vêem mais e mais em seu olhar.

Os três olhares

No curso do filme, John Merick é o objeto de três olhares. Três olhares para três eras de
cinema: burlesca, moderna, clássica. Ou: a funfair, o hospital, o teatro. Há
primeiramente o olhar inferior, a observação das pessoas humildes, e a aspereza de
lynch, uma observação precisa, sem afabilidade, sobre este olhar. Há um bocado de
carnaval na cena onde Merrick é embriagado e raptado. No carnaval, não há nenhuma
essência humana a ser representada (equiparado com a face de um monstro), há somente
corpos tratados com somenos importância. Então há o olhar moderno, o olhar fascinado
do doutor (um notável Anthony Hopkins): respeito ao próximo e má consciência,
mórbido erotismo e epistemologia. Depois de cuidar do homem elefante, Treves se
resguarda: é a primeira luta do humanista (à la Kurosawa). Finalmente, há o terceiro
olhar. Quanto mais o homem elefante é popular e celebrado, quanto mais outras pessoas
lhe visitam têm tempo para cobrirem-se numa máscara, uma máscara de cortesia que
dissimula aquilo que eles sentem a respeito de sua visão. Eles vão ver John Merrick
para pôr à prova esta máscara: se seus medos os traíssem, eles viriam o reflexo dentro
dos olhos de Merrick. É deste modo que o homem elefante é o espelho deles, não um
espelho onde eles pudessem ver e reconhecer a si mesmos mas um espelho para
aprender a atuar, dissimular, mentir e até mesmo mais. No começo do filme, havia a
abjeta promiscuidade entre a aberração e o homem a exibi-lo (Bytes), até que Treves
fica mudo, extático horror no ambiente. No fim, é a Sra. Kendal, a estrela do teatro de
Londres, que decide, quando lê um jornal, tornar-se amiga do homem-elefante. Numa
cena bastante desconfortável, Anne Bancroft, como a estrela convidada, vence uma
aposta pessoal: nenhum músculo de sua face estremece quando é apresentada a Merrick,
a quem fala como se fosse um velho amigo, indo tão longe naquela que até o beija. O
ciclo se fecha, Merrick pode morrer e o filme pode terminar. Sobre uma mão, a máscara
social foi inteiramente reconstituída; sobre a outra mão, Merrick ao menos pôde ver no
olhar do outro algo totalmente diferente do reflexo da aversão que ele inspira. O quê?
Ele não poderia dizer. Ele compreende o cúmulo do artifício pela verdade e claro que
ele não está errado - desde que nós não estejamos no teatro.

O homem elefante cultiva dois sonhos: dormir sobre suas costas e ir ao teatro. Ele irá
realizá-los na mesma noite, um pouco antes de morrer. O final do filme é bastante
comovente. No teatro, quando Merrick se esforça de sua cabine para conferir quem lhe
dirige aplausos por vê-lo, nós realmente não temos a mínima idéia do que se passa em
seu olhar, nós não sabemos aquilo que ambos vêem. Lynch conduz assim a remição de
um pelo outro, dialeticamente, monstro e sociedade. Ainda que somente no teatro e por
uma única noite. Não haverá outra representação.

(1) Em inglês no texto, freak


Cahiers du cinéma, n° 322, Paris, 1981. Tradução de Felipe Medeiros de Morais.

O ano passado em Marienbad, Alain Resnais

Veneza 61 (...) foi dominado muito claramente por O ano passado em Marienbad, e é
justo que o filme de Resnais tenha obtido o grande prêmio. (...) Se por um lado eu
reconheço a perfeição do trabalho de Resnais, por outro eu confesso ser, cada vez mais,
violentamente contra o princípio que preside sua concepção. Eu não acredito na
penetração da câmera no mundo mental. Aí está a fonte de todas as arbitrariedades.
Nada é mais inquietante que ver desenrolar-se diante de si a representação da
consciência vivida, interpretada e entregue segundo uma lógica objetiva. Há aí uma
contradição interna entre a forma do filme que se apresenta como um jogo puramente
espirituoso, e seu objetivo que é de explorar as regiões misteriosas do imaginário. Ora,
eu acredito que é principalmente no cinema que se deve aplicar este programa que
Baudelaire assinava na pintura: trazer a tona o que há dentro pelo que há fora. Estimo
que um Mizoguchi ou um Lang tenham indo mais longe no imaginário que todos os
Maffenbad do mundo, e suas obras permanecem abertas, ao passo que o filme de
Resnais se fecha e limita-se a si mesmo.

No fundo, Marienbad não é nada mais que uma versão moderna, talentosa, inteligente,
de uma extrema beleza, e tudo mais o que se queira, de Caligari. De forma similar, e
porque nos é necessário penetrar no mundo mental, a deformação das aparências é
exigida. Em Marienbad, esta deformação toma corpo, certamente, mais sobre o tempo
que sobre o espaço, mas isto não impede que se trate de um cinema inteiramente
fundado sobre a deformação, os procedimentos e as trucagens. O "Tout-Cinéma 1925"
parece ter se encontrado voluntariamente neste hotel frio, lúgubre, sinistro, por onde
circulam fantasmas: o expressionismo caligaresco margeia um surrealismo que ousa,
ele, na falta dos personagens, dizer seu nome, e a montagem por atração à la Eisenstein,
que faz de cada plano um bloco estático, corteja o cinema puro onde os movimentos de
aparelho são desprovidos de qualquer função que não aquela da sensação que procuram.
Só falta o cinema-olho, abandonado para Jean Rouch. Por que milagre, dito isto, os
erros do passado se tornariam hoje virtude única? A via de Resnais é aquela dos
"grandes à margem" do cinema: Eisenstein ou Welles. Assim que ela atinge tal nível,
ela é em si admirável. Mas em si somente. O pior dos cineastas, se inspirado nos
princípios cinematográficos de Lang, Hawks, Walsh, etc., fará um mau filme, mas
visível. Ao contrário, um filme influenciado por Resnais tem toda a chance de ser
invisível e insuportável. Quantos filhos de Hiroshima, idiotas e monstruosos, nós já não
temos a lamentar? No entanto, estes serão anjos de beleza em comparação com os filhos
de Marienbad.

JEAN DOUCHET (Trecho da cobertura do festival de Veneza de 1961)


Texto contido nas páginas 198-200 do volume 78 da coleção Petite anthologie des
Cahiers du cinéma: Jean Douchet "L'Art d'aimer". Tradução feita por José Roberto
Rocha.

Hiroshima, meu amor


Pode-se imaginar Vélasquez alcançando a duras penas seu "Las Meninas" e Picasso de
pronto já bordando por cima suas espantosas variações? Certamente que não. Ora, é um
pouco o que acaba de se produzir. Com Hiroshima, meu amor, Alain Resnais tira o
cinema do século XVII para o mergulhar, sem transição, em pleno coração do século
XX.

O cinema, em nossa época de formalismo rei, permanecia o último refúgio do


classicismo. Não por vocação ou por privilégio especial. Mas é o apropriado para uma
arte virgem, tendo atingido a maturidade de sua técnica, se desabrochar na plenitude de
seu modo de expressão, esgotar todo campo possível de sua forma e, pelo feliz
casamento entre a forma e o fundo, oferecer-se o luxo de - se fixar como objetivo -
agradar imediatamente. A era de ouro clássica é este momento privilegiado onde uma
arte cobre a extensão completa de suas virtualidades, onde cada um de seus fragmentos
se cimenta naturalmente em um todo.

O modernismo começa a partir do instante em que os artistas se vêem constrangidos a


exprimir novas maneiras de pensar, descobrir minas que a era de ouro clássica se
contentava em guardar sem explorar. Isto é dizer, para continuar no terreno da pintura,
que o impressionismo, depois o cubismo, depois o abstrato, se encontram já implicados
na obra de Titien ou de Vélasquez, mas não o inverso. Assiste-se, então, a uma série de
fragmentações mais e mais encadeadas, cada escola moderna se tornando clássica para a
seguinte. Segundo esta tese, o drama do artista moderno consiste em tentar reencontrar a
plenitude e a totalidade de sua arte partindo apenas de fragmentos. Seu objetivo não é
mais então o de agradar, mas de alcançar isto, custe o que custar.

O filme começa com a imagem de dois seres abraçados e nós iremos assistir à sua
dolorosa separação, à dissociação progressiva destes dois seres, uma francesa e um
japonês. Ela, Emmanuelle Riva, porque não tem nome no filme, veio a Hiroshima como
atriz contratada para trabalhar em um filme internacional sobre a paz. Ela encontrou este
japonês e o que devia ser apenas passageiro torna-se amor violento. Nós somos
convidados a assistir à tomada de consciência deste amor.

Ora, este aí desperta em Emmanuelle Riva a lembrança de um outro amor, também


violento, que em Nevers ela experimentara, durante a guerra, por um alemão.

Pouco a pouco, ela evoca a história deste amor: a morte de seu amante logo antes da
Liberação, sua própria humilhação em praça pública, seu claustro na casa de seus pais,
aprisionada um inverno inteiro no porão ou em seu quarto. E suas lembranças lhe são
arrancadas na ordem afetiva, as mais penosas só vindo por último.
Com Hiroshima, meu amor, Alain Resnais coloca em termos de cinema as
preocupações estéticas modernas das outras artes. Ele rompe com a moldura do relato
narrativo e introduz a técnica romanesca cara à Faulkner: o passado dos personagens
ressurge em lufadas na superfície do presente, e também assim, envenena este presente.
Por outro lado, introduzindo o cinema dentro do cinema, Resnais se une aos trabalhos
literários mais recentes de um Klossowsky ou de um Borges: ele nos oferece a reflexão
num segundo grau, ele nos convida ao jogo do espelho. (Se nós quisermos confirmar a
tese inicial pré-citada, poder-se-ia dizer que Cervantes, pela sua maneira de conceber o
segundo tomo de Don Quixote já esboçava este jogo de espelho.) Da mesma forma, um
musicista poderia se deliciar encontrando no ritmo e na montagem dos planos de
Hiroshima, meu amor, a influência de Stravinsky. Enfim, pictoricamente este filme
evoca o cubismo, Picasso e Braque.
Moderno, Hiroshima, meu amor o é ainda pelo seu tema. Tragédia da impossibilidade
da união e da plenitude de si. Trata-se da vitória do despedaçamento, da dissociação, do
fragmentário. É impossível ser totalmente um, pois nós vivemos no instante e cada
instante nos condena ao nascimento, mas também à morte de uma parte de nós mesmos.
Este é talvez o símbolo profundo da primeira imagem do filme. Não se vê nada além de
dois corpos abraçados, indistintos um do outro e cobertos pouco a pouco por uma chuva
de cinzas. Esta cinza, podemos imaginar como aquela mesmo da bomba atômica, quer
dizer, como aquela dos vestígios da guerra que ainda recaem no presente e o
contaminam. Mas eu prefiro ver aí o símbolo desta dialética do instante: no mesmo
momento em que estes seres "se incendeiam um pelo outro" (como é dito em certo
momento no texto), a cinza deste fogo, a cinza do esquecimento já os recobre.

A partir desta imagem-chave, o filme se organiza seguindo a figura geométrica de um


cone cuja base será a distância que separa o japonês e a francesa e que se traduz de uma
forma puramente espacial pela corrida de um em direção ao outro através de Hiroshima.
Os fragmentos do passado de Emmanuelle Riva formaram um bloco cada vez mais
compacto que separa irresistivelmente os dois amantes. Revivendo este passado, e o
imiscuindo no presente, Emmanuelle Riva toma consciência de que ele não é mais que
uma lembrança, que ele está morto nela, que ele está esquecido. Assim sendo, este amor
atual entre ela e o japonês é também destinado ao esquecimento, à morte, ele é
irremediavelmente condenado. "Eu sei que eu te esquecerei, eu sinto que eu já te
esqueço" grita ela ao fim do filme para o japonês.

Estando seu filme baseado na dialética, Resnais se obrigaria em exprimi-la na forma, o


duplo movimento de negação e afirmação. Ora, seu sucesso é total. Ele o atinge tão bem
em seus movimentos de aparelho quanto em sua montagem. Assim este marcante
travelling de recuo, que percorre Hiroshima durante o comentário de Emmanuelle Riva,
nos faz compreender que ele corresponde ao tempo mesmo do ato de amor. Pela
velocidade deste travelling, nós revivemos a sensação de embriaguez e de comunhão
que toma nossa heroína e, ao mesmo tempo, a imagem da distância percorrida desperta
em nosso espírito a idéia de fuga que a arrebata então.

A montagem de Resnais, mesmo podendo evocar as teorias musicais de Stravinsky,


prolonga sobretudo as teorias de Eisenstein sobre montagem atrativa. Nada aqui de
muito impressionante, já que Resnais como Eisenstein baseiam suas estéticas na
dialética marxista. Porém, Resnais insiste mais sobre seu duplo movimento simultâneo e
contrário. Por exemplo, assim que Emmanuelle Riva vê a mão do japonês menear-se
enquanto ele dorme, esta imagem faz surgir com força a imagem da agonia do alemão,
mas mesmo sendo uma imagem que nasce com incômodo, é de pronto rejeitada.

Ainda dialética esta proposta poética de Resnais acerca da doçura terrível, que se
encontra incluída no próprio título. Hiroshima, meu amor, dois termos que formam algo
como uma mistura destoante. Como em Picasso (não esqueçamos seu curta-metragem
sobre Guernica), Resnais adora mostrar simultaneamente a face do terrível com seu
perfil de doçura. Portanto, estas imagens horríveis de feridos radiativos acompanhadas
por um comentário lírico e bucólico sobre a primavera e o renascimento das flores em
Hiroshima.

Hiroshima, meu amor é um filme dez anos à frente. Ele desencoraja toda crítica. Qual
será sua influência sobre o cinema? É o fim do classicismo cinematográfico? Ou, ao
contrário, pela própria perfeição de seu aspecto inovador, ele condena antecipadamente
toda veleidade em perseguir este caminho? Tantas questões que só o tempo poderá
responder.

JEAN DOUCHET (Arts nº 727, junho de 1959)


Texto contido nas páginas 278-282 do volume 78 da coleção Petite anthologie des
Cahiers du cinéma: Jean Douchet "L'Art d'aimer". Tradução feita por José Roberto
Rocha.

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