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Jorge Mourão
TRAGÉDIA
NA SEITA DO DAIME
Imago
Titulo original:
Tragédia
na Seita do Daime
Capa:
OVIDIO VIELLA
ClP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Mourão, Jorge.
Tragédia na Seita do Daime/Jorge Mourão.
Rio de Janeiro: Imago Ed.1995.
1. Santo Daime. 2. Alucinógenos e experiências religiosas. 3. Seitas - Brasil. I.
Titulo.
COO 299.8 COU 2998
Reservados todos os direitos.
Nenhuma parte desta obra podem ser reproduzida par foto copia, microfilme,
processo foto mecânico ou eletrônico sem permissão expressa da Editora. 1995
IMAGO EDITORA LTOA.
Rua Santos Rodrigues, 201-A - Estácio 20250-430 - Rio de Janeiro - RJ Tel.:'(021)
293-1092
Impressa no Brasil
Ao Jambo, que, corajoso,
perdeu a vida mas não entregou a alma
Em primeiríssimo lugar, a meu primeiro filho, Koki Aymara, e à sua mãe, Teresa,
sem os quais seria praticamente impossível redigir este difícil relato.
A Joel Macedo, cuja amizade e excelência em jornalismo têm sido de vital
importância.
Ao Dr. Helio Rocha, pela paciência em sua difícil posição. Aos doutores Eduardo e
Célio pela atenção.
Ao amigo e jornalista Rubinho Gomes, pela sua eloqüente indignação.
Ao Joca, por juntar forças.
"Nossos mortos não pedem vingança só justiça
de algum jeito eles sempre retornam.
Vocês que perambulam pelos mares e pelo oceano prestem atenção a tudo que
de sua entranha aflore: algum sinal, víscera, qualquer indício estranho talvez uma
mão crispada, roxa segurando um bouquet de flores encharcadas.”
(Alex Polari, in Camarim do Prisioneiro, Ed. Global, 1980).
SUMÁRIO
Iniciação ......................................................................... 13
Fuga ................................................................................ 29
Tragédia ......................................................................... 35
Representação ................................................................ 55
Reação ........................................................................... 63
Novas Forças ................................................................. 69
Continuação .................................................................... 105
Notas .............................................................................. 109
Dados Biográficos .......................................................... 113
INICIAÇÃO
No fim de 1990, após passar o natal com a família, Jambo parte para Mauá.
Queria passar o reveillon em solo novo. Regina e Bruce pertenciam à seita. Nada
mais natural que Jambo passasse a freqüentá-la e experimentasse o daime. Em
sua primeira experiência, passou mal. Seria is to um sinal de problemas mentais?
"Senti os pés feito chumbo e pouquíssima percepção do meu corpo da cintura
para cima. Procurei um lugar para sentar, com medo de cair. Uma espécie de
estalo no ouvido esquerdo como quando eu ando de avião... Zonzo, com vontade
de vomitar, estômago embrulhado... Eu me sentia péssimo... Fui andando meio
sem rumo. Cólicas vontade de cagar. Pior que isso: a sensação de que eu já podia
ter cagado e todo mundo me olhava divertido. Completamente desorientado ... Fui
ao mato e nada de sair. Senti-me próximo à exaustão e uma bad trip de ácido."
Está é a descrição da primeira viagem, não do Jambo, mas de Alex Polari, um dos
atuais lideres da seita. 4 Seria isto um sinal de problemas mentais?
Depois de algum tempo, Jambo mudou-se da casa da Regina, que não morava na
comunidade por ter algumas divergências, para dentro do Céu da Montanha,
nome que os daimistas dão à extensa área que ocupam. Parecia bem integrado.
Nas notícias que nos mandava, falava que estava trabalhando na marcenaria -
sempre foi muito hábil com as mãos - e que estava até guardando um dinheirinho.
Fui visitá-lo em agosto de 1991 com Koki, recém-chegado de uma estada nos
Estados Unidos. Jambo pareceu-me um pouco ausente, olhar de paisagem,
dizendo que estava tudo bem, não precisava de nada. Relatei o fato a Ivanete,
acrescentando que
a impressão geral que me deram todos os daimistas com que eu tivera contato era
a de que pareciam zumbis, com aquele olhar perdido. 0 mesmo olhar eu já
observara no pessoal da cientologia, do Rajneesh, do hare krishna.
É um olhar vazio, perdido, abobalhado. Os adeptos acreditam que estão
iluminados, plenos de divindade. A impressão que passam para nós, simples
mortais, é que estão vazios de vida. Dead-face, expressão usada por um cientista
que estudou os efeitos do abuso da ayahuasca, descreve perfeitamente o efeito
de "aniquilamento da pessoa", recurso usado pelas seitas para submeterem
neófitos ao seu domínio.
Técnicas da Seita
É escalado para cumprir serviços para a comunidade, o que parece razoável, mas
que na verdade e uma forma de controlar suas atividades. Uma vez escalado
qualquer objeção é encarada como sinal de desajuste com o ambiente "perfeito".
Insistências são doenças. Dissidências, loucura.
Toda seita tem uma ritualística de indução à dissociação temporal-espacial, o que
provoca confusão e embotamento da percepção e de análise. 0 que varia são os
artifícios usados: relaxamento, recitação de mantras, meditação, ritmos
monocórdios, drogas. Após determinado tempo, as capacidades de distinção,
discernimento e critério da pessoa ficam profundamente abaladas.
Persegue-se o atrofiamento da identidade por mudança de nomes, utilização de
uniformes, ênfase no geral sobre o individual. Utilizam-se códigos a que só os
iniciados têm acesso. Instituem-se prêmios para as atitudes de acordo com o
regimento e castigos para os que ousarem duvidar. Instigam-se ideais heróicos,
feitos extraordinários que, evidentemente, só serão atingidos com a ajuda da seita.
Encoraja-se a renuncia do "passado não iluminado": estudos, amigos, família,
bens materiais (de preferência doando-os para a seita . ). Manipula-se a
sexualidade, estimulando-se a promiscuidade (como os Meninos de Deus e
Rajneesh), ou impondo "abstinência" que geralmente só são validas para os
discípulos, não para os mestres.
Uma ênfase especial é dada ao sentimento de que os membros do "clube" são
eleitos especiais. E ai de quem, uma vez admitido, abre dissidência. É
sistematicamente denegrido e ameaçado de terríveis castigos.
Ou seja, as pessoas têm uma "profunda liberdade de sentir e uma total submissão
no agir”. 6
Mas naquela época eu ainda não tinha motivos para me aprofundar em
investigações. Jambo parecia firme em sua escolha de permanecer na
comunidade. Até então, eu não
havia tido notícia de nenhuma impropriedade deles, a não ser as esquisitices
notórias, tanto que não os classificava ainda como seita. Militante de uma geração
de lutas libertarias, não me sentia tentado a exercer nenhuma forma de repressão
à escolha de um rapaz esperto, com mais de 18 anos, ou de quem quer que
achasse que se encharcar de uma substância psicoativa era seu caminho neste
planeta. A minha posição há muito era a do respeito pela escolha do modo de vida
de qualquer pessoa maior de idade, desde que essa liberdade não constranja a de
outrem. As drogas são experiências que se pode ter ou não. Não são nem
apropriadas e muito menos remédio para todo mundo. Mas também não conheço
nenhum principio geral adequado para limitar o acesso a elas. Eu já tinha tido
bastante experiência no assunto, em quatro continentes, para ter certeza disto.
A maconha e a cocaína conheci na adolescência, nas ruas
da zona suI do Rio. Cheguei a levar a erva para a Argentina em 1964, quando do
primeiro pinote para fora da ditadura que se instalava no Brasil. No segundo, em
1967, já na Europa, fui apresentado ao haxixe. Em maio de 68, durante a
revolução estudantil na França, a Sorbonne - sede do operacional do movimento -
estava também ocupada pelo aroma característico da cannabis.
Após a traição ao movimento político, tomamos o rumo das Índias à procura de
temperos espirituais e especiarias alteradoras da consciência. No que toca à
religiosidade, tive contato com o ashram do Maharishi Mahesh Yogi - guru dos
Beatles e de tantos outros - e com um mestre muito especial. Mustaram Baba (em
sanscrito, AqueIe que não se preocupa mais) chegava pelas 4 horas das tardes de
Rishikesh nas areias da margem do Ganges, envolvido apenas em uma manta, e
aguardava quem se dispusesse a participar da reunião informal. Um discípulo seu
distribuía pedacinhos de banana e amendoim, e servia de interprete para
eventuais perguntas, que eram raras; permanente era a agradável e forte vibração
da presença de Baba, realçada pela suave música que outro discípulo executava
numa cítara. Poucas vezes na vida senti tão profunda, simples e legitima a
presença de Deus.
Com relação às drogas, o oriente em geral e a Índia em particular foram uma
grande escola prática. Encontrava-se de tudo a preços ridículos, até a cocaína
puríssima do laboratório Merck. 0 uso que se fazia, como sempre, dependia da
formação de cada um. Encontrei muitas pessoas com as suas consciências
ampliadas na procura de novas formas de vida. Encontrei também execráveis
junkies fantasmagorizados pelas suas viagens de morte.
A procura da qualidade das substâncias fez com que algum de nós se envolvesse
na distribuição. 7
Ainda em 1991 levei sua mãe e sua irmã para passarem o natal com de. 0 pessoal
da seita "estranhou" muito que eu não fIcasse, apesar das insistências. Estavam
loucos para que eu me enturmasse na onda deles. Só que a minha estrada falou e
fala mais alto...
FUGA
Dia 21 de maio, par volta das sete horas da manhã, jambo nos liga aflitíssimo de
Resende. Tivera de fugir da comunidade de Mauá porque não queriam deixá-lo
sair! Tinha ligado para a Bahia, para onde pensava que tínhamos voltado
(felizmente tinha convencido Ivanete a ficar no Rio), e lá tinham dado nosso novo
telefone. Estava nervoso, mas aliviado por nos saber no Rio. Pegou o primeiro
ônibus.
Ao comunicar aos daimistas que estava de partida, a reação foi radical. Seguindo
o catecismo tradicional das seitas, disseram que ele não estava capacitado a
deixar a seita (imaginem, ele tinha estado dias antes com a família no Rio), que
estava desequilibrado mentalmente. Falaram até em amarrá-lo. Como evidencias
dessa sentença, apontavam mania de limpeza, reclamações contra o barulho da
marcenaria e insistência em falar português correto. Foi quando eu soube que o
código de comunicação estabelecido (um dos artifícios clássicos das seitas) era o
de falar caboclês, macaqueando a concordância peculiar praticada na Amazônia,
que tem sua propriedade, como toda manifestação microcultural, em seu lugar de
origem.
O contrabando cultural não passa por cima de convenções, fronteiras ou leis. Ele
atropela a legitimidade e a dignidade. Ao deslocar o culto do daime da Amazônia
para Mauá e alhures, a seita esta praticando a mesma violência que os jesuítas
inauguraram nestas plagas, ao criar o pecado abaixo do equador. Com a
agravante de usar uma hóstia alcalóide de muito maior poder químico-sacramental
e que, como a outra, era ingestão física do instrumento de dominação, o que da o
tom. A partir dessa comunhão, sua musica interior e seu bailado exterior tem que
vibrar naquele diapasão, não pode desafinar. Enquanto isso, sua cabeça dança.
" ... desde que ele voltou do Rio (parece que foi encontrar você) começamos a
observar uns comportamentos esquisitos. Ele estava sem expressão: não sorria,
falava pouco e muito obsessivo com limpeza ... Ate que, quarta-feira, eu, a Patrícia
(responsável pela cura) e o Zequinha fomos conversar com ele, pais ele insistia
que não ia mais esperar o Alex e queria viajar de imediato ... Usamos nosso amor
e as técnicas que conhecemos para lidar com essas perturbações ... Queria tomar
daime. Nós dissemos que não era bom pra ele nesse momento e que ele
precisava se tratar. Em seguida, depois de muita conversa com o Mota e o Marcos
(o Zequinha chegou a puxar-lhe a orelha para ver se acordava a sua consciência),
ele mudou um pouco o modo de se expressar e disse que não ia viajar, conforme
queríamos, que ficaria comigo e que se submeteria ao nosso tratamento.
Pensamos em procurar um psiquiatra que avaliasse o caso e nos orientasse. Ai
ele pediu para ir visitar suas amigas, que precisava conversar com elas.
Ingenuamente eu concordei e pedi que ele voltasse com o Thiago, meu filho, que
estava trabalhando na horta na casa das meninas. Ai soubemos que ele nem foi lá
e sumiu. Fugiu não sei para onde. O Mota foi de moto até Mauá e não o viu."
(Carta de Sonia Maria Palhares, mulher de Alex Polari - 21/05/92)
De novo em ação, a catequese das seitas. Primeiro, responsabiliza o encontro
com a mãe pelos "comportamentos esquisitos", na tentativa de estabelecer
discórdia familiar. A manifestação de insatisfação com a sujeira e o ambiente é
tachada de esquisitice grave a ponto de precisar de uma "cura". Quem são eles -
Sonias, Motas, Zequinhas -, que gabarito, que capacidade profissional tem para
diagnosticar "perturbações" e promover "curas"? A cura praticada por eles,
segundo testemunho de quem já passou por uma, nada mais é que uma
impregnação aguda de ayahuasca, maconha e doutrinamento - uma sessão
concentrada de lavagem cerebral. A intimidação, outra arma de fanáticos, começa
por "puxar-lhe a orelha para ver se acordava a sua consciência". Se achavam que
ele precisava de um psiquiatra, por que a família não foi comunicada? O mais
estranho é que, nessa carta, a daimista diz que começou a notar tudo isto "desde
que ele voltou do Rio"...
A inconsistência desta argumentação e flagrante. Trata-se de uma nítida tentativa
de se esquivar de suas responsabilidades. Se Jambo sofreu alguma "perturbação
mental", foi depois que começou a ingerir ayahuasca na freqüência permitida pela
direção da seita. Neste caso, a família deveria ter sido comunicada. Ou será que
ela só notou depois que ele anunciou que ia viajar, sair da comunidade
impregnada de falsificações, onde ele era uma mão-de-obra apreciada e barata?
Como tempero de crueldade, a técnica "prêmio-castigo": depois de viciar o rapaz
no alcalóide, lhe negam a acesso a droga. E mais: se ele fugiu, e porque estava
preso ou pelo
menos constrangido em seus movimentos. Mas não perturbado, tanto que iludiu
facilmente a vigilância dos iluminados.
Ao ouvir o relato de Jambo, minha reação imediata, primária, foi a mesma de
qualquer pai indignado com maus-tratos ao filho. Queria pegar um carro, subir a
serra e questionar pessoalmente o bando de zumbis que ousava tentar impedir o
sagrado direito de ir e vir. Gostaria imensamente de puxarIhes as orelhas para
despertá-los. Queria ver se eles falariam em me amarrar.
Foi o próprio Jambo, perito em conciliação, que me fez ver a impropriedade do
gesto e me acalmou. "Não vale a pena alimentar sentimentos negativos", disse.
Ele mesmo já não estava mais preocupado com isto. Queria começar nova etapa
no Mapiá, o mais cedo possível. Tudo o que queria era o mínimo de ajuda para
chegar lá e que entrássemos em contato com a seita para que ela acertasse um
dinheiro devido pelo seu trabalho e devolvesse seus pertences, que, obviamente,
nas circunstâncias de sua partida, tinham sido deixados para trás.
Assim foi feito. Poucos dias depois, ele parte, com dinheiro suficiente para chegar,
se manter um tempo e comprar, em Boca do Acre, uma quantidade razoável de
feijão, farinha e arroz para apresentar a comunidade. Viajava leve, com pouca
roupa. Logo que recebêssemos o que tinha ficado em Mauá, mandaríamos para
ele. Só ficava faltando um jeito de mandar dinheiro. Logo que chegasse, me
telefonaria dando notícias.
"Nunca deixe ninguém fazer a sua cabeça", foram minhas ultimas palavras na
despedida. Os seus olhos brilharam com aquela expressão especialmente sua,
mistura de doce e sapeca. Sorriu, e se foi.
Nunca mais o vi.
TRAGÉDIA
Dias depois, Jambo, me liga de Boca do Acre dizendo que tudo correra conforme
o planejado, tinha encontrado um pessoal de Mauá e estava embarcando em
breve para a ultima etapa da viagem de canoa, rio Purus abaixo. Deu o numero da
conta 1635-7 da agenda 3223 do Banco do Brasil, cujo titular era Gilberto Vieira,
que prestava esse serviço para varias pessoas. Detalhou que mandássemos
sempre uma quantia terminada em 700 para saber que era destinada a ele.
Plenamente lúcido, organizado, preparado para uma nova vida.
Nunca mais o ouvi.
Permaneci no Rio ainda um bom tempo para completar os preparativos para a
chegada do bebê. Em meados de junho, subo para a Bahia. Poucos dias depois
de chegar, recebo de noite recado no Arraial de que "um amigo de Ivanete tinha
ligado e pedido para eu entrar em contato com ela, mas que não era nada grave
não" ...
Corri para o telefone. Como não era grave? A gravidez era de risco. Por que ela
não ligara? Que amigo era esse que não se identificara? Uma voz masculina
atende, pergunto por Ivanete, o sujeito tem o desplante de perguntar quem eu era.
Ordeno-Ihe que me passe imediatamente para minha mulher, que atende se
desfazendo em lágrimas, balbuciando "ele se foi ... ele se foi ..." "Ele quem?"
pergunto, atordoado. " O Jambo morreu!", mal consegue articular. O orelhão da
Broadway local e a própria rua desaparecem, não vejo mais nada, esta tudo
escuro, sinto-me desfalecer. "Estou chegando", é só o que consigo gaguejar, e me
apoio na parede para não cair. Alguns segundos para me refazer e ligo de novo.
Dessa vez, ela atende. "Quem esta ai?". É o Mota o tal do responsável pela
marcenaria onde Jambo trabalhava. Digo-lhe para se livrar dele. Não me
responsabilizaria por meus atos se encontrasse o fanático que explorava sua mão-
de-obra e queria amarrá-lo para mantê-lo sob seu controle.
"Depois que ele disse mesmo que ia para o Mapiá senti que estava tornado por
uma obsessão de ir para 0 Mapiá e pronto. Falamos até de amarrá-lo mas ele
insistia que estava bem. Num relance ele fugiu."
(Sonia Palhares, in carta para Ivanete _ 23/06/92)
"De que maneira eu poderia explicar a quase obsessão com que, dia após dia, eu
ia espreitando uma brecha, um pretexto para poder chegar...”9
Cheguei a pegar o carro, mas felizmente me dei conta de que dirigir mais de mil
quilômetros no estado em que eu, estava era loucura., Na manhã seguinte peguei
o primeiro vôo, num daqueles ridículos Bandeirantes que parecem de brinquedo
com seus bancos plásticos. Já viajei de avião por boa parte do planeta. Nunca tive
medo. Sempre achei que se a coisa caísse seria tão rápido, que não daria tempo
nem para ter dor. Mas desta vez, ao passar por uns bolsões de ar na altura do
Espírito Santo, entre os corcoveios do aviãozinho, gelei. Eu não podia deixar de
chegar! '
. Adentro o apartamento, noto Biga, amiga de fé, na cozinha e um barbudo na
sala. Passo direto para o quarto, ansioso. Se
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existe o vale de lagrimas,. eu estava diante dele. Abraço-a e ficamos por longos
minutos afogados na dor.
Mas é preciso reagir. Kamala estava em casa de amigos .
Volto á sala para despachar que quem eu julgo ser o tal do Mota e sou
surpreendido pela presença de Gilson, marido da Regina, madrinha do Jambo. Na
aflição da chegada não o tinha reconhecido. Tratei-o como amigo da família. Mal
sabia como esse tabaréu rude não o merecia. Logo depois ele se vai. Foi então
que Ivanete me contou como tinha recebido a noticia.
Dia 23 de junho, Ivanete recebe telefonema de Suzana Cabral, secretaria do
CEFLURIS, a firma a sob a fachada da qual a seita opera, dizendo que vai visitá-
la. Ivanete imagina que é para dar conta das coisas do Jambo. Não foi. No dia
seguinte, quem liga é o tal do Mota, que aparece acompanhado de uma mulher
denominada "Baixinha" e de outro sujeito. Bruscamente Mota anuncia a
"passagem" de Jambo. O sofrimento da mãe é tratado - pasmem os leitores - com
uma improvisada sessão de "comunicação com o além", em que Mota,
"recebendo" o espírito de Jambo, reclama de muito calor. Ivanete desmaia. Mota
fica de guardião, os outros se vão. E quando é feito o telefonema para o Arraial.
Ivanete me diz que mesmo depois de advertido que eu não queria encontrá-lo, o
sujeito insistiu em me esperar. Na manhã seguinte, telefona três vezes para Boca
do Acre - duas para 453-5583 e uma para 453-5552 - e anuncia
despudoradamente que o calor que incorporara na véspera era c da fogueira onde
Jambo morrera! Só então parte.
Eu respeito todas as religiões e não descarto a possibilidade de comunicação com
outras dimensões. Mas ha de se convir que, nas circunstancias, fica impossível
dar credito a essa pantomima armada por um fanático. Ainda bem que eu não o
encontrei...
Mas, agora, toda a prioridade era tratar da vida que não podia sucumbir ante a
morbidez dos fanáticos. A gravidez de
Ivanete, que já era de risco, exigia todo o cuidado. Kamala Aymara - flor de vida,
luz de amor - foi absolutamente forte nesses dias difíceis. Superando o enorme
sofrimento de perder o seu Zambo, como ela gostava de o chamar, não arredou o
pé da cama da mãe, que por seu lado concentrava toda a energia que lhe restava
para não perder nosso bichinho. As amigas, Biga, Siena, Soninha e Maria Irmã, se
revezavam na inestimável tarefa de manter aceso o fiapo de luz que mantinha
Ivanete viva.
No inicio de julho, duas semanas antes do previsto, Ravi Aymara faz sua estréia
no planeta, perfeito, tranqüilo e querido. Ivanete tinha conseguido. Doravante, o
serzinho iluminado iria Ihe provar dia apos dia que a vida, apesar de todas as
travas, continuava. E clamava por atenção.
Em pouco mais de quinze dias, tínhamos passado pelas duas maiores emoções a
que o ser humano esta exposto em seu percurso. Uma morte e um nascimento.
Ousei pensar que a morte de Jambo podia significar o nascimento de uma luz nas
trevas do fanatismo.
No dia seguinte ao nascimento de Ravi nos é comunicado que Alex Polari estava
no Rio e tinha uma carta da Regina, madrinha de Jambo, para Ivanete. Logo que
as prioridades em relação ao nascimento o permitiram, me dirigi a rua Joaquim
Campos Porto, no Horto, onde um vistoso 333 indicava uma mansão-fortaleza de
vários andares. Como em toda fortaleza, demora-se a entrar'. O meu tempo é
pouco, a prioridade é a mesma. Demorou bastante para a empregada que
atendeu o interfone anunciar para o vigia, que checou com Alex e depois desceu
para abrir a porta. Finalmente, adentro, para ser instado a tomar um elevador
mínimo, que me leva ao andar de Alex, que me entrega a correspondência e diz
que quer falar comigo. Eu também, só que a hora não e essa. Alex me diz que
posso entrar em contato com ele pelo w
telefone da mansão, que pertence a Cecil, um dos mecenas da seita, e é ponto de
contato.
A correspondência incluía, alem da carta da Regina, uma do próprio Alex e uma
fita com um hino que Sonia "recebera durante 0 trabalho de São João para 0
Jambo".
"Coragem, irmã, e muito triste mas ele não estava suportando os tormentos que
ele trazia, um carma muito pesado.
Deus vê tudo e sabe do sofrimento humano, tenho fé que ele vai ser ajudado... Foi
tudo muito rápido pois o tempo voa, ele chegou mas não quis ficar aonde o Alex
tinha falado para ele, estava muito difícil conversar com ele. Ele estava duro
comigo, nem queria muito papo... Estava difícil porque ele não se colocava e nem
pedia ajuda, dizia que estava numa boa... E aqui a historia e muito seria, os
trabalhos e o povo do daime... Deus tenha piedade dele, porque essa vida ele não
estava suportando.. mas estamos rezando muito por ele e por nos, pois nesses
finais de tempo muita coisa ainda vai se ver'.
No dia da passagem dele - 21/06/92 - [eu tirei uma runa Jogo adivinhatório druida]
de conforto para os que já foram, pedindo uma clareza e saiu a seguinte runa:
"Espero que tudo esteja bem contigo nesse momento difícil. Que Deus esteja te
dando muito conforto e serenidade. E que esse neném nasça com muita luz para
afirmar novamente a vida e resgatar o carma de toda essa história.
Todos nós lá em Mauá fizemos os trabalhos do festival com o coração firmado no
Jambo e emitindo o que de melhor podíamos para ele. E ficamos muito ligados em
você também.
Agora é hora de chegar noticias, informações, detalhes. Depois da dor e da
emoção inicial, e preciso novamente ter muita calma e entrega nos desígnios de
Deus. Para enfrentar as inevitáveis questões concretas, sem deixar que a mente
se envolva morbidamente com nada..."
gentleman, como já o chamava Julinho Bressane há muito tempo. Talvez por isso
suas conquistas femininas fossem alem da sua própria fama. Lembro-me da
angustia do filho com a suspeita publica de um possível erro medico. E agora esse
mesmo filho errava criminosamente em relação ao meu.
No dia 30/10/92, Alex Polari comparece ao programa Jô Soares Onze e Meia para
fazer propaganda de um livro seu. Jô parecia encantado. É normal que as
pessoas ainda se deixem levar pelo glamour das fracassadas experiências
terroristas. É indubitável que houve coragem envolvida. Mas quando o guerrilheiro
- guerrilheiro que não deu certo e virou guru - proclama num programa dessa
importância que o daime "não é alucinógeno e sim enteogeno", merece um
questionamento mais profundo.
Como já vimos, é típico das seitas usarem códigos para beneficio próprio, ainda
que para isso tenham que maquiar a realidade. Assim, para os adeptos, o daime
não é uma droga, porque este termo já esta demasiadamente contaminado pela
carga pejorativa que o leva a ser empregado como sinônimo de algo que não
presta". Já enteogeno e derivado de entheos, palavra do grego antigo que
significa "deus dentro" e era utilizado para descrever o estado em que alguém se
encontra quando inspirado ou possuído por um deus que entrou em seu corpo.l A
pretensão, para não dizer embuste, clamam para mais questões. 0 sujeito vai a
um programa de enorme audiência e profere, diante de um dos entrevistadores
mais inteligentes da historia da televisão brasileira, que sua seita usa uma - com
perdão da palavra - droga, que após ingerida instala Deus no corpo do usuário e
que isto não e uma alucinação ... Isto é coisa de premio Nobel de Teologia. Talvez
por isso já tenha ficado impressionado.
Mas eu não fiquei. E entrei em contato com a produção do programa para expor
as outras faces do daime que o publico deve saber.
naquele dia, imagine a minha ansiedade. Tentativas de contato com sua produção
resultaram infrutíferas, devido ao congestionamento da linha e as dificuldades de
comunicação externa no 'paraíso', que são grandes, pois como Adão e Eva,
estamos na era pré-Graham Bell, havendo somente um posta telefônico em
Trancoso.
Só me foi possível ver o tape porque, fortuitamente, ele foi utilizado por alunos da
PUC em trabalho para o curso de jornalismo que meu filho ali faz.
Você pode aquilatar as enormes dificuldades para apurar o ocorrido no meio da
mata amazônica, onde a seita tem um feudo, ao que parece acima das leis
brasileiras, pois acharam estranha e descabidade da minha exigência de ao
menos um atestado de óbito, uma vez que a noticia trágica nos foi transmitida de
modo sucinto, fantasioso e cruel. Anexo artigos publicados n'O Globo e n'A Folha
de Trancoso. Sou estudioso da questão de drogas, tendo dois livros publicados
sobre o assunto - Maconha em Debate, Ed. Brasiliense - 1985, esgotado, e
Brazilian Connection, Archivos lmpossibles Editorial - 1990, que estou Ihe
enviando amanha por seedex.
Além da perda irreparável de Jambo, considero atentatória a segurança de parte
significativa da população jovem a ingestão
de uma substancia que 'altera a percepção e a consciência', como admite o
próprio Alex Polari - que tem medo da palavra alucinógena -, promovida e
divulgada amplamente por uma seita que não tem capacidade nem credencial
para lidar com as conseqüências.
Jô o problema é grave. Outras mortes já aconteceram. Espero ter oportunidade de
rebater a propaganda nefasta promovida por fariseus que se alastram por todo o
território nacional e ate no exterior - eles "importam" doentes terminais do
hemisfério norte para curá-los com o tal do daime -, marketeada pelo glamour das
estrelas globais envolvidas, aproveitando a moda do misticismo de bolso e de
'auto-ajuda"'.
No dia seguinte, 3 dezembro as 12h20 recebo o seguinte fax:
"Favor enviar novamente fax sobre santo daime Leitura ilegível (sic)
Simone
Prod.Jô Onze e Meia
Assim foi feito. Não retornaram mais. Será que ha daimistas na produção do Jô?
das pessoas que lhe fazem apologia e o menor destaque dado as que apontam os
perigos no consumo da beberagem e fazem criticas ao culto. Entre as quais dta 0
dr. Nelson Massini, medico-Iegista e chefe do Departamento de Medicina Legal da
Unicamp, que chefiou uma expedição a Amazônia de uma equipe que também
contava com o farmacologista dr. Samir Arbax e o cinegrafista Valter Pinto,
empenhada em realizar um trabalho cientifico multidisciplinar sobre a seita
(reportagem publicada no Jornal do Brasil em 16/10/88 sob o titulo Expedição ao
Santo Daime). Massini declara:
"RIO BRANCO - '0 desmatamento existe, o Céu do Mapiá esta dentro de uma
floresta nacional e a comunidade do santo daime, que se propôs a desenvolver
trabalhos extrativistas, esta fugindo de seu objetivo original.' A declaração é do
delegado regional do Ibama no Acre, Antonio Ihuaraqui Pacaio, que inspecionou a
área no suI do estado do Amazonas, onde esta assentada a comunidade dos
adeptos da seita do santo daime, que utiliza o alucinógeno também conhecido
como ayahuasca.
A ordem de fazer a vistoria partiu da presidente nacional do Ibama, Tânia Munhoz,
depois da denuncia feita pela revista alemã Der Spiegel em matéria publicada pelo
correspondente no Brasil, o austríaco Hans-Peter Martin, que denunciou ter
recebido ameaças dos daimistas. No sobrevôo que fez sobre a área, o delegado
do Ibama no Acre diz ter constatado que os daimistas já desmataram 120 hectares
de floresta, derrubando e queimando ate castanheiras e seringueiras. Na matéria
publicada na revista alemã, o jornalista Hans-Peter Martin, que em agosto passou
três dias visitando a comunidade, escreveu que o projeto do Mapiá é a mais
ousada mentira ecológica dos trópicos, apesar de ser 'um dos projetos mais
prestigiados da proteção ambiental brasileira'.
Na vistoria realizada, o delegado do Ibama, Antonio Pacaio, informou ter
constatado também outra grave distorção dos objetivos a que se propuseram os
adeptos do santo daime: muitas cabeças de gado, pastando em torno da sede da
comunidade, onde foi construído o templo da seita e 50 casas para seus adeptos.
'Realmente, a criação de gado não tem nada a ver com o extrativismo', disse o
delegado do Ibama, adiantando que, no relatório que fará a direção geral do
instituto, vai sugerir que o convenio seja revisto.
Ainda no governo do presidente Jose Sarney,o Ibama assinou convenio com a
comunidade do santo daime do Céu do Mapiá no valor de 5 milhões de dólares, a
serem financiados pelo Banco de Desenvolvimento Internacional (Bid).
Segundo a matéria do jornalista da revista Der Spiegel, 0 Bid iria ainda investir 230
mil dólares na construção de uma fabrica de castanha-do-pará, que seria
inaugurada pessoalmente pelo presidente Fernando Collor."
Fica evidenciado nas matérias o poderoso lobby dos daimistas em duas
presidências da Republica. Se "só" conseguiram 5 milhões de dólares e não os 7
pretendidos, em compensação tiveram sua área inicial aumentada de 48 mil para
521 mil hectares. O valor absoluto de 5 milhões de dólares é óbvio. Para se ter
uma idéia do valor relativo da quantia, registre-se que quatro anos depois o Banco
Mundial (Bird), através do Programa-Piloto para Conservar a Floresta Tropical
Brasileira, doou ao Brasil 7,5 milhões de dólares para preservar a Floresta
Amazônica e a Mata Atlântica [o grifo é meu].
Esse programa foi criado em 1992 pelo Grupo dos Sete, que reúne as sete naçoes
mais ricas do planeta: Estados Unidos, Japão, Alemanha, Grã-bretanha, França,
Canadá e ltália. O dinheiro é para ser distribuído a organizações não
governamentais, grupos comunitários e prefeituras que tenham projeto de
preservação.
O quadro acima delineado demonstra que o interesse principal da Requerente,
que é a apuração das circunstancias em que se deu a morte de seu filho Jambo
Veloso de Freitas, não é circunscrito a seu drama familiar. A sociedade necessita
de pesquisa isenta e imparcial das atividades dessa seita, em face de sua
evolução e expansão.
Outras mortes suspeitas reforçam essa necessidade:
O suicídio de Sophie, que se matou na França depois de longa temporada com a
seita em Mauá.
a suicidio, em 1985, de um jovem adotado pela comunidade do Mapiá. Esse fato
me foi relatado em conversa telefônica por volta das três horas da tarde no dia
19/09/92 por André Lazaro, porta-voz da seita e um dos difamadores de Jambo.
Mas a animalidade do tal do Gilson, mais doida porque era considerado amigo da
família, foi a gota d'agua. Era demais para ela ter que reviver a todo o momento a
história. Era preciso parar, em nome da principal interessada.
O Dr. Daniel Cunha foi comunicado de nossa decisão. Ele tinha ultrapassado a
mera competência profissional e se envolvido politicamente na questão. Possuía
instrumento jurídico a sua disposição para continuar com as ações, que já não
eram somente de interesse particular, mas publico. A seita, no mínimo, era
questão de saúde publica, de saneamento básico (não era a toa que as exigências
de higiene de Jambo foram tão brutalmente reprimidas). Mas a ética e a
sensibilidade falaram mais alto. Foi praticada uma retirada estratégica.
No segundo semestre de 1994, sou procurado pela mãe de uma menor em poder
do daime.
Dia 26 de setembro, a Folha de S. Paulo publica reportagem de Roni Lima sob o
titulo Mãe acusa santo daime de lavagem cerebral, historiando 0 acontecido. Nela,
Alex Polari insiste nas ofensas a Jambo e se gaba do apoio internacional com que
a seita conta em seu "trabalho espiritual de fundo caritativo". É espantosa a
caridade do fanático em relação à memória de Jambo, que é tachado mais uma
vez de "desequilibrado mental" e "ligado em drogas".
Elaboro um dossiê com a caso de Jambo e a remeto para a CONFEN.
No dia 18 de dezembro, o Jornal do Brasil noticia o resultado do dossiê enviado:
Confen pode proibir bebida do santo daime é a titulo da matéria de Marcelo
Moreira, que salienta que a noticia de que o Conselho Federal de Entorpecentes
reabriu a processo do daime "caiu como uma bomba entre os líderes das
doutrinas que também usam ayahuasca em suas cerimônias". Há 22 grupos
religiosos catalogados pelo CONFEN que também usam a bebida. "Na colônia do
Alto Santo, a mais antiga, a porta-voz Tuninho Alves anunciou que os
representantes das outras doutrinas farão um encontro, para decidir como
interpelar os seguidores do Cefluris, doutrina à qual pertence Alex Polari. 'Eles
perderam o controIe sobre o daime e agiram de maneira irresponsável', acusa.
Com relação à morte de Jambo, Alex Polari diz que o rapaz
chegou à comunidade querendo se curar do vício da cocaína e não conseguiu.”
É o caso de se perguntar ao gurulheiro quem dava cocaína para ele, uma vez que
todas as testemunhas são unânimes em relatar que Jambo não usou cocaína
durante o ano e meio que morou com a seita. 0 que ele tomou foi muito daime.
Já Marcos Imperial, deslumbrado, diz ao repórter que o daime está divulgando a
cultura dos povos da floresta no mundo. Não ocorre ao proselitista que, talvez, o
resto do mundo não precise da cultura dos povos da floresta, da mesma forma
que os povos da floresta não precisam da cultura do resto do mundo. Típica
viagem de fanático expansionista. "Os estrangeiros estão cantando em
português", baba Marcos. Alias, há bastante tempo esse sujeito tem delirios
megalomaníacos evidentemente derivados da ingestão da droga divina. Não
respeita ninguém. "Chegara um dia em que o próprio papa conhecera o daime",
imagina ele.17
Foi nomeado relator do processo o médico psiquiatra José Costa Sobrinho,
coordenador de Saúde Mental do Distrito Federal e conselheiro do CONFEN.
Entre as várias denúncias, deve apurar também a da exportação da beberagem
para EUA, Europa e Japão, o que contraria frontalmente a carta de compromissos
auto-reguladores constantes na Carta de Príncipios das Entidades Usuárias da
Ayahuasca, documento que integra a ultima deliberação do CONFEN sobre a
matéria.
Fez-se necessário um relato sistematizado da tragédia de Jambo . As informações
sobre os desmandos da seita do daime, embora abundantes, seguiam o mesmo
destino das vitimas dos fanáticos: se fragmentavam e não constituíam memória
dentro do bombardeio diário de informações a que estamos submetidos nestes
tempos que correm.
Ricardo Boechat, um dos jornalistas mais bem informados do país, publica, com
exclusividade, em sua coluna, nota sobre a livro que "0 jornalista Jorge Mourão
está escrevendo sobre a seita". 8
Foi o bastante para a secretária de plantão da seita, Suzana Cabral, enviar
delirante circular por fax para as redações dos jornais, em que entre outras
bobagens dizia que " ... 0 sr. Jorge
Mourão pode escrever o que quiser, só não pode é faltar com a verdade ... " Fico
muito lisonjeado pela permissão que tão iluminada pessoa me concedeu. Só acho
estranho O fato de que o tal fax viesse com O cabeçalho da Editora Record from
Regui Murray, tel./fax. 580-04911, rua Argentina, 171. Após o texto, Suzana
Cefluris assina e da outro número de telefone. Será que o sr. Sergio Machado
sabe que sua editora está sendo usada para marketing da seita? Ou será, por
pura sincronia, mais uma incursão no artigo do Código Penal que leva o mesmo
número do endereço?
O sobressalto de Suzana e Cia. é mais uma vez compreensível. Swann, a coluna
de Boechat, pauta jornais no Brasil todo. 0 "suzanafax", visivelmente
inconsistente, ajudou muito na suíte das notícias sobre as irregularidades da seita.
Desorientados, anunciam que vão pedir a apreensão do livro, esquecendo que,
muito embora sua seita utilize métodos totalitários próprios dos tempos da ditadura
- que ela parece caricaturar com os que caem em suas garras -, a censura previa
foi abolida faz tempo.
Finalmente, seis meses depois de ter sido entregue o dossiê do caso Jambo, o
hesitante CONFEN recomenda a interdição do usa do daime para menores.19 Os
daimistas costumam dar a bebida até a bebes na mamadeira.
"A interdição aprovada funciona como uma sugestão as entidades usuárias da
ayahuasca", esclarece o presidente do Conselho, Matias Flach.
"E se as seitas que usam o chá não respeitarem a decisão do Confen"? - pergunta
o repórter.
"Neste caso, teremos que estudar outras medidas”.Então tá. Fica combinado
assim... Para nós, uma pequena vitória. Para eles, uma grande derrota. A guerra
continua.
DEPOIMENTOS
APURAÇÕES
INVESTIGAÇÕES
MIRAÇÕES
ETC
CONFEN
Ele justificou sua visão sobre a ayahuasca afirmando que algumas drogas como o
álcool e o chá desempenham importante papel em rituais religiosos. "A Igreja
Católica utiliza o vinho na comunhão. Isso não significa incentivo ao alcoolismo."
Nem os padres dão vinho para as crianças.
Em janeiro de 1993 um escândalo: o Jornal do Brasil publica que o ministro da
Justiça Maurício Correa preparou um plano para flagrar o presidente e os
integrantes do CONFEN, suspeitos de tráfico de cocaína. Uma ex-funcionária do
Ministério da Justiça, Cândida Rosilda, teria procurado a polícia de Brasília para
revelar que a presidente do CONFEN, Ester Kosovski, faria parte de um esquema
destinado a acobertar narcotraficantes. Ester tinha sido indicada para o cargo pelo
ex-presidente Fernando Collor.21
Dais dias depois, Cândida Rosilda nega para a mesmo jornal que tivesse feito
denúncia a polícia civil sobre a conduta da presidente do órgão, Ester Kosovski.
Cândida admitiu que se afastou do órgão por divergência sobre a descriminação
do uso de drogas. A ex-conselheira afirmou não ter concordado com a posição de
integrantes do CONFEN, que defendiam a liberação do daime. "Está provado que
este chá é um alucinógeno.”24
Em dezembro de 1994 o Jornal do Brasil praticamente republica o mesmo título da
matéria do Estado de São Paulo de quatro anos atrás: Confen pode proibir bebida
do santo daime.25
A partir dos dossiês sobre os casos Jambo e da menor em poder da seita
enviados ao CONFEN, o presidente Luis Matias Flach pediu a reabertura do
processo para incluir a bebida na lista de drogas proibidas pelo órgão.
Somente seis meses depois o Conselho chega a uma "conclusão": o uso do daime
e interditado a menores, mas como reconhece o conselheiro José Costa Sobrinho:
"o Confen não tem poder para proibir efetivamente. Trata-se de enfatizar a
dubiedade entre a interdição, meramente burocrática e a sua efetização a bebida
para menores”.19
"A primeira vez foi uma experiência desastrosa. Eu tomei demais, e ela pode ser
fatal em caso de overdose. Nunca consegui uma droga que agisse tão rápido.
Uma dose como aquela teria sido facilmente fatal. Minha sorte e que eu tinha
levado umas cápsulas de Nembutal. Tomei cinco, e melhorei. Se não tivesse
tornado Nembutal teria morrido."
William Burroughs, escritor, autor do clássico Naked Lunch, entre outros veteranos
na experimentação de todo tipo de droga - Estado de São Paulo, 29/04/95.
"As seitas religiosas oferecem lotes na floresta com a condição de os fieis
realizarem o desmatamento para garantir posse das terras. E proibido derrubar
castanheiras, então os donos as queimam e elas desabam por si próprias."
Franz Krajcberg, artista plástico, filósofo e guerreiro ecológico - Jornal do Brasil,
12/05/95.
"O alucinógeno pode causar problemas se a pessoa tiver predisposição à psicose,
paranóia ou esquizofrenia."
"No mundo dos índios a bebida está ligada a um contexto que visa conceitos
morais, enquanto os daimistas estão apenas se drogando. Os efeitos do daime
são semelhantes aos do LSD."
Fernando de Carvalho, professor de Farmacologia da Santa Casa de São Paulo
Manchete, 20/04/91.
Resposta: Porque fanáticos de uma seita não têm controle sobre os efeitos de tal
droga.
4) Por nunca ter exercido sua profissão, passou par diversos empregos até
que, recentemente, exercia trabalho de XXXXXXX junto a XXXXXXX,
estabelecimento esse firmado no XXXXXXX.
8) Passou a levar a filha nos rituais da seita, dando-lhe para ingerir o "chá de
santo daime", beberagem alucinógena e depressiva.
10) Com essa grave situação, os avós maternos da menor não puderam
concordar. Vendo a futuro que aguardava a neta, romperam relacionamento com a
filha, dando conhecimento ao Autor do que acontecia (DOC 2).
2. Ao induzir sua filha, uma criança com apenas XXXXXXX anos, a ingerir
substancia nociva a sua saúde física e psíquica, além de ter demonstrado que não
está em condições de dar à menor cuidados adequados, a Ré não estava
exercendo direito seu, mas sim lesando direito indisponível de sua filha, a higidez
física e mental.
7. O Autor, por outra lado, tem trabalho definido, e sempre teve sua filha sob
seus cuidados diretos durante longos períodos, como fins de ano e férias da
escolinha.
9. Autor não pode concordar que sua filha vá morar em local totalmente sem
recursos, não tendo condições para estudar. É de se lembrar que o Autor já
providenciou a matrícula da filha em escola de ensino privado de XXXXXXX.
FUNDADOR UM TELEPATA
IRMÃOS EM SOFRIMENTO
MÉDICO AMERICANO
RESSALTA BOM USO DO CHÁ NA UDV
As atividades descritas no artigo de Der Spiegel devem ser observadas com sérias
preocupações - não apenas pelos supostos organizadores dessas sessões de
Ayahuasca, comprometidos com um comportamento altamente irresponsável e
perigoso, mas pelo risco de que suas ações tragam atenção indesejada ao uso
salutar da Ayahuasca na América do Sul.
A mistura das plantas misteriosas da Amazônia demonstrou indução a efeitos
benéficos poderosos, quando usada em contexto resguardado. Tem sido de
grande valor aos membros da UDV no Brasil. Tem potencialmente muito a ensinar
aos pesquisadores-médicos da Europa e da América do Norte.
É imperativo, portanto, distinguir as atividades bizarras, recentemente ocorridas na
Alemanha, do papel tradicional que a Ayahuasca tem tido na bacia amazônica,
como agente de cura e indutor da experiência religiosa.29
Os daimistas dizem que não são proselitistas. Não é o que mostram os dois
panfletos de propaganda que reproduzimos, um deles chamariz internacional para
gringos enfastiados e de preferência ricos
Alex Polari
Acho que os textos, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo, dispensam
comentários ...
CONTINUAÇÃO
Wilfred Bion, psicanalista inglês, constatou a existência de alguma coisa que ele
chamou de "mentalidade grupal". Essa mentalidade grupal estabelece-se sempre
que o grupo se reúne. O surpreendente é que ela não se subordina ao estado
mental de nenhum membro do grupo. Pelo contrário, mostra-se soberana, e é ela
que subordina os membros do grupo. A mentalidade grupal apresenta-se como
alguma coisa viva, pensante, desejante, dotada de uma ideologia própria, um
complexo de corpos e valores. Possui uma inteligência, um conjunto de intenções,
um sistema de astúcias e maquinações. Parece uma espécie de "espírito coletivo"
que paira sobre todas as cabeças, encaminhando-as para esta ou aquela direção.
Tamanho e o seu poder de influência, que Bion chega a considerar os membros
do grupo como um lugar de materialização desse espírito, de manifestação dessa
vontade, de expressão dessa ideologia. Imersos na mentalidade grupal, os
indivíduos parecem hipnotizados por forças exteriores a eles, seduzidos por
mágicas diabólicas. Seus pensamentos, seus sentimentos, até seus
comportamentos, a rigor, não mais lhes pertencem.
Tudo está controlado pela mentalidade grupal. Quando, por esta ou aquela razão,
predominam na mentalidade grupal as forças negativas do ódio ou da agressão,
quando entre coletividade e indivíduo se estabelece a divergência, os membros do
grupo se retraem, perdem seu viço, seu entusiasmo, sua inteligência, sua
criatividade, sua inspiração. Aqueles membros sobre os quais se abate a
divergência serão os mais duramente atingidos. Sentem-se então empobrecidos,
vazios, fúteis, sem perspectivas. Em circunstâncias críticas, antes que se possa
influir, podem se abater sobre alguns membros do grupo as mais variadas
doenças e os mais variados tipos de acidentes. 30
Como foi parar ai, ninguém sabe dizer. Não quero crer que tenha sido queimado
após ser morto, como alguns suspeitam. Mas foi no mínima um assassinato
cultural. A pressão do grupo deve ter sido muito forte. O rebelde chega
estigmatizado e é encurralado. "O daime é um labirinto". 25
Fugindo da contrafação de Mauá, subiu ao "Céu do Mapiá." e desceu aos
infernos, completamente perdido no labirinto dos amigos de satanás,
"questionando o sentido de tantas suscetibilidades, dissensões e emoções
presentes no meio espiritual quase da mesma forma ou pior do que no meio
mundano." 31
Qual era o sentido da procura? Como sair? Voltar? Admitir a derrota? Nem isso
podia fazer. As canoas são controladas, e não permitiriam a um rebelde ocupar
espaço em meio ao festival. Em pouco tempo, viu tudo. A confiança que tinha
depositado naquelas pessoas não existia. Viu que além de não ter podido contar
com o Mota, com a Sonia e com o Zequinha em Mauá, não pode contar com Alex
em lugar nenhum (decepção do encontro em Boca do Acre, quando este "não
gostou de ver Jambo ali"). No Mapiá, nem Regina, ex-madrinha, nem Tadeu, nem
Alfredo. Estavam todos muito envolvidos "num momento de grande sensibilidade",
considerados pelo festival da fogueira. O individuo Jambo não tinha a menor
importância.
“O daime cura tudo, menos sentença.”32 E Jambo tinha sido sentenciado, como
muitos dissidentes em regimes totalitários, a loucura.
Tinha que cumprir o que o grupo induzia.
No Mapiá, cercado de mata e hostilidade por todos os lados, sentiu apagar a
chama da vida. Apesar do fogo, ninguém viu.
A figura jurídica de assassinato cultural não existe no código penal. Mas a de
induzimento ao suicídio, sim.
Que as labaredas que o queimaram sirvam para iluminar as consciências dos
envolvidos nesta tragédia
NOTAS
1) Livro II – 137.
2) Livro I – 38.
3) Livro I – 89.
4) Livro I – 43.
5) Livro I – 103.
6) Livro I – 103.
7) cf. Brazilian Connection by Mourão, Archivos lmpossibles Ed. 1990.
8) Livro I – 23.
9) Livro I – 24.
10) Livro I – 99.
11) Guiado pela Lua, Edward McRae. – 16.
12) O bebê de Maitê, Manchete – 11/08/90.
13) O daime encontra seu céu, O Globo – 05/11/90.
14) Os perigos do chá, Veja - 31/08/88.
15) Área extrativista preserva comunidade do santo daime, JB - 18/08/89.
16) Bird dará 7,5 milhões para florestas brasileiras, O Globo – 01/11/94.
17) Bebida vem de cipó e de folha da Amazônia, JB – 15/10/90.
18) O Globo – 22/04/95.
19) Confen limita o uso do daime para adultos, Correios Brasiliense – 03/06/95.
20) Correa amplia combate aos entorpecentes, JB – 11/03/93.
21) Polícia apura tráfico de cocaína no confen, JB - 15/01/93.
22) Veja – 31/08/88.
23) Estado de São Paulo – 11/12/88.
24) Cândida afirma que criticou chá, JB – 17/01/93.
25) JB – 18/12/94.
26) JB – 03/06/95.
27) Jornal da Tarde – 04/05/95.
28) Der Spiegel – out./94.
29) Der Spiegel.
30) Assassinato cultural, Eduardo Mascarenhas, em defesa de Glauber Rocha,
outro que foi tachado de louco.
31) Livro I – 103.
32) Livro II – 103.
33) Livro I – 38.
DADOS BIOGRÁFICOS
Koki Aymar